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Edson Neto. edson.asnt@gmail.com.

23/01/2020

II Mostra Balbucios

Hoje, enquanto escrevo este texto, me lembro da primeira Mostra Balbucios, quando
me sentei nesse mesmo notebook para preparar uma apresentação sobre o filme ‘A Culpa é do
Fidel’. Na época, muitas outras coisas me atravessavam e eu me lembro de carregar outras
inseguranças sobre o que dizer e como dizer. Lembro que ao fim dos estudos, já depois da
Mostra, eu ainda me perguntava como seria me encontrar com um novo filme sem lançar
sobre ele as expectativas do meu encontro com o anterior. Como eu poderia assistir ao novo e
me encontrar com uma nova história que me levasse a percorrer novos outros caminhos? Só
aos poucos, quando conheci Hushpuppy e me permiti experimentar os outros sabores que os
ventos da Banheira e do mar traziam, é que qualquer coisa, uma coisa ainda muito nebulosa e
fundamentalmente infamiliar, se projetou no horizonte. Só aos poucos ela ganhou contorno, e
só ainda mais depois se colocou de pé e veio em minha direção.

A coisa era também como um antigo bisão com aparência de porco e, se me permitem,
é exatamente por ela que eu gostaria de começar. É que para falar sobre criaturas misteriosas,
bisões com focinhos de javali e outros seres infantis, é preciso descalçar os sapatos de alguma
forma, e este é o principal cuidado que tenho ao escrever este texto: um zelo para que ele
tenha vida e possa ser lido ou sentido como um tato. Trata-se do tato dos pés no chão. É só a
partir dele que entendo ser possível encontrar as ‘Feras do Sul Selvagem’ – uma tradução
mais feliz para o título do filme. Dito isto, que este texto por vezes soe incompreensível,
poderíamos culpar a dificuldade do autor e do leitor de experimentarem outra perspectiva. De
que ele soe distanciador, atribuam a isto a incapacidade de que a escrita alcance o que ela,
ingenuamente, pretendeu dizer.

Há algum tempo falamos da etnocartografia de tela como um método de pesquisa. Ela


é, possivelmente, das coisas acadêmicas, o que nasceu de mais valioso nos dois anos de
estudo. Hoje, um pouco mais distante da sua produção, a vejo como a lente a partir da qual se
torna possível, ainda que provisoriamente, uma análise do campo que retira dele os seus
centros e acompanha os movimentos daquilo que outrora diríamos ser somente uma periferia.
No início, falávamos de ‘infância e cinema’ em um exercício de entendermos como o cinema
apresentava a infância. Hoje, me saltam aos olhos mais relações entre a etnocartografia de tela
e a condição de in-fans do que eu poderia imaginar.
É que quando entendemos infância como a condição de não fala, como a condição
limite da/na linguagem, entendemos que aquele que é inserido na gramaticalidade da língua, o
infante, tem com ela uma experiência direta, corpórea – ouve-se um som vazio que ainda não
lhe indica o objeto. Só depois se acomodam as estruturas, os sentidos que a língua o impõe e
as suas regras – só depois se entende que a palavra ‘cadeira’ é mais do que uma coisa, é um
dirigir-se à ‘cadeira’, é aquilo que determina: isto aqui, esta delimitação, é uma cadeira, é
assim que nos referimos a ela, é para isso que ela serve. As infâncias, criaturas misteriosas,
carregariam o ônus de uma mobilidade brutal, aquela que, ao pôr em questão as delimitações
linguísticas e, por consequência, a capacidade assertiva das palavras de ordem,
desnaturalizaria o nosso próprio gregarismo. Foram, portanto, acomodadas em categorias do
desenvolvimento, definidas segundo supostas incapacidades, apontadas como incompletas e,
portanto, como coisas que não deveriam ser ouvidas. A condição de in-fans, entretanto, traz
consigo o balbucio de palavras e de perguntas, uma estrangeiridade necessária para o
vislumbre de sistemas tão naturalizados e abrangentes que, em condições cotidianas, nos são
invisíveis.

