Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
Com a entrada em vigor da Constituição de 1988 as comunidades com
presença de contingentes populacionais negros1 se tornaram parte das preocu-
pações do Estado brasileiro. Isto porque no aparato legislativo que veio à luz,
tais comunidades foram classificadas como “quilombolas” ou “remanescentes de
quilombos”. Mas como surgiu este fenômeno que podemos denominar como
“questão quilombola” no Brasil?
Por iniciativa de parlamentares ligados ao movimento negro a Constituição
contém um artigo que garante a titulação dos territórios destes grupos. Com
isso um conjunto amplo e crescente de comunidades com presença de popu-
lação negra, passou a demandar reconhecimento como “quilombola” e a se
organizar para o acesso à terra.
O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT)
que possibilita a garantia do aceso a terra por estes novos sujeitos é impreciso:
“Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras
é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos res-
pectivos.” Tal imprecisão se deve ao fato de não haver naquele momento uma
definição institucionalizada de quem seriam os “remanescentes” ou do que
seriam “comunidades dos quilombos”. Além disto quem é o sujeito do direito
ao território, o indivíduo ou a comunidade? Quais critérios devem ser usados
para demarcar as “suas terras”?
Tem início ai um debate acirrado sobre a operacionalização deste disposi-
tivo constitucional. A interpretação vitoriosa no primeiro momento estabeleceu
uma leitura restritiva na qual a definição de “remanescente de quilombos” ou
“quilombola” remetia às representações comuns no imaginário brasileiro, asso-
ciando estes grupos a fugas de escravos e criação de comunidades isoladas. Com
isto a titulação do território dependeria de estudos históricos que pudessem
“provar” a origem “quilombola” de uma dada comunidade.
Tais definições foram prevalecentes até o final do segundo governo
de Fernando Henrique Cardoso. Em paralelo a isto surge um movimento
“quilombola” gerado através da relação entre as comunidades e dois agentes
fundamentais: o movimento negro brasileiro (representado por diversas enti-
dades) e os cientistas sociais que começaram a tomar este grupo como objeto
de pesquisa. Uma vez criado o “movimento quilombola” este, em parceria com
os cientistas sociais, passa a pleitear a adoção pelo Estado de uma forma mais
ampla de interpretar o artigo 68 do ADCT. O pleito se voltava para a incorpo-
ração na categoria de “remanescentes de quilombos”, das comunidades com
2. Neste artigo utilizamos os termos “raça” e “racial” em sentido estritamente sociológico, ou seja,
como expressão da leitura social que pode ser feita de determinada aparência humana e não, obvia-
mente, em qualquer aspecto biológico.
Tabela 3: Opinião das lideranças entrevistadas sobre o ACS. Fonte: DataUFF, 2012.
Frequência Percentual
Suficiente 55 40,4
Insuficiente 75 55,1
Não funciona 6 4,4
Total 136 100,0
Frequência Percentual
Existe 111 68,9
Não existe 50 31,1
Total 161 100,0
Frequência Percentual
TELECENTRO
Suficiente 3 30,0
Insuficiente 5 50,0
Não funciona 2 20,0
Total 10 100,0
TELEFONE
Suficiente 13 24,1
Insuficiente 31 57,4
Não funciona 10 18,5
Total 54 100,0
de renda mensal (como veremos mais abaixo, somente 61% das famílias que
compõem as comunidades quilombolas estão incluídas no PBF). O Programa
Bolsa Família é financiado pelo governo federal, mas é operacionalizado na
ponta pelas prefeituras. Ai reside o problema, segundo a percepção de morado-
res das comunidades e lideranças. As prefeituras não fariam de forma adequada
o cadastramento das famílias de comunidades quilombolas o que resulta numa
situação onde, apesar de uma homogênea vulnerabilidade, nem todas as famí-
lias recebem o recurso mensal.
Já a Ação de Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais
Específicos (conhecida como “Cesta de Alimentos”) não atende grande parte
das comunidades que percorremos. Esta ação desenvolvida pelo governo fede-
ral envia trimestralmente quantidades especificas de alimentos não perecíveis
para famílias componentes de aldeias indígenas, comunidades de terreiros de
candomblé, acampamentos de trabalhadores rurais sem terra e comunidades
quilombolas que se encontram em situação de insegurança alimentar e nutri-
cional. A ideia central é suprir de forma emergencial demandas de alimentação
de grupos que apresentam dificuldades para adquirir no mercado ou produzir
alimentos, face a processos históricos de exclusão e/ou segregação de cunho
racial ou social. Neste caso não há interferências dos governos municipais, pois
o recurso é repassado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate
à Fome (MDS) para a Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) que
adquire os alimentos e faz a sua distribuição.
