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BASES METODOLÓGICAS PARA A ASSIST�NCIA DE ENFERMAGEM EM SAÚDE

COLETIVA, FUNDAMENTADAS NO MATERIALISMO HISTÓRICO E DIALÉTICO*

Vilma Machado de Queiroz " "


E miko Yoshikawa Egry " "

RESUMO - As autoras p ropõem u m a metodologia de assistênc i a de enferm agem em s a ú ­


d e coletiva, fundamenta d a ' no materialismo ' h i stórico, partindo d a concepção e v i s ã o de
mundo nesta ótica, d a recolocação de pressu postos e das leis d a d i alética materialista.
Neste referencial aceita-se que o processo saúde-d oença é determinado soc i a l m e nte, em
u m a dada rea lidade objetiva, e que esta realidade d eve ser abord a d a em três d i mensões,
a saber: "d imensão estrutura l ", forma d a pelos processos d e desenvolvimento d a capaci­
dade produtiva e d e relações sociais; a "d imensão particular", formada pelos processos
de reprodução social e a "dimensão s i n g u l a r ", formada pelos i n d ivrduos e suas famnias.
A m etodolo� i a d e assistê n c i a de enfermagem em saúde coletiva ora proposta é desen­
volvida nas seg u i ntes fases: a ) captação d a rea l i d a d e objetiva; b l i nterpretação d a real i d a ­
d e objetiva: c l construção dó p rojeto d e intervenção n a realidade objetiva; d I i nterven­
ç ã o na rea l i d a d e objetiva; e l rei nterpretação d a realidade objetiva. Em cada u m a dessas
fases, as três d i mensões d a realidade o bjetiva, acima mencionadas, são consideradas d e
f o r m a s i m u ltânea.

ABSTRACT - The authors suggest a n u rsing assistance methodology i n p u b l i c health, ba ­


se on h i storic a l -d i a lectical -materia l i s m , sta rti ng from the conception a n d from world v iew,
accord i ri g to t h i s referent i a l , and from the laws of the materialist d i a l e ctic. In t h i s referen ­
t i a l it is accepted the health-illness p rocess when soc i a l l y stated f o r a g i v i n g objective
rea l ity, a n d ta k i n g in account this rea l ity must be a pproached in t h ree d i m e n sions, as fol­
lows: "the structural d i mension", formed by the d evelopment p rocesses of the prod ucti­
ve a b i l ity and of the soc i a l rel ations: "the p a rt i c u l a r d i m e n si o n ", formed by the soc i a l re­
prod uction processes; and "the s i n g u l a r d i m e n s i o n " formed by the i n d i v i d u a i s arid t h e i r
fa m i l ies. The proposed n u rs i n g assistence m e t h o d o l o g y i n p u b l i c health i s d eve l oped i n
following ste p s : a I obta i n n i n g the o bjective rea l ity; b l i nterpreta itt i n g the o bjective rea ­
l ity; c l e l a borat i n g a p roject f o r i nterve n n i n g i n t h e objective real ity; d I i nterve n n i n g i n
the objecti ve rea l ity; e l re i nterpretatt i n g the object i ve rea l ity. I n e a c h o f t h i s steps, above
m e n c i o n n e d , t h ree d i m e n s i o n s m u st be c o n s idered s i m u lta n e o u s l y.

1. INTRODUçAo mesmo que não claramente explicitado, e que tem suas


bases no referencial idealista.
o materialismo histórico e dialético, como dunda­ Na concepção materialista histórica e dialética,
ment;ação filosófica vem sendo utilizado por diferen­ considera-se que o processo saúde-doença é socialmen­
tes autores para o estudo, análise e interpretação da te determinado, pois as transformações sociais ocorri­
enfermagem brasileira nos últimos anos, como os de das em um determinado momento histórico, geram
ALMEIDA & ROCHA (1986), NAKAMAE (1986), SILVA transformações na saúde, tanto na sua estrutura co­
(1986). Este referencial diverge radicalmente de outro mo no sistema de saúde.
adotado por muitos anos na prática da enfermagem, Nesta concepção, ainda, a sociedade é entendida

• Prêmio lsaura Barbosa Lima 1 0 lugar


-

• • Professor Assistente Doutor do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP.

