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Qualificação ou competência?1
O artigo procura mostrar que os esforços registrados pela Sociologia do Trabalho fancesa, no sentido de se definir
a noção de competência, reproduzem, de uma forma ou de outra, as matrizes teóricas construídas por George
Friedmann e Pierre Naville por ocasião da definição de qualificação. Existem, não obstante, tentativas de superação
dessa trajetória clássica, sobretudo as que levam em conta os limites da Sociologia do Trabalho na conceituação
da competência e a necessidade de se recorrer a outras disciplinas, como a ciência da cognição.
P AL A V RA S-C HA VE : CO M PE TÊ NC IA ;
QUALIFICAÇÃO;
SABER;
SABER-FAZER;
SABER-SER;
SOCIOLOGIA;
TRABALHO.
como forma de melhor compreendermos como se dá, alizado no desaparecimento dos ofícios, ameaçava o tra-
hoje, o estudo da competência. Lembrá-los, é, ainda, balhador. A Sociologia do Trabalho vive o seu terceiro
uma forma de reconhecer a contribuição que deram à momento. A obra de George Friedmann, «Problèmes
Sociologia do Trabalho. humains du maquinisme industriel» (1946), conside-
Os destaques dados, aqui, a Vivianne Isambert- rada fundadora da Sociologia do Trabalho francesa, e
Jamaty, Marcelle Stroobants e Mireille Dadoy se devem mais as pesquisas de Pierre Naville, «Automation et travail
ao fato de nos parecer que, juntas, dêem uma melhor humain» (1961) e «Vers l’automatisme social» (1963),
idéia das preocupações e direções tomadas pelos vários discutem as implicações da tecnologia e do taylorismo
autores, quando do estudo da competência: a emergên- sobre o futuro do trabalho e do trabalhador, a automação,
cia do termo competência, a cognição como um dos seus os processos de formação profissional e as qualificações.
elementos constitutivos e os questionamentos sobre o Passados mais de 50 anos da publicação de
processo de transição no mundo do trabalho que pare- «Problèmes humains...», o trabalho que até então não
cem impor a noção de competência. Não temos a inten- era visto senão dentro das usinas, dos escritórios, hospi-
ção, nas poucas páginas que seguem, de esgotar a dis- tais, escolas etc. saltou os muros e invadiu a vida de não-
cussão. Para tanto teríamos que recorrer a Matéo Alaluf, trabalho. O trabalho que era a transformação da natureza
Lucy Tanguy, Yves Schwartz, Pierre Rolle, Pierre Trippier, é, hoje, assumidamente ação social. O trabalho que pro-
Philippe Zarifian e tantos outros que se têm dedicado a duzia coisas, hoje produz sociedade (ALAIN TOURAINE,
esse estudo. Pretende-se, tão somente, listar as idéias 1994). A rigor, não existe mais Sociologia do Trabalho,
gerais que norteiam o estudo da competência e fazer os melhor seria chamá-la de Sociologia do Trabalhador,
questionamentos que a Sociologia do Trabalho nos per- como pensava Pierre Naville, ainda nos anos 50.
mite e nos obriga a fazer. Assim, se no seu surgimento a Sociologia do Tra-
balho trata do trabalhador que descobre a si mesmo, que
toma consciência da sua condição, enquanto sujeito (So-
ciologia da consciência operária?), no seu segundo mo-
mento, ela trata do trabalhador descoberto pela indús-
2 A SOCIOLOGIA DO TRABALHO tria, descoberto como sujeito, ou seja, complexo, in-
cógnita do processo produtivo. O mundo da produção,
que graças à performance das máquinas e à organização
taylorista parecia, aos olhos dos empresários, estar re-
solvido, dá mostras das suas incertezas. A descoberta do
A Sociologia do Trabalho, contrariamente ao que
trabalhador pela indústria, que requisita a sociologia e a
muitos possam imaginar, não é uma disciplina recente.