No caso das comunidades quilombolas este envio depende de uma iden-
tificação prévia por parte da Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão federal
que tem entre seus objetivos articular as políticas públicas voltadas para este
grupo. É a FCP que encaminha ao MDS a lista de comunidades em situação de
vulnerabilidade e que devem ser atendidas. O problema é que lá nas comuni-
dades as famílias e lideranças não possuem informações acerca deste processo.
Esta ausência de informações é notável tanto nas comunidades onde as ces-
tas chegam, quanto naquelas onde não chegam. Aqueles que as recebem não
sabem informar por que suas comunidades foram “escolhidas” e aqueles que
não as recebem não sabem como fazer para recebê-las, sabem somente que
outras comunidades recebem. Somente as lideranças locais que participavam
Podemos afirmar que nas comunidades onde havia presença mais genera-
lizada do Programa Bolsa Família e a entrega regular das cestas de alimentos
os moradores e as lideranças indicavam uma situação mais confortável neste
campo. O problema é que a combinação acima descrita está longe de ser geral.
As lideranças também reivindicam maior acesso a crédito rural e apoio
para a produção agrícola. Encontramos com muita frequência afirmações de
que neste campo também não ouve alteração positiva após a titulação.
Políticas/Programa/Serviços % de acesso
Programa Bolsa Família 61,0
Cestas de Alimentos 31,6
Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar 5,8
Programa de Aquisição de Alimentos Modalidade Compra Direta 0,6
ATER – Assistência Técnica Rural 1,3%
Frequência Percentual
Sim 24 14,9
Não 137 85,1
Total 161 100,0
Frequência Percentual
Sim 34 21,1
Não 126 78,3
NS/NR 1 ,6
Total 161 100,0
Mais uma vez, as lideranças apontam a falta de apoio por parte do Estado
como um forte fator explicativo, mas também se referem à falta de informações
e não deixam de lembrar das dificuldades organizacionais internas.
Nestas poucas comunidades onde encontramos projetos em desenvolvi-
mento, estes se articulavam principalmente em torno da produção agrícola,
do artesanato e de práticas culturais (para geração de renda), da preservação
ambiental e da educação.
A principal fonte de financiamento destes poucos projetos encontrados
em desenvolvimento vinha do governo federal – embora também tenhamos
encontrado, porém em menor medida, ações financiadas por governos esta-
duais, pelas prefeituras e pela iniciativa privada. Alguns destes projetos, no
entanto, foram desenvolvidos pelas próprias associações quilombolas, sem qual-
quer apoio externo.
Como apontamos na introdução deste artigo, estamos aqui discutindo ele-
mentos que têm origem nas impressões que obtivemos e dados que coletamos,
ao percorrer em 2011 um conjunto expressivo de comunidades quilombolas
que tinham como característica comum o fato de já terem recebido o título
coletivo de posse da terra. Esta condição, em tese deveria significar a cessação
Frequência %
Sim 117 72,7
Não 41 25,5
Total 158 98,1
NS/NR 3 1,9
Total 161 100,0
Via de regra isto ocorre por conta da presença de fazendeiros que não
foram ainda retirados. Algumas comunidades que já haviam recebido seus
títulos coletivos há mais de um ano, ainda assistiam o pleno funcionamento de
fazendas privadas nas áreas que agora lhes pertencia. A tabela abaixo resulta de
uma questão com múltiplas respostas, aplicada às lideranças. Observamos que
nas comunidades que não possuem acesso à totalidade do território titulado
o motivo, segundo quase 80% das respostas, é ainda a presença de ocupantes.
Frequências Percentual
Presença de ocupantes não quilombolas
34 79,1%
no território (fazendeiros, grileiros, etc.)
Precariedade e/ou inexistência de vias
5 11,6%
de acesso
Insegurança, medo, violência 1 2,3%
Reserva ambiental 3 7,0%
Total 43 100,0%
Tabela 16: Existência de espaço para culto religioso nas comunidades. Fonte:
DataUFF, 2012.
