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Encruzilhadas da crítica

O que os críticos do passado têm a ensinar para os críticos literários e jornalistas culturais numa época
de muita velocidade e pouca reflexão

Eduardo Cesar Maia

“Não são os fatos que comovem os homens, mas as palavras”


(Epiteto, 55-135 d.C.)

Apesar da renovação criativa do jornalismo cultural que vem acontecendo no Brasil há alguns anos –
tanto da forma quanto do conteúdo –, no que diz respeito particularmente à crítica literária voltada ao
grande público, passamos por um período que classifico como de indefinição... E de tédio. Com essa
avaliação – não isenta de autocrítica – não quero jogar nossa própria sujeira no ventilador, só pretendo
compartilhar um incômodo. Nós, críticos, parecemos constrangidos desempenhando o papel que nos
cabe: o de assumir posicionamentos como indivíduos diante das obras literárias do nosso tempo.
Acostumamo-nos a abdicar da autonomia e personalidade em nome ou de teorias da moda (e até das
fora de moda, pois estamos no Brasil e recebemos tudo com atraso até hoje) ou do corporativismo das
rodas intelectuais e, pior ainda, da visão estreita dos preceitos “politicamente corretos”.
De fato, o debate público sobre a pertinência, a classificação e o valor de uma obra artística
literária – o que, de forma geral, denominamos crítica – nunca foi e não será um lugar consensual e
pacífico. Historicamente, dependendo dos modismos e influências de cada momento, a atividade do
crítico é vista com admiração ou receio, respeito ou desconfiança. As mesmas perguntas sempre voltam:
o que significa classificar uma obra como boa ou má? Como comprová-lo? Como persuadir os leitores?
Qual o papel da crítica hoje?

Saudades dos rodapés

“Sei que tudo é loucura, mas há certo método no que ele diz”
(Polônio, sobre Hamlet)