denomina, unilateralmente, de Sociologia Industrial, é
Talvez possamos dizer que o seu surgimento coincida
como se fosse a descoberta de que algo ainda não funci-
com a emergência da consciência operária. A passagem
onava bem no processo produtivo _ e este algo era o
de artesão a operário, como registrado por ANDRÉ GORZ
(1973)4 , mostra-se, possivelmente, como a melhor tra- trabalhador. Não obstante a descoberta, o mundo da pro-
dução deste momento. Tal ocorrência se coloca como dução se mostra cada vez mais fascinado pelo taylorismo
objeto privilegiado de estudo de muitos sociólogos do e seu modo «científico» de colocar as coisas nos seus
trabalho. «devidos lugares». O terceiro momento da Sociologia
Um segundo momento da Sociologia do Traba- do Trabalho é, portanto, a descoberta do trabalhador
lho, para muitos referência da sua fundação, se encon- destroçado pelo taylorismo, expropriado do seu ofício.
tra nas pesquisas desenvolvidas por Elton Mayo e cole- Mas é, também, a descoberta do inelutável avanço da
gas (1932), nos Estados Unidos, a convite da Western tecnologia que o condena definitivamente ao desem-
Eletric. Suas célebres experiências sobre a luminosidade prego e à desqualificação (G. FRIEDMANN, 1946, 1950).
no interior da fábrica5 marcaram a Sociologia do Traba- Assim, como «reconstruir o trabalhador» se constitui em
lho que ficou conhecida em todo mundo, a partir de um dos problemas centrais do pensamento friedmaniano.
então, por Sociologia Industrial. A idéia do trabalho, enquanto ação concreta, do traba-
Após a segunda guerra mundial, os esforços euro- lho artesanal, como referência de trabalho completo, de
peus, sobretudo os franceses, de reconstrução saber, de autonomia, parece não oferecer outra saída
oportunizaram o desenvolvimento e o emprego de para as agruras do trabalhador, senão propor a sua re-
tecnologias e o avanço do taylorismo. O momento se construção: enriquecimento das tarefas6 , polivalência,
apresentava como de profunda transformação e, materi- maior investimento na formação profissional, redução
4
GORZ André, Critique de la division du travail,
travail Paris, Éditions du Seuil, 1973. Para ver mais consultar TOURAINE, A., La conscience ouvrière,
ouvrière Paris, Éditions du Seuil, 1966, 397p.
5
Em experimentos realizados nas oficinas de Hawtorne, cujos resultados não foram explicados por E.Mayo e sua equipe, observa-se nos grupos experimentais que a melhora da claridade
das oficinas produzia um aumento do rendimentos dos trabalhadores, todavia aumento semelhante podia ser observado nos grupos de controle, cujas condições não se haviam alterado.
E mais, no grupo experimental, à medida que a luminosidade diminuia progressivamente, o rendimento continuava a aumentar.
6
Ver os trabalhos de Claude DURAND, entre eles, Le travail enchaîné,
enchaîné Paris, Ed. Seuil, 1978.
da jornada do trabalho. Propõe-se, então, seguir uma sentada pela presença das máquinas dependentes, semi-
trajetória inversa à seguida pela sua desconstrução. Fim automáticas e automáticas. Para ele, o progresso técnico
de século e de milêncio, a Sociologia do Trabalho, ain- interferiria na evolução das formas de trabalho
da ocupada com a reconstrução do trabalhador, é atro- desqualificando-o. O taylorismo, por sua vez, não seria
pelada pelos acontecimentos que transformam o mun- determinado pela tecnologia, mas pelo estilhaçamento
do do trabalho. Operário e posto de trabalho não tradu- do processo de trabalho e pela multiplicação dos pos-
zem, mais, um paradigma ideal. O trabalho invadiu defi- tos, a partir de tarefas simples.
nitivamente o mundo do não-trabalho. O mundo do tra- Para ele, então, a qualificação define-se pelo sa-
balho é mais bem representado pela produção de co- ber e pelo saber-fazer adquiridos no trabalho e na apren-
nhecimento, pela comunicação, do que pela produção dizagem sistemática. Ela se encontra no trabalhador e se
de coisas. A sociedade toma consciência de si mesma constrói a partir do posto de trabalho. Melhor, o tipo de
como trabalhadora. É a Sociologia do Trabalho que exi- intervenção definido pelo posto de trabalho definirá a
ge ser reconstruída para tornar-se Sociologia do Traba- qualificação. Mas, se há uma relação entre o tipo de in-
lhador. É a consciência social que emerge nas atividades tervenção exigida pelo posto e as exigências de qualifi-
do cotidiano. cação, esta é do trabalhador ou do posto de trabalho? A
Assim, muito embora a qualificação ocupe de for- questão, aparentemente simples, divide trabalhadores e
ma explícita a Sociologia do Trabalho francesa, nos últi- patrões e mobiliza, ainda hoje, a Sociologia do Traba-
mos quase 60 anos, e a competência, nos últimos 15 lho.
