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Imagens do corpo

nas artes, na literatura


e no arquivo
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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Ricardo Vieiralves de Castro

Vice-reitor
Paulo Roberto Volpato Dias

EDITORA DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Conselho Editorial
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Erick Felinto
Glaucio Marafon
Italo Moriconi (presidente)
Ivo Barbieri (membro honorário)
Jane Russo
Lucia Bastos (membro honorário)
Maria Aparecida Ferreira de Andrade Salgueiro
Imagens do corpo
nas artes, na literatura
e no arquivo

Organização
Ana Chiara
Marcelo Santos
Eliane Vasconcellos

Rio de Janeiro
2015
Copyright © 2015, dos autores.
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em
parte, sob quaisquer meios, sem a autorização expressa da editora.

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Coordenadora Editorial Silvia Nóbrega de Almeida
Coordenadora de Produção Rosania Rolins
Assistente de Produção Mauro Siqueira
Supervisor de Revisão Elmar Aquino
Revisão Aline Canejo
Fernanda Veneu
Projeto Gráfico, Diagramação e Capa Heloisa Fortes

CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/NPROTEC
C822 Corpos diversos : imagens do corpo nas artes, na literatura e
no arquivo / organização Ana Cristina de Rezende Chiara,
Marcelo dos Santos, Eliane Vasconcellos. – Rio de Janeiro :
EdUERJ, 2015.
326 p.

ISBN 978-85-7511-372-1

1. Chiara, Ana Cristina de Rezende. 2. Santos, Marcelo dos.


3. Vasconcellos, Eliane. I. Arte. II. Corpo humano - Aspectos
sociais. III. Figura humana na arte.

CDU 7
Sumário

Apresentação.................................................................................................. 9
Morte, mudança, loucura.......................................................................11
Raúl Antelo
Elementos para uma dermatologia especulativa:
a erótica, a política e a ontologia da pele.........................................47
Hilan Bensusan
Um corpo que vaza: da série Autobiografias
e Autorretratos...............................................................................................59
Ana Chiara
Sem tirar o corpo fora..............................................................................81
Marcia Tiburi
Eros no claustro: sobre o amor freirático na poesia
satírica de Gregório de Matos............................................................ 101
Ana Lúcia M. de Oliveira
Francesca Woodman: fotografia e performatividade................ 119
Ana Bernstein
Arte e ativismo: o projeto fulminante de Nadia
Granados..................................................................................................... 141
André Masseno
A dança da dobra infinita: divagações sobre
o contemporâneo.................................................................................... 157
Ângela Maria Dias
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita.................. 179
Marília Rothier Cardoso
Corpos em carta....................................................................................... 195
Rodrigo Jorge
Arrancar a carne das coisas: canto-imagens servidas à
parede da memória................................................................................. 209
Leonardo Davino de Oliveira
Obra e fragmento: nota sobre os dois corpos no
arquivo de Graça Aranha..................................................................... 223
Marcelo Santos
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo”:
pontas de formas e impasses............................................................... 229
Marcus Alexandre Motta
As artes e o discurso da crise: em torno do
niilismo estético....................................................................................... 247
Evando Nascimento
Entre devaneios, sonhos e delírios:
de Carolina Maria de Jesus a Estamira........................................... 283
Daniele Ribeiro Fortuna
Depoimento do artista Hugo Denizart......................................... 305
Geraldo Motta
Sobre os autores....................................................................................... 315
Apresentação

O livro Corpos diversos: imagens do corpo nas artes, na


literatura e no arquivo reúne artigos de pesquisadores, artistas
e escritores das áreas de literatura, artes visuais e artes cênicas
apresentados durante o evento de mesmo nome, nos dias 21,
29, 30 e 31 de outubro de 2013, realizado com a parceria in-
terinstitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e da Fundação Casa de Rui Barbosa. O conjunto destes arti-
gos é formado por vários enfoques (fisicalidade, subjetividade,
novas tecnologias, políticas de gênero, arquivamento) sobre a
formação de um imaginário do corpo nas construções da cultu-
ra e das artes, cobrindo amplo espectro de possibilidades de se
pensá-lo em termos culturais, políticos e sociais. Desse modo,
propõe-se uma reflexão sobre novas formas e impasses aos quais
o corpo humano vem sendo submetido. Paralelamente, o in-
teresse pela vida do artista e pelo processo de composição de
suas obras – que parecem deixar à mostra os impasses existen-
10

ciais na construção pela instância material da escrita, ou de re-


gistros visuais a que também se nomeia “corpo” – repercute
na crítica e na teoria, rearticulando a escritura, o biográfico e
a cultura resguardados em arquivos. Composto por textos de
pesquisadores renomados nas áreas de Letras e Filosofia, o livro
propõe uma revisão crítica e uma atualização do pensamento
acerca do corpo. O interesse e as investigações em torno des-
te sempre movimentaram o pensamento, mas nunca estiveram
tão urgentes. Livros, cursos e pesquisas – com os mais variados
objetivos – proliferam no circuito das publicações acadêmicas:
o cuidado com o corpo e a saúde, meios de controle medicinais
e exercícios físicos são tomados, nos dias atuais, como direito,
dever, cidadania e inserção no mercado econômico, no sistema
político e social. Aliados, corpo, arquivo e discursos artísticos,
portanto, compõem um campo interessante com seus diversos
modos de recepção e debates, sendo necessário problematizar
esse imaginário do corpo e explorar a ontologia do sujeito con-
temporâneo.
Morte, mudança, loucura

Raúl Antelo1 (UFSC)

Corps-passoire, corps morcelé et corps-dissocié forment les trois


premières dimensions du corps schizophrénique (Deleuze, 1969).2
Un chef-d’oeuvre toujours se meut, par définition, à la
manière d’un fantôme (Derrida, 1993).3

O estudo de Roger Chartier, Cardênio entre Cervan-


tes e Shakespeare,
Shakespeare, trata de um espectro. Em meados do século
XVII, o livreiro Humphrey Moseley, arrolando as peças de te-

1
Professor Titular do Departamento de Língua e Literatura Vernáculas da Universi-
dade Federal de Santa Catarina.
2
“Corpo-coador, corpo-despedaçado e corpo-dissociado formam as três primeiras
dimensões do corpo esquizofrênico” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de
Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 90).
3
“Uma obra-prima sempre se move, por definição, à maneira de um fantasma”. (Der-
rida, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova interna-
cional. Tradução de Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 35).
12

atro sobre as quais ele teria direito de reprodução, menciona


uma, The History of Cardenio, by M. Fletcher & Shakespeare,
Shakespeare,
que tem suscitado a controvérsia de sua autoria ser ou não do
dramaturgo inglês, mediada certamente pela tradução de Qui-
xote,, assinada pelo coautor, Henry Fletcher, em 1612, na qual
xote
a história de Cardênio aparece inicialmente. A descoberta dessa
peça desconhecida sobre um louco apaixonado, Cardênio, de-
signa, segundo Chartier, as tensões essenciais que atravessam
a cultura letrada da Europa moderna. De um lado, ela mostra
as extremas mobilidade e instabilidade dos textos, constante-
mente revisados, adaptados e reescritos, atendendo a necessi-
dades variadas. No específico caso de Cardênio
Cardênio,, a ausência de
qualquer Urtext abole as limitações que normalmente impedem
as variações textuais ou as encarnações materiais da “mesma”
obra. Cardênio tornou-se, assim, um laboratório arquitextual
para múltiplas experimentações discursivas, tais como mudar
o título e a atribuição de uma peça existente, sem mudar seu
texto (a opção de Charles Hamilton e The second maiden tra-
gedy);
gedy ); reconstruir um texto do século XVIII, Double falsehood
or The distrest lovers (que teria sido a peça de Lewis Theobald,
adaptando, em 1727, a versão de Fletcher e Shakespeare sobre o
original de Cervantes); reencontrar a autenticidade histórica de
um texto adaptando-o a uma estética pós-moderna (a opção de
Christopher Marino e a adaptação punk de Double falsehood),
falsehood),
ou, ainda, propor uma reinvenção contemporânea dessa mesma
história (tal como praticada por Stephen Greenblatt e Charles
Mee, numa “reciclagem” atual de Cardênio
Cardênio).
).
Morte, mudança, loucura 13

No entanto, por outro lado, segundo Chartier, a mul-


tiplicação textual dos vários Cardênios atesta igualmente uma
estabilidade fundamental: a do nome do autor (Cf. Baptis-
ta, 2003). Todos, com efeito, reivindicam sua relação com
o autor primordial, Shakespeare, a quem a peça de 1613 foi
atribuída, mas somente como autoria compartilhada, e em
segunda instância, por Moseley, em 1653. Desse modo, po-
deríamos dizer que a atual obsessão por Cardênio é frequen-
tada pelo fantasma de Shakespeare, pela memória dele, diria
Borges,4 mesmo que a peça de 1613 tenha sido escrita em
colaboração com Fletcher, que foi talvez seu autor principal.
Ou mesmo que o texto de Shakespeare só seja legível apenas
na filigrana de sua posterior reescrita por Theobald e que todas
elas não passem, a rigor, de uma hipertextualização episódica
de Quixote.

A história de Cardênio perdido fascina como todas aquelas das


obras cujo desaparecimento cria uma falta intolerável. Entre o
século XVIII e hoje, o desejo de dar um texto, um corpo, uma
materialidade a esse fantasma obsedante inspirou os escritores,
os homens de teatro, os editores (Chartier, 2012, p. 266).
4
“De Quincey afirma que el cerebro del hombre es un palimpsesto. Cada nueva es-
critura cubre la escritura anterior y es cubierta por la que sigue, pero la todopoderosa
memoria puede exhumar cualquier impresión, por momentánea que haya sido, si
le dan el estímulo suficiente. A juzgar por su testamento, no había un solo libro, ni
siquiera la Biblia, en casa de Shakespeare, pero nadie ignora las obras que frecuentó.
Chaucer, Gower, Spenser, Christopher Marlowe. La Crónica de Holinshed, el Mon-
taigne de Florio, el Plutarco de North. Yo poseía de manera latente la memoria de
Shakespeare; la lectura, es decir la relectura, de esos viejos volúmenes sería el estímulo
que buscaba” (Borges, 1989, p. 396).
14

E o estudo do esquecimento traz, talvez, mais uma lição,


referida, na opinião de Chartier,

à discordância entre o tempo da composição do primeiro


Cardênio,, aquele encenado na corte da Inglaterra em 1613,
Cardênio
baseado em um livro aparecido em 1605, Don Quixote de
la Mancha,
Mancha, e o tempo de sua primeira ressurreição, sob o tí-
tulo de Double falsehood,
falsehood, no palco londrino do Teatro Real.
A adaptação de Theobald só existe, com efeito, porque ela
afirma sua fidelidade a Shakespeare. Ainda que essa atribuição
pudesse ter sido contestada pelos incrédulos, ainda que o pró-
prio Theobald duvidasse dela o bastante para afastar a peça de
sua própria edição de Shakespeare, certamente foi por ter sido
apresentada como uma relíquia shakespeariana que sua peça
foi escrita e montada (Chartier, 2012, p. 266).

Mas qual seria a relação entre a história e o espectro tex-


tual? Entre a norma e a onomastomância? Qual o papel da
acronia nesse jogo? Em grande parte, tudo o que lemos, por
exemplo, no capítulo XXV de Quixote, relaciona-se entre desejo
e escritura e, para tanto, é capital a figura de Cardênio. Ele se
apresenta a Quixote como um corpo quase nu:

Por cima de um pequeno teso, que diante dos olhos se lhe oferecia,
ia saltando um homem de penha em penha, e de mata em mata,
com estranha ligeireza. Figurou-se-lhe que ia nu, a barba negra e
espessa, cabelos bastos e revoltos, pés descalços e as pernas sem
Morte, mudança, loucura 15

cobertura alguma, senão só uns calções, ao que parecia, de veludo,


de cor ruiva, mas tão esfarrapados, que por muitas partes mos-
travam as carnes. Trazia a cabeça escoberta; e, ainda que passou
com ligeireza que já se disse, todas estas minudências viu e notou
o Cavaleiro da Triste Figura (Cervantes Saavedra, 2002, p. 145).5

Camille Corot captou muito bem, em 1868, esse mis-


to de sound and fury que sintoniza com outras telas suas do pe-
ríodo. E Paul Valéry, na sua esteira, dizia que Corot tinha to-
mado a natureza como modelo do valor poético singular: “La
Vérité est informe” (Valéry, 1960, p. 1.324)6. Portanto, qual é
o sofrimento de Cardênio que inspira essa captação turva da
natureza? O louco padece pelos amores não correspondidos
de Lucinda, cuja narrativa, nasce, justamente, de um pedido desta,
um livro de cavalaria de que, aliás, ela gostava muito, o Amadis de
Gaula,, e cuja leitura gostaria de empreender. Ao ouvir esta revela-
Gaula
ção, Dom Quixote não pôde se conter, interrompe Cardênio, lou-
va Lucinda por sua agudeza e convida Cardênio a acompanhá-lo
até sua casa, onde, ele diz, há mais de trezentos livros de cavalaria.
A interrupção acaba desviando Cardênio da narrativa de seu infor-
túnio e o conduz à lembrança de sua leitura de Amadis
Amadis.. De autor,

5
No original, em espanhol: “Por cima de una montañuela que delante de los ojos se le
ofrecía, iba saltando un hombre, de risco en risco y de mata en mata, con estraña lige-
reza. Figurósele que iba desnudo, la barba negra y espesa, los cabellos muchos y rabul-
tados, los pies descalzos y las piernas sin cosa alguna; los muslos cubrían unos calzones,
al parecer, de terciopelo leonado, mas tan hechos pedazos, que por muchas partes se le
descubrían las carnes. Traía la cabeza descubierta; y aunque pasó con la ligereza que se
ha dicho, todas estas menudencias miró y notó el Caballero de la Triste Figura” (I, 23).
6
“A Verdade é informe”.
16

Cardênio passa subitamente a leitor, mas, como sua memória não


é lá muito confiável, evoca uma “rainha Madasima”, mesmo que
nenhuma das Madasimas de Amadis seja soberana. Pior ainda, sua
convicção de que mestre Elisabat, escudeiro e médico do herói,
fosse concubino dela leva Dom Quixote à loucura, pois não supor-
ta que seja ofendida a virtude de uma rainha. Ele trata Cardênio,
então, como patife e mentiroso. O jovem responde violentamente
ao insulto, dá uma surra, tanto em Dom Quixote quanto em San-
cho, e depois segue para Serra Morena, deixando seu relato inaca-
bado. Isso é uma lástima porque, nessa aventura da Serra Morena,
temos, com efeito, um episódio que conota não apenas uma teoria
da literatura, mas, fundamentalmente, uma formulação da episte-
me moderna. Mas é, paradoxalmente, a lacuna, o silêncio, o que
detona nossa leitura.
O que acontece na Serra Morena? O capítulo abre-se,
para todos os efeitos, com a recriminação de Sancho por Qui-
xote ter dado crédito a Cardênio – “das palavras de um lou-
co ninguém devia fazer caso” – (Cervantes Saavedra, 2002, p.
154).7 Em nome da razão e do senso comum, Sancho enfileira,
portanto, uma série de psicomaquias ou disparates (Cf. Didi--
-Huberman, 2011, pp. 118-191), estereótipos do mais visceral
pensamento conservador ou de uma sabedoria popular, como
lhe apontou Ferdinand Denis (1834).

Eu cá não o profiro nem o penso – respondeu Sancho –,


os outros lá se avenham; e se maus caldos mexerem, tais os
7
No original, em espanhol: “No había para qué hacer cuenta de las palabras de un loco”.
Morte, mudança, loucura 17

bebam. Se foram amancebados ou não, contas são essas que já


dariam a Deus; não sei nada, das minhas vinhas venho. Que me
importam vidas alheias? Quem compra e mente na bolsa o sente;
quanto mais, que nu vim ao mundo, e nu me vejo; nem perco
nem ganho. E também que o fossem, que me faz isso a mim? Há
muitos que pensam encontrar toicinhos e não há nem estacas;
mas quem pode ter mão em línguas de praguentos, se nem Cristo
se livrou delas? (Cervantes Saavedra, 2002, pp. 154-155).8

Dom Quixote vai, portanto, à Serra Morena não só


movido pelo

desejo de atinar com o doido que me traz por estas partes,


como o que eu tenho de perfazer nelas uma façanha, com que
hei de ganhar perpétua fama, em todo o mundo conhecido; e
tal será que hei de com ela pôr o non plus ultra a tudo quanto
pode tornar perfeito e famoso um andante cavaleiro (Cervan-
tes Saavedra, 2002, p. 155).9

Quixote busca, em uma ação de vanguarda, ultraísta


ultraísta,,
seu próprio nome, sua signatura
signatura,, que Sancho lhe atribuíra
8
Em espanhol: “Ni yo lo digo ni lo pienso – respondió Sancho – : allá se lo hayan; con
su pan se lo coman. Si fueron amancebados, o no, a Dios habrán dado la cuenta. De mis
viñas vengo, no sé nada; no soy amigo de saber vidas ajenas; que el que compra y miente,
en su bolsa lo siente. Cuanto más, que desnudo nací, desnudo me hallo: ni pierdo ni
gano; mas que lo fuesen, ¿qué me va a mí? Y muchos piensan que hay tocinos y no hay
estacas. Mas, ¿quién puede poner puertas al campo? Cuanto más, que de Dios dijeron.”
9
Em espanhol: “[…] el deseo de hallar al loco, cuanto el que tengo de hacer en ellas
una hazaña con que he de ganar perpetuo nombre y fama en todo lo descubierto de
la tierra; y será tal, que he de echar con ella el sello a todo aquello que puede hacer
perfecto y famoso a un andante caballero”.
18

pouco antes, no capítulo XIX, pela primeira vez – Senhor


Cavaleiro da Triste Figura – (Cervantes Saavedra, 2002, p.
157),10 de tal sorte, diríamos, que encontrar o desejo e reconfi-
gurar a própria vida, em termos de ficção, são uma e a mesma
coisa. Com isso, na verdade, Dom Quixote traça, nessa inter-
venção, uma história da literatura a partir da loucura. A esse
respeito, poderíamos relembrar o que disse Michel Foucault
numa das suas primeiras abordagens ao assunto:

Le tragique de don Quichotte, il n’habite pas la folie même


du personnage, il n’est pas la force profonde de son lan-
gage. Le tragique dans Don Quichotte, il se situe dans le
petit espace vide, dans cette distance, parfois impeceptible,
qui permet non seulement aux lecteurs, mais aux autres
personnages, mais à Sancho, mais à don Quichotte lui-mê-
me finalement, d’avoir conscience de cette folie (Foucault,
2013, p. 32).11

E essa situação cria uma ressalva fundamental, segundo


Foucault, a de que

La folie peut parler mais à condition qu’elle se prenne elle-même


pour objet. C’est-à-dire qu’elle ne s’offre – au second degré, illi-
10
Em espanhol: “El caballero de la Triste Figura”.
11
“O trágico de Dom Quixote não habita, propriamente, na loucura do personagem,
ele não é a força profunda de sua linguagem. O trágico de Dom Quixote se situa no
pequeno espaço vazio, nesta distância, por vezes imperceptível, que permite não ape-
nas aos leitores, mas também aos outros personagens, a Sancho, e, finalmente, a Dom
Quixote ele mesmo, a consciência desta loucura.”
Morte, mudança, loucura 19

mitée à soi-même, elle dit bien “je” –, mais dans une sorte de
première personne dédoublée (Foucault, 2013, p. 45).12, 13

No episódio da Serra Morena, o desdobramento de Quixote


opera-se por meio de seu espelhamento em Cardênio e deste, por sua
vez, em Amadis de Gaula, esclarecendo que não pretende, porém,
com a penitência, “imitar a Roldão, Orlando ou Rotolando (que to-
dos estes três nomes tinha ele)” (Cervantes Saavedra, 2002, p. 156),14
senão traçar um simples esboço (“el
(“el bosquejo”)
bosquejo”) de uma aventura que
todo cavaleiro andante enfrenta: o envio de uma carta à amada.
Nada neste mundo conseguiria dissuadir Quixote dessa firme deter-
minação de

tão feliz e tão nunca vista imitação. Louco sou, e louco hei de
ser até que me tornes com a resposta de uma carta que por ti
quero enviar à minha Senhora Dulcineia; e se ela vier tal como
lho merece a minha lealdade, acabar-se-ão a minha sandice
e a minha penitência; e se for ao contrário, confirmar-me-ei

12
Em Foucault, o desdobramento ocorre também por meio de uma carta, a que Ar-
taud envia a Jacques Rivière, em 1923, recusando a proposta de publicar suas cartas
como literatura na revista mais prestigiosa da França, a Nouvelle Revue Française,
da qual Rivière era secretário de redação. “Pour quoi mentir”– pergunta-lhe Artaud
numa carta de 25 de maio de 1924. “Pourquoi chercher à mettre sur le plan littéraire
une chose qui est le cri même de la vie”. E com esse grito Foucault procede a realizar
uma montagem temporal, lendo, em contiguidade, o século XVII de Cervantes e a
vanguarda dos anos 1920, com Artaud.
13
“A loucura pode falar, mas sob a condição de que ela se tome a si mesma por objeto.
Isto quer dizer que ela não se abre - em segundo grau, ilimitada a si mesma, ela chega
a dizer ‘eu’ -, mas em uma espécie de primeira pessoa desdobrada.”
14
Em espanhol: “[…] imitar a Roldán, o Orlando, o Rotolando (que todos estos tres
nombres tenía)”.
20

louco deveras, e assim não sentirei nada (Cervantes Saavedra,


2002, p. 156).15

Ler é ir rolando leituras e, como aponta Benjamin, San-


cho não faz outra coisa do que reler a si próprio – “im Nachle-
sen des eigenen”. E se, onde há Nachlesen
Nachlesen,, lê-se Nachleben
Nachleben,, uma
vida póstuma, não custa concluir, à maneira de Samuel Weber
(2008), que relemos Benjamin, que leu Kafka, que leu Cervan-
tes, não para afirmar uma mímese discursiva, mas para propor,
em suma, uma aisthesis textual. Se Sancho trouxer a resposta
desejada, a aisthesis será sublime; se não a tiver consigo, a sen-
sibilidade será abjeta. A carta, como procedimento, está asso-
ciada, como vemos, ao conflito babélico em que “deve ser tudo
coisas de vento e mentira, e tudo pastranha, ou patranha, ou
como melhor se chama” (Cervantes Saavedra, 2002, p. 157).16
Contrariando o senso comum, há, contudo, uma estratégia da
verdade, dissimulada em Quixote, quem de resto pretende que

pareça bacia o que real e verdadeiramente é elmo de Mambrino;


e a causa vem a ser: porque, sendo ele traste de tanto apreço, todo
o mundo, se o conhecesse, me perseguiria para mo tirar; como

15
Em espanhol: “[…] tan felice y tan no vista imitación. Loco soy, loco he de ser
hasta tanto que tú vuelvas con la respuesta de una carta que contigo pienso enviar a
mi señora Dulcinea; y si fuere tal cual a mi fe se le debe, acabarse ha mi sandez y mi
penitencia; y si fuere al contrario, seré loco de veras, y, siéndolo, no sentiré nada”.
16
Em espanhol: “[…] todo debe de ser cosa de viento y mentira, y todo pastraña,
o patraña, o como lo llamáremos”. Em janeiro de 1934, a revista Espírito novo, de
orientação comunista, resenha o D. Quixote de Pabst, destacando ter o diretor alemão
misturado “até o pathético, o sublime e o ridículo” (L.M.S.,1934, p. 45).
Morte, mudança, loucura 21

porém entendem que não passa de bacia de barbeiro, não fazem


caso de se matar por ele, como bem o mostrou por sua parte o
que diligenciou quebrá-lo, e o deixou no chão em vez de o levar;
conhecera-o ele, e veríamos se o deixava assim. Guarda-o, guar-
da-o, amigo, que por enquanto não me faz míngua, antes estou
para largar todas estas armas, e ficar nu como quando nasci, se é
que me não der na vontade imitar mais a Roldão do que a Ama-
dis, no tocante à penitência (Cervantes Saavedra, 2002, p. 157).17

Para tanto, Dom Quixote escolhe como cenário dessa pro-


vação uma montanha e, nela, uma gruta que, em muito, conci-
de com a khôra de Timeu
Timeu,, esse local que só ele, exclusivamente,
tem lugar e onde, ao mesmo tempo, coincidem tanto o próprio
lugar quanto o não lugar.18 A khôra semiótica é, com efeito, o
lócus fantasmático, que hospeda diferentes inserções duais e onde
a desconstrução, aliás, irá detectar o contexto como construção
verbal de referentes. Conforme se lembra, o conceito serviu a Ju-
lia Kristeva, logo após 1968, para teorizar a revolução da lin-
guagem poética, em curso no fim do século XIX. O signo, a
17
Em espanhol: “[…] parezca bacía a todos lo que real y verdaderamente es yelmo
de Mambrino, a causa que, siendo él de tanta estima, todo el mundo me perseguirá
por quitármele; pero, como ven que no es más de un bacín de barbero, no se curan
de procuralle, como se mostró bien en el que quiso rompelle y le dejó en el suelo sin
llevarle; que a fe que si le conociera, que nunca él le dejara. Guárdale, amigo, que por
ahora no le he menester; que antes me tengo de quitar todas estas armas y quedar
desnudo como cuando nací, si es que me da en voluntad de seguir en mi penitencia
más a Roldán que a Amadís.”
18
“La memoria del hombre no es una suma; es un desorden de posibilidades indefi-
nidas. San Agustín, si no me engaño, habla de los palacios y cavernas de la memoria.
La segunda metáfora es la más justa. En esas cavernas entré” (Borges, 1989, p. 397).
Françoise Davoine (2012) também aponta a gruta como khôra em Don Quijote, “para
combatir la melancolía”.
22

seu ver, conheceria duas modalidades, a semiótica e a simbólica.


A simbólica pressupõe identificação de um sujeito e seus obje-
tos. A semiótica, entretanto, lógica e cronologicamente anterior
à simbólica, está constituída por funções elementares que orien-
tam o sujeito em direção à mãe, ao corpo da mãe. Não há, nes-
se âmbito, uma relação sujeito-objeto, nem existe, a rigor, uma
ordem ou sucessão, muito embora se possa falar de um ritmo,
de um processo portador desse ritmo e, por outro lado, sujeito
às determinações biológicas e sociais mediadas pelo corpo ma-
terno. O conceito de khôra não se esgota, porém, em Kristeva.
Pouco antes, Derrida o retomara também, em A disseminação,
disseminação,
como suplemento do phármakon
phármakon,, com a ressalva, porém, de que,
enquanto, em A farmácia de Platão,
Platão, o phármakon (remédio e/
ou veneno) é o indecidível por excelência, que atravessa toda a
especulação do autor, a khôra só é mencionada no fim do texto,
tangencialmente (Derrida, 1972, pp. 184-186).19 Relembremos,
além do mais, que, em Timeu
Timeu,, de Platão, a khôra é definida como
um terceiro gênero, irredutível, difícil e obscuro. A khôra não é
sensível nem inteligível, mas pertence a um triton genos (Timeu
Timeu,,
48e, 52a). Quais seriam esses três gêneros? O primeiro é o Mo-

19
Retomará a questão em Khôra (Paris, Galilée, 1993) e ao discutir a diferença sexual em
Heidegger quando aponta que “le mot ‘Geschlecht’ se chargera de toute sa richesse poly-
sémique: sexe, genre, famille, souche, race, lignée, génération. Heidegger suivra dans la
langue, à travers des frayages irremplaçables, entendons inaccessibles à une traduction
courante, à travers des voies labyrinthiques, séduisantes, inquiétantes, l’empreinte de
chemins souvent fermés. Encore fermés, ici, par le deux. Deux, cela ne peut compter,
semble-t-il, que des sexes, ce qu’on appelle des sexes”. Mais tarde, Heidegger interpretara
“la décomposition et la désessentialisation (Verwesung)”, como “une certaine corruption
de la figure de l’homme. Il s’agira encore, plus explicitement cette fois, d’une pensée de
‘Geschlecht’ ou du ‘Geschlecht’ ” (Derrida, 1983, p. 577; Apter, 2005, pp. 80-83).
Morte, mudança, loucura 23

delo, considerado inteligível e imutável. O segundo, por sua vez,


é a cópia do Modelo, que, por estar sujeita ao nascimento é, por-
tanto, perecível. Até aí o esquema é o da mímese e o da dialética
vida / morte, logos / mythos.
mythos. Mas o terceiro, enfim, que nos ocupa,
não é só ultrapassamento, mas, basicamente, deslocamento desse
binarismo, e até mesmo o suporte ou matriz de todo nascimento.
Às vezes, a khôra não parece ser nem isso nem aquilo; outras,
porém, parece ser tanto isso como aquilo. A khôra é estranha à
ordem do paradigma, mas participa, no entanto, do inteligível de
modo muito complexo, um modo aporético ((aporôtata aporôtata,, 51b).
Exclusão e participação encontram-se equiparadas na khôra khôra..
No prefácio de Timeu
Timeu,, com efeito, Platão explica que, para conce-
ber o lugar, é preciso antes, por uma abstração quase irrealizável,
destacar os objetos do lugar que eles ocupam, do qual se conclui
que só podemos nos representar o lugar em si por metáforas. A
estratégia platônica para representar a khôra é, em consequência,
muito variada. É o local, a região, o território, mas também a
posição, bem como as figuras (imagens, comparações, metáfo-
ras): o receptáculo (dekhomenon)
(dekhomenon),, a mãe, o molde, a matriz. Por
isso, é bom dar à khôra sempre o mesmo nome, pois, como ela
não perde suas propriedades, isso significa que, na verdade, ela
não se transforma. Mesmo recebendo em si todas as coisas, a
khôra não se assemelha, contudo, àquilo que ela recebe e per-
manece, assim, informe (amorphon
(amorphon)). E o que vale para o espaço
aplica-se também ao tempo. A khôra é anacrônica; ela introduz
a acronia no ser, ou antes, é mesmo a acronia do ser. Torna ana-
crônico o ser. Daí Derrida adotar o critério de que a khôra não
24

é nem geradora nem engendrada, e não pode ser tomada como


sistema. A khôra não nos possibilita concluir que o receptácu-
lo seja uma espécie de mãe, nem que o paradigma é um pai,
nem mesmo que a natureza intermediária entre eles seja uma
criança. A khôra
khôra,, não sendo nem permitindo o sistema, não passa
de uma figura
figura,, um esquema. O triton genos não é, a rigor, um
genos, porque é singular, nomeia um indivíduo único e delimi-
ta um sítio à parte, afastado, recuado, separado.20 A khôra
khôra,, em
suma, é dissimétrica e mostra que há, portanto, entre o semi-
21

ótico e o simbólico, tamanha descontinuidade, que só podería-


mos identificar a própria khôra com uma heterogênese à qual é
possível transgredir, mas tão somente em ocasiões muito precisas,
na fantasia ou na arte. Caso contrário, sobrevém a loucura. Por-
tanto, é muito sintomática a escolha de dom Quixote pela gruta
da Serra Morena. Nela se manifesta um corpo que sofre:

Chegaram ao pé de um alto monte, que entre outros que o


rodeavam se erguia solitário, como se fora ali uma esguia ro-
cha talhada por mão. Corria-lhe pela falda um manso arroio,
e por todas as partes à volta se lhe alastrava um prado tão
20
“La memoria de Shakespeare no podía revelarme otra cosa que las circunstancias
de Shakespeare. Es evidente que éstas no constituyen la singularidad del poeta; lo que
importa es la obra que ejecutó con ese material deleznable”. (Borges, 1989, p. 397)
21
“La force de l’image poétique suppose une contradiction de même espèce: elle s’ap-
puie sur une symétrie, sur un invariant, qui est ici ressemblance. Mais si la simili-
tude énoncée est évidente, elle tombe à plat. Elle n’apporte ni étonnement ni plaisir.
Mieux, elle déçoit. Au contraire, si elle scandalise en un premier temps, à cause de
l’éloignement et du caractère apparemment incompatible des termes confrontés, et si
l’imagination pourtant est ensuite amenée à reconnaître la justesse du rapport, la joie
de la découverte est à la mesure de la disparité surmontée” (Caillois, 1976, p. 280).
Ver também Sarduy (1999).
Morte, mudança, loucura 25

verde e viçoso, que era alegria dos olhos. Havia por ali mui-
tas árvores montesinas e algumas plantas e flores que torna-
vam o lugar sobremodo aprazível. Foi este o sítio que para a
sua penitência elegeu o Cavaleiro da Triste Figura. Apenas
o avistou, rompeu em altas exclamações, dizendo como fora
de si: – Este é o lugar, ó céus! Que eu escolho para chorar a
desventura em que vós mesmos me haveis posto. Este é o sí-
tio em que o tributo dos meus olhos há de aumentar as águas
daquele arroio, e meus contínuos e profundos suspiros estre-
mecerão sem descanso as folhas destas árvores selváticas, em
testemunho da pena que o meu coração perseguido padece
(Cervantes Saavedra, 2002, p. 157).22

A entrada de Quixote na loucura, o ultrapassamento da


soleira tética, histórica, para advir à khôra semiótica, anacrôni-
ca, ocorre na forma de uma invocação às forças do Mal:

Ó, vós outros, quem quer que sejais, rústicos deuses, que nesta
desconversável paragem habitais, ouvi as queixas de tão des-
ditoso amante, a quem uma longa ausência e uns fantasiados
22
Em espanhol: “Llegaron, en estas pláticas, al pie de una alta montaña que, casi como
peñón tajado, estaba sola entre otras muchas que la rodeaban. Corría por su falda un
manso arroyuelo, y hacíase por toda su redondez un prado tan verde y vicioso, que
daba contento a los ojos que le miraban. Había por allí muchos árboles silvestres y
algunas plantas y flores, que hacían el lugar apacible. Este sitio escogió el Caballero
de la Triste Figura para hacer su penitencia; y así, en viéndole, comenzó a decir en voz
alta, como si estuviera sin juicio: -Éste es el lugar, ¡oh cielos!, que diputo y escojo para
llorar la desventura en que vosotros mesmos me habéis puesto. Éste es el sitio donde
el humor de mis ojos acrecentará las aguas deste pequeño arroyo, y mis continos y
profundos sospiros moverán a la contina las hojas destos montaraces árboles, en testi-
monio y señal de la pena que mi asendereado corazón padece.”
26

zelos hão trazido a lamentar-se nestas asperezas, e a queixar-se


da dura condição daquela ingrata e bela, fim e remate de toda
a humana formosura! Ó, vós outras, napeias e dríades, que
usais habitar no mais cerrado dos montes, assim os ligeiros e
lascivos sátiros de quem sois amadas, posto que em vão, não
perturbem jamais o vosso doce sossego; ajudai-me a deplorar
a minha desventura, ou pelo menos não vos canseis de ma
ouvir! Ó, Dulcineia del Toboso, dia da minha noite, glória
da minha pena, norte dos meus caminhos, estrela da minha
ventura (assim o céu ta depare favorável em tudo que lhe
pedires!), considera, te peço, o lugar e o estado a que a tua
ausência me conduziu, e correspondas propícia ao que deves
à minha fé! Ó, solitárias árvores, que de hoje em diante fica-
reis acompanhando a minha solidão, daí mostras com o mo-
vimento das vossas ramarias de que vos não anoja a minha
presença! Ó, tu, escudeiro meu, agradável companheiro em
meus sucessos prósperos e adversos, toma bem na memória
o que vou fazer à tua vista, para que pontualmente o repitas
à causadora única de tudo isto! (Cervantes Saavedra, 2002,
pp. 157-158).23
23
Em espanhol: “¡Oh vosotros, quienquiera que seáis, rústicos dioses que en este
inhabitable lugar tenéis vuestra morada, oíd las quejas deste desdichado amante, a
quien una luenga ausencia y unos imaginados celos han traído a lamentarse entre estas
asperezas, y a quejarse de la dura condición de aquella ingrata y bella, término y fin
de toda humana hermosura! ¡Oh vosotras, napeas y dríadas, que tenéis por costumbre
de habitar en las espesuras de los montes, así los ligeros y lascivos sátiros, de quien
sois, aunque en vano, amadas, no perturben jamás vuestro dulce sosiego, que me
ayudéis a lamentar mi desventura, o, a lo menos, no os canséis de oílla! ¡Oh Dulcinea
del Toboso, día de mi noche, gloria de mi pena, norte de mis caminos, estrella de mi
ventura, así el cielo te la dé buena en cuanto acertares a pedirle, que consideres el lugar
y el estado a que tu ausencia me ha conducido, y que con buen término correspondas
Morte, mudança, loucura 27

Mas, dado que Quixote escolhe esse lugar em virtude da


sua identificação com Cardênio, caberia perguntar-se, afinal de
contas, quem, na verdade, diz eu nessa passagem? É Dom Qui-
xote ou Cardênio?24 Quem testemunha o não humano do ho-
mem? Para além desse impasse, o texto prepara-nos, em compen-
sação, para essa pouco confortável identificação de Sancho com o
senso comum e, como ele considera o abandono de Quixote, em
sua vida nua, em penitência, no íntimo da montanha, como uma
sorte de purgatório, o criado diz, enfim: “No inferno nulla est reten-
cio”” (Cervantes Saavedra, 2002, p. 159).25 Em outras palavras, San-
cio
cho quer dizer nulla est redemptio, porém, diz retencio e ainda teima:

“Retencio
Retencio”” é – respondeu Sancho – que quem está no inferno
nunca mais de lá sai, nem pode; em Vossa Mercê poderá ser às
avessas, ou mau caminheiro serei eu, a não levar esporas com
que esperte o Rocinante. Ponha-me eu a meu salvo em Tobo-
so, e na presença da minha Senhora Dulcineia, que eu lhe direi
tais coisas das necedades e loucuras (que tanto monta uma coi-
sa como outra) que Vossa Mercê tem feito e fica fazendo, que
a porei mais macia que uma luva, ainda que a ache mais dura
que um sobreiro. Com a sua resposta, que há de ser doce como

al que a mi fe se le debe! ¡Oh solitarios árboles, que desde hoy en adelante habéis de
hacer compañía a mi soledad, dad indicio, con el blando movimiento de vuestras
ramas, que no os desagrade mi presencia! ¡Oh tú, escudero mío, agradable compañero
en más prósperos y adversos sucesos, toma bien en la memoria lo que aquí me verás
hacer, para que lo cuentes y recetes a la causa total de todo ello!”
24
Segundo Agamben, “Sull´impossibilità di dire Io. Paradigmi epistemologici e para-
digmi poetici in Furio Jesi”, publicado em Cultura tedesca e mais tarde recolhido em
La potenza del pensiero Saggi e conferenze.
25
Em espanhol: “Quien ha infierno […] nula es retencio”.
28

um mel, voltarei por ares e ventos que nem bruxo, e o tirarei


a Vossa Mercê deste purgatório, que, se não é inferno, bem o
parece, visto haver esperança de saída, a qual como já disse,
não a têm os que estão no inferno; tenho que Vossa Mercê não
dirá agora o contrário (Cervantes Saavedra, 2002, p. 159).26

A arte seria a restauração do tempo primigênio e, por-


tanto, redenção,27 mas, nesse sentido, ela suspenderia o tempo
26
Em espanhol: “Retencio es – respondió Sancho – que quien está en el infierno
nunca sale dél, ni puede. Lo cual será al revés en vuestra merced, o a mí me andarán
mal los pies, si es que llevo espuelas para avivar a Rocinante; y póngame yo una por
una en el Toboso, y delante de mi señora Dulcinea, que yo le diré tales cosas de las
necedades y locuras, que todo es uno, que vuestra merced ha hecho y queda haciendo,
que la venga a poner más blanda que un guante, aunque la halle más dura que un
alcornoque; con cuya respuesta dulce y melificada volveré por los aires, como brujo,
y sacaré a vuestra merced deste purgatorio, que parece infierno y no lo es, pues hay
esperanza de salir dél, la cual, como tengo dicho, no la tienen de salir los que están en
el infierno, ni creo que vuestra merced dirá otra cosa.”
27
“Nella cultura dell´età moderna, filosofia e critica hanno ereditato l’opera profetica
della salvezza (che già nella sfera sacra era stata affidata all’esegesi); poesia, tecnica e arte,
quella angelica della creazione. Nel processo di secolarizzazione della tradizione religio-
sa, tuttavia, essa hanno progressivamente smarrito ogni memoria del rapporto che in
quella cosí intimamente le legava. Di qui il carattere complicato e quasi schizofrenico
che sembra segnare la loro relazione. Dove, un tempo, il poeta sapeva dar conto della
sua poesia (‘Aprirla per prosa’, diceva Dante) e il critico era anche poeta, il critico, che ha
perduto l’opera della crazione, si vendica su di essa pretendendo di giudicarla; il poeta,
che non sa piú salvare la sua opera, sconta questa incapacità consegnandosi ciecamente
alla frivolezza dell’angelo. Il fatto è che le due opere, in apparenza autonome ed estranee,
sono, in realtà, le due facce di uno stesso potere divino e, almeno nel profeta, coincidono
in un unico essere. L’opera della creazione è, in verità, solo una scintilla che si è staccata
dall’opera profetica della salvezza e l’opera della salvezza soltanto un frammento della
creazione angelica che è diventato consapevole di sé. Il profeta è un angelo che, nello
stesso impulso che lo spinge all’azione, avverte improvvisamente nel vivo della sua carne
la spina di un’esigenza diversa.” (Agamben, 2009, pp. 12-13) E mais adiante: “L´opera
della salvezza coincide qui punto per punto con l’opera della creazione, che disfa e de-
crea nell’istante stesso in cui la porta e accompagna nell’essere. Non c’è gesto né parola,
non c’è colore né timbro, non c’è desiderio né sguardo che la salvezza non sospenda e
renda inoperosi nel suo amoroso corpo a corpo con l’opera. Quel che l’angelo forma,
produce e carezza, il profeta riconduce all’informe e contempla. I suoi occhi vedono
il Salvo, ma solo in quanto si perde nell’ultimo giorno. E come, nel ricordo, l’amato è
Morte, mudança, loucura 29

histórico e postularia o tempo messiânico. No entanto, assim


raciocinando, nesse tempo após o tempo, na acronia da khôra khôra,,
não haveria chance alguma de ambivalência. Tudo seria trans-
parente. Essa lição está, porém, apagada, obliterada porque re-
demptio é, portanto, conceito pós-histórico e sua ambiguidade
pertence, assim, à história e ao moderno, seguindo o ritmo fou-
caultiano de vigiar e punir nesta vida. Mas, com sua teimosia
pela retencio
retencio,, Sancho nos afirma, além disso, que há saída para a
loucura. A arte possibilita a efetiva passagem da khôra semiótica
para a ordem simbólica – daí que Sancho não se resigne a não
poder inscrever o nome do pai em seu patrão. Todavia, para
Quixote essa saída pertence, exclusivamente, à esfera da arte e
não se conecta com a vida. Como, logo a seguir, não acha papel
em que escrever a tal carta para Dulcineia, o cavaleiro conclui:

Tudo será mencionado – disse o cavaleiro. – Que bom não se-


ria se, à falta de papel, a pudéramos escrever, como os antigos o
faziam, em folhas de árvores, ou numas tabelas enceradas! Mas
tão dificultoso seria achar-se agora isso, como papel. Mas em
bem me lembra: onde se pode otimamente escrever a carta é
no livrinho de memórias que foi de Cardênio, e tu terás cuida-
do de a mandar copiar para papel, com boa letra, no primeiro
lugar que encontres onde haja mestres de meninos de escola;
ou, quando não, qualquer sacristão ta copiará; lá de escrivão

tutto improvvisamente presente, ma a patto di essere disincarnato in un’immagine, cosí


l’opera della creazione è ora in ogni suo dettaglio intimamente trapunta di non-essere”
(Agamben, 2009, p. 16-17).
30

Deus nos livre, esses amigos fazem letra processada, que nem
Satanás a decifra (Cervantes Saavedra, 2002, pp. 159-160).28

Não há dúvida de que, para Quixote, a instância da


Dama é a instância da letra, dela depende a originalidade enig-
mática de todas as marcas que ligam um acontecimento com
sua fonte. Mas, para tanto, é indispensável também reter a sin-
gularidade absoluta de um acontecimento (o envio da carta) e
uma assinatura (declinada, não efetivada), ou seja, preservar, o
que é impossível, a reprodutibilidade pura de um acontecimen-
to puro. Contudo, paradoxalmente, a condição de possibilidade
desses efeitos (que a carta chegue, de fato, às mãos da desti-
natária) é, simultaneamente, mais uma vez, a condição de sua
impossibilidade, ou seja, a impossibilidade da absoluta pureza
e de que uma ação tenha um único valor imediato. Por isso, é
extremamente significativa a hipercorreção simbólica de muitos
editores que interpretam um determinado significante, no tex-
to, como desvio semiótico, como súbita irrupção da loucura do
autor, quando ele não passa de um mero ato falho, sorrateiro e
irônico, do protagonista. Vejamos.
28
Em espanhol: “Todo irá inserto – dijo don Quijote – ; y sería bueno, ya que no hay
papel, que la escribiésemos, como hacían los antiguos, en hojas de árboles, o en unas
tablitas de cera; aunque tan dificultoso será hallarse eso ahora como el papel. Mas ya
me ha venido a la memoria dónde será bien, y aun más que bien, escribilla: que es en
el librillo de memoria que fue de Cardenio; y tú tendrás cuidado de hacerla trasladar
en papel, de buena letra, en el primer lugar que hallares, donde haya maestro de escue-
la de muchachos, o si no, cualquiera sacristán te la trasladará; y no se la des a trasladar
a ningún escribano, que hacen letra procesada, que no la entenderá Satanás.” Derrida
aborda a vinculação entre carta e verdade em La carte postale, em particular, no ca-
pítulo sobre “Le facteur de la verité”, isto é, o fator da verdade (a literatura: Amadis,
Cardênio, Quixote), mas também o mensageiro da verdade (Sancho).
Morte, mudança, loucura 31

Sancho teme não acertar com o caminho de volta à khô-


ra, o lugar não lugar de Quixote. Por isso, este lhe adverte:

Repara-lhe bem nos sinais, que eu procurarei não me apartar


destes contornos – respondeu Dom Quixote –; demais toma-
rei cuidado de trepar por estes cabeços mais altos, para ver se
te avisto quando voltares. Mas o melhor será, para te não per-
deres e para dares comigo, cortares algumas giestas das muitas
que por aqui há, e as vás deitando de onde em onde até saíres
a raso; assim já tens marcas para atinares comigo; é uma imi-
tação do fio de Teseu no labirinto (Cervantes Saavedra, 2002,
pp. 163-164).29

Cervantes não vê o que André Masson só pintaria, óleo e


areia, em 1939, Histoire de Thésée;
Thésée;30 mas, mesmo assim, a maioria
dos editores prefere corrigir, pudicamente, o texto, como se de
um cochilo de Cervantes se tratasse e a despeito da proximidade
do touro, que denuncia uma presença perturbadora do corpo.
Desse modo, tal como decidem António Feliciano de Castilho,

29
Em espanhol: “Toma bien las señas, que yo procuraré no apartarme destos contor-
nos –dijo don Quijote-, y aun tendré cuidado de subirme por estos más altos riscos,
por ver si te descubro cuando vuelvas. Cuanto más, que lo más acertado será, para
que no me yerres y te pierdas, que cortes algunas retamas de las muchas que por aquí
hay y las vayas poniendo de trecho a trecho, hasta salir a lo raso, las cuales te servirán
de mojones y señales para que me halles cuando vuelvas, a imitación del hilo del
laberinto de Perseo.”
30
“The paintings Masson produced during his years in Spain do not directly engage
with the political struggle, but they mark a wholehearted commitment to Spain and
Spanish culture. He read Cervantes, Góngora and other Spanish authors, drew inspi-
ration from bull-fights, from the Spanish towns that he and Rose used to visit on their
journeys on foot and from the countryside” (Ades, 1994, p. 18).
32

o visconde de Castilho, e Francisco Lopes de Azevedo Velho


de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho, o visconde
de Azevedo, surge, na tradução portuguesa, um correto Teseu
no lugar do mais vital Perseu. É verdade que Dom Quixote é
Teseu preso no labirinto, mas se vê a si próprio como Perseu –
não só um herói enfrentando a Medusa, mas também como
alguém próximo a Persiles, mais um personagem de Cervantes.
O que há por trás desse nome? Ele tanto conota heroísmo (Per-
seu, também cavaleiro andante, monta o Pégaso e persegue o
eu), quanto algo chinfrim, como o perejil
perejil,, que em inglês se diz
parsley,, e podemos entender como a parte (pars
parsley ( pars)) da lei. A lei está
partida e a ninguém se aplica por inteiro, ou antes, todos a ela
estão sujeitos no modo de uma desincorporação e uma desin-
serção progressivas. O episódio, enfim, ilustra que, enquanto
escritura, a literatura não é comunicação, nem pressupõe comu-
nidade, nem se dirige a comunidade previamente existente. Por
outro lado, o horizonte semântico que, a rigor, controla a noção
de literatura (representação, contexto, sentido) é ultrapassado
ou estilhaçado pela própria emergência da escritura, vale dizer,
de uma disseminação que não se reduz a uma mera polissemia.
Ao ser lida, uma escritura afasta sempre o horizonte hermenêu-
tico, que busca com afinco o esclarecimento de uma verdade
ou de um sentido. Não basta, portanto, com uma simples in-
versão da oposição clássica, em que diz Perseu, leia-se Teseu; é
indispensável, além do mais, um deslocamento geral do sistema
de referências, que lhe possibilite à desconstrução escriturária
uma efetiva intervenção no campo das oposições que ela critica
Morte, mudança, loucura 33

e que é ainda um campo de forças não discursivas, associadas


ao desastre e ao disparate.31
Por isso, a perda da instância da letra ou, na ficção de Cervan-
tes, a perda da carta (“perdi o livro de lembranças – respondeu San-
cho – em que vinha a carta para Dulcineia” (Cervantes Saavedra,
2002, pp. 167-168))32 coincidem com uma substituição da mímese
pelo mimetismo. Nisso, manifesta-se uma certa exterioridade do
autômato, como nos diz Derrida em Che cos´è la poesia – uma exte-
rioridade sujeita, entretanto, às leis da mnemotécnica, essa liturgia
que mima, apenas superficialmente, a mecânica dos movimentos.