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como a " totalidade das relações de produção e das for­ um dado momento histórico, é que determina a saúde
ças produtivas, que formam sua estrutura econõmica, enquanto estrutura e enquanto sistema.
a qual serve de base real onde se ergue uma superes­ Nesta forma materialista histórica e dialética de ver
trutura jurídica e política, e à qual correspondem de­ o mundo, os homens são vistos dentro de uma ótica
terminadas formas de consciência social e onde se de­ coletiva, sempre inseridos em uma classe social, que
senvolve o processo de vida social" (HAHN & KOSING, é o reflexo de sua inserção no sistema de produção e
1983). que é ele que determina a saúde.
Entende-se por relações de produção, " as relações O enfoque da saúde do ponto de vista do coletivo
que os homens estabelecem entre sí na produção e re­ e não do individual justifica-se em ra�o de que a di­
produção da sua vida material, em virtude de a pro­ nãmica social das classes é que determina a saúde, con­
dução se realizar sempre de modo social, na ação con­ siderando a saúde, o efeito, e não a causa e com isso,
junta de muitas pessoas; abrangem.a propriedade dos negando-se que o somatório dos fatores individuais da
meios de produção, bem como a troca e a repartição saúde irão dar um retorno dinãmico de sua estrutura.
das atividades necessárias ou dos bens produzidos O referencial materialista histórico e dialético pres­
(HAHN & KOSING, 1983). supõe à sua compreensão, uma tomada da realidade
Por forças produtivas compreendem-se " todas as objetiva, ou seja, do concreto, consideradas as trans­
fqrças que são necessárias para produzir bens mate­ formações históricas socialmente determinadas, e que
riais para a satisfação de necessidades humanas: for­ estas transformações ocorrem pela explicitação e su­
ças físicas e intelectuais do próprio homem, forças e peração das contradições que emergem. Contrapõem­
materiais da natureza, quer na forma não trabalhada se a ele, a universabilidade e a imutabilidade, que sig­
de matérias-primas, energia hidráulica e semelhantes, nificam que os fenõmenos ocorrem e explicam-se pa­
quer na forma já trabalhada de meios de produção (por­ ra todas as sociedades em todos os tempos de forma
tanto, máquinas, instrumentos, aparelhos, técnica, apli­ " uniforme" e " predizível", negando com isto as dife­
cação de conhecimentos científicos), mas também a di­ renciações determinadas pela inserção do homem em
reção da produção, a sua tecnologia e organização. As classes sociais antagõnicas.
relações de produção e as forças produtivas formam, Com isto, significa que a metodologia de assistên­
em conjunto, o modo de produção (HAHN & KOSING, cia de enfermagem dentro da concepção materialista
1983). histórica e dialética ora proposta, sofrerá transforma­
A superestrutura jurídica e política se refere ao ções no tempo e no espaço, transformações estas, oriun­
"pluriforme sistema do Estado e seus órgãos: órgãos das daquelas que dinamicamente movem a sociedade
legislativos e administrativos, exército, polícia, justiça, brasileira e portanto, também a prática da enfermagem.
partidos políticos e outras organizações sociais, insti­ Pressupõem assim que a enfermagem e a própria as­
tuições culturais tais como o sistema educativo, impren­ sistência não se caracterizam como meros objetos das
sa, rádio e televisão, instituições artísticas, igreja ou transformações sociais, mas que elas serão também as
outras instituições de ação religiosa e outras mais" que irão transformá-la. Isto é, a enfermagem em sua
(HAHN & KOSING, 1983). prática sofre asj transformações não como simples ob­
As formas de consciência social são " as idéias, con­ jeto, mas sim como sujeito de sua transformação - ao
cepções, convicções, teorias sobre a vida social, ideo­ mesmo tempo que as transformaçeos da sociedade im­
logias, normas jurídicas, regras e mandamentos morais, põem mudanças na prática profissional, as transforma­
concepções e expressões artísticas, a religião, a visão ções da prática profissional levam à mudanças sociais.
do mundo; estas formas de consciência social estão em Para que a prática profissional resulte em interven­
estreita ação com a "superestrutura jurídica e políti­ ções conscientes de transformações sociais, é neces­
ca" (HAHN & KOSING, 1983, p. 139). sário que o profissional e o cliente se assumam, enquan­
Por processo de vida social, entende-se ' 'a organi­ to prática de assistência, como "sujeitos" de um mes­
zação das pessoas nos mais diversos agrupamentos so­ mo processo na formulação e busca de horizontes con­
ciais, sobretudo e em primeira linha, naturalmente, em cretos de saúde; isto é, no desenvolvimento de traba­
classes, mas também em determinados coletivos, em lho conjunto, sistematizado e dinãmico de captar e in­
população urbana e rural, em profissões ou outros se­ terpretar a realidade de saúde e de enfermagem de uma
tores de atividade, em famílias ou outras unidades so­ coletividade, dentro de um contexto social historica­
ciais assentes numa ascendência e origem comuns ou mente determinado, de interferir nesta realidade e,
no parentesco" (HAHN & KOSING, 1983, p. 139). nessa intervenção, ir reinterpretando a realidade e no­
O Homem é, portanto, visualizado como ser social vamente intervindo sobre ela. Para que isto ocorra de
e que se insere enquanto classe social (BRONFMAN & forma concreta, é necessário visualizar-se um horizon­
TUIRAN) na sociedade através do sistema produtivo, te, que neste referencial é distinto da utopia idealista,
ou seja, do trabalho. pois ele é construído na medida que se caminha, ao
A dinãmica da relação entre os modos de produ­ mesmo tempo é móvel porque ao atingi-lo já estarão
ção, a inserção das classes no sistema produtivo, em sendo construídos novos horizontes; além disso, tal ho-