“Houve época em que intelectuais eloquentes e eruditos lançavam-se na primeira pessoa, discorrendo
ampla e digressivamente sobre as obras, ou a partir delas”, assim a jornalista e professora Cláudia Nina,
em seu panorâmico Literatura nos jornais: a crítica literária dos rodapés às resenhas, apresenta um dos
períodos mais ricos da crítica literária no Brasil. Tal modalidade em que os autores, a partir de sua
perspectiva individual e abordagem multidisciplinar, emitiam juízos de valor sobre livros, temas e
autores do momento, ficou conhecida como crítica de rodapé (o nome deriva da posição que esse tipo
de texto ocupava na diagramação dos jornais). Essa prática era taxada, de forma um tanto
simplificadora e mesmo pejorativa, como impressionista. O declínio desse gênero nos jornais no Brasil
está diretamente ligado ao momento em que a crítica acadêmica toma corpo no País com a promessa de
uma análise de caráter mais “teórico” e “científico”. Esses acadêmicos, vindos principalmente do
Exterior e das recém-criadas Faculdades de Filosofia, Ciências Sociais e Letras, traziam uma nova
linguagem, especializada, cheia de conceitos próprios, jargões e vocabulário teórico.
A crença num superior status metodológico da crítica universitária garantiu um período de
preeminência desses especialistas nos suplementos, revistas e jornais do País. Mas essa hegemonia não
durou muito: a forte influência do jornalismo americano, com os seus princípios de concisão,
objetividade e clareza, começava a ser implantado nos principais jornais brasileiros e ia diretamente
contra o estilo muitas vezes prolixo e permeado de jargões acadêmicos dos scholars. Além disso, nos
fins dos anos 1960, a profissão de jornalista foi regulamentada e os professores-críticos começaram a ser
vistos com reservas nas redações. Esse foi o início de um período de relativo distanciamento entre o
jornalismo e a crítica literária no País.
Uma das maiores condenações – em boa parte, justificada – relativa às críticas literária e
cultural praticadas ultimamente nos periódicos brasileiros se refere ao esvaziamento do debate de
ideias e das polêmicas entre os intelectuais. Os críticos “impressionistas” estavam constantemente
expostos ao risco: não se eximiam de avaliar o novo, de emitir juízos a respeito de escritores, fossem
iniciantes ou experientes, e também de se posicionar frente ao trabalho de outros críticos e intelectuais
em geral.
Cabe, agora, uma pergunta: será proveitoso nos voltarmos ao passado para tentar resolver
questões colocadas hoje? Acredito que sim, mas não devemos buscar repetir ou imitar modelos, senão
reavaliá-los à altura dos problemas do nosso tempo, selecionando aquilo que podemos absorver como
lição.
Acredito que o principal legado deixado por críticos como Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins,
Alceu Amoroso Lima, Wilson Martins (falecido recentemente), entre outros, é a compreensão de que a
atuação do crítico se assemelha a de um “publicista cultural”: um agente catalisador de mudanças – a
partir de sua perspectiva única e insubstituível de mundo – na visão que uma sociedade tem de seus
próprios valores. Toda necessidade latente no âmbito cultural, se estimulada, pode se converter em
valor legitimado socialmente. O crítico teria o poder, portanto, de operar mutações em nossa
sensibilidade frente às circunstâncias: “Valores considerados universais e assim propagados no universo
da cultura — o belo, o bem, o virtuoso —, nasceram um dia da ‘entranha espiritual’ de um indivíduo com
seus caprichos e humores”, escreveu o pensador espanhol Ortega y Gasset.
Outra herança dos “impressionistas” é a noção de que um verdadeiro crítico não pode ser
nunca, exclusivamente, um especialista: a complexidade da literatura e a relação dela com outros
fenômenos culturais exigem do analista uma visão ampla, ao mesmo tempo aprofundada, histórica e
complexa, no sentido de interdisciplinar.
Por último, podemos aprender com aqueles que nos precederam que a crítica – assim como a
própria literatura – não deve a obedecer a propósitos predeterminados ou normas apriorísticas que
independem do arbítrio individual, pois o crítico é mais um participante do jogo social em que todos os
valores, inclusive os seus próprios, estão em constante redefinição. Portanto, a prática crítica como
atividade social vai muito além da emissão de julgamentos e apreciações “corretas” sobre determinada
obra: ela faz parte de um jogo – retórico, mercadológico, moral e político – que é um dos combustíveis
mais importantes da vida cultural. Um erro de avaliação cometido por um crítico que se arrisca a
posicionar-se me parece ter mais valor do que a de uma resenha apática e anódina. Precisamos reavivar
o entusiasmo dos leitores.
Os novos desafios da crítica
O próprio jornalismo escrito passa por profundas adaptações. A concorrência dos meios eletrônicos de
comunicação, principalmente a televisão e a internet, obrigam a cada dia os jornais impressos a se
reinventarem. A notícia rápida, a informação ligeira e os fatos mais importantes do dia são muito mais
fácil e velozmente acessados através de mídias não-escritas. No papel, as pessoas parecem cada vez
buscar algo mais além de simples informações: querem reflexão, inteligência, análise e posicionamento
em textos mais embasados e opinativos.
Em relação especificamente à crítica literária praticada em jornais e revista de circulação mais
abrangente, atualmente, vivemos um período de ajustes: os acadêmicos se deram conta da necessidade
de buscar um público mais amplo e os jornais perceberam que podiam enriquecer suas páginas com a