Esteve por um pouco Sancho Pança a coçar a cabeça para puxar


à lembrança a carta; ora se punha sobre um pé, ora sobre outro,
ora olhava para o chão, ora para o céu, e depois de ter roído me-
31
Em Diferença e repetição, Deleuze sustenta a tese de que, ao abandonar o território
da representação, a obra de arte aprofunda o da experimentação como ciência do
sensível, razão pela qual passamos da estética transcendental para a imanência da
aisthesis. Ao resenhar essa obra, Foucault inventa uma fábula que nos diz que, cansa-
da de esperar que Teseu saísse do labirinto e de vigiar seu passo ou de reencontrar seu
rosto entre todas as sombras que passam a seu lado, Ariadne acaba por se enforcar.
No fio amorosamente entrançado da identidade, da memória e do reconhecimento,
seu corpo pensativo roda sobre si mesmo. De amarras soltas, Teseu não dá, porém,
sinal de si. Anda por corredores, túneis, cavernas, abismos com relâmpagos tenebro-
sos e trovões subterrâneos. Teseu avança, manca, dança e salta – não na geometria
ainda regular do labirinto, mas ao longo de um espaço muito mais dissimétrico,
tortuoso, irregular, montanhoso e íngreme. Teseu caminha em direção ao monstro
sem identidade, que não pertence a qualquer ordem animal, sendo homem e ani-
mal, ao mesmo tempo, acumulando em si tanto o tempo vazio e repetitivo do juízo
infernal quanto a violência genital do touro. “Dionísio mascarado, Dionísio disfar-
çado, indefinidamente repetido. O fio célebre partiu-se, esse que nós julgávamos
tão sólido: Ariadne foi abandonada mais cedo do que se esperava: e toda a história
do pensamento ocidental está para ser escrita” (Foucault, “Ariane s’est pendue”,
publicado em Le Nouvel Observateur, em 1969, incluído em Dits et écrits, em 1994).
32
Em espanhol: “He perdido el libro de memoria – respondió Sancho – , donde venía
carta para Dulcinea”.
34

tade da polpa de um dedo, estando suspensos os ouvintes, disse


após estiradíssima demora: – Valha-me Deus, senhor licenciado;
se me lembra algum ponto da carta, o Diabo que o leve já. Só me
lembra, que no princípio dizia: “Alta e soterrana senhora”. Não
havia de ser “soterrana” – disse o barbeiro –, havia de dizer “so-
bre-humana”, ou “soberana” senhora. – Tal qual – disse Sancho.
– Depois, se bem me lembra, prosseguia... se bem me lembra: “O
chagado e falto do sono, e o ferido, beija a Vossa Mercê as mãos,
ingrata e mui desconhecida formosa”; e não sei que dizia de saúde
e de enfermidade, que lhe enviava; e por aqui escorrendo, até que
acabava em: “Vosso até a morte, o Cavaleiro da Triste Figura”.
Não gostaram pouco os dois de verem a boa memória que tinha
Sancho Pança, e louvaram-lha muito, e pediram-lhe que repetisse
a carta mais duas vezes, para que eles igualmente de memória
a tomassem, para a seu tempo se copiar. Mais três vezes a repetiu
Sancho, e outras tantas tornou a enfiar outros três mil disparates
(Cervantes Saavedra, 2002, p. 168).33

33
Em espanhol: “Paróse Sancho Panza a rascar la cabeza para traer a la memoria la
carta, y ya se ponía sobre un pie, y ya sobre otro; unas veces miraba al suelo, otras al
cielo; y, al cabo de haberse roído la mitad de la yema de un dedo, teniendo suspensos
a los que esperaban que ya la dijese, dijo al cabo de grandísimo rato: – Por Dios,
señor licenciado, que los diablos lleven la cosa que de la carta se me acuerda; aunque
en el principio decía: ‘Alta y sobajada señora’. – No diría – dijo el barbero – sobaja-
da, sino sobrehumana o soberana señora. – Así es – dijo Sancho –. Luego, si mal no
me acuerdo, proseguía..., si mal no me acuerdo: ‘el llego y falto de sueño, y el ferido
besa a vuestra merced las manos, ingrata y muy desconocida hermosa’, y no sé qué
decía de salud y de enfermedad que le enviaba, y por aquí iba escurriendo, hasta
que acababa en ‘Vuestro hasta la muerte, el Caballero de la Triste Figura’. No poco
gustaron los dos de ver la buena memoria de Sancho Panza, y alabáronsela mucho, y
le pidieron que dijese la carta otras dos veces, para que ellos, ansimesmo, la tomasen
de memoria para trasladalla a su tiempo. Tornóla a decir Sancho otras tres veces, y
otras tantas volvió a decir otros tres mil disparates.”
Morte, mudança, loucura 35

Com essa mímica disparatada, Sancho, na verdade, não


imita nada, não reproduz nada, mas apresenta, em seu corpo,
o movimento mesmo da verdade, performa-a em sua própria
face, enquanto sonho – percepção, lembrança, profecia ou
desejo – enquanto ficção ou khôra
khôra,, imagem percebida e desper-
cebida, imagem e modelo, presença e traço. Estando nesses afa-
zeres, no entrelugar mesmo da khôra
khôra,, Sancho ouve, finalmente,
uma voz, uma voz impossível, que faz um elogio da loucura.

Estando assim ambos remansados e à sombra, chegou-lhes


aos ouvidos uma voz, que, desacompanhada de instrumen-
to algum, soava doce e regaladamente, do que não pouco se
admiraram, por lhes parecer que não era aquele lugar onde se
esperar quem tão bem cantasse, porque deixar dizer que pelos
bosques e campos se achavam pastores de vozes peregrinas
mais são isso encarecimentos de poetas, que verdades. A mais
subiu ainda a maravilha, quando repararam serem versos o
que ouviam cantar, não de estilo de pegureiros rústicos; mas
de cortesãos discretos; no que os foi confirmando cada vez
mais o teor das letras, que dizia assim:

Quem menoscaba meus bens?


Desdéns.
Quem mais ceva meus queixumes?
Ciúmes.
Quem me apura a paciência?
A ausência.
36

De meu fado na inclemência,


Nenhum remédio se alcança,
Pois me dão morte: esperança,
Desdéns, ciúmes e ausência.

Quem me causa tanta dor?


Amor.
Quem me as glórias arruína?
Mofina.
Quem às dores me há votado?
O fado.
Receio me é pois fundado
Morrer deste mal tirano,
Pois conspiram em meu dano
O amor, a mofina e o fado.

Quem pode emendar-me a sorte?


A morte.
O bem de amor quem no alcança?
Mudança.
E seus males quem os cura?
Loucura.
Então em vão se procura
Remédio algum a tais chagas,
Sendo-lhe únicas triagas
Morte, mudança, loucura.
(Cervantes Saavedra, 2002, pp. 171-172)34
34
Em espanhol: “Estando, pues, los dos allí, sosegados y a la sombra, llegó a sus oídos
una voz que, sin acompañarla son de algún otro instrumento, dulce y regaladamente
Morte, mudança, loucura 37

Em Logique du sens,
sens, Deleuze (1969, p. 107) diz que “corps-
passoire, corps morcelé et corps-dissocié forment les trois premières
dimensions du corps schizophrénique”.35 Morte, mudança e lou-
cura, como manifestações desse corpo-peneira, corpo dissociado
e corpo fragmentado, não precisam ser mencionadas para estarem
presentes porque a questão do corpo é a questão do presente. Com
efeito, a introdução de Don Quijote (2000), a ópera de Cristóbal
Halffter, apoiada em libreto de Andrés Amorós, começa, justamen-
te, com esse mesmo texto que Sancho ouve de uma voz impossível,
porém, há uma ressalva muito relevante: em seu retorno, a música
de Halffter apenas comenta o texto sem que deste, obliterado, se
escute uma única palavra. É preciso dispor de um bom tímpano
para ouvir a imperceptibilidade da percepção. Mais uma vez, como
no Pli selon pli de Pierre Boulez, o texto fantasmagoriza-se, torna-se
espectral, mas, ao mesmo tempo, o silêncio, presente, está prenhe
de ecos, pois ouvimos, de fato, ao longo da ópera, algumas citações

sonaba, de que no poco se admiraron, por parecerles que aquél no era lugar donde
pudiese haber quien tan bien cantase. Porque, aunque suele decirse que por las selvas y
campos se hallan pastores de voces estremadas, más son encarecimientos de poetas que
verdades; y más, cuando advirtieron que lo que oían cantar eran versos, no de rústicos
ganaderos, sino de discretos cortesanos. Y confirmó esta verdad haber sido los versos
que oyeron éstos: ¿Quién menoscaba mis bienes? / Desdenes. / Y ¿quién aumenta mis
duelos? / Los celos. / Y ¿quién prueba mi paciencia? / Ausencia. / De ese modo, en mi
dolencia / ningún remedio se alcanza, / pues me matan la esperanza / desdenes, celos
y ausencia. // ¿Quién me causa este dolor? / Amor. / Y ¿quién mi gloria repugna? /
Fortuna. / Y ¿quién consiente en mi duelo? / El cielo / De ese modo, yo recelo / morir
deste mal estraño, / pues se aumentan en mi daño, / amor, fortuna y el cielo. // ¿Quién
mejorará mi suerte? / La muerte. / Y el bien de amor, ¿quién le alcanza? / Mudanza. /
Y sus males, ¿quién los cura? / Locura. / De ese modo, no es cordura / querer curar la
pasión / cuando los remedios son / muerte, mudanza y locura.”
35
“Corpo-coador, corpo-despedaçado e corpo-dissociado formam as três primeiras
dimensões do corpo esquizofrênico” (Deleuze, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de
Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 90).
38

musicais renascentistas de Juan del Encina ou Antonio de Cabe-


zón, mas também versos de vigorosos poetas, Jorge Manrique, São
João da Cruz, Antonio Machado e Pedro Salinas, com a ressalva
não menor de, especificamente na introdução, ainda reverberarem,
em nós, outros versos, posteriores e diferidos, de Gregório de Ma-
tos36 ou Mário de Andrade.37 Assim como a mímica de Sancho,
ao “traduzir” a carta que nunca foi entregue, é um símbolo cujo
sentido se revela bastante superficial, mero substrato de um corpo
movido pela paixão, quando nos defrontamos com a linguagem,
na tradição da ópera, estamos diante de uma simbólica corporal
muito precisa. No entanto, quando a música prescinde da lingua-
gem, ao abandonar todo suporte sensitivo analógico, essa lingua-
gem se nos apresenta em seu mais absoluto hermetismo originário.
Não é voz da linguagem, mas a linguagem da voz.
Ora, dizíamos no início que todo o episódio da Serra
Morena era uma história de espectros e até mesmo Roger
Chartier destacava, em sua análise, que a própria história
de Cardênio revela o desejo de dar um corpo e uma matéria
a esse fantasma obsedante que a tantos escritores inspirou
e por tantos outros, por sua vez, foi tocado. No primeiro
encontro de Quixote e Sancho com os espectros, é São João
da Cruz (Cf. Agamben, 1974), com efeito, ou em outras pa-
lavras, a khôra mística, que ecoa no relato de Cervantes:

36
Por exemplo, as “Queixas de sua mesma verdade”, que começam com o lamento
de que “quer-me mal esta cidade” para concluir que os três inimigos da alma são
“verdade, inveja e temor”.
37
Como em “Eu nem sei se vale a pena”, de Lira paulistana, em que o poeta só cons-
tata, “Miséria, dolo, ferida / Isso é vida?”.
Morte, mudança, loucura 39

Indo pois desta maneira, a noite escura, o escudeiro esfaima-


do, e o ano com boa vontade de comer, viram que, pelo cami-
nho mesmo que levavam, se dirigia para eles grande multidão
de luzes, que não pareciam senão estrelas errantes. Pasmou
Sancho quando as avistou, e Dom Quixote não deixou de as
estranhar. Sofreou um pelo cabresto ao asno, e o outro pelas
rédeas ao rocim, e ficaram parados à espera do que surdiria.
Viram que as luzes se lhes iam aproximando, e quanto mais se
aproximavam, amiores pareciam. Àquela vista Sancho pôs-se
a tremer como um azougado, e ao próprio Dom Quixote se
arrepiaram os cabelos (Cervantes Saavedra, 2002, p. 113).38

Mas, abatido pelas fantasmagorias que se lhe atravessam no


meio da estrada, Dom Quixote confessa ter perdido muito sangue
“da ferida que me fez o fantasma” (Cervantes Saavedra, 2002, p.
102), como traduzem os viscondes, mas, no original, lemos: esta
fantasma.. Ou seja, fantasma
fantasma fantasma,, que, a rigor, aparece em Dom Qui-
xote sem artigo – aliás, Derrida sugeria que se escrevesse khôra e
não a khôra
khôra,, como era, no espanhol do século XVII, feminino ou,
em suma, era, ele próprio, um conceito-khôra.
conceito-khôra. Quixote depara-se,
então, nessas luzes na metade da estrada, com uma autêntica ico-

38
No original, lemos: “Yendo, pues, desta manera, la noche escura, el escudero ham-
briento y el amo con gana de comer, vieron que por el mesmo camino que iban venían
hacia ellos gran multitud de lumbres, que no parecían sino estrellas que se movían.
Pasmóse Sancho en viéndolas, y don Quijote no las tuvo todas consigo; tiró el uno del
cabestro a su asno, y el otro de las riendas a su rocino, y estuvieron quedos, mirando
atentamente lo que podía ser aquello, y vieron que las lumbres se iban acercando a
ellos, y mientras más se llegaban, mayores parecían; a cuya vista Sancho comenzó
a temblar como un azogado, y los cabellos de la cabeza se le erizaron a don Quijote”.
40

nologia do intervalo, a fantasma, que não é senão um espelho, que


reflete um grupo de cavaleiros andantes, tal como ele, cujas arma-
duras rebrilham sob a escassa luz da noite escura. A proteção que
essa armadura fornece ao corpo dos caminhantes é problemática,
pois ela impede a percepção de Quixote decidir acerca da identi-
dade de quem se protege sob o elmo e, até mesmo, discriminar a
diferença sexual dos portadores. A armadura é, para esses desco-
nhecidos, o corpo de um artefato real, uma prótese técnica, corpo
estranho ao corpo espectral que, no entanto, sai ao encontro do an-
darilho e lhe deixa ver sem ser visto ou falar para ser ouvido. Outra
não é a função da autoridade e do poder: falar por meio do elmo.
A autoridade é bacia. E vazia.
Em “Le
“Le fantôme de Stalin”,39 Sartre quis isolar o Mal como
espírito.. Já em Spectres de Marx (1993), Derrida busca o espec-
espírito
tro como aparição recorrente e, a esse respeito, observa que

Marx vise souvent la tête, et le chef. Les figures du fantôme sont


d’abord des visages. Il y va donc de masques, sinon, cette fois,
de heaume et de visière. Mais entre l’esprit et le spectre, entre la
tragédie et la comédie, entre la révolution en marche et ce qui
l’installe dans la parodie, il n’y a que la différence d’un temps
entre deux masques. [...] Il faut faire un pas de plus. Il faut penser
l’avenir, c’est-àdire la vie. C’est-à-dire la mort. Marx reconnaît,
certes, la loi de cette anachronie fatale, et finalement il est peut-
être aussi sensible que nous à la contamination essentielle de l’es-

39
“Le fântome de Stalin” foi publicado em Les Temps Modernes, em 1956, e mais tarde
em Situations VII, em 1965.
Morte, mudança, loucura 41

prit (Geist) par le spectre (Gespenst). Mais il veut en finir avec elle,
il estime qu’on le peut, il déclare qu’on le doit. Il croit à l’avenir et
il veut l’affirmer, il l’affirme, il enjoint la révolution. Il déteste tous
les fantômes, les bons et les mauvais, il pense qu’on peut rompre
avec cette fréquentation. C’est comme s’il nous disait, à nous qui
n’en croyons rien: ce que vous croyez appeler subtilement la loi de
l’anachronie, c’est justement anachronique. Cette fatalité pesait
sur les révolutions du passé. Celles qui viennent, à présent et dans
l’avenir [.[.....],
], celles qui s’annoncent dès le XIXe siècle doivent se
détourner du passé, de son Geist comme de son Gespenst. En
somme elles doivent cesser d’hériter. Elles ne doivent même plus
faire ce travail de deuil au cours duquel les vivants entretiennent
et jouent les morts, s’occupent des morts, se laissent entretenir et
occuper et jouer par les morts, les parlent et leur parlent, portent
leur nom et tiennent leur langage. Non, plus de mémoire révo-
lutionnaire, à bas le monument, rideau sur le théâtre d’ombres
et sur l’éloquence funéraire, détruisons le mausolée pour foules
populaires, brisons les masques mortuaires sous cercueil de verre
(Derrida, 1993, pp. 184-185).40
40
“Marx visa frequentemente a cabeça, e o chefe. As figuras do fantasma são primeira-
mente rostos. Trata-se, pois, de máscaras, quando não, desta vez, de elmo e viseira. Mas
entre o espírito e o espectro, entre a tragédia e a comédia, entre a revolução em marcha e
o que a instala na paródia, não há senão a diferença de um tempo entre duas máscaras.
[...] Convém dar mais um passo. Convém pensar no porvir, ou seja, na vida. Ou seja,
na morte. Marx reconhece, certamente, a lei dessa anacronia fatal, e finalmente é talvez
tão quanto nós à contaminação essencial do espírito (Geist) pelo espectro (Gespenst).
Mas ele quer se ver livre dela, avalia que se pode, declara que se deve. Crê no futuro e
quer afirmá-lo; afirma-o, impõe a revolução. Detesta todos os fantasmas, os bons e os
maus, pensa que se pode romper com essa frequentação. É como se nos dissesse, a nós,
que não admitimos: isto que vocês acreditam chamar sutilmente a lei da anacronia está
ultrapassado. Essa fatalidade pesava sobre as revoluções do passado. Estas que estão
vindo, no presente e no porvir [...], estas, que se anunciam desde o século XIX, têm de
42

A Teoria Crítica não é mais do que a cabal herdeira des-


sa proverbial diferenciação entre Espírito (Geist
(Geist)) e espectro (Ges-
penst),
penst), que está na base da política moderna, como corolário do
desconhecimento (e mesmo da expulsão) do espectro, para além
da comunidade humana (Ludueña, 2013). Heidegger interpretou
que a substância do homem não é o espírito, enquanto síntese da
alma e do corpo, mas a existência. Pelo contrário, a filosofia hege-
liana fez do Espírito, avaliado enquanto liberdade e autonomia,
a via régia pela qual a substância tornou-se sujeito, como auto-
consciência universal que pretende ir além da lamentada morte
de Deus. Em seu nome, Salvador de Madariaga (1972) não hesi-
tou em qualificar a inoperância de Cardênio como covardia, sem
nela ver a desativação do imaginário individual. O espírito não
é a coisa, não é o corpo. Enquanto desconstrução do espírito, o
espectro, porém, que não é potência, nem virtualidade; é pelo
contrário um espaço sem lugar, uma khôra em que se esclarece
o motivo pelo qual a política não pode coincidir mesmo com o
existente. O espectro só é concebível como o retorno fantasmáti-
co (revenant
(revenant)) de uma realidade invertida, deslocada e, finalmente,
postulada como falta, de tal sorte que “la spectralité ne serait pas
plus un accident de l’esprit que du Geist
Geist,, de la chose et du mot”
desviar-se do passado, de seu Geist como de seu Gespenst. Devem, em suma, deixar de
herdar. Não devem nem mesmo fazer mais o trabalho do luto, durante o qual os vivos
mantêm os mortos, ocupam-se deles, agem como eles; são mantidos ocupados e agidos
pelos mortos, falam-nos e falam-lhes, portam seu nome e conservam sua linguagem.
Não, não mais memória revolucionária, abaixo o monumento, desça a cortina sobre o
teatro de sombras e sobre a eloquência funerária, destruamos o mausoléu para popula-
res, quebremos as máscaras mortuárias sob esquife de vidro” (Derrida, Jacques. Espectros
de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova internacional. Tradução de Ana-
maria Skinner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 154-155).
Morte, mudança, loucura 43

(Derrida, 1987, p. 45). Assim, o espectro não é nem interior nem


exterior e, por isso mesmo, só pode ser visto como uma figura (uma
triste figura?) que, vinda de um não lugar, só pode se apresen-
tar aos nossos olhos, amorfa e irrepresentável, enquanto trauma,
algo assim como O espectro do sex-appeal (1934) de Dalí. O espí-
rito não cai no tempo, como diz Hegel; o espírito é essencialmen-
te temporalização e, nesse sentido, o espectro é diferimento da
temporalização na temporalização. Portanto, nulla est redemptio:
redemptio:
a desconstrução da política do espírito não redime de per se, mas
dissemina os espectros e, assim, merece ser considerada uma au-
têntica antología (Sprinkler, 1999).
Graças a ela, o nome racha ao meio e temos acesso, por assim
dizer, a uma metaonomásia: o tradutor de tudo o que lemos, no
original,, é Ben Engeli, “filho de cervo”, Cervantes, aquele que, com
original
tantos contatos e contágios, contraria a limpieza de sangre,
sangre, e essa
marca semítica tinge o romance como a primeira das obras mo-
dernas em que, por meio do questionamento etnocêntrico, vemos
o cruel jogo de identidades e diferenças se embaralhar, no infinito
intercâmbio de signos e sinais. Isso porque, lacerada a antiga união
entre as palavras e as coisas, resta a pura (impura) soberania da lin-
guagem, por meio da qual a literatura se torna um questionamento
pertinaz da semelhança e a representação. Portanto, como a políti-
ca torna-se gradativamente biopolítica, mais do que, em nome do
Espírito, pensarmos o espectro como expressão de uma irrealidade
(à maneira de Barrenechea com relação a Borges, por exemplo), a
antología,, ao debruçar-se sobre morte, mudança e loucura, tenta
antología
preferentemente pensar a insistência (Amadis, Cardênio, Quixote,
44

ou seja, Cervantes, Shakespeare, Theobald, Greenblatt...), que é a


insistência do próprio espectro como parte da lei.

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Elementos para uma dermatologia
especulativa: a erótica, a política e
a ontologia da pele

Hilan Bensusan1

O interior. O endereço da especulação e talvez o avesso da


vida se Nietzsche tinha razão em recomendar um modo de viver
(grego) que para corajosamente na superfície, na dobra, na pele e
adora a aparência – todo o Olimpo da aparência (2009, p. 71).
Mas a aparência, o sensível e o sensual também têm seus interio-
res. Schelling (2001, pp. 61-2) se pergunta (em Ideen
Ideen)) sobre o que
origina a sensação: “Algo de interior, uma característica interna da
matéria [...]. Pois onde se encontra este interior da matéria? Podeis
dividir até o fim da matéria e nunca passareis das superfícies dos
corpos”. O interior é a pedra, interlocutora de Szymborska no po-
ema “Conversa com uma pedra” (1962), e diz: “mesmo que você
me quebrar em pedaços, nós ainda vamos estar fechadas para você,
1
Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília.
48

você pode nos triturar em areia e, ainda assim, nós não deixaremos
você entrar”. Mas dentro da superfície da pedra há a superfície da
areia, a superfície dos grãos, a superfície espaço entre os grãos. Estar
dentro é também estar às voltas com as peles que recobrem, já que
nada pode ser sensível sem ter a sensualidade de uma superfície
que pode ser sentida.
É que, pelo menos no sensível, existir é poder ser encon-
trado. Nada fica no sensível sem poder ser sentido. Nada fica
sem pele já que tudo fica em uma superfície. Fica exposto. Ficar
posto no espaço é ficar exposto, posto para fora, ser afetável.
Existir é estar em uma encruzilhada. É estar à mercê do que
mais existe, já que se existe tendo uma pele, onde se começa e
onde se termina – a encruzilhada dos existentes, a encruzilhada
do que existe. Do que existe também
também.. Porque existir é coexistir.
Ser é estar em companhia (do que mais seja). Existir é estar no
meio das coisas que existem, expostas a ela, como uma pele.
A pele é exposição. É disposição. E é disponibilidade. E é à
disposição. Pela pele, entram os bárbaros, os bacilos, os desejos,
os ventos, os acasos. A substancialidade do sensível é derma-
tológica – é sobre isso que se quer especular. Especular com a
epiderme virada para os estratos subcutâneos, entrelaçada na
endoderme, adentrada no stratum spinosum,
spinosum, membranas aden-
tro. Pelo interior da pele, sem sair da soleira, sem sair da soleira
senão para entrar em outra, já que toda coisa que existe e persis-
te tem fronteiras. Todo indivíduo é também refém de sua pele,
uma vez que existir é coexistir. Convém especular sobre o que
faz parecer que no sensível tudo corre – tudo corre porque tudo
Elementos para uma dermatologia especulativa 49

é suscetível a tudo. Tudo está à mercê. O sensível, que é domí-


nio dos contágios, das infusões, do que toca, do que se toca, do
tocante, das insinuações, do contato, do trato, da flor da pele,
é muito sensível. Qualquer desatenção pode ser a gota d’água.
O sensível também tem, ele todo, uma pele. Se ele pode
ser encontrado, pode ser tocado. Ele todo não pode existir sem
se exibir. Ele todo é um horizonte de insinuações – e é por isso
que o desejo está espalhado por todas as peles que eu posso
esfregar. O sensível está para ser sentido, está à disposição, está
aberto a quem chega. O sensível é o que tem uma aparência.
E tem uma presença independente de todas as suas qualidades
– tudo o que é sensível pode ser apontado: aquela ali. Esta ca-
pacidade de ser espiada sem ter suas qualidades inspecionadas
é o que faz uma coisa sensível ter o que Duns Scotus chamava
de haecceitas
haecceitas.. A presença é um assunto de peles, de membranas,
de máculas. Quem esbarra não esbarra em profundezas antes de
esbarrar na pele – é nela que se toca. Posso não saber nada da
pele que eu toco – posso não me tocar do que toco, mas toco.
Nada pode estar presente sem estar em exibição. O trato – o
contato – não é uma questão de conhecimento do interior; é
uma questão de notar o que se exibe. Não é uma questão de
entranhas, mas uma questão de nervuras. Ser sensível é também
poder tocar, afetar. Os eleatas diziam: provocar e ser provocado.
O sensível é sensível porque carrega uma virtualida-
de – por isso, parece que nele tudo corre. Nele, tudo depende
das circunstâncias. Deleuze, em Le pli,
pli, entende o contingente
como sendo imerso na virtualidade: que o vinho seja doce ou
50

que Adão peque depende de todo o resto do mundo. É que o


sensível está à mercê de tudo o mais, de tudo o mais sensível.
Porque existir é coexistir, parece que tudo corre – minha pele
está exposta aos elementos. Nada traz em si as rédeas de sua
substancialidade, já que tudo tem de ter pele. Toda estabilidade
é perdida e reconquistada. Como a saúde – esvaída e recupe-
rada. Não é por si mesmo que as coisas são estáveis, mas pelo
que elas encontram pele afora. Simondon (2005) chamava isso
de metaestabilidade: a capacidade não de persistir, mas de re-
cobrar, de voltar a ser. O sensível é dermatológico: aquilo que
individua cada coisa é a pele que deixa passar o que está fora
para manter a forma do que está dentro. Mas tudo se deixa le-
var pelas aparências, e pelas aparências das aparências. O cristal
captura materiais para se sobrecristalizar. Sua forma não é está-
vel. É metaestável. As aparências são metaestáveis. O sensível é
virtual e metaestável – à mercê de todo o resto para permanecer
o que é. Pele é o emblema do que está à mercê, o emblema da
vulnerabilidade – do que, por estar presente, é capaz de ser ou-
tro. É por isso que as aparências carregam profundidades: elas
são pele do que está dentro, e também pele do que está de fora.
Individua, mas também possibilita todas as perturbações. Tudo
corre por elas. E ainda assim, elas seguem sendo a aparência. Já
a pele, é onde todo o sensível ressoa. Eis a dermatologia especu-
lativa: tudo tem uma medida de pele. As coisas vivas são uma
plataforma de lançamento especulativo que chega a todas as
aparências das coisas, vulneráveis, virtuais, metaestáveis e entre-
gues às insinuações da coexistência. Tudo está exposto ao toque.
Elementos para uma dermatologia especulativa 51

As aparências são aquilo que esconde – não é que tudo


corre nas aparências, é que elas amam esconder-se. Aparências
por trás de aparências. A matrioshka das peles é também um
biombo, roupa tirada sobre roupa. As aparências são afetadas.
Aparências escondem aparências – não há a última roupa, nem
há a última pele. Porque há pele, as aparências é que são há-
bitos, as aparências é que habituam. Tudo o que é sensível se
habitua com as aparências. E nas aparências habita a política.
O Heráclito recente, o caquético objeto de uma anarqueologia
selvagem (Bensusan et al., 2012), diz: “A política ama esconder-
se em moitas de natureza”.
Ele parece pensar que também o pensamento do sensível
pode exorcizar o conhecimento de coisas últimas. Pensar é mais do
que desvelar o último véu. Ele entende que se pensa muitas vezes

[...] como se estivéssemos descortinando alguma coisa.


[...] Tiramos as roupas, mas apenas para mostrar alguma
coisa que estava escondida e que vai voltar a se esconder para
que outra coisa possa ser despida – não há a última pele. Physis
ama esconder-se: ninguém vai desmascará-la de uma vez por
todas. Nenhum corpo pode ficar completamente vestido, nem
completamente pelado – o pensamento não tem nada que ver
com o universo nu (Heráclito apud Bensusan et al., 2012).

As aparências escondem aparências – a evidência é uma


artimanha de ocultação. Mas não há o não aparente subjacente,
aquilo que, substrato do sensível, é indiferente aos ires e vires
52

do sensível. Há, é claro, pele sobre pele, pele sob pele – mas as
aparências não são sustentadas por nada que não seja aparência.
Porque existir é coexistir. Mas sensibilidade, pele, afetação, não
é estar todo aparente. Aquilo que se revela aparece porque se
esconde. E isso é a do caráter dérmico das coisas: elas revelam só
se escondem alguma coisa. E a pele – e não quem a toca – é que
decide o que aparece e o que fica recôndito. Heráclito insiste
que o sensível não é o disponível à nossa sensibilidade, é antes o
que está sensível à disponibilidade (ou, talvez mesmo, sensível à
nossa disponibilidade):

[...] Se estamos em um exercício de voyerismo das coisas


(mesmas), como parece que tanta gente anda pensando, es-
sas coisas também agem decidindo o que permitirão que seja
visto. Raramente as coisas são apenas espionadas. Elas estão
em uma sala de onde as vemos, mas elas estão fazendo um
peep-show.. Elas decidem como as vemos – e vão para casa
peep-show
depois do horário de trabalho. (Heráclito apud Bensusan
et al., 2012)

Órgãos, indivíduos, acontecimentos e substâncias que


ocupam espaço e persistem no tempo têm superfície que as
cobrem. O que há tem pele, pode ser tocado, já que existir é
coexistir. Dentro das aparências, mais aparências. As voragens
nascem das aparências, e se nutrem de fricção. Fricção. Pele é
fricção. Touchscreen
Touchscreen.. De touchscreen
touchscreen.. Galatzia (2014) diz:  “mi
cuerpo es touchscreen
touchscreen,, touchscreen
touchscreen,, touchscreen
touchscreen.. Acariiicialo. Soy
Elementos para uma dermatologia especulativa 53

híbrido sexual, todo me provoca. Touchscreen”


Touchscreen”..  Toda a meta-
física se resolve na “touchscreen.
na “touchscreen. Touch,
Touch, touch
touch,, touchscreen
touchscreen”.
”. As
coisas se afetam. São afetadas. Tudo o que há é afetado. Há uma
dermicidade cujas coisas são moldadas por suas bordas, por suas
membranas que são também suas fronteiras. Touchscreen é afe-
tável. Um toque pode trazer alguma coisa de longe. Os toques
acessam. Sintonizam. Programam. Chamam. Touchscreen
Touchscreen.. Pele
é antena tátil: um plano. O plano do que existe. O plano em
que o que existe coexiste. Por isso, Marcos Vinícius, em Frágil
Frágil,,
na transperformance
transperformance,, em dezembro de 2011, cobriu-se da eti-
queta de frágil. A pele é suscetível a tudo. Touchscreen
Touchscreen..
A pele é touchscreen e, por isso, os corpos são diversos.
Eles estão expostos aos ritmos do sensível. O sensível esculpe
os corpos – genes, voragens, batidas, ambiente. E faz isso por-
que os acontecimentos pulsam. Coexistir – e ter metaestabili-
dade – é dançar conforme a música, mas também conforme as
outras dobras dos acontecimentos: as articulações dos corpos,
as dobraduras, as viragens. A planta transgênica de Eduardo
Kac mostra isso: os visitantes manipulam em que claridade a
planta vai ficar. Se vai ficar na luminosidade de Oslo, de Tó-
quio, de Nova York ou do Rio agora. Trata-se de uma extensão
do sensível – estar esculpido pelo que passa. Esta escultura das
coisas tem sua forma geológica expressa de maneira explícita
nos ritmitos. Um ritmito é composto por camadas de sedimento
que foram depositados com certa periodicidade. É como a cris-
talização que condensa os ritmos dos acontecimentos passados.
Alguns se repetem por pouco tempo; outros, por um tempo mais
54

longo. Os ritmitos de Brasília registram padrões remanescentes


de marés e um possível mar pré-histórico na área. O mar pode
ter estado presente há milhões de anos, mas deixou vestígios rít-
micos. A geologia dos ritmitos inspira uma especulação: pedras,
montanhas e corpos são moldados e compostos pelos padrões
que os circundaram. Os corpos são diversos porque têm pele.
Os corpos são diversos porque têm pele. E têm uma
pele que é diversa – cada pele tem suas dobraduras, suas ru-
gas, seus corpúsculos de Pacini, seus estratos, suas endemias,
suas endermias, sua biografia de suscetibilidade a miasmas.
Touchscreen.. Entendo que os miasmas são aquilo que Simondon
Touchscreen
chama de apport d’information.
d’information. Estes fornecem informações,
mas têm de ser entendidos por meio da epidemiologia. Eles
podem ter várias formas: microbiota, micropadrões de desejo,
pequenas variações de temperatura, cócegas, sanhas e voragens,
mas também proteínas, catalisadores, hormônios. Os miasmas
são unidades de contaminação. Toda dermatologia é uma epi-
demiologia: a dermatologia especulativa é uma epidemiologia
especulativa. Os miasmas podem ser populações, de genes, de
memes,, de batidas, de medos. Aquilo que afeta é uma ecosofia
memes
– ou seja, articulação das três ecologias de Guattari: as unidades
de adaptação e construção do ambiente biológico, das socieda-
des humanas ou não e da subjetividade. Metaestabilidade seria
a produção de diferenças. É que a pele é uma antena local que
vai se sintonizando por onde anda, por onde roça. É roçada. É a
mágica que faz erguer o gênio da lâmpada. A pele é uma trama
que captura miasmas. Os corpos são esculpidos pelos miasmas
Elementos para uma dermatologia especulativa 55

em sua carnalidade, em sua velocidade, em sua intencionalida-


de e em sua dermicidade – ou seja, em suas dobras, redobras,
dobraduras; rugas, rugas nas rugas, rasgos. Os miasmas são
como ritmos; eles provocam repetições, mas repetições apenas
nas formas já esculpidas – o subcutâneo tem suas geologias.
O ritmo contamina, mas a contaminação é diferente nos diver-
sos corpos – alguns batem o ritmo como um xequerê, outros
como toda uma bateria. As repetições sempre dependem de
quem repete – de que corpo ressoa o que está sendo repetido.
O repetidor é contaminado desde quando se habitua à repeti-
ção, habita a repetição. Intensidade: o quente contamina o frio.
O lento contamina o acelerado. As questões contaminam as
soluções – a pele ressoa corpo adentro.
A pele dos corpos é aquela a partir da qual especulamos
todas as outras. Ela tem um grau de intensidade que molda as
capacidades dos corpos dobra a dobra, camada a camada, estra-
to a estrato. Uma trama de infiltrações. Nada que é sensível é
alheio à pele – ainda que a capacidade de captação de cada coisa
sensível seja sempre regional e limitada por uma sintonia. Por
uma sintonização. Por uma matriz de diferenças e indiferenças.
Nada que é sensível é sensível a tudo. Há um pano de fundo de
insensibilidade, de aturdimento, de indiferenciado – como o
que está além do horizonte. Um continuum
continuum.. Do que não alcan-
ça a me tocar com suas peles. Como a noite ou o espaço entre
as estrelas no céu de noite. Como o som ao redor. Substituir
a substância pela derme é também renunciar à possibilidade
mesma de uma visão de parte alguma, de um panorama do
56

sensível, de uma paisagem completa de tudo o que é concreto.


