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Milenarismo não é só Idade

Média
O ano 1000 passou, mas o milenarismo continua como
esperança dos pobres

1. A origem do milenarismo

Depois dos primeiros artigos deste mesmo número da


revista, já deve ter ficado claro o que é o milenarismo.
Trata-se de uma crença de origem judaica, que penetrou
no Novo Testamento e nas primeiras comunidades
cristãs. Na versão acolhida pelo livro do Apocalipse (cf.
Ap 20,4), um reino de mil anos de paz se estabelece
sobre a terra entre o “primeiro” Juízo de Deus e o Juízo
final, quando a Jerusalém celeste descerá sobre a terra e
Deus habitará no meio dos seres humanos.

Há outras versões dos acontecimentos “escatológicos”


(isto é, do final dos tempos), entre os antigos autores
cristãos; a descida da Jerusalém celeste se daria já
durante o reino de mil anos[1]. Com essas versões se
misturou a profecia “sibilina”, do século IV, que previa o
fim do Império Romano, mas após uma restauração de
100 anos de paz e felicidade por obra de um imperador,
descendente ou sucessor do grande Constantino. A
profecia teve ampla divulgação na Idade Média, porque
foi incluída numa obra do século X, amplamente
reproduzida em manuscritos e, finalmente, impressa no
início do século XVI, a “Origem e tempo do Anticristo“, do
abade Adson de Montier-en-der.

É verdade que o milenarismo encontrou adversários


poderosos e a interpretação de Santo Agostinho
predominou e foi aceita como ortodoxa, isto é,
doutrinariamente correta, coerente com a doutrina oficial
da Igreja. Agostinho interpretava os 1000 anos como um
tempo simbólico, de duração indefinida, o tempo da
salvação pela Igreja, entre a primeira e a segunda vinda
de Cristo. Mas o milenarismo que esperava “mil anos de
felicidade” sobre a terra nunca desapareceu
completamente e provocou movimentos religiosos
importantes, ora liderados por profetas cultos, ora
formados principalmente por massas de pobres.

Minha tarefa é rastrear o milenarismo cristão na Idade


Média e apontar algumas reflexões para hoje.
Naturalmente não tentarei um relato completo ou
pormenorizado, mas selecionarei os exemplos mais
significativos para o leitor que quer ser atualizado[2].

2. A questão do ano mil

O historiador Jules Michelet, em sua História da França


(1833-46), espalhou a ideia de que o ano 1000 teria sido
aguardado pelo povo numa atitude que misturava terror
(do Juízo) e esperança (castigo dos ricos, triunfo dos
pobres).
A crença no terror do ano Mil não parece totalmente
superada, apesar de muitos historiadores do século XX
terem demonstrado que não há nenhuma prova
consistente a respeito e que, além do mais, o povo nem
tinha consciência de estar no “ano do Senhor” de nº
1000 (ou 1000 d.C.), pois esse sistema de datação estava
longe de ser usado comumente nessa época.

Alguns historiadores acharam — e veremos exemplos —


traços de crença na próxima chegada dos fins dos
tempos perto do ano 1000. Todavia, esqueceram-se de
que essa crença não é típica do final do século X ou início
do século XI, mas algo que penetra permanentemente a
fé cristã na Idade Média e mesmo depois[3].

Um documento que atesta algum interes​se para com o


ano mil, posto em relação com o nascimento de Cristo e
com a ideia de uma “nova terra”, aparece na “Historia” de
um monge, Rodulf (ou Raoul) Glaber (nascido em cerca
de 990; †1046 ou logo depois, no norte da França)[4].
Glaber exalta especialmente a história de Cluny, a famosa
abadia que renova o monacato beneditino no século X.
Mas ele relata prodígios que teriam acontecido no ano
mil, como a aparição — durante três meses — de um
cometa particularmente brilhante, assim como desgraças
(incêndios, tremores de terra, heresias e até depravação
do clero), que muitos temiam serem sinais da chegada do
Anticristo.

