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A teoria da interpretação em Ronald


Dworkin

WILSON ROBERTO THEODORO FILHO


Doutor em Direito, Estado e Constituição (UnB). Professor Adjunto de Direito
do Trabalho (UnB).

Artigo recebido em: 11/03/2015 e aprovado em: 12/11/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Interpretação construtiva 3 Etapas da interpretação 4


Conceitos, concepções e paradigmas 5 A cadeia do direito 6 Conclusão 7 Referências

RESUMO: Este artigo tem a intenção de apresentar o conceito de interpretação


postulado por Ronald Dworkin. Nesse sentido, pretende-se expor os principais
pontos de sua teoria, úteis para se compreender o funcionamento de sua proposta
interpretativa para o direito, especialmente em relação à aplicação de seu conceito
de interpretação construtiva voltada para a construção do direito como integridade.

PAL AV R A S CHAV E: Ronald Dworkin Interpretação construtiva Paradigmas


constitucionais

Revista Jurídica da Presidência Brasília v. 17 n. 113 Out. 2015/Jan. 2016 p. 657-676


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Ronald Dworkin’s law interpretation

CONTENTS: 1 Introduction 2 Constructive interpretation 3 Stages of interpretation 4 Concepts,


conceptions and paradigms 5 Chain of law 6 Conclusion 7 References

ABSTRACT: This article presents Ronald Dworkin’s concept of interpretation. The


main points of his theory were exposed in order to comprehend the inner working of
his law interpretation, specially pertaining the application of the idea of constructive
interpretation in relation to law as integrity.

KEYWORDS: Ronald Dworkin Constructive interpretation Constitutional paradigms

La Teoría de la interpretación en Ronald Dworkin

CONTENIDO: 1 Introdución 2 Interpretación constructiva 3 Etapas de la interpretación 4


Conceptos, concepciones y paradigmas 5 La continuidad del derecho 6 Conclusión 7 Referencias

RESUMEN: Este artículo tiene la intención de presentar el concepto de interpretación


postulado por Ronald Dworkin. Los principales puntos de su teoría fueran expuestos
para comprender el funcionamiento de su propuesta interpretativa al derecho,
especialmente e n relación al derecho cómo integridad.

PALABRAS CLAVE: Ronald Dworkin Interpretación constructiva Paradigmas


constitucionales

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1 Introdução

R onald Dworkin é um dos principais autores vinculados à teoria constitucional


do século XX. Seu trabalho, além de apresentar uma nova concepção sobre
vários dos elementos tradicionais do direito, tais como leis, princípios, políticas,
decisões, o papel do legislador, etc., propõe a defesa ativa dos direitos políticos
do cidadão em face do Estado, e propugna uma comunidade política na qual os
principais intérpretes do direito responsabilizam-se pela promoção e defesa dos
valores contidos no corpo constitucional, em detrimento de políticas e interesses
alheios aos direitos constitucionais e ao sistema jurídico.
O trabalho de Ronald Dworkin vincula-se diretamente à chamada virada
interpretativa iniciada por Gadamer, na década de 1960, que possibilitou o
desenvolvimento produtivo da hermenêutica em diversos campos interpretativos
e teóricos ligados à ciência, à filosofia, à política e ao direito. A hermenêutica, ao
recuperar elementos da obra de autores que privilegiavam a análise do discurso e
dos textos, bem como das condições de produção e reconhecimento do discurso e dos
textos, tais como Heidegger e Dilthey, abriu um novo campo de renovação teórica e
interpretativa, gerando inéditas possibilidades de reflexão filosófica e social.
Assim, a reflexão dworkiniana é uma das mais importantes vertentes da
hermenêutica voltada para a análise do funcionamento do sistema jurídico, dada
a sua coerência, complexidade e profunda influência crítica e epistemológica,
tanto para o constitucionalismo e a teoria política norte-americanas, quanto para a
teoria constitucional voltada para a análise de princípios jurídicos, tendo em vista
a prática decisional dos juízes e a proteção dos direitos dos cidadãos em face do
Estado. Nessa medida, sua obra é de fundamental importância no panorama jurídico
intelectual dos séculos XX e XXI, e seu estudo possibilita a compreensão de vários
dos principais aspectos da filosofia jurídica e da teoria constitucional atuais.
O conceito de interpretação do direito proposto por Dworkin encontra-se, na
verdade, espalhado por vários de seus artigos e livros. Não se trata de um todo
sistemático e uniformizado, mas sim de ideias que aos poucos vão sendo apresentadas
e desenvolvidas ao longo de sua produção acadêmico-científica. Pretende-se,
portanto, apresentar uma visão sistematizada e resumida dos elementos que
compõem a concepção interpretativa de Dworkin.

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2 A Interpretação construtiva
Na tentativa de estabelecer sua própria concepção de interpretação, Dworkin
recorre aos métodos típicos de interpretação existentes na literatura. Ele identifica
duas grandes linhas de possibilidade de interpretação: a interpretação voltada para
a descoberta das intenções do autor e a interpretação construtiva.
Dworkin rejeita os esquemas de interpretação de natureza cética, que
propõem ser impossível estabelecer uma interpretação única e verdadeira para
um determinado texto, uma vez que é o intérprete quem, na verdade, colocaria
conteúdo no texto. Do ponto de vista cético, praticamente toda interpretação seria
válida, já que qualquer interpretação poderia ser depreendida de qualquer texto,
em qualquer hipótese. Dworkin contesta tal tese com base no raciocínio de que o
ceticismo é incapaz de demonstrar, com argumentos e razões extraídos do próprio
objeto interpretado, que não exista, de fato, uma única interpretação correta para
esse objeto. Ademais, toda interpretação legítima permanece sempre vinculada ao
objeto interpretado, invalidando a ideia de que qualquer interpretação possa ser
legítima e aceitável para um determinado objeto1.
No capítulo segundo de O Império do Direito (DWORKIN, 1999), o autor pretende
analisar a interpretação da prática social da cortesia de uma determinada comunidade,
considerada semelhante à prática do direito. A interpretação de uma prática social é
similar à interpretação artística, na medida em que “[...] ambas pretendem interpretar
algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas
dizem, como a interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como
no caso da interpretação científica” (DWORKIN, 1999, p. 61).
A interpretação das práticas sociais e artísticas é uma interpretação criativa, no
sentido de que, em tais casos, ela pretende identificar no objeto interpretado não
apenas uma causa, ou o conteúdo intencional da sua prática, mas sim um ou mais
propósitos. Não se trata, no caso, dos propósitos do autor do objeto, ou até mesmo
dos propósitos do próprio objeto, mas sim dos propósitos pertencentes ao intérprete
do objeto em questão.