colaboração do conhecimento universitário especializado. A condição para essa nova parceria é a
linguagem – os oriundos da academia estão tendo que adquirir a capacidade de se comunicar com um
público diversificado e não-especializado; os jornalistas, por sua vez, buscam aprofundar-se em suas
áreas de interesse através de pós-graduações e especializações.
Em face do atual momento de efervescência no mercado editorial brasileiro, o juízo de valor
sobre obras volta a assumir uma importância fundamental. A profusão de lançamentos à espera de
divulgação, qualificação e seleção abre um espaço natural em jornais e revistas para diversos modos de
abordagem literária – as resenhas, os press releases, os artigos acadêmicos e os ensaios eruditos
convivem em uma mesma publicação. Contudo, a velha e boa crítica, carregada das idiossincrasias e
posicionamentos pessoais, é material raríssimo no nosso jornalismo. Será que os leitores
contemporâneos repudiam esse tipo de crítica? Penso que não, e basta ver a grande influência e
repercussão que os bons críticos de cinema – muitos deles “impressionistas” – desfrutam hoje.
Vivemos uma época bastante diferente daquela em que os rodapés faziam as cabeças do
público leitor, e as obras literárias parecem não mais assumir as mesmas funções e ocupar os mesmo
espaços na vida das pessoas. A literatura perdeu a centralidade cultural que já possuiu; e está longe de
ter a mesma influência e a mesma representatividade. Essa repercussão social que a literatura já teve
pode ser retomada? Nesse aspecto, sou pessimista... Isso não significa que caímos na irrelevância, mas
que ocupamos outra posição num mercado cultural, que, com o desenvolvimento social, tecnológico e
econômico das duas últimas décadas, abriu-se e se tornou muito mais rico e complexo.
Falar em papel do crítico hoje, numa sociedade pluralista e democrática é falar de um
constante e inesgotável diálogo entre indivíduos – o escritor, o crítico e o leitor – que buscam nessa
forma particular de comunicação que é a literatura redescrever o mundo e seus valores, aumentando
seu repertório a cada leitura, a cada polêmica.
Após tantas correntes e debates acadêmicos sobre teoria e crítica literárias, principalmente
entre as décadas de 1960 e 1980, parece-me sensato afirmar que não há uma resposta final e
totalizante para o problema da crítica, porque ela se apresenta sob vários aspectos. Devemos desistir de
uma vez do sonho dogmático de uma crítica científica ou de promessas de avaliações definitivas e
inequívocas de obras literárias e culturais. O juízo estético é sempre contingencial.
O exemplo dos “impressionistas”, justamente pelo caráter subjetivista e personalista de suas
apreciações, parecem-me, mais do que nunca, um modelo a ser revisitado. Uma característica comum a
esses grandes intelectuais é a capacidade que tinham de subverter métodos, regras e didatismos em
nome de algo difuso e inconstante que poderia ser chamado de “verdade íntima” ou experiência singular
das coisas. O caráter individualista da crítica é fruto legítimo do teor essencialmente individualista da
própria criação literária e mesmo da sua recepção.
A crítica ainda é pertinente?
O crítico José Veríssimo (1857-1916) foi impiedoso na caracterização do ambiente literário de
sua época (nos seus Estudos de Literatura Brasileira): “Vista de perto e de dentro, a nossa vida
literária, por tantos aspectos ridícula e desprezível, assemelha-se a esse jogo de empurra, que os nossos
meninos, apertando-se em um mesmo banco uns sobre os outros, jogam esforçando-se por fazer pular
fora um dos companheiros”.
Quase um século depois, o veríssimo veredicto continua descrevendo perfeitamente boa parte
do nosso “meio literário”, não menos ridículo e desprezível do que o de outrora. Mas cabe aqui uma
diferenciação fundamental no que diz respeito à jocosa metáfora do “jogo de empurra” do crítico:
naquela época, ele percebia que, para ter destaque e reconhecimento, os literatos digladiavam-se de
forma uma tanto darwiniana. Hoje, no entanto, parece que o espírito do tempo é o do radical
democratismo (no que a palavra carrega de pior). Trata-se do jogo do “sempre cabe mais um”, em que
todo mundo é igual, compartilhando a mediocridade como valor positivo e o elogio mútuo indulgente.
Tudo isso está relacionado diretamente com a falta de autonomia e curiosidade intelectual: os
jovens jornalistas culturais se satisfazem com a superficialidade das resenhas; e os jovens acadêmicos,
com a mera imitação e reprodução de jargões dos teóricos da moda. Outro inimigo poderoso da crítica é
certo radicalismo de raiz historicista que, quando ultrapassa a defesa de um saudável pluralismo de
valores, chega ao paroxismo do relativismo completo ou, por outro lado (não menos danoso), ao império
da crítica “politicamente correta”.
No nosso caso, no Recife especificamente, hoje, a vida literária parece estar mais animada do
que nunca. Há feiras de livros, bienal, saraus, leituras, academias, união de escritores e coisas do
gênero. Mas nem tudo que reluz no mundo das letras é arte. Vida literária e literatura andam juntas,
mas não são a mesma coisa. O banquete é farto e animado, mas quase ninguém percebe que a parte da
comida está estragada...
A única forma de contestar essa realidade de aceitação do medíocre é o posicionamento
crítico. O jornalista Paulo Polzonoff, em artigo sobre o grande crítico caruaruense Álvaro Lins publicado
na Revista Continente, escreveu que “a qualidade dos escritores de um país tem uma relação muito
próxima com a qualidade dos críticos desse país”. Temos muito trabalho pela frente.

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