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rizonte não e umco para toda a coletividade, de, e com isto (corpo de conhecimentos e habilidades)
contrapondo-se novamente à universalidade e ao ideal intervêm no processo saúde-doença, cuja forma de in­
abstrato que é construído por grupos hegemõnicos, tervenção será a seguir descrita na metodologia de as­
uma vez que no referencial adotado esta construção sitência de enfermagem.
é feita pelos sujeitos participantes do processo.
3. METODOLOGIA DE ASSISTÊNCIA DE
2. BASES CONCEITUAIS QUE EN FERMAGEM
FUNDAMENTAM A ASSISTÊNCIA DE
ENFERMAGEM DENTRO DO REFERENCIAL A metodologia d e assistência d e enfermagem será
MATERIALISTA HISTÓRICO E DIALÉTICO. descrita abordando o conceito de metodologia, as eta­
pas e o desenvolvimento do método.
A adoção do referencial materialista histórico e dia­
lético, obriga necessariamente a recolocação de con­ 3.1 . Conceito
ceitos já amplamente utilizados em enfermagem e em
saúde, e que por apresentarem bases dentro da con­ A metodologia de assistência de enfermagem é a
cepção idealista, impedem a utilização imediata em OU" sistematização dinâmica de captar e interpretar a rea­
tro referencial. lidade de saúde' e de enfermagem de uma coletivida­
A seguir serão resumidamente abordados concei­ de, dentro de um contexto social historicamente de­
tos dos quais dependem a compreensão do próprio de­ terminado, de intervir nessa realidade e nessa inter­
senvolvimento da metodologia proposta. venção ir reinterpretando a realidade e novamente in­
Por processo saúde-doença entende-se a resposta tervindo sobre ela.
dinãmica que classes sooiais manifestam de forma di­ A realidade referida é a realidade objetiva que é
ferenciada, de acordo com sua inserção no sistema de aquela que tem como propriedade "de existir indepen­
produção, frente aos determinantes sociais, resposta dentemente e fora da consciência humana" (HAHN
esta, dada pelas características de riscos ou potencia­ & ROSING, 1983, p.50). A aproximação da realidade
lidades que são reflexos do processo biológico de des­ objetiva, para o desenvolvimento da assistência de en­
gaste (LAUREL, 1983; BREILH & GRANDA, 1986, p. fermagem, deve ser realizada tendo em vista o seu des­
40). dobramento em três dimensões: a dimensão estrutu­
Como a qualidade de vida de cada classe social é ral, que é formada pelos processos de desenvolvimen­
diferente, em nossa sociedade, é diferente também a to da capacidade produtiva e de desenvolvimento das
sua exposição a processos de risco e o acesso a proces­ relações de produção, da formação econõmica social
sos benéficos ou potencialidades de saúde (BREILH & e das formas político-ideológicas derivadas; a dimen­
GRANDA , 1986, p. 40). são particular, que é formada pelos processos de re­
Isto posto, a assistência fi saúde coletiva significa produção social, perfis epidemiológicos de classe in­
a forma de interferência consciente (sistematizada, pla­ tegrados pelo perfil reprodutivo d� classe e perfil de
nejada e dinãmica) no processo saúde-doença, de uma saúde-doença, e formas especiais de prática e ideolo­
dada coletividade, consideradas as distinções das clas­ gia em saúde; e a dimensão singular formada pelos pro­
ses sociais; realizada pelo cOI\Íunto dos profissionais de cessos que em última instância leva a adoecer e a mor­
saúde com a coletividade, objetivando o desenvolvi­ rer, ou ao contrário, a desenvolver o " nexo biopsíqui­
mento da consciência crítica de cada classe social em co", dados pelo seu "funcionamento", consumo­
relação a sua realidade de saúde, tomando-se portan­ trabalho individual e pelas formas de participaçâo in­
to sujeito de suas próprias transformações. dividual de organização e consciência (BREILH &
O desenvolvimento desta consciência crítica deve GRANDA, 1986, p. 57).
iniciar-se com a reflexão crítica da prática dessa assis­ A aproximaçâo da realidade objetiva pelas três di­
tência. Thl "reflexão crítica coosiste na busca e análi­ mensões mencionadas é necessária para que o sujeito
se de informações sobre a realidade profissional e de das ações de enfermagem tome consciência de sí pró­
saúde, inserindo esta busca e análise no contexto das prio, de seu papel dentro da classe social e dentro do
relações sociais da coletividade e também na identifi­ sistema social; desta forma a intervenção realizada nâo
cação de pontos vulneráveis e de momentos e formas será somente no seu processo singular de saúde e doen­
de intervenção no curso histórico da evolução dessa ça, como indivíduo e família, mas também, no proces­
realidade" (LIMA et alii. 1979). so saúde-doença de sua classe social e da própria so­
A assistência à saúde coletiva, com este significa­ ciedade em que vive.
do é um horizonte que se visualiza hoje, e ao caminhar
para este horizonte, a enfermagem deve ser conside­ 3.2. Etapas do método
rada como sendo um corpo de conhecimentos e habi­
lidades específicos, construídos e reproduzidos em de­ A descrição do método será feita em etapas seqüen­
corrência da divisão social do trabalho na área de saú- ciais, apresentadas desta forma por ser mais didático,