anos, elas já se mostravam esboçadas, desde a origem Percebe-se em G. Friedmann que é o trabalho
dessa sociologia, nos registros da expropriação do saber artesanal a forma completa do trabalho qualificado. É o
e da autonomia operária, assim como nas trajetórias pro- artesão a referência do operário de «métier», objeto das
postas para analisá-las. preocupações de Friedmann. A atividade intelectual se
mostra como um elemento constitutivo importante da
qualificação que pode ser observada na relação estreita
entre a complexidade de uma tarefa ou de um conjunto
de tarefas e as capacidades apresentadas pelo trabalha-
3 A QUALIFICAÇÃO
dor.
Definida a qualificação, o problema agora é como
medi-la? G. Friedmann propõe a duração da formação e
a estrutura da qualificação. Ele não considera, todavia, o
De 1945 a 1985, 50% ou mais dos estudo da Soci- tempo de formação um critério preciso de qualificação,
ologia do Trabalho francesa tratam da qualificação (M. porque não pode ser considerado uma quantidade ho-
DADOY, 1987). Ela está ligada a um período muito pre- mogênea nem uma variável sempre determinante.
ciso da história recente da França, qual seja, o período Finalmente, confrontado com os avanços da
que seguiu a segunda grande guerra mundial, marcada automação, G. Friedmann parece jogar a toalha. Não há
pelos esforços de modernização do aparelho de produ- como enfrentar o avanço tecnológico, confessa. Ele é
ção e de intensificação do taylorismo. Não seria muito inevitável. Na automação o homem vai para o desempre-
dizer que a Sociologia do Trabalho francesa participa go, para a desqualificação. Assim conclui, entoando o
destes esforços o que lhe dá uma certa intimidade com coro geral, mas acrescenta «ou para a sobrequalificação».
as preocupações e com os interesses do empresariado e Em outras palavras, a automação possibitaria uma recom-
do Estado francês. Intimidade que, de certa forma, se posição dos saberes dos operários, o que é confirmado
mantém até os dias atuais. por A. TOURAINE (1955), no célebre estudo realizado
A noção de qualificação torna-se, portanto, cada na Renault sobre os sistemas profissionais7. Estava, por-
vez mais freqüente na literatura a partir da segunda guerra tanto, esboçada a tese da superqualificação e
mundial. Até então, ela aparece de forma discreta e, quan- desqualificação, ou da polarização das qualificações, tra-
do muito, sob outras denominações. Os trabalhos de G. tada, muito mais tarde, por MICHEL FREISSENET (1977)8.
Friedmann produzidos até 1946, por exemplo, tratavam A resposta ao avanço do maquinismo e à degradação do
da formação profissional e não da qualificação (M. trabalho, pensa então G. Friedmann, é o enriquecimen-
DADOY, 1987). É após a segunda guerra mundial que to das tarefas, o desenvolvimento da polivalência, a re-
ela ganha sua atenção. A tese sobre a passagem da civili- dução da jornada do trabalho.
zação do meio natural à civilização técnica delineia a Assim, a tecnologia e o modo de organização
noção de qualificação. A civilização técnica estaria repre- taylorista, embora desenvolvidos paralela e independen-
7
TOURAINE, A., L’évolution du travail ouvrier aux usines Renault,
Renault Paris, Ed. CNRS, 1955, 202p.
8
FREYSSENET, M., La division Capitaliste du travail,
travail Paris, Savelli, 1977.
temente, vão contribuir, juntos, para a construção, em ta uma ruptura de civilizações. E completa, a automação
G.Friedmann, da noção de qualificação. Noção que de- não deve ser vista limitada ao posto de trabalho, mas
finirá a qualificação como substantiva e tecnologicamente deve ser compreendida no processo de produção.