Frequência Percentual
Sim 135 83,9
Não 26 16,1
Total 161 100,0
Tabela 17: Tipo de espaço para culto religioso existente nas comunidades (múltiplas
respostas). Fonte: DataUFF, 2012.
Frequência Percentual
Igreja católica 119 58,0%
Templo protestante 66 32,2%
Espaços para culto de Religiões de Matriz Africana 19 9,3%
Centro espírita - Kardecista 1 ,5%
Total 205 100,0%
Conclusão
Mas então o que efetivamente mudou nestas comunidades após a emissão
do título coletivo definitivo de propriedade da terra? O contato com lideran-
ças e moradores das comunidades nos leva a afirmar que não há uma resposta
unânime para esta pergunta.
Em alguns pontos há maior indicação de melhora da situação, em outros a
percepção mais forte é de continuidade, percepção que vem em geral acompa-
nhada de enorme frustração. De qualquer forma sempre encontramos opiniões
muito divididas.
No que tange ao acesso à programa sociais a sensação mais forte nas
comunidades é de melhora na situação, o que obviamente se deve principal-
mente - em nossa avaliação - à capilarização do Programa Bolsa Família e
à distribuição das cestas de alimentos, que se não chegam a todas as comu-
nidades, alcançam muitas. Diríamos, portanto, que tal melhora no acesso
certamente se deve menos a titulação do território e mais ao fato de que
pelo crédito rural. Além disto, documentos de posse da terra sem validade legal
também inviabilizam financiamentos do PRONAF. Uma vez sanado este pro-
blema através da titulação, o acesso tende a ser mais fácil. No entanto, mais
um vez, esta não é uma percepção consensual entre os moradores das comu-
nidades quilombolas. Muitas lideranças reclamam da burocratização excessiva
para obtenção de crédito. Na mesma direção apontam a pouca informação que
lhes chega acerca de programas dos quais eles ouvem falar, mas não sabem
como acessar. Aqui o Programa de Aquisição de Alimentos e o ATER são os
exemplos mais claros.
Como reflexo do ponto acima, a percepção mais comum entre lideranças
e moradores em geral é que a titulação do território não gerou ampliação das
atividades produtivas das comunidades. Este elemento é sempre enfatizado
pelas lideranças, que demandam com firmeza que o Estado apoie iniciativas
de produção agrícola, pois estas possibilitariam a geração local de trabalho
e renda e o fim da dependência em relação a programas de transferência de
renda como o Bolsa Família.
Este ponto é importante: tanto lideranças quanto moradores em geral
parecem manter uma forte representação de autovalorização ligada a produ-
ção agrícola. Ou seja pensam sua identidade de trabalho em torno deste lugar
produtivo, o do homem que trabalha na terra, que planta para comer e ven-
der seus produtos excedentes. O fato desta situação não estar concretamente
ocorrendo em grande parte das comunidades insere uma sensação elevada de
ressentimento, pois a titulação do território – sonhado espaço para a reprodu-
ção das comunidades – seria para muitos o elo que faltava para a construção
de uma vida sustentada na agricultura e em atividades tangenciais a esta.
Os conflitos pela terra e as relações de belicosidade com as populações do
entorno não foram extintos, segundo o que percebemos ao nos relacionar com
lideranças e moradores, mas foram amenizados. O grande problema ainda é a
existência de fazendeiros instalados nos territórios titulados. Talvez por conta
desta situação as lideranças destas comunidades que já são tituladas, continuam
questionando fortemente a atuação do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária.
Referências
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In Barth, Fredrik. O guru, o
iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contracapa. 2000.
BRANDÃO, André; DA DALT, Salete; GOUVEA, Vitor. Comunidades Quilombolas no
Brasil: características socioeconômicas, processos de etnogênese e políticas sociais.
Niterói: EDUFF, 2010.
BRANDÃO, André; DA DALT, Salete; JORGE, Amanda Lacerda. Avaliação da situação
socioeconômica das comunidades quilombolas já tituladas: crônica de um
mau resultado anunciado. Trabalho apresentado no XVII Congresso Brasileiro de
Sociologia, Porto Alegre, Julho de 2015.
BRASIL. Decreto Nº 4887 de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o
procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e
titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos
de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Presidência
da República- Casa Civil. Brasília, DF, 2003. Disponível em: < http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/decreto/2003/D4887.htm> Acesso em: junho de 2011.
Recebido: 27/12/2016
Aceito: 20/06/2017