As antenas, é certo, são ressintonizadas; a captura é reorientada.
A pele é vulnerável a ter sua vulnerabilidade alterada.
Tudo o que precisa de pele está exposto aos transeuntes,
aos que transitam, às transduções, às partículas de intensidade
que vão e vêm. Aos pequenos demônios que roem as substân-
cias. Traças. Vermes. Transmissores microssexuais. Começos de
compulsão. Pele é falta de imunidade: é comunidade. A pele
está aberta aos desejinhos. Eles se propagam como os vírus,
como os germes, como os mosquitos da malária que não reco-
nhecem fronteiras. São forças que moram n’água, ou moram
na falta d’água, e não fazem distinção de cor... Por isso, há cura
gay. Claro, os desejos são infecções. Alguns estão à flor da pele;
outros estão recônditos e podem precisar de muito roça-roça
para emergir. São disposições. Não são posições fixas. Vão de
um lado para outro. Ninguém aprende a ser hétero, mas nin-
guém nasce sabendo. Por isso, há cura hétero. Por isso, os de-
sejos são permeáveis – eles são feitos do que é feita a política.
É epidemiologia, escultura de corpos – de acontecimentos, de
instituições, de hábitos, de dispositivos.
Já a subversão, ela está na aparência – ela está na evidên-
cia. O poder instituído é como um corpo que se apresenta subs-
tancial – mas o poder também tem pele. Tem porosidade. Tem
membranas. Tem tectônica. Tem camadas. A atenção à pele é
a atenção ao que fabrica o poder, e ao que o deixa fabricado.
São as questões, a pele de toda solução que é sempre permeada
e infectada de questões. A pele é a questão. A pele é a porta
Elementos para uma dermatologia especulativa 57

de entrada. A solução – como o poder – é não mais do que o


interior, pele sobre pele, retorcida, resguardada, retirada. Jabès,
em Petit livre de la subversion hors de soupçon,
soupçon, escreve que “não
podemos interrogar senão o poder, o não poder é a questão
mesma” (1982, p. 29). A questão é pele. As questões iniciam
alguma coisa – não estão predestinadas a uma solução nem a ter
uma solução. Elas pertencem à ontologia da pele. E os corpos,
touch a screen,
screen, são questões.

Referências

BENSUSAN, Hilan et al. Heráclito: exercícios de anarqueologia.


BENSUSAN, anarqueologia. São
Paulo: Ideias e Letras, 2012.
GALATZIA. Mi cuerpo es touchscreen.
touchscreen. Disponível em http://www.
youtube.com/watch?v=We-VukNWvq4.. Acesso em 21 jan. 2014.
youtube.com/watch?v=We-VukNWvq4
JABÈS, Edmond. Le petit livre de la subversion hors de soupçon,
soupçon, Paris:
Gallimard, 1982.
NIETZSCHE,, F. Genealogia da moral.
NIETZSCHE moral. Trad. Paulo Cezar de Souza São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
SCHELLING,, Friedrich Wilhelm. “Ideen  zu einer  Philoso-
SCHELLING
phie  der  Natur”.
Natur”. In Ideias para uma filosofia da natureza.
natureza. Trad.
Carlos Morujão. Lisboa: Imprensa Nacional, 2001.
SIMONDON, Gilbert. L’individuation à la lumière des notions de
formes et d’information,
d’information, Paris: Jérôme Millon, 2005.
SZYMBORSKA,, Wisława. Sól
SZYMBORSKA Sól.. Cracóvia: Państwowy Instytut
Wydawniczy, 1962.
Um corpo que vaza: da série
Autobiografias e Autorretratos

Ana Chiara1

Eu me pergunto o que no corpo dói, o que lateja, pulsa,


molha, espirra, esguicha, queima, arde no corpo, sofre, invade,
sai do corpo, entra no corpo. O que no corpo diz mais do que
as palavras, essa pobre rede discursiva e tênue recobrindo, como
pele, corpos diversos num só corpo, tentando unir desajeitada-
mente essas frações, essas lâminas de tecidos adiposos, fibrosos,
nervosos, de sensações e sentimentos confusos, de pensamentos
inadiáveis, por vezes torturantes, invasivos, pervasivos? Eu me
pergunto: os corpos diversos que compõem um ser, um orga-
nismo, uma pessoa, dão conta de viver uma vida? Essa pergun-
ta vem ao encontro de um traço que se torna constante em

1
Professora-associada de Literatura Brasileira da UERJ/ Pesquisadora do CNPq/Co-
ordenadora do GEPESq (CNPq) Bioscritas.
60

algumas séries de trabalhos de arte contemporânea, nos quais


ora um corpo-gambiarra, feito de materiais reaproveitados, ora
um corpo-ausência, feito de seus buracos, seus vazios, materia-
lizam-se nas obras.
A presença de grafismos e inscrições de caráter biográ-
fico em trabalhos de artes visuais nos mais variados suportes
(cartões, madeiras, panos), na última década, mas com inci-
dências anteriores, como no caso de um artista, como Leo-
nilson nos anos 1980, corresponde ao retorno do biográfico
também verificado nas artes verbais. “Contar sua história”
dirá, então, respeito não à representação de si, fixação de uma
biografia, mas à ficcionalização de um corpo cujas aparição e
desaparição revelam que este já não pode ser entendido como
organismo, não pode ser visualizado como substância, mas
sobrevive como suporte de algo que se passa ali e por ali vaza.
Leonilson, Bené Fonteles e Artur de Vargas Giorgi, na série de
trabalhos que beiram autobiografias e autorretratos (uso aqui
títulos de Vargas Giorgi para uma série de seus trabalhos),
ensaiam recompor (seus) corpos sem traços miméticos ou re-
presentativos da estética realista clássica. Compõem, por ou-
tra estratégia, com traços ou vestígios corporais construindo
uma narrativa incipiente e errante, composta de microrrelatos
ficcionais, nos quais um corpo se deixa vazar por seus ocos,
buracos, como se ainda não estivesse lá, mas também como
um corpo arcaico que sempre esteve por lá – o corpo-desejo,
corpo do desejo. Como disse Roland Barthes a respeito de Cy
Twombly:
Um corpo que vaza 61

O traço – todo traço inscrito na folha – desmente o cor-


po importante, o corpo de carne, o corpo de humores;
o traço não nos leva à pele nem às mucosas; o que diz o traço é
o corpo que arranha, que roça (podemos até dizer: que faz có-
cegas) [...] o traço, por leve ou incerto que seja, remete sempre
a uma força, a uma direção; é um energon, um trabalho, que
oferece à leitura o que ficou de sua pulsão, de seu desgaste [...]
(Barthes, 1990, p. 154).

Esse tratamento dado ao corpo-traço (risco, rabisco)


num suporte, evitando, ou desmentindo, como diz Barthes, o
“corpo importante”, perfaz junto à literatura do desgaste psí-
quico, como em Ricardo Lísias ou Lourenço Mutarelli, o mapa
corroído das pessoalidades na vida contemporânea na qual
o corpo se traduz por sintomas, como a persistência no cor-
po das dores agudas ou crônicas desafia a medicalização total
da vida, o receituário analgésico cujas drogas – cada vez mais
potentes – querem suprimir toda dor, anestesiando, dopan-
do, amenizando a vivência do insuportável, o confronto com
a realidade, como o poeta Zeh Gustavo disse em entrevista:

Eu notei que estava morrendo. E pelas garras torpes de meus


algozes. Sim, podem me chamar de neurótico, eu realmente
vejo coisas. Daí, fui buscar na infância como isso começou. Na
memória de como foi se instituindo essa proposta de apaga-
mento de nosso viço e ânimo, que nunca aceitei, mas na qual
eu já me afogava, quase me dando por suprimido. Existe um
62

curso geral de desabrasamento do indivíduo; uma pedagogia


de morte em vida. Tento repisar esse movimento, radiografá-lo
poeticamente, sempre na busca de suas rachaduras, desde antes
no apontamento de uma possível via de contramão (2013).2

A escolha da metáfora da radiografia poética avisa para a


percepção antecipada de uma interioridade esquizo e invasiva
como a que se contempla ao ver o próprio corpo radiografado,
como espaço interior e desconhecido. Assim, o depoimento de
Zeh Gustavo me faz pensar nos corpos que erram, fracassam,
tropeçam, caem, ralando os joelhos e as mãos, deixando mar-
cas, rastros, vestígios em telas como sudários ou em sudários
como telas, da mesma maneira que, na pele, ficam as marcas
indeléveis do tempo. Corpos que deixam um buraco no meio
da história, uma lembrança empacada, num lugar vazio. Como
se nada mais restasse de um rosto naquele lugar. Como se um
rosto fosse um berro. Uma boca aberta, khôra intervalar, e na-
quele buraco, naquela taça, “sons do corpo” se misturassem às
palavras sem fazer muito sentido. Grito suspenso numa goela
aberta que sinalizasse a impotência da palavra num mundo tão
cheio de sons, ruídos, barulhos. Cacofonia.

2
Entrevista ao jornal digital Algo a dizer. “Os vetores jornalísticos deste algo a dizer
– arte, cultura e política – se entrelaçam e se fundem na obra e na vida do músico,
escritor e agitador cultural Zeh Gustavo [...] das resenhas de cinema publicadas no
Algo, em que publicava como Gustavo Dumas, aos poemas de Idade do zero (Escri-
turas, 2005) e A perspectiva do quase (Arte Paubrasil, 2008); dos sambas do Terreiro
de Breque ao carnaval do Cordão do Prata Preta, Zeh Gustavo mantém voz viva e
atuante a ecoar nas ruas, nas rodas de samba e nas redes sociais.”
Um corpo que vaza 63

Auto(de)flagelo e (dis)solução

caminhões alucinados pairando


na estrada abandonada
o esmo a preencher de sentidos

eu dirigindo a minha carroceria


vaga em rota de fuga

por entre cortes


sangrando
hirto
e rindo
(Zeh Gustavo, 2013)

Penso no corpo daquele que diz “no llevo nada dentro


de mí” (verso de Pepe Lazcano, pintor e poeta cubano), frase
formulada na própria barriga, selando qual emblema do inde-
cidível qualquer sentido “pronta-entrega”. São as potências do
embaraço o que busco nestes corpos. Corpo como segredo in-
violável para esse ou isso que o habita, que nele se abriga, não
contendo esta afirmação nenhuma certeza sobre se este “isso”
64

que se abriga num corpo – ou habita um corpo – possa compor


uma subjetividade inteiriça e exterior ao mesmo. Para nomeá-
la, eu diria talvez “esse sopro, esse alento”, ou este “ânimo sen-
sível e intelectual” que há um tempo chamaríamos “alma”. Pa-
tino, deslizo por nomes como em armadilhas prontas para me
aprisionarem em metafísicas religiosas. Considero o corpo que
vaza, excreta, é poroso, mas também pode ser excretado, como
na gíria “vaza daqui” – este corpo está na deriva de si mesmo.
Não é um corpo; são corpos diversos, difratados na temporali-
dade acelerada do século XXI.

Figura 1 – Artur de Vargas Giorgi (do fundo do coração).


Um corpo que vaza 65

O autorretratismo
Quando Eneida Maria de Souza estudou a troca de cor-
respondência de Mário de Andrade com outros modernistas,
buscou nela o modo de constituição do que chamou de “au-
torretratos” pensados como possibilidade de se refletir sobre “a
relação entre arte e vida, produção epistolar e ficcional, proje-
to estético e projeto político” (Souza, 1999, p. 191). A crítica
mineira partiu das considerações de Michel Beaujour (Miroirs
(Miroirs
d´encre,, 1980) acerca do autorretrato para reconstituir, a partir
d´encre
dos relatos confessionais de Mário, particularmente a Henri-
queta Lisboa, os retratos dele realizados por amigos pintores.
Neles, o poeta comentava a projeção de diferentes imagens de
si, de seus aspectos demoníacos ou angelicais. Essas diferentes
feições de Mário convertidas em verdadeiros autorretratos ver-
bais, conforme esclarece Eneida Maria de Souza, são condizen-
tes com o gênero. Ela ressalta: “a metáfora (autorretrato) traduz
a maneira pela qual a imagem se compõe, fragmentariamente e
pelo olhar do outro [...]” (Souza, 1999, p. 193). O processo de
montagem destes autorretratos, segundo a autora, é o da cola-
gem, enfatizando, consequentemente, o caráter construído e ou
ficcional das “figurações de Mário”. Não à toa, o texto de Enei-
da intitula-se “Autoficções de Mário”. A vantagem, apontada
pela crítica mineira, de trabalhar conceitualmente com autorre-
tratos seria a de que estes não se prendem rigorosamente à cro-
nologia autobiográfica, sendo abertos às “reprises”, retomadas e
insistências. O autorretrato configura, até então, gênero aberto
e anfíbio entre o documento e a ficção, trazendo o componente
66

falho dos biografemas (cf. Barthes, 1984)3 como “gestos, infle-


xões” sem a preocupação do acabamento biográfico ou autobio-
gráfico. Os retratos pintados por amigos do poeta (Candido
Portinari, Flávio de Carvalho) teriam devolvido, portanto, ao
poeta algumas de suas trezentas ou trezentas e cinquenta faces,
suas “(im)permanências do eu na febre” (verso de Mário de An-
drade em “Tristura”).4
No gênero autorretrato interessa, por conseguinte, e sobre-
tudo, o rompimento das semelhanças do amplo gênero autobio-
gráfico, já que, trabalhando com diversas faces de diferenciados
momentos, estranhamentos, e rupturas com conteúdos fixos, ou
cronologias estáveis, escreve (pinta, esculpe) para o corpo novas
superfícies, aspectos diferenciais, recomeços, retomadas, citações
intertextuais e intratextuais como se fossem variadas reescrituras
do ‘eu’, como novas tatuagens escritas sobre antigas. Nesse senti-
do, o reflexo especular do pronome Eu (com maiúscula), como é
pensado no senso comum, está rasurado pela intercorrência des-
tas faces diversas, das coisas do mundo, dos outros, do circuns-
tancial, o que torna rarefeita a percepção da primeira pessoa sobre
si mesma como árduo trabalho de pintar sobre água.

Voilà mon coeur: o coração, de novo


Os autorretratos permitirão duplicar o duplo, jogar um
duplo contra o outro, e assim escapar do império do duplo
3
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola, 1979, pp.14-15; BARTHES, Roland. A
câmara clara, 1984, p. 51.
4
ANDRADE, Mário. “Tristura”. Pauliceia desvairada. In Poesias completas. V. 1. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, p. 89.
Um corpo que vaza 67

especular – reconstituir-se, regenerar-se, parir a si mesmo, afir-


mando uma vida mais potente que a loucura e a morte.5

Figura 2 – Artur de Vargas Giorgi. Meu coração (foto).

Em 1988, Leonilson intitula um trabalho seu como São


tantas as verdades.
verdades. O artista, de certa maneira, assina embaixo
do desmonte das ilusões de verdade que Nietzsche anunciou
5
Sobre os autorretratos de David Nebreda, Jacob Rogozinski. In “Vejam, isto é meu
sangue; ou a paixão segundo D. N. N.” In Dias e Glenadel, 2008, p. 47.
68

no texto “Introdução teorética sobre a verdade e a mentira no


sentido extramoral (verão de 1873)” em O livro do filósofo.
filósofo.
Nietzsche refletia sobre a ilusão de verdade criada pelas metáfo-
ras sem centro. Assim, nas palavras do filósofo:

Esta conclusão da paz traz com ela qualquer coisa que se as-
semelha ao primeiro passo para a obtenção deste enigmáti-
co instinto da verdade. Quer dizer que agora está fixado o
que doravante deverá ser “verdade”, o que quer dizer que se
encontrou uma designação das coisas uniformemente váli-
da e obrigatória, e a legislação da linguagem fornece, inclu-
sivamente, as primeiras leis da verdade: porque aqui nasce,
pela primeira vez, o contraste entre a verdade e a mentira”
(Nietzsche, 1984, p. 91).

A ilusão de verdade será traduzida, por Nietzsche, com a


bela metáfora da mosca que voeja no vazio carregando no ven-
tre a arrogância dos detentores da ilusão de verdade: “Mas, se
nos pudéssemos entender com a mosca, conviríamos que tam-
bém ela evolui no ar com o mesmo pathos e sente voar nela o
centro deste mundo” (idem, p. 89). A mosca perfaz, com seu
voo, a ideia de volatização da verdade. Sartre também havia
interrogado, na análise da obra de Giacometti: “como pintar o
vazio?” (Sartre, 2012, p. 57). Para o filósofo francês, Giacometti
nos remeteria a uma interrogação: “por que há alguma coisa e
não nada? E, no entanto, há algo: há a aparição teimosa, injusti-
ficável e supérflua. O personagem pintado é alucinante, porque
Um corpo que vaza 69

se apresenta sob a forma de uma aparição interrogativa”


interrogativa” (p. 58,
grifo do autor).
Aparição interrogativa é o modo velado de Leonilson
endereçar-nos sua obra, a partir de suas frases sedutoras, alusões
eróticas, roupas que parecem guardar traços, vestígios, cheiros,
formas vazias, ausência/presença do corpo. Desse modo, o ar-
tista nos protege de uma verdade impossível e dura que se quer
regulada pelas instituições ou leis do mercado. No pequeno
trabalho de Leonilson, Voilà mon coeur,
coeur, exposto em 1989, na
Galeria Luisa Strina, São Paulo, o artista entrega-se, não como
se fosse o centro sensorial de sua arte, nem como intelecto pro-
dutivo, mas como coração. Trata-se de um recorte de lona pin-
tado de tinta acrílica dourada, em que Leonilson bordou 26
pingentes de cristal de um candelabro. O coração exposto e
entregue ao público parece vazio, diáfano, transparente, oferta-
do como sacrifício subjetivo do artista. Lembremos que a frase
remete ao gesto icônico do Sagrado Coração de Jesus: “Aqui
está meu coração, faça dele o que quiseres”. A peça de pano
com cristais pendurados também voeja no vazio, mas nela não
entra a arrogância de um dono da verdade. Leonilson, de modo
comovente, investiga a possibilidade de entrega amorosa do ar-
tista: “faça dele o que lhe aprouver”, percebendo o vazio que só
se complementará com a aceitação do outro de que “são tantas
as verdades”.
Da mesma maneira, o trabalho El puerto,
puerto, de 1992, com-
posto por um espelho barato e cotidiano, o qual se encontra
vedado por uma cortininha de pano comum listrado desses de
70

pijama ou de uniforme de prisioneiro e cuja promessa de se


“aportar” num lugar seguro não se cumpre quando o espec-
tador afasta a cortina e se vê no espelho, causa nesta mirada
certo constrangimento ou estranhamento de estar-se onde não
se sabia. Assim, em cada pingente de cristal de Voilà mon coeur,
coeur,
o público pode ver, retido ou repetido, um traço de seu pró-
prio rosto. O véu é vela, o véu vela – nas metáforas náuticas de
descobrimento e encobrimento. Não há o que revelar da vida
do artista que já não seja público, comum de dois, mínimo
múltiplo comum – “o que me olha, o que me vê” (cf. Didi--
-Huberman, 1998).
É disso que trata Voilà mon coeur?
coeur? Eu diria antes; é disso
que trato em Voilà mon coeur – também do sacrifício da crítica
que aqui eu trato. Explico: aquele que se dedica a comentar
o trabalho do artista traça seu próprio autorretrato, e nele se
entrega, voejando no vazio, descentrado, buscando vestígios de
muitos reflexos da verdade como nos cristais do coração de Le-
onilson. Ele está em busca de uma comunidade afetiva, de um
circuito de identificações, subjetivações, para si próprio.
Na Bienal de São Paulo de 2012, alguns trabalhos tam-
bém beiravam, ou por suas dimensões diminutas, ou por sua
aparência testemunhal como um apelo: “eis- me aqui”, este as-
pecto autoficcional dos trabalhos de Leonilson. Neles se perce-
bia um sentimento de “comuna utópica” como comentou An-
dré Severo, em “Distinção da iminência”, evocando Agamben,
sobre o caráter de singularidade comum e ou em comum de
trabalhos expostos:
Um corpo que vaza 71

Sem basear-se em reivindicações identitárias, em conceitos


arraigados ou noções de propriedade; conformada por sin-
gularidades quaisquer, teria como ser correspondente, o ser
qualquer – um ser privado de toda identidade representável
e sem necessidade de reivindicar nenhuma condição de per-
tença. Esse ser, em vez de procurar uma identidade própria na
forma de individualidade, faria do modo como é (o ser-assim)
uma singularidade sem identidade e perfeitamente comum,
pois somente desse modo poderia aceder à sua possibilidade
mais imanente e à experiência da singularidade enquanto tal
(Severo, 2012, p. 53).

Decorre também da experiência anônima do “ser qual-


quer”, o corpo qualquer. Não o corpo sob o impacto da norma-
lização institucional ou midiática, não o corpo sob o controle,
mas o corpo que vaza. O corpo diverso de si mesmo, corpos
diversos num só corpo, corpo sem músculos, sem tecidos, cor-
po – touch screen.
screen.
Voilà mon coeur anuncia o corpo-coração como emblema
da semelhança dentro das diferenças, das diferenças dentro das
semelhanças. Quando a vida assume a violência, a arte fica livre
para assumir de outro modo o coup de foudre amoroso e expe-
rimentar as formas difíceis e revolucionárias do encontro. E o
encontro será tátil, contagioso, contaminador.
Marcos Siscar, no belo texto “O coração transtorna-
do” (2005, pp. 135-142), reflete sobre as relações da pa-
lavra coração com palavras cotidianas (acordo, coragem,
72

cordialidade, misericórdia). Em torno do coração, vigora


toda simbologia da intimidade, da interiorização. Mas, se-
gundo Siscar, o que se tem é um coração-víscera, como o
descreve o poeta crítico: “Dentro do corpo as vísceras (e o
coração é uma víscera) constituem a figura de uma estra-
nha interioridade, espaço dos líquidos e dos excrementos,
espaço também do amor físico e da concepção, sede da vida
fisiológica” (Siscar, 2005, p. 139).
Delicadamente, com precisão cirúrgica, Marcos Siscar
descentra o coração, rebaixa-o, interioriza-o, dota-o de uma
vida própria e sangrenta. “O coração mostra-se como uma ex-
periência visceral”:

O ventre é, portanto, um lugar aporético: não exatamente o


contrário do coração, mas o lugar onde o coração se transtorna
para poder desembuchar o acontecimento. Como se o coração
fosse antes de mais nada perturbado, “trans-tornado”, movi-
do de cabeça para baixo, como um feto. O coração víscera é
sempre um coração transtornado que aproxima a coragem e
o medo, a hostilidade e a hospitalidade do dom daquilo que
acontece (idem, ibidem).

A visceralidade não se confundirá, no entanto, com since-


ridade, verdade; antes com busca e destinação. Leonilson prefi-
gura ensaios biográficos ou, como chamaremos, bio-inscrições,
em que a demanda do outro será desdobrada pela demanda de
vivência e de convívio da vida de artista. Este caminho da arte,
Um corpo que vaza 73

ou esta vereda aberta, interessa à novíssima geração, como se


verá no crescimento, mesmo na literatura da autoficção.

Contatos imediatos de terceiro grau:


grau: lembra os trabalhos que an-
dei relendo?

No ya la idea de una hipotética sinceridad, al estilo de Rous-


seau, de un efectivo desnudamiento del ser, tampoco la coin-
cidencia entre “persona real” y personaje, como postula Phi-
lippe Lejeune – ya el avispado receptor de estos tiempos es
menos permeable a la identificación total entre uno y otro
– ni, probablemente, la esperanza de una mayor adecuación
a la verdad de los hechos, sino, quizá, justamente, la ilusión
de la presencia
la presencia,, del acceso al lugar de emanación de la voz (Ar-
fuch, 1998, p. 42).

Artur de Vargas Giorgi,6 jovem artista paulistano, autor


das “garafunhas”7 (trabalhos de desenho, colagens), nas quais
exercita o inacabamento, criou uma série de “autorretratos
“autorretratos”” e/
ou “autobiografias”. Estes são, na maioria, desenhos em grafi-
te. Alguns trazem o esqueleto exposto; outros, a boca aberta,
figuras boiando no vazio sem cenário, com títulos ou frases de
caráter lírico à moda dos emblemas do século XVI. Com estes
6
Artur de Vargas Giorgi: doutorando em Teoria Literária (UFSC) pesquisa sobre os
exílios de Ferreira Gullar e León Ferrari. É autor com Ana Chiara do livro Enxerto
para uma vida feliz (Casa Doze, 2012). Seus interesses nas artes visuais concentram-se,
principalmente, no desenho, na colagem, na pintura e na fotografia, linguagens nas
quais a palavra sempre comparece.
7
Como o artista as denomina.
74

autorretratos, Vargas Giorgi parece elidir toda história ou iden-


tificação subjetiva.

Figura 3 – Artur de Vargas Giorgi.


Giorgi. Lugares onde nos encontramos.
encontramos.
Um corpo que vaza 75

A “ilusão de presença” de que fala Leonor Arfuch, na epí-


grafe citada, encontra-se rasurada por um corpo-contorno, de
duração e passagem, por imagens de um alheamento do eu,
pela imaginação do “eu” impessoal com endereçamento e con-
tágio, mas sem pessoalidade, menos o “espaço biográfico”, mais
o espaçamento. São formas esquemáticas de um corpo mascu-
lino que parece alheio, como em autorretrato cruzando as pernas
no qual a figura encontra-se heráldica e desconfortavelmente
sentada à espera de algo que a encontre, alguém a encontre.
Entre as garafunhas desta série dos autobiográficos, quero
me deter sobre o autorretrato arcaico.
arcaico. Trata-se de um desenho e
acrílico sobre madeira (encontrada em caçamba com entulhos,
provavelmente parte de um armário, segundo relato do artista)
com duas colagens: uma é um recorte de lona crua em que está
colado um rosto e a outra é a impressão de um detalhe de aqua-
rela colado à altura do coração. Para a colagem, Vargas Giorgi
transplantou um trabalho de Bené Fonteles,8 o artista-xamã,
intitulado Coração de mãe.
Fonteles nomeou sudários,9 alguns trabalhos feitos a par-
tir de um traço desenhado, por um amigo, no contorno de seu
corpo quando convalescia de queimaduras. O próprio artista,
8
José Benedito Fonteles, escultor, jornalista, editor, poeta e compositor paraense, ini-
ciou sua carreira na década de 1970, dedicando-se inteiramente à arte conceitual com
trabalhos de arte correio, arte xerox e assemblages, muitos deles combinando xerografia
e colagem. Também realizou esculturas e objetos criados com elementos da natureza
como pedras, penas, artefatos indígenas e papéis artesanais. Todo seu trabalho está
envolvido com questões ambientais e sociais.
9
Pugliese, Vera. “Os sudários de Bené Fonteles: a história da arte como antropologia
da imagem”. In Anais do XXXII Colóquio CBHA 2012 (1519-1538). Disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=X134QO14edQ.. Acesso em 13 dez. 2014.
http://www.youtube.com/watch?v=X134QO14edQ
76

em depoimentos, considera os sudários como uma transfigura-


ção de seu corpo. Vera Maria Pugliese de Castro afirma:

Essa transfiguração implicou um processo de criação no


qual Fonteles relata ter sido constrangido pela vontade da
própria forma, impregnada do sentido da matéria e do gesto
do artista que nasceu como um duplo fantasmático de seu
próprio corpo, que passaria a incorporar sua memória indi-
vidual e a memória coletiva de seu meio” (Pugliese, 2012,
pp.1.519-1.538).

A memória arcaica, suscitada pelo corpo desenhado


como inscrição rupestre, torna elástica a subjetividade do ar-
tista. Assim, deixa que, no corpo e pelo corpo, outras “vozes”
demandem o olhar especular do público.
Ao retomar, dentro do peito de seu autorretrato, o Coração
de mãe do artista paraense, Vargas Giorgi suprime as identifi-
cações fáceis, dando lugar às afinidades eletivas. Ele provoca a
crítica como pergunta. E as perguntas: “A quem pertenço, Cora-
ção? De que me defendo? Como entrar neste peito e arrancar o
Coração de mãe da arte, este feto intruso? Como fazer este parto
a fórceps extraindo uma só verdade onde as ‘verdades’ recriam-se
a todo tempo? Como celebrar esta aparição, este acontecimento
inquietante? O que a palavra da crítica pode fazer neste caso em
que se suspendem os limites entre corpos diversos? Em que a arte
fecunda a arte e nada conta do segredo, do secreto, a não ser fazer
dele um coração exposto e transtornado?”
Um corpo que vaza 77

Figura 4 – Artur de Vargas Giorgi. Autorretrato arcaico.


arcaico.

Talvez a foto Meu coração espacializasse o coração, tor-


nando-o superfície vasta, ou como afirma María Zambrano (A (A
metáfora do coração e outros escritos,
escritos, 2000, pp. 20-25), é “escura
cavidade, de recinto hermético”, expondo um “dentro obscuro
secreto e misterioso, que em algumas ocasiões se abre” (p. 23).
Nesta superfície escura, onde brilham algumas luzes, “interiori-
dade aberta, passividade activa” (idem), pode ocorrer o encon-
tro como “aparição interrogativa”, quando o coração do artista
78

encontra o coração do outro artista, como no ‘‘autorretrato ar-


caico” (Giorgi), quando também encontrará o dos outros ho-
mens, fazendo transplantes sucessivos, renovadores, lembrando
versos do poema de Drummond, “Mundo grande”, com dicção
menos revolucionária e mais perplexa:

Então, meu coração também pode crescer.


Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

A explosão, o transplante e a criação da vida futura formam


uma nova cadeia, não evolutiva, no sentido escatológico ou de apri-
moramento, mas de dramatização desta “aparição interrogativa”
como possibilidade aberta no impossível por onde a arte quer conta-
minar de modo virulento nossas entranhas. O que pode o artista, o
crítico, o público, então, diante do segredo da arte que é ofer-
ta e recusa? Talvez acatar e repercutir de modo mais intimista
e com voz mais baixa: “Eis aqui meu coração, faça dele o que quiser.”

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Trad. José Bento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000.
Sem tirar o corpo fora

Marcia Tiburi1

Para Ana Chiara, que não tira o corpo fora

Com que corpo eu vou à dança que você me convidou?


Quando eles apareceram, Juliana Adur, Peter Abudi e
Yiuki Doi tinham lido o Diálogo/dança (Senac, 2011), livro
que resultou de minha troca de cartas em torno do tema, do
conceito e, hoje posso dizer, de certa experiência de dança
com Thereza Rocha. A peça Feche os olhos para olhar,
olhar, da Des-
companhia de Dança de Curitiba, dirigida por Cintia Napoli,
da qual os bailarinos citados fazem parte, estava em cartaz.
Fui assistir.
O grupo havia nos chamado, a mim e a Thereza Rocha,
para participar de suas apresentações em São Paulo e Fortale-
1
Mestre em Filosofia e doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (1999). É professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
82

za e, desse modo, à sua maneira, ou melhor, à nossa maneira


– nossa enquanto se tornou também deles – uma maneira que
eles modificavam ao seu modo produzindo uma nova plurali-
dade – continuar o que tinha sido começado em Diálogo/dan-
ça.. De fato, o grupo tinha com sua dança, “dançado” com o
ça
nosso diálogo, de modo que a questão parecia ser a de que po-
díamos dialogar com a sua dança. Era o convite. É preciso dizer
que o propósito do nosso livro nunca ficou muito claro – nunca
pretendemos nada parecido com “clareza” – antes de que ele ti-
vesse acontecido no tempo: Diálogo/dança era o processo e o efei-
to de um gesto. Digamos que um gesto não intencional, como
são os gestos inventivos de um modo geral. Eu gostava de dança
e gostava de Thereza (ainda gosto de dança e gosto mais de The-
reza), e para mim, isso era o suficiente para começar o livro. Um
despropósito produtivo. Era a ideia. Começar o livro como quem
convida alguém para dançar/dialogar: foi isso o que aconteceu.
Na continuidade, foi um acontecimento emocionante, no
sentido de uma salutar perplexidade filosófica, quando este gru-
po de artistas da dança nos convidou para continuar com eles.
Convidavam-nos a estar presentes; era isso o que eu começava
a entender. Houve o momento de ir a Fortaleza, eu precisava ir,
não tinha como ir, mas peguei um avião de São Paulo até lá,
falei com eles e com Thereza e voltei no voo seguinte. A presen-
ça era presença mesmo. Que tenham se comovido com o nosso
trabalho exigia esse peso posto nas coisas. Esse peso corporal.
Esse peso era do nosso Diálogo/dança
Diálogo/dança,, obra filosófica na
qual o peso no conceito – porque o livro pisa fundo no conceito
Sem tirar o corpo fora 83

até transformá-lo em uma outra coisa, um vento, um ar respi-


rável – não tirava o corpo fora. Creio que existem teorias que
tiram o corpo fora e teorias que não tiram o corpo fora. O nos-
so diálogo, penso, era o tipo de “teoria” que não tirava o corpo
fora. Ao contrário, era um tipo de teoria (não é bem uma teoria,
é bem mais um pensamento, mas fiquemos com a palavra teo-
ria que todo mundo entende, mesmo quem não se comunica
com o fantasma da academia) que pensa – corporalmente, que
eleva, ou melhor, não se eleva, como acabei descobrindo, ain-
da que traduza
traduza,, o corpo-conceito, o conceito-corpo – esse que
ocupa lugar no espaço – em termos de dança. Aquela teoria
corpórea, eis o que é a dança, aquele corpo que é, em si mesmo,
pensamento, eis o que é a dança. A dança que é o cerne do ato
conceitual. O pensamento em ação é dança. Durante os anos
que escrevi com Thereza Rocha, aprendi muitas coisas sobre a
dança, a dança objeto. Mas aprendi com Thereza que a dança
não era um objeto, não tinha um objeto, não tinha um sujeito,
era um “pensamento sem predicação” (Tiburi e Rocha, 2011, p.
11). Dança era também o que acontecia no nosso livro.
Estou falando em nosso livro antes de entrar no espetá-
culo, na peça apresentada pela Descompanhia de dança, porque
a peça mostrou-me justamente algo que eu não tinha visto no
livro que eu mesma ajudei a escrever. Essa coisa que eu não via
no livro estava lá, é claro. O que eu não vira, a coisa para a qual,
a peça me acordou, era o próprio livro enquanto esse era um
corpo. O corpo do livro é o inconsciente conceitual do livro.
Inconsciente conceitual, por sua vez, é um conceito que forjei
84

há alguns anos, mais precisamente, em meu Filosofia cinza,


cinza, de
2004. Com ele, eu gostaria de expressar tudo aquilo que, for-
jando um pensamento, sustentando um pensamento, está, no
entanto, dele oculto. A filosofia é, nesse sentido, reveladora de
inconsciente conceitual.
A questão do livro como corpo sempre me tocou. Em-
bora eu já tivesse trabalhado com a ideia de um livro-corpo
quando escrevi Filosofia cinza,
cinza, naquele momento em que es-
crevíamos o Diálogo/dança
Diálogo/dança,, era como se eu tivesse esquecido
que um livro é um corpo, que tem em comum com qualquer
corpo, qualquer coisa – porque todo corpo, embora não seja
coisificável, é coisa – o fato de que ele é presença que ocupa lu-
gar no espaço. O corpo é ele todo uma ocupação. Ele aparece,
ele está, ele pesa. Dizer a dança com palavras era mais do que
complicado (Thereza falou em um Diálogo como “dança im-
possível”, p. 47). Algo como a junção das palavras pode revelar
do que se trata: conceitocorpo
conceitocorpo.. Penso em um conceito materia-
lizado, um conceito todo pesando, realizando, todo travando a
língua, fazendo mancar, todo nascido. E que, embora não possa
ser medido com métricas comuns, pode, contudo, como um
corpo, dançar, ou, como um corpo, ser esquartejado. Penso no
conceitocorpo que se guarda no livro que é corpo. A palavra já é
corpo. Um conceito que não existe senão pela materialidade da
palavra que o traz à luz.
Embora o corpo possa ser um livro, é claro que este é
um corpo. Nosso Diálogo/dança é um corpo articulado por seu
movimento interno. Palavras em movimento buscando-se fora
Sem tirar o corpo fora 85

da predicação. Seria isso possível? Como intenção que foge a


intencionalidade, parece que sim. Para entender o que fizemos
nesse livro, esse processo de corpoconceituar que se expressou
como conceitocorporificar ou como conceitodançar (essas junções
são horríveis, mas me ajudam a pensar agora), seria interessante
pensar na sua diferença com relação a uma tradição: digamos
que na história tradicional do pensamento, mas sobretudo num
certo modo de fazer teoria, se usem aqueles conceitos esquar-
tejados já citados, que vêm pingando sangue, que fedem no
apodrecimento inevitável da matéria. São conceitos mortos
que não podem mais brincar. Eles valem para as teorias que
tiram o corpo fora. Teorias como experiências de pensamen-
to articuladas que não suportam o peso do concreto que é o
corpo. Já nas teorias que não tiram o corpo fora, os conceitos
são deixados como crianças que podem brincar na terra. Um
conceito-dançante,, chamemos assim, não pode ser esquartejado
conceito-dançante
porque o corpo fica inteiro em estado de dança e, talvez, apenas
quando dance (não consigo encontrar outro momento em que
o Todo do corpo se dê, senão na dança). O que estou chamando
de conceito-dançante é sempre um conceito-corpo, um corpo-
-conceito que se dirige a muitos lugares, mas creio que seu lugar
original seja o chão. A direção a esse limite. Esses conceitos-cor-
pos, corpos-conceitos, podem existir pesando como um corpo
em luta, em festa, com o chão, com o que os físicos vieram a
denominar gravidade. Um nome feio para a situação de estar
em algo, em tensão com o que atrai: o corpo da Terra, bem
maior do que nosso corpo humano. O chão é a única metafísica
86

possível para a dança. A dança que é arte contrametafísica por


excelência. Mas dizer isso é uma coisa tão simples quando ve-
mos que há esforços de ver a dança como a metafísica do corpo.
Só as filosofias da dança superam a metafísica. Eu pensava assim
quando escrevia o livro com a Thereza. Ainda penso.
Em geral, todo livro fica na estante, sobre a mesa, guar-
dado como um objeto sagrado. Penso que nosso livro diálogo-
dançado,, enquanto é corpo, também dá a dança, e, dançando,
dançado
expressa o desejo constitutivo de todo corpo: o chão. O livro
pede o chão. Era esse o livro que eu não via, o livro-corpo.
A dança pode não ser uma representação, mas ela é metafísica
negativa, espírito da materialidade, materialidade do espírito.
Um livro-corpo é um livro em queda, não um livro de sublima-
ção, não um livro metafísico, provocador de neblina, mas que
fizesse chover e, depois da chuva, misturado com a matéria no
chão, o pó, causasse muita lama. Pensava no livro que provo-
casse esse encontro com a matéria metafísica da antimetafísica,
que provocasse uma devolução do conceito ao corpo, do corpo
ao corpo, como eu já tinha enunciado no meu Filosofia cinza,
cinza,
publicado na mesma época em que conheci Thereza. Era o que
podia o livro que eu não tinha visto. O livro que eu não poderia
ver. O livro que era presença e não sentido do livro.
Então, eu pude ver. Mas o que é que não se vê? Ora,
o que não se vê, me dei conta, eis onde está e o que é, é, verda-
deiramente, o corpo.
corpo. Thereza me diria nesta hora: “Você não
deveria jamais usar essa palavra ‘verdadeiramente’, ela estraga
o seu raciocínio”. Mas cito imaginariamente a minha parceira
Sem tirar o corpo fora 87

de diálogo, pensando que Thereza, nesse momento, ri de mim,


amorosamente vendo-me fantasiar nosso diálogo inacabado,
sempre recomeçado.
Sempre vemos o corpo na dança. É fácil dizer que vemos um
corpo, mas ver um corpo não é nada, porque, do corpo, só é corpo
o que não se vê. Talvez tenha sido isso o que Thereza chamou em
nosso Diálogo de “ver-tátil” (p. 44). A peça me fez ver o corpo que
não se vê. Ou seja, acho que fui tocada. Participei, entrei.

