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Contra o fascismo, a tortura?

Por André Vaz

Professores antifascistas, entregadores antifascistas. Manicures, tosadores de cães,


policiais antifascistas. Almoxarifes e juízes antifascistas. Há pouco, proliferaram avatares
de apoio a mobilizações globais deflagradas a partir do assassinato de George Floyd,
homem negro, por um policial branco nos EUA. Sem se limitar à revolta diante de mais
esse ato de brutalidade, os protestos dirigiram-se mais amplamente aos diversos horrores
que constituem a atual barbárie humana e natural posta em marcha acelerada nos quatro
cantos da Terra.
À parte a discussão quanto à precisão técnica do termo fascismo para caracterizar o
cenário político atual de diversos países – e do termo antifascismo para designar os grupos
de oposição –, é louvável que haja manifestações contrárias às iniquidades que se
agravam e se multiplicam em curva exponencial na última década. Para o ponto de partida
da discussão que pretendo suscitar, porém, devo destacar algo que pode passar
despercebido: talvez afora o importante exemplo das torcidas organizadas, enorme parte
dos simpatizantes dessas causas manifesta com naturalidade seu apoio, antes de tudo,
identificando-se profissionalmente. A impressão é que se trata de uma credencial que
habilita a participar de um debate público – mesmo que para tomar o óbvio partido contra
a violência, a intolerância e a irracionalidade. A espontaneidade desse tipo de postura
tem, claro, uma explicação socialmente fundada. Para buscá-la, é preciso primeiro ter em
conta dois aspectos aparentemente contraditórios sob os quais o trabalho deve ser
considerado.
De um lado, ele é o que nos torna humanos e nos diferencia de seres determinados apenas
por impulsos biológicos. Para contornar a longa discussão quanto a ser o trabalho ou a
capacidade de comunicação aquilo que dá o impulso inicial para o desenvolvimento da
humanidade, é certo que os partidários de cada corrente reconhecem a importância do
complexo priorizado pela outra – o da linguagem ou o do trabalho, vale dizer, o de um
ato orientado a uma finalidade previamente colocada e materializado de acordo com uma
consciência a respeito do objeto sobre o qual recairá a ação. Assim, com a expressão
‘complexo linguagem-trabalho’, minha premissa segue válida: o trabalho é (cor-
)responsável pela transformação de um ser biológico em ser efetivamente social [1].
Nesse sentido, ele é fundante da humanidade (LUKÁCS, 2012).
Há, por outro lado, uma tendência muito abstrata também verificável em qualquer
formação social: a de reduzir progressivamente o tempo de trabalho. Seja para descobrir
uma forma mais prática de lascar uma pedra, seja para desenvolver um método mais
eficiente de organizar uma planta industrial para fabricar mais produtos em menos tempo
e com menos esforço, tal tendência opera não linear, mas por certo efetivamente, e
introduz um paradoxo: o ser humano foi feito pelo trabalho, mas não para o trabalho. Foi,
sim, feito para economizar tempo de trabalho e dedicar-se àquilo que o distingue cada
vez mais marcantemente de outros seres vivos: à arte, política, filosofia, ciência ou até ao
ócio (animais só repousam por exigência de preservação biológica). Tal tendência
exprime-se na etimologia da própria palavra trabalho, oportunamente resgatada por
Marildo Menegat (2011, p. 22): ela tem origem no termo latino tripalium, que designava
um instrumento de tortura para escravos e presos[2].
Essas facetas contraditórias do trabalho apresentam, no tipo de sociedade que
construímos, uma tensão adicional. Desde o final da idade média, consolidou-se e
generalizou-se uma estrutura social para cujo ingresso é pressuposto ostentar a condição
de trabalhador. Isso se relaciona ao tipo de riqueza que passou a predominar – em vez de
bens, naturais ou produzidos, que satisfaçam a necessidades humanas, a riqueza agora,
apesar de ter de materializar-se em bens/serviços, é o valor, constituído apenas pelo
trabalho [3]. Mais do que isso, os próprios laços sociais são constituídos pelo trabalho: a
única forma de relacionar-se com os outros seres humanos e, assim, satisfazer suas
próprias necessidades é pelos produtos do próprio trabalho que, em vez de serem
consumidos, convertem-se em meio para acessar os bens produzidos por outros.
Em grande medida, por um lado, isso constitui avanço civilizatório. Primeiro, pois os
laços sociais em formações pretéritas eram diretos, não fixados pelo valor/trabalho mas,
muitas vezes, fundados na violência explícita, como nas sociedades escravistas. Segundo,
porque esse tipo sociabilidade transformou tão radicalmente as técnicas produtivas que
se tornou factível pensar numa redução espetacular do tempo de trabalho para todos e
todas, dando assim vazão àquela tendência acima mencionada.
Por outro lado, porém, essa lógica que a tudo transforma também se reconstitui. Afinal,
uma sociedade é rica porque produz valor – ou seja, porque nela se trabalha mais –,
independente de haver bens em excesso para que a humanidade inteira leve uma vida
digna [4]. Assim, o torturante fantasma da obrigação ao trabalho segue ditando o rumo
de nossas vidas, definindo-nos como um passaporte para estabelecermos vínculos com a
sociedade. Mas esse espectro não é visível, e é justo essa habilidade mistificadora que
está na base de um tipo de dominação social muito peculiar, capaz de desorientar ações
individuais e coletivas de resistência a opressões. Estas dirigem-se – muitas vezes com
ganhos relevantes, mas dificilmente sustentáveis em longo prazo – a governos ou
governantes, empresas ou empresários, ou até, mais amplamente, a uma (ou frações da)
classe social dominante, mas não exatamente à compulsão abstrata e sem sentido ao
trabalho. Ao contrário, essa compulsão é por vezes tão negligenciada que as resistências
a reforçam, conscientemente ou não – lembremos respectivamente o desgastado dogma
do trabalhador como ‘sujeito revolucionário’ e os diversos trabalhadores antifascistas a
que aludi.
Um posicionamento decidido contra o trabalho se mostra ainda mais urgente porque a
mesma lógica que obriga ao trabalho exige que a produção seja constantemente
revolucionada para... demandar cada vez menos trabalho! O mecanismo que conduz a
isso, por faltar-nos espaço, não pode aqui ser detalhado, mas seu resultado é facilmente
constatado tanto pelas massas enormes e crescentes de pessoas que já nascem sem
qualquer possibilidade de ser integradas nessa lógica – e que por isso entopem favelas,
cadeias ou valas – quanto pelos espasmos dessa moribunda sociabilidade no sentido de
criar necessidades irracionais que possam ser atendidas pelo trabalho do qual se nutre, e
que ela extrai cada vez mais vorazmente dos que (sobre)vivem na franja dessa
sociabilidade [5].
Peço vênia ao frequentador dessa coluna interessado em direito, mas só após essa
digressão posso, finalmente, lançar duas palavras sobre o Estado. Esta instituição da
modernidade existe apenas como derivação dessa lógica. Nasceu com ela, sustenta-se
nela e a retroalimenta [6]. Desse modo, não só na origem dessa sociedade, mas ainda hoje
é fácil detectar manifestações do poder estatal que visam, pela força ou pelo
convencimento, a incutir ou, atualmente, insistir na revalidação dessa compulsão. Como
meu locus é a jurisdição, especificamente a penal, limito-me a um breve comentário sobre
ela, pois meu modesto intuito é só instigar reflexões.
Na execução penal, o caráter fantasmagórico dessa sociabilidade se exprime no
‘direito/dever’ ao trabalho intramuros quando, fora do cárcere, a regra já é a ausência de
trabalho ou o trabalho indigno. Dentro dele, a possibilidade de trabalhar é ínfima e,
quando há, não guarda qualquer traço de preparação para uma vida profissional em
liberdade – quase impossível para quem exibe o rótulo de egresso do sistema prisional.
No juízo de conhecimento, segue trivial a referência – quase uma tragicômica fala numa
peça teatral com atores do sistema penal – a ‘trabalho fixo’ como fator de peso para a
revogação de prisões. Toda essa retórica aparentemente vazia é loquaz no reforço à
associação entre trabalho e liberdade. Devemos demonstrar que ele é seu oposto
filosófico, i.e., necessidade – tortura, grilhão, sofrimento hoje desnecessário. O fantasma
que nos manieta a subjetividade, turvando-nos o sonho de outra sociabilidade, pode ser
vigoroso e ardiloso, mas não imbatível. É preciso compreendê-lo e afiar a crítica contra
ele, pois as condições objetivas para isto estão dadas: que não sejamos definidos pelo
trabalho que exercemos, mas pelos infinitos aspectos que de cada um nos faz um ser
humano particular.