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porém sem a conotação de que as mesmas são estan­ 2� etapa: Interpretação da realidade objetiva
ques, ressaltando que ao longo do desenvolvimento,
elas se interpenetram . A interpretação da realidade objetiva, iniciada a
sua captação na primeira etapa, é realizada pela ex­
Este método pode ser aplicado em diferentes ní­
plicitação das contradições existentes nas três dimen­
veis ou focos de atenção individual (por exe.mplo, con­
sões e seus grupos temáticos. Deve ser descoberto pa­
sulta de enfermagem), familiar (por exemplo, na assis­
ra cada terna e também no seu conteúdo total, os po­
tência de enfermagem à família realizada no domicí­
los contrários, que compõe na luta entre eles, a unida­
lio), pequenos grupos e coletividade.
de e luta dos contrários. Esta etapa, realizada em con­
junto profissional/cliente, é tanto mais complexa e di­
1 � etapa: Captação da realidade objetiva
fícil quanto maior for a consciência ingênua do sujei­
to, ou seja, a alienação dele, que se caracteriza, de acor­
A captação da realidade objeJiva consiste em co­
do com LANE (1984, p.42) " pela atribuiçãõ da 'natu­
nhecer tal realidade nas três dimensões e dentro de­
ralidade', aos fatos sociais; esta inversão do humano,
las os grupos temáticos a serem abordados:
do social, do histórico corno manifestação da nature­
Grupo temático referente à dimensão estrutural za, faz com que todo o conhecimento seja avaliado em
• o sistema de saúde vigente corno um todo e a forma termos de verdadeiro ou falso e de universal; neste pro­
de vinculação do sujeito à ele; cesso a 'consciência' é reificada, negando-se corno pro­
• a atuação das instituições de saúde na problemática cesso. . .
"