1  “ Daí não se segue [...] que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer
coisa que desejaria que fossem; [...] Pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma
coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos [...]” (DWORKIN, 1999, p. 64).

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Ao contrário das interpretações conversacional e científica2, que procuram


identificar no objeto analisado, respectivamente, a intenção do emissor e as causas do
fato, a interpretação criativa volta-se para a identificação dos propósitos que tornam o
objeto o melhor possível diante do que se acredita, como intérprete, que ele deveria ser:

Em linhas gerais, a interpretação construtiva é uma questão de impor um


propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-lo o melhor exemplo
possível da forma ou gênero aos quais se imagina que pertençam. [...] Do
ponto de vista construtivo, a interpretação criativa é um caso de interação
entre propósito e objeto. (DWORKIN, 1999, p. 63-64).

A interpretação construtiva, portanto, não se reporta ao postulado das teorias


clássicas que identificam na intenção do autor o elemento a ser necessariamente
interpretado. Na verdade, tais teorias não são totalmente incompatíveis com a
interpretação construtiva. Segundo Dworkin, toda interpretação artística pretende
encontrar valor no objeto interpretado. Diferentes escolas de crítica e interpretação
fornecerão diferentes critérios de valor para a interpretação. A ideia de que a
intenção do autor constitui o objeto a ser interpretado não passa de uma dessas
posições críticas e, ao invés de negar a interpretação construtiva, que também
pretende identificar valor nos objetos interpretados, a confirma.
Dessa forma, as teorias fundadas na intenção do autor, que pretendem somente
descobrir o significado de determinado objeto conforme pretendido pelo autor, são, na
verdade, fundadas na crença de que a intenção do autor é o melhor valor para promover
determinada obra de arte: não são, portanto, esquemas interpretativos rivais da
interpretação construtiva, mas sim formas de interpretação que se ajustam à hipótese
preconizada pela interpretação construtiva. Além do mais, é, de certa forma, impossível
reconstituir quais eram a exata intenção e o estado mental do autor ao fazer a obra3.
Logo, a interpretação construtiva se baseia no que Dworkin chama de hipótese
estética. A hipótese estética funda-se na ideia de que:

2  S
egundo Stephen Guest: “Dworkin says that the interpretation of social practices is like ‘artistic’
interpretation, which interprets the thing – the work of art – created by people and separate from them.
He distinguishes it from ‘scientific’ interpretation, which interprets things not created by people. Nor does
he thinks it is like ‘conversational’ interpretation, which interprets what people say [Dworkin diz que a
interpretação das práticas sociais é semelhante à interpretação artística, que interpreta a coisa – o
trabalho de arte – criado por pessoas e separado delas. Ele a distingue da interpretação científica,
que interpreta coisas que não foram criadas por pessoas. Tampouco a considera semelhante à
interpretação conversacional, que interpreta o que as pessoas dizem].” (1997, p. 27, tradução nossa).

3  T
 al crítica, portanto, se estende igualmente à proposta interpretativa jurídica que procura se amparar
tão somente na vontade do legislador como critério único de interpretação legal.

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[...] a interpretação de uma obra literária tenta mostrar que a maneira de


ler (ou de falar, dirigir ou representar) o texto revela-o como a melhor obra
de arte. Diferentes teorias ou escolas de interpretação discordam quanto
a essa hipótese, pois pressupõem teorias normativas significantemente
diferentes sobre o que é literatura, para que serve e o que faz uma obra de
literatura ser melhor que outra. (DWORKIN, 2000, p. 222).

Não se trata, entretanto, de transformar a obra de arte em outra obra que não ela
mesma, ou seja, de alterar o texto canônico da obra analisada. Há uma diferença entre
explicar e alterar, e essa diferença se baseia na identidade da obra de arte. Destarte,
a hipótese estética engloba em sua proposta questões tais como a supracitada
identidade da obra, a coerência e a integridade da obra de arte. A interpretação
fundada na hipótese estética, que pretende mostrar uma obra de arte como o melhor
que ela pode ser, não pode ignorar parte do conteúdo, ou da forma, em sua análise
do objeto artístico. Em consequência, ficam desautorizadas as interpretações que
sejam corroboradas somente por pequenas partes do texto, ou que ignorem aspectos
importantes dele ou de sua estrutura, sem oferecer uma explicação crítica plausível.
A hipótese estética pode ser considerada como a aplicação dos pressupostos
valorativos da teoria normativa crítica adotada pelo intérprete sobre determinada
obra de arte, com o intuito de nela encontrar valores fortalecidos pela teoria adotada,
que tornem a obra a melhor possível dentro dos limites de compreensão estabelecidos
pela própria teoria. É, portanto, o relato de um propósito, uma proposta sobre a forma
de se ver o que é interpretado, seja um objeto estético, seja uma prática social, como
o produto de uma decisão orientada a um conjunto de temas ou objetivos definidos.
A grande vantagem da teoria estética é que ela apresenta um conceito fixo
de interpretação, sendo que às teorias crítico-literárias cabe o papel de definir de
que forma tal interpretação será construída e desenvolvida. Sob o ponto de vista
de Dworkin, portanto, o conceito de interpretação é incontroverso, na medida
em que interpretação equipara-se a atribuição de valor: de acordo com a teoria
crítico-literária adotada pelo intérprete, controversos são apenas os valores que
determinarão a qualidade de uma obra de arte.
O mesmo se dá na interpretação das práticas sociais, de forma que os intérpretes,
mesmo não tendo teorias normativas plenamente construídas, semelhantes às
escolas críticas literárias, pretendem identificar, em sua interpretação das práticas
sociais, valores e razões consoantes com os seus próprios valores e expectativas
vinculados à prática social em questão. Entretanto, tampouco podem impingir-lhes
o valor ou o motivo que desejarem, já que a forma e o conteúdo da prática, sua