Glaber, de qualquer forma, e o mundo todo sobreviveram


ao ano 1000. O monge cluniacense viveu até ver o ano de
1033, que considerava o milenário da Paixão de Nosso
Senhor Jesus Cristo. E, após outros temores do fim do
mundo, viu o que lhe pareceu ser o renascimento da
humanidade, acolhido com alívio por todos. “No milésimo
aniversário da paixão do Senhor, as nuvens
desapareceram em obediência à misericórdia e bondade
divinas e o céu sorridente começou a brilhar e a soprar
brisas suaves.” Glaber já tinha citado como exemplo de
renovação religiosa a construção das igrejas depois do
ano mil, numa página que tem um toque de poesia: “Deu-
se por todo o orbe da terra, especialmente na Itália e nas
Gálias, um surto de construção de igrejas basilicais. Cada
povo cristão se tornou êmulo dos outros para erigir (as
igrejas) ainda com maior nobreza. Era como se o mundo,
tendo-se sacudido e lançado fora o antigo, se estivesse
revestindo com a cândida veste das igrejas”[5]. A isso
Glaber acrescenta o exemplo da “paz de Deus” — que
pode ser considerado milenarista, no sentido de que se
trata de um movimento religioso com apoio popular para
convencer os nobres — sob a ameaça de castigos
divinos — a deixar de fazer a guerra, que fazia sofrer as
populações da França no início do século XI.

De qualquer forma, o problema histórico não é


demonstrar que houve temores apocalípticos ou
esperanças milenaristas ao redor do ano mil. O problema
é demonstrar que isso não era frequente ou até
constante durante a Idade Média toda ou, melhor,
durante toda a história do cristianismo.

3. O Apocalipse não é apenas o último livro da Bíblia

Em outras palavras — e isso diz respeito também a nós,


cristãos, na véspera do ano 2000 — parece correto
pensar que temores e esperanças suscitados pelo livro
do Apocalipse não são apenas fato ligado a datas ou
períodos especiais do tempo, mas uma dimensão
permanente da fé cristã.

A discussão dessa tese, que hoje parece encontrar mais


seguidores[6], nos leva a discutir o próprio significado do
Apocalipse e da apocalíptica na Bíblia. O tema é
demasiadamente amplo para ser desenvolvido aqui e
agora. Baste, porém, pensar que a apocalíptica é, na
Bíblia, a expressão da certeza de que Deus vencerá um
dia o mal e, de modo particular, esmagará o Diabo, a
“antiga Serpente”, e da esperança de que isso
acontecerá em breve e que os pobres e perseguidos
poderão gozar, junto de Deus, de “mil (infinitos) anos de
felicidade”.

Essa certeza e essa esperança fazem parte da fé cristã e


na Bíblia aparecem desde o início, desde a promessa de
Deus à mulher e à sua descendência depois do primeiro
pecado (cf. Gn 3,15). É, portanto, natural que tal
esperança esteja presente no decorrer da vida da Igreja.
E é também natural (ou, pelo menos, sociologicamente
compreensível) que as comunidades cristãs expressem
mais vivamente essa esperança nas diversas formas de
“milenarismo” quando perseguidas, ou sujeitas a traumas
violentos, ou frustradas e privadas das condições de vida
a que estavam acostumadas[7].

4. As Cruzadas dos pobres

Até o século X, a Idade Média não desconhece a espera


do Juízo final, mas ela não se traduz em movimentos
coletivos de pânico e/ou de esperança, que julgam
iminente a transformação do mundo. A Igreja, embora
mantenha viva a esperança da vitória de Cristo sobre o
mal e, paralelamente, o temor do Juízo divino, evita
cuidadosamente criar um clima de expectativa de um
Juízo final iminente[8].

No final do século XI, com a proclamação da Primeira


Cruzada (1096), surge o primeiro grande movimento
coletivo de inspiração milenarista. A situação é complexa
e os fatores que a determinam são numerosos. De fato,
ao lado da Cruzada dos nobres, militarmente preparados
para responder ao apelo do Papa Urbano II — que queria
mais ajudar o Imperador cristão do Oriente do que
reconquistar Jerusalém — forma-se uma Cruzada dos
pobres, movidos tanto por motivos espirituais — a
reconquista de Jerusalém, pensada como a terra da
Paixão de Cristo e do perdão de todos os pecados —
quanto por motivos materiais: a fome e a insegurança
que deixavam para trás e a esperança de encontrar em
Jerusalém um lugar de bem-estar e felicidade terrena.

Os pobres, animados por pregadores populares, partiram


para a Cruzada fugindo ao controle dos nobres. Muitos
pobres se perderam e morreram pelo caminho, não sem
ter matado antes muitos judeus que recusavam o
batismo forçado. (“Se vamos a Jerusalém combater os
inimigos de Cristo, por que poupar os inimigos de Cristo
que vivem em nossas cidades?” — raciocinavam esses
cruzados. Além do mais, os judeus eram muitas vezes
mais ricos que os pobres cristãos. E eram protegidos por
bispos e burgueses, mas odiados pelo proletariado
faminto, que não respeitava nem mesmo a hierarquia
eclesiástica, que em vão tentou defender os judeus nas
cidades da Alemanha e da França.) Ao massacre dos
judeus na Europa, acrescentou-se o dos habitantes —
muçulmanos e judeus — de Jerusalém, tomada em 1099,
sem que os nobres e bispos conseguissem deter seus
soldados e os “pobres” cristãos em sua fúria assassina.