Podemos encontrar um paralelo com o fantástico aqui. Pois bem: se pensamos o


cinema a partir do trabalho de Roas, ‘fantástico’ não é aquilo de extranatural, tampouco é um
termo valorativo, mas, sim, um termo que aponta para uma violação do real. Primeiro se
produz uma identificação do mundo da obra com o mundo do espectador para, depois,
desafiá-lo frente ao fantástico, quebrar as suas regras. Com a licença de uma torção, é
certamente possível aproximar o ‘fantástico’ àquilo capaz de romper com as concepções
prévias que regulamentam e definem os limites de uma dada realidade. Sabendo habitarmos
um espaço que transcende os interesses deste autor, aproximo aqui as questões do fantástico
de Roas com a condição de in-fans descrita por Agamben e citada há alguns minutos.

Nesse sentido, Hushpuppy é infantil não por ser uma criança, mas por ser a única que
vislumbra o bisão, o fim de um certo sistema de ordenamento da comunidade. Uma
comunidade, por sua vez, sem fala perante a metrópole que cresce ao seu lado, bem como
perante os aparatos estatais que impõe cada vez mais uma forma generalizante de
funcionamento. É também uma disputa de falas, de definições de mundo, entre a comunidade
da Banheira e a vida na metrópole. A Banheira tem o seu próprio ritmo, sua própria forma de
valoração, mais próxima do desnudamento das forças da natureza sobre a pele do homem,
mais afeita às forças naturais que se estendem sobre as existências humanas. Como diz a
professora no início do filme,“Carne. Todo animal é feito de carne. Eu sou carne. Vocês são
carne. Tudo é parte do bufê do universo”.

Há, de fato, uma irrazoabilidade fundamental na cosmologia dos moradores da


banheira: bisões capazes de devorar os homens da caverna e seus filhos, falas de uma
sobrevivência outra… Não existe uma tentativa de neutralização ambiental, de separação
entre o humano e as demais coisas. Em seu lugar, inscrevem-se conexões entre os eventos
ecológicos – pois é um desastre ambiental que acompanha o enredo do filme –; políticos –
pois a resistência dos moradores é a aposta em uma forma de existência paralela à sociedade
capitalista que cresce ao lado –; familiares – pois se sucede à ausência da mãe de Hushpuppy
a morte inevitável do seu pai, atravessada pela falta de alimento e pelo poderio estatal –;
fisiológicos – pois se abate sobre a carne dos animais, sobre os tecidos das árvores –; e
inclusive linguísticos – pois a fala dos médicos é diferente, molar, formal, e dotada de poder
capaz de disparar forças policialescas para limitar as ações dos moradores da Banheira.

De fato, como diz Deleuze através do conceito de ‘rizoma’, se falamos de cartografia,


etno-cartografia, tratamos de formas que transbordam as inúmeras possibilidades de conexão
entre modos de codificação diversos. O rizoma não seria de origem linguística, mas conectaria
cadeias biológicas, sociais, políticas, econômicas, etc, sem normas de conexão a priori, sem
redução possível a leis de combinação. Parto deste ponto para a compreensão da carne, da
cosmologia da banheira, que conecta os eventos à sua maneira. Uma certa perspectiva de
ambientalismo, portanto, emerge do filme na medida em que ele parece convocar a todo o
tempo a cidade e a sua interferência no ambiente a um contraste com o cuidado minucioso de
Hushpuppy com os pequenos detalhes que poderiam causar o alagamento e a sucessão de
crises. É como se nela tudo estivesse interligado, uma desordem social, um incidente
doméstico, convocam múltiplas correspondências em diversos níveis.