Feche os olhos para olhar


Na sala do Centro Cultural São Paulo, tudo havia desa-
parecido no escuro ao redor. Também eu deveria desaparecer,
mas isso não se deu instantaneamente. Entrei logo que a porta
fora fechada e os bailarinos começavam o rito (não era um rito,
era um feito, uma “produção”, assim para começo de conver-
sa, mas a produção só acontece se, lembrando que há um rito,
vemos que ele se foi). Entrei com meu corpo, porque é com o
corpo que a gente anda, vem e vai. Não estou sendo irônica.
Isso não é nada óbvio em uma época em que o corpo é descar-
tado, esgarçado pelo plástico, esta matéria imaterial produtora
de lixo infinito. Logo vi que algo do meu corpo continuara lá
fora como deve ficar quando, respeitosamente, nos dirigimos
ao momento em que se produz a dança alheia (não era simples-
mente alheia, mas digamos que fosse). Eu não teria me dado
conta disso se tivesse chegado cedo e a minha presença não fosse
um incômodo, como acabei me dando conta. Um incômodo,
sobretudo, e talvez apenas, para mim, que sentia algum tipo de
88

vergonha, um medo de incomodar. O escuro ao redor fazia sa-


ber que os olhos estavam já fechados, mesmo que os bailarinos,
mais adiante, pedissem para fechá-los. Já entramos – os outros,
neste caso, antes de mim – cegos no recinto espetacular, que se
tornara tão antiespetacular com o escuro em estado incômodo.
Quem entra na hora devida é ritualizado; quem entra na hora
indevida é um estorvo que perdeu seu estado de rito. Cada mo-
vimento na direção do assento onde eu, atrasada e na iminência
de fazer algum barulho, deveria ficar quieta, não deveria ser
notado, por ninguém, nem por mim que, naquele momento,
era a encarnação de um estorvo. Tentei desaparecer. Espero ter
sido feliz na minha tentativa. Uma esperança contra a heresia
da presença na hora indevida.
Logo ao seu início, por conta do meu atraso, que incluo
na fenomenologia do encontro que narro com intenções her-
menêuticas, atraso que incluo como acaso, que é parte (menos,
obscura, mas ainda parte) da obra enquanto é parte de sua per-
cepção, o espetáculo acenou, a meu ver, para o problema da
presença. Por conta de estar fora do rito, como estorvo, eu me
dei conta da presença. Eu já era um ver não escópico, mas um
“ver tátil” pelo fato de estar na presença, como que desnudada
da minha representação de espectadora de um espetáculo. Não
havia, a propósito, espetáculo. Quem estava ali para ver seria
provocado nesse “ver-tátil”. Fechar os olhos para olhar era esse
ver tátil ao qual estávamos chamados, todos os presentes.
Assim, gostaria de apresentar, dentro dos muitos limites
desse artigo, minhas considerações sobre a categoria da presen-
Sem tirar o corpo fora 89

ça, o modo como ela surgiu no contato com esse espetáculo e


o que ela pode nos dizer sobre o todo, o ponto, da presença
em nossas vidas. Creio ser possível afirmar que essa dança em
Feche os olhos para ver,
ver, da Descompanhia, como toda dança não
espetacularizada, que inclusive, em alguns momentos critica a
dança espetacularizada, que ela nos coloca na experiência da
presença em alguns aspectos fundamentais. Hans Gumbrecht,
quem despertou meu interesse pela ideia da presença, diz algo
importante nesse contexto: “A palavra ‘presença’ não se refere
(pelo menos, não principalmente) a uma relação temporal. An-
tes refere-se a uma relação espacial com o mundo e seus objetos”
(Gumbrecht, 2010, p. 13). Gostaria de dialogar com essa ideia
para pensar no acontecimento vivido naquela apresentação.
Gumbrecht fala de coisas tangíveis às mãos, mas isso não
é o que mais me impressiona do seu argumento. O que impres-
siona é o que ele chama de “produção de presença”, lembrando
que a etimologia de produção diz respeito, em suas palavras, “ao
ato de trazer para diante” um objeto no espaço” (Gumbrecht,
2010, p. 13). O autor fala de um “desejo de imediatez” por-
que é claro que não temos uma relação com o mundo que seja
imediata. Talvez ele queira dizer que tudo é mediado e parece
que nos falta justamente o imediato. Gostaríamos de chegar
nele. Isso quer dizer que, entre nós e as coisas, há a linguagem.
E a linguagem é produtora de “sentido”. Então, Gumbrecht
escreve para alertar para as coisas.
coisas. É nesse sentido que também
eu me preocupei com o livro. O livro é uma coisa do mundo.
Uma coisa que, muitas vezes, não vemos. A condição da coisa
90

é a presença que se dá pelos sentidos que, posso dizer, não


são separados do pensamento. A “produção de presença” de
que fala Gumbrecht diz respeito a uma espécie de encontro
com as chamadas “coisas do mundo”. Esta espécie de encontro
prepondera, no caso da produção da presença, sobre a neces-
sidade metafísica do sentido. Seria como se, para entender a
presença, fosse sempre necessário suspender as coisas no seu
sentido. Quer dizer, tirar o sentido fora, esquecer um pouco
dele. Creio que seja nesse aspecto que ele fale em “produzir
presença”, em vez de produzir sentido. Entendo isso como
uma espécie de retorno à materialidade perdida ou uma des-
coberta de uma materialidade nunca vista. Creio que a dança
nos envia não a uma materialidade tout court, court, simplesmente.
Mas se relaciona à materialidade enquanto nos faz lembrar
que o corpo em movimento tem um pé na materialidade: ma-
téria e forma, ato e potência, para usar velhas categorias aris-
totélicas, poderiam nos dizer alguma coisa, mas nosso espaço
é curto e o tema urge.
Sobre a diferença entre o sentido e a presença, é preciso in-
sistir mais um pouco. Gumbrecht diz que nosso mundo contem-
porâneo tem a tendência de abandonar a “possibilidade de uma re-
lação com o mundo fundada na presença” (Gumbrecht, 2010 , p.
15). Preferimos o sentido, que seria o seu contrário. O sentido seria
metafísico. Como produção metafísica, o sentido parece um gesto
que tira todo o gesto da cena. O sentido deve ser o que chamei de
“tirar o corpo fora”. Citarei Gumbrecht mais uma vez, porque suas
palavras se encaixam muito bem no que quero expressar:
Sem tirar o corpo fora 91

Se atribuirmos um sentido a alguma coisa presente, isto é, se


formarmos uma ideia do que esta coisa pode ser em relação
a nós mesmos, parece que atenuamos inevitavelmente o im-
pacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos.
(Gumbrecht, 2010, p. 14)

Na sequência, ele dirá que a metafísica é a “atitude, quer


cotidiana, quer acadêmica, que atribui ao sentido dos fenô-
menos um valor mais elevado do que à sua presença material”
(Gumbrecht, 2010, p. 14). A presença é a materialidade que,
necessariamente, não concerne a um além. A presença terá, po-
demos dizer, relação com a aproximação ao corpo, não com o
distanciamento metafísico ao corpo. A presença se dá contra
qualquer além. Gostaria, contudo, de guardar essa ideia contra
a metafísica, porque acredito que, de alguma maneira, a dança é
uma espécie de metafísica. Em palavras mais adequadas, a dan-
ça não está de todo desprendida da metafísica. No entanto, re-
firo-me a uma metafísica negativa. Uma metafísica pelo excesso
de corpo. Em Diálogo/dança
Diálogo/dança,, eu falei que a dança é metafísica
enquanto é, em certo sentido, questão primeira (p. 74). É uma
articulação do corpo com o que vai além dele no sentido de
um desordenamento e de um abismamento no próprio corpo.
O que chamo de metafísica negativa agora (corrigindo o livro,
talvez) seria não uma fuga para fora do corpo, um “tirar o corpo
fora” como venho afirmando, mas uma devolução do corpo ao
corpo, como já afirmei em Diálogo/dança
Diálogo/dança.. Um ato em que se
coloca em cena a negatividade: não tirar o corpo fora. Não é
92

possível colocar o corpo dentro, mas é possível não tirar o corpo


fora. O corpo é o lugar onde estamos na posição de “presença”.
Creio que seja possível dizer isso agora.
Parece que no momento em que o corpo da gente some,
é que entendemos alguma coisa sobre ele, alguma coisa dele.
Quando o corpo some, é que cada movimento precisou ser me-
dido. O corpo some na medida. Medindo o corpo fazemos com
que ele desapareça. Ele se torna morto. Ele se torna ausência.
Talvez o que Adorno quis dizer com o “olhar do fabricante de
caixões” (Adorno, 1985, p. 219), que é um olhar de mensura-
ção sobre o gordo, baixo, alto, magro, com que aqueles a quem
podemos chamar de “manipuladores do corpo”, para falar a
propósito de “os desprezadores do corpo” (Nietzsche, 2011,
p. 34), olham para os outros seja isso. Ao contrário, quando se
dança, o corpo não some, fica todo presente porque a medida
desaparece dando lugar à presença. A presença é um desnuda-
mento. Sequer há linguagem ou técnica nesse momento. O cor-
po na dança é todo “presença”, mas é também todo “produção
de presença”. Ele é evidentemente desmedida. O que não cabe
no olhar do fabricante de caixão.
Só que isso me faz pensar que se o outro vem à presença,
eu também. Eu que sou o outro da dança que eu vejo, venho
a mim. Sou a coisa presente para mim mesma. O corpo não
seria, neste caso, uma coisa no sentido do coisificável, não seria
isso. Mas seria, sim, uma coisa presente. Uma coisa que não é a
coisa bruta, nem a coisa em si, nem a coisa freudiana, é a coisa
no sentido do ser, daquilo que “há”. É esse corpo presente que
Sem tirar o corpo fora 93

se dá a quem o vê. Mas não é o corpo presente da missa no mo-


mento do velório. Não é o corpo-cadáver. É o corpo vivo, en-
quanto é corpo político. Corpo que se move, que tende à, que
é potencialidade, vira ser, coisas assim. Corpo que tem lugar no
mundo. Não corpo que simplesmente ocupa espaço, mas que
cria o espaço que ocupa. Mas quem o vê, apenas vê o que o
corpo não é. O corpo está, de fato, mais além nele mesmo. De-
volvido a ele mesmo em todo o seu peso comunicado ao espaço
num momento de desmedida. O corpo é sempre o corpo que
cai. Essa queda é o baixo, o baixo que as artes do corpo, a dança
genérica como arte do corpo, nos mostra.
Descobri que o baixo é uma categoria linda. O baixo
como vontade de deitar, sentar no chão, rolar no chão, ficar
no chão. De olhar do ponto de vista do chão. Rastejar, saltar,
pular, mas apenas para cair. O baixo é uma categoria sublime
(ainda que ligada ao cômico, ao mundo de Rabelais). Só que
esse além está embutido na materialidade que, pesando, nos
puxa para o chão.
Nós, que assistimos uma apresentação de dança, vemos
os corpos dançantes. Não vemos os corpos, muito menos o nos-
so próprio corpo. Porque, quando se trata de um corpo que
dança, para ver é preciso fechar os olhos. A dança aponta para
esse fechamento. Esse fechar de olhos que sugere a potência da
“visão tátil”. A visão tátil é uma visão para além ou aquém do
olho. Permanecemos medidos fora da linguagem, abandona-
dos ao espaço no qual não sabemos viver sem regras, cuidando
para não sermos vistos, não olharmos. Olhar seria de arrepiar, e
94

nos faria acordar de algum sono desconhecido. Quando, ao ver


uma apresentação de dança, buscamos o estado de desaparição,
fazemos isso como quem se esconde de um perseguidor que só
pode se esconder na atenção total ao que se vê enquanto nos
vemos a nós mesmos presentes, criados sempre que apagados.
É então que a dança mostra a sua mágica. Falo de uma
magia tipo técnica. O corpo sumido diante do corpo que dança
descobre a presença total. A presença total é uma ideia exagera-
da. É que ela tende ao chão, às paredes, ao lugar, às reverbera-
ções e ressonância do lugar. A presença total surge no silêncio
daquele que tenta desaparecer no encontro com a presença do
corpo bailarino. O corpo adensa quando precisa se fazer míni-
mo. Mas apenas se adensa porque os bailarinos performatizam
o lugar de outro corpo sobre o corpo desaparecido do vidente.
Aquele que, chegando dentro da sala de dança, se lembra de um
corpo que ficou lá fora; é o vidente chamado a fechar os olhos
para ver – ver com a “visão tátil.” Ver, como disse Thereza, o
visível, não o invisível. O corpo que se faz presente e produ-
zido, produz sua presença no ato de afundar na materialidade
enquanto se move para a frente, se dá a ver. Só que o que se dá
a ver não é o que pode ser mostrado. Não é nunca o que precisa
ser exibido.
O começo de um espetáculo de dança (será um “espetá-
culo” de dança? Não, não mesmo, é sempre uma “apresenta-
ção”, e não uma “representação”) para quem vai assistir é sem-
pre o próprio corpo que, parado, parece a antítese da dança.
E quem diz que não se dança parado não sabe, não procurou
Sem tirar o corpo fora 95

saber, o que é dança, quando a dança, onde a dança, se a dança.


Na verdade, não é possível saber o que é dança, porque a dança
só se experimenta como prazer ou sofrimento no corpo. Como
poesia, produção da presença entre silêncio e som.
Em Feche os olhos para olhar,
olhar, descobrimos que olhar é
dançar. Que não é preciso ver. Descobrimos isso – mesmo quem
já soubesse, redescobrirá – porque os bailarinos fecham nossos
olhos e nos ajudam a olhar. Fechando os olhos para olhar, co-
meçamos a ver um tipo de tempo criado na apresentação: o do
olhodançar.. A expressão é meio esquisita, mas vale enquanto se
olhodançar
refere à junção entre dois gestos: olhar e dançar tornam-se na
apresentação da dança uma coisa só. Ficaria talvez ainda mais
esquisita a palavra dançolhar
dançolhar.. Eu diria, mesmo assim, forçando
a barra, que, na apresentação da Descompanhia, eu dançolhei
dançolhei.. É
claro que, para falar isso, estamos naquele lugar que a chamada
Estética da Recepção reservou para quem recebe, para quem
lê, o lugar do “efeito estético” (Jauss, 2002, p. 69) que não é
apenas a impressão no sentido espetacular de uma obra sobre
uma pessoa, mas o que ela causa em quem, por exemplo, a lê,
cita, recria, e isso, historicamente falando. Lembro-me de Jauss
aqui porque a teoria de Jauss me parece – como toda boa teoria
estética – uma teoria que justamente “não tira o corpo fora”,
uma teoria que pensa na básica experiência estética como algo
que está, digamos assim, muito além da interpretação.
A dança é o corpo existindo na totalidade de sua presença
material e, contudo, mais concreta porque metafisicamente ne-
gativa. Quando esse corpo inteiro que respira, fala, anda, olha,
96

percebe que vive e que está em movimento parado, então é que


posso dizer “danço”. A consciência é uma palavra gasta, mas ela
tem sentido quando pensamos que se trata de cair no corpo,
como quem cai no sonho. Cair no chão do sonho, no sonho do
chão. A dança opera uma revolução contra o meu estado de ser
do mundo, o meu estado de ser suspendido em busca de sen-
tido. Não há além. Se seu corpo lhe foi roubado pela publicida-
de ou pelo trabalho, pela injustiça ou pela dor, a dança é, sim,
um resgate. Mas palavra resgate também é muito ruim. Por
isso, não se trata de resgate, pois o corpo fora apenas esquecido.
É preciso lembrá-lo, mas não é possível lembrá-lo numa opera-
ção mental. A lembrança do corpo sobre ele mesmo é a dança.
A teoria sobre a dança, da dança, a teoria dançada, dançante, só
tem sentido quando ela opera (no sentido da enérgeia aristoté-
lica, o passar da potência ao ato que nunca é simplesmente ato)
– dança – na direção política da devolução ao corpo alienado de
si em séculos e séculos de atos dos depreciadores do corpo. Dos
padres aos publicitários, da igreja ao espetáculo, é disso que
estamos falando. Se os inimigos do corpo, os seus detratores
e caçadores, estão sempre por perto, a dança os afasta, porque
ela escorre para o chão e foge, pelo chão, que apavora a todo
metafísico, do padre ao publicitário. O estado de dança é um
estado de corpo devolvido a si mesmo, por quem se move dan-
çando, por quem se dançando se move, mesmo imóvel, mesmo
olhando, percebe que seus olhos são todo um estado de corpo.
Em Feche os olhos para olhar,
olhar, é o que aprendemos a ver:
o invisível que somos, o invisível onde estamos e que é total-
Sem tirar o corpo fora 97

mente visível. O invisível da metafísica não é mais do que o


visível que se torna, afinal, roubando a ideia de Thereza, visível.
Ali, vemos que ver não é bem assim. A dança não é ali o que
“ensina” a ver, embora os bailarinos brinquem levando-nos a
outro lugar de olhar. Aonde nos levam é ao lugar do olhodan-
çante do qual fomos roubados. Ao dançolhar finalmente reali-
zado. A dança é o que estamos olhandojuntos
olhandojuntos,, enquanto dan-
çamosjuntos,, mesmo quando sentados, mesmo quando parece
çamosjuntos
que estamos apenas assistindo. Lá fora, ficou o corpo aviltado
por séculos de repressão; ali dentro ele está vivo no chamado ao
absurdo da presença.
O olhar nos leva a dançar e nos levando a olhar nos de-
volve ao estarsendo da vida. O espetáculo Feche os olhos para
olhar é todo feito de convites a saberdançar
saberdançar.. Ele é feito daquele
dansçaber que começa  com um estar-não-estando
estar-não-estando,, aquele mes-
mo que experimentamos pelo avesso quando, chegando na
sala de dança, queremos sumir com nosso corpestorvo
corpestorvo.. O dans-
çaber da Descompanhia nos retirou desse corpo, levando-nos a
olhar outro corpo, outro mundo. E nos pôs nele novamente por
meio de uma devolução à vida. O corpo foi devolvido ao corpo
no exercício do escuro que faz ver.
Feche os olhos para olhar nos convidava por meio do acon-
tecimento, e da narrativa apresentada, a olhar o traço de teatro-
dança que atravessa o cenário do tempo dançado pelos três bai-
larinos. Era como se eles dissessem (não sei se disseram, porque
não entendi, nem memorizei, nem pedi para ler, os textos que
eles diziam em grande parte da apresentação) que podíamos
98

olhar, mas que não era bem isso, não o olhar com que estáva-
mos habituados. A narrativa é só um traço, não um resumo de
um sentido, não um resumo de coisa alguma. É só um traço
presente. Que não se vendeu, não comprou e não paga por ne-
nhum sentido. A produção de presença está ali, no dançado.
No dansçaber (acho que Thereza usou essa expressão alguma
vez, mas não lembro onde, ou estou simplesmente projetando)
do corpo que fala, anda, pula, faz coisas de todo tipo, aquelas
coisas do dia a dia, brinca, canta, respira, respira, respira. Como
quando se apoiam nas coisas conhecidas e comuns: a chaleira e
a xícara de chá, as roupas (a saia rosa). A materialidade mínima
das coisas compõe a produção da presença. Mas também as
legendas, claramente materiais, escritas a giz, escritas digamos
em nome de um movimento material:
material: “Abraçar/Dançar sem
se mexer/Espirais/Falar o que se pensa/Mover no nível baixo/
Tocar alternado”. Essas legendas escritas na lousa são as partes
da apresentação na forma de uma materialidade escrita em giz.
Uma delicadeza, um traço, um fio. Elas vão dando o caminho
do rito desritualizado que operou ali, um ritual de aproximação
com o cotidiano dançado, quando tudo é acontecimento.
Os bailarinos falam. Em vários momentos, Juliana enun-
cia o “começo” fazendo do começo sempre uma potencialida-
de. “Eu começo”, ou a voz é corpo que dança. A voz que nos
convida, nos ensina, desensina, nos deixa parados. O papel da
voz nos acorda para outros verbos: ouvirdançar é um desses que
me surgem. No tempo em que olhodançar é nossa prática des-
coberta, ouvirdançar torna-se uma novidade efêmera e eterna.
Sem tirar o corpo fora 99

Vou viajando na apresentação a que assisti, na qual entrei com o


corpo, pensando que teria deixado o corpo fora.
fora. O corpo, o meu,
o corpo, não meu, também me foi devolvido. Então, no fim,
como eles, posso eu também, começar.

Referências

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclareci-


mento.. Trad. Guido Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
mento
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido
não consegue transmitir. Trad. Ana Isabel Soares. Rio de Janeiro:
Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2010.
JAUSS, Hans Robert et al. A literatura e o leitor: textos de estética da
recepção.. Coord. e trad. Luiz Costa Lima. Rio de Janeiro: Paz e
recepção
Terra, 2002.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra.
Zaratustra. Trad. Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
TIBURI, Marcia. Filosofia cinza: a melancolia e o corpo nas dobras da
escrita.. Porto Alegre: Escritos editora, 2004.
escrita
------ e ROCHA, Thereza. Diálogo/dança
Diálogo/dança.. São Paulo: Senac, 2011.
Eros no claustro: sobre o amor freirático na
poesia satírica de Gregório de Matos

Ana Lúcia M. de Oliveira1

O ponto de partida deste trabalho é um breve desta-


que da transformação da imagem da mulher no período bar-
roco, em que uma “sensorialidade exaltante vai substituindo
o erotismo intelectualizado da poesia renascentista”, segun-
do nos esclarece Ana Hatherly (1997, p. 127). Especialmente
nos poemas burlescos, são muito frequentes as descrições do
corpo feminino, muito erotizadas pelo uso de metáforas ali-
mentares, principalmente as referentes à doçaria, que estão
intimamente relacionadas com as doçuras do amor, fazendo
um duplo apelo à gula e à luxúria. Outra dimensão singu-
lar que o retrato da mulher assume no período diz respeito
1
Professora Doutora do Departamento de Literatura Brasileira, Teoria da Literatura
e Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora-
-associada. Pesquisadora do CNPq.
102

à imensa literatura dos freiráticos, a qual apresenta facetas


diversas e particulares, que vão desde a sua apologia à sua
condenação.
Nos séculos XVII e XVIII, a denominação “freiráticos”
era empregada para se referir a todos os homens que tinham
amores com freiras. Religioso ou secular, o freirático pode ser
platônico ou não. No primeiro caso, recicla a tradição do amor
cortês, do amor impossível pela inacessibilidade da Dama, que,
nessa circunstância, é uma religiosa. No segundo, ele passa por
cima de todos os entraves, entregando-se à fruição dos sentidos
e até à sua exibição (Cf. Hatherly, 2003, pp. 299-317). Não
só ilícitos, mas sacrílegos, esses amores, levando-se em conta
diversos testemunhos desse período, foram um fenômeno bas-
tante comum, o que não deixa de ser surpreendente em uma
sociedade contrarreformista eminentemente repressiva como
era a portuguesa.
Cabe lembrar que, na época em foco, apenas o primo-
gênito era considerado o verdadeiro herdeiro de uma família;
com isso, as moças, mesmo quando mais velhas do que os
rapazes, se não estivessem prometidas em casamento a alguém
de sua classe ou de classe superior, eram recolhidas aos mostei-
ros, para aí levarem uma vida segura, em termos econômicos.2
Assim, na prática, a reclusão das mulheres era mais social do
que sexual, para evitar um casamento com pessoas de nível so-

2
Sobre esse tema, ver os trabalhos de Emanuel Araújo (1997, pp. 257-269), Mário
Rosa (1995, pp. 175-206, especialmente p. 175), Ronaldo Vainfas (2010, pp. 177-
183) e Susan Soeiro (1974, pp. 209-232).
Eros no claustro 103

cial mais baixo, e não necessariamente motivada por qualquer


vocação religiosa. Mencione-se ainda que, além da conveniên-
cia econômica e sexual, ter filha em convento configurava um
elemento distintivo de alta posição na sociedade, uma vez que a
admissão era pautada por critérios rigorosos de limpeza de san-
gue, tornando-se, com isso, “um atestado público da brancura
ortodoxa da família” (Hansen, 2004, p. 446).
As observações anteriores nos possibilitam compreen-
der o fato de que, no período seiscentista, a vida nos con-
ventos apresentava características singulares, que espelhavam
contradições internas da sociedade de então; desse modo, o
claustro veio a funcionar como uma espécie de lugar inter-
médio entre o sagrado e o profano, em que ocorriam festas
e celebrações, o que trouxe efeitos positivos para a vida cul-
tural, mas frequentemente negativos para a vida espiritual.
Assim, em Portugal e na colônia brasileira, durante o século
XVII e parte do XVIII, a vida em alguns conventos chegou
a assumir aspectos surpreendentes de licença e libertinagem,
em que colaboraram não só religiosos, mas também cortesãos
e, até mesmo, o próprio rei, como o atestam numerosos docu-
mentos dessa época.
Em sua obra O amor em Portugal no século XVIII,
XVIII, Júlio
Dantas (1916) dedica um capítulo aos freiráticos, destacan-
do as consequências comicamente desastrosas dessa relação
amorosa fadada ao insucesso e que se torna alvo de vitupério
e chacota, como se pode ver nos numerosos textos de teor an-
tifreirático encontrados nas bibliotecas portuguesas. Conforme
104

veremos em seguida, essa prática dá lugar a diversas leis que


buscam reprimir a atividade dos amantes das freiras libertinas e,
igualmente, a divertidas diatribes de textos burlescos que a co-
mentam, como se observa, por exemplo, nos poemas satíricos
do poeta seiscentista Gregório de Matos, apelidado “O boca do
inferno” pela virulência de sua língua ferina e sem freios.
Para maior clareza do exposto, cabe mencionar al-
guns dados históricos, levantados por Adolfo Hansen (2004,
2008), em sua decisiva análise da obra desse poeta. A prática
dos amores freiráticos foi severamente reprimida por sucessi-
vas leis, mas só no fim do século XVIII ela diminuiu ou caiu
em desuso. Em março de 1690, o rei português Dom Pedro II
enviou uma ordem-régia para o governo do Estado do Brasil,
na qual recomenda ao arcebispo de Salvador que “se reformem
as grades dos conventos das freiras, pondo-se em distância de
seis palmos de grossura e tapando-se em redor dos locutórios
de pedra e cal”, destacando “o grande cuidado que deve pôr
para que se evitem todas as amizades ilícitas escandalosas com
as religiosas desse convento [...] para que elas vivam sem in-
quietação alguma espiritual causada por pessoas seculares ou
eclesiásticas” (Accioli e Amaral, 1937, v. II, p. 258). No ano
seguinte, em sua resposta, o governador presta contas dos “re-
médios convenientes” já aplicados ao convento de Santa Cla-
ra do Desterro, em Salvador, evidenciando a posição oficial
quanto ao assunto das visitas masculinas ao convento e das
“amizades ilícitas” das freiras: “As grades estão como Vossa
Majestade manda. As rodas do locutório fechadas. As Freiras
Eros no claustro 105

vivem como convém, de que tenho particular cuidado; assim


pelo que toca ao serviço de Deus, como ao mandato de Vossa
Majestade”.3
É interessante observar que a poesia satírica que circula
na cidade de Salvador no século XVII “dramatiza em registro
deformante” (Hansen, 2008, p. 554) os discursos institucio-
nais e a murmuração informal, que percorre anonimamente
as ruas e ladeiras da cidade, acerca dos assuntos do convento,
que dizem respeito à relação das freiras com os diversos tipos
de freiráticos, seculares ou religiosos: fidalgos, vulgares, padres,
frades e outros visitantes do Desterro. Cite-se, como exemplo,
o seguinte trecho de um poema atribuído a Gregório de Matos:
“Manas, depois que sou Freira/Apoleguei mil caralhos” (Matos,
1990, v. II, p. 922).
Desse modo, a interdição materializada na pedra e na cal
que são usadas para fechar o ralo e a grade, segundo indicado
na carta do Governador, torna-se “um objeto discursivo a ser
transposto com engenho e arte pelo desejo do freirático” (Han-
sen, 2008, p. 558). Na medida em que são os pontos de con-
tato dele com a freira e, ao mesmo tempo, lugares de exclusão
ou interdição, o ralo, a roda e a grade são sobredeterminados
eroticamente: constituem-se em aberturas equívocas, lugares
de penetrações erótico-obscenas, frestas por onde falas, mãos e
3
COUTINHO, Antônio L. G. da Câmara. “Carta para sua Majestade sobre as reli-
giosas do Convento de Santa Clara - 19/06/1691”. In Livro de Cartas que o senhor An-
tônio Luís Gonçalves da Câmara Coutinho escreveu a Sua Majestade, sendo governador,
e capitão geral do Estado do Brasil, desde o princípio de seu governo até o fim dele (Que
foram as primeiras na frota que partia em 17 de julho do ano de 1691), Seção de Manus-
critos, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ). Apud Hansen, 2008, p. 551.
106

braços tentam alcançar e juntar corpos separados pela interdi-


ção do próprio ato. Para eles, é que convergem os corpos dos
freiráticos, neles é que aguardam os corpos das freiras; neles,
enfim, é que ocorre “o ato ilícito e, na poesia satírica, quase
sempre o obsceno” (Hansen, 2008, pp. 558-559).
Cabe esclarecer que o termo ralo nomeia uma lâmina de
metal com furos, geralmente quadrada, que se embute numa
porta ou janela à altura do rosto, possibilitando que se fale de
um aposento para outro sem que os falantes se vejam. Na sátira
de Gregório de Matos, constrói-se a cena da freira que sobe em
um banquinho para alcançar a altura do ralo e poder conversar
com seu amante:

[...] na ordem de Frei Tomás,


serei perpétuo lambaz
do ralo, da roda e grade:
mamarei paternidade
Deo gratias se me dará
e apenas se ouvirá
os estrondos do meu tamanco
quando a Freira sobre o banco
no ralo me aguardará
(Matos, 1990, v. I, p. 654).

Da fala no ralo, quando possível, passa-se para a ação na


grade,, denominação das barras de ferro que separam os visi-
grade
tantes das freiras no locutório do convento. Observe-se que a
Eros no claustro 107

grade afasta e, ao mesmo tempo, deixa a possibilidade de que


se unam braços mobilizados em um “ofício”, como se lê no
seguinte poema:

Daí para a grade iremos,


e apenas terei entrado,
quando o braço arregaçado
aos ofícios nos poremos.
(Matos, 1990, v. I, p. 655)

O termo roda refere-se a um tipo de armário montado em


uma janela ou na grade do convento, com um mecanismo girató-
rio que pode ser movimentado para dentro e para fora. Na prate-
leira da roda, o freirático deposita as “metonímias do seu desejo”
(Hansen, 2008, p. 559) – presentes, flores, bilhetes, cartas, fitas,
lenços, açúcar, cartas, joias, livros e poemas –, sempre proporcio-
nais à intensidade de seu amor e à sua vontade de seduzir a freira.
Na roda, também saem as prendas da religiosa – geralmente, os
famosos doces de ovos e açúcar que ela prepara e que, degustados
pelo amante, tornam-se “suavidades metafóricas ou alusivas das
doçuras do amor” (idem, ibid.). Nas palavras do poeta:

Trocai o doce em favor,


e curai meu mal tão grave
com aquela ambrosia suave,
com que foi criado o Amor
(Matos, 1990, v. I, p. 661).
108

Cabe abrir um pequeno parêntese para esclarecer que a


proliferação que as metáforas alimentares, de longa tradição
medieval, assumiram no período barroco está intimamente li-
gada à grande sensualidade que marca a sensibilidade da época,
a qual tem a sua contrapartida na condenação de que os cinco
sentidos foram objeto, uma vez que prendiam ao mundo, quan-
do o ideal ascético exigia que o cristão se desprendesse dele.4
Visto que a cedência aos ditames dos cinco sentidos apelava
para a satisfação dos apetites, há uma ligação necessária entre
eles e os vícios, dos quais se destaca o pecado da gula, um dos
mais representados e criticados nas letras e nas artes do período.
No que diz respeito ao açúcar, é de notar a importância
que assumiu na cultura portuguesa em consequência do incre-
mento das plantações da cana açucareira, sobretudo no Bra-
sil. O açúcar tornou-se veículo de extremo prazer, por meio
das inúmeras doçarias a que deu origem, as quais, junto com
o chocolate e o tabaco, estiveram no centro da sensualidade
gustativa seiscentista, ajudadas pelas especiarias, já introduzidas
no século XVI.
A sátira atribuída a Gregório de Matos produz uma in-
versão obscena de tais doçarias, substituindo os presentes de
“doces” e “flores” por “cará”, nome do tubérculo que possibilita
o trocadilho com o termo vulgar referente ao órgão sexual mas-
culino: “que por um cará cozido/ leveis o meu, que anda assa-
do” (Matos, 1990, v. I, p. 666); às vezes, por “vermelho”, peixe
4
Sobre essa questão, consultar, entre outros, o trabalho de Ana Hatherly (1997,
cap. 2).
Eros no claustro 109

cujo nome igualmente possibilita duplicidades de sentido: “se


há de comer o vermelho/ por força o há de morder” (idem,
p. 664); ou “chouriço”, com conotação fálica evidente: “Comi
o chouriço cozido/ com sossego, e sem empenho,/ porque ou-
tro chouriço tenho/ para pagar o comido” (idem, ibid.). O doce
metamorfoseia-se até mesmo em excrementos, como ocorre no
poema cuja didascália anuncia: “A certo frade na Vila de São
Francisco, a quem uma moça fingindo-se agradecida a seus re-
petidos galanteios, lhe mandou em simulações de doce uma
panela de merda” (idem, p. 249).
Importa destacar que, na sátira seiscentista que circulou
na Bahia, a tópica do amor freirático se articula aos discur-
sos locais, cujos “valores semânticos e pragmáticos refratam-se
metaforicamente nos temas e motivos em várias posições e re-
gistros institucionais e informais” (Hansen, 2008, p. 555) con-
flitantes envolvidos nessa questão, como os da honra sexual,
do interesse econômico, do prestígio, do isolamento social, dos
preceitos da agudeza cortesã, da competição entre seculares e
eclesiásticos, fidalgos e vulgares pelos favores eróticos da freira.
Uma das maneiras mais habituais de composição da sátira ao
amor freirático é a dramatização dos boatos acerca das visitas
masculinas ao convento. Nesse caso, a matéria dos poemas é
extraída de discursos locais sobre escândalos, cenas de ciúmes,
conflitos amorosos, objetos inesperados que a freira enviou para
o amante e, ainda, as traições da religiosa, segundo a muito
visitada tópica do “corno”, recorrente na poesia popular portu-
guesa desde a Idade Média.
110

Em síntese, a sátira do amor freirático mimetiza os pre-


ceitos do amor cortesão, mas “muda-lhes o registro galante no
estilo baixo, substituindo o encômio pelo vitupério” (Hansen,
2008, p. 553). A mudança inclui a frequente paródia da lírica
amorosa e dos lugares comuns do petrarquismo; a difamação,
o insulto, a imitação obscena da troca de correspondência e
alimentos entre o convento e o exterior; a composição de poe-
mas obscenos sobre partes estratégicas dos corpos do freirático
e da freira; objetos escatológicos e fálicos, como a linguiça e
a panela de doce com excrementos; os versos maliciosos sobre
o beija-flor, conhecido na Bahia do século XVII como “pica-
-flor”, nome que, em português, propicia uma alusão ao órgão
sexual masculino; os trocadilhos jocosos com os diversos no-
mes de órgãos sexuais usados nas inúmeras ordens religiosas
(cf. ibidem, p. 557).
Cabe ainda observar que “a persona satírica não é perso-
nagem simples, pois nela convergem várias representações con-
temporâneas” (idem, ibid.). Como uma espécie de ator móvel,
a persona que assume a enunciação da poesia de Gregório de
Matos ocupa metaforicamente várias posições da hierarquia so-
cial. Quando é construída como tipo prudente que vitupera os
vícios da sociedade, metaforiza o discurso oficial da conveniên-
cia e da interdição; nesse caso, o primeiro desses lugares meta-
forizados é o lugar institucional por excelência, a ordem-régia,
de onde vêm as medidas de controle do que o poeta denomina
ironicamente de “santas sedes” das religiosas e que buscam evi-
tar os “pecados de pedra e cal” (Matos, 1990, v. I, p. 214).
Eros no claustro 111

Muitas vezes, a voz da enunciação é a do freirático, que


se apresenta como falastrão que se vangloria de suas supostas
experiências dentro do convento; ou, por vezes, se configura
como amante rejeitado, que profere maledicências contra a
freira por ela estar comprometida com outros homens – até
mesmo com religiosos. A esse respeito, cabe destacar que, nas
invectivas contra a freira que despreza a corte do discreto se-
cular, a sátira recorre aos padrões da honra sexual e da “lim-
peza de sangue”, produzindo misturas obscenas inconcebíveis,
de acordo com a posição fidalga das religiosas. É o que se
evidencia no seguinte poema, em que o eu satírico deseja que
a freira que o rejeita seja estuprada por um índio (“cobé”) e
tenha um filho mestiço:

[...] praza ao demo, que um cobé


vos plante tal mangará,
que parais um Paiaiá
mais negro que um Guiné
(Matos, 1990, v. I, p. 664).

Examinemos, com mais detalhes, com o auxílio das len-


tes lapidadas por Adolfo Hansen, em que consiste, propriamen-
te, o amor freirático. Por definição, trata-se de “um amor polí-
tico, uma relação erótica excludente” (Hansen, 2008, p. 558),
pois não entram no convento os tipos e os modos vulgares da
“gente baixa”, dos “sujos de sangue” e dos que executam ofícios
mecânicos. Além das razões institucionais, de estatuto jurídico
112

e de “limpeza de sangue” das mulheres, na sátira que circula na


Bahia o fator econômico é determinante da exclusão de não
fidalgos e, principalmente, de não fidalgos pobres, pois é ex-
tremamente dispendioso fazer a corte às freiras, como se lê em
texto da época: “se o freirático tem faltas de respiração na bolsa,
ou se é esfaimado de algibeira, não é fácil de admitir-se” (Santa
Catarina, 1983, p. 200).
As freiras são discretas e fazem contínuos petitórios:
exigem, por exemplo, que o freirático vá visitá-las vestindo
chapéu de plumas e casaca inglesa agaloada, com fitas, lenços,
espadim, gola de renda, brincos de barrocos, cabeleiras com
polvilhos etc. Na Quaresma, ele tem de contribuir financei-
ramente para capelas de anjos, espadas para penitentes, vestes
para as irmandades ou alimentos. Assim, o amor da freira
rica e afidalgada tem o ritmo das convenções da discrição
cortesã: mesuras, salamaleques, agudezas da aparência em
que o gesto estudado dissimula o desejo bruto, enovelando-o
em galanterias, presentes, donaires, lembranças (Cf. Hansen,
2008, p. 558).
No caso da obra de Gregório de Matos, a sátira explici-
ta seu ponto de vista acerca dessa questão, defendendo a ex-
clusividade da presença do “secular entendido” nos conventos,
ou seja, o secular discreto, e tentando vetar a concorrência de
homens do clero que fizeram votos de abstinência. Tomemos
o exemplo de um poema que satiriza a atuação do freirático
religioso, cujo desejo totalmente explícito em seu encontro com
a freira torna-se risível:
Eros no claustro 113

Em chegando à grade um Frade


sem mais carinho, nem graça,
o braço logo arregaça,
e o trespassa pela grade:
e é tal a qualidade
de qualquer Frade faminto,
que em um átimo sucinto
se vê a Freira coitada
como um figo apolegada,
e molhada como um pinto
(Matos, 1990, v. I, p. 652).

Em vários textos da época, encontram-se ainda críticas


que os próprios freiráticos fazem uns aos outros, concentradas
na inutilidade de tal prática ou em advertências contra a explo-
ração de que esses amantes são objeto por parte das freiras, que
surgem pintadas como verdadeiras sanguessugas, insaciáveis
nos pedidos de presentes e de dinheiro. Segundo os escritos sa-
tíricos do português frei Lucas de Santa Catarina, que emprega
as mesmas tópicas da sátira que circula na Bahia, o freirático
é um “louco de Cupido” que caça “harpias” (Santa Catarina,
1983, p. 183). Como ave de rapina – segundo ele propõe, apli-
cando o preceito medieval de composição do tipo feminino
com topoi de misoginia –, a freira é sempre movida pelo cálculo
e pelo interesse.
O imaginário masculino da traição, que faz do amante
um “corno”, segundo a tópica do insulto típica da sociedade
114

ibérica fundada na transmissão do nome de família pelo sangue


paterno, tem a seguinte formulação irônica de sentença mo-
ral na sátira de frei Lucas: “[a freira] tem mais meia dúzia de
amantes, que muitas vezes vós os sustentais à vossa custa; que
as freiras são primorosas com uns, com as despesas dos outros”
(Ibid., p. 187). Portanto, o risco enfrentado por todo “sandeu,
que nos tratos se meteu de Freiras” (Matos, 1990, v. I, p. 253)
é o de ser discreto fora, ou seja, ter fama de entendido no amor
conventual, e ser burro dentro, como objeto do escárnio da frei-
ra, segundo se lê no seguinte poema:

Que alguém pague às espias


para ter Freiras devotas,
e depois de mil derrotas
ande pelas portarias:
que ande este todos os dias
com cargas, e sem carreto,
e tendo-se por discreto
seja o burrinho da feira!
Boa asneira!
(Matos, 1990, v. I, p. 391)

No lugar semiótico da persona satírica, portanto, dois


discursos contemporâneos se interceptam: o da conveniência
conveniência,,
oficial e paterna, que postula a interdição das “amizades” con-
ventuais; e o da ilicitude
ilicitude,, defendido pelos amantes das freiras.
A esse respeito, é esclarecedor citar a observação de Adolfo
Eros no claustro 115

Hansen: “Conveniência moral e ilicitude transgressiva são


complementares, no caso, explicitando-se mutuamente quan-
do a persona dramatiza uma e outra” (Hansen, 2004, p. 450).
Assim, os temas mencionados da conveniência oficial, das ami-
zades ilícitas das freiras, da interdição, da sedução, do desprezo,
da corte de amor, dos insultos, da pedra e da cal, do ralo, da
grade e da roda, refratam-se por várias posições hierárquicas da
sociedade que são encenadas nos diversos poemas satíricos que
figuram essa prática.
Concluo com uma anedota que comprova que não surti-
ram efeito as providências para impedir esses amores ilícitos nos
conventos (Cf. Accioli e Amaral, 1937, v. V, pp. 491-492). Em
abril de 1738, a abadessa do Mosteiro do Desterro queixou-se
ao rei – então Dom João V, um reconhecido freirático – acerca
de um vigário do mesmo convento, que tratava ilicitamente
com a religiosa Josefa Clara. Segundo a abadessa, o vigário van-
gloriava-se de cometer atos ilícitos com a freira, tendo chegado,
certa noite, a passar pelo forro da capela-mor até os dormitó-
rios, onde teria caído com estrondo sobre os catres das irmãs,
quando o forro apodrecido desabou com o seu peso. Apreendi-
do em pleno ato, ele apenas declarou que ali estava para dar a
confissão a uma delas...
Em síntese, mencione-se a avaliação de Ana Hatherly,
que considera a abundância da literatura freirática (e, eviden-
temente, a prática a que tais textos se vinculam) um verdadeiro
“sintoma de mal-estar social, um documento vivo da decadên-
cia das instituições” (Hatherly, 1997, p. 135).
116

Referências

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barroco
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Eros no claustro 117

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ção no Brasil.
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
Francesca Woodman1: fotografia
e performatividade

Ana Bernstein2

Em 2011, o Museu de Arte Moderna de San Francis-


co realizou a primeira compreensiva retrospectiva do trabalho
de Francesca Woodman, exibindo 180 trabalhos de fotografia,
vídeos e livros feitos pela artista, muitos deles inéditos. A re-
trospectiva foi exibida ainda, em menor escala, mas com igual
sucesso, no ano seguinte, no Museu Guggenheim de Nova
York. Em fevereiro de 2012, o Metropolitan Museum, de
Nova York, incluiu Temple project,
project, uma enorme colagem uti-
lizando a técnica de blueprint desenvolvida por Woodman e
uma das últimas obras realizadas pela artista, em sua exibição
Spies in the house of art: photography, film and video.
video. O trabalho

1
Com imagens de Francesca Woodman – Cortesia de George e Betty Woodman.
2
Professora Doutora do Curso de Estética e Teoria do Teatro da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
120

havia sido exibido apenas brevemente quando de sua criação,


em 1980. A exibição da obra de Woodman por três das maiores
instituições de arte dá bem a medida do crescente interesse pelo
trabalho da artista nas últimas duas décadas.
Realizada no período extraordinariamente curto de apenas
nove anos, entre os 13 e os 22 anos, compreendendo, portanto, a
adolescência e o início da vida adulta de Woodman, a obra sur-
preende não só pela coerência e rigor formal como também por
sua capacidade de problematização da fotografia em si (a fotogra-
fia como meio), de questões de representação e regimes visuais
e, em particular, da representação do feminino nas artes visuais.
Infelizmente, a recepção de sua obra – tanto entre historiadores e
críticos quanto com relação ao fascínio que exerce para muitos de
seus admiradores –, foi e continua marcada pelo suicídio da ar-
tista em 1981, produzindo com frequência leituras que tendem a
considerar seu trabalho a partir deste evento. Assim, constituem
Woodman romanticamente como “garota interrompida” e suas
fotos como indícios de sua morte trágica, espécie de ensaios para
morte; morte que, como teorizou Barthes em A câmara clara,
consiste na própria condição ontológica do retrato fotográfico:

Imaginariamente, a Fotografia [...] representa esse momen-


to muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem
um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que sente
tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte
(do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro (Barthes,
1984, p. 27).
Francesca Woodman 121

Essa visão fundamenta-se, parcialmente, no caráter, por


assim dizer, autobiográfico do trabalho de Woodman, em fun-
ção do uso frequente que faz de si própria e de seu corpo em
suas fotos, entendidas geralmente como “autorretratos”, e do
aspecto altamente pessoal, íntimo, de muitas de suas imagens.
A primeira imagem que conhecemos de Woodman é, de fato,
seu Autorretrato aos 13 anos.
anos. Se por um lado o título sublinha,
reforça a ideia de autobiografia, por outro lado a imagem, desde
já, complica a noção de um sujeito que se dá conhecer, de uma
possível identidade, apontando para uma operação frequente
nos trabalhos de Woodman e que problematiza o próprio gêne-
ro do autorretrato, como vários críticos já observaram. Posicio-
nada no plano médio esquerdo da composição, Woodman tem
o rosto totalmente encoberto pelo longo cabelo. Em primeiro
plano, vemos, de modo
proeminente, porém
indistinto, devido ao
movimento capturado
em longa exposição, o
cabo do controle re-
moto que ela segura,
afirmando de maneira
inequívoca sua condi-
ção não apenas de ob-
jeto retratado, mas de
Self-Portrait at 13, 1972. autora da foto.
122

Deparamo-nos aqui com algumas questões centrais à


obra de Woodman: 1) o colapso entre sujeito e objeto, fotógra-
fa e imagem – aproximando assim seu trabalho à performance
e à “nova arte” que tomam a cena artística a partir dos anos
1960, especialmente pelo uso do próprio corpo como matéria
bruta, superfície de trabalho e obra de arte. O corpo serve ainda
como lugar privilegiado na investigação de questões ligadas à
sexualidade, ao gênero e à representação do feminino. O co-
lapso entre as posições de sujeito e objeto tem, como sabemos,
importantes desdobramentos para a arte e a teoria feminista,
problematizando não apenas a representação do feminino nas
artes em geral, como também a lógica da produção e do mer-
cado de arte, e a própria história da arte como uma narrativa
fundamentalmente falocêntrica; 2) à recorrência da imagem de
Woodman em seus trabalhos, opõe-se uma resistência à iden-
tidade e uma problematização da subjetividade. O sujeito da
fotografia, seja ele Woodman ou alguma de suas várias amigas
e modelos comumente confundidas com a artista, é frequente-
mente elusivo, indeterminado, instável, um sujeito que se nega
ao conhecimento. Situa-se, com frequência, no limiar da foto,
tensionando os limites interiores e exteriores, por vezes parcial
ou totalmente dissolvido pela técnica de longa exposição, com
o rosto encoberto ou mascarado, ou simplesmente excluído da
composição, como figura acéfala; e 3) a técnica da longa ex-
posição, já presente neste primeiro trabalho e da qual a artista
faria uso constante, indica a atenção de Woodman à fotografia
como meio (seus recursos técnicos e expressivos, suas qualida-
Francesca Woodman 123

des formais) ao mesmo tempo que introduz a preocupação com


a relação tempo-espaço que permeia toda sua obra.
A trajetória da artista é singular; Woodman não teve pro-
priamente uma carreira. Às experiências amadoras, seguem-se
o trabalho feito como estudante de fotografia da Rhode Island
School of Design Museum (RISD), entre 1975 e 1978, in-
cluindo um ano de estudo em Roma como parte do programa
da universidade e o breve período após formada, durante o qual
Woodman busca inserir-se no mercado profissional de Nova
York, principalmente o de fotografia de moda. Nesse sentido,
o trabalho de Woodman caracteriza-se, sobretudo, como um
processo contínuo de investigação e aprendizado. Composta
em grande parte de estudos e exercícios fotográficos, sua obra
chama a atenção pela sofisticação técnica e conceptual e pelo
domínio formal e artístico, demonstrando uma maturidade
surpreendente para uma artista tão jovem e ainda em formação.
Apesar da pouca idade, Woodman tem grande conheci-
mento de história da arte, com a qual estabelece um diálogo crí-
tico, evidente tanto em suas composições quanto pelo emprego
constante do corpo e do nu feminino como objeto de represen-
tação. A familiaridade com a história da arte resulta em parte
de sua criação em um ambiente artístico, como filha de mãe
ceramista e pai pintor, e por sua vivência na Itália, onde morou
quando criança e onde posteriormente passava os verões.
Como bem observa Rosalind Krauss, as fotografias de
Woodman são frequentemente respostas a um conjunto de
problemas propostos (tais como figura e fundo, profundidade,
124

diferentes tipos de luz etc.). Mais do que exercícios acadêmicos,


entretanto, o conjunto de problemas constitui-se, para a artis-
ta, segundo Krauss, como “um meio de pensar, de trabalhar”
(Krauss, 1986, p.51).3 O processo é fundamental para a obra
de Woodman e, nesse sentido, está intimamente imbricado a
outro aspecto de sua fotografia que nos interessa examinar aqui,
a performatividade, a qual se manifesta em seu trabalho de dife-
rentes formas: 1) na concepção e execução dos trabalhos como
séries (e, portanto, como repetição, iteração e diferença); 2) na
ênfase no processo e na cuidadosa encenação das fotos, bem
como em sua teatralidade; 3) no caráter tátil, sensual de muitas
de suas fotografias; 4) no uso do corpo e na exploração de ques-
tões de gênero, de representação do feminino e de subjetividade
que seus “autorretratos” e demais trabalhos propõem; e 5) por
meio das investigações daquilo que Woodman denomina de
geometrias do espaço e do tempo. Tais geometrias apresentam-
-se, sobretudo, como problemas: são geometrias desordenadas,
estranhas,4 vertiginosas e sempre tensionadas. Elas resistem e
desafiam a própria fotografia, problematizando tanto a tensão
entre a tridimensionalidade do espaço e dos corpos e a bidi-
mensionalidade da imagem fotográfica (os limites dos corpos e
os da fotografia, da cena e da imagem) quanto a temporalidade
3
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “The problem set had become a
medium in which to think, in which to work.”
4
Em seu livro Some disordered interior geometries, Woodman escreve: “Estas coisas
chegaram da minha avó. Elas me fazem pensar onde me encaixo nesta estranha geo-
metria do tempo”. Traduzido pela autora do artigo, no original: “These things arrived
from my grandmother’s. They make me think about where I fit in this odd geometry
of time.”
Francesca Woodman 125

característica do meio, que fixa um momento que pertence já


ao passado, mas que simultaneamente remete ao presente e ao
futuro. Woodman tira partido da exposição de longa duração
para explorar a dialética entre presença e ausência, resistindo a
fixar o momento.
Em Space2 – aqui Woodman brinca com a noção de es-
paço ao quadrado e espaço enquadrado –, –, encontramos essa
tensão já no próprio título da série: o problema consiste em
conciliar a tridimensionalidade e materialidade do espaço com
a geometria singular da imagem fotográfica, em particular com
a composição em formato quadrado com que Woodman traba-
lha (ela usava uma câmera de formato médio, o que resulta em
fotografias de tamanho 6cm x 6cm). Num interior em estado
de evidente abandono e decomposição, Woodman posiciona
uma porta num ângulo oblíquo entre o chão e a parede, crian-
do linhas tangenciais que simultaneamente tensionam e recor-
tam o espaço, verdadeiras linhas de fuga, como se quisessem
escapar não só ao quadrado da composição, mas também ao
achatamento próprio à imagem. Em outra foto, a porta está
posicionada, também obliquamente, próxima a outro ângulo
da sala, este um ângulo reto, o canto de encontro de duas pare-
des.5 Sob a porta, vemos apenas a parte inferior de um corpo
feminino, nu, cuja pele macia e formas curvas contrastam com
as linhas retas e a superfície dura, possivelmente áspera, da ma-

5
Em um trabalho apresentado em 2012 no Simpósio organizado pelo Guggenheim,
o crítico George Baker faz uma interessante análise do uso recorrente do canto na
obra da artista.
126

deira e o chão recoberto de detritos. O pé move-se ligeiramente


e sua oscilação é capturada pela longa exposição, reintroduzin-
do, assim, a duração na fotografia.