determinada. Suas pesquisas o conduzem, ainda, a não confir-
Mas, se G. Friedmann tem, em alguns pesquisado- mar a tese, segundo a qual a automação levaria à
res, a confirmação de suas teses, em outros ele encon- sobrequalificação ou à desqualificação. Ele observa que
trara importantes questionamentos. Entre os últimos, cer- as mudanças, ocorridas nos setores produtivos com o
tamente o mais importante foi P. Naville que não apenas advento da automação, são diversas e os resultados de-
dividiu com ele o primeiro Tratado de Sociologia do pendem dos setores estudados. Da mesma forma, con-
Trabalho (1962)9 , mas, também, a paternidade da pró- testando G. Friedmann, a automação não muda os sabe-
pria Sociologia do Trabalho francesa. Pierre Naville, an- res específicos, mas a estrutura da qualificação. Na ver-
tigo militante político e dono de uma trajetória acadê- dade, o que ocorre, diz P. Naville, é o reaparecimento
mica construída, em grande parte, na psicologia10 , dos trabalhos em equipe e a necessidade de cooperação
redireciona seus esforços de intelectual e de pesquisa- ou, ainda, a fluidez da mão-de-obra e a transversalidade
dor para a Sociologia do Trabalho e nela imprime suas dos saberes técnicos. Ora, ele já observava e chamava a
preocupações com o mundo do trabalho, com a produ- atenção, nos anos sessenta, para as questões que seriam
ção do conhecimento e, sobretudo, com as pesquisas discutidas, trinta anos depois, ao se tratar da competên-
empíricas. Um mundo que, para ele, se encontrá além cia, como veremos mais à frente.
do posto de trabalho e das grandes empresas. Na verda- P. Naville procura escapar ao determinismo
de, P. Naville não se limita ao estudo das atividades de tecnológico e à noção substancialista impressas por G.
trabalho, mas procura fazer uma análise da sociedade a Friedmann em seus trabalhos sobre a qualificação. As
partir dos problemas do trabalho. Assim, se G. Friedmann pesquisas por ele conduzidas reforçam sua noção de qua-
constrói os alicerces da Sociologia do Trabalho francesa, lificação. Ou seja, a qualificação como o resultado de
um processo de formação autônomo, independente da
P. Naville a projeta para o futuro, esboçando uma Socio-
formação espontânea no trabalho. Ela é, sim, o saber e o
logia dos Trabalhadores.
saber-fazer, mas do trabalhador. Responde, assim, à ques-
Se foram observadas divergências em seus pontos
tão anteriormente posta: a qualificação é do posto de
de vistas, foram observadas, também, algumas confluên-
trabalho ou do trabalhador? Ela é relativa e suas formas
cias. Tanto em um como em outro, parece indiscutível
dependem do estado de forças produtivas e das estrutu-
que a qualificação constrói as grades hierárquicas e sala- ras sócio-econômicas nas quais os trabalhadores se inse-
riais, constituindo-se em um elemento de negociação rem. A qualificação se construiria, portanto, muito mais
salarial e de localização do trabalhador na empresa. Não de critérios sociais, onde as relações de força e os con-
há, portanto, como não associar a qualificação ao salário flitos têm um papel importante, do que individuais. Ela
e, ainda, às operações de classificação e de hierarquização não se reduziria às qualidades intrinsecas ao individuo
dos indivíduos e dos empregos. (suas habilidades ou seu saber-fazer). Ou seja, elas são
Quanto à automação, Pierre Naville retoma, à sua construídas socialmente. Não obstante sua noção de qua-
maneira, a preocupação deixada em aberto por G. lificação, P. Naville procura mensurá-la, a exemplo de G.
Friedmann com este novo processo de trabalho. Utili- Friedmann. A duração da aprendizagem aparece, para
zando-se inclusive de métodos quantitativos de investi- ele, como um dos elementos essenciais da qualificação.
gação, implementará a pesquisa, Automation et travail P. Naville, como se percebe, tem preocupações di-
humain, que procurará responder à questão, posta des- ferentes das de G. Friedmann. Enquanto este está mais
de 1956, sobre os efeitos sociais da automação. Os resul- preocupado com o trabalhador e seu posto de trabalho,
tados da pesquisa estão publicados nas obras «Automation as tranformações ocorridas nesta relação, advindas seja
et travail humain» (1961) e «Vers l’automatisme soci- da evolução tecnológica seja do taylorismo, aquele se
al?» (1963). volta para as tranformações ocorridas no conjunto da
Mais otimista que G. Friedmann quanto à sociedade. Os acordos e desacordos, entre eles, cons-
automação (resquício da sua militância politica?), acre- truirão um campo de conhecimento, de posturas, de
dita que ela pode liberar o homem do sofrimento do trajetórias que delimitarão a Sociologia do Trabalho fran-
trabalho, isto se a classe operária impuser novas relações cesa. No momento em que emerge a noção de compe-
sociais. Apoiado em suas pesquisas, continua a discordar tência, como veremos a seguir, as mesmas formas de
de G. Friedmann: a automação não é um fenômeno novo, pensar reaparecem. Parece, então, se reproduzirem, as
não é uma continuidade do maquinismo nem represen- trajetórias seguidas por eles.
