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1176-2340-1-PB - Dworking Interpretação PDF
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1 Introdução
2 A Interpretação construtiva
Na tentativa de estabelecer sua própria concepção de interpretação, Dworkin
recorre aos métodos típicos de interpretação existentes na literatura. Ele identifica
duas grandes linhas de possibilidade de interpretação: a interpretação voltada para
a descoberta das intenções do autor e a interpretação construtiva.
Dworkin rejeita os esquemas de interpretação de natureza cética, que
propõem ser impossível estabelecer uma interpretação única e verdadeira para
um determinado texto, uma vez que é o intérprete quem, na verdade, colocaria
conteúdo no texto. Do ponto de vista cético, praticamente toda interpretação seria
válida, já que qualquer interpretação poderia ser depreendida de qualquer texto,
em qualquer hipótese. Dworkin contesta tal tese com base no raciocínio de que o
ceticismo é incapaz de demonstrar, com argumentos e razões extraídos do próprio
objeto interpretado, que não exista, de fato, uma única interpretação correta para
esse objeto. Ademais, toda interpretação legítima permanece sempre vinculada ao
objeto interpretado, invalidando a ideia de que qualquer interpretação possa ser
legítima e aceitável para um determinado objeto1.
No capítulo segundo de O Império do Direito (DWORKIN, 1999), o autor pretende
analisar a interpretação da prática social da cortesia de uma determinada comunidade,
considerada semelhante à prática do direito. A interpretação de uma prática social é
similar à interpretação artística, na medida em que “[...] ambas pretendem interpretar
algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas
dizem, como a interpretação da conversação, ou fatos não criados pelas pessoas, como
no caso da interpretação científica” (DWORKIN, 1999, p. 61).
A interpretação das práticas sociais e artísticas é uma interpretação criativa, no
sentido de que, em tais casos, ela pretende identificar no objeto interpretado não
apenas uma causa, ou o conteúdo intencional da sua prática, mas sim um ou mais
propósitos. Não se trata, no caso, dos propósitos do autor do objeto, ou até mesmo
dos propósitos do próprio objeto, mas sim dos propósitos pertencentes ao intérprete
do objeto em questão.
1 “ Daí não se segue [...] que um intérprete possa fazer de uma prática ou de uma obra de arte qualquer
coisa que desejaria que fossem; [...] Pois a história ou a forma de uma prática ou objeto exerce uma
coerção sobre as interpretações disponíveis destes últimos [...]” (DWORKIN, 1999, p. 64).
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egundo Stephen Guest: “Dworkin says that the interpretation of social practices is like ‘artistic’
interpretation, which interprets the thing – the work of art – created by people and separate from them.
He distinguishes it from ‘scientific’ interpretation, which interprets things not created by people. Nor does
he thinks it is like ‘conversational’ interpretation, which interprets what people say [Dworkin diz que a
interpretação das práticas sociais é semelhante à interpretação artística, que interpreta a coisa – o
trabalho de arte – criado por pessoas e separado delas. Ele a distingue da interpretação científica,
que interpreta coisas que não foram criadas por pessoas. Tampouco a considera semelhante à
interpretação conversacional, que interpreta o que as pessoas dizem].” (1997, p. 27, tradução nossa).
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al crítica, portanto, se estende igualmente à proposta interpretativa jurídica que procura se amparar
tão somente na vontade do legislador como critério único de interpretação legal.
Não se trata, entretanto, de transformar a obra de arte em outra obra que não ela
mesma, ou seja, de alterar o texto canônico da obra analisada. Há uma diferença entre
explicar e alterar, e essa diferença se baseia na identidade da obra de arte. Destarte,
a hipótese estética engloba em sua proposta questões tais como a supracitada
identidade da obra, a coerência e a integridade da obra de arte. A interpretação
fundada na hipótese estética, que pretende mostrar uma obra de arte como o melhor
que ela pode ser, não pode ignorar parte do conteúdo, ou da forma, em sua análise
do objeto artístico. Em consequência, ficam desautorizadas as interpretações que
sejam corroboradas somente por pequenas partes do texto, ou que ignorem aspectos
importantes dele ou de sua estrutura, sem oferecer uma explicação crítica plausível.
A hipótese estética pode ser considerada como a aplicação dos pressupostos
valorativos da teoria normativa crítica adotada pelo intérprete sobre determinada
obra de arte, com o intuito de nela encontrar valores fortalecidos pela teoria adotada,
que tornem a obra a melhor possível dentro dos limites de compreensão estabelecidos
pela própria teoria. É, portanto, o relato de um propósito, uma proposta sobre a forma
de se ver o que é interpretado, seja um objeto estético, seja uma prática social, como
o produto de uma decisão orientada a um conjunto de temas ou objetivos definidos.