de saúde expectativas e experiências vividas em re­


lação às respostas esperadas destas instituições; 3� etapa: Construção do projeto de intervenção na rea­
• dinâmica e a historicidade das transformações ocor­ lidade objetiva
ridas no sistema de saúde.
Grupo temático referente à dimensão particular À medida em que se capta a realidade objetiva, e
• a dinâmica e a historicidade do processo saúde­ explicitam-se as contradições existentes na fase de in­
doença dentro de diferentes classes sociais, destacan­ terpretação da realidade objetiva pertinentes à saúde,
do a inserção do sujeito em dada classe social; deve ser elaborado um projeto de intervenção nesta
• dinâmica e historicidade de movimentos populares realidade, tanto na dimensão singular, particular, co­
e sua vinculação à eles. rno na estrutural. Thl projeto de intervenção deve ser
Grupo temático referente à dimensâo singular construído em conjunto profissional e o sujeito da as­
• dinâmica e historicidade de sobrevivência e/ou aper­ sistência, permitindo, desta forma, a tornada de cons­
feiçoamento da saúde, relacionados a: ciência e a reflexão crítica da realidade objetiva em re­
- processo saúde-doença: problemas e/ou questões de lação à saúde.
saúde; qualidade; dinamicidade; interferência em Ao construir o projeto de intervenção na realida­
outros níveis; de objetiva, as contradições explicitadas na fase ante­
- ambiente físico: espaço/uso; propriedade; sanea­ rior devem ser submetidas ao exame da vulnerabilida­
mento; localização x recursos; populaçâo; apare­ de de conteúdo, isto é, da possibilidade real de rom­
lhamento urbano; mobilidade; per e interferir nesta realidade, pelos conhecimentos
- alimentação : acesso ; qualidade; quantidade; e avanços existentes; da vulnerabilidade espacial que
produção; é dada pela oportunidade ou época em que poderá ha­
- transporte: acesso; tempo gasto; número de trocas; ver o ponto de ruptura, ou seja, a ultrapassagem da
propriedade; contradição exposta; da vulnerabilidade da forma, is�
- educação: acesso; educação formal/não formal; fon­ to é, as formas ou alternativas de proposição que po­
tes de obtenção de temática reflexiva; qualidade; dem causar o rompimento.
- trabalho: ambiente físico; vinculação; dinâmica de O projeto de intervenção deve conter objetivos de
vinculação; trabalho remunerado/não remunerado; alcance comum (profissional/sujeito) estabelecendo,
salário/renda; utilização/distribuição da renda; também, em cOI\Íunto, as épocas de alcance dos mes­
- relações familiares e/ou grupais: qualidade; opor mos. Importante frisar que estes não são imutáveis,
tunidade; coesão; vida reprodutiva; pois, à medida em que eles (objetivos) estão sendo tra­
- prazer: qualidade (realizações reflexivas ou reite­ çados, novos ternas da realidade objetiva podem estar
rativas); quantidade; participação individual ou sendo captados e interpretados, o que deve modificar
grupal; substancialmente a proposição inicial. Portanto, eles
- corpo biopsíquico: domínio; desgaste físico e emo­ são contínuos e refeitos em todos os momentos, o que
cional; sensações (respostas à estímulos); funciona­ não significa que os mesmos não devam ser claramen­
mento do corpo (cárdio-vascular, respiratório, te expostos, urna vez que a própria mudança de rumos
gastro-intestinal, locomotor, sentidos, genito­ é decorrente da reinterpretação continuada e revela
urinário, cutâneo-mucosa). por si só o movimento de consciência.