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coerência, sua identidade e sua integridade limitam as possibilidades interpretativas


de seus intérpretes. Dessa forma, a interpretação de uma determinada prática social
não é nem a identificação do comportamento de cada um de seus praticantes, nem
a mera explicação causal da existência da prática no corpo social, mas sim é a
atribuição de valor e de propósito à prática em questão.

3 Etapas da interpretação
A interpretação de uma prática social é semelhante à interpretação literária
criativa, tendo em vista que os intérpretes da prática, ao analisá-la, não procuram
desvendar as intenções de cada um dos seus participantes, mas sim buscam
identificar a intenção comunitária, por assim dizer, na qual se funda determinada
prática social. Há, portanto, uma distinção entre interpretar os atos individuais de
cada um dos participantes da prática social e interpretar a própria prática social em
si, ou seja, qual é o seu significado.
Dessa forma, para que os membros de uma comunidade possam compartilhar uma
determinada prática social, é necessário que exista um certo consenso mínimo entre
eles, consenso este forte o suficiente para que os atos e as afirmações interpretativas de
um determinado participante tenham sentido e propósito para os outros participantes,
mas não tão intenso a ponto de impedir a existência de divergências entre eles. Assim,
Dworkin define a existência de um vocabulário comum e de uma compreensão de
mundo próxima e minimamente similar entre os participantes da prática social como
pressupostos da própria existência da prática social em si.
Logo, a interpretação exige do intérprete uma postura distinta em relação ao que
os outros participantes entendem da prática social, e ao que esta verdadeiramente
requer e exige: destarte, o intérprete está também inserido no universo
compartilhado da prática social, e suas afirmações interpretativas encontram-se em
competição com as afirmações interpretativas dos outros participantes. Em face de
tal circunstância, Dworkin identifica três etapas interpretativas distintas, decorrentes
do grau de consenso existente na comunidade sobre determinada prática social –
etapa pré-interpretativa, etapa interpretativa e etapa pós-interpretativa -, cada uma
delas representando um estágio de evolução da atividade interpretativa vinculada à
prática social na comunidade.
“Primeiro, deve haver uma etapa ‘pré-interpretativa’ na qual são identificados as
regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da prática”
(DWORKIN, 1999, p. 81). Na etapa pré-interpretativa, que, apesar do nome, já contém

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um certo grau de interpretação – pois inexistem rótulos específicos que definam as


práticas sociais –, há um grau de consenso forte o suficiente para que a prática seja
identificada e distinguida individualmente das demais. Os elementos dessa etapa
funcionam como dados quase fixos na argumentação interpretativa, e asseguram
que a dissonância interpretativa gere resultados compreensíveis entre os diversos
intérpretes da prática no interior da comunidade política. Em uma comparação com
a literatura, portanto, a etapa pré-interpretativa equivale à identificação textual de
um determinado objeto estético, como, por exemplo, a distinção do texto de Moby
Dick do texto de outros objetos estéticos.

Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa em que o intérprete


se concentre numa justificativa geral para os principais elementos da
prática identificada na etapa pré-interpretativa. Isso vai consistir numa
argumentação sobre a conveniência ou não de buscar uma prática com
essa forma geral. A justificativa não precisa ajustar-se a todos os aspectos
ou características da prática estabelecida, mas deve ajustar-se o suficiente
para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática,
não como alguém que inventa uma nova prática.(DWORKIN, 1999, p.81).

Na etapa interpretativa são desenvolvidas as teorias relativas à prática social


identificada na etapa pré-interpretativa. Assim como em relação às escolas crítico-
literárias, cada uma dessas teorias normativas pretenderá identificar um propósito
ou intenção geral, no qual a prática social se insere e pelo qual é justificada.
Tal propósito, combinado com a articulação interpretativa proposta pela teoria
normativa, será capaz de dar sentido à maior parte do conteúdo e da forma da
prática social, de modo que esta, como um todo, ao ser justificada pelo propósito,
também o promove. Haverá, obviamente, teorias normativas melhores e piores em
decorrência do grau de explicação e de ajuste existente entre a teoria normativa e a
prática social por ela explicada e justificada.
“Por último, deve haver uma etapa pós-interpretativa ou reformuladora à qual
ele (o intérprete) ajuste sua idéia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para
melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa” (DWORKIN,
1999, p. 81-82). A etapa pós-interpretativa, portanto, é um ajuste entre a teoria
normativa elaborada na etapa interpretativa e a prática social identificada na etapa
pré-interpretativa, tencionando, após a aplicação da teoria sobre a prática, justificar,
repudiar ou estabelecer padrões de conduta vinculados à prática em questão.
Dessa forma, a interpretação, como um todo, visa o equilíbrio, o ajuste entre a
descrição e a identificação pré-interpretativa de uma determinada prática social e