A grande vantagem da teoria estética é que ela apresenta um conceito fixo
de interpretação, sendo que às teorias crítico-literárias cabe o papel de definir de
que forma tal interpretação será construída e desenvolvida. Sob o ponto de vista
de Dworkin, portanto, o conceito de interpretação é incontroverso, na medida
em que interpretação equipara-se a atribuição de valor: de acordo com a teoria
crítico-literária adotada pelo intérprete, controversos são apenas os valores que
determinarão a qualidade de uma obra de arte.
O mesmo se dá na interpretação das práticas sociais, de forma que os intérpretes,
mesmo não tendo teorias normativas plenamente construídas, semelhantes às
escolas críticas literárias, pretendem identificar, em sua interpretação das práticas
sociais, valores e razões consoantes com os seus próprios valores e expectativas
vinculados à prática social em questão. Entretanto, tampouco podem impingir-lhes
o valor ou o motivo que desejarem, já que a forma e o conteúdo da prática, sua
3 Etapas da interpretação
A interpretação de uma prática social é semelhante à interpretação literária
criativa, tendo em vista que os intérpretes da prática, ao analisá-la, não procuram
desvendar as intenções de cada um dos seus participantes, mas sim buscam
identificar a intenção comunitária, por assim dizer, na qual se funda determinada
prática social. Há, portanto, uma distinção entre interpretar os atos individuais de
cada um dos participantes da prática social e interpretar a própria prática social em
si, ou seja, qual é o seu significado.
Dessa forma, para que os membros de uma comunidade possam compartilhar uma
determinada prática social, é necessário que exista um certo consenso mínimo entre
eles, consenso este forte o suficiente para que os atos e as afirmações interpretativas de
um determinado participante tenham sentido e propósito para os outros participantes,
mas não tão intenso a ponto de impedir a existência de divergências entre eles. Assim,
Dworkin define a existência de um vocabulário comum e de uma compreensão de
mundo próxima e minimamente similar entre os participantes da prática social como
pressupostos da própria existência da prática social em si.
Logo, a interpretação exige do intérprete uma postura distinta em relação ao que
os outros participantes entendem da prática social, e ao que esta verdadeiramente
requer e exige: destarte, o intérprete está também inserido no universo
compartilhado da prática social, e suas afirmações interpretativas encontram-se em
competição com as afirmações interpretativas dos outros participantes. Em face de
tal circunstância, Dworkin identifica três etapas interpretativas distintas, decorrentes
do grau de consenso existente na comunidade sobre determinada prática social –
etapa pré-interpretativa, etapa interpretativa e etapa pós-interpretativa -, cada uma
delas representando um estágio de evolução da atividade interpretativa vinculada à
prática social na comunidade.
“Primeiro, deve haver uma etapa ‘pré-interpretativa’ na qual são identificados as
regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da prática”
(DWORKIN, 1999, p. 81). Na etapa pré-interpretativa, que, apesar do nome, já contém
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aul Kelly faz um relato ligeiramente diferente em relação à argumentação moral dentro do pensameno
dworkiniano: “[...] Moral and political argument starts from these shared commom intuitions. When we engage in
arguments about justice we appeal to such intuitions, but we do so in complex ways. These intuitive commitments
are in part constitutive of a community, and it could only abandon its core intuitions about justice by becoming
significantly different. Moral argument, at least in its philosophical guise, involves the construction of theories
wich acount for these intuitive convictions. Although those theories are developed independently of the beliefs
and tested against them, in the process of articulating and developing them they undergo modification and
refinement [A discussão moral e política inicia-se a partir das intuições comuns compartilhadas. Quando
nós argumentamos sobre justiça, nós nos reportamos a essas intuições, mas o fazemos de forma complexa.
Esses acordos intuitivos são em parte constituintes de uma comunidade, e ela só poderia abandonar sua
intuição central sobre justiça se se tornasse significantemente diferente. A discussão moral, pelo menos
em seu aspecto filosófico, envolve a construção de teorias que levam em conta tais convicções intuitivas.
Apesar de essas teorias desenvolverem-se independentemente das crenças, e de serem testadas contra
elas, no processo de articulação e desenvolvimento elas passam por modificações e refinamentos] [...]