Em um mundo em que tudo está conectado, resta a Wink e a Hushpuppy a ironia


contra dos homens que vivem como bebês, em uma busca constante por viverem apartados
das forças naturais, ao menos em ilusão. Fechados em aquários, ligados à parede – uma vida
frágil, a vida daqueles que temem a água. A cidade é exatamente este campo dedicado aos
doentes e frágeis, que, fragilizando e fazendo fragilizar, tenta constituir, à parte da natureza e
ao custo desta, uma forma insalubre e dependente de vida.

A ferocidade dos moradores da banheira, traço que os permite levar ao limite a


integração com a natureza, bem como a sobrevivência em disputa brutal com a cidade ao lado,
é o que os diferencia do adestramento do homem comum. A fala, entende Hushpuppy, é
também de caráter carnal. Ouvindo o bater dos corações dos animais, caminhando entre eles
calçada em galochas enormes, a voz da garota narra: “Todos os corações batem e bombeiam.
E conversam de formas que não entendo. Na maioria das vezes, provavelmente dizem: ‘Estou
com fome.’, ‘Quero fazer cocô.’. Mas às vezes conversam em código’.

A afirmação de que somos todos feitos de carne é o dito fundamental contra a


naturalização de uma gramaticalidade de valores. Vamos tomar esse caminho para tatear o
fundo dos fazeres e dizeres da Banheira. A carne não é razoável, nem coesa, mas se compõe
em relação às formas de coesão – seja o funcionamento capitalista da cidade, ou
funcionamento alternativo da comunidade da Banheira. Nesse sentido, irrazoabilidade e
razoabilidade, coesão e diferenciação se constituem em mútua relação, como eixos do devir.
Tomemos um exemplo: na busca pela sua mãe, Hushpuppy se encontra com um velho e seu
navio ao mar, um homem de preto, personagem passageiro que aparenta não saber exatamente
para onde leva o próprio barco. Ao seu redor, um amontoado de embalagens de biscoitos de
frango que cobrem o chão. “ Eu os tenho comido a vida toda. Conservo as embalagens no
barco para lembrar quem eu era quando comi cada um deles. O cheiro me faz se sentir
coeso…”.

Se ‘razoabilidade’ é o nome que demos para a condição de se situar em uma dada


realidade – o oposto ao ‘fantástico’ –, ‘coesão’ é como a estratificação de uma dada
organização do mundo, encaremos ela como uma reterritorialização nascida de uma
desterritorialização, ou como uma tentativa de correspondência à gramaticalidade já existente
naquele meio social. No primeiro sentido, que corresponde à invenção de uma ordem, temos
as memórias de um homem do mar gravadas em suas embalagens de biscoitos, mas também
aos papéis familiares e sociais que Hushpuppy busca encontrar ao lançar-se na procura
impossível pela própria mãe.

Dita a possibilidade de outras formas de existência, bem como a existência atual de


formas estrangeiras, talvez reste ainda questionar uma identificação minha, talvez nossa, com
os cuidados oferecidos à saúde de Wink pelo modo de vida na cidade. Trata-se, de certa
forma, de desnaturalizar os cuidados da cidade para apresentar-lhe os seus riscos, e de pensar
a cidade a partir dos princípios que supomos ao assistirmos aos modos de vida na Banheira.
Do contrário, poderíamos ler o enredo do filme como a história de uma incompletude – a
história de uma ‘indomável sonhadora’, esquecidos de que o conteúdo deste sonho genérico
pode ser facilmente preenchido com o desejo por um outro modo de vida, capital e
metropolitano, a despeito de todo o esforço das personagens em negá-lo.

É nesse sentido que os aforismos de Nietzsche sobre a possibilidade de criação de algo


para além do homem se fazem importantes, e denunciam a estruturação complexa de uma
décadence da sociedade ocidental. Do complexo conjunto argumentativo do filósofo,
recortamos a sua preocupação com o estreitamento das possibilidades provocado pela negação
da vida neste mundo, bem como a expressão da agressividade como condição constituinte do
humano.