9
Convidado por G.Friedmann para a elaboração de um Tratado de Sociologia Industrial, P.Naville exige que o nome do tratado seja Sociologia do trabalho. Pierre Naville. Entretien en
1987. Filme realizado em 1994 por Michel Burnier, Produção I.K.ON.-M.S.H. (Entrevistas realizadas por Michel Burnier e Claude Gilain).
10
Além das pesquisas desenvolvidas sobre o grafismo na infância, P.Naville se interessa pela corrente comportamental americana que emerge na Europa, entre as duas grandes guerras
mundiais: Psychologie, science du comportement,
comportement Paris, Gallimard, 1942, 253p, (coll. L’avenir de la science, n°16).
referência o conteúdo do trabalho. A «revelação em se desvendar como são constituídos estes saberes
empírica» e a «refutação aplicável ao passado», como no plano da cognição, das motivações, do afeto etc.
ela denomina essas tentativas que, respectivamente, Por que, então, agora, o saber é objeto de preocupa-
reconhecem e não reconhecem a tese d a ção da Sociologia do Trabalho? Parece-nos evidente
desqualificação, se fundamentam, na verdade, no con- que a preocupação emerge com a noção de compe-
teúdo das tarefas. Em outras palavras, lembra M. tência e com a dificuldade da sociologia em tratá-la, a
Stroobants, permanece o raciocínio da tese da exemplo do que fez com a noção de qualificação. Isto
desqualificação: apenas se inverte o sinal; segundo, parece claro no caminho tomado por M. Stroobants
estabelecendo uma ruptura nessa forma de pensar, ou quando do estudo da competência.
uma «reviravolta metodológica». Ou seja, se as com- Para ela, a competência é caracterizada por um
petências dependem da maneira como são vistas, elas tipo de saber (o saber-fazer e seus recortes específi-
são relativas. A competência é, portanto, uma cons- cos, ou seja, o SABER + um verbo que denote ação).
trução social. A questão, contudo, como reconhece a autora, pare-
Nesse momento, ela reconhece os limites das ce ser, não do conteúdo das competências, mas como
tentativas ou da própria sociologia que não se mos- mobilizar as competências. Para tanto, acredita, isto
tra suficiente para construir a noção de competência. seria feito através dos «saber, saber-fazer e saber-ser».
Para tanto, ela deve compartilhar tal tarefa com ou- O primeiro tem como referência a prescrição, a re-
tras disciplinas e profissões, afins. Tal constatação a gra; o segundo, a experiência; e o último, os com-
leva a recorrer às ciências da cognição. O recurso que portamentos, a conduta. Os saberes, acrescenta, se
faz à ciência da cognição não se traduz, entretanto, definem em oposição aos saberes escolares. Eles são
por uma confiança na disciplina como portadora da adquiridos no trabalho onde deve acontecer a forma-
resposta à questão investigada, mas no reconhecimento ção. Logo, o conhecimento (a competência) estaria
que sua trajetória, suas experiências plenas de suces- relacionado à situação profissional, o que fortalece
sos e fracassos se colocam como uma referência im- as teses, segundo as quais, a formação e a organização
portante aos estudos da competência. parecem automaticamente «qualificantes».