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uma justificação adequada de tal prática, vinculada à teoria normativa elaborada


na etapa interpretativa4. Assim, segundo Dworkin: “A interpretação de uma prática
social procura equilíbrio entre a justificativa da prática e suas exigências pós-
interpretativas” (DWORKIN, 1999, p. 82).
Dworkin reconhece, no entanto, que a atividade interpretativa no seio de
uma comunidade política não se pauta exatamente da forma estruturada por
ele exposta analiticamente. Em verdade, os três momentos interpretativos se
misturam e confundem o tempo todo, sendo que uma determinada teoria normativa
encontra-se meramente implícita, ou subjacente, ao corpo principal da maior parte
da argumentação interpretativa. Os juízos interpretativos, portanto, mesclariam a
identificação da dimensão da prática social, dos propósitos e das intenções a ela
paralelos com a consequência pós-interpretativa de tais propósitos e objetivos.
Logo, para que o juízo interpretativo se estabeleça, são necessárias:

[...] hipóteses ou convicções sobre aquilo que é válido, enquanto parte da


prática, a fim de definir os dados brutos de sua interpretação na etapa
pré-interpretativa [...] convicções sobre até que ponto a justificativa que
propõe na etapa interpretativa deve ajustar-se às características habituais
da prática, para ter valor como uma interpretação dela e não como a

4  P
 aul Kelly faz um relato ligeiramente diferente em relação à argumentação moral dentro do pensameno
dworkiniano: “[...] Moral and political argument starts from these shared commom intuitions. When we engage in
arguments about justice we appeal to such intuitions, but we do so in complex ways. These intuitive commitments
are in part constitutive of a community, and it could only abandon its core intuitions about justice by becoming
significantly different. Moral argument, at least in its philosophical guise, involves the construction of theories
wich acount for these intuitive convictions. Although those theories are developed independently of the beliefs
and tested against them, in the process of articulating and developing them they undergo modification and
refinement [A discussão moral e política inicia-se a partir das intuições comuns compartilhadas. Quando
nós argumentamos sobre justiça, nós nos reportamos a essas intuições, mas o fazemos de forma complexa.
Esses acordos intuitivos são em parte constituintes de uma comunidade, e ela só poderia abandonar sua
intuição central sobre justiça se se tornasse significantemente diferente. A discussão moral, pelo menos
em seu aspecto filosófico, envolve a construção de teorias que levam em conta tais convicções intuitivas.
Apesar de essas teorias desenvolverem-se independentemente das crenças, e de serem testadas contra
elas, no processo de articulação e desenvolvimento elas passam por modificações e refinamentos] [...]
Equilibrium is achieved when there is a match between the structre and outcome of our theory of justice and
our considered intuitions about justice, and when the theory is shown to provide a better reflective account of
our intuitive commitments than any rival theory does. This constructivist method of reflective equilibrium is how
we justify moral and political principles [O equilíbrio é atingido quando há uma correspondência entre a
estrutura e o resultado de nossa teoria sobre a justiça e as intuições que levamos em consideração sobre
justiça, e quando a teoria providencia uma perspectiva reflexiva sobre nossos acordos intuitivos melhor do
que a de qualquer teoria rival. Esse método construtivista de equilíbrio reflexivo é utilizado para justificar
nossos princípios morais e políticos]” (1996, p. 279-280, tradução nossa).

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invenção de algo novo [...] convicções mais substantivas sobre os tipos


de justificativa que, de fato, mostrariam a prática sob sua melhor luz [...].
(DWORKIN, 1999, p. 83).

As convicções pós-interpretativas, de caráter substantivo, são, entretanto,


diversas das convicções propriamente interpretativas, voltadas para análise da
adequação, pois, do contrário, as primeiras seriam incapazes de influir sobre as
segundas. Desse modo, percebe-se que a atividade interpretativa, sob a luz da
teoria de Ronald Dworkin, constitui-se: na identificação da prática social (ou seja,
na limitação do objeto a ser analisado); no desenvolvimento de uma teoria capaz
de justificar os propósitos e objetivos da prática em questão; e na aplicação dessa
teoria sobre a prática social em si, de forma a propor-lhe novos padrões de conduta e
interpretações melhor condizentes com a teoria justificadora. Mesmo que na prática
interpretativa comum tais teorias não sejam explícitas nem explicitadas, ainda
assim os argumentos interpretativos se pautam, estruturalmente, por um esquema
no qual os juízos interpretativos são construídos a partir de uma justificativa para
uma prática pré-identificada.
As divergências interpretativas, portanto, são mais sérias nas etapas
interpretativa e pós-interpretativa, ou seja, os juízos interpretativos divergem
justamente quanto a quais são as melhores justificativas para uma determinada
prática social, e sobre quais são as implicações, no âmbito da prática, decorrentes da
adoção de uma justificativa teórica e valorativa específica. Destarte, assim como na
interpretação literária, na qual os elementos de um objeto estético são julgados em
consonância com a posição crítica adotada pelo intérprete em relação ao propósito
da obra, as condutas pertinentes a uma prática social serão julgadas, pelos seus
vários intérpretes, em consonância com as justificativas que fundamentam a própria
prática em si.

4 Conceitos, concepções e paradigmas


A atividade interpretativa relativa a uma determinada prática social terminará
por gerar conceitos e concepções ligados a essa prática. Para Dworkin, um conceito
é uma definição altamente abstrata do que seja a prática social, e as concepções são
subespecificações do conceito, muitas vezes divergentes, nas quais se discutem as

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verdadeiras exigências, decorrentes do conceito, para a prática social5.

O contraste entre conceito e concepção é aqui um contraste entre níveis de


abstração nos quais se pode estudar a interpretação da prática. No primeiro
nível, o acordo tem por base idéias distintas que são incontestavelmente
utilizadas em todas as interpretações; no segundo, a controvérsia latente
nessa abstração é identificada e assumida. (DWORKIN, 1999, p. 87).