É desta condição dos últimos homens que falamos, daqueles que se arrastam no fim da
sua existência, e prolongam a sua agonia a todo custo, imersos nos prazeres diários – Homo
Otarius. É precisamente o oposto disso, que encontramos quando Hushpuppy fala sobre os
pedidos de Wink: “Papai dizia que, se ele ficasse muito velho para beber cerveja ou pegar
bagres, eu devia colocá-lo no barco e colocar fogo, assim ninguém poderia ligá-lo na
parede”. Permitam-me, assim, citar brevemente um questionamento do Pelbart: “E se, ao nos
concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo quando é qualificada como ‘uma boa vida’,
o que realmente perdemos na vida for a própria Vida? . […] Não vale mais um histérico
verdadeiramente vivo no questionamento permanente da própria existência que um obsessivo
que evita acima de tudo que algo aconteça, que escolhe a morte em vida?”

Observando sob este ângulo, a morte não constitui um rompimento com a coesão de
uma vida, mas, pelo contrário, a aposta em seu limite, o que talvez explique as hesitações de
Wink, o seu temor e desconforto em manter-se no hospital, mas também em morrer como um
morador da Banheira. É nesse sentido, no limite último, que se torna mais transparente a
necessidade de um vitalismo que convoque a carne, em termos inevitavelmente nietzscheanos,
a viver uma vida que mereça ser vivida. Há, desta forma, a necessidade de ver a morte como a
aposta limite da vida, como um fenômeno cultural, algo fundamentalmente ligado aos modos
de ser.

Para um pensamento dirigido à diferença, existiriam, portanto, ao menos dois aspectos


dos quais o entendimento determina a análise da trama do filme. O primeiro diria respeito à
potência da estrangeiridade como força motriz do desenvolvimento de novas gramaticalidades
e de novas formas de coesão do mundo, enquanto o segundo diria respeito à sua posição no
âmago da existência humana, especialmente ali onde a gramaticalidade encontra o seu limite,
seja no seu limite de falta – na condição infantil – ou no seu limite de excesso – na condição
de moribundo antes da morte física.

Certamente, a gramaticalidade compõe a carnalidade, na medida em que habitariam


um plano em comum, indistinto, e, coeso ou não, implicado diretamente com a vida e com as
formas de viver. Nesse sentido, a Banheira consiste em uma perspectiva singular sobre o
mundo, e o filme acaba por consistir em um avanço por questões brutais da existência através
de uma nova ótica. Nesta ótica, os bisões marcham de fato ao lado de Hushpuppy, são a
novidade nascente, o que está para além da fala, o devir, e habitam um espaço linguístico que
lhes é próprio. Cindem, dessa forma, a realidade que nos é apresentada a partir da busca de
uma nova coesão ante o moribundo hedonista e a criança que brinca com os novos valores.

Por fim, quatro bisões emergem das águas. Quatro garotas voltam do mar. Os tremores
no chão contam a chegada dos grandes monstros que eram anunciados desde o princípio do
filme. As garotas mantém a marcha. A aceleram ao som dos tremores. Ao fundo de
Hushpuppy, pela primeira vez em uma única cena, estão os bisões – javalis enormes com
grandes chifres. A garota mantém a marcha, Wink está morrendo.

Quando, com esforço, o pai olha para Hushpuppy, atrás dela o maior dos bisões se
aproxima. A garota se vira. Não temos mais nenhuma trilha sonora. O monstro aproxima o seu
focinho, e a sua respiração soa tão alta quanto os tremores no chão que indicavam os seus
passos. Wink também parece vê-los. A tela nos mostra os olhos negros da criatura, até que os
bisões se ajoelham diante da garota. “Vocês são meus amigos, de certo modo. Tenho que
cuidar dos meus.” Os bisões recuam. A garota atravessa o grupo de pessoas, a vigília por
Wink. Adentra o cômodo. Abre um pequeno recipiente de isopor. Alimenta o seu pai com um
pequeno biscoito de frango. “Muito bom. Nada de chorar, ouviu?”. “Nada de chorar,
responde Hushpuppy”.

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