5. A perversão do milenarismo: da paz para a


violência

Como é possível que uma ideologia, inicialmente


pacifista, como o milenarismo, se transforme de tal jeito a
ponto de chegar a produzir o seu oposto, os massacres
de inocentes? Certamente o milenarismo não é a única
utopia que chegou à perversão. Talvez as trágicas
condições do povo na Europa dos séculos IX e X — a
“idade das trevas”, segundo os historiadores, cheia de
guerras, invasões, fome e pestes — expliquem a dureza
de coração desses cristãos que acreditavam lutar contra
o Anticristo e apressar a salvação do mundo, enquanto
matavam judeus e muçulmanos. Mas também a pregação
dos “profetas” populares garantiu ao povo cristão que
estes estavam fazendo a vontade de Deus. “Deus le
volt!”(Deus o quer) foi o grito que deu início à Primeira
Cruzada.

Na Segunda Cruzada, a de 1147-49, a crença milenarista


num Imperador que salvaria os pobres e instauraria uma
era de felicidade atuou ainda fortemente. Mas a 3ª e a 4ª
Cruzadas foram ações essencialmente políticas dos reis
europeus, que não deixaram espaço para a atuação dos
pobres. Estes acabaram organizando infelizes e
malsucedidas expedições sozinhos sem nenhum recurso,
como a “cruzada” pregada por Foulques de Neuilly
(1198), que fracassou muito antes de chegar à Terra
Santa, ou a “Cruzada das crianças”, de 1212. Na
realidade, foram duas Cruzadas (uma francesa e uma,
maior, a partir do vale do Reno), que também acabaram
mal, com a morte dos participantes ou a venda dos
sobreviventes como escravos para a África. Por mais de
um século ainda, apesar dos insucessos, repetiram-se
frequentes expedições de pobres para a Terra Santa,
sempre esperando uma iminente aparição de um Rei ou
Imperador, que salvaria os pobres e derrotaria as forças
do Anticristo.

6. Outra deformação: a Igreja vira o Anticristo!

É curioso que, a partir do século XIII (300 anos ou mais


antes de Lutero), alguns profetas milenaristas tinham
incluído entre as forças demoníacas, a serviço do
Anticristo, o próprio clero católico e, rapidamente, a alta
hierarquia, bispos e papa. Norman Cohn explica o
fenômeno como uma necessidade: “Todo o movimento
milenarista era, de fato, quase obrigado, pela situação em
que se encontrava, a considerar o clero como uma
fraternidade demoníaca. Um grupo de leigos chefiado
por um guia messiânico e convencido de ter sido
encarregado por Deus da missão altíssima de preparar o
caminho para o Milênio, tal grupo encontraria na Igreja
institucionalizada, na melhor das hipóteses, uma
oposição intransigente e, na pior, uma impiedosa
perseguição”[9]. Na teoria milenarista, o Anticristo agiria
através da fraude. Onde o Anticristo poderia se disfarçar
melhor do que debaixo das vestes do papa e dos
prelados? Rapidamente a Igreja de Roma foi identificada
com a Babilônia, a cidade símbolo do poder demoníaco, o
contrário da sonhada Jerusalém descida do céu.
7. O santo Joaquim de Fiore e o radicalismo de seus
discípulos

A oposição à hierarquia de turbulentos grupos de pobres,


mesmo inspirados por sinceros sentimentos religiosos,
não teria produzido maiores perturbações na
cristandade, se nova visão teológica, altamente sedutora,
não tivesse encontrado extraordinária difusão graças
também à mais florescente e dinâmica ordem religiosa do
século XIII.