Muito embora a cognição não se encontre en- Como se pode constatar, embora não tratado
tre os objetos clássicos de estudo da sociologia, e explicitamente, sobretudo no caso da construção da
muito menos da sociologia do trabalho, não há como noção de qualificação, o saber se mostra como um
se furtar a eles nos trabalhos que dizem respeito à dos elementos fundamentais para a construção das
competência. Ela rompe com a trajetória tradicional noções de qualificação e de competência. Mas, se o
que se prestou para a construção da noção de qualifi- saber é uma referência fundamental para a constru-
cação e, mais recentemente, de competência. Defini- ção das noções, o que é o saber?
tivamente, a Sociologia do Trabalho não pode, sozi- A cog ni ção, recon hecida com o elemen to
nha, responder à questão posta. Em outras palavras, constitutivo do saber, tem sido freqüentemente lem-
o saber, implícito tanto na qualificação quanto na com- brada no momento de responder à questão. A preo-
petência, não pode limitar- se a uma dimen são cupação dos sociólogos do trabalho com o estudo
factual11 . mais aprofundado do saber pode ser entendida como
Saberes e competências o reconhecimento da experiência, enquanto fonte de
É interessante observar que, muito embora o conhecimento. Afinal, a competência é dada ou pode
saber se colocasse como uma referência importante ser construída? Para M. Stroobants, são dois os pro-
da qualificação, ele só mereceu a atenção dos soció- blemas da competência: «aprender a aprender» e trans-
logos do trabalho quando do estudo da competên- ferir capacidade de um domínio a outro. Assim, vem-
cia. M. DADOY (1990) explica que os sociólogos se se recorrendo a Noan Chomsky, a J. Piaget, entre ou-
interessavam muito mais pelo reconhecimento da qua- tros, para explicar as competências, como fazem, por
lificação que pela sua análise de fundo. Em outras exemplo, os lingüistas ou os educadores.
palavras, o que parece importar para os sociólogos é Competência e desestabilização do processo de
que todos saberes são sociais, portadores de um jul- produção
gamento sobre seu valor relativo (M. STROOBANTS, As observações de M. Stroobants, relativas às ten-
1994). Na verdade, não temos registro do interesse tativas clássicas de se explicar a competência, encon-
11
Sua incursão neste campo pode ser melhor apreciada em STROOBANTS, M., “La visibilité des compétences”, ROPE, F., TANGUY,L., Savoirs e compétences,
compétences Paris, L’Harmattan, 1994.,
e STROOBANTS,M., Savoir faire et compétences au travail,
travail Bruxelles, Ed. de l’Université de Bruxelles, 1993.
tram sentido em inúmeros trabalhos, entre eles os de- sistema de produção (M. DADOY, 1990). Os sistemas de
senvolvidos por M. Dadoy, incansável estudiosa da trabalho ainda estão desestabilizados, e nossas observa-
qualificação. Muito embora ela procure escapar às ar- ções são deste momento de transição, adverte e conti-
madilhas que se colocam, com freqüência, no cami- nua o seu questionamento: qual será, então, o lugar do
nho dos sociólogos do trabalho, tal como a do trabalhador no sistema de produção, quando este se
determinismo tecnológico, ela parece não conseguir, reestabilizar?
A idéia de desestabilização trazida pela autora en-
ou não querer, escapar a uma outra, qual seja, a do
contra ressonância em trabalhos de outros estudiosos da
conteúdo do trabalho, no fundo uma outra forma de questão como é o caso do economista e sociólogo fran-
determinismo, o do posto do trabalho. Essas observa- cês, Philippe Zarifian. Na sua obra Le travai l et
ções iniciais não desmerecem, contudo, a importante l’événement (1995), as disfunções do mundo da produ-
contribuição que a referida autora dá ao estudo da ção, localizadas, inicialmente, no esgotamento do mo-
questão. delo taylorista e no surgimento dos novos modelos de
Para M. Dadoy, a noção de competência, a exem- organização do trabalho e da qualidade, traduzem uma
plo da noção de qualificação, emerge em um momento mudança dos paradigmas da produção industrial que
de crise enconômica que causa profundas transforma- teriam passado da «operação» ao «acontecimento»12 . Este
ções no aparelho de produção e das políticas de mão- definido pela incerteza, pela disfunção, pela pane, aquela
de-obra. Ela contesta alguns autores, segundo os quais, entendida pelo sentido oposto. A operação, segundo P.