Equilibrium is achieved when there is a match between the structre and outcome of our theory of justice and
our considered intuitions about justice, and when the theory is shown to provide a better reflective account of
our intuitive commitments than any rival theory does. This constructivist method of reflective equilibrium is how
we justify moral and political principles [O equilíbrio é atingido quando há uma correspondência entre a
estrutura e o resultado de nossa teoria sobre a justiça e as intuições que levamos em consideração sobre
justiça, e quando a teoria providencia uma perspectiva reflexiva sobre nossos acordos intuitivos melhor do
que a de qualquer teoria rival. Esse método construtivista de equilíbrio reflexivo é utilizado para justificar
nossos princípios morais e políticos]” (1996, p. 279-280, tradução nossa).
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egundo Stephen Guest, a distinção entre conceitos e concepções pode ser resumida da seguinte forma:
“The idea is this. People can have differente conceptions of something and they can, and often do, argue with
others about which conception of it is the better conception. You will note the obvious analogy with rival
interpretations of a ‘thing’. In the context of conceptions, this ‘thing’ is the ‘concept’ and it is constituted by a
level of abstraction about which there is agreement on a discrete set of ideas, and which is employed in all
interpretations. A conception, on the other hand, will take up some controversy that, according to Dworkin, is
‘latent’ in the concept. [A ideia é essa. As pessoas têm diferentes concepções sobre algo e elas podem,
e fazem isso regularmente, discutir com os outros sobre qual concepção é a melhor. Você notará a
óbvia analogia com a interpretação rival de uma “coisa”. No contexto das concepções, essa “coisa” é o
“conceito”, que é constituído por um nível de abstração sobre o qual há um discreto acordo de ideias,
que é empregado em todas as interpretações. Uma concepção, por outro lado, provocará sempre alguma
controvérsia, que, de acordo com Dworkin, está “latente” no conceito] ” (1997, p.29, tradução nossa).
5 A cadeia do direito
Em sua comparação entre Direito e Literatura, Ronald Dworkin entende que
o processo interpretativo do sistema jurídico assemelha-se à elaboração de um
romance no qual cada capítulo é responsabilidade de um escritor diferente. É
evidente, a partir do que foi exposto no item anterior, que o direito, seu conceito
e concepções se enquadram entre as práticas sociais que demandam e ensejam
constante interpretação e reinterpretação em cada comunidade política específica.
Em face de tal premissa, lança mão, uma vez mais, da similitude entre direito, prática
social e interpretação do objeto artístico.
O exercício sincero da responsabilidade atribuída de se escrever um novo
capítulo de um romance já iniciado exige do escritor que: (i) respeite a integridade
e a coerência dos capítulos previamente escritos, de forma que a sua contribuição
não seja dissonante nem do conteúdo nem da forma previamente existentes; e
(ii) elabore uma teoria interpretativa do romance até o ponto em que ele estiver
escrito, na tentativa de estabelecer os propósitos, as intenções e os objetivos da
obra, de modo que a sua contribuição sirva também para promover e estabilizar
esses mesmos padrões.
Assim, a atividade do escritor não se resumiria a alterar e escrever o romance, em
sua parte, do modo que melhor lhe conviesse, mas sim, respeitando o corpo textual
e formal anteriormente estabelecido na obra, acrescentar sua contribuição tendo em
vista a coerência, a integridade e o respeito aos objetivos e aos propósitos do romance.
Obviamente, a teoria interpretativa elaborada pelo escritor deve respeitar o
texto canônico do romance, ou seja: os objetivos, propósitos e intenções presentes
no romance, conforme identificados pela teoria interpretativa, devem poder ser
razoavelmente depreendidos do texto da obra, sem que sejam necessárias quebras
de coerência e de integridade para se acomodar e justificar grandes partes do
conteúdo ou da forma do romance.
O mesmo se daria com o intérprete do direito, especialmente na instância
decisória: no momento em que um determinado juiz exerce sua jurisdição, deve ser
capaz de compreender o direito existente até o ponto histórico de sua decisão, da
mesma forma que o escritor enxerga os capítulos previamente escritos do romance. O
juiz exerceria função semelhante à do crítico literário e à do escritor que completa o
romance: sua decisão deve se ajustar aos elementos anteriores do direito e da história
institucional da comunidade política, respeitando a coerência e a integridade dos
componentes do sistema jurídico, de modo que sua decisão tanto reafirme o direito
7 “ Os juízes, contudo, são tanto autores quanto críticos. Um juiz decidindo o caso Mc Loughlin ou
Brown acrescenta à tradição que interpreta; juízes fututros confrontarão uma nova tradição que
inclui o que ele tiver feito” (CHUEIRI, 1995, p. 98, tradução nossa).