Ao longo do século XII, estende-se a vida de Joaquim de


Fiore, um notário convertido em monge, e em monge
sempre mais rigoroso e santo, até a morte (†1202)[10].
Deixou vários escritos, geralmente comentários bíblicos.
Foi estimado pelos papas de sua época e nunca pareceu
fora da ortodoxia. Mas sua teoria das três idades na
história da salvação — a do Pai, a do Filho e a do Espírito
— teve repercussões explosivas. De fato, Joaquim
relativizava o evangelho de Cristo e a própria Igreja, que
de algum modo seriam superados (de forma analógica,
sem rupturas radicais) numa época “espiritual”, a do
Espírito Santo e a dos homens espirituais (os
contemplativos, os monges). Joaquim previa que a nova
Idade começaria em 1260, ou seja, 42 gerações (cada
uma de 30 anos) após o nascimento de Cristo, como
Cristo tinha nascido 42 gerações (3 x 14) depois de
Abraão (cf. Mt 1,17). Joaquim tinha previsto algumas
dificuldades ou provações na passagem da Idade de
Cristo para a do Espírito. Mas os detalhes, que aos
primeiros leitores pareceram sem importância,
adquiriram novo peso, quando os franciscanos
“espirituais” se consideraram os representantes da Idade
do Espírito, e um deles, Gherardo de Borgo San Donnino,
em 1254, publicou algumas obras de Joaquim com uma
introdução, em que não só previa para 1260 uma Igreja
toda espiritual, mas também um papa demoníaco que,
por pouco tempo, ocuparia a cátedra de Pedro.

Embora em 1260 nada tenha acontecido de novo, e


Gherardo tivesse sido condenado, a influência de suas
ideias e de um joaquinismo radicalizado se espalharam
amplamente, seja entre os franciscanos, seja fora deles.
Seria demasiadamente longo acompanhar todas as
vicissitudes do joaquinismo, mesmo só no ambiente
franciscano. Dele permanecerá sempre o apelo a uma
pobreza autêntica, radical, e a uma concepção
“espiritual” da Igreja, e, portanto, um princípio de crítica
ao exercício do poder por parte da hierarquia e ao
acúmulo das riquezas por parte de religiosos.

Entre as esperanças dos joaquinistas havia a de um


“pastor angelicus”, ou de um papa angélico, que
permitiria finalmente a passagem pacífica de uma Igreja
carnal e corrompida para uma Igreja realmente espiritual.
A eleição de Celestino V (1294), após vinte e sete meses
de espera e acordos, encheu de esperanças os
espirituais, logo decepcionados pela renúncia do santo
eremita, despreparado para reger a cúria romana.
Mais rigoroso com os “fraticelli” (assim,
depreciativamente, os chamava) será o papa João XXII
(1316-34). Naqueles anos, alguns franciscanos
espirituais acabarão na fogueira. E até o superior geral da
Ordem dos franciscanos, Miguel de Cesena, divergirá do
papa João XXII e acabará liderando os dissidentes,
protegido pelo imperador Luís II da Baviera. Traços da
espiritualidade joaquinista permanecerão entre os
franciscanos até mais tarde, como veremos.

Quanto à difusão das ideias de Joaquim entre os leigos


(um deles foi o grande poeta Dante Alighieri, que elogia
no Paraíso o abade Joaquim pela boca de São
Boaventura), baste aqui relembrar que elas sofreram uma
ulterior simplificação e que o final da Segunda Idade — a
de Cristo— foi feito coincidir com a vinda do Anticristo,
derrotado, chegando a Terceira Idade — a do Espírito
Santo.

8. O milenarismo na encruzilhada: paz ou violência?

Pode-se discutir se o joaquinismo é, propriamente,


milenarismo, embora tenha havido — sobretudo nos
discípulos de Joaquim (que, às vezes, traíram ou
deformaram sua doutrina) — uma mistura de elementos
milenaristas com a teologia do santo abade de Fiore. Aqui
nos interessa retomar o fio da história do milenarismo,
para constatar que — no século XIV — ele se divide em
duas correntes: uma que espera, pacífica e
confiantemente, a vinda do Reino de mil anos de paz;
outra que julga melhor apressar a instauração do Reino
pela força. Ao lado delas, continuava majoritária na Igreja
a corrente que podemos considerar agostiniana: a que vê
os mil anos realizados no tempo da Igreja e que,
portanto, aguarda o Juízo final sem mais, sem nenhum
reino de mil anos de felicidade celeste realizado na terra.
Essa corrente, aliás, contribuiu não pouco para espalhar
o medo de um Juízo iminente, precedido por desgraças
terríveis e advertências celestes[11].