,1976.
Untitled,1976.
Untitled

Em outra sequência de Space2, vemos Woodman movimen-


tando-se no espaço, como em uma coreografia moderna, exploran-
do diferentes planos (alto, médio e baixo) e posições (centro, canto).
Seu corpo em movimento torna-se quase imaterial, em função da
longa exposição. Seus membros dissolvem-se no ar, tornam-se
transparentes, fantasmáticos. O trabalho não se limita às fotos,
mas se estende à folha de contato, onde Woodman intervém
manualmente desenhando retângulos e linhas que recortam e
recriam o espaço, produzindo novos espaços dentro da composi-
ção com os quais o corpo interage ativamente, novas geometrias
Francesca Woodman 127

cujos limites o corpo interroga, resiste, ou transpõe. A sequência


de fotos e as intervenções no contato (deixando claro que não há
aqui diferença entre execução e objeto) constituem-se como uma
performance, como um evento que produz algo na e por meio da
interação com seu público. Penso aqui no trabalho de Ana Men-
dieta, cuja obra consiste, em sua maioria, de vídeos e fotografias
de suas interações solitárias com a natureza. Suas silhuetas, rea-
lizadas sem a presença de um público, são experienciadas prin-
cipalmente por meio das fotografias criadas pela própria artista,
que as considera como parte integral do processo. A fotografia e/
ou o vídeo é, assim, o meio pelo qual o público experimenta a
performance e não simplesmente um registro.

Space2 , 1975-78.
128

Considerados como registro, documentação da perfor-


mance, a fotografia e o vídeo não passariam de traços, suple-
mentos ou indícios de um evento irremediavelmente perdido
no passado. Mas estes documentos tornam-se vivos e consti-
tuem-se como performances quando interrogados, ativados
pelo público; são, como argumenta Philip Auslander em The
performativity of performance documentation,
documentation, documentos per-
formativos e não apenas constatativos. Para Auslander, não há
diferença real entre a documentação de um evento que teve
lugar em frente a um público e um encenado diretamente para
a câmera (de fotografia ou vídeo). A seu ver, é o ato da própria
documentação que produz e legitima tais eventos como perfor-
mance, em vez de simplesmente afirmar que eles ocorreram ou
descrevê-los por meio de imagens (Auslander, 2006).


Francesca Woodman 129

Space2, 1976.

O caráter performativo das fotos de Woodman pode ser


visto ainda em outra sequência de Space2, em que a artista utiliza
vitrines de museu vazias para explorar as geometrias do espaço e
do tempo. Woodman está interessada em mostrar “aquilo que você
não vê – a força interior do corpo”. Reencontramos aqui a tensão
entre os corpos e os limites do espaço, entre interior e exterior, entre
a força do corpo e o achatamento simultâneo do vidro e da foto,
entre a maciez da pele nua e a dura superfície fria do vidro, entre
os ângulos formados pelo enquadramento da vitrine e o quadrado
da foto, entre a fisicalidade da matéria e a duração temporal que a
desfaz, entre a fixação dos movimentos e das formas e o processo,
a performance. É preciso sublinhar que a temporalidade e a experi-
ência com o corpo e seus limites – questões centrais à performance
– são elementos importantes na realização dos projetos da artista, e
são precisamente essas dimensões temporais e materiais que por ve-
zes escapam à apreciação das fotografias. Em Peach mumble – ideas
cooking,, Sloan Rankin, amiga de Woodman e modelo de muitas
cooking
de suas fotos, escreve precisamente sobre este aspecto:
130

Para entender melhor a natureza do que ela estava buscando


em suas fotografias, é preciso apreciar a natureza tátil de seu
trabalho – é preciso sentir as texturas das superfícies e objetos
nas fotos contra a pele nua. Sei disso porque em muitas ocasi-
ões fiquei imersa em farinha ou algum outro material. E uma
vez ela me cobriu com fatias grossas de gelatina fria transpa-
rente a fim de ‘criar meu contorno em neon’ para uma foto
(Rankin, 1998, p. 35).6

Em Swan song,
song, seu projeto final para a universidade,
Woodman não se contentou apenas em exibir suas fotografias de
acordo com o modelo convencional de exposição fotográfica. Ela
concebeu o trabalho como uma instalação, envolvendo o público
e fazendo com que este o experimentasse sensorialmente, enga-
jando não apenas a visão mas também a audição e a percepção do
espaço. Ela posicionou as fotografias em níveis bastante altos ou
ao rés do chão, privilegiando locais inusitados como os cantos da
galeria, além de incluir um grande espelho apoiado no chão e en-
costado contra a parede. Em uma carta à pintora Edith Schloss,
Woodman descreve a abertura da exposição:

6
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “To more fully understand the
nature of what she was after in her pictures, one must appreciate the tactile nature of
her work – one needs to feel the textures of the surfaces and objects in the pictures
against bare skin. I know this because in many occasions I was immersed in flour or
some other material. And once she covered me with thick slivers of clear, cold jello in
order to ‘outline me in neon’ for a photograph.”
Francesca Woodman 131

A noite passada foi a abertura da minha exposição final para a


qual fiz estes anúncios. Você teria gostado. Comprei todos es-
ses apitos de passarinho que você enche d’água e eles gorjeiam
em Nova York [...] de toda forma, o espaço estava ecoando
bastante com estas coisas e eu de fato gostei da abertura (Woo-
dman in Cassetti and Stocchi, 2011, p. 95).7

A geometria do espaço, assim como a geometria do


tempo, está, na obra de Woodman, inelutavelmente imbri-
cada com o corpo, com o problema da representação na fo-
tografia e da própria possibilidade de representação de um
sujeito. A geometria do corpo não pode ser pensada indepen-
dentemente da geometria do espaço e também da arquitetura,
já que muitas fotos de Woodman são interiores. De fato, essa
relação, presente na totalidade de sua obra, torna-se explícita
em seus últimos projetos, nas séries de blueprints e dyazotypes
dyazotypes,,
em que corpo e arquitetura estão indissociavelmente implica-
dos, como vemos em seus estudos de cariátides, em Temple pro-
ject, em Zig-zag
Zig-zag e em Bridges and tiaras,
tiaras, em que Woodman
explora correspondências entre o corpo (ou objetos desenhados
para seu uso) e estruturas arquitetônicas; e em seu único livro
publicado, Some disordered interior geometries,
geometries, no qual intervém
com fotos e textos em um antigo caderno italiano de geome-
tria euclidiana. É também por meio da geometria que a artista
7
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “Last night was the opening of my se-
nior show for which I made these announcements. You would have enjoyed it. i bought
all these bird whistles that one fills with water and they warble in New York. [...] anyway
the room was ver(y) echoey with these things and I actually enjoyed the opening.”
132

coloca em questão a representação do sujeito. Woodman não só


descentra o sujeito em grande parte de suas fotos, privilegian-
do os cantos, forçando os limites da composição, ocupando as
margens, os espaços limiares, questionando constantemente os
limites do enquadramento, como também interroga a relação
entre figura e fundo, fazendo com que se confundam, se do-
brem, com que percam seus contornos claros. Essa dobra, esse
questionamento dos limites, essa tensão entre materialidade/
corporalidade e plano/superfície, esse apagamento do sujeito
(que se dá ainda por outros meios, como veremos) se expressa,
na geometria do tempo, por meio da técnica de longa exposição
que tende a dissolver os corpos, borrar as formas até torná-las
indistintas, ilegíveis, reduzi-las a não mais que um traço. Na
série House e em outras fotos do mesmo período, vemos Wood-
man metamorfosear-se em parede, seu corpo desaparecer na la-
reira ou no canto da sala e amalgamar-se às portas e à despensa.
De certa maneira, há em Woodman uma resistência à operação
da fotografia de capturar o sujeito espacial e temporalmente, de
fixar algo/alguém que pertence desde já a um momento passado
que se repete no presente, de achatar o corpo na folha de papel.
Ela própria sintetiza a questão em duas anotações que faz nas
fotos da série Charlie, the model.
model. A primeira delas diz: “Char-
lie é modelo há 19 anos. Acho que ele sabe bastante sobre ser
achatado para caber no papel”. Mas a questão está longe de ser
simples e, em uma foto posterior, Woodman observa: “Há o pa-
pel e, então, há a pessoa”. Em sua preocupação com o problema
da representação e das condições objetivas do meio fotográfico,
Francesca Woodman 133

de sua planaridade e superficialidade, Woodman deixa claro


suas afinidades com o modernismo. Como sublinha o crítico
Clement Greenberg:

Foi a ênfase conferida à planaridade inelutável da superficie


que permaneceu, porém, mais fundamental do que qualquer
outra coisa para os processos pelos quais a arte pictórica cri-
ticou-se e definiu-se a si mesma no modernismo. Pois só a
planaridade era única e exclusiva da arte pictórica (Greenberg,
1997, p. 103).

Mas ao introduzir o corpo – e, em especial, o corpo femi-


nino – e sua resistência ao necessário achatamento da represen-
tação fotográfica, e ao insistir na temporalidade na imagem es-
tática, desordenando as geometrias do tempo e espaço próprias
à fotografia, a obra de Woodman interroga e critica a estética
modernista da qual, contudo, participa.
O corpo feminino figura de forma central em sua obra,
de seus primeiros trabalhos até os últimos projetos que realizou.
Ainda que sem participar diretamente do movimento feminista
que toma grande ímpeto no início dos anos 1970 e cuja influ-
ência se estende por toda a década, o trabalho de Woodman
engaja-se com questões de gênero, identidade e subjetividade
– e, por conseguinte, de performatividade –; questões centrais
às teorias e práticas feministas. Fotos como as que exploram o
corpo como matéria bruta, maleável e sensível, ao qual Wood-
man aplica pregadores de roupa, incluindo áreas extrassensíveis
134

como os mamilos, ou em que a pele é deformada pelas mãos, ou


ainda por meio da pressão do vidro contra o corpo nu, inserem-
-se a meu ver no conjunto das investigações levadas a cabos
por várias artistas do período trabalhando em performance,
vídeo e body art,
art, como Ana Mendieta, Adrian Piper, Joan Jo-
nas, Carolee Schneemann, Hannah Wilke, Marina Abramović
e Gina Pane, por exemplo. A década de 1970, período em que
Woodman atua, é marcada pela forte intervenção das mulheres
nas artes, especialmente por artistas trabalhando com vídeo e
performance. Constituído ao longo da história da arte como
objeto favorito de representação por pintores e escultores, em
sua maioria, homens, o corpo feminino torna-se não apenas
matéria e instrumento principal das obras de artistas mulheres,
mas também lugar simbólico de investigações relacionadas com
a subjetividade feminina e a performatividade do gênero.

Untitled,, 1976.
Untitled

Ao utilizar a si própria como objeto de suas fotos,


Woodman posiciona-se simultaneamente como sujeito e objeto
da obra. Como autora, a artista não apenas ocupa uma posição
Francesca Woodman 135

comumente reservada ao sujeito masculino, mas também desloca


a própria forma de olhar, de representar o feminino.
Frequentemente, ela estabelece um diálogo com os ideais
clássicos de beleza, citando-os repetidamente. Tais citações, en-
tretanto, não são simples emulações, mas são rearticuladas criti-
camente, com diferença. São uma apropriação, aquilo que Luce
Irigaray define como um mimetismo crítico.
No discurso da filosofia ocidental, o feminino, segundo
Luce Irigaray, é sempre reprimido. “O homem representou sem-
pre o único sujeito possível do discurso, o único sujeito possível”
(Irigaray, 2002, p. 227).8 Ela considera fundamental problema-
tizar este discurso, mas, uma vez que este é o único existente, é
impossível contestá-lo de uma posição exterior a ele. As mulheres
não têm recurso a uma linguagem própria: elas aprendem a ler, a
pensar e a escrever como homem, a olhar o mundo por meio do
olhar masculino. Então, num primeiro momento, será utilizando
este discurso que a mulher poderá desorganizá-lo. Ela tem que
“imitar” este discurso, porém esta imitação está, desde já, inves-
tida pela diferença. Pois, ao imitar deliberadamente o discurso
masculino, ela já está problematizando-o, já está “converte(ndo)
uma forma de subordinação em uma afirmação”:9

Brincar com a mimesis é portanto, para uma mulher, tentar


recuperar o lugar de sua exploração pelo discurso, sem deixar-
8
Traduzido do inglês pela autora deste capítulo, no original: “Man has always repre-
sented the only possible subject of discourse, the only possible subject.”
9
Traduzido do inglês pela autora deste capítulo, no original: “To convert a form of
subordination into an affirmation, and thus to begin to thwart it.”
136

-se simplesmente ser reduzida ao mesmo. Significa resubmeter


a si própria – na medida em que ela se encontra do lado do que
é “perceptível”, da “matéria” – a ideias, em particular, ideias
sobre si mesma, que são elaboradas por/na lógica masculina,
mas de forma a torná-las “visíveis”, por um efeito de repetição
brincalhona, daquilo que deveria permanecer invisível: o aco-
bertamento de uma possível operação do feminino na lingua-
gem” (Irigaray, 2002, p. 76).10

A mímica funciona como uma estratégia subversiva para


deslocar, desterritorializar e desorganizar um corpo de pensa-
mento a partir de seu interior, uma forma de “obstruir a má-
quina teórica” (Irigaray, 1985, p. 78),11 de torcer a sua lógica. É
o que Woodman faz performativamente por meio de sua apro-
priação do discurso masculino, de suas reiteradas citações da
representação do feminino nas artes plásticas. Basta olhar, por
exemplo, para a série A woman, a mirror, a woman is a mirror
for a man,
man, de 1975. Brincando com o caráter essencialmente
escópico e especular comuns à representação da sexualidade fe-
minina e da própria diferença sexual, Woodman constrói uma
cena que chama nossa atenção para o modo pelo qual o nu
10
Traduzido do inglês pela autora deste capítulo, no original: “To play with mimesis is
thus, for a woman, to try to recover the place of her exploitation by discourse, without
allowing herself to be simply reduced to it. It means to resubmit herself – inasmuch
as she is on the side of the ‘perceptible’, of ‘matter’ –to ‘ideas’, in particular to ideas
about herself, that are elaborated in/by a masculine logic, but so as to make ‘visible’,
by an effect of playful repetition, what was supposed to remain invisible: the cover-up
of a possible operation of the feminine in language.”
11
Traduzido do inglês pela autora deste capítulo, no original: “Jamming the theore-
tical machinery”.
Francesca Woodman 137

feminino funciona como afirmação da sexualidade masculina.


Como espelho do homem, o que a mulher reflete não é sua
própria imagem, não é a visão da diferença sexual, mas sim da
indiferença,, da incapacidade masculina de enxergar a sexualida-
indiferença
de feminina, percebendo, ao invés, apenas a ausência do pênis.
Daí a importância de representações do feminino que buscam
uma imagem perfeita, ideal, da mulher, cujo prazer de olhar
seja capaz de mitigar a ansiedade da castração. “A posição da
mulher como fantasia”, como nota Jacqueline Rose, “depende,
portanto, de uma economia particular da visão” (Rose, 1989,
p. 232),12 isto é, não se trata “apenas [d]aquilo que vemos, mas
como vemos” (Rose, 1989, p. 231).13

man, 1975-78.
A woman, a mirror, a woman is a mirror for man,

A estratégia citacional de Woodman, incluindo a incor-


poração em suas fotos de objetos historicamente usados para
12
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “The position of woman as fan-
tasy therefore depends on a particular economy of vision”.
13
Traduzido pela autora deste capítulo, no original: “Not just what we see but how
we see”.
138

simbolizar o feminino como flores, conchas, espelhos, cisnes


etc., parece reiterar, por vezes, o feminino como objeto de dese-
jo, erótico, como fetiche, construído a partir de e para o prazer
do olhar masculino. Mas o modo como Woodman emprega
ativamente esse olhar, sua apropriação da posição de sujeito da
obra e sua dupla condição de objeto, inserindo “seu próprio
corpo no campo do problema”, como observou Krauss, proble-
matiza desde já o prazer supostamente neutro do olhar, a obje-
tificação do feminino, deslocando e desorganizando o discurso
masculino a partir do interior de sua própria lógica, e possibi-
litando, como nota Benjamin Buchloh, a articulação de uma
imagem do desejo e da sexualidade feminina estranha a esta
lógica (Buchloh, 2004). Na obra de Woodman, a subjetividade,
sempre elusiva, indeterminada, se afirma, performativamente,
no movimento mesmo de desaparecimento. Escondida por trás
de panos e espelhos, mascarando a si e suas modelos com sua
própria foto (sua identidade), simplesmente acéfala, ou tornada
indistinta pela longa exposição, Woodman põe em xeque tan-
to a noção de uma subjetividade feminina que pode se dar ao
conhecimento quanto o olhar que busca capturá-la. É por essa
razão que ela pode afirmar, provocativamente, “você não pode
me ver do lugar de onde me olho”.
Francesca Woodman 139

About Model, Francesca Woodman,


Being My Model, #4, Francesca
Self-Deceit #4,
1976..
1976 Woodman, 1978.

Referências

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mentation”. Performing Arts Journal, n. 84, 2006, pp.1-10.
BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia.
fotografia. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BUCHLOH, Benjamin. “Performing the photograph, staging the
subject”. In Francesca Woodman photographs 1975-1980.
1975-1980. Nova
York: Marion Goodman Gallery, 2004.
CASETTI, Giuseppe e STOCCHI, Francesco (eds.). Francesca
Woodman Roma 1977-1981.
1977-1981. Agma, 2011.
GREENBERG, Clement.
Clement. “A pintura modernista”. In FERREIRA,
140

Glória e COTRIM, Cecília (orgs.). Clement Greenberg e o debate


crítico.. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
crítico
IRIGARAY, Luce. “The power of discourse and the subordination
of the feminine”. In This sex which is not one.
one. Ithaca, Nova York:
Cornell University Press, 1985.
------. “The language of man”. To speak is never neutral.
neutral. Nova York:
Routledge, 2002.
KRAUSS, Rosalind. “Problem sets”. In GABHART et al. Fran-
cesca Woodman: photographic work.work. Wellesley College Museum
exhibition catalogue, 1986.
RANKIN, Sloan. “Peach mumble – ideas cooking”. In Francesca
Woodman.. Paris, Zurique, Berlin, Nova York: Fondation Cartier
Woodman
pour l’art contemporain, 1998.
ROSE, Jacqueline. Sexuality in the field of vision.
vision. Londres e Nova
York: Verso Books, 1989.
WOODMAN, Francesca. Some disordered interior geometries.
geometries. Nova
York: Synapse, 1981.
Arte e ativismo: o projeto fulminante
de Nadia Granados

André Masseno1

Escrevo a partir da feiura e para as feias, as velhas,


as caminhoneiras, as frígidas, as mal fodidas, as que
jamais serão fodidas, as histéricas, as taradas e para
todas as excluídas do grande mercado da boa moça.
E assim começo e que fique claro: não me arrepen-
do de nada e tampouco me queixarei de alguma
coisa. Não mudaria meu lugar por nenhum outro,
pois ser Virginie Despentes me parece um assunto
mais interessante do que qualquer outro (Despen-
tes, 2007, p. 7).

1
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Coreógrafo e performer.
142

Com este parágrafo, inicia-se o livro Teoria King Kong,


Kong,
de Virginie Despentes (2007), composto por relatos e escritos
críticos desta autora francesa a partir de suas experiências como
profissional do sexo, escritora, caronista de estrada, diretora de
cinema e feminista nada ortodoxa ou essencialista. Assim, a au-
tora deixa claro a quem endereça a sua escrita: a todas aquelas
que podem tomar partido de sua condição dissidente como
uma experiência de vida urbana e política.
Porém, a fala da autora também inclui o homem, afastan-
do-se de uma postura feminista que seja discursivamente para-
noica e obsessiva com relação à figura masculina:

[...] porém, escrevo também para os homens que não têm von-
tade de proteger, para os que gostariam de proteger mas não
sabem como, para os que não sabem brigar, os que choram
com facilidade, os que não são ambiciosos e tampouco compe-
titivos, para os que não tem pau grande, e não são agressivos,
para os que têm medo, os que são tímidos, vulneráveis, os que
preferem se ocupar com a casa em vez de ir trabalhar, os que
são delicados, calvos, muito pobres para saber como gostar,
para os que gostam de dar o cu, os que não querem que nin-
guém conte com eles, os que à noite têm medo quando estão
sozinhos (Despentes, 2007, p. 10).

Logo, a teoria de Virginie Despentes aponta as figuras


masculina e feminina enquanto reféns de um controle social e
heteronormativo – embora saibamos que a figura do homem,
Arte e ativismo 143

ainda assim, goza de certos privilégios, e principalmente se for


branco, ocidental, abastado, viril e heterossexual. Todavia, os
escritos da autora são para todas as pessoas que se sentem um
King Kong, este imenso animal demasiado peludo, bastante
desorientado, por demais raivoso, brutal, ruidoso e destruidor;
animal que chama a atenção por onde passa e que é visto como
abjeto dentro da esfera social.
Começar com as palavras iniciais de Teoria King Kong é,
de certo modo, alertar o ouvinte para a potência ético-política re-
sidente nas obras de uma grande leva de artistas contemporâneas
comprometidas com a relação entre arte e ativismo. Relação onde o
corpo, junto com as sexualidades e os comportamentos dissidentes,
é o foco de atenção e a estratégia para surgir ações contestatórias
dentro das esferas socioculturais as quais estas artistas pertencem.
O texto de Virginie Despentes, embora gerado dentro do contexto
francês, é um produtivo ponto de partida para se pensar as artistas
latino-americanas às voltas com a denúncia dos padrões normati-
vos (sejam estes políticos, sexuais e/ou sociais) presentes na América
Latina – logo, para se pensar o projeto de arte de Nadia Granados,
que será o tema de interesse de minha fala.
Natural de Bogotá, Nadia Granados desenvolve propos-
tas que abrangem uma série de ações, que vão desde o uso dos
registros da comunicação visual popular até a arte, seja por meio
da videoperformance seja pela transmissão de vídeo ao vivo (live (live
streaming).
streaming ). Suas ações artísticas são altamente políticas e que,
de acordo com a própria artista, são um “remix da autorrepre-
sentação, da metapornografia, das estratégias de informação da
144

internet e da crítica direta a uma sociedade alienada”.2 Embora


a artista transite entre várias categorias artísticas, e até mesmo
pulverizando as barreiras entre elas, o foco será sobre o projeto
La Fulminante, personagem criada e performada pela própria
Granados e que ocupa grande parte de sua produção artística.
A atuação de La Fulminante se dá principalmente no
espaço cibernético, num site em que as videoperformances da
personagem são exibidas permanentemente,3– embora Nadia
Granados venha ampliando a ação de sua personagem por meio
de performances ao vivo, utilizando-se dos formatos da instala-
ção e do cabaré.4 Na página principal do site de La Fulminante,
aparece a personagem nua, de bruços e teclando num laptop laptop..
Calçando salto alto dourado, sua postura remete a uma clássica
pose das pin-ups
pin-ups.. La Fulminante é uma loura postiça (veste pe-
ruca), de sobrancelhas pretas, grossas e peludas. Seu olhar não
é nem para o internauta, tampouco para o laptop que ela tem à
sua frente. La Fulminante parece olhar a figura que surge logo à
esquerda da tela, com rosto e cabeça cobertos com uma camisa,
passando à sua frente e empunhando um pênis de borracha ver-
melha. Abaixo desta cena, encontram-se mais de duas dezenas
de vídeos de La Fulminante para serem acessados, além de links

2
Cf. o site da artista em http://www.nadiagranados.com/pages/cv.html.
3
Na seção “Exposições individuais” de seu currículo disponível online, informa Nadia
Granados: “La Fulminante. Espaço web. Exibição permanente”. Cf. http://www.na-
diagranados.com/pages/cv.html.
4
Por exemplo, em agosto de 2012, na vidraça da Galeria da Aliança Francesa, em
Bogotá, Nadia Granados apresentou “No basta un pedazo de tierra”, que consiste em
uma videoinstalação e performance. Na mesma cidade, em 13 de março de 2013, foi
apresentado “La Fulminante Cabaret”.
Arte e ativismo 145

para páginas afins. Os frames dos vídeos de La Fulminante são


eroticamente apelativos, predominando o recorte de sua face
(closes de bocas abertas ou com materiais tais como preservati-
vo, terra, seringa e revólver), ou de partes de seu corpo nu ou
seminu (ombros, colo, seios, quadris e nádegas) e incitando o
internauta a acessá-los.
À primeira vista, o site tem os códigos visuais inerentes
às páginas de vídeos pornográficos e especialmente as de ciber-
sexo, em que os participantes se exibem sexualmente diante de
uma webcam para um possível interlocutor. Porém, relembre-
mos que, na página principal do sitesite,, lá está a figura terrorista
de um corpo encoberto e empunhando o pênis de borracha, ao
lado da imagem de La Fulminante. Os vídeos de La Fulminan-
te são elaborados por meio da apropriação dos códigos da in-
dústria pornográfica – planos em close-up
close-up,, vestimentas eróticas,
voz sussurrada e gemida, gestual, posturas e fluidos corporais
ou semelhantes –, que, entretanto, são criticamente desloca-
dos, no intuito de criar manifestos artísticos que denunciem
a crise político-cultural na Colômbia. Os códigos pornográfi-
cos são utilizados em prol de uma ação-arte guerrilheira. Desse
modo, duas críticas percorrem paralelas e interdependentes no
discurso e na postura de La Fulminante: 1) crítica à indústria
pornográfica e aos meios de comunicação de massa, engajados
na mercantilização e padronização de corpos, comportamentos
e sexualidades; 2) crítica ao desumano status quo colombiano,
que, na realidade, é uma condição presente em praticamente
toda a América Latina.
146

O vídeo Justicia poética en un país de mierda (“Justiça po-


ética em um país de merda”), por exemplo, trata-se de um ata-
que ao sistema político colombiano. Tal sistema se omite com
relação aos crimes praticados pelas forças paramilitares,5 tam-
bém acusadas pelo assassinato de pacifistas e de denunciadores
de suas ações criminosas, como o do comediante e jornalista
Jaime Garzón, a quem este vídeo de Nadia Granados presta
uma homenagem.
La Fulminante surge no vídeo em proporções gigantescas e
andando entre os prédios. Sua roupa é de vinil preto e semelhan-
te as que são vendidas em sex shops.
shops. Ela aparece como um grande
monstro sobre a cidade, estremecendo o chão a cada pisada. La
Fulminante dispara:

Este é um bom dia para um pouco de justiça poética em um


país de merda. Pelas terras saqueadas. Pelo sangue derramado.
O espetáculo é fedorento. Acreditam que conseguirão ocultar
uma ferida que atravessa todo o país? A justiça saltará de mi-
nhas entranhas, ardente que nem as minhas nádegas.

5
Grupos armados de extrema direita que, na década de 1970, eram inicialmente
opostos aos grupos guerrilheiros de extrema esquerda. Em seu histórico, as forças
paramilitares tiveram o apoio de fazendeiros e de pequenos industriais até chegar ao
vínculo com alguns representantes da sociedade e do Estado. Estes facilitaram o desvio
de verbas públicas para o financiamento dos grupos paramilitares, já envolvidos com
o narcotráfico e responsáveis por vários massacres e desterritorializações forçadas na
Colômbia. Cabe lembrar que a descoberta do envolvimento de uma grande parcela de
políticos com as forças paramilitares gerou, em 2006, um escândalo nacional cunhado
como parapolítica. A partir daí, o país vem buscando uma desmobilização da ação
destes grupos.
Arte e ativismo 147

Porém sua fala é incompreensível, é um misto de estalar de


língua e reunião de sílabas foneticamente abertas, que parecem
remeter ao ritmo e à vocalidade das línguas indígenas da América
do Sul. Só se sabe o que está sendo dito por causa da legenda no
campo inferior da tela e que acompanha todo o seu discurso.
A presença de La Fulminante é intermediada por ima-
gens de um programa de comédia colombiano e por trechos
de entrevistas do falecido Jaime Garzón. Mais adiante, aparece
a imagem da gigante La Fulminante diante do Congresso da
República da Colômbia:

Isto [o Congresso Colombiano] é o ninho de ratazanas onde a


constituição é deformada para ser defendido o direito à escra-
vidão, ao silêncio e à morte. Em nome do riso, do canto e da
ira, venho rasgar suas pálpebras e estourar seus ouvidos. Aqui
dentro tem algo quente para os senhores....

La Fulminante abaixa a calcinha e começa a defecar sobre


o Congresso enquanto continua a sua fala:

Vou espalhar este banquete sobre sua honrável infâmia. De-


leitem-se com o resto de sua ambição, de sua insaciável opu-
lência genocida. O país vem nadando neste mar de merda. Já
tivemos indigestão por causa de tantos heróis e mentiras, de
acordar somente com o soldado chorão que cobre, com suas
lágrimas, a desterritorialização e o assassinato de indígenas.
148

La Fulminante está solta na cidade, buscando justiça com


seu próprio corpo, incorporando a revolta. Parafraseando o jar-
gão popular brasileiro, La Fulminante está “com a macaca”.
Nesse vídeo, devido ao registro revoltado e grunhido de
sua fala, ao seu gesto vingativo e seu tamanho gigantesco sobre
a cidade, entrevejo a figura de La Fulmimante como a King
Kong de Bogotá. No entanto, ela guarda nenhuma semelhan-
ça com as últimas versões cinematográficas desta personagem,
mais romantizada e de detalhes realistas. A King La Fulminante
Kong está mais próxima do arroubo cru e dos traços rudes da
personagem King Kong de 1933, criada em película preta e
branca e de aparência mais feroz, devorando gente, ou se pre-
ferirmos, aterrorizando uma sociedade capitalista e abastada.6
Seu gesto de defecar sobre o Congresso parece reverberar o de-
sejo de justiça de outros tantos desvalidos dentro do território
colombiano; a atitude de La Fulminante chama a atenção para
uma maioria pobre e silenciada, geralmente ludibriada por um
governo de discurso populista.
Em alguns outros vídeos, contudo, La Fulminante parece
se aproximar de uma sedução exacerbada e exibicionista, como
em El negocio de la salud (“A indústria da saúde”), por exemplo,
em que a personagem encarna a imagem fetichista da enfermeira,
loura e fatal, chupando maliciosamente uma seringa. Embora,
neste vídeo, La Fulminante se utilize de um vocabulário de ações
e comportamentos que simulam o sexo diante do olhar de seu
ciberespectador (chupar, gemer, passar a língua e os dedos entre
6
King Kong (EUA/1933). Direção: Merian C. Cooper.
Arte e ativismo 149

os lábios, babar), o tom de sua voz e a sua fala de temática política


(ela discute sobre a problemática da indústria farmacêutica na
Colômbia) criam um contraponto ao registro erótico do corpo.
Por meio de La Fulminante, Nadia Granados sucateia imagens
estereotipadas e fetichistas produzidas sobre o corpo feminino,
para jogar criticamente com tais construções no espaço ciberné-
tico, pois, como a artista declara:

Os corpos das mulheres são usados como símbolos ou como


imagens para vender determinadas ideias, ou então para adornar.
Nesse sentido, o corpo pode falar de ações emancipadoras. Meu
corpo toca em certas ideias subversivas que contribuem para o
questionamento de um sistema falho (Kurt e Sánchez, 2013).7

Esta falha assinalada por Granados é trazida à tona e proble-


matizada quando La Fulminante é performada e subverte os pa-
drões vigentes de sexualidade e de representação de gênero. A meu
ver, este procedimento faz de La Fulminante uma personagem
pós-pornográfica. Mas afinal: o que seria a pós-pornografia, este
terreno no qual incluo a personagem criada por Nadia Granados?
O termo pós-pornografia, cunhado pelo fotógrafo holan-
dês Wink van Kempen, ganha relevância a partir de sua apro-
priação feita pela artista inglesa e ex-atriz pornô Annie Sprinkle
durante o decênio de 1980, quando passa a conceber perfor-
7
Tradução livre do autor. No original: “Los cuerpos de las mujeres se usan como
símbolos o imágenes para vender ciertas ideas o para adornar. En ese sentido el cuerpo
puede hablar de ciertas emancipatorias. Mi cuerpo habla de ciertas ideas insurreccio-
nales que contribuyen al cuestionamiento de un sistema que no funciona”.
150

mances que problematizam o estatuto do corpo dentro do ima-


ginário pornográfico. Na década subsequente, Sprinkle cria a
performance Post-porn modernist,
modernist, culminando na publicação
de livro-homônimo (1991), que se utiliza de dados autobio-
gráficos como proposição teórica e mensagem artístico-política.
A partir daí, o termo pós-pornografia vem sendo reinterpretado
e adquirindo outras visibilidades por parte de artistas interes-
sadas em discutir os padrões de sexualidade e de gênero vigen-
tes. Estes padrões são, muitas vezes, também disseminados pela
indústria pornográfica tradicional, que é dotada de uma vasta
iconografia de imagens estandartizadas do feminino e do mas-
culino e que, concomitantemente, promovem uma regulação
do prazer, como se não houvesse espaço, nesta indústria, para
uma encenação além da visibilidade da ejaculação. Tais repre-
sentações sexuais controlam as práticas de gênero, excluindo
ou, no mínimo, enquadrando corpos e sexualidades conside-
rados desviantes. Assim, pelo uso subversivo dos códigos por-
nográficos, algumas artistas propõem novas leituras daqueles e,
ao mesmo tempo, investigam possibilidades de relação entre o
ativismo artístico e as sexualidades, gêneros e corporeidades dis-
sidentes. Estes procedimentos resultam em uma revisão crítica
da pornografia, desmantelando a ideia de que esta seja um gê-
nero estritamente masculino, promovendo representações (pós)
pornográficas femininas, feministas, gays, lésbicas, trans
trans*,
*, queer
ou que rechacem qualquer uma destas denominações.
Nos últimos anos, a pós-pornografia ganha relevância
tanto artística quanto acadêmica, especialmente na Espanha.
Arte e ativismo 151

Entre as suas artistas, destacam-se María Llopis8 e Diana J.


Torres,9 também autoras de livros sobre pós-pornografia, es-
tando esta última interessada pelo desdobramento da ideia do
pós-pornográfico para o pornô-terrorismo. No campo de es-
tudo crítico, encontram-se Beatriz Preciado (2002) e Marisol
Salanova (2012). Fora do circuito espanhol, sua manifestação
também é vasta, podendo ser entrevista na Virginie Despentes
de Teoria King Kong e do filme Baise-moi,10 na produção do
cineasta canadense Bruce LaBruce11 e, na América Latina, no
projeto de música funk Solange, tô aberta! (STA!)
(STA!),, concebido
pelos brasileiros Pedro Costa e Paulo Belzebitchy,12 assim como
nas obras de Nadia Granados, sendo La Fulminante seu projeto
artístico que dialoga proficuamente com este (recente) legado.
Se eu entrevejo La Fulminante como pós-pornográfica,
deve-se tanto pela maneira que a personagem é elaborada, ou
seja, repleta de códigos subvertidos do padrão feminino difun-
dido pela cinematografia pornográfica convencional, quanto
pelo modo de produção das videoperformances e de sua inser-
ção no espaço cibernético – onde webcams e o cibersexo inte-
gram o aparato tecnológico do fetiche atual (cf. Llopis, 2010).
Os vídeos são aparentemente de baixo orçamento, apoiados sobre

8
Cf. LLOPIS, María. El postporno era eso. Barcelona: Melusina, 2010. Disponível em
www.mariallopis.com. Acesso em 13 dez. 2014.
9
Cf. TORRES, Diana J. Pornoterrorismo. Tafalla: Txalaparta, 2011. Disponível em
www.pornoterrorismo.com.
10
Baise-moi (França/2000). Direção: Virginie Despentes. França.
11
Especialmente o filme Otto, or up with dead people (Alemanha-Canadá/2008). Di-
reção: Bruce LaBruce.
12
As músicas do STA! estão disponíveis em https://soundcloud.com/#solangetoaberta.
152

recursos primários de captação de imagem, edição e montagem.


Este procedimento resulta em uma estética crua e direta, poten-
cializada por uma narratividade simples e sem elipses, pouco in-
teressada em provocar um efeito de realidade. Se os vídeos de La
Fulminante lançam mão de certos recursos visuais (distorção de
imagem, aumento de contraste da cor e uso de imagens sobrepos-
tas), são tanto para dar um aspecto sobrenatural para a persona-
gem – de proporção gigantesca e amedrontadora – quanto para
intensificar o seu contato com o ciberespectador.
Mas será que La Fulminante não seria considerada “por-
nográfica” por denunciar as crises de uma sociedade colom-
biana, por evidenciar o controle dos corpos empreendido por
um Estado latino-americano que, embora se pretenda laico,
possui apoio de instituições e líderes religiosos? Esta pergunta
suscita uma rápida menção a um trajeto histórico relacionado
com o “sequestro” da figura feminina pelo Estado e a disputa
deste com a Igreja para conseguir a “melhor” representação da
“sequestrada”.

Quando o governo convoca a ajuda da polícia no colégio ou


pede a presença do exército nos bairros periféricos, não intro-
duzem uma figura viril da lei no domínio da infância; trata-
-se, na realidade, de um prolongamento do poder absoluto da
mãe. Somente ela sabe castigar, enquadrar e manter as crianças
em estado de infância prolongada. Um Estado que se proje-
ta como mãe todo-poderosa é um Estado fascista (Despentes,
2007, p. 23).
Arte e ativismo 153

Nesta afirmação de Virginie Despentes, entrevejo a pro-


blemática do “sequestro” da figura da mulher, que, no contexto
francês, se deu na história política da França desde a proclamação
de sua República, quando a figura feminina deixou de ser modelo
para uma representação republicana libertária para se tornar um
emblema manipulador e manipulado pela direita reacionária –
uma estratégia política até hoje persistente (cf. Carvalho, 1990).
O “sequestro” da figura feminina, e suas subsequentes deturpa-
ções praticadas pela Religião e pelo Estado, possui um fundo his-
tórico e que também recai sobre quaisquer gêneros e sexualidades
desviantes. No projeto La Fulminante de Nadia Granados, é vi-
sível um posicionamento crítico a respeito destas estratégias co-
ercitivas. A videoperformance Es la que arde (“A que arde”), por
exemplo, é a relação entre a figura de La Fulminante e a pequena
réplica de uma capela situada no meio de um bosque. La Ful-
minante está vestida de corselete e calcinha pretos com detalhes
florais vermelho-escuros, de meia-calça arrastão vermelha e sobre
um salto alto prateado. Ela abraça a frente da capela, quando
então começa o seu discurso. Durante a fala, La Fulminante aca-
ricia o próprio corpo, passando a mão na vagina e nas nádegas,
exibindo-se sedutoramente para a lente da câmera. Ela abaixa a
meia-calça, empina as nádegas, deixa um dos seios escapar pelo
corselete e se agacha. “[...] [U]ma certa espécie de obscenidade
desafiante e desobediente, presença grotesca e nada complacente,
tão deliciosa e excitante, palpita aqui dentro; animalesca e desa-
vergonhada, uma força incontrolável corre aqui dentro” – diz La
Fulminante passando a mão na vagina como se masturbasse e,
154

logo em seguida, urinando na porta da capela. Devido à posição


da câmera, que dá uma proporção descomunal à imagem de La
Fulminante agachada durante o ato de urinar, o pequeno edifício
religioso torna-se ainda menor – o que parece retomar o contraste
de escala presente no anteriormente citado Justicia poética en un
país de mierda,
mierda, com uma La Fulminante gigantesca como King
Kong, andando entre construções citadinas transformadas em
meras maquetes.
Após a ação de urinar, o vídeo é entremeado pela imagem
frontal de La Fulminante, passando entre os lábios os dedos
molhados de urina, e pela imagem de suas nádegas que, filma-
das de baixo para cima, se tornam imensas e apontam para o
céu e para o cume pontiagudo da capela, criando uma ilusão
óptica de que o ânus de La Fulminante será penetrado pelo
topo da capela, sobre o qual se vê também uma cruz. Entre-
mentes, a fala da personagem vai ganhando um caráter cada vez
mais político, que traz tanto uma crítica aos poderes institucio-
nais exercidos sobre os corpos quanto às necessidades de uma
resistência a estes poderes.
No entanto, a fala de La Fulminante é curiosa, pois se dá
pela concomitância entre um discurso corporal que se utiliza,
de forma subversiva, dos registros da indústria pornográfica e
um discurso verbal emitido por uma língua que não se entende,
mas que, ainda que traduzida por meio de legendas, se atreve
a falar. Estaria La Fulminante emitindo a dita ininteligível lín-
gua dos subalternos, que a cultura ocidental neoliberal, e prin-
cipalmente no contexto (ainda terceiro-mundista) dos países
Arte e ativismo 155

latino-americanos, não a entende por completo porque jamais


a reconheceu de fato?
A meu ver, La Fulminante parece apimentar o célebre
questionamento de Gayatri Spivak (2003): isto é, se os subal-
ternos dos países subdesenvolvidos e pós-coloniais podem fa-
lar – e mais especificamente a mulher do “terceiro mundo”.
Considero o projeto La Fulminante uma resposta positiva. La
Fulminante não fala pelos subalternos, não os representa nem
legalmente (vertreten
(vertreten),
), tampouco cenicamente (darstellen
(darstellen).
). La
Fulminante é a subalterna falante, ainda que por meio de uma
língua a ser traduzida. Embora não seja inteligível, é uma língua
urgente pela sua vibração metálica e gritada. A língua subalter-
na também pode berrar, sendo o grito revoltoso uma arma dos
desvalidos. Grito de um certo “terceiro mundo”, que teve sua
morte ficcionalizada pelo advento de uma política de globali-
zação, que torna todos os lugares e culturas parecidas com uma
única e mesma paisagem: neoliberal, populista, progressista e
“primeiro mundista”.