Uma teoria normativa bem sucedida apresentará um conceito, relativo à prática


social que interpreta, capaz de englobar e interpretar teorias rivais como meras
concepções do conceito mais amplo defendido por ela como explicação adequada
da prática social. Obviamente, nem sempre haverá um conceito indiscutivelmente
acatado por toda a comunidade política. Nessas hipóteses, segundo Dworkin, as
discussões interpretativas de caráter concepcional assumem a forma de discussões
conceituais. Na verdade, os intérpretes pensam estar discutindo o conceito da
prática, quando, na verdade, discutem as concepções da prática. O conceito, nesses
casos, existe, historicamente veiculado, fundado no consenso pré-interpretativo
existente na comunidade política, ainda que não identificado de forma incontestável
pelos intérpretes e participantes. Às ditas interpretações conceituais, mas que,
na verdade, são concepcionais, subjazem implicitamente o conceito consensual
e comunitariamente aceito, que se torna a base das discussões e divergências a
respeito da prática. Não que, historicamente, o conceito de uma prática, mesmo
não identificado, não se altere: entretanto, as discussões a respeito da prática
encontram-se inelutavelmente vinculadas ao momento histórico de sua formulação,
sendo que, quando uma teoria, de fato, propõe um novo conceito, ou é considerada
extravagante e estranha à discussão sobre a prática, ou promove uma verdadeira
revolução no conceito relativo à prática.
A cada momento da instituição histórica de uma prática social, portanto, existem

5  S
 egundo Stephen Guest, a distinção entre conceitos e concepções pode ser resumida da seguinte forma:
“The idea is this. People can have differente conceptions of something and they can, and often do, argue with
others about which conception of it is the better conception. You will note the obvious analogy with rival
interpretations of a ‘thing’. In the context of conceptions, this ‘thing’ is the ‘concept’ and it is constituted by a
level of abstraction about which there is agreement on a discrete set of ideas, and which is employed in all
interpretations. A conception, on the other hand, will take up some controversy that, according to Dworkin, is
‘latent’ in the concept. [A ideia é essa. As pessoas têm diferentes concepções sobre algo e elas podem,
e fazem isso regularmente, discutir com os outros sobre qual concepção é a melhor. Você notará a
óbvia analogia com a interpretação rival de uma “coisa”. No contexto das concepções, essa “coisa” é o
“conceito”, que é constituído por um nível de abstração sobre o qual há um discreto acordo de ideias,
que é empregado em todas as interpretações. Uma concepção, por outro lado, provocará sempre alguma
controvérsia, que, de acordo com Dworkin, está “latente” no conceito] ” (1997, p.29, tradução nossa).

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certos paradigmas, decorrentes do conceito pré-interpretativo da prática, seja ele


identificado ou não, que definem o âmbito básico de aplicação da prática no interior
da comunidade política. Os paradigmas fixam as possibilidades de interpretação, de
forma que uma teoria razoável deverá ser capaz de ajustar os paradigmas existentes
à sua justificativa e ao conceito da prática social. Os paradigmas são exigências
concretas vinculadas à prática, e que, portanto, exercem papel decisivo no raciocínio
e na argumentação interpretativos.

[...] os paradigmas serão tratados como exemplos concretos aos quais


qualquer interpretação plausível deve ajustar-se, e os argumentos contra
uma interpretação consistirão, sempre que possível, em demonstrar que
ela é incapaz de incluir ou explicar um caso paradigmático.

Em decorrência desse papel especial, a relação entre a instituição e os


paradigmas da época será estreita a ponto de estabelecer um novo tipo de
atributo conceitual. Quem rejeitar um paradigma dará a impressão de estar
cometendo um erro extraordinário. (DWORKIN, 1999, p. 88-89).

Assim, um conceito inatacável é capaz de explicar e justificar todos os principais


casos paradigmáticos vinculados a uma determinada prática social. Quando
o conceito é controverso e não identificado, ainda assim são os paradigmas que
estabelecem a esfera consensual na qual é possível limitar as discussões a respeito
da prática social, mesmo que de modo inconsciente ou implícito para os intérpretes.
De certa forma, a existência de conceitos controversos decorre da incapacidade das
várias teorias que o analisam em apresentar uma explicação satisfatória capaz de
englobar todos os paradigmas que compõem a prática. Nessa medida, os paradigmas
relacionam-se diretamente com o consenso interpretativo mínimo necessário para
que se possa falar na existência de um determinado conceito em torno do qual
girem várias concepções.
Entretanto, apesar de os paradigmas fixarem a interpretação, sempre podem
surgir novas teorias que considerem um determinado paradigma um equívoco, e o
substituam por um outro conjunto de paradigmas. É no âmbito de novas propostas
paradigmáticas que, eventualmente, torna-se possível substituir, historicamente, um
conceito de determinada prática social por um novo conceito que abarque os novos
paradigmas propostos pela atividade interpretativa.