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O direito à integridade é o conceito de direito proposto por Dworkin. Segundo Vera Karam de Chueri:
“Dworkin relaciona a integridade com a eqüidade, a justiça e o procedural due process, [devido processo
procedimental (tradução nossa)] no sentido de que seja dada toda força aos princípios políticos que
justificam a autoridade legislativa na decisão do significado de uma lei por ela decretada, de que
sejam reconhecidos no resto do direito os princípios morais necessários à justificação da essência das
decisões legislativas e de que os procedimentos de prova sejam reconhecidos em toda parte, levando
em consideração as diferenças no tipo e grau de dano – moral – que um veredito incorreto impõe. [...]
Para que esta concepção flua no sentido da integridade, é necessário que o Estado e a comunidade
estejam comprometidos com os referidos princípios, assumindo uma personalidade própria que os
caracterize como uma entidade distinta das pessoas que, individualmente, os integram. A political
society that accepts integrity as a political virtue thereby becomes a special form of community, special
in a way that promotes its moral authority to assume and deploy a monopoly of coercitive force. [Uma
sociedade política que aceite a integridade como uma virtude política torna-se uma forma especial
de comunidade, especial de um modo que promove sua autoridade moral para assumir e dispor do
monopólico do emprego coercitivo de força. (Tradução nossa)] [...] O agir conforme princípios é um
agir coletivo: desde a consideração dos agentes, da atribuição de deveres e obrigações, até a própria
justificação. Quer dizer, a melhor concepção do direito o presume como um sistema articulado (uma
totalidade), cujos elementos (constitutivos) não existem isoladamente (não geram efeitos)” (KARAM DE
CHUEIRI, 1997, p. 183-184). Em tradução livre: “[...] Uma sociedade política que aceite a integridade
como uma virtude política torna-se uma forma especial de comunidade, especial de um modo que
promove sua autoridade moral para assumir e dispor do monopólico do emprego coercitivo de força”.
9 “ Uma interpretação de qualquer legislação [...] deve demonstrar o valor dessa legislação em termos políticos
expondo qual o melhor princípio ou política a que este serve”. (CHUEIRI, 1995, p. 100, tradução nossa).
6 Conclusão
Na busca de um exemplo claro que ilustre sua proposta interpretativa para o
sistema jurídico, Dworkin lança mão da figura de Hércules, que representa o juiz que,
ao adotar o conceito do direito como integridade, é capaz de levar todos os seus
pressupostos e métodos de interpretação até suas últimas consequências.
Hércules é semelhante, como vimos em relação aos juízes em geral, no item
anterior, ao escritor do romance em cadeia:
Hércules deve decidir o caso McLoughlin. As duas partes desse caso citaram
precedentes; cada um argumentou que uma decisão em seu favor equivaleria
a prosseguir como antes, a dar continuidade ao desenvolvimento do direito
iniciado pelos juízes que decidiram os casos precedentes. Hércules deve formar
sua própria opinião sobre esse problema. Assim como um romancista em cadeia
deve encontrar, se puder, alguma maneira coerente de ver um personagem e
um tema, tal que um autor hipotético com o mesmo ponto de vista pudesse ter
escrito pelo menos a parte principal do romance até o momento em que este
lhe foi entregue, Hércules deve encontrar, se puder, alguma teoria coerente
sobre os direitos legais à indenização por danos morais, tal que um dirigente
10 “ [...] Grosso modo, a interpretação construtiva é uma questão de atribuir finalidade a um objeto ou
prática de modo a torná-lo o melhor exemplo possível da forma ou do gênero ao qual se considere
que pertença” (CHUEIRI, 1995, p. 104, tradução nossa).
político com a mesma teoria pudesse ter chegado à maioria dos resultados que
os precedentes relatam. (DWORKIN, 1999, p. 288).
sistema jurídico, de forma que suas decisões, mesmo quando contrárias à opinião
popular geral ou aos objetivos expressos dos legisladores, tenham suas justificativas
fundadas no todo integrado do sistema jurídico.
Assim, segundo Dworkin:
Logo, conclui-se que o juiz Hércules é a figura que resume as idéias de Dworkin
acerca da interpretação jurídica, ou seja, é a figura idealmente concebida para
promover o direito como integridade, justamente por encarnar os valores que dão
base à sua proposta paradigmática de direito.
7 Referências
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: Elementos da Filosofia
Constitucional Contemporânea. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2000.
______. Freedom´s Law: The Moral Reading of the American Constitution. Cambrige,
Massachusetts: Harvard University Press, 1996.
______. Levando os Direitos a Sério. Trad.: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
______. O Império do Direito. Trad.: Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
______. Uma Questão de Princípio. Trad.: Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
KELLY, Paul. Ronald Dworkin: Taking Rights Seriously. In: The Political Classics:
Green to Dworkin. Edited by Murray Forsyth and Maurice Keens-Soper. Oxford, New
York: Oxford University Press,1996.