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23/01/2020
II Mostra Balbucios
Hoje, enquanto escrevo este texto, me lembro da primeira Mostra Balbucios, quando
me sentei nesse mesmo notebook para preparar uma apresentação sobre o filme ‘A Culpa é do
Fidel’. Na época, muitas outras coisas me atravessavam e eu me lembro de carregar outras
inseguranças sobre o que dizer e como dizer. Lembro que ao fim dos estudos, já depois da
Mostra, eu ainda me perguntava como seria me encontrar com um novo filme sem lançar
sobre ele as expectativas do meu encontro com o anterior. Como eu poderia assistir ao novo e
me encontrar com uma nova história que me levasse a percorrer novos outros caminhos? Só
aos poucos, quando conheci Hushpuppy e me permiti experimentar os outros sabores que os
ventos da Banheira e do mar traziam, é que qualquer coisa, uma coisa ainda muito nebulosa e
fundamentalmente infamiliar, se projetou no horizonte. Só aos poucos ela ganhou contorno, e
só ainda mais depois se colocou de pé e veio em minha direção.
A coisa era também como um antigo bisão com aparência de porco e, se me permitem,
é exatamente por ela que eu gostaria de começar. É que para falar sobre criaturas misteriosas,
bisões com focinhos de javali e outros seres infantis, é preciso descalçar os sapatos de alguma
forma, e este é o principal cuidado que tenho ao escrever este texto: um zelo para que ele
tenha vida e possa ser lido ou sentido como um tato. Trata-se do tato dos pés no chão. É só a
partir dele que entendo ser possível encontrar as ‘Feras do Sul Selvagem’ – uma tradução
mais feliz para o título do filme. Dito isto, que este texto por vezes soe incompreensível,
poderíamos culpar a dificuldade do autor e do leitor de experimentarem outra perspectiva. De
que ele soe distanciador, atribuam a isto a incapacidade de que a escrita alcance o que ela,
ingenuamente, pretendeu dizer.
Nesse sentido, Hushpuppy é infantil não por ser uma criança, mas por ser a única que
vislumbra o bisão, o fim de um certo sistema de ordenamento da comunidade. Uma
comunidade, por sua vez, sem fala perante a metrópole que cresce ao seu lado, bem como
perante os aparatos estatais que impõe cada vez mais uma forma generalizante de
funcionamento. É também uma disputa de falas, de definições de mundo, entre a comunidade
da Banheira e a vida na metrópole. A Banheira tem o seu próprio ritmo, sua própria forma de
valoração, mais próxima do desnudamento das forças da natureza sobre a pele do homem,
mais afeita às forças naturais que se estendem sobre as existências humanas. Como diz a
professora no início do filme,“Carne. Todo animal é feito de carne. Eu sou carne. Vocês são
carne. Tudo é parte do bufê do universo”.
É desta condição dos últimos homens que falamos, daqueles que se arrastam no fim da
sua existência, e prolongam a sua agonia a todo custo, imersos nos prazeres diários – Homo
Otarius. É precisamente o oposto disso, que encontramos quando Hushpuppy fala sobre os
pedidos de Wink: “Papai dizia que, se ele ficasse muito velho para beber cerveja ou pegar
bagres, eu devia colocá-lo no barco e colocar fogo, assim ninguém poderia ligá-lo na
parede”. Permitam-me, assim, citar brevemente um questionamento do Pelbart: “E se, ao nos
concentrarmos na simples sobrevivência, mesmo quando é qualificada como ‘uma boa vida’,
o que realmente perdemos na vida for a própria Vida? . […] Não vale mais um histérico
verdadeiramente vivo no questionamento permanente da própria existência que um obsessivo
que evita acima de tudo que algo aconteça, que escolhe a morte em vida?”
Observando sob este ângulo, a morte não constitui um rompimento com a coesão de
uma vida, mas, pelo contrário, a aposta em seu limite, o que talvez explique as hesitações de
Wink, o seu temor e desconforto em manter-se no hospital, mas também em morrer como um
morador da Banheira. É nesse sentido, no limite último, que se torna mais transparente a
necessidade de um vitalismo que convoque a carne, em termos inevitavelmente nietzscheanos,
a viver uma vida que mereça ser vivida. Há, desta forma, a necessidade de ver a morte como a
aposta limite da vida, como um fenômeno cultural, algo fundamentalmente ligado aos modos
de ser.
Por fim, quatro bisões emergem das águas. Quatro garotas voltam do mar. Os tremores
no chão contam a chegada dos grandes monstros que eram anunciados desde o princípio do
filme. As garotas mantém a marcha. A aceleram ao som dos tremores. Ao fundo de
Hushpuppy, pela primeira vez em uma única cena, estão os bisões – javalis enormes com
grandes chifres. A garota mantém a marcha, Wink está morrendo.
Quando, com esforço, o pai olha para Hushpuppy, atrás dela o maior dos bisões se
aproxima. A garota se vira. Não temos mais nenhuma trilha sonora. O monstro aproxima o seu
focinho, e a sua respiração soa tão alta quanto os tremores no chão que indicavam os seus
passos. Wink também parece vê-los. A tela nos mostra os olhos negros da criatura, até que os
bisões se ajoelham diante da garota. “Vocês são meus amigos, de certo modo. Tenho que
cuidar dos meus.” Os bisões recuam. A garota atravessa o grupo de pessoas, a vigília por
Wink. Adentra o cômodo. Abre um pequeno recipiente de isopor. Alimenta o seu pai com um
pequeno biscoito de frango. “Muito bom. Nada de chorar, ouviu?”. “Nada de chorar,
responde Hushpuppy”.