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· 4 � etapa: Intervenção na realidade objetiva tudes, as reflexões, terão primeiramente a caracterís­
tica de pequenas e contínuas questões que ao se tor­
Nesta etapa, em continuidade dinãmica com as an­ narem quantitativamente significativas, rompem com
teriores, são postos em prática os objetivos propostos. a qualidade anterior e produzem uma nova.
Esta prática não se limita à dimensão singular, onde Exemplo que se pode colocar é a compreensão por
muitas vezes é iniciado o processo, mas deve abrange r parte de determinados sujeitos, a respeito de que a
simultaneamente todas as três dimensões na interven­ doença é provocada por agentes externos sem nenhu­
ção de temas específicos, visando a superação das con­ ma conexão com as dimensões particular e estrutural
tradições explicitadas. e mesmo com os demais sub-temas da dimensão sin­
gular - revela com isto que o sujeito é dotado de cons­
5� etapa: Rein terpretação da realidade objetiva ciência ingênua de sua realidade objetiva. Ao perce­
ber as conexões existentes da realidade objetiva e por
Nesta etapa deve haver uma releitura da realida­ ter conta de como estão imbricadas, produzem-se ações
de objetiva, frente às transformações ocorridas ou não, nível de transformações, como por exemplo a busca de
diante das intervenções realizadas nas três dimensões determinadas formas diferentes de sua sobrevivência
e em seus desdobramentos temáticos. Devem ser re­ e/ou aperfeiçoamento de vida. Ao conectar com outros
colocados e analisados os impactos, as dificuldades sur­ temas e ao evoluir a reflexão, tornando-se agora mais
gidas no processo de superação das contradições, bem crítica, pode buscar outras formas de interpretar o pro­
como o redimensionamento do horizonte (ou objetivos) cesso saúde-doença e a relação com o trabalho, e com
anteriormente posto e a projeção de novas proposições. isto, a determinação de sua própria condição de vida.
A ação gerada pela consciência reflexiva produz no­
3.3. Desenvolvimento do método vas relações, e nesta produção há construção de uma
nova qualidade.
o desenvolvimento deste método de assistência de A lei da negação da negação explica principalmente
enfermagem por ser dentro do referencial materialis­ a etapa da realidade objetiva, onde já pelo desenvolvi­
ta histórico e dialético, baseia-se nas leis fundamen­ mento das etapas anteriores, a realidade objetiva foi
tais da dialética materialista que explicam o decurso "construída" e aproximada do conscient e, e que houve
geral e o mecanismo interno da ação deste desenvol­ t omada de decisão em como proceder a intervenção, su­
vimento, descrevendo, ainda, a orientação dos proces­ cedida da própria intervenção e que ao ser assim pos­
sos do mesmo. to, ela organiza de forma diferenciada os dados da rea­
As leis fundamentais da dialética materialista lidade objetiva, portanto, ao retomá-Ia, nega-a. Com
abrangem conexões do próprio mundo material, cone­ isto no decorrer da assistência de enfermagem, ao pro­
xões que existem fora da consciência humana e inde­ duzir transformações é negada a realidade anterior,
pendente dela (HAHN & ROSING, 1983, p.66). São elas: projetando novos horizontes que serão também nega­
a lei da unidade e luta dos contrários; lei da passagem dos em fase posterior.
de transformações quantitativas a novos estados qua­ Convém ressaltar que ao se negar e superar aspec­
litativos; a lei da negação da negação (CHEPTULIN, tos da realidade objetiva anterior, com a obtenção de
1982). uma nova qualidade, a qualidade anterior, com a ob­
A lei da unidade e da luta dos contrários já descri­ tenção de uma nova qualidade, a qualidade anterior
ta na etapa de interpretação da realidade objetiva é é negada, suprimida, eliminada, " mas não é simples­
utilizada nas demais etapas, pois, nela baseiam-se as mente aniquilada, não desaparece sem deixar marcas.
transformações que nada mais são do que a explicita­ Pelo contrário, nesta negação preserva-se () anterior re­
ção dos polos contráros e a ultrapassagem que geram sultado posit ivo do desenvolvimento subseqüente"
as transformações. As contradições são explicitadas (HAHN & ROSING, 1983 , p.73).
passo a passo nó decurso de toda a aplicação do méto­ Nota-se com isso que é preciso frisar a dinamici­
do, buscando, além de sua explicitação, encontrar pon­ dade do método e a interpenetração das etapas, que
tos vulneráveis para a prt>vocação de mudanças. o diferencia de modelos assistenciais utilizados até en­
A lei da passagem de quantidade para a qualida­ tão, dentro da ideologia idealista, e que ao transcorre­
de, ocorre e explica as transformações que sucedem rem as etapas, as leis da dialética materialista deverão
durante todas as fases do método, primeiro em forma ser utilizadas para sua consecução, conforme pode ser
de pequenas modificações como " reformas" da estru­ visto no Quadro 1 . Isto significa que as etapas a serem
tura existente até que estas se juntanc�o transformem percorridas são contínuas e não se findam , em um mes­
quali tativamente produzindo nova estrutura, que tam­ mo momento de assistência de enfermagem; percor­
bém , por sua vez contém e manifestam contradições rer-se-ão infinitas vezes as mesmas, pois a cada passo
que se iniciam com mudanças quantitati vas. novos horizontes são construídos e serão também al­
Isto significa que no decorrer da assistência de en­ cançados ou modificados.
fermagem, as percepções, os comportamentos, as ati- Ao revelar esta metodologia de forma total , e, por-