André Vaz é juiz de direito no TJRJ, membro da AJD e do GEPOC-UFF (Grupo de


Estudos e Pesquisa em Ontologia Crítica da UFF) e doutorando em direito penal na UERJ.
Mas também é músico amador, gosta de gatos e de cinema (neste exato momento escreve
com tristeza pelo falecimento de Ennio Morricone), torce pelo Fluminense etc. etc. etc.

Notas
[1] Não vale como contra-argumento o exemplo do orangotango que caça com um graveto
em forma de arpão, ou do grupo de golfinhos que se comunica com alguma desenvoltura.
Tais habilidades são desenvolvidas em vinculação direta e inseparável da sobrevivência
biológica e são orientadas por um mero germe de consciência. Parafraseando importante
pensador do séc. XIX, o pior caçador e o mais automatizado operador de telemarketing
serão sempre superiores ao mais ágil orangotango e ao mais eloquente golfinho.
[2] O grupo Krisis (1999) o destaca em todas as principais línguas europeias, em que as
raízes do vocábulo “trabalho” sempre remontam a sofrimento, menoridade, submissão
etc.
[3] Mensurado em tempo. Mas explorar o papel crucial do tempo na caracterização dessa
sociedade não é possível nesse texto que, devo consignar, baseio largamente nas ideias
do historiador Moishe Postone, em especial sua obra Tempo, trabalho e dominação social
(2014).
[4] Prova desse contrassenso são as crises periódicas cada vez mais graves sem que haja
qualquer escassez.
[5] A cena do filme “Você não estava aqui” (K. Loach, 2020) em que o consumidor mal
se aguenta de ansiedade para receber o celular comprado já havia longos três dias ilustra
bem as necessidades que essa lógica engendra para se autorreproduzir.
[6] Embora sem enfatizar a sociabilidade mediada pelo trabalho, cf. no ponto HIRSCH,
2010 e, no Brasil, MASCARO, 2013.

Referências bibliográficas
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
KRISIS, Grupo. Manifesto contra o trabalho. [s. l.], 1999. Disponível em:
https://www.krisis.org/1999/manifesto-contra-o-trabalho/. Acesso em: 30 jun. 2020.
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
E-book.
MASCARO, Alysson. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013. E-book.
MENEGAT, Marildo. O giro dos ponteiros do relógio no pulso de um morto. Revista
EPOS, Rio de Janeiro, v. 2, n. 1, p. 0–0, 2011. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/epos/v2n1/03.pdf
POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo: Boitempo,
2014.

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