As duas principais correntes estavam de acordo num


ponto: em apontar os sinais do fim próximo do mundo (ou
no Juízo, ou na chegada do Milênio), que eram todos
terríveis e associados à ideia do castigo de Deus pelos
pecados humanos: peste, fome, guerra, depravação dos
costumes… A peste negra de 1348, com milhões de
vítimas (em alguns países, extinguiu um quarto ou até um
terço da população), marcou o início de um período de
medo que duraria, embora com alguns intervalos, até
cerca de 1650. É curioso que quase tudo era interpretado
como sinal do Juízo (ou do Milênio) iminente. Dizia-se
que a humanidade estava no fim dos tempos,
envelhecida enfraquecida. “As cidades e aldeias eram
mais povoadas; os estábulos estavam cheios de gado
que se mantinha forte… Os homens viviam longamente…
Podemos também observar que as partes do ano não
fazem mais seu dever, como se dissolvem, a terra se
cansa, as montanhas não dão mais tanta abundância de
metais, a idade do homem diminui dia a dia… de tal modo
que podemos dizer que o mundo está em seu declínio e
aproxima-se de seu fim”[12].

9. Esperança escatológica e novo mundo

Até a descoberta da América foi interpretada como sinal


do fim dos tempos, porque está escrito no evangelho que
“a Boa Nova do Reino será proclamada em todo o mundo,
como testemunho para todas as nações. E então virá o
fim” (Mt 24,14). Aliás, Cristóvão Colombo se acreditava
escolhido por Deus para mostrar “de que lado se
encontravam o novo céu e a terra nova de que o Senhor
falara pela boca de são João em seu Apocalipse”[13] e
pensava que os reis de Espanha seriam os reis dos
últimos dias. Colombo calculara que o fim do mundo
estava próximo (nas suas contas, 1501 era o ano 6845 do
mundo, e a terra não deveria passar de 7000 anos!). E via
uma confirmação disso na “pregação do Evangelho sobre
tantas terras em tão pouco tempo” (Carta aos Reis
Católicos, 1501).

Nos primeiros missionários católicos na América,


encontramos — poderia ser diferente? — traços de
expectativas escatológicas. Destaca-se o caso de frei
Turíbio Motolinia (nome nahuatl que adotou no México e
que significa “miserável”). Ele chegou ao novo mundo em
1524 e aí morreu em 1569. Esse franciscano conservava
algo das convicções joaquinistas de seus irmãos dos
séculos XIII e XIV. Julgava a evangelização da América
decisiva para apressar o fim do mundo e a instauração
dos mil anos de paz. Portanto, tinha pressa. Embora
quisesse proteger os índios dos espanhóis corrompidos,
não julgava dispensável o uso de moderadas formas de
coerção (como os castigos corporais), para manter os
índios nas aldeias dirigidas pelos frades e afastá-los de
seus “vícios”. Acelerou os batismos, junto com seus
irmãos, os “doze apóstolos do México”. Numa carta de
janeiro de 1555, Motolinia comunica ao imperador Carlos
V a realização de 300.000 (trezentos mil!) batizados e, ao
mesmo tempo, suas divergências com o dominicano Las
Casas, que queria uma evangelização mais lenta e
respeitadora da cultura indígena[14].

10. O milenarismo violento, espada de Deus

Mas, antes de concluir, é preciso olhar — ao menos


brevemente — para aquela corrente propriamente
milenarista, que nos séculos XIV-XVI escolheu o caminho
da violência. Encontramos movimentos desse tipo na
Inglaterra, no fim do século XIV, na Boêmia no século XV,
na Alemanha na época da Reforma (século XVI) e, ainda,
na Inglaterra do século XVII (mas aqui estamos longe da
Idade Média).
O inglês John Wyclif (1324-1384) foi o elo entre os
franciscanos espirituais e o movimento hussita. Ele
forneceu a justificação teológica — crítica dos
sacramentos e do clero, volta à pobreza na Igreja — que
serviu de orientação à pregação dos “poor priests”
(padres pobres). Estes anunciavam não tanto o fim do
mundo, quanto o fim de um mundo: a sociedade
dominada pelos grandes proprietários feudais e
eclesiásticos. Depois disso a humanidade voltaria ao
paraíso terrestre e viveria na plena igualdade: “Quando
Adão cavava e Eva fiava, onde estava o nobre?”. Todos os
bens deveriam ser postos em comum e abolidas as
diferenças sociais.