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tanto, bastante complexa em seu conteúdo de desen­ percorrem em todo o processo da assistência de enfer­
volvimento e busca das verdades parciais, fica pairan­ magem, tendo portanto objetivos ou horizontes iniciais,
do a questão mais concreta de quais seriam esses da­ de curto prazo, propostos em um encontro, como tam­
dos da realidade objetiva com que se deve iniciar a cap­ bém horizontes mais a prazo mediano e longo, propos­
tação, já que este total de dados não pode ser captado tos para serem atingidos no decorrer de um conjunto
nem desenvolvido em uma única relação profissio­ de encontros sistematizados e planejados.
nal/sujeito.
Os dados iniciais, devem ser aqueles que estão mais
próximos do sujeito, mesmo que uma resolução mais 4. SíNTESE
"imediatista", mas, no " lidar" com este conteúdo te­
mático, que lhe é mais próximo, e no desdobramento A adoção do referencial materialista histórico e dia­
deste conteúdo mas três dimensões e sempre pela si­ lético e de suas leis, para fundamentar a metodologia de
multaneidade delas é que proporciona esta aproxima­ assistência de enfermagem , principia, para o profissio­
ção materialista e dialética . E, neste desdobramento, nal, pela mudança da visão de mundo, quando, aplican­
surgem, de um lado pela própria conexão, e de outro do-se a "lei da negação da negação", supera-se a visão
com a entrada dos conhecimentos específicos do pro­ idealista anterior, negando-se a assumir, e superando o
fissional diante da visão sobre o processo saúde-doença, papel que lhe é conferido pela classe dominante; papel
historicamente determinado, é que novos conteúdos este, de reprodutor de uma ideologia de saúde que pri­
temáticos virão à tona para novas intervenções. vilegia esta classe em detrimento de outra, majoritá­
ria, que é dominada, espoliada e que serve, em última
Thnto as três dimensões e seus conteúdos temáti­ instãncia, de " objeto" do qual se deve reduzir tensões
cos, como as etapas, correm e percorrem a cada mo­ por meio de políticas de saúde. Essas políticas revelam
mento de encontro profissional/sujeito, prestada à co­ nos seus discursos, conteúdos ideológicos que tentam
letividade (também em distintos focos como o de pe­ encobrir as diferenciações de acesso e de condições de
quenos grupos, família e indivíduos), como também saúde de classes sociais, como por exemplo "extensão

QUADRO 1 - Esquema sim plifieado da proposição metodológica de assistência de enfermagem no referencial


mat erialista hist ôrieo e dialét ieo.

DIMENSÕ ES
ETAPAS DO TRABALHO DIMENSÃO ESTRUTURAL DIMENSÃO PARTICULAR DIMENSÃO SINGULAR

CONHECIMENro DA • PROCESSO • CLASSES SOCIAIS: • DIMENSÃO BIO-


REALIDADE OBJETIVA PRODUTIVO INSERÇÃO NO PSÍQUICA DOS
• PROCESSO JURÍ DICO- SISTEMA PRODUTIVO ESTRAroS E
POLÍTICO FRAÇ Õ ES
• DIN Ã MICA NO • DINAMICA DE
TEMPO MANUTENÇÃO DE
VIDA
• DIN Ã MICA DE
APERFEIÇOAMENro
DE VIDA