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5 A cadeia do direito
Em sua comparação entre Direito e Literatura, Ronald Dworkin entende que
o processo interpretativo do sistema jurídico assemelha-se à elaboração de um
romance no qual cada capítulo é responsabilidade de um escritor diferente. É
evidente, a partir do que foi exposto no item anterior, que o direito, seu conceito
e concepções se enquadram entre as práticas sociais que demandam e ensejam
constante interpretação e reinterpretação em cada comunidade política específica.
Em face de tal premissa, lança mão, uma vez mais, da similitude entre direito, prática
social e interpretação do objeto artístico.
O exercício sincero da responsabilidade atribuída de se escrever um novo
capítulo de um romance já iniciado exige do escritor que: (i) respeite a integridade
e a coerência dos capítulos previamente escritos, de forma que a sua contribuição
não seja dissonante nem do conteúdo nem da forma previamente existentes; e
(ii) elabore uma teoria interpretativa do romance até o ponto em que ele estiver
escrito, na tentativa de estabelecer os propósitos, as intenções e os objetivos da
obra, de modo que a sua contribuição sirva também para promover e estabilizar
esses mesmos padrões.
Assim, a atividade do escritor não se resumiria a alterar e escrever o romance, em
sua parte, do modo que melhor lhe conviesse, mas sim, respeitando o corpo textual
e formal anteriormente estabelecido na obra, acrescentar sua contribuição tendo em
vista a coerência, a integridade e o respeito aos objetivos e aos propósitos do romance.
Obviamente, a teoria interpretativa elaborada pelo escritor deve respeitar o
texto canônico do romance, ou seja: os objetivos, propósitos e intenções presentes
no romance, conforme identificados pela teoria interpretativa, devem poder ser
razoavelmente depreendidos do texto da obra, sem que sejam necessárias quebras
de coerência e de integridade para se acomodar e justificar grandes partes do
conteúdo ou da forma do romance.
O mesmo se daria com o intérprete do direito, especialmente na instância
decisória: no momento em que um determinado juiz exerce sua jurisdição, deve ser
capaz de compreender o direito existente até o ponto histórico de sua decisão, da
mesma forma que o escritor enxerga os capítulos previamente escritos do romance. O
juiz exerceria função semelhante à do crítico literário e à do escritor que completa o
romance: sua decisão deve se ajustar aos elementos anteriores do direito e da história
institucional da comunidade política, respeitando a coerência e a integridade dos
componentes do sistema jurídico, de modo que sua decisão tanto reafirme o direito

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670 A teoria da interpretação em Ronald Dworkin

existente quanto construa um novo direito para o caso concreto em apreço.


Ou seja, assim como o novo capítulo do romance é uma continuidade dos
capítulos existentes e um acréscimo inédito a esses mesmos capítulos, em
consonância com seu conteúdo e sua forma, também a decisão do juiz que interpreta
o sistema jurídico constitui um novo elemento na cadeia do direito, harmônico em
relação às outras decisões anteriores a ela, em consonância com a coerência e com
a integridade do sistema jurídico como um todo.
Logo, o juiz, no momento decisional, caracteriza-se por exercer uma atividade
que é tanto crítica quanto criativa: crítica na medida em que, tendo por base uma
teoria política específica de interpretação jurídica, aplica tal teoria sobre o corpo do
sistema jurídico objetivando compreendê-lo em sua melhor interpretação histórica
possível; e criativa porque sua decisão, levando em consideração a interpretação
crítica, dá existência a um novo capítulo do sistema jurídico. Assim, segundo Vera
Karam de Chueiri:

A idéia da qual se parte é a da chain of law6 que, analogamente ao exercício


literário de construção de um romance, pretende edificar uma decisão
jurídica. Assim, os juízes deveriam encarar a sua decisão (o ato de criação)
como um capítulo a mais de uma história já iniciada por outros e, portanto,
levar em conta o que já foi escrito (ato de interpretação), no sentido de não
romper com a unidade e coerência da história. Cada juiz (ou escritor) deve
fazer da sua decisão (ou texto), naquele momento, a (ou o) melhor possível.
Judges, however, are authors as well as critics. A judge deciding Mc Loughlin
or Brown adds to the tradition he interprets; future judges confront a new
tradition that includes what he has done”7. (CHUEIRI, 1995, p. 98).

Portanto, a proposta dworkiniana pretende que o juiz, assim como o escritor do


romance, lançando mão de uma teoria normativa política própria, construa sua decisão
de forma que ela seja uma mediadora entre o direito que é e o direito que deve ser, ou
seja, o melhor direito possível, tendo em vista a teoria normativa adotada.
Tal método interpretativo, desse modo, assume o papel fundamental de promover

6  Cadeia do direito (Tradução nossa).

7  “ Os juízes, contudo, são tanto autores quanto críticos. Um juiz decidindo o caso Mc Loughlin ou
Brown acrescenta à tradição que interpreta; juízes fututros confrontarão uma nova tradição que
inclui o que ele tiver feito” (CHUEIRI, 1995, p. 98, tradução nossa).

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o direito à integridade8. Isso se dá mesmo levando-se em conta a diferente gama


de teorias interpretativas e políticas que um determinado juiz pode adotar, porque,
dentro da concepção de Dworkin, o direito à integridade é um conceito de direito,
enquanto as teorias político-interpretativas são concepções desse direito, que, em
verdade, giram em torno do conceito do direito à integridade. As teorias, portanto,
não contradizem o sistema jurídico geral baseado na integridade, mas servem, sim,
para dirimir os conflitos exsurgidos no seio do processo decisional.

A interpretação da prática jurídica reitera a dimensão política do jurídico


jogando para o direito a coordenação dos esforços individuais e sociais,
bem como a resolução das disputas entre os indivíduos, entre estes e o
governo e a segurança da justiça. An interpretation of any body of law [...]
must show the value of that body of law in political terms by demonstrating
the best principle or policy it can be taken to serve.9 Ao ato de interpretação
do juiz acompanha uma teoria política, cujo fundamento está na história,
e em cuja base se assenta uma teoria das decisões judiciais, o que retira o
possível senso de aleatoriedade que o interpretar sugere. Quando ocorre
dos princípios conflitarem é a teoria política que vai ser decisiva ao sugerir
que princípio se ajusta a um sentido mais agudo de justiça, no qual seguirá,
em conseqüência, a interpretação do juiz. (CHUEIRI, 1995, p. 100).