Referências

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República no Brasil.
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DESPENTES, Virginie. Teoria King Kong. Trad. Beatriz Preciado.
Barcelona: Melusina, 2007.
EGAÑA, Lucía. A pornografía como tecnología de género: apuntes
156

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Trad. Antonio Días G. Revista Colombiana de Antropologia,
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SPRINKLE, Annie. Post-porn modernist: my 25 years as a multi-media
whore.. San Francisco: Cleis, 1998 [1991].
whore
A dança da dobra infinita: divagações
sobre o contemporâneo

Ângela Maria Dias1

A atual teatralização da arte e da cultura, a par do seu


óbvio vínculo com a sociedade do espetáculo – em sua impli-
cação com a hegemonia do paradigma tecnológico –, tem a
ver também com uma moldura mais ampla e já detectada pela
sensibilidade de Walter Benjamin, durante as primeiras décadas
do século XX: certo anacronismo da história contemporânea
que figura um presente reminiscente (Didi-Huberman, 2013,
p. 176), na imagem súbita de um passado que relampeja no
agora (Benjamin, 2007). Tal convivência díspar contamina o
devir das formas de tensão e paroxismo.
Essa percepção paradoxal da estrutura do tempo, consa-
grada no conhecido ensaio “Sobre o conceito da História”, de
1
Professora da Universidade Federal Fluminense, pesquisadora do CNPq e ensaísta.
158

1940, escrito pelo filósofo alemão, em plena turbulência do iní-


cio da Segunda Guerra Mundial, vai ressoar, a partir do fim dos
anos de 1970, no protagonismo do pensamento de Lyotard, a
propósito do debate pós-moderno:

Uma obra só pode tornar-se moderna se primeiro for pós-mo-


derna. O pós-modernismo, entendido assim, não é o modernis-
mo no seu estado terminal, mas no seu estado nascente, e esse
estado é constante. (...) O pós-moderno seria aquilo que no mo-
derno alega o “impresentificável” na própria “presentificação”;
aquilo que se recusa à consolação das boas formas, ao consenso
de um gosto que permitiria sentir em comum a nostalgia do im-
possível; aquilo que se investiga com “presentificações” novas,
não para as desfrutar, mas para melhor fazer sentir o que há de
“impresentificável” (Lyotard, 1987, pp. 24, 26).

Esta intuição do “impresentificável” como o avesso da


“presentificação” ou ainda como o relâmpago de um presen-
te autorreconhecido na “imagem irrecuperável e subitamente
iluminada” (Benjamin, 2012, p. 11) do passado fugidio, ao
mesmo tempo em que constitui a característica marcante da
arte, a partir da condição pós-moderna, está imbricada no cerne
da modernidade, na raiz da sua desfiguração formal, ou seja,
constitui o pressuposto da “presentificação negativa” (Lyotard,
1987, p. 23) que opera.
Assim, a injunção contemporânea, ao situar-se na ar-
queologia da modernidade, passa a reconhecer-se, como a
A dança da dobra infinita 159

justificou o teórico francês, na sua qualidade de elaboração


da ruptura moderna, de “anamnese” de seu “esquecimento
inicial” (Lyotard, 1987, p. 98) do passado. Isso porque o ob-
jetivo ou o ponto de fuga de toda presentificação é sempre
o impresentificável: ou, para usarmos o emblema de Karl
Krauss, a origem é a meta.
Certamente, por esta perspectiva, Agamben pensa que
ser contemporâneo “significa ser capaz não apenas de manter
fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber
nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infi-
nitamente de nós” (Agamben, 2009, p. 65). Segundo a visão
do filósofo italiano, a intempestividade inerente à percepção
dissociada do tempo nele inscreve uma discronia, para expor
a fratura do contínuo homogêneo e vazio, já apontada por
Benjamin, em sua crítica à “ideia de um progresso do gênero
humano na história” (Benjamin, 2012, p. 17). A natureza fu-
gaz dessa peculiar sensibilidade do tempo, de acordo com a re-
flexão de Agamben, revela-se na vivência da moda, como um
horizonte inapreensível ou uma brecha entre um “ainda não”
e um “não mais” (Agamben, 2009, p. 68). Mas a afinidade
da moda com a temporalidade do contemporâneo, expandida
por sua tendência a atualizar o passado, revela também, no
presente domínio da tecnociência, a fisionomia desse passado.
Ou, por sua capacidade de “reevocar e revitalizar aquilo que
tinha até mesmo declarado morto” (Agamben, 2009, p. 69),
a moda faz emergir, no seio da atualidade, “os índices e as
assinaturas do arcaico” (Agamben, 2009, p. 69).
160

Nesse sentido, podemos detectar a inscrição de traços


materiais do Barroco no seio do presente. Sobretudo, sua fun-
ção operatória, “a dobra que vai ao infinito” (Deleuze, 1991, p.
13) constitui a dinâmica contemporânea, em várias dimensões.
A mágica disseminação de imagens e formas das tecnologias
eletrônicas e digitais, sua proliferação metamórfica capaz de
transformar matérias em fluidos e águas em massas, recupera a
temperatura móvel e rítmica do Barroco, em sua errância incan-
sável na busca da síntese entre o corpo do mundo e o sublime
do espírito. O incessante transformismo da matéria-dobra, em
seu tender-distender no tempo, inerente à arte setecentista, dra-
matiza o sentimento contemporâneo de compressão do tempo
e de neutralização do espaço vivido na atualidade globalizada e
partida entre localismos e fanatismos.
As insistentes antinomias da condição contemporânea,
depois do cortejo de atrocidades e conflitos vividos pelo século
XX, em busca do fugidio ideal de emancipação e justiça, podem
ser expressas pela oscilação entre ceticismo e melancolia diante
da barbárie terrorista e sua contrapartida de ostentação e eufo-
ria patrocinadas pela sociedade do espetáculo. Se a questão da
ressurgência periódica do Barroco deve ser pensada, a partir de
Eugenio D’Ors, preferimos apontar para a alternativa teórica das
correspondências entre momentos descontínuos, tal como pro-
posta por Benjamin, na reflexão sobre a História já referida aqui.
A vida como sonho e furtiva aparência não foi apenas o
topos da alegoria barroca, em sua desolada alusão à ruína e à
morte, mas constitui também o lugar-comum do nosso tempo,
A dança da dobra infinita 161

dominado pelos simulacros eletrônicos e digitais, cuja deriva


inumana é tanto resultante das imposições da tecnociência
quanto da estreiteza dos dogmas das seitas e doutrinas religio-
sas, que proliferam sem redimir. Por outro lado, se a cultura
setecentista se equilibra na luta entre o crescimento dos pro-
testantismos e a pregação da Contrarreforma, pela generalizada
linguagem da propaganda e da persuasão, a publicidade exten-
siva e disseminada consiste no principal esteio das sociedades
administradas pelo consumo como estratégia de subjetivação.
Nesse sentido, a busca dos recursos de sedução e a mul-
tiplicação de efeitos especiais voltados para a manipulação das
mentes e para o enlevo da sensibilidade engendram a explo-
são dos limites de cada código ou linguagem, numa espécie de
unidade extensiva das artes, sonhada pela ópera como “obra
de arte total”. Justamente por esta potência da matéria, capaz
de expandir-se e transbordar a moldura pela qual era contida,
Deleuze comenta como o Barroco produziu uma inusitada con-
tinuidade entre as artes:

Observou-se que o Barroco restringia frequentemente a pin-


tura e a circunscrevia aos retábulos, mas isso ocorria porque a
pintura sai da sua moldura e realiza-se na escultura em már-
more policromado; e a escultura ultrapassa-se e realiza-se na
arquitetura; e a arquitetura, por sua vez, encontra na fachada
uma moldura, mas essa própria moldura desloca-se do interior
e coloca-se em relação com a circunvizinhança, de modo que
realiza a arquitetura no urbanismo (Deleuze, 1991, p. 187).
162

A natureza informal dessas fusões e misturas desvela-


se na forma barroca a promessa do informe, pela atmosfera
coesa e contraditória que instaura, em sua profusão de ten-
dências e riqueza de movimentos. A dança infinita da dobra,
na produção de texturas forma um teatro em que a arte ex-
trapola seus domínios e almeja, então, instalar-se num es-
paço social público. O teatro do mundo invadido pela arte
como “desempenho” convoca o espectador e busca sua aco-
lhida (Deleuze, 1991, p. 188) para o impulso continuado da
metamorfose.
O perpétuo relançar de um termo ou de um lado pelo
outro alimenta a dialética do Barroco, num movimento regi-
do pela busca da coincidência dos opostos e pela vertigem da
síntese como ponto de fuga. Esse ritmo ilusionista em que os
códigos, linguagens e procedimentos, ao mesmo tempo se es-
tranham e se autorremetem, numa permanente contrafação,
impõe-se como significativa constante na arte contemporânea,
por sua latência lúdico-antropofágica – na devoração de manei-
ras e no hibridismo profuso de técnicas e referências.
A obra de Adriana Varejão, pela fecunda convergência
entre pintura, escultura, encenações e narrativas que põe em
circulação, certamente pode constituir uma feliz evidência de
um dos principais traços do Barroco: sua capacidade de produ-
zir na ilusão, torná-la potência e presença plena de ambiguidade
e indeterminação. Deleuze já constatou que “os barrocos sabem
perfeitamente que a alucinação não finge a presença, mas que a
presença é alucinatória” (Deleuze, 1991, p. 190).
A dança da dobra infinita 163

A produção plástico-visual da artista configura clara-


mente matrizes de natureza histórica, teórica e literária que
convocam, não só os motivos da colonização, como também
as teorias sobre a contraconquista e a desocidentalização. A
esse respeito, Adriano Pedrosa, o curador de Histórias às mar-
gens,, a primeira exposição retrospectiva da artista, aponta O
gens
pensamento mestiço,
mestiço, de Serge Gruzinski, bem como The darker
side of Western modernity,
modernity, de Walter Mignolo, como chaves
analíticas da obra de Varejão. Nesse sentido, a lógica de sua
criação cumpre com rigor e sutileza a dinâmica da alegoria
em suas “combinações de visível e legível”, na medida em que
“o visível tem sua leitura”, assim como “o legível tem seu te-
atro” (Deleuze, 1991, p. 187). A reversibilidade destes movi-
mentos – em que a leitura devora o visível para capturar seu
teatro e dar conta de um universo fragmentário e dispersivo,
em sua insuspeita unidade – corresponde-se com o horizonte
da antropofagia. A antropofagia, na definição de Oswald de
Andrade, consiste na “transformação do tabu em totem”, ou
do “valor oposto no valor favorável”, isto é, da alteridade do
mundo ou do “inimigo sacro” “no rito antropofágico, que é
comunhão” (Andrade, 1970, p. 143): “Só me interessa o que
não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (Andrade,
1970, p. 13).
Assim, Varejão transforma a violência da nossa tradição
colonizada num “tecido de histórias” – em que corpos, máscaras
e travestimentos se reproduzem num teatro de projeções super-
postas e entrelaçadas – ao envolver o espectador numa atmosfe-
164

ra de afectos e perceptos
perceptos,, para que ele vivencie histórias contra a
História, relatos outros, descentrados e desvalorizados, resíduos
contra o esquecimento e as convenções dominantes. Nessa ope-
ração de metamorfoses e ilusionismos, a diretriz aponta para a
“latência antropofágica” de nossa cultura e passa a transfundir
azulejos em corpos, corpos em vísceras, numa crescente misti-
ficação capaz de transformar pinturas em esculturas, esculturas
em relatos, relatos em ambientações grotescas.
Por outro lado, os mais diversos parceiros e eventos de
nossa condição mestiça, absorvidos pela vocação informe e
devoradora da artista, passam a conviver e a interagir de ma-
neira imprevista e inusitada: a catequese, por exemplo, aparece
transtornada em duas cenas canibalescas, em que índios sacri-
ficam o Cristo, em pinturas sobre tela, à maneira de azulejos;
a paisagem da Guanabara, num panorama, à moda do sécu-
lo XVII, aparece com várias edificações oriundas de distintas
épocas da cidade, “em tinta da China sobre papel”. E, por sua
vez, as diversas origens e etnias de nossa miscigenação surgem
apresentadas em múltiplos autorretratos de Varejão travestida
sucessivamente de chinesa, moura, negra e índia.
A antropofagia, entendida como estratégia cultural, pos-
sibilita um diálogo interdisciplinar amplo, na medida em que
incorpora distintas linguagens artísticas – a literatura, o teatro
e as artes plásticas – e as combina com múltiplas áreas de co-
nhecimento: a História, a Antropologia, a Política, a Filosofia,
a Religião, a Psicanálise. Por isso mesmo, a ideia de apropriação
está no cerne do conceito. Visando à reescritura cênica de nossa
A dança da dobra infinita 165

formação cultural pluralista, marcada por várias convergências


étnicas, Adriana apodera-se de nossa tradição artístico-icono-
gráfica, desde os personagens e as paisagens, passando pelos ma-
pas e azulejos. Assim, mobiliza uma infinidade de fontes, desde
a grandiosa obra de Theodore de Bry, aos trabalhos de paisa-
gistas como Franz Post e Nicolas-Antoine Taunay, ou ainda de
pintores como Pedro Américo, sem contar com o considerável
repertório de cartas geográficas e azulejos, recolhidos nas mais
diversificadas procedências.
Em Proposta para uma catequese: morte e esquartejamento
(1993), num formidável trompe l’oeil,
l’oeil, a azulejaria pintada sobre
tela, em branco e azul, dispõe-se nos dois quadros justapostos; o
primeiro, apresentando Cristo, cercado por índios, prestes a ser
abatido, e o segundo, o esquartejamento de um homem, rode-
ado por mulheres que preparam um banquete. Aqui, o caráter
político da apropriação do tema da catequese vale-se da ambi-
valência antropofágica para iluminar a devoração como “pro-
cesso de incorporação mútua” (Clark apud Herkenhoff, 1998,
p. 27) e o processo colonial como “uma guerra de canibalismos”
(Herkenhoff, 1998, p. 27).
A decidida desconstrução processada no tema ao apoiar-
se no descentramento do fato histórico, lido a contrapelo, re-
sulta na estratégia denominada por Agamben de profanação.
A profanação consiste num contradispositivo que, herdado da
religião, leva ao campo político uma operação estética: a paró-
dia. Segundo o pensador italiano, a paródia, como uma espécie
de citação, tanto se refere a um texto precedente quanto, ao
166

retomá-lo num contexto divergente, termina por “desativá-lo”,


no que o retoma com um distanciamento irônico.
Os dois quadros de Proposta para uma catequese: morte e
esquartejamento,, segundo depoimento de Adriano Pedrosa (Pe-
esquartejamento
drosa, 2013, p. 64), no catálogo da exposição Histórias às mar-
gens,, foram inspirados por América-terceira parte
gens parte,, de Theodore
de Bry, ilustração para o relato das viagens de Hans Staden no
Brasil, editado pelo próprio de Bry em 1592. Além dessa fonte,
na cena à esquerda, a artista reproduz detalhes arquitetônicos
de uma igreja de Olinda. Enquanto, na cena da direita, se apos-
sa de um painel de azulejo da Igreja do Convento de São Fran-
cisco da Bahia em Salvador. Ao alto da imagem, o painel dispõe
uma moldura com sentença de Cristo, extraída do Evangelho
Segundo São João, de caráter eminentemente antropófago, ain-
da que em nível simbólico: “Aquele que come a minha carne
e bebe o meu sangue está em mim, e eu, nele”. Mais à direita,
ainda se inclui um pequeno painel decorativo de camélia, to-
mado da cúpula da Igreja do Convento de Santo Antônio do
Recife. Pouco abaixo dele, aparece um número (571), sugerin-
do a página de um livro. Ou seja, como se ambos os quadros
fossem extraídos de páginas de livros, diferentes na tonalidade
do azul.
O conjunto figura uma justaposição irregular e insufi-
ciente para a apresentação completa de cada cena. A apropriação
das inúmeras referências mencionadas dá aos quadros um cará-
ter fragmentário e neles inscreve um aspecto deteriorado, já que
há espaços destituídos de azulejos, além da inserção de alguns
A dança da dobra infinita 167

que claramente não pertencem ao padrão do painel. Além das


marcas corrosivas do tempo, a composição apresenta cicatrizes,
pequenos pedaços supostamente costurados nela e bordados de
sangue ao redor. A ruína é um traço sabidamente inscrito na vi-
são alegórica de uma história naturalizada e voltada ao declínio
e à deterioração, característica da perspectiva barroca diante do
mundo. Além disso, a vocação teatral do painel de azulejos, que
sangram sutilmente nos fragmentos recompostos, dota a super-
fície da obra de uma intrigante ambiguidade, alimentada pela
convivência entre diferentes alusões: a página do livro, a pele
machucada, a pintura a óleo sobre tela, a azulejaria.
Aqui, a economia do conjunto põe em ação o movimento
da dobra barroca: o papel dobra-se em pintura, a pintura vira-se
em azulejo e, por sua vez, o azulejo torna-se pele ferida. Como
o constata Deleuze (1992, p. 194), “só as semelhanças diferem,
e apenas as diferenças se assemelham”, no que a dinâmica dife-
rencial da dobra opera a metamorfose sutil dos elementos, por
sua natureza de matéria-tempo.
Essa mesma constituição de palimpsesto revela-se de ma-
neira chocante na Extirpação do Mal por incisura (1994), que
faz parte de uma série de trabalhos sobre o mesmo tema, com
variações de método. Esse impressionante quadro a óleo sobre
tela, complementado por objetos, expõe peles nas quais fo-
ram tatuadas imagens aproveitadas da azulejaria da Igreja e do
Convento de São Francisco da Bahia, segundo informação de
Adriano Pedrosa. A tatuagem, como se sabe, imprime-se sobre
a pele de um corpo e, aqui, sobre a tela travestida em pele. Jeu-
168

dy comenta a respeito que “a exibição da tatuagem é um gesto


considerado sagrado” (Jeudy, 2002, p. 89) e, aqui, os diabinhos
gravados e violentamente rasurados revelam o interior da pele
cortada da tela, que, por sua vez, se encontra estendida sobre
uma maca encoberta por um lençol branco.
A disforme ferida escancarada mostra o interior do corpo
da tela, numa chave francamente expressionista, em tinta ver-
melha, bem forte, disposta em pequenos e agitados relevos com
manchas escuras. À direita do borrão disforme, vê-se a figura de
um grande diabo, com o rosto eliminado, em carne viva, bra-
ços para cima e igualmente ferido, na parte inferior do ventre.
A grande mancha vermelha da esquerda deixa escapar pequenas
partes dos corpos de outros diabos: frestas de cabeças, braços,
rabos, nádegas e pernas.
A centralidade do corpo nas narrativas plásticas de Va-
rejão, nesse sentido, não se revela apenas pelos muitos corpos
exibidos em suas obras, despedaçados, rasurados ou não, mas,
sobretudo, pelo fato de seu movimento e sua carnalidade re-
velarem-se em todas as massas, de maneira coextensiva, como
a exibir a semelhante condição de matéria compartilhada pelo
orgânico e pelo inorgânico, no labirinto do contínuo animado
pela dobra (Deleuze, 1991, pp. 19, 17, 22).
Assim, a materialidade das telas e esculturas consiste
talvez no topos de maior intensidade da obra de Adriana. Em
1998, a série Línguas também expõe, nas telas pintadas a óleo,
um conjunto de azulejos decorativos, com uma enorme incisão,
cuja carnalidade escura e violenta estende-se até o chão, numa
A dança da dobra infinita 169

flagrante antítese com o aspecto serial das grades ordenadas.


As línguas que saem das telas simétricas dramatizam a trans-
formação da pintura em escultura, logo adiante radicalizada na
série Charques
Charques.. A imaginação material da carne-seca, em man-
tas, envolvidas umas sobre as outras vai reunir-se ao motivo das
ruínas para mais uma encenação da potência vital da matéria
que entremeia o orgânico ao inorgânico dos azulejos. Assim,
fragmentos e ruínas de parede cuja espessura aparente reproduz
o enovelado vermelho da carne transformam-se em espantosas
presenças. A contraposição entre a superfície lisa e pintada de
azulejos com as entranhas da carne simulada promove um tea-
tro absurdo, numa espécie de expressionismo fantasmagórico.
Sobretudo a Ruína de charque Santa Cruz,
Cruz, por suas pare-
des em esquina, pintadas como azulejos brancos, recupera, na
crispação do contraste impassível, certa latência, certa energéti-
ca, que inquietam o espectador. O mundo nos acena com sua
insólita carnalidade como se o sofrimento e a dilaceração nos
estivessem espreitando em todos os cantos. Aqui, a potência
do falso, das vísceras despontando sob os azulejos quebrados,
em “óleo sobre madeira e poliuretano”, cumpre o destino do
simulacro, ao replicar, dionisíaco, o mundo como artifício e te-
atro excessivo, no qual tudo se expõe e existe numa intensidade
multiplicada.
Nessa progressão, a série Charques e, particularmente,
a Ruína referida, dão conta da lógica da alegoria, na medida
em que desdobram o funcionamento das divisas ou emble-
mas transformando muros e fragmentos em vísceras e estas em
170

charques, ou melhor, em “ruínas de charques”, ou seja, em algo


bifronte, ao mesmo tempo orgânico e carnal, inorgânico e mine-
ral. Dessa maneira, a ampliação do fragmento ou do objeto para
expressar uma rede de correspondências naturais termina por
transferi-lo da natureza para a história, transformando-o em res-
to físico, arruinado, transbordante e exposto na ordem do tempo.
As séries de autorretratos de Varejão, mesmo ao parece-
rem tão distantes dos Charques
Charques,, marcam-se pela mesma afinida-
de alegórica entre natureza e história. O rosto da artista, numa
espécie de ímpeto vertiginoso de autoexposição, multiplica-se
numa instável mascarada em que cada figurino ganha novo per-
fil: chinesa, mestiça, índia, moura. A proliferação – segundo
Severo Sarduy, um dos procedimentos barrocos por excelência
– passa então a multiplicar diferentes aparências étnico-cultu-
rais da face de Varejão, num carnaval de personas em que a au-
toficção como estratégia performática aponta para a posição do
autor como mistificador.
Deleuze, ao caracterizar as divisas e emblemas inerentes
à alegoria, enumera seus três elementos; as imagens ou figura-
ções, as inscrições ou sentenças, os nomes próprios ou assinatu-
ras (Deleuze, 1991, p. 191). Assim, por exemplo, na exposição
Histórias às margens, o espectador vê a dinâmica difusa das per-
sonas, lê sucessivamente suas legendas, como Chinesa (1992),
Comida (1992), Testemunhas oculares X, Y e Z (1997), Figura de
convite (2005) e Mestiça (2012), e, ao mesmo tempo, assiste à
performance da assinatura Adriana Varejão a desdobrar-se num
“pacto consigo mesmo como outro” (Derrida, 1985, p. 45).
A dança da dobra infinita 171

Nesse sentido, a autoficção, tal como concebida por


Doubrovsky (1977), em sua condição pós-freudiana, ao as-
similar a experiência da psicanálise, não mais admite o so-
lipsismo autossuficiente da postura originária de Rousseau,
que, nas Confissões
Confissões,, apostava na solidez do seu autoconheci-
mento, nem, ao contrário, se condena pela impossibilidade de
presentificar o sentido de um passado que se findou. Numa
outra postura, destacada deste dilema do gênero autobiográfi-
co (Lima, 1986, p. 307), a autoficção assume a subjetividade
como um trabalho produtivo, na medida em que se nutre da
intuição barroca de que “a presença é alucinatória” (Deleuze,
1991, p. 190), ou seja, também construída pelo contraponto
ilusionista com o outro.
A atualidade da performance radica-se justamente nes-
ta compreensão da subjetividade como produção intersub-
jetiva, em que indivíduos se inventam encenando-se para os
outros e para si mesmos como outros. Nesse sentido, os es-
tudos performáticos podem estender-se sobre as mais diversas
áreas de investigação e convergir com as teorias antropológicas,
sociológicas, biológicas e estéticas do comportamento do ho-
mem em sociedade, abrangendo os jogos, a criação estética, os
esportes, a conexão entre os homens e os animais, os rituais
religiosos e a atividade política.
Em termos especificamente estéticos, desde a modernida-
de, a performance, como uma espécie de dramatização, pretende
promover a integração entre arte e vida; ao resgatar a caracterís-
tica ritual da arte, na contramão de todos os realismos, e igual-
172

mente ritualizar a vida. As artes plásticas, desde as vanguardas do


século XX, agudizaram tal movimento terminando por enlaçar-
se com o teatro, numa espécie de “entropização” radical, rumo ao
happening.. Assim, a obra de Adriana, por sua vez, em sua expan-
happening
sividade de ascendência barroca, desdobra-se tanto na direção
da arquitetura quanto no encalço da dramatização de narrativas
sobre a cultura brasileira que, basicamente centradas na antropo-
fagia, enlaçam-se, como já observou Adriano Pedrosa, aos temas
da miscigenação cultural e da desocidentalização.
A miscigenação étnico-cultural encontra-se obviamente
relacionada com a vocação hibridizante da devoração antropo-
fágica, em sua deriva libertária e heterodoxa. Por outro lado, a
desocidentalização aponta para a crítica da modernidade oci-
dental, em sua vinculação ao colonialismo, e à perspectiva utó-
pica da mestiçagem como caminho para criação de uma nova
consciência, conforme acena Walter Mignolo, ao final do seu
The idea of Latin America.
America. Entretanto, acreditamos ser mais
proveitoso como caminho para a abordagem dessas implicações
teórico-culturais relacionarmos a sensibilidade antropofágica
de Varejão, à maneira como estrutura, especificamente na sua
primeira retrospectiva, a constante dos autorretratos, segundo
uma economia crítica da autoficção, como dobra no horizonte
da miscigenação cultural brasileira.
Muitos escritores contemporâneos, como Marcelo Miri-
sola, João Gilberto Noll e Ricardo Lísias, entre outros, situam
suas vozes narrativas neste limbo indefinível em que autor/nar-
rador/personagem, envolvidos num infindável trabalho de au-
A dança da dobra infinita 173

tomodelação, textualizam a vida em obra. Desse modo, há uma


operação autoparódica em que a atual inundação narcisista dos
espaços públicos midiáticos resulta deslocada em favor de uma
estratégia profanadora, na qual as fronteiras entre realidade e
ficção, identidade e alteridade se tornam indiscerníveis.
Assim, em Charque (2011), que tem como subtítulo
“Uma autobiografia, vá lá”, Mirisola, o autor-narrador e perso-
nagem de si mesmo, logo de início anuncia que prefere usar a
mentira (Mirisola, 2011, p. 11) e, mais uma vez, na encenação
huis clos do próprio fracasso, multiplica-se em personas retoma-
das e diferidas em torno do núcleo de um “menino morto”, ou
ainda corrompido, a revirar em desespero o non sense do coti-
diano, devorado numa linguagem informe e estéril, prisioneira
da própria circularidade.
O último livro de Ricardo Lísias também não escapa aos
desmoronamentos. Trata-se de uma escrita “em carne viva” que
também tenta alimentar-se da própria derrota afetiva para fe-
char feridas e escapar ao próprio cerco. Nele, o corpo também
é palavra de ordem. Se, no caso de Mirisola, os enxertos do
seu charque, entre fragmentos díspares, fluxos e interrupções
alimentam o circuito, com Lísias, a falta de ar é índice de res-
sentimento, e a torção entre arte e vida chega ao paroxismo.
Os códigos de Adriana têm uma amplitude maior. Ao
dramatizarem as narrativas da mestiçagem e da antropofagia,
numa transfusão entre o seu corpo, a sua face, e os devires da
história, aludem a um horizonte em que, como no título do
livro de Liv Sovik, “ninguém é branco”.
174

Especialmente a obra Testemunhas oculares (1997) – na


qual Varejão se retrata como chinesa, moura e índia – configura
um momento em que a importância da perspectiva antropo-
fágica, já repisada em diversas outras peças, torna-se decisiva.
Aqui, mais uma vez, a artista vai buscar apoiar-se nas imagens
de Theodore de Bry, em América-terceira parte,
parte, ilustração para o
relato das viagens de Hans Staden.
A obra, muito elaborada e artificiosa, dispõe-se da seguinte
maneira, de acordo com informações de Adriano Pedrosa, no catá-
logo da exposição: os olhos, retirados de cada retrato, serão dispos-
tos em pequenas mesas, arrumadas em frente às telas, e registram,
em fotografias de Vicente de Mello, as cenas originais de Theodore
de Bry, em que Varejão atua junto com outros figurantes.
A confecção em cerâmica de cada um dos globos oculares,
pintados por Renan Chehuan, está encravada em porta-retratos,
produzidos pelo joalheiro Ricardo Filgueiras. O acabamento pre-
cioso das peças, diante das três telas desfalcadas de um dos olhos,
dá ao conjunto um aspecto meio insólito e um tanto perverso.
Ainda segundo o curador da exposição, a obra baseia-se num re-
lato de artigo de 1915, da Enciclopédia Britannica, sobre a per-
manência na retina da vítima da imagem do assassino.
A retomada das cenas de Theodore de Bry, já apropria-
das em Proposta para uma catequese (1993) e Figura de convite
(1997), é, sem dúvida, significativa da prioridade atribuída ao
pensamento antropófago no conjunto das narrativas ativadas
pela obra de Adriana. A antropofagia, na configuração do seu
trabalho artístico, não se reduz apenas à condição temática,
A dança da dobra infinita 175

mas se revela, na verdade, como pressuposto e ponto de vista


privilegiado.
A dinâmica da citação como procedimento fundador
do processo criativo de Varejão tem a ver com a sua estru-
tura de simulacro e a potência positiva que a caracteriza. Essa
potência do falso (p. 268) “nega tanto o original como a cópia,
tanto o modelo como a reprodução” (p. 267) e, como máquina
dionisíaca, faz a semelhança subsistir apenas como “efeito exte-
rior”, para “produzir um efeito” (p. 268).
O empenho do efeitismo fantasmático convoca, na obra
de Varejão, os mais variados materiais, as mais diversificadas
práticas artísticas e intelectuais, ou nas palavras da própria cria-
dora, “um tecido de histórias”, que, ao começarem pelo corpo,
vão-se estendendo numa incrível amplitude: a arquitetura, o
Brasil, a tatuagem, a cerâmica, os azulejos, os mapas, os livros,
a pintura, a arte religiosa, a China, os viajantes europeus, a arte
acadêmica, o modernismo, e mais outras dobras. Nesse sentido,
a dissimilitude constituinte das encenações, diante do conjunto
de alusões e incorporações que opera, é resultante da perspec-
tiva antropofágica adotada que, numa direção utópica, retra-
balha nossa tradição de violência colonial e de discriminação
étnica e cultural. A natureza dessa insistência em capturar o
inenarrável do passado conduz o trabalho de Adriana a desem-
bocar na paródia como prática de abordagem ou modo de pro-
dução. Nessa busca de um contato impossível com seu objeto,
Agamben observa que a paródia prefere mantê-lo a distância,
como se dissesse “assim é demais” e, por isso, passa a situar-se
176

num limiar, entre realidade e ficção, entre a palavra e a coisa


(Agamben, 2007, p. 46).
Justamente esta fronteira entre arte e vida, história e
invenção, estética e ética configura “um processo de disfarce
em que, atrás de cada máscara, aparece outra ainda” (Deleuze,
1974, p. 269), num movimento de eterno retorno em que as
imagens se dobram em outras mais, numa dança infinita. Esse
é o efeito descrito por Adriano Pedrosa sobre a montagem da
exposição Histórias às margens,
margens, no Museu de Arte Moderna de
São Paulo, em que o círculo vermelho de Mestiça
Mestiça,, sua última
obra, era o ponto de fuga do olhar do espectador, ao final de
uma sucessão de autorretratos miscigenados da artista. Mestiça
que também se apropria de componentes indígenas, incorpora-
dos pela pintura no rosto da retratada, apresenta pedaços de ro-
mãs que, segundo o curador, “são cheias de simbologias associa-
das ao amor, à fecundidade e à sorte” (Pedrosa, 2013, p. 226).
Certamente por isso, podemos vincular esta derradeira
imagem às palavras de Oswald de Andrade, sobre o Barroco,
num texto intitulado Descoberta da África:
África: “Resta uma palavra
sobre o Barroco. O estilo utópico. Nasceu com a América. Com
a descoberta. Com a utopia” (Andrade, 1970, p. 227). E talvez
possamos ainda mais: associar este autorretrato como Mestiça às
conjecturas de Gloria Anzaldúa citada por Walter Mignolo, ao
final do seu livro The idea of Latin America:
America:

Em umas poucas centúrias, o futuro vai pertencer à mestiça.


Porque o futuro depende da quebra dos paradigmas, depende da
A dança da dobra infinita 177

interseção entre duas ou mais culturas. Pela criação de um novo


mito –, ou seja, pela mudança na forma com que percebemos a
realidade, na maneira pela qual nos vemos, e nos comportamos
– a mestiça cria uma nova consciência (Mignolo, 2007, p. 162).

Ainda desta vez, para encerrar, cumprimos a lógica da


alegoria, segundo Deleuze: a figura, a inscrição e a assinatura.

Referências

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São Paulo: Boitempo, 2007.
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178

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margens.. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013.
margens
SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco.
branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009.
Entre os fantasmas do arquivo e
o corpo da escrita

Marília Rothier Cardoso1

As datas e assinaturas, que identificam quadros e sone-


tos, teoremas e coreografias, conceitos e sonatas, não passam de
etiquetas necessárias à economia e à legitimação das ciências,
das artes e da filosofia, que circulam nos respectivos veículos.
A rigor, os saberes, a utilidade e a beleza são invenções coletivas
e, como tal, acumulam e transformam a contribuição de tem-
pos e geografias diversos. A tarefa filosófica não prescinde de
intercessores; a ciência resulta de trabalho em equipe e a arte
é tanto mais viva quanto melhor rearticula forças do passado
conservadas em soluções estéticas felizes. O estatuto impessoal
e necessariamente intempestivo das escritas – sejam elas teóri-
cas, informativas ou estéticas, empreguem linguagem plástica,
sonora, verbal ou performática – tem atiçado a curiosidade de
1
Professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
180

pensadores e artistas. Os primeiros avaliam a trama heterogênea


dos itens fundamentais do legado recebido, enquanto experi-
mentam pôr em destaque a própria rede das noções que impor-
tam e transformam; os últimos exploram os jogos interdiscursi-
vos de sua enunciação, querem-se ficções teóricas tematizando
a cópia inovadora. Veja-se o valor emblemático do borgiano
“Pierre Menard, autor do Quixote
Quixote”” (1970). Assim, a prolifera-
ção desses exercícios metacríticos intercambia expedientes da
arte e do pensamento. Reconhece a presença inescapável dos
corpos na aventura intelectual e capta a intervenção de fantas-
mas na atividade de pesquisa.
No campo da literatura autoinvestigativa, uma amostra
recente da eficácia crítica alcançada por construções polifôni-
cas é o conjunto de contos de Silviano Santiago, com o título
que define sua proposta – Anônimos (2010)(2010).. Na sequência do
volume, as dez narrativas (“nove contos” “e uma homenagem”)
assemelham-se pela banalidade da trajetória dos protagonistas,
vários deles nunca nomeados, nem detentores de características
que os identifiquem na multidão. Para acercar-se do presen-
te urbano, precisa-se abandonar o protagonismo dos heróis e
deixar surgir, nos desdobramentos da trama cotidiana, modos
de dizer e de fazer que, mesmo convencionais, indiquem um
impulso tímido, mas persistente, de vida e conhecimento. No
entanto, a realização dessa arte difícil de ressaltar diferenças su-
tis nas atitudes estereotipadas só se alcança pelo resgate de um
acervo de expressões coloquiais e frases-feitas, recolhidas nas
ruas e combinadas, aqui e ali, com algum termo inesperado
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 181

ou verso de cantiga popular. Esta prática moderna do ‘estilo


humilde’ corresponde ao estabelecimento refinado da autoria
impessoal, aprendida tanto com a escrita de Mallarmé, em que
o único sujeito é a linguagem, quanto com a tradição oral, que
refabula, constantemente, as estórias da tribo.
Na estética discreta desse experimento de escrita anôni-
ma, a presença de itens de um arquivo do coloquial, reunido
pela sagacidade do ouvido sintonizado, não dá margem a maio-
res desdobramentos metalinguísticos. O conto-homenagem,
que fecha o volume – uma superposição de resultados (recentes
e já canônicos) de pesquisas etnográficas e literárias – cumpre
o papel de performar a conjuração dos fantasmas da herança
épica e, assim, construir, com a sequência elaborada de seus
parágrafos, uma teoria da narrativa e de sua lógica do sentido.
De um lado, uma série de estórias da cidade acompanha
a trajetória de aposentados, funcionários, empresários obscuros,
biscateiros, pessoas comuns que narram sua vida, sem mencio-
nar o próprio nome, pois este não tem peso social; de nada
adianta saber quem está falando. O dicionário e a gramática,
que serviram a esses enunciados, não homenageiam nenhum
estilo em particular; remetem ao padrão neutro do jornalismo,
ecoam a memória dos lugares comuns.
De outro lado, em contraponto, uma estória do sertão
exacerba a diferença morfossintática, garantindo a sobrevida de
falares, que o isolamento do interior manteve na forma arcaica e
que foram resgatados, em arquivo pessoal, expressamente, para
compor a singularidade de uma dicção poética. A matéria cole-
182

tiva dessa proposta afasta-se de uma atualidade padronizadora


e remonta à linhagem da epopeia oral, não para repeti-la, mas
para condensá-la aos experimentos da vanguarda. Assim se es-
tabeleceu, nos anos 1950, o traço literário de Guimarães Rosa.
Ao nomear, na epígrafe, tal assinatura inconfundível e dedicar
o texto a “um rosiano de marca”, a coletânea de 2010 reforça o
valor de seu anonimato indicando que, à maneira das cosmo-
logias selvagens, reconhece as diversas espécies de fantasmas e
só pode expor seus instrumentos artísticos invocando espectros
em sua variedade – os que revivem o passado e os que prome-
tem o futuro. A inclusão da “homenagem” nos exercícios narra-
tivos do agora desdobra a escrita em ato crítico. A pluralidade
de perspectivas – urbanas e sertanejas – e a heterogeneidade de
tempos (presenças espectrais) expõe o que a chancela autoral
tenta esconder: a agência múltipla da escrita artística.
Se Anônimos
Anônimos,, ficção especulativa de Silviano Santiago,
situa-se na linha do poeta-crítico francês para colocar a lin-
guagem – convenção social, bem público – no centro produtor
da escrita, seu gesto contrai dívida, também, com os invento-
res-teóricos alemães, Aby Warburg e Walter Benjamin, à sua
maneira, revolucionários da historiografia, que vislumbraram,
nas imagens plásticas e verbais, uma superposição de formas
de diversos momentos do passado, guardando a mesma vitali-
dade inaugural. Na homenagem a Guimarães Rosa, Silviano,
conjurador de fantasmas, está confirmando a arte como po-
tência comunitária, trabalho cumulativo de muitos, presentes
em corpo e espectro.
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 183

Quando incluiu Goethe entre seus mestres sertanejos,


Rosa poderia ter-se referido, ainda, a Nietzsche, que estabele-
ceu as (possíveis) verdades na tensão entre perspectivas diferen-
tes, ao citado Benjamin, defensor da história “constelar”, e a
Warburg, especialista em arte do Renascimento. Cabe convocar
este último, pois, insatisfeito com o esteticismo, foi na pesquisa
antropológica que encontrou o caminho mais adequado ao ras-
treamento de ritos arcaicos, em que persiste a vida das formas
responsáveis por instilar animação e movimento na estaticidade
da pintura e da escultura. Quando inseriu “Ceição Ceicim”,
personagem e estória, em seu livro, para oferecer uma fabulação
teorizante, Silviano fazia-se etnógrafo e percorria, com todos os
sentidos atilados, a obra e o arquivo de Rosa, o companheiro de
viagem dos condutores de boiadas.
Os narradores “anônimos”, trazidos pelo escritor de ago-
ra, registram, ao longo da cadeia de episódios, resíduos de cons-
truções artísticas anteriores. Assim também Benjamin construía
sua história do século XIX com fragmentos recolhidos de lei-
turas na Biblioteca Nacional e de passeios curiosos pelas ga-
lerias ainda presentes na arquitetura de Paris. Com propósito
equivalente, Warburg usou suas anotações e fotos de danças
dos índios Hopi, que evocavam, ao vivo, ritos dionisíacos, para
desenvolver o projeto do Atlas Mnemosyne. Pelas vias do ensaio
crítico e da ficção, a recorrência de formas artísticas, desencade-
adoras de percepções e paixões, invade os fóruns de debate e vai
agregando mudanças e acréscimos. Empenhado em formar um
acervo bibliográfico e imagético para a análise dos emblemas
184

da antiguidade, recorrentes na arte do renascimento, e, assim,


cunhar o conceito de “sobrevivência”, o esforço teórico de War-
burg retorna, hoje, à circulação por meio dos comentários de
Agamben e das pesquisas de J.-A. Michaud e, principalmente,
de G. Didi-Huberman. Em movimento semelhante, a elabora-
ção metanarrativa de uma mitologia híbrida do sertão, empre-
endida por Guimarães Rosa, volta à cena contemporânea pela
fabulação de Silviano Santigo.
O conto “Ceição Ceicim”, composto pela intercessão
da escrita rosiana, redobra a precisão com que produz sensa-
ções, pois elege esse efeito artístico como meio de engendrar
o pensamento. Seu método é a bricolagem, característica do
fazer mítico. Seleciona e articula provérbios e expressões inte-
rioranas, desenvolvendo o enredo narrativo na fronteira entre
o senso comum e a fantasia; distancia-se da ordem cronológi-
ca e do raciocínio dialético. O emprego do gênero mítico, em
que o raciocínio serve-se da magia, vem satisfazer a exigência
dos demais intercessores, escolhidos entre os filósofos rebeldes:
Derrida, com o conceito de “indecidibilidade”, Nietzsche, com
o “eterno retorno”, e mais o estatuto paradoxal do sentido, fun-
dador da “lógica” de Gilles Deleuze. A própria inclusão, no li-
vro, desse texto-homenagem, tramado no confronto tenso do
arcaico com o moderno (e até mesmo do “jamais” submisso
à racionalidade iluminista), perfaz um gesto análogo tanto ao
da história warburgiana, construída para captar a potência in-
sistente de fórmulas passadas, quanto ao da antropologia dita
“simétrica”, que descreve as redes interligadas da sociedade
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 185

atual conforme o modelo da etnografia das tribos selvagens.