Um desses pregadores, chamados também “lolardos”,


participou da revolta dos camponeses de 1381 e acabou
enforcado, por ter dirigido uma marcha dos pobres para
Londres. Apesar da derrota, o movimento lolardo
sobreviveu bastante tempo clandestinamente e teve
repercussão na Boêmia, reino incluído no Império
Romano-Germânico. A situação desse reino parece ter
sido marcada no século XIV por um excesso de
concentração de riquezas nas mãos de poucos
eclesiásticos. A eles começaram a reagir outros, mais
críticos, que denunciaram os abusos e pediram a volta à
Igreja das origens. As ideias do inglês Wyclif foram
também acolhidas por estes. João Huss (1389-1415)
recolheu, sobretudo, as críticas às hierarquias. Para
Huss, imperador, senhores feudais e bispos perdiam sua
autoridade, quando caíam no pecado. E não deviam mais
ser obedecidos. Huss se tornou professor de teologia e
depois reitor da universidade de Praga, tendo o apoio do
rei. Mas se desentendeu com este por causa de
indulgências. Afastado de Praga (1412-1414), mas tendo
apoio popular, Huss continuou escrevendo, introduzindo
uma distinção “explosiva” entre a Igreja de Cristo e a
Igreja Católica Romana[15] e criticando acerbamente a
“simonia” do clero. Em 1415, Huss se dirigiu ao Concílio
de Constância, esperando contribuir para uma reforma
geral da Igreja. Apesar de um salvo-conduto do
imperador Sigismundo, foi preso e queimado como
herege. Uma das últimas cartas de Huss, escrita no
cárcere pouco antes da morte, identificava o Papa com o
Anticristo.

Um amigo e discípulo de Huss, o teólogo Jerônimo de


Praga, foi morto no ano seguinte. A notícia desse duplo
martírio revoltou os hussitas na Boêmia. Foram
necessárias cinco “cruzadas”, durante vinte anos, para
acabar com os rebeldes. Enquanto isso, houve
momentos em que o rei e o arcebispo tiveram de fugir de
Praga, e os pregadores hussitas (aliás, divididos em
muitas facções) exigiram tanto a supressão dos impostos
quanto a destruição de imagens e relíquias nas igrejas,
além de reivindicar para os leigos a comunhão sob as
duas espécies, pão e vinho. O episódio mais típico foi a
pregação de um iminente juízo divino, do qual
escapariam apenas os que se refugiassem em algumas
montanhas santas, indicadas como o “Tabor”. Daí o nome
de “taboritas” aos seguidores do movimento. Uma
grande peregrinação de “taboritas” acontecia em julho
de 1419 no sul da Boêmia, enquanto em Praga os
hussitas radicais “defenestravam” (matavam, jogando
pelas janelas) os conselheiros municipais nomeados pelo
rei. Por algum tempo, em face da ameaça das tropas do
imperador Sigismundo, os hussitas se reuniram,
enquanto aumentava a fé na chegada iminente da
vingança divina, que seria favorável aos pobres. A essa
altura, os “taboritas” pregavam também que não haveria
misericórdia para os pecadores e que os fiéis deviam
derramar o sangue dos adversários de Cristo[16]. E
aguardavam um tempo em que não haveria mais
“opressor dos pobres, imposições, clero e nenhuma
autoridade secular”. Após alguns sucessos militares, os
“taboritas” acabaram enfraquecidos por suas divisões
internas (os mais extremados foram chamados de
“adamitas”, porque queriam voltar ao estado de Adão, até
mesmo andando nus) e, finalmente, pelas tropas
imperiais.

11. Milenaristas, protestantes e guerra dos


camponeses

Movimentos milenaristas reaparecem na Alemanha no


tempo de Lutero, já no início da Idade Moderna. Entre os
personagens mais famosos, destaca-se Tomás Müntzer,
teólogo e pregador, que se colocou contra Lutero e a
favor dos camponeses; à frente de um grupo deles
morreu na batalha de Frankenhausen (15/5/1525). Ele foi,
ao mesmo tempo, um revolucionário social, que lutou
contra a riqueza e a dominação dos nobres, e um
reformador religioso, convencido de ser “a espada do
Senhor”. Nas suas obras, não deixa muito claro como
imagina o futuro de “mil anos de felicidade”,
demasiadamente ocupado com a crítica da Igreja da
época e a contestação das estruturas feudais. De
qualquer forma, Ernst Bloch viu nele “o teólogo da
Revolução”[17]. Enquanto Lutero acabou pedindo aos
príncipes para “matar como cães” os camponeses
revoltosos, Müntzer se revoltava contra Lutero associado
aos príncipes e o tratava de “porco de engorda”.