8 
O direito à integridade é o conceito de direito proposto por Dworkin. Segundo Vera Karam de Chueri:
“Dworkin relaciona a integridade com a eqüidade, a justiça e o procedural due process, [devido processo
procedimental (tradução nossa)] no sentido de que seja dada toda força aos princípios políticos que
justificam a autoridade legislativa na decisão do significado de uma lei por ela decretada, de que
sejam reconhecidos no resto do direito os princípios morais necessários à justificação da essência das
decisões legislativas e de que os procedimentos de prova sejam reconhecidos em toda parte, levando
em consideração as diferenças no tipo e grau de dano – moral – que um veredito incorreto impõe. [...]
Para que esta concepção flua no sentido da integridade, é necessário que o Estado e a comunidade
estejam comprometidos com os referidos princípios, assumindo uma personalidade própria que os
caracterize como uma entidade distinta das pessoas que, individualmente, os integram. A political
society that accepts integrity as a political virtue thereby becomes a special form of community, special
in a way that promotes its moral authority to assume and deploy a monopoly of coercitive force. [Uma
sociedade política que aceite a integridade como uma virtude política torna-se uma forma especial
de comunidade, especial de um modo que promove sua autoridade moral para assumir e dispor do
monopólico do emprego coercitivo de força. (Tradução nossa)] [...] O agir conforme princípios é um
agir coletivo: desde a consideração dos agentes, da atribuição de deveres e obrigações, até a própria
justificação. Quer dizer, a melhor concepção do direito o presume como um sistema articulado (uma
totalidade), cujos elementos (constitutivos) não existem isoladamente (não geram efeitos)” (KARAM DE
CHUEIRI, 1997, p. 183-184). Em tradução livre: “[...] Uma sociedade política que aceite a integridade
como uma virtude política torna-se uma forma especial de comunidade, especial de um modo que
promove sua autoridade moral para assumir e dispor do monopólico do emprego coercitivo de força”.

9  “ Uma interpretação de qualquer legislação [...] deve demonstrar o valor dessa legislação em termos políticos
expondo qual o melhor princípio ou política a que este serve”. (CHUEIRI, 1995, p. 100, tradução nossa).

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A teoria política adotada por um determinado juiz, portanto, necessita de um


vínculo histórico que justifique a sua validade, ou seja, a teoria deve ser capaz
de analisar e valorar adequadamente a história institucional do sistema jurídico,
apresentando-lhe propósitos, objetivos e intenções que possam razoavelmente ser
depreendidos dos elementos que compõem esse sistema jurídico. Nessa medida,
o cânon do sistema jurídico pode ser compreendido como as leis, os precedentes,
as decisões, os princípios e as políticas que o compõem, tendo em vista a proposta
dworkiniana de interpretação do sistema jurídico.
Logo, o direito se insere no campo da interpretação construtiva e criativa,
conforme previamente exposto:

Na esteira da chain of law, o direito é um exercício de interpretação


construtiva, interessando-lhe antes os propósitos e intenções do intérprete
[...]. Roughly, constructive interpretation is a matter of imposing purpose on an
object or practice in order to make of it the best possible example of the form
or genre to which it is taken to belong.10 (CHUERI, 1995, p. 104).

6 Conclusão
Na busca de um exemplo claro que ilustre sua proposta interpretativa para o
sistema jurídico, Dworkin lança mão da figura de Hércules, que representa o juiz que,
ao adotar o conceito do direito como integridade, é capaz de levar todos os seus
pressupostos e métodos de interpretação até suas últimas consequências.
Hércules é semelhante, como vimos em relação aos juízes em geral, no item
anterior, ao escritor do romance em cadeia:

Hércules deve decidir o caso McLoughlin. As duas partes desse caso citaram
precedentes; cada um argumentou que uma decisão em seu favor equivaleria
a prosseguir como antes, a dar continuidade ao desenvolvimento do direito
iniciado pelos juízes que decidiram os casos precedentes. Hércules deve formar
sua própria opinião sobre esse problema. Assim como um romancista em cadeia
deve encontrar, se puder, alguma maneira coerente de ver um personagem e
um tema, tal que um autor hipotético com o mesmo ponto de vista pudesse ter
escrito pelo menos a parte principal do romance até o momento em que este
lhe foi entregue, Hércules deve encontrar, se puder, alguma teoria coerente
sobre os direitos legais à indenização por danos morais, tal que um dirigente

10  “ [...] Grosso modo, a interpretação construtiva é uma questão de atribuir finalidade a um objeto ou
prática de modo a torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero ao qual se considere
que pertença” (CHUEIRI, 1995, p. 104, tradução nossa).

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político com a mesma teoria pudesse ter chegado à maioria dos resultados que
os precedentes relatam. (DWORKIN, 1999, p. 288).

O juiz Hércules é aquele capaz de desenvolver complexas teorias político-


interpretativas em sua busca pela melhor decisão possível em um caso específico,
tendo em vista a tese do direito como integridade, unidade e coerência. Nessa
medida, Hércules é capaz não só de comparar todos os elementos que compõem
o cânon do direito, como de articulá-los, por meio de suas teorias, em um todo
razoavelmente uno e coerente, de modo que suas decisões e juízos interpretativos
não só se ajustem à história institucional do direito em sua comunidade política,
respeitando o cânon, como, além disso, inovem o sistema jurídico com uma nova
decisão que mantenha a coerência e a integridade do sistema.
Note-se, por exemplo, a postura de Hércules preconizada por Dworkin para
problemas constitucionais:

Deve desenvolver uma teoria da constituição na forma de um conjunto


complexo de princípios e políticas que justifiquem o sistema de governo
[...]. Hércules deve desenvolver essa teoria referindo-se alternadamente à
filosofia política e ao pormenor institucional. Deve gerar teorias possíveis
que justifiquem diferentes aspectos do sistema, e testá-las, contrastando-as
com a estrutura institucional mais ampla. Quando o poder de discriminação
desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos contestados
que a teoria exitosa utiliza. (DWORKIN, 2002, p. 168).