Vale lembrar que Warburg só desenvolveu plenamente o con-
ceito-chave de “sobrevivência” quando aproximou suas obser-
vações sobre os indígenas do Novo México dos resultados de
pesquisa da arte renascentista enquanto herdeira das “fórmulas
do pathos
pathos”” cunhadas nos tempos da Grécia antiga.
O elenco complexo das escritas artísticas e teóricas, pre-
sente na construção do conto de Santiago, registro erudito e
“anônimo” da “sabença” popular, é que desenha o perfil se-
dutoramente ambíguo de seu (anti)herói – e o faz apelando
à sensibilidade dos olhos e ouvidos de seus receptores. Opera
de muitos modos o jogo sonoro de alternar o agudo com o
grave e diferir a nasalidade comum pelo contraste semântico
entre afirmação e negação. “Ceição Ceicim” serve de “ritorne-
lo” a essa espécie de cantiga. Em paralelo, a grafia do segundo
nome, brincando com a identidade fonética do “s” e do “c”,
inscreve, na página do livro, o ponto indecidível (a différance
différance),
),
que dissolve, num aquém e além da diferenciação, o binaris-
mo afirmativo-negativo. Esse rigor sensível no tratamento do
corpo das palavras – traços significantes independentes do pla-
no semântico – concorre com a força das imagens verbais que,
criando efeitos plásticos, delineia cenários, diante do leitor, para
levá-lo a perceber, em conjunto, o intercâmbio momentâneos
entre as personagens e o contexto amplo da vida sertaneja.
Assim, a relação familiar inusitada destaca-se no pano de
fundo das ordens social e cosmológica, daí, no contraponto dos
agentes da estória com os espectros de seu passado – escondido
186

ou inacessível –, a narrativa dá a ler o fundamento dos saberes


que a engendraram. Mais do que a trajetória casual do menino
enjeitado, a escrita oferece um modo de construir o mundo e
pensá-lo, desviante do bom senso instituidor das histórias da
arte e da literatura.
Quando elege o “movimento” como noção básica para
a retomada atualizadora do legado de Aby Warburg, Philippe-
Allain Michaud põe em destaque o elo entre a antropologia e a
história da arte praticada pelo pesquisador. O estudo cuidado-
so da viagem do jovem Warburg às aldeias indígenas do Novo
México mostra uma identificação “secreta”, que “faz do pen-
samento indígena não apenas o modelo experimental de uma
formação histórica, mas também (...) o duplo do historiador
que o reconstitui” (Michaud, 2013, p. 191). Na “ambivalência”
da vida dos índios, coexistiam a “magia fantasiosa” e a “ativida-
de pragmática”, enquanto o historiador – inconformado com
as metodologias vigentes – também passava, a todo momento,
“da atividade pragmática para a interpretação simbólica”. Des-
considerando a hierarquia ocidental das ordens de pensamento,
Warburg descobre que não se trata de resolver a contradição
entre pragmatismo e simbolismo, mas, conforme a combinação
de trabalho e danças rituais, entre os Pueblo
Pueblo,, o pesquisador que
assume a ambivalência também abre novas possibilidades de
conhecer seus objetos.
Pelas fotografias e anotações, deixadas por ele, percebe-se
que o novo historiador da arte tomou como valiosas oportuni-
dades de anamnese do passado greco-romano, sua experiência
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 187

de percorrer os sítios arqueológicos dos anasazi e de assistir a


rituais como a dança dos antílopes e das Katchinas (cf. p. 204).
Usando a ficção como operador do pensamento por meio do
trânsito constante entre a análise avaliativa das coisas e das ações
e a prática produtora de imagens simbólicas, Guimarães Rosa
produziu sua arte apoiada no arquivo bibliográfico e de campo
que reuniu laboriosamente, anotando e recopiando citações de
livros e falas de sertanejos. Guardando a devida distância entre
esse acervo pessoal de um autodidata e a ambição de estabelecer
uma instituição de pesquisa para historiadores da arte, o traba-
lho de Rosa e o de Warburg guardam semelhança, com desta-
que para a comum heterogeneidade dos registros conservados
e utilizados. A homenagem prestada pelo conto de Silviano
Santiago vale como reconhecimento da justeza epistemológica
da máquina de escrita inventada pelo autor do Grande sertão:
veredas. Enquanto escritor e teórico perfeitamente sintonizado
com os avanços descentralizadores e anticonvencionais da crí-
tica, Silviano atesta a perspicácia daquele que conviveu com os
fantasmas de comunidades atreladas à ordem socioeconômica
arcaica e instrumentalizou a sobrevivência dos mesmos visando
à abertura de perspectivas alternativas para a crítica da cultura.
Alguns poucos exemplos do arquivo rosiano já dão conta
de como ele soube tensionar, com vistas a uma escrita lucida-
mente questionadora, o efeito impactante da lida dos corpos
no trabalho – trabalho que supõe sempre a concorrência do
físico e do intelectual – e da força dos espectros que, invisíveis,
acompanham essa lida, conduzindo-a ao sucesso ou ao fracas-
188

so, em desdobramentos aparentemente gratuitos. Provérbios,


cantigas, frases-feitas, modos de distinguir e nomear a natureza,
coletados entre os vaqueiros, cartografam o mundo e conduzem
a especulação por meio de narrativas. Observem-se as amostras,
escolhidas meio ao acaso, do conjunto nomeado “A boiada”,
que reúne as anotações das cadernetas de viagem: “O Senhor
sabe que pão ou pães é questão de opiniões?” (Rosa, 2011, p.
42), “Eu não tenho pai nem mãe / nem parente nem irmão /
sou filho de uma saudade / cruzada com uma paixão” (p. 69),
“Pai, ô minha mãe, ô / estou passado de amor! / Os olhos de D.
Varão / é de mulher, de homem não.” (p. 79), “O mundo entre
as estrelas e os grilos” (p. 87), “Meu repertóro, eu tenho ele no
cocóro... (Chico Barbosa)” (p. 97), “ ‘O Benedito’ – é o capeta.”
(p. 146), “Lá é Cristo, e cá é isto... (Manoelzão)” (p. 185). Sil-
viano retira, da memória de suas leituras, registros equivalentes
a esses para compor o breve exercício épico que condensa sua
própria teoria.
O enredo de “Ceição Ceicim” trata de um motivo de es-
cândalo para as sociedades modernas – as relações familiares
que descartam a filiação para fixar-se na aliança. Os episódios
e debates se desencadeiam porque um “bebezinho nu e soler-
te” (Santiago, 2010, p. 179) foi “largado na porta da fazenda
de Nhô Ignácio” (p. 178). Tomando-o para criar, o fazendeiro,
“solteirão”, não se achando na “condição de ser marido”, passou
a autodenominar-se “tutor”, termo desconhecido de vizinhos e
empregados que indagavam: “Tu-torto? Tu-torvo? Tu-torpe?”.
Recorrendo ao latim, ele traduzia o significado: “guarda, de-
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 189

fensor e protetor” (p. 180). As estruturas do parentesco, nas


sociedades selvagens, estão no horizonte de referências de Gui-
marães Rosa, sempre pronto a recorrer à alteridade para deslo-
car noções institucionalizadas. Por seu lado, Silviano Santiago,
professor universitário à época de prestígio de Lévi-Strauss e,
na última década, das investigações de Viveiros de Castro – um
deleuziano adepto da “antropologia simétrica” – não foi por
mera coincidência que desconstruiu a família padrão, quando
tematizou um caso de “aliança” (possivelmente “demoníaca”).
A tomada de empréstimo do motivo do “escuro nasci-
mento”, presente em Grande sertão,
sertão, marca a perspectiva alter-
nativa àquela do triângulo familiar, responsável pela domesti-
cação da própria leitura psicanalítica. No entanto, descarta-se
a mera inversão de posições; se, para alguns, Nhô Ignácio é
tido como “Mulo”, para outros, compara-se ao “galo galhardo
que gostava de ciscar e de melodiar notas de piano no terreiro
das moças prendadas” (p. 180). A dubiedade dos elos entre as
personagens, bem como a atração curiosa pelo corpo do outro,
o parceiro proibido, contribuem para desmanchar as garantias
do sujeito que se supõe humano e superior, idêntico a si mes-
mo e consciente de suas atitudes. Na borda do suposto padrão
normal, homens e meninos, animais e entidades divinas – ora
sim, ora não – encarnam espectros lembrados na mitologia e
nos rituais.
“Órfão de ninguém com sertaneja qualquer” (p. 178), o
menino, em sua função narrativa, recebe nomeação perspecti-
vista – é Ceição, para “aqueles que não gostavam dele, embir-
190

rados com a sua teimosia de pirralho adulto e opinativo”, e é


Ceicim, como “o chamavam aqueles que gostavam dele, de pro-
cedente carinho”, “admiravam no menino a franqueza testuda
no não e no sim
sim”” (p. 177). Mas os apelidos contrários tornam-se
duplamente ambíguos porque o menino é também Guinacim
(p. 186), ecoando a alcunha do tutor e, embora o tenham con-
siderado “dádiva de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo” (p. 182),
aprende, com astúcia, a “aritmética do Beiçudo” (p. 186), porque
grava, nos olhos, a contagem dos bois, como gravará também as
letras do alfabeto. Futuro rapaz, que será mandado para a escola,
o pequeno tem, como “único companheiro de folgança” (p. 186),
o cão Monstrenguinho. Mesmo porque, de origem desconhecida,
“veio à luz no abençoado e fértil primeiro dia da criação”, como
“nasceram homens, animais e árvores” (p. 181). Bem alimentado
pelo leite e pelas rezas feiticeiras de Nega Alva, cresce e vai para
a escola na cidade, onde é perfilhado com o nome de Ignácio de
Loyola Porroque da Silva Melado (cf. p. 191). Mas este desfecho
legal não finaliza a estória. A cada aniversário de Nhô Ignácio,
“o passado voltaria de chofre” com o “bebê em folha” (p. 191),
chorando esfomeado. Semeada de provérbios populares, arranjos
morfossintáticos rosianos, marcas discretas da etnografia amerín-
dia e do desvio filosófico neonietzschiano, a narrativa retorna em
espiral, adotada pelo autor que a assina, mas sempre “anônima”
com seu corpo verbal que abriga a multidão dos falantes e da voz
enigmática dos espectros.
De autoria múltipla, porque garante a sobrevivência das
formas de alta potência, a arte narrativa, como foi performa-
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 191

da, em suas características fundamentais, pela escrita do conto


“Ceição Ceicim”, só encontra espaço adequado numa “histó-
ria constelar” que superpõe referências cronológicas, conden-
sa traços culturais e abre, no horizonte paradoxal do sentido,
perspectivas plurais de leitura. Para insinuar possibilidades de
contraponto esclarecedor, propõe-se, antes de fechar esta se-
quência de comentários, um instante de atenção sobre dois ou-
tros experimentos cuja assinatura encaminha a montagem de
valores estéticos resgatados ao anonimato: uma das invenções
artísticas de Haroldo de Campos, compostas à semelhança das
“galáxias” celestes – aquela em que o poeta gravou, em letra, a
voz do cantador – e uma das fotomontagens de Jorge de Lima,
resultado de sua convivência com uma coleção aleatória de re-
produções de pintura acadêmica, desenhos técnico-científicos e
retratos de revistas. Enquanto articulação de resíduos de proce-
dência diversa, exibem, cada uma em seu suporte, os gestos que
os constituem como escrita. Em sua intempestividade, assaltam
os arquivos subvertendo sua ordem e inviabilizando as leituras
lineares convencionais.
O atlas a que Warburg dedicou os últimos anos de sua
pesquisa constituiu-se de reproduções de pinturas, desenhos e
outras obras plásticas, que captam o instante do gesto e, assim,
inserem na imagem a dimensão de tempo. Por procedimento
homólogo, a figura estática da página do livro das Galáxias
Galáxias,,
encadeando palavras sem pontuação – algumas até sem espa-
çamento –, sem maiúsculas, com nexos sintáticos eventuais,
numa cadeia sem princípio e como que subitamente interrom-
192

pida, cria o efeito de movimentação vertiginosa. Acresce que os


versos transcritos, apropriados do cancioneiro popular, temati-
zam um artefato giratório – o “circuladô de fulô” – que propicia
dança veloz e alegre, divertimento coletivo para dias de fartura
ou de miséria.

circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te


[guie porque eu não
posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e
[ainda quem falta me
dá soando como um shamisen e feito apenas com um
[arame tenso um
cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino
[do sol a pino mas para
outros não existia aquela música não podia porque
[não podia popular (Campos, 1984, s/p).

Simulando o ritmo do canto e da dança, a série verbal esten-


de-se pela repetição de sons em sequência de duas ou três variantes,
com efeitos de aliteração ou rima. É o jogo associativo que conduz
o moto continuum desse fragmento estendido de frase, equilibrada
entre discurso e melodia. A exemplo do “circuladô” – “feito apenas
com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festa-
feira no pino do sol a pino” (s/p) – o artesanato poético se agencia
pela duplicação do corpo verbal em imagens sugeridas – fantasmas
– que, como define Agamben, resultam de “uma afecção, um pa-
thos do pensamento” (Agamben, 2012, p. 24).
Entre os fantasmas do arquivo e o corpo da escrita 193

Por seu turno, a cena fantástica, que Jorge de Lima pro-


duziu com recortes quase aleatórios de figuras, resulta num cor-
po claro-escuro, onde ganha destaque o mulher/manequim sem
rosto – ou cuja fisionomia se esconde, anônima, atrás de másca-
ra ou espelho invertidos. Num contraste de proporções, a for-
ma feminina é sustentada por enorme mão, nem natural, nem
mecânica, a que se superpõe uma espera hachurada (possível
resto de mecanismo obsoleto). Esse conjunto insólito como que
se agiganta em contraste com a luminosidade do fundo e com
o solo formado de “linhas em fuga para o infinito, lembrando
De Chirico”, em que se situa uma “figura minúscula” (Paulino,
p. 47) com sua sombra projetada. O impacto da foto propõe-
se pôr “a pintura em pânico” para salvá-la do esteticismo. Nos
dois exemplos – o burburinho harmônico da “festafeira” e o
misto de arte, figurino e experimento técnico-científico –, a
apresentação desconcertante e gloriosa de corpos fragmentados
vale como retorno diferido ao ritual dionisíaco, onde as fórmu-
las estereotipadas se desintegram para ganhar nova vida.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Ninfas


Ninfas.. Trad. Renato Ambrósio. São Paulo:
Hedra, 2012.
BORGES, Jorge Luís. Ficções
Ficções.. Trad. Carlos Nejar. Porto Alegre: Glo-
bo, 1970.
CAMPOS, Haroldo de. Galáxias. São Paulo: Ex Libris, 1984.
194

MICHAUD, Philippe-Allain. Aby Warburg e a imagem em movimen-


to. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2013.
PAULINO, Ana Maria (org.). O poeta insólito: fotomontagens de Jorge
de Lima. São Paulo: IEB-USP, 1987.
ROSA, João Guimarães. A boiada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2011.
SANTIAGO, Silviano. Anônimos
Anônimos.. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.
Corpos em carta

Rodrigo Jorge1

Na famosa história de Hans Christian Andersen (2013)


sobre o imperador e a roupa que só os inteligentes poderiam
ver, uma criança exclama diante do desfile do monarca: “Mas
ele não tem nenhuma roupa!”.2 Apesar da manifestação cole-
tiva dos súditos, que passaram a reproduzir a constatação da
criança, o imperador mantém-se altivo e sem titubear, embora
percebesse, constrangido, que todos tinham razão. Em língua
portuguesa, a revelação infantil é comumente traduzida como
“o rei está nu”, assim como em algumas edições francesas.
No original dinamarquês, a farsa é desvelada, ou seja, o véu é
1
Mestre em Letras (Literatura Brasileira e Teorias da Literatura) pela Universidade
Federal Fluminense (UFF) e doutorando em Estudos de Literatura (Literatura Com-
parada) por esta mesma instituição. Desenvolve, pela Fundação Casa de Rui Barbosa,
o projeto de edição da correspondência recíproca de Mário de Andrade e Pedro Nava.
É também professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ).
2
Traduzido pelo autor do capítulo, no original: “Men han har jo ikke noget tøj på!”.
196

arrancado pelas mãos firmes e tenras da criança, na própria


enunciação do discurso. A roupa, ao final da frase, distante tan-
to na suposta exibição no corpo do imperador quanto na sua
efetiva inexistência, é retirada pelo advérbio de negação e pelo
pronome indefinido que, como as pequeninas mãos do acusa-
dor, puxam para perto de todos a verdade. Na frase original, e
em algumas traduções para outros idiomas, o leitor depara-se
com o movimento do olhar e da razão que, feito mãos, reposi-
cionam rotas desviadas, tortas, do pensamento. E é na posição
dos referentes que a roupa é vestida, para então ser retirada,
deixando evidente não apenas a nudez do soberano, secundária,
mas o embuste armado, a ilusão forjada, o uso, nos dois casos,
do artifício.
Falando em artifício e nudez, impossível não lembrar os
dois célebres quadros de Francisco de Goya: La maja vestida
e La maja desnuda.
desnuda. No Museo del Prado, em Madri, as duas
obras estão dispostas nesta ordem, o que contribui, seguindo
nosso padrão de leitura ocidental, para que a mulher, la maja,
maja,
seja despida diante dos nossos olhos. Historicamente, a pri-
meira a surgir foi a nua (cerca de 1800); depois veio a versão
trajada (cerca de 1806). A nudez exposta no primeiro quadro
deixa-se vislumbrar nas curvas e na brancura quase transparente
do vestido no segundo. O mesmo olhar lânguido, os braços
para trás com as mãos apoiando a cabeça, os lábios esboçando
um sorriso sutil, como se pretendesse ser a nova Monalisa, as
pernas juntas e o corpo recostado, inclinado de frente para seu
contemplador. No segundo quadro pintado, na versão vestida,
Corpos em carta 197

a mulher é desnudada: o bolero de veludo aberto em seu busto


é retirado por um braço e depois por outro, a cinta de cetim se
solta e o vestido com seus longos véus some, fazendo emanar
a sensualidade dos quadris, do ventre, das coxas e dos seios,
rijos e com o frescor incandescente acentuado pelos olhos da
mulher. Não é um quadro sobre o nu, tampouco sobre o vestir,
mas sobre o desnudar
desnudar,, tornar nu, fazer, a partir de si, o outro
que há no outro, que é, ainda, o mesmo, e, por consequência,
o outro que há em si.
Na correspondência entre Mário de Andrade e Pedro
Nava, compreendida entre 1925 e 1944 (com um largo inter-
valo entre 1928 e 1943), o corpo surge como topos e como
estratégia discursiva, recurso ensejado pela escrita epistolar que
ora recobre, ora põe a nu, desnuda, o missivista. Em carta de
7 de abril de 1927, Nava responde o que achou da leitura do
romance recém-publicado de Mário:

Subindo pelo arranha-céu afora: Amar, verbo intransitivo – este


é mesmo grande. Que nasce gostoso de humanidade brasilei-
ra Carlos pai mãe, tudo sofrendo e fazendo a bruta tragédia
cotidiana. Gostei a gosto todo, do seu livro. Dele inteirinho
de cabo a rabo. Não destacando frase, nem página. Gostei.
Porque ele tá todo imbibido de humanidade, de uma huma-
nidade tão dolorosa que a gente sofre e se dói com você e seus
companheiros de dentro do livro. Nossa Senhora, olha aquela
dificuldade do Carlos pra pentear o cabelo fora do espelho;
é mesmo. A risca sai torta. A pastinha se esculhamba... Que
198

é isto, Mário de Andrade, você tá me despindo? Pronto. Fi-


quei nuzinho com seus personagens. Que frio, puxa! É isto,
Mário. Não explico nada de seu livro. Vi sua carta pro Carlos
Drummond. Machado de Assis. Freud. Isto fica pro Martins
de Almeida escabichar. Eu senti só o friozinho. Nu. Senti com
a pele com os nervos sem inteligência. Senti seu livro como a
gente sente frio. Nuinho da Silva.3

O então jovem poeta e médico mineiro lê o romance com


a pele, tecido que nos faz e estamos por fazer, sem adotar a via da
inteligência (perspectiva crítica) como porta de entrada, mas não
prescindindo dela. Nava demonstra aqui ter aprendido as lições de
Mário de Andrade dadas em A escrava que não é Isaura,
Isaura, de 1925,
assunto, aliás, que marca o início das cartas enviadas pelo escritor
e intelectual paulista. Na primeira parte do ensaio, Mário explica:

o homem pelos sentidos recebe a sensação. Conforme o grau de


receptividade e de sensibilidade produtiva sente sem que nisso
entre a mínima parcela de inteligência a NECESSIDADE DE
EXPRESSAR a sensação recebida por meio do gesto [...]. A esta
necessidade de expressão – inconsciente, verdadeiro ato reflexo
– junta-se a NECESSIDADE DE COMUNICAÇÃO, de ser
para ser tendente a recriar no expectador uma comoção análoga
a do que a sentiu primeiro (Andrade, 2010, p. 11).
3
Manuscrito original (datiloscrito) mantido no Arquivo Mário de Andrade, do Ins-
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Unidade de
Armazenamento: Correspondência Passiva – Caixa 56 (Sala 1). Código de referência:
MA-C-CPL5420.
Corpos em carta 199

O conceito de lirismo de Mário de Andrade afirma a re-


ceptividade das sensações como antecedente essencial ao ato
criador, que se consuma quando o artista consegue transferir
o sentimento inicial para o fruidor da obra de arte. Na pro-
sa expressionista de Amar, verbo intransitivo,
intransitivo, Pedro Nava se vê
transido de frio, como relata na carta, e relaciona os elementos
que estremeceram os ossos e eriçaram os pelos. O romance so-
bre a aprendizagem do jovem Carlos pela governanta Elsa, a
Fräulein para os membros da casa, não é sobre o amor em sua
plena realização, mas em sua intensa transgressão. Sentimento
transgressor por natureza, visto que nos embota a consciência
da passagem do tempo e, portanto, da nossa finitude, o amor,
no livro de Mário, assume caráter ainda mais fundo e violento,
pois rompe com todas as normas vigentes na sociedade burgue-
sa patriarcal, em suas dimensões gramaticais, morais e criativas.
Os padrões são todos postos em xeque e, diante do impasse,
se veem lançados nos ventos impetuosos da inovação, o sopro
forte do modernismo brasileiro.
Ainda nesta carta sobre o romance de Mário, Nava, um in-
quieto inovador sempre, flutua nos diversos aspectos da sufixação
da palavra “nu”. Os dois casos são de sufixos avaliativos (avaliativo
e z-avaliativo), pois, segundo a morfologia, emitem juízos de valor
pelo falante ao conteúdo semântico da forma de base. Em “Fiquei
nuzinho com seus personagens”, a utilização de um sufixo z-ava-
liativo indica que a forma de base é uma palavra, ou seja, há uma
autonomia morfológica que reflete, de algum modo, o movimento
de distância e aproximação observado na identificação enunciada
200

com aqueles personagens. Apesar do desnudamento experimenta-


do, a relação se dá com personagens, constructos ficcionais, que
pouco a pouco se fundem com seu leitor. Então, ele passa a estar
não apenas “nu”, sem o modificador, mas “Nuinho da Silva”, lan-
çando mão do sufixo avaliativo, apresentando, assim, como forma
de base um radical, parte da estrutura de uma palavra que contém
seu significado fundamental. Isolada entre dois pontos finais e com
um sobrenome típico brasileiro, a expressão toma aspectos de nome
próprio, “Nuinho da Silva”, constituindo um corpo independente
dos elementos que o formaram.
A escrita epistolar, em sua particularidade, contribui para
a formação desse corpo. A carta, em si, torna-se o corpo que
também sente, abraça, vê e conversa, mas orientada pelas ins-
tâncias fundadas pelo discurso, na definição de Nora Bouvet
acerca desta especificidade:

Entre a vida e a escrita, a correspondência é uma forma de co-


municação mista que não é direta nem indireta, não é presença
nem ausência, senão híbrida ou bastarda quanto às relações
pessoais diretas. Fatalmente, ao dizer “eu” por escrito, este se
desvanece em um eu de papel, em um corpo escrito. Ao dizer
“já”, este momento deixa de pertencer ao presente; “aqui” e
“agora” será outro tempo e outro espaço quando o destinatário
receber e ler a carta (Bouvet, 2006, p. 27, tradução nossa).

Na primeira carta enviada a Nava, de 9 de março de


1925, Mário se despede com a busca de um gesto equivalente
Corpos em carta 201

ao presencial: “Na esperança do abraço físico vai este de igual


muque”. Entretanto, como afirma Esperanza, na própria escrita
esse gesto, esse “muque”, se reconfigura em outro espaço e tem-
po que possibilita e exige outros movimentos para composição
desse gesto. A carta de 19 de março de 1926, também enviada
por Mário, por exemplo, possui em seu envelope um papel de
tamanho padrão, com o assunto principal da correspondência,
e outro menor, na verdade, um cartão com dimensões de meio
papel praticamente, em que o escritor paulista acrescenta uma
informação a título de pós-escrito:

Abro a carta pra contar que acabo de receber a foto do reisa-


do em Queluz. Estupenda. Quando tiver dessas coisas não
se esqueça de mim. Gozei mesmo. Isso de papel Automóvel
Clube não quer dizer nem que escrevi no clube nem é chique
da minha parte. Minhas folhas são muito grandonas e não
tenho papel pra cartas. Então trouxe umas 4 do clube pra
responder às cartas mais urgentes que tinha aqui (Andrade,
1982, pp. 67-68).

O espaço epistolográfico, nas cartas entre Mário de An-


drade e Pedro Nava, também apresenta referências ao corpo
como campo não apenas de interesse ao jovem médico, des-
de pequeno fascinado pelo seu funcionamento e constituição,
mas de possibilidades de criação e recriação artísticas. Em sua
primeira carta para Mário, de 15 de janeiro de 1925, Nava co-
menta sobre seu interesse em estilizações de fotografias, prática
202

que exercitou em outros momentos de sua maturação como


desenhista e pintor e que contribuiu para a formação do me-
morialista mais tarde, em sua fase artística mais esplendorosa.

Vou mandar pra você um trabalho que pretendo fazer em pre-


to e branco – não sei si você acha boa a ideia: quero estilizar
aquela fotografia que vem nos Sertões
Sertões,, das prisioneiras de Ca-
nudos. Me parece um ponto de partida luminoso, tão bom
que tenho medo de não fazer coisa que corresponda. Acho no-
tável o magote de mulheres naquela atitude de aniquilamento
de desânimo pungentíssimos. Têm duas figuras então, que vou
copiar na íntegra, sem alterar nada, de tão maravilhosamente
expressivas e cheias de verdade – uma, o menino feio cabeçudo
do primeiro plano à direita. Não é preciso acrescentar nada – a
própria reprodução fotográfica, má, deu sabiamente à cara do
guri uma expressão preciosa de burrice e uma simplicidade
esquemática ao corpinho marasmado: vale ouro. Outra es-
plêndida: no meio da foto, uma curiboca magríssima de olho
espantado meio virada de costas, com a mão direita na cabeça
e a outra fincada no chão. Nela seduz aquele ar mestiço tão
brasil, expressão aliás de todas as outras figuras. Quis também
procurar fazer desenho dos soldados no acampamento den-
tro de Canudos. Impossível. Todas as figuras, reles tudo muito
besta. Me mande sua opinião sobre esta ideia. Si você gosta,
mando o desenho pra você.4

4
Manuscrito original (datiloscrito) mantido no Arquivo Mário de Andrade, do Ins-
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Unidade de
Corpos em carta 203

Na segunda fotografia referida, constante, como as de-


mais, apenas nas primeiras edições de Os sertões,
sertões, com a legenda
“As prisioneiras de Canudos”, não é possível ver a mão fincada
no chão, como sugere Pedro Nava. Não por conta da nitidez e da
resolução da imagem, comprometidas pelas limitações técnicas
da época, mas porque a mulher, a “curiboca magríssima de olho
espantado”, está numa posição atrás de outras que possibilita a
visualização apenas de seu rosto e da mão na cabeça. Nava, na
própria carta, já inicia a estilização da fotografia, lançando mão
de seus conhecimentos de anatomia, exímio estudante de medi-
cina que foi, e do artista que, por meio da sensibilidade estética e
do impulso criativo, inicia seu trabalho antes mesmo do primeiro
movimento das mãos. Na mesma carta, aponta suas influências
do momento, como o ilustrador e desenhista do decadentismo
inglês, Aubrey Beardsley, que tornou seus desenhos “infectos
decadentes e com cinismo revoltante”, de “figuras fimatosas, es-
queletos furando a pele”. Beardsley, um dos grandes precurso-
res da Art Nouveau, foi fortemente influenciado pelos traços do
Ukyo-e, também chamado de estampa japonesa, de linhas del-
gadas e formas estreitas, que, combinadas com o jogo entre o
branco e o preto e a atmosfera londrina do fim do século XIX,
contribuíram para o surgimento de figuras decrépitas e malditas,
reflexo das tensões entre o artista e a sociedade burguesa.
Outros desenhos de Pedro Nava, como Dorcelina e Clau-
dionor,, bem como alguns nus e figurações de enfermos, apontam
dionor

Armazenamento: Correspondência Passiva – Caixa 56 (Sala 1). Código de referência:


MA-C-CPL5411.
204

para a evolução do traço e das cores do então desenhista mineiro


em seu exercício como médico. Em 9 de dezembro de 1926, Nava
comenta sobre um novo projeto de estilizações de fotografias, mas,
desta vez, enviando um exemplo para a apreciação de Mário:

A Jogadora de tênis pode ficar com você. Está em ótimas


mãos. Ela faz parte de uma série que eu estou fazendo de
todos os esportes. É bom que eu avise que é tudo estiliza-
ção de fotografias – a do tênis eu fiz baseado num retrato
da Lenglen que veio na Ilustração Francesa de uns 4 meses
atrás. Acho que não é desonestidade nenhuma. É modelo
como outro qualquer, tem muito mais de mim mesmo que
da fotografia. Delas eu só tiro a realidade o movimento e a
verdade. Aliás nas duas mulatas que eu mandei, se o desenho
é mais safado, eu acho que estou muito mais eu mesmo que
na Jogadora de tênis.
tênis. E estes 4 desenhos que foram, com mais
as ilustrações pro livro do Austen, representem todo o meu
trabalho em 1926. Meu Deus, quanto tempo perdido!5

O escritor paulista recebe com entusiasmo as incursões


do jovem promissor, mas com graves advertências sobre o cui-
dado que este deve ter com seu material de trabalho, elemento
fundamental no processo de criação artística:

5
Manuscrito original (autógrafo) mantido no Arquivo Mário de Andrade, do Ins-
tituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Unidade de
Armazenamento: Correspondência Passiva – Caixa 56 (Sala 1). Código de referência:
MA-C-CPL5417.
Corpos em carta 205

Continue a desenhar. Agora uma observação: praquê você não


procura um meio de desenhar colorido e com aparência lito-
gráfica, da mesma forma como está fazendo jámas não usando
lápis comum porém? Repare que o lápis de escrever dá pros seus
desenhos uma luz rúim, polindo por demais as superfícies e
enfraquecendo os desenhos tão volumados de você justamente
nos momentos em que você carece da cor negra carregada. Sei
que o carvão se espalha e você depois não pode passar cor por
cima porém experimentando quem sabe si daria bem? E tam-
bém usando papéis milhores, que desleixo puxa! Olhe Pedro
Nava não tem nada como a gente se respeitar a si mesmo. Isso
não é vaidade, é dever (Andrade, 1982, pp. 80-81).

Passados alguns anos, vivendo Mário no seu período crepus-


cular que vai da segunda metade dos anos 1930 até sua morte, em
1945, o corpo adoecido e dilacerado surge como motivação para a
publicação de Namoros com a medicina,
medicina, ensaio em que Mário re-
úne sua afinidade com a profissão médica e seus estudos em torno
da música e do folclore. Nas últimas cartas, temos o consultório
e o confessionário, espaços de cura dos males do corpo e do es-
pírito. Entretanto, Mário não vê perspectiva consoladora. Como
em “Meditação sobre o Tietê”, vê-se “alga escusa” e lágrima fraca,
dissoluta nas águas cruéis e implacáveis dos dias; assim, o poeta e
escritor paulista lança-se no aniquilamento que seu corpo anuncia:

Eu, quanto a saúde, vou te visitar si acaso na Semana Santa


você estiver no Rio. Chegou a hora da onça beber água, que
206

terminei os três meses de dieta (primeira) e devo fazer nova


radiografia. Me pegou um medo que desde dia 1 tenho que
ir no médico, ainda não fui e não sei si vou antes de Rio.
Estou muito cético a respeito do meu caso úlcera. Da dor
de cabeça sarei com o tratamento de sangue. Vinha disso,
é incontestável. Dois dias depois da 1ª injeção a cabeça ali-
viou. E agora quando dói é excesso de trabalho, cafiaspirina
cura em três tempos. Mas está provado que eu jamais farei a
dieta necessária pra abrandar as fúrias duma úlcera. Até ago-
ra consegui que ela não doa, não dói, vivo bem. Mas fumo
bastante, e si não bebo, de repente, não resisto a um prato
bom e mando a vida à merda. Preciso viver ainda cinco anos.
Si assim como vai eu chegar até lá, muito bem. Mas basta,
não quero viver mais. Já estou meio desiludido dos homens
e sinto que vivi demais. E ciao, com o abraço mais amigo do
Mário (ibid., p. 123).

Referências

ANDERSEN, Hans Christian. Kejserens nye Klæder [A nova roupa


do imperador]. Disponível em http://mennta.hi.is/vefir/danska/
rejselaere/materiale/HC%20Andersen/Kejserens.htm. Acesso em
10 set. 2013.
ANDRADE, Mário de. Correspondente contumaz:
contumaz: cartas a Pedro
Nava, 1925-1944.
1925-1944. Ed. Fernando da Rocha Peres. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1982.
Corpos em carta 207

------. A escrava que não é Isaura: discurso sobre algumas tendências da


poesia modernista.
modernista. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
------. Amar, verbo intransitivo:
intransitivo: idílio
idílio.. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2013.
BOUVET, Nora Esperanza. La escritura epistolar. epistolar. Buenos Aires:
Eudeba, 2006.
GOYA. Trad. Mônica Esmanhotto e Simone Esmanhotto. São Pau-
lo: Abril, 2011. (Coleção Grandes Mestres).
Arrancar a carne das coisas: canto-imagens
servidas à parede da memória

Leonardo Davino de Oliveira1

Depois de Hélio Oiticica promover o desrecalque das


cores da pintura, seja por meio dos relevos espaciais, seja pelo
parangolé, dois desafios se instalaram: primeiro, qual é o lugar
da pintura ainda hoje? Segundo, e talvez mais radical: o que é
ser pintor? Daí desdobram-se outras questões: como pintar um
corpo depois que o próprio corpo tornou-se mídia da pintura?
São a partir de possíveis encaminhamentos de respostas a essas
perguntas que penso aqui a obra pictórica de Adriana Varejão,
em especial naquilo que ela nos oferece em sua série de pratos.
Se a arte responde como arte às questões vindas de fora,
podemos começar afirmando que as figuras transplantadas e
apropriadas pelos pratos de Adriana Varejão querem ser uma
1
Doutor em Literatura Comparada pelo Programa de Pós-graduação em Letras da
UERJ.
210

fonte de saber acerca da cultura brasileira, dos significantes do


corpo e do arquétipo matriarcais que sustentam essa cultura.
Desse modo, o conhecimento contido nos pratos forja-se na
resposta à questão da brasilidade, da afirmação da imperfeição
do Brasil, este ente externo à obra, no entorno. Entendo por
imperfeição aquilo que “não basta”, que falta ou excede. A ética
da obra é a mesma ética do exterior: a mestiçagem e o amálga-
ma de uma constelação de momentos históricos referenciais.
É fincada nesta ética que a obra encontra sua verdade própria,
autônoma à verdade autorizada pelo exterior. Os pratos de
Adriana não retratam, representam ou refletem a ordem exte-
rior. Ao contrário, impõem caos e justamente por isso se apre-
sentam como parte possível da história, já que o particular da
obra diz o universal.
As figuras míticas das sereias, das mulheres aquáticas, são
retomadas na promoção de uma historiografia crítica da pre-
sença imanente do corpo da mulher, pintado por uma mulher.
Desse modo, um prato de Adriana Varejão é tanto o alguidar
cabralino no trabalho de catar a figura justa e exata, quanto o
alguidar de umbanda, polissincrético no culto da recriação de
extratos variados.
Por mais que Sereias bêbadas,
bêbadas, Mãe d’água e O nascimen-
to de Ondina nos apresentem personagens de matrizes míticas
brasileiras, Adriana Varejão não pintou a história da mulher de
corpo europeu, de corpo chinês, de corpo negro ou de corpo
índio. As obras figuram como a teatralização dessas mulheres
cujas carnes arrancadas de seus pontos historicamente localizá-
Arrancar a carne das coisas 211

veis são oferecidas à parede da memória do espectador torna-


do participante do banquete porque estranha a obra na obra.
Tornadas instantes estéticos na tridimensionalidade dos pratos,
essas mulheres têm suas histórias encenadas como? É isso o que
interessa aqui. De parede em parede, de olhos a olhos, a ence-
nação líquida do surgimento, da aparição de cada arquétipo,
migra de seu ser original (sempre duvidoso) aos avatares devo-
radores da história, sem, contudo, abandoná-la. Tudo isso para
recompor via montagem um autorretrato mestiço da artista.
Ao insistir na pintura para sua expressão artística, Adria-
na Varejão aponta que, para se entender a pintura e, consequen-
temente, o Brasil, é necessário empreender pontuais retornos
à fita de Moebius às formas tidas como ultrapassadas. É pre-
ciso restaurar ruínas, o que parece representar o grande gesto
de Adriana: esse método restaurador, essa disposição a remexer
na história para remontar a história. A ausência de molduras
e o transbordamento do pintado que se avança para fora do
prato – vazando para além da borda – apontam que a harmo-
nia não está na obra, mas fora, ou melhor, na desobjetivação
da paisagem arruinada do exterior. O que resta à restauradora
Adriana é, na impossibilidade de romper com a melancolia da
ruína, ressignificar alegoricamente a própria ruína, salvando-a
dos escombros.
No entanto, ao lidar com a efemeridade, Adriana sabe
que a figuração de O nascimento de Ondina implica a morte de
Ondina, por exemplo, já que o ato de fixar uma ideia indicia
a morte dessa ideia. Adriana pinta pratos, não pinta a história;
212

daí porque ela trai a historicidade da coisa pintada e faz jus-


tiça sem moral. É este retorno tautológico da história para a
história, da pintura para a pintura, o que salta como potência
dos pratos de Varejão: este saber que se aliena do exterior para
intensificar sua experiência particular, lírica.
Estou querendo dizer que, por meio do resgate do mito,
a aparente comunicação direta dos pratos de Adriana Varejão
guarda uma não comunicação com a empiria. Ao comunicar-
se pela figuração, o prato interdita o todo ao redor da obra,
suspendendo as certezas. A comunicabilidade vem da memória
afetiva, sentimental, de quem se coloca diante do prato-quadro.
E, assim como compreender o outro é ser o outro, Adriana en-
caminha sua pesquisa para a compreensão de si, da abertura ao
diálogo crítico com a sua especulação trágica, da artista como
mestiça. Este é o problema que se identifica na série de pratos
de Adriana Varejão: o da história como aparição que interfere
nas relações éticas.
Nessa perspectiva, a série de pratos retoma a poética
marinha e seus aspectos de criação – fluxos e refluxos – para
apontar um “verde novinho em folha” inaugurado pelo mar da
história, a cada vista, a cada mirada. A técnica utilizada ques-
tiona a tradição da pintura, bem como o fim da pintura tal
e qual se aprendem nas escolas de Belas-artes. Desse modo, a
obra de Adriana finge dar um passo atrás ao gesto de Oiticica,
na tentativa estética de montar um novo percurso pictórico à
encenação do Brasil. O recuo temporal trabalhado por Varejão
quer levar a arte não para um elogio vazio às formas barrocas,
Arrancar a carne das coisas 213

mas, sim, quer recuperar, restaurar do “início”, do “cerne”, do


“começo”. Assim, cada prato guarda uma teorização, rompe
com seu contexto, eliminando a biografia, fazendo da obra a
própria biografia da nação.
Questões como a restauração da história pelo desloca-
mento das condições originais, o processo de colonização e a
multirracionalidade orbitam a obra de Varejão, mas é na ob-
servação do significante deslocado de seu significado que re-
side a matéria orgânica de sua ética. Adriana trabalha com a
transcriação da tradução simbólica, indicial e icônica, promo-
ve a bricolagem da história em interação sincrônica, apesar da
aparente anacronia de sua pintura neobarroca. A interlocução
anacrônica restaura o anacronismo cultural: devolve a história
a ela mesma como signo construído na parede da memória co-
letiva; e pergunta: o que está sendo acumulado como potencial
simbólico para o futuro?

***

“Mas se você tira a minha voz, o que me resta?”, pergun-


ta a pequena sereia de Hans Christian Andersen, apontando o
destino emudecido das sereias. Toda-phoné
Toda-phoné,, a sereia reconhece
a perda de sua essência na civilização da escrita. Para sobrevi-
ver, coube à sereia representar apenas a beleza física e se inserir
no mundo da visualidade. Ser vocálico que ainda não se “ele-
vou” (Cristianismo), a sereia é o monstro que mata o homem.
Ou seria ela o indiciador do monstro no homem e, por isso, a
214

necessidade da sua eliminação moral? Afinal, era ele – o homem


– quem saía ao mar, em um tempo em que, convenientemente,
a mulher precisava ser sem voz. Assim, o silêncio das sereias e,
consequentemente, o foco no físico, no corpo, ainda hoje serve
à ideologia que teima em querer manter o silêncio da mulher.
Na iconografia pictórica, o quadro de René Magritte em
que uma impactante sereia invertida – parte de cima peixe, par-
te de baixo mulher – aparece deitada na praia é a exemplar
radicalização do emudecimento sirênico: feita agora apenas ao
desfrute sexual. Ou seja, se é para renunciar a alguma parte, a
cabeça e a boca são as primeiras e únicas opções. Varejão retoma
a discussão presente na obra de Magritte quando, entre outros
elementos aquáticos, insere semelhante sereia invertida em Pra-
to com amêijoas ou Prato com mariscos (2011).
Antes disso, inserindo-se na tradição crítica do destino
das sereias, temos o prato Sereias bêbadas (2009). Feito em óleo
sobre fibra de vidro e resina, o prato apresenta as sereias como
elementos que despertam o apetite. Não mais apenas sexual,
mas também gustativo, palatal. Nadando entre figos suculentos
e ostras semiabertas, as sereias estão em seu habitat natural, mas
a serviço tanto do “feliz poeta quanto do esfomeado”.
A sugestão iconofágica de devoração da imagem histori-
camente reconstruída das sereias de Varejão produz o sensível,
ou melhor, a sensação. Somos convidados ao mergulho vertigi-
noso na concavidade do prato junto com os seres canoros dis-
postos em movimento de redemoinho. Porém, desencarnado
de nós, o sensível desperta nossa subjetivação e leva a uma ques-
Arrancar a carne das coisas 215

tão: por onde “comer” as sereias? Ser poeta, ou ser mendigo?