O episódio milenarista mais famoso e que mais


impressionou os contemporâneos foi o dos anabatistas
de Münster, cidade alemã próxima da Holanda. No ano de
1534, na cidade de Münster, até então dividida entre
católicos e luteranos, prevaleceu nova corrente religiosa,
a dós anabatistas (que exigiam novo batismo dos
adultos, considerando inválido o batismo de crianças).
Eles atraíram outros simpatizantes, sobretudo da
Holanda, onde estavam sendo perseguidos. Entre eles se
destacaram João Matthys e João de Leida. Eles
interpretavam a Bíblia como a promessa de um reino de
paz e felicidade na terra, mas exortavam seus seguidores
a exterminar os ímpios, que impediam a realização do
Reino e eram, definitivamente, instrumentos do
Anticristo. Em fevereiro de 1534, os anabatistas
conseguem expulsar os habitantes de Münster não
ligados a eles, ou seja, luteranos e católicos. Na cidade é
instalado um regime comunitário. Todos os recursos
devem ser postos em comum. Quem se opõe aos líderes
é eliminado. O bispo manda tropas para cercar a cidade,
mas essas são derrotadas por João de Leida em 25 de
maio de 1534. No apogeu do seu domínio, João de Leida
se faz proclamar rei, passa a viver luxuosamente e
introduz novo regime matrimonial: a poligamia. Ele
mesmo se circunda de muitas esposas, quase um harém.
Mas a superioridade das tropas inimigas, que apertavam
o cerco dos anabatistas, levou à derrota destes
(24/6/1535) e à morte de João de Leida, após muitas
humilhações e torturas (janeiro de 1536). A recordação
dos acontecimentos de Münster ficou, por muito tempo,
como motivo de temor nas autoridades civis e
eclesiásticas.

12. O milenarismo secularizado

O milenarismo não morrerá, porém, em Münster.


Sobreviverá, sobretudo, nas formas pacíficas, seja
povoando de expectativas escatológicas o
protestantismo americano do século XIX (adventismo, e
— fora do protestantismo — mórmons e testemunhas de
Jeová), seja secularizando-se em utopias que prometem
“mil anos de felicidade” por outros caminhos, que não os
de Cristo. Além das grandes utopias progressistas e
socialistas do século XIX, pode-se ver novo milenarismo
nas promessas da “New Age”[18].

***

De qualquer forma, o milenarismo não está hoje na moda.


Nos últimos anos, na segunda metade do século XX, as
utopias e a fé no progresso perderam força. O futuro da
sociedade aparece mais incerto. Até as grandes
conquistas sociais estão expostas ao retrocesso.
Aumentou talvez a liberdade individual, sobretudo na
esfera privada, mas economia e política parecem sempre
mais estruturas que funcionam por dinamismos internos,
impessoais, onde o indivíduo tem pouco a dizer. O
destino da humanidade parece ameaçado. Mais dolorosa
ainda se torna a situação dos pobres, rejeitados ou
excluídos por um sistema que tem o lucro como motor.

Está na hora de voltar a fundar a esperança sobre aquilo


que realmente vale. A esperança não é só, no Novo
Testamento, “elpis” (realização do desejo). A esperança
é também “hypomoné”, perseverança, persistência,
firmeza. A luta dos pobres não terminará tão cedo! O
cristão não se deixa levar pela angústia, nem pelo desejo
desmedido. O cristão confia na vitória de Deus sobre o
mal, mas a procura e a invoca a cada dia: “Não nos
deixeis cair na tentação, mas livrai-nos do Mal (e do
Maligno)”. Cada dia o Espírito deve nos conduzir a
discernir, no hoje, os sinais da bondade de Deus e as
ameaças do Anticristo. E a renovar nossas escolhas. Não
esperamos o paraíso para amanhã e aqui na terra.
Caminhamos firmes no caminho traçado por Jesus.
Carregamos a cruz de Cristo, não como insígnia militar,
não como espada para eliminar fisicamente o inimigo. O
cristão carrega o amor desarmado e confiante, como
Jesus fez.

[1] Além dos artigos desta mesma revista, cf. também o


nº 15/1 dos “Annali di Storia dellʼesegesi” (Bologna, EDB,
1998, 320 pp.), todo dedicado ao milenarismo cristão e a
seus fundamentos na Escritura, com vários artigos sobre
o fenômeno nos séculos I-V. Muito útil também o nº 277
(1998/4) da revista “Concilium” (ed. Vozes, Petrópolis,
144 pp.): “O fim do mundo está chegando?”, com vários
artigos sobre apocalíptica e milenarismo.