O juiz Hércules, portanto, não só tem o conhecimento de todo o sistema jurídico


e da história institucional da comunidade política, como, para cada caso concreto,
desenvolve teorias que harmonizam a vasta gama de princípios, políticas e leis, em
um todo suficientemente coerente que lhe sirva de orientação sobre qual é a melhor
decisão possível para o caso, tendo em vista tanto a reafirmação quanto a inovação
do direito. Dworkin admite que o juiz Hércules é um ideal: na verdade, sua proposta
é de que os juízes normais, ao decidirem, ao menos se pautem, da melhor forma
possível, pelos princípios e procedimentos adotados por Hércules.
Obviamente, nenhum juiz humano será capaz de exercer o trabalho de Hércules;
mas, em sua visão, é função do juiz ser capaz de desenvolver teorias políticas que
orientem a sua decisão, pautadas no conceito do direito à integridade, e não em
ideais jurídicos anacrônicos, tais como os da descoberta da intenção legislativa,
ou da vontade geral da comunidade política. Pelo contrário, o juiz que se pauta
no exemplo de Hércules preocupa-se em compreender a história institucional do

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sistema jurídico, de forma que suas decisões, mesmo quando contrárias à opinião
popular geral ou aos objetivos expressos dos legisladores, tenham suas justificativas
fundadas no todo integrado do sistema jurídico.
Assim, segundo Dworkin:

As teorias interpretativas de cada juiz se fundamentam em suas


próprias convicções sobre o “sentido” – o propósito, objetivo ou princípio
justificativo – da prática do direito como um todo, e essas convicções serão
inevitavelmente diferentes, pelo menos quanto aos detalhes, daquelas de
outros juízes. Não obstante, um grande número de forças atenua essas
diferenças e conspira a favor da convergência. Toda comunidade tem
seus paradigmas de direito, proposições que na prática não podem ser
contestadas sem sugerir corrupção ou ignorância. (1999, p. 110)

Portanto, a eventual convergência interpretativa entre os juízes existiria, em


maior ou menor medida, em decorrência da existência do conceito de direito – que
é, para Dworkin, o direito como integridade. Logo, as várias teorias interpretativas
de cada juiz não passam, conforme anteriormente exposto, de concepções que giram
em torno do paradigma do direito como integridade.
Destarte, para Ronald Dworkin, o mérito do juiz Hércules, e daqueles juízes que
se pautam pelo seu exemplo, é o de moldar sua interpretação conscientemente
conforme o conceito de direito verdadeiramente vigente e, em consequência, de
ser capaz de reunir em suas decisões a coerência e a integridade necessárias para
promover a participação política da comunidade e o próprio direito à integridade
que lhe dá razão e fundamento – ou seja, suas decisões justificam o sistema próprio
que lhes dá ensejo.
Dworkin relata a tarefa do juiz normal que pretende adotar o método de Hércules:

[...] Deve considerar provisórios quaisquer princípios ou métodos empíricos


gerais que tenha seguido no passado, mostrando-se disposto a abandoná-
los em favor de uma análise mais sofisticada e profunda quando a ocasião
assim o exigir. Serão momentos especialmente difíceis para qualquer juiz,
exigindo novos juízos políticos aos quais pode ser difícil chegar. Seria
absurdo imaginar que ele sempre terá à mão as convicções de moral
política necessárias a tais ocasiões. Os casos muito difíceis vão forçá-lo a
desenvolver, lado a lado, sua concepção do direito e sua moral política, de
tal modo que ambas se dêem sustentação mútua. Não obstante, é possível
que um juiz enfrente problemas novos e desafiadores como uma questão
de princípio, e é isso que dele exige o direito como integridade. Deve
admitir que, ao preferir finalmente uma interpretação a outra de uma série
de precedentes muito contestada, talvez depois de uma reflexão que o leve

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a mudar de opinião, ele está desenvolvendo sua concepção aplicável do


direito em uma direção, e não em outra. Esta deve parecer-lhe a direção
certa em matéria de princípios políticos, e não uma atração passageira, por
proporcionar uma decisão atraente no caso presente. (1999, p. 308).

Logo, conclui-se que o juiz Hércules é a figura que resume as idéias de Dworkin
acerca da interpretação jurídica, ou seja, é a figura idealmente concebida para
promover o direito como integridade, justamente por encarnar os valores que dão
base à sua proposta paradigmática de direito.

7 Referências
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2000.

CHUEIRI, Vera Karam de. A Dimensão Jurídico-ética da Razão: O Liberalismo


Jurídico de Dworkin. In: SEVERO ROCHA, Leonel. Paradoxos da Auto-Observação.
Curitiba: JM Editora, 1997.

______. Filosofia do Direito e Modernidade. Curitiba: J.M., 1995.

DWORKIN, Ronald. Direito, Filosofia e Interpretação. In: Cadernos da Escola do


Legislativo. Belo Horizonte, 1998.

______. Freedom´s Law: The Moral Reading of the American Constitution. Cambrige,
Massachusetts: Harvard University Press, 1996.

______. Levando os Direitos a Sério. Trad.: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

______. O Império do Direito. Trad.: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.

______. Uma Questão de Princípio. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

GUEST, Stephen. Ronald Dworkin. Second Edition. Edinburgh: Edinburgh


University Press, 1997.

KELLY, Paul. Ronald Dworkin: Taking Rights Seriously. In: The Political Classics:
Green to Dworkin. Edited by Murray Forsyth and Maurice Keens-Soper. Oxford, New
York: Oxford University Press,1996.

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