Ser macho? E é nos figos em reconvexo, tridimensionais, quase
objetuais, do prato de Varejão que supomos tocar o sensível, en-
quanto no convexo de Sereias bêbadas encontramos a harmonia
por meio da recuperação da padronagem floral azul e branca da
pseudoporcelana. Tudo quer ajudar a recepção da sexualidade
feminina: o contato entre o sujeito e o outro. Ou melhor, quer
ser meio, ser desperdício erótico.
Da mesma série e em mesmas dimensões (150 x 25 cm),
há ainda que se destacar o prato Mãe d’água (2009). Aqui, uma
Iara – a sereia negra-mestiça-amazônica – reina olhando o es-
pectador sobre um fundo de água agitada e azul-escura, en-
tre seres aquáticos e um menino negro manchado de espuma
branca. Mais um movimento iconofágico de Varejão. Agora,
são jabuticabas que, tridimensionais, se protuberam da superfí-
cie côncava do prato. Estourando de tão maduras, brilhantes e
apetitosas, as frutas nativas da floresta-pulmão do mundo fun-
cionam na mesma intenção de “corpo à disposição” que os figos
e mariscos do prato anterior. Já a parte convexa é trabalhada em
estilo marajoara.
Sobrepostos, os dois pratos de Adriana Varejão, proble-
matizando as técnicas – cerâmicas feitas de fibra de vidro, ou
melhor, fibra de vidro que se finge cerâmica –, servem à inves-
tigação do lugar diacrônico do indivíduo em perspectiva pós-
colonial. Mas, em vez de uma análise histórica, partimos para
uma análise geopoética da inversão, do fingimento. E é aqui
que nos afastamos para melhor nos aproximarmos da obra de
216

Adriana, por meio da leitura de Dreamworld: Marco de Canave-


ses,, canção de David Byrne e Caetano Veloso (Onda
ses (Onda Sonora: Red
Hot + Lisbon,
Lisbon, 1998, Red Hot + Rio 2,
2, 2011, e Live at Carnegie
Hall,, 2012). Em terceira pessoa, ela narra na primeira parte a
Hall
trajetória de Carmen Miranda como signo, símbolo e emblema
de amálgama. Já na segunda parte narra o trabalho meticuloso
de um travesti que se “monta” para manter o sonho da presença
de Carmen. Tais inferências são percebidas melhor quando as-
sistimos ao clipe da canção, no qual bolhas de sabão adensam o
espaço onírico onde o travesti vive para afirmar que a presença
– de Carmen – é alucinatória.
O nome Carmen Miranda está substituído, não aparece
em nenhum momento da letra, mas seu signo está proliferado
em toda a canção, inclusive nas vozes em falsetes de Veloso e
Byrne, além de se condensar no corpo do travesti que perfor-
matiza a Pequena Notável. Nascida em Marco de Canaveses,
noroeste de Portugal, Maria do Carmo é sereia que, transplan-
tada e ressignificada, inventa-se Carmen Miranda: muda o
modo de cantar no Brasil, exportando o país para o mundo.
Carmen dilui os limites que separam o local e o global, o ínti-
mo e o cosmopolita. Ela se inscreve como uma estrutura crítica
dançante que dessacraliza a história. O som do instrumento
teremim, que abre a canção, acompanha fantasmagoricamen-
te toda a performance. Carmen Miranda agora está rediviva
no corpo da travesti: esta neossereia que desempenha o papel
cultural essencial de manter viva a memória afetivo-sonora das
divas que nos inventaram cantando-nos.
Arrancar a carne das coisas 217

Ela veio Maria do Carmo de Marco de Canaveses – “o


nome da terra/onde Iara Oxum nasceu”; e ela vem Carmen Mi-
randa. Bêbada em sonhos, lúcida demais, a Carmen de hoje
– travesti – guarda a Carmen-metáfora e a Carmen-alegoria no
corpo inconcluso, montado: Iaroxum – um novo orixá resul-
tado da fusão, totalmente terceiro sexo, Terceiro Milênio. Ori-
xá que condensa e potencializa a tensão e a fricção embaladas
por guitarra e percussão, pandeiro e violino, agogô, repique e
programação eletrônica. Sereia, “ela está vivendo em um mun-
do de sonhos/como as pessoas comuns”. Usamos aqui o termo
“sonho”, próximo ao sujeito da canção, menos como disposi-
tivo psicanalítico e mais como remissão da alegoria Carmen
Miranda. O sujeito da canção reposiciona Carmen na geografia
do corpo que agora lhe serve de mídia – tal e qual a cerâmica
verdadeira, porque falsa, de Adriana Varejão. A apresentação
pressupõe a imaginação. Olhos azuis e pele castanha – as tais
jabuticabas oferecidas ao canto do mundo no prato de Adriana.
Claro está que uma análise cronológica dos fatos não dá
conta das torções críticas e teóricas que sugiro aqui. Ao inventar
um sentimento íntimo entre as linguagens e seus signos, cabe
mostrar que o histórico está presente no agora por meio da sele-
ção de dados que possibilitam os contatos e a análise. Portanto,
os pratos de Adriana Varejão não são menos cerâmica por serem
de fibra de vidro. Nem Carmen Miranda é menos ela por estar
no corpo dele. Dele? Só chegamos a tais conclusões pensando
com rigor a cultura brasileira também a partir da combinação
afetiva de elementos diacrônicos, a partir das invenções e das
218

inversões artificiosas: pintura marajoara feita em fibra de vidro;


negro-índio tingido de espuma branca; tropicalidade colada à
pele da moça vinda da Europa; o canto do feminino que há no
corpo morfologicamente masculino; idiomas brasileiro e inglês
justapondo-se.
Estes sintagmas afloram o pensamento sobre o “instinto
de nacionalidade”, aquele interlugar do sentimento íntimo ver-
sus araras e folhas verdes; lírica e sociedade, quando o histórico
é no agora. Afinal, quais dados eu posso e/ou devo selecionar
para entender o agora? O instinto caraíba suspende categorias
como arqueologia e origem. Adriana Varejão não se comprome-
te com a história oficial e, pelo não compromisso, ela (re
(re)monta
)monta
a história, via essência do imaginário. Assim como o corpo do
travesti que Carmen é, os pratos de Varejão são concentrados
luminosos de narrativas combinadas. E, nesse jogo, a musa
de Adriana é o anjo da história descrito por Walter Benjamin
(1985 p. 226): “Onde nós vemos uma cadeia de acontecimen-
tos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente
ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés”. O congestiona-
mento de referências de Carmen-travesti é que ajuda a entender
as imagens eróticas transcontinentais coexistentes nos pratos de
Adriana. Temos referências que vão da cerâmica de Bordallo
Pinheiro à fotografia de um índio do sul da Etiópia apropriada
no prato O selvagem (2011).
Apropriação e citação, a mestiçagem em Adriana é signo
de resistência, montagem de um corpo de mulher que resis-
tiu às barbáries da história colonizadora e persiste resistindo
Arrancar a carne das coisas 219

modernamente. Mulheres cujos olhos registradores de seus as-


sassinos são guardados em precioso relicário de prata na obra
Testemunhas oculares X, Y, Z (1997). Por tudo isso, acredito que
Adriana Varejão não faz outra coisa a não ser ouvir o canto
das sereias Iara, Ondina e Iemanjá e, conduzida por esse canto,
promove cantos-paralelos, traduções intersemióticas da pintu-
ra, da história. Assim como a aparição do neo-orixá Iaroxum é
uma condensação, também as imagens aparecidas nos pratos de
Adriana Varejão representam e apresentam a genealogia mítica
que não deve ser esquecida. “A genealogia é cinza; ela é meticu-
losa e pacientemente documentária. Ela trabalha com pergami-
nhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos” (Foucault,
1979, p. 15). Ou seja, é a origem mestiça da mestiçagem ge-
nealógica que a artista incorpora ao colar fragmentos de outras
peles sobre a pele da matéria pictórica em autorretrato marcado
e arruinado.

Dreamworld: Marco de Canaveses


(David Byrne / Caetano Veloso)

Tem
Quem não tem
Ela tem
Diz que tem
Mas também
Nem precisa dizer
220

And if it is real
Wanna touch
Wanna feel
She can dance
She belongs
She believes

Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu
And the taste of each flower is sweet
So why do the say she’s a bad girl

She lives in the dark


Breathing in
Breathing out
It is wild
It is real
It is good

Mãos
Pés e mãos
Contramãos
Sins e nãos
Olhos sãos
De rolar e de ver
Arrancar a carne das coisas 221

She’s living in a dreamworld


Like regular people
And she’s caught by the tail

Filha de um mestre cafuso


Deusa do céu
Como tu e eu

Ela veio
Ela vem
Vem trazer encanto ao mundo

She’s living in a dreamworld


Like regular people
And she’s caught by the tail
And the taste of each flower is sweet
So why do they say she’s a bad girl

Em 1980 que ela veio ao mundo


Com os olhos azuis
E na testa as estrelas da cruz

Ela agora moça


Agora ela
Agora faz
E na pele castanha ela traz uma luz de cajus
222

Marco de Canaveses
o nome da terra
Onde Iara Oxum nasceu

Filha de um mestre cafuzo


Deusa do céu
como tu e eu

Take away, take away


Take away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo
Wash away, wash away
Wash away that hurting feeling
Ela veio, ela vem
Vem trazer encanto ao mundo

Referências

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da história”. In Magia e téc-


nica, arte e política.
política. 1985. São Paulo: Brasiliense, 1985.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. poder. Rio de Janeiro: Graal,
1979.
VAREJÃO, Adriana. Adriana Varejão: entre carnes e mares.mares. Org. Isa-
bel Diegues. Rio de Janeiro: Cobogó, 2009.
VELOSO, Caetano e BYRNE, David. “Dreamworld: Marco de Ca-
naveses”. In Red Hot + Rio 2 (CD). Brasil: Som Livre, 2011.
Obra e fragmento: nota sobre os dois corpos
no arquivo de Graça Aranha

Marcelo Santos1

Desenvolvi na Fundação Casa de Rui Barbosa uma pes-


quisa com o arquivo do escritor Graça Aranha. Trabalhando
com arquivos pessoais de escritores, tento, ao fazer uma espécie
de anatomia do morto, ou melhor, dos papéis do morto, re-
gistrar percursos e processos de escrita na maior abrangência
possível: escrita da construção de si, escrita da construção de si
e do outro (na correspondência de escritores), escrita da obra,
nos sentidos amplos que a obra possa assumir ao incorporar
outros trajetos para além do editado. Especificamente, tenho
me detido sobre a relação entre aquilo que chamamos corpo de
uma obra, o corpus de um escritor, a materialidade da escrita

1
Professor Adjunto A I da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Uni-
rio).
224

que se quantifica numa manuscritura, ou numa datiloscritu-


ra, e a pressão que o corpo exerce na constituição do corpo
escrito. Distanciando-me da tematização/figuração do corpo,
marco uma posição em que a relação corpo-corpus
corpo-corpus do escrito
me interessa ao perceber a força que pressiona a tinta na pági-
na, a pressão do tipo na folha; e suas linhas, rasuras, emendas,
correções. Jacques Derrida, em seu livro Papel máquina (2004),
reflete sobre nosso convívio com a escrita dos editores de texto,
em que a mão dispara a inteligência em bits até que o nasci-
mento da letra coincida já com sua formatação. Derrida analisa
como essa mudança da modalidade da cultura digital alterou a
maneira de escrever, logo, de pensar. Com o trabalho nos arqui-
vos, o tempo dos bits ainda não convive com a pressão da tinta
e a impressão do tipo. A letra manuscrita, seu talhe, decalca o
movimento da mão, pesada ou leve, na escrita. Os impasses
riscados, fraca ou fortemente, revelam uma fricção do corpo
que escreve no papel, operação que o pesquisador/leitor desses
textos pré-Word não deve ignorar. Aprecio a sugestão de Phili-
ppe Willemart (1993), de que os manuscritos do escritor, essa
escritura que se pode depreender deles, são o inconsciente do
texto. Se devemos psicoanalisar a escrita, que psicoanalisemos
a linha, o traço, o risco, o rabisco que a máquina do texto é
capaz de produzir, afinal o inconsciente não está estruturado
como uma linguagem conforme subscreveu Lacan após Freud?
A propósito, como e onde teria Lacan escrito essa sentença?
A tinta? Teria riscado alguma palavra? Essa sentença guardaria
outra por baixo, uma emenda, uma troca da ordem sintática,
Obra e fragmento 225

enfim, um inconsciente que a mão primeiro registrou? O que


esse inconsciente fabrica, pelo menos na minha apropriação, é
um corpo cheio de marcas, que tendo a ler como corpografia,
revelando a mão que escreve e levanta, que faz pressão ou recua,
enfim, que funciona seguindo uma ergonomia própria da es-
crita, o corpo disposto no corpus
corpus.. Os recuos (riscos anuladores)
ou avanços (emendas, reiterações, consertos) são assinalados,
mas ao mesmo tempo marcam um certo tempo da presença na
página: uma volta para corrigir, uma segunda volta para emen-
dar, o ritmo da letra corrida como um corpo sem fôlego, até o
limite da folha. Nessas voltas, o escrito ganha corpo, e o corpo
se inscreve na letra, na linha, no derramamento da tinta ou da
pressão do tipo.
O trabalho com o arquivo de Graça Aranha me possibi-
litou o contato com uma tinta finissecular. Não poderei nesse
espaço avaliar a importância do escritor na literatura brasileira,
mas cabe dizer que tanto a obra quanto o homem Graça Ara-
nha são alvo de leituras díspares pela história moderna da nossa
literatura. É possível ter posições a favor ou contra a relevância
de sua obra para o modernismo brasileiro, e o mesmo pode
se dizer de sua atuação no grupo modernista. Alguns estudos
mais recentes parecem reconsiderar a apressada avaliação que
relegou a obra e o homem para o limbo das letras: a biografia de
Maria Helena Castro Azevedo e o trabalho de Eduardo Jardim
pretendem reconhecer a laceração que os dois séculos produzi-
ram em Graça Aranha. Acredito que compreender essa divisão
é crucial para as possíveis revisões da obra de Graça Aranha e
226

de sua participação no nosso modernismo. Dito isso, o meu


trabalho com o arquivo do escritor foi o de estabelecer uma
obra: ao organizar um arquivo, o leitor dos documentos, o pes-
quisador que vai organizar, ou seja, cumprir a lei do arquivo e
ser o arconte dos textos, acaba por construir um corpus íntegro,
a que chamarei de corpo do arquivo. O que gostaria de mostrar
aqui é o modo como dois corpos (se bem entendido, o corpo
como essa materialidade que abriga os registros do corpo que
escreve) compõem o arquivo de Graça Aranha. O arquivo reve-
la séries infindas de fragmentos com rascunhos, frases, estudos
e pequenos artigos que são retomados aqui e ali, formando um
labirinto que demanda tempo para formar corpo.
Diríamos que essa é a face dionisíaca do arquivo de Gra-
ça Aranha, autor conhecido pelos ensaios reunidos, publicados
em obra, pelos romances, mas quase desconhecido sem a efe-
tiva leitura de seus outros textos. Apolo parece mostrar sua face
quando há um esforço da mão em compor a letra firme, clara
(que não existe na face dionisíaca) para a impressão. Mas eis
que Dioniso está à espreita, desorganizando a obra e cobrindo-
-a de fragmentos: o romance Canaã teve edições modificadas
enquanto o autor foi vivo. A transposição do fragmento à obra
é uma operação bastante própria de Graça Aranha, como se
pôde observar.
Graça Aranha escreveu, praticamente, fragmentos. Suas
duas coletâneas de ensaios estético-filosóficos A estética da vida
(1921) e O espírito moderno (1925) devem ser consideradas,
portanto, à luz de sua composição junto ao tempo, já que ou-
Obra e fragmento 227

tras combinações são teoricamente possíveis. Isso significa que


ela se desobra/desdobra em outras e em outros fragmentos. O
autor rearticulava pequenos ensaios publicados na imprensa
com discursos e pretendia dar sequência de obra – um corpo –
a esses membros.
Gostaria de chamar atenção para isso porque Graça
Aranha, nas suas propostas estético-filosóficos, é associado ao
positivismo finissecular presente na sua concepção de univer-
salismo – a visão monista filosófica – e objetividade oriunda
do realismo em arte (contrária à vertente cuboexpressionista
do modernismo pós-Semana de Arte Moderna). Contudo, é
preciso salientar que esse suposto positivismo talvez não possa
ser avaliado separadamente de seus desdobramentos, desmem-
bramentos ou ainda de seus desobramentos
desobramentos.. É preciso conside-
rar esse outro corpo de sua obra, esse corpo movente, cheia de
marcas, que cobra do leitor um globo ocular mais circular. Sei
que posso ter arriscado uma metaforização positivista entre
corpo e obra, fragmento e membro. Mas também arrisco a
dizer que essa metáfora, para mim, é uma metonímia. A es-
crita no arquivo, no manuscrito, tem a vida que o papel tiver,
lembrando sua origem vegetal. Muitos papéis de Graça Ara-
nha desmancham; o talhe da letra embaraça o olho, querendo
fugir para as sombras. Nas minhas sessões de anatomia, junto
os pedaços, monto corpos, mas as junturas, as linhas e as cica-
trizes nunca desaparecem.
228

Referências

AZEVEDO, Maria Helena Castro. Um senhor modernista: biografia


de Graça Aranha.
Aranha. Rio de Janeiro: ABL, 2002.
BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro – I. I. Rio de
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BROCA, Brito. A vida literária no Brasil – 1900.
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filosófica. 1 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1978. 
PAES, José Paulo. “Canaã” e o ideário modernista.
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1992.
WILLEMART, Philippe. Universo da criação literária. literária. São Paulo:
Edusp, 1993.
------. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras/Fapesp,
1999.
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu
corpo”:
corpo”: pontas de formas e impasses

Marcus Alexandre Motta1


para Juliana Sampaio

Quando recebi, ao meu pedido, a sugestão da Ana Chiara


para preparar a minha participação neste seminário, fiquei in-
quieto. Inquieto, iniciei distanciamentos. Abri distâncias, como
se pudesse, rumando ao contrário, chegar perto da sugestão.
Continuamente, cometo tal gesto. Dilato espaços. Neles, vis-
lumbro o sugerido em faces outras. Há algo nisso que não con-
sigo deixar de denominar como respeito (res (res:: “coisa”, “bens”,
“corpo”, “do”...).
Uma indicação, como aquela de Ana (falar do encoberto
na poesia portuguesa), brota do zelo da amizade e essa amiza-
de possibilita-me sentir que, quanto mais me distancio, mais
1
Professor do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
230

encontro, longe, o acolhimento. De fato, ao dilatar o intervalo,


a ideia de encoberto acutilava as minhas ideias.
A palavra “encoberto”, tão cara às nossas históricas espe-
ranças, está ali no dicionário como disfarce. Alguma coisa ve-
lada e oculta; nublada. Isso me fez ir ao óbvio poético de nossa
língua portuguesa. Sondei “Mensagem”. A “Terceira parte” do
poema, todos sabem, tem como título “O encoberto”, dividido
em “Os símbolos”, “Os avisos” e “Os tempos”. Nesse último,
há uma terceira parte, cujo subtítulo é “Calma”, e nele a segun-
da estrofe:

Ilha próxima e remota


Que nos ouvidos persiste
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
(Pessoa, 1993, p. 22).

Evidentemente, ali, nada consente alcançar, de imedia-


to, qualquer episódio que transborde corpo. Não obstante, os
versos são indissociáveis dos intervalos que abri, cujas marcas,
posso enunciar, antecipadamente, são traços corporais da arte.
Isso não quer dizer que tenha chegado a elucidação ou
qualquer coisa parecida. Tampouco posso dizer: funciona. Nem
mesmo traz qualquer lance que se permita pôr em funciona-
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 231

mento. Tampouco dizer que há valência, ou não. Contudo,


confiei agir assim.
Sem corrigir rumo algum, deixei-me à deriva. Escutava,
mesmo longe, os versos de Pessoa e a indicação da Ana Chiara.
Mas o que está ali nos versos, numa correspondência com
a sugestão da Chiara, é o pouco mais que cobicei. Está ali o
impróprio desafio. De alguma maneira, o desafio do qual falo
ganha imparidade com aqueles versos tão próximos e remotos.
Diria que a contemporaneidade se assemelha a isso. Diria
que o corpo se esvai nisso. Tal gesto, portanto, embarca-me,
encobre-me, tensiona-me na pergunta: “que nau.../pode en-
contrar o caminho/ à praia onde o mar insiste, se à vista o mar
é sozinho? (Pessoa, 1993, p. 22).
Fujo de explicar o desafio (todo o texto guarda-o na escu-
ta e em chaves de amizade). Singro assim.

***

Estando à deriva, precisei de um encobrimento intelec-


tual que facultasse, ao fim e ao cabo, dar-me a ilusão de que
não estava perdido. Encontrei a passagem de Stirner, citado por
Derrida em Espectros de Marx.
Marx. Cito:

Assim, após ter começado por dar aos pensamentos uma


consciência corporal, ou seja, após ter feito deles fantasmas, o
homem, identificado aqui ao Único, destruiu essa forma cor-
poral reintegrando-a em seu próprio corpo, de que faz, por
232

isso mesmo, o corpo dos fantasmas. É somente através dessa


negação dos fantasmas que ele se convence da existência de seu
próprio corpo. Isso, de fato, mostra a verdadeira natureza dessa
construção abstrata: a corporeidade do homem. Para acredi-
tar nela, é preciso, primeiramente, que ele a “diga” para “si”,
mas o que ele “se diz” nem mesmo é “dito” corretamente. Pelo
fato de que, fora de seu corpo “único”, toda espécie de corpos
autônomos, espermatozoides, não habitem unicamente a sua
cabeça, ele transfigura isso numa “fábula”: Eu somente tenho
um corpo. Nova escamoteação.

A névoa se encontra toda ali. Entre a cabeça e o corpo há


sempre escamoteação. Contudo, a referência ocupa uma posi-
ção singular. Marx trabalha com ela e a critica na teoria sobre a
mercadoria. Derrida comenta-os e quase dá a entender a marca
do limite do poder crítico como tal: os fantasmas.
Evidentemente, não vou comentá-los. Basta lê-los. Basta
a passagem como está. Tomo-a, aqui, como um cenário ne-
blinado. A cena é... E, tendo isso como cena, atuo. Ou, ace-
no. Um jeito no qual há o rendilhar de afinidades, digamos,
absurdas, ou quase, apresenta aquilo que veio sem método
ou coerência (seria fácil duvidar disso), insinuando-se como
capaz de devolver o meu corpo à minha cabeça (ou seria o
contrário). Na verdade, proporciona instantes de ajustamento
precário e, logo, devolve-me o estar partido, ou ter partido,
repartido, ou parido, ou perdido, ou no risco mesmo disso, de
algum modo.
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 233

Nessa feição, faço vir vias literárias distintas. Elas esta-


rão desprendidas, como eu à deriva, ao se descobrirem como
descortesias da arte, na arte; conforme a ideia da arte e pouco
sobre uma ideia de arte. Situações de algum desatino auditivo
que cometo quando procuro meu corpo na minha cabeça; ou
é ao contrário?

***

Todos conhecem aquele fim do conto de Poe, “O retrato


oval”, quando o pintor, tendo sua amada como modelo, sempre
sorrindo, sem perceber a “luz que entrava de forma sinistra”,
debilitando a saúde da amada, segue a pintar empenhadamen-
te, deliciando-se por completo na sua excelente técnica, sub-
traindo tudo daquele corpo que tanto amava. Até que (vocês
sabem!) o pintor fica extasiado perante o quadro que havia pin-
tado. Contempla-o. Logo treme, assaz pálido, grita em supina
voz: “isto é na verdade a própria vida” (Poe, 1981, pp. 278-
282). Apreciamos o fim. O pintor, após clamar “isto é na ver-
dade a própria vida”, vira-se para o lado abruptamente. Observa
a amada: estava morta.
Talvez, sempre talvez, se saiba o que se evita ao ler. É da
arte isso. É nela e por ela, contra ela e contra ao que dela se quer.
Pelo que há no conto se descobre o que de encoberto já está.
O quadro, a Vida. A amada: morta. Na intimidade escandalosa
que há, se poderia dizer: a forma; do corpo morto ou da arte.
234

Ela, a forma, para se totalizar, tecnicamente, há de erra-


dicar toda a experiência sensível. Ela quanto mais legítima, ou
acadêmica em atributos técnicos, mais cruel e mortal no seu en-
cobrimento da vida. Quanto mais adaptada ao que extirpa,
mais da moral do saber-fazer se alimenta e surge e extermina.
A forma identifica-se consigo mesma. O bom uso do equilíbrio, das
proporções e das simetrias é isso: a morte plasticamente cobrindo.
Aceitemos agora que a arte, o quadro, fosse o oportuno
esconderijo do horror contra a qual ela mesmo luta. Algo como
o esconderijo do desejo humano de ser eximido do humano
pela técnica, o saber-fazer. Algo como a própria superioridade
do pintor, na medida de algo terrível que é o quadro.
Evidentemente, o que o pintor concebe faculta ser a re-
presentação perfeita da amada. Decididamente, o horror, a tau-
tegoria do Ocidente – um tipo de configuração não metafórica
do mito: “na verdade a própria Vida”. Ou o mais próprio dessa
arte acadêmica e não sei se de outras tantas.
O conflito volve o insuportável. O horror é o fascínio
pela coisa. Fascínio pela coisa: isso se denomina saber-fazer.
É esse o horror: o pensamento ocidental. É desse horror que se
vive. É esse o horror do saber-fazer, do fascínio pela coisa, que
se exporta. Vicia tudo. Desertifica tudo.
Em qualquer lugar encobre. É isso que nos faz botar fé na
neutralidade da técnica, sendo, por isso, que a incompletude,
o inacabamento, a exposição da feitura no ato artístico, a aber-
tura, a ironia lançada contra a técnica, a destruição da imagem
como latência, o feio trazido a superfície, formam as pontas de
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 235

resistência da modernidade artística. A arte moderna enérgica


exime-se do domínio sobre o objeto. Não o cobre de técnica.
Desloca-se para uma expressão na qual nenhuma linguagem
pode significar.
Nem a arte, como o dom, é sempre capaz de deter o sa-
ber-fazer. O horror também está na arte. E se pode haver cópia
fiel, como no conto de Poe, da própria vida, ela só pode vir à
tona na expressão mais selvagem. Os pintores modernos nos
ensinaram isso.
Mas quando se sabe-fazer: corpos mortos. Cobertos por
apuro técnico, mesmo amados. Há o horror no saber-fazer. Ele
submete tudo à dor, à tristeza, ao luto, à forma, que nenhum
trabalho jamais reduzirá, mesmo o da arte. Apesar de que “eu
somente tenho um corpo”; sempre o possível de “nova escamo-
teação” e, portanto, posso matar, ou perfeita forma, se souber-
fazer e assim...

***

A segunda aparece em Doutor Fausto,


Fausto, de Thomas Mann.
Grave leitura. Insubstituível romance. Todos concordamos ou
devíamos nos redescobrir nele.
O diabo vem comunicar a Adrian. Vem comunicar o
pacto. Serenus, seu biógrafo, homem perfeitamente modera-
do, são, tendente à harmonia e ao raciocínio, hábil em viola
d’amore,, lê a carta enviada pelo músico dodecafônico; dema-
d’amore
siadamente moderno. Em certo momento daquela escrita, o
236

diabo diz: a arte “[...] É possível unicamente com o Diabo, o


verdadeiro senhor do entusiasmo” (Mann, 2000, p. 335-336).
Em seguida transforma-se. Altera o aspecto. Melhora a
aparência. Distancia-se de qualquer figuração que lembre um
marginal ou um rufião. Agora, é a imagem de um intelectual
que escreve artigos sobre arte e música em jornais comuns.
As mãos moles, magras, acompanhavam as palavras; ele, senta-
do na ponta do sofá.
Ele não crescera. A voz nítida, nasal, afetuosa, era a mes-
ma, mantendo assim a identidade. Em seguida, fala avançando
a boca larga com aquele ridículo resto de bigode: “O que é a
Arte, hoje em dia?...”. Para por fim arrematar: “uma romaria
sobre ervilhas. Para dançar, já não basta um par de sapatinhos
vermelhos, e tu não és o único afligido pelo Diabo” (Mann,
2000, pp. 335-336).
O diabo havia se desinstalado como resposta ao houve-
ra havido. Efeito do nefário e do como. Declina-se e diz. Ao
dizer, reafirma e antecipa o seu oportuno dizer. Só acontece a
arte porque ele ali está, animando com os seus pactos, acordos,
mesmo que o artista não consiga reconhecer tão facilmente e
confunda a fala dele com a própria consciência. Entusiasmo
é isso que ele dá. Entusiasmo é arte moderna. Seus bichinhos
estão no corpo do artista. Uma negligência sexual, uma sífilis, a
genialidade de Adrian.
A arte é doença descoberta. Pode ser avivada sexualmen-
te. De baixo até a cabeça, como uma flor a germinar, e não ao
contrário. Nela, o pacto. Ou coisa do entusiasmo em febre fria e
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 237

distante da lembrança do descuido. Enxaquecas brotando cada


vez mais violentamente.
Quando os bichinhos chegarem por lá, na cabeça, pelo
fim do romance, Adrian tentará contar a fornicação com o dia-
bo e, sendo não crido, desdenhado, ruma para o piano e pro-
duz um forte acorde dissonante, daqueles que detestamos ouvir,
com as faces já molhadas. Abre a boca, como se fosse cantar. Faz
valer um som lamentoso. Ao mesmo tempo, estende os braços.
De repente, muito mais que de repente, cai. Cai no chão, como
se estivesse sido empurrado. Agora vegeta.
De fato, a genialidade de Adrian provém disso: “descui-
da-se”. Torna-se artista genial. Mas é a imprevidência sexual
que descobre o acontecer e, assim, o diabo assina o contrato,
sem a ciência do contaminado.
A arte de Adrian vem disso: dos bichinhos do sinistro.
Eles entram corpo adentro e se instalam. Instalam o instalado,
a arte, a doença. Ela, a arte, ininterruptamente foi algo assim:
doença, infecção e similares. Compreendia-se assim. Compre-
endemos ainda assim?
A tradição faz aparentá-la à loucura, ao infantil, à irres-
ponsabilidade, à inconsequência, ao impróprio. Espera que ela,
a arte, desencubra o desvelamento do mundo, retirando-o da
sua cripta em passes de gênio. Grave ironia.
Poderia se dizer: ele, o diabo, ou ela, a doença, é o radi-
calmente estranho que habita a corporeidade do artista moder-
no. Adrian, o músico dodecafônico. Por isso, instala o necessá-
rio, até ela mesma, a corporeidade da arte. O prodígio artístico
238

encontra-se na visita. Liga. Passa pela figura que não é e não


deixa de ser, enquanto seus bichinhos rumam na direção da
cabeça de Adrian Leverkuhn, deixando nua a genealidade.
Podemos ainda ouvir o diabo, longinquamente: “o que
na era clássica talvez se pudesse obter sem a nossa intervenção,
hoje em dia, somente nós podemos oferecer”. E confirma: “e
nós oferecemos coisa melhor, unicamente nós oferecemos o au-
têntico e o verdadeiro”. Por fim, arremata teoricamente: “o que
nós propiciamos já não é o clássico, meu caro, e sim o arcaico,
o primordial, o que desde os tempos imemoriais, ninguém ex-
perimentou” (Mann, 2000, p. 334).
Permitam-me um parêntese. Falemos da figura com a
aparência do intelectual. Digamos em leve paródia. O intelec-
tual não sabe fazer nada que não seja viver do assalto àquilo que
não fez e se faz fazendo naquilo que não fez.
Seu ânimo corrobora o próprio dizer em miúdas palavras
que são seus bichinhos benfazejos. Por isso, não quer saber do
arcaico na arte moderna, do primordial do bem depois e, muito
antes, antes da própria origem, nem da inexperiência que a arte
moderna possibilita experimentar.
Vive disso. Vive contra isso. Vive disso ao viver dos tipos,
em boca larga.
larga. Evita a plástica, seja ela qual for. Vive de cordato
tipo porque suas mãos moles e magras não podem moldar, ficção.
Mote de influência platônica e, portanto, quer cobrir de saúde
a doença descoberta.
Se há algo dele, do diabo, nele, no intelectual, é porque
acusa, ou elogia, de alguma maneira, o pacto. Cobra, cobre e
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 239

lembra, platonicamente, do perigo que se corre quando se mo-


dela plasticamente, ou musicalmente, ou literariamente, o corpo.
Há de ter cuidado. Qualquer negligência: o entusiasmo,
e a arte se corporifica. Ela é entusiasmo: coragem, risco e... bro-
to. Mas, como a mímese “se enraíza consequentemente nessa
dependência e nessa subordinação (ao especulativo) de origem
do ser-falante” (Lacoue-Labarthe, 2000, p. 121), ele ficciona-
liza; apenas não quer saber disso, pois não acredita no diabo
nem em fantasma, nem em corpo. Acredita só em bichinhos
saudáveis da tipografia.
Mas o diabo entoa a pergunta: “O que é a Arte, hoje em
dia?” Pergunta intelectiva por excelência. Pergunta que abre o
caráter enigmático da arte, mediante a esperada explicação inte-
lectual e tratada ironicamente pelo senhor do entusiasmo. Mas
esta não acontece. A arte vai adiante; estreitamente vai.
Entoada, vestida na figura, a pergunta aprimora o que
nenhum artista inquerirá. O trabalho artístico urge diferenciar
a estranheza da estranheza. O artista porta a doença, a arte. Mo-
dernamente, não mais cria. Evoca a arte. Friamente, para fugir
dos aconchegantes ares do estábulo. Ares manifestos em todas
as nossas categorias encobridoras da fruição artística. Dessa
arte, não queremos saber.
Instalada a doença, a injetora de genialidade no corpo de
Adrian, os bichinhos, torneia aquele corpo, atribuindo o cor-
po da arte ao corpo. Enquanto isso, eles rasgam a cabeça de
Adrian. Entusiasmo corporal é a arte da arte moderna. De fato,
deslocamento físico, rasgos do aconchegante.
240

Mas o que isso diz? Diz que o entusiasmo, a exaltação


emocional dada no corpo, o dom, é a figura da arte, e nem
chega perto de uma figuração de arte. Isso ainda diz: depreciar
o artista e avivar a ideia de que ele é instalado pela doença, cor-
porificado por ela.
Não que o artista não faça nada. Incontestavelmente, ele
faz. Só o faz evocando a arte. O resto é trabalho dos bichinhos
no seu corpo; agora o corpo é da arte; descobrindo a ideia da arte.
Então, Adrian é um pseudo? Sim; um pseudo em pessoa
do que é, um infectado pela ideia da arte, um corpo outro no
próprio corpo, doença, saber corporificado.
É Adrian que é visado essencialmente após o descuido.
Vítima do descuido. Doente sem ou com muita consciência
e dores de cabeça. Mas nada haveria se ele, Adrian, não fosse
portador de um riso, essa outra doença, que se dava em leve
exalação de ar pela boca e pelo nariz, cabeceando rápido, frio,
desdenhosamente. Enquanto isso, seus olhos atentavam à pro-
cura de algo longe e a escuridão matizada de brilhos metalinos
tornava-se mais e mais carregada aquela busca (há uma simila-
ridade remota e próxima entre o riso e a arte, ambas encobertas
pela seriedade levada pelo sério).
Enfim, a doença não é uma doença. Tampouco uma falsa
doença ou um mal sem doença. Ela é a doença que nos caberia.
Dor de cabeça, a arte moderna. Ela está no lugar do artista –
numa torção teórica, ficção, tornando o artista totalmente vi-
sível a partir de algo que o infecta, bloqueando as nossas ideias
românticas sobre a genialidade de um artista.
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 241

No lugar das nossas ideias encobridoras e românticas, a


doença apresenta a teorização que cabe à arte, reduzindo Adrian
à sua prodigiosa potência, enquanto os bichinhos rumam. Tru-
que para dar efeito à natureza do descuido sexual que se arruma
com antecedência e se instala em Adrian.
A arte parte de baixo para cima. De um jeito que se des-
via do próprio, a subjetividade do artista, e o generaliza impro-
priamente como a impropriedade do descuido, a ideia da arte,
a doença que nos caberia como saúde ou destino. Mas isso leva
tempo. Mas vem e como vem. Já está a caminho e em nossos
corpos – caso não nos encobrarmos intelectualmente.

***

Deveria ir, perdendo-me. Mas não posso; a hora chega.


Preciso falar ainda com a Ana Chiara. Talvez ela me ouça, daqui
de tão distante, e escute o quanto de possibilidades de afasta-
mento, ou faces, tenho a partir da sua sugestão e amizade.
Poderia rumar na direção de Rimbaud, em “Iluminuras”,
ali em “Saldos”, e ler: “vendem-se Corpos sem preço, de qual-
quer raça, de qualquer mundo, de qualquer sexo, de qualquer
descendência!” Ali: “vende-se anarquia para as massas; satisfa-
ção irreprimível para amadores superiores; morte atroz para os
fiéis e os amantes!”. Aí haveria muito que avistar. Fazer arder os
olhos. Avistar a própria economia política que na arte há. Como
reverso, uma descoberta. Sarcasmo rígido. Eis a apresentação
de nossa origem moderna: corpos sem preço. Nossa verdade
242

absurda: “impulso insensato e infinito aos esplendores invisí-


veis, às delícias insensíveis, — e seus segredos enlouquecedores
para cada vício — e uma alegria assustadora para a multidão.”
Mas nesse momento eu só conseguira repetir, ecoando outros
tantos cantos na minha deriva enquanto ardem meus olhos:
“vendem-se Corpos, vozes, a inquestionável opulência imensa,
que nunca será vendida.” (Rimbaud, 1886, http://www.domi-
niopublico.gov.br. Acesso em 11 out. 2013).

Ainda poderia ir vidrado na direção daquele verso de Paul
Celan: “uma palavra – bem sabes:/um cadáver.” Olhá-lo na sua
magnífica força. Ao derrubar nosso hedonismo corporal e liris-
mo de berço. Ao descobrir a identidade de fundo entre cadáver
e palavra (a palavra corpo um cadáver?). Ao sentir que a morte
vive a vida humana em cada palavra lançada. E isso se arran-
ja em outro verso, aquele do Ricardo Reis: “cadáveres adiados
que procriam”. Neles, a verdade em sua majestade nua. Incon-
cebível. Imperial e... Ainda haveria jeito de me deter, com os
olhos embaçados, naquele conto de Kafka, “O abutre” (2010).
Antessentir a physis na carne; ou a nossa carne como physis
physis.. Sa-
borear o arcaico. Experimentar a inexperiência no conto que fo-
ge de nossas interpretações. Como o corpo que sempre nos
foge, ficando em demasia, deixando-nos, apenas, na pena.
Nela, na pena, há algo que valeria uma vida de estudos.
O abutre entende tudo e, batendo as asas, alça... e... o bico pela
boca da personagem introduz, indo ao mais cavado daquele ser.
Caído, sente, com calma, que a ave se engolfa despotamente
nas trevas infindas do seu sangue.
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 243

Mas quem sabe se não haveria outra de Kafka, em O cas-


telo,, que acende, ou adormece, a animalidade de nossos corpos
telo
e faces:

Ela buscava algo e ele buscava algo, ambos furiosos, fazendo


caretas; enterrando a cabeça um no peito do outro eles se bus-
cavam e seus abraços e seus corpos arqueados não os faziam
esquecer, mas lembrar-se da obrigação de continuar buscando;
como os cães raspam desesperadamente o chão, eles raspavam
os seus corpos e, desamparado se decepcionados, para alcan-
çar ainda uma última felicidade, eles às vezes passavam a larga
língua sobre o rosto do outro. Só o cansaço os acalmava e os
tornava mutuamente gratos (Kafka, 2000, p. 52).

Há outros rumos; e à deriva me dedicaria às suas escutas.


Apenas dependentes de ficar à deriva e sem cura ou saúde. Se
Ana Chiara ainda me ouve, diria que perdi anos. Perdi anos
evitando recolecionar, que é a maneira de pensar contempora-
neamente e de “ter corpos”. Gostaria de ter os próximos preen-
chidos de tão somente buscar esse saber da arte, corporalmente
agente. Talvez jamais saberei que conhecimento é esse e que de
modo poderia mantê-lo como é, sem substitui-lo por qualquer
outro desenho.
Não sabendo, cuidaria apenas de ser a arte uma forma de
saber e que ela não está no lugar de nada, não substitui nada,
não é consolo dominical, nem fato simples de denúncia, nem é,
prontamente, cultura. Logo, se não sei, ou jamais saberei, o que
244

a arte sabe, diria que é por pura incompetência e estaria muito


mais perto do meu corpo sem escamoteá-lo, ou encobri-lo de
tantos desejos mentais.
Assim, buscando meu corpo na mente, olhando o corpo
além de mim, tão rente a mim e de tantos outros, ao ponto de
tocá-lo e, por muitas vezes, estranhá-lo e não querê-lo, só facul-
to repetir os versos de Pessoa, esperando que alguém, ou mesmo
eu, substituísse em silêncio, ao seu bel-prazer corporal, algumas
daquelas palavras, para poder enfim saber onde nos encontra-
mos quando dizemos: “eu somente tenho um corpo”. O único
lugar não lugar que me arriscaria seria ainda os próprios versos:

Ilha próxima e remota


Que nos ouvidos persiste
Para a vista não existe.
Que nau, que armada, que frota
Pode encontrar o caminho
À praia onde o mar insiste,
Se à vista o mar é sozinho?
(Pessoa, 1993)

Referências

ADORNO, Theodor W. Experiência e criação artística.


artística. Lisboa: Edi-
ções 70, 2003.
KAFKA, Franz. O castelo.
castelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Aos encobertos que se vão na “ideia de meu corpo” 245

------. O abutre.
abutre. Lisboa: Presença, 2010.
LACOUE-LABARTHE, Philippe. Philippe. Poetry as experience.
experience. Califórnia:
Stanford University, 1988.
------.. A imitação dos modernos.
------ modernos. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
MANN, Thomas. Doutor Fausto. Fausto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000.
PESSOA, Fernando. Obra poética.poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1993.
POE, Edgar A. Ficção completa, poesia e ensaios.
ensaios. Nova Aguilar, 1981.
As artes e o discurso da crise: em torno
do niilismo estético

Evando Nascimento1

E também se saberá que dei vida à inexistência


de Deumamor, como a Posteridade tem dado
vida a inexistências ilustres, caso dos autores, fa-
zendo-os do nada para a glória. Outra inexistên-
cia à qual se tem dado vida por meio de óperas,
romances, poemas é: o amor não correspondi-
do, fato que nunca aconteceu (sendo verdadeiro
amor). Inúmeras coisas que não existem foram
inventadas: há todo um mundo de inexistências
(a subconsciência, o dever, a cenestesia, muito
“Deus” das “religiões”); deixe-me ter uma só ine-
xistência em meu romance: O Não-Existente-
1
Escritor e Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
248

Cavaleiro; é dotar uma obra de arte do persona-


gem necessário para que os outros ostentem sua
existência; o único não existente personagem,
que funciona por contraste como vitalizador dos
demais (Fernández, 2010).
2010).

Uma crise sem fim


O primeiro falante e, portanto, supostamente também
o primeiro humano do planeta deve ter exclamado: As coisas
estão muito difíceis, vivemos em tempos de crise! Viver seria, en-
tão, estar em crise, não haveria vida sem crise, por assim dizer
em estado permanentemente crítico, com o risco de se desa-
gregar e sucumbir no vastíssimo nada. Segundo o Dicionário
Houaiss (2014), a palavra “crise” vem do latim cr crĭĭsis,is
sis,is,, “mo-
mento de decisão, de mudança súbita, crise”, que, por sua vez,
vem do grego krísis,eōs
krísis,eōs,, “ação ou faculdade de distinguir, deci