[2] Duas das maiores obras sobre o mílenarismo


medieval estão disponíveis em português: uma é o
clássico “The Pursuit of the Millennium” de Norman
COHN, editado em 1957 em inglês, revisto em 1970 e
publicado em 1981 na tradução: Na senda do milênio.
Milenaristas revolucionários e anarquistas místicos da
Idade Média. Editorial Presença, Lisboa, 334 p.; a outra é
a mais recente “História do paraíso” de Jean DELUMEAU,
cujo 2º volume tem por título: Mil anos de felicidade,
Terramar, Lisboa, 1997, 528 p. (ed. francesa, Fayard,
Paris, 1995) [a obra não se ocupa tanto da Idade Média
quanto da Moderna; trata, porém, do joaquinismo, séc.
XIII, e dos movimentos da transição para a Idade
Moderna, dos lolardos a Tomás Müntzer].

[3] Nesse sentido, cf. as observações de Raoul


MANSELLI, no capítulo “Lʼattesa escatologica” (A
expectativa escatológica) de sua obra Il soprannaturale e
la religione popolare nel Medio Evo. Ed. Studium, Roma,
1985, pp. 53ss. — Particularmente interessante é o artigo
do jornalista e sociólogo inglês Damian THOMPSON, “O
mistério do 1000”, in “Concilium” 277 (1998/4), pp. 48-
58.

[4] Breves trechos da sua obra, traduzidos, sobre Cluny e


a renascença religiosa, estão na Antologia de textos
históricos medievais, org. por Fernanda ESPINOSA, Sá da
Costa Editora, Lisboa, 1981, 3ª ed., pp. 274 e 286-287.

[5] Citado por F. ESPINOSA, Antologia de textos


históricos medievais, p. 274 (cf. acima, nota 4).

[6] Cf., por ex., no nº 277 de “Concilium” (já citado na


nota 1), os artigos de Teresa OKURE, Do Gênesis ao
Apocalipse: a apocalíptica na fé bíblica, pp. 29-37, e de
Hakan ULFGARD, Lendo o Apocalipse hoje…
reconhecendo sua mensagem permanente, pp. 38-47.

[7] Uma explicação do surgimento dos movimentos


milenaristas mais violentos é proposta por Norman COHN
no capítulo 3 — “O Messianismo dos pobres
desorientados” — do seu livro Na senda do milênio
(citado acima na nota 2).

[8] Cf. as ponderadas observações de Raoul MANSELLI


(citado acima, nota 3), que indica além de escritores
eclesiásticos (a começar pelo primeiro grande papa
medieval, Gregório Magno, que atuou entre 590 e 604),
também as obras de arte, que documentam as crenças
populares, como a imagem do Juízo, em que Cristo
separa os bons (as ovelhas) dos maus (os cabritos).
Essas cenas são mais frequentes a partir do século XI.
Mas já no século IX a Igreja tinha difundido o temor do
“juízo particular”, em que a alma, após a morte, é
“pesada”, numa disputa entre Satã e São Miguel, que a
introduz no paraíso (como se pode ver na ilustração da
capa do próprio livro citado de Raoul MANSELLI, Il
soprannaturale e Ia religione popolare…). No mesmo livro,
nas páginas 48 e 49 e na nota 55, encontram-se notícias
sobre o culto do arcanjo são Miguel.

[9] Na senda do milênio, op. cit., p. 67.

[10] Joaquim consta até hoje na lista dos bem-


aventurados.

[11] Desse medo, desde o fim do século XIV até meados


do século XVII, ocupou-se Jean DELUMEAU em sua
História do Medo no Ocidente 1300-1800, Companhia
das Letras, S. Paulo, 1989, pp. 205-238.

[12] Textos citados por Jean DELUMEAU, História do


medo no Ocidente, op. cit., p. 231.
[13] Citado por Jean DELUMEAU, História do Medo no
Ocidente, op. cit., p. 213. O texto original está em uma
carta de 1500.

[14] O texto da carta de Motolinia se encontra traduzido


em Paulo SUESS (coord.), A conquista espiritual da
América Espanhola. Vozes, Petrópolis, 1992, pp. 852-
868.

[15] Sigo aqui as informações de J. DELUMEAU, Mil anos


de felicidade, op. cit., pp. 111-114.

[16] Cf. os textos citados por J. DELUMEAU, Mil anos de


felicidade, op. cit., p. 121 ss.

[17] A primeira edição alemã do livro de E. BLOCH é de


1921. Está traduzido em várias línguas.

[18] Jean DELUMEAU dedica boa parte do seu Mil anos


de felicidade (op. cit., pp. 317-465) aos milenarismos
secularizados.

Pe. Alberto Antoniazzi (Comissão


Nacional de Presbíteros — CNP-30)

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