INTERPRETAÇÃO DA
EXPLICITAÇÃO DAS CONTRADIÇ Õ ES
REALIDADE OBJETIVA

CONSTRUÇÃO DE
PROJEro DE
PROJEro DE SUPERAÇÃO DAS CONTRADIÇÕ ES
INTERVENÇÃO NA
REALIDADE OBJETIVA

INTERVENÇÃO NA
SUPERAÇÃO DAS CONTRADIÇ Õ ES
REALIDADE OBJETIVA

REINTERPRETAÇÃO DA
NEGAÇÃO DA REALIDADE ANTERIOR
REALIDADE OBJETIVA

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de cobertura", "acesso universal", "desenvolvimento configuram os padrões típicos de saúde-doença dos gru­
de tecnologia apropriada". pos e dos indivíduos que os compõem" (BREILH &
Esse referencial, ao ser adotado pelos profissionais, GRANDA, 1986, p. 21).
requer também a negação do reducionismo simplista O profissional que adotar esse referencial materia­
do processo saúde-doença, superando o modelo uni­ lista histórico e dialético deverá ainda superar o "idea­
causal da doença, que está sempre colocado fora do lismo" de que sua profissão teria a incumbência de edu­
organismo agredido; superando, ainda, o modelo mul­ car e prestar assistência para ' 'melhorar a saúde do po­
ticausal do processo saúde-doença, que se limitara a vo", com receitas pré-determinadas, situando a proble­
"descobrir fatores causais na produção de problemas fá­ mática de saúde a nível individual e a sua resolução
ceis de atacar, com medidas baratas e que permitam restrita à decisão do profissional. Ao superar este idea­
implementar medidas coletivas de controle" (BREILH lismo, um novo horizonte, desta vez real e dinãmico
& GRANDA, 1986, p. 20). Esse modelo, portanto, não deverá ser traçado. Neste horizonte, a sua atuação es­
trata de chegar às verdadeiras causas do problema, mas pecífica como profissional deverá ser um "meio" ou
sim, " de colocar uma cortina ideológica" que distorça uma ' 'forma" de compartilhar seu saber específico, jun­
a realidade, mas que permita, ao mesmo tempo, " ob­ tamente com outros profissionais, no trabalho cof\junto
ter resultados pragmáticos adequados". Esse "mode­ com o sujeito das ações (coletividade, grupos, famílias,
lo não permite, portanto, buscar as verdadeiras cau­ indivíduos), visando a: captação e interpretação da rea­
sas do problema, (. . . ) senão dar uma resposta "práti­ lidade de saúde, dentro de um contexto social histori­
ca", cortando a cadeia causal mediante a supressão ou camente determinado; interferência nessa realidade e
modificação de uma das variáveis intervenientes no com isto ir reinterpretando a realidade e novamente
aparecimento com o fim de conseguir diminuí-lo a ní­ intervindo sobre ela.
veis toleráveis, sem tocar as causas estruturais que po­ Esta metodologia de assistência de enfermagem
dem 'desequilibrar' o sistema" (BREILH & GRANDA, possibilitará desfazer os mitos vigentes na enfermagem
1986, p.20). e na saúde como o do " messianismo" que confere não
No referencial materialista histórico e dialético, só poder como responsabilidade absolutos ao enfermei­
deve-se ainda negar e superar o modelo do processo ro quando da sua assistência ao paciente; ou de "im­
saúde-doença segundo a " tríade ecológica de Leavell potência profissional" ao não conseguir ' 'sozinho" mo­
e Clark", pois nele, "ignora-se a categoria social do Ho­ dificar as condições, ainda que singulares, de cada pes­
mem, transformando-o em um 'fator eminentemente soa, todos eles origináros de uma postura idealista de
biológico', que permite esconder as profundas diferen­ prática profissional. Nesta prática é inevitável que sur­
ças de classe que existem". Esse modelo permite sim­ jam sentimentos de "culpa" ora responsabilizando a
plesmente "restaurar as condições biológicas para que clientela, ora responsabilizando o profissional pela não
o homem, como força de trabalho, se mantenha no mer­ "melhora das condições de saúde".
cado". Ao se separar artificialmente o 'sujeito social' Ao contrário, neste referencial que fundamenta a
(fator homem) de sua produção, (. . . ) se desvanece a ori­ assistência de enfermagem proposta neste trabalho, es­
gem social desses produtos". " Esta interpretação de­ tas questões anteriores serão desmistificadas, supera­
formada permite propor medidas corretivas biológico­ das pela criação e produção conjunta de outras condi­
ecológicas e em nenhum momento buscar transforma­ ções objetivas de vida e saúde, que consideram neles
ções estruturais que atentem contra o equilíbrio do sis­ as três dimensões da realidade objetiva, ou seja a di­
tema (BREILH & GRANDA , 1986, p. 21). mensão estrutural, a dimensão particular, a dimensão
Ao se negar e superar as contradições do modelo singular.
hegemõnico da sociedade e de saúde, deve-se reinter­
pretar a realidade objetiva à luz do referencial mate­
rialista histórico e dialético para captar que a " tida
social", e o processo saúde-doença "como um de seus
REFERÊN C IAS BIBLIOGRÁFICAS
elementos, são parte do universo, que existe objetiva­
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