haveria uma correlação entre o desenvolvimento da Zarifian, teria construído as mentalidades dos trabalha-
informática e o surgimento de novas competências. Isso dores ligadas ao mundo da produção, dos engenheiros,
corresponderia a um determinismo tecnológico, critica, por exemplo, que, hoje, teriam que ser reconstruídas a
e, no mais, a competência tem sido exigida, também, partir dos «acontecimentos». Em outras palavras, a de-
em setores onde a informática se mostra ausente. O que manda por competência, localizada inicialmente no dis-
parece acontecer, acredita, é que, com o fim do fordismo- curso dos empregadores, se fundamenta nos aconteci-
taylorismo, ocorreu uma desestabilização do processo mentos, na disfunção encontrada no setor produtivo in-
de produção, o que tem levado a um grande número de dustrial. A idéia de disfunção, de incerteza, de «aconte-
disfuncões imprevistas. As dificuldades para reestabilizar cimento» não se limita, todavia, ao sistema produtivo e
o sistema leva o gerenciamento a se interessar pela for- pode ser encontrada, com freqüência cada vez maior, no
mação do pessoal e pela designação de novas compe- sistema formativo. O sociólogo suiço Philippe Perenoud
tências. Assim, a demanda das empresas por competên- (1996) 13 , preocupado com as questões relativas à
cias estaria menos ligada às novas tecnologias do que educaçao e, muito especialmente, ao fracasso escolar, ao
aos novos imperativos da produção, definida pelos no- se referir à «urgência» e à «incerteza» na prática pedagó-
vos padrões de qualidade. As mudanças ocorridas, hoje, gica, no exercício das atividades do professor, expõe a
no mundo do trabalho, complementa, variam segundo preocupação do sistema formativo com o acontecimen-
os setores e as empresas estudadas. E mais, elas apontam to e com a competência. Na verdade, o termo aconteci-
para um aumento das exigências dos níveis de saber, mento circula há algum tempo, sem grandes cerimônias,
para uma descompartimentação das «especializações pro- entre muitos e diferentes estudos14.
fissionais», para uma intelectualização do trabalho, para
tarefas mais complexas, para a polivalência, para uma
ampliação da autonomia. Em outras palavras, trata-se
menos de um conhecimento intrinsecamente novo do 5 CONCLUSÃO
que de uma descompartimentação dos saberes.
Mas questiona: se os empresários exigem, hoje,
operários capazes de autonomia, isto não significa que
antes eles não possuíam nenhuma autonomia. Em anti- Os pensamentos desenvolvidos por George
gos sistemas de produção tayloristas, os trabalhadores Friedmann e Pierre Naville são, ainda, referências im-
apresentavam também estratégias, cognição, comporta- portantes para a Sociologia do Trabalho, como regis-
mentos (que não eram reconhecidos na época) seme- tram os estudos atuais da qualificação e mesmo nos da
lhantes aos apresentados, hoje, após a transformação do competência.
12 Philippe Zarifian, ao tratar das disfunções no mundo da produção, toma emprestado de Alain Badiou, como ele confessa, o termo “événement”, aqui traduzido por acontecimento,
e o opõe ao termo operação.
13
Para ver mais, consultar PERRENOUD, Ph., Enseigner: agir dans l’urgence, déc ider dans l’incertitude, l’incertitude Paris, Ed. E.S.F., 1996, 198p. (coll. Pédagogies)
14 Na discussão que faz Illya Prigogine, sobre a epistemologia das ciências humanas e naturais, ela opõe à «lei», que retrata o mundo da natureza, o «acontecimento», que, igualmente, o retrata.
Em conferência dada em 3 de junho de 1989 ao Instituto Italiano per gli Studi Filosofici, Palazzo Serra di Cassano, Napoli, ela explica: Uma lei corresponde à idéia de determinismo, de certeza;
um acontecimento corresponde à uma descrição probabilística, de incerteza.». E mais, «...esta idéia de certeza é substituída agora por uma noção mais relativa que contém ao mesmo tempo
elementos deterministas e elementos probabilistas e que permite superar a dualidade entre a lei e o acontecimento.”. Para ver mais sobre a autora consultar, entre outras obras, PRIGOGINE, I., Stengers,
I., La nouvelle Aliance, Paris, Galimard, 1979.
29 STROOBANTS, M. «La visibilité des compétences», 31 ZARIFIAN, P. Le travail et l’événement, Paris, Ed.
ROPE, F., TANGUY, L., Savoirs et Compétences - L’Harmattan, 1995, 249p.
De l’usage de ces notions dans l’école et
l’entreprise, Paris, Editions l’Harmattan, 1994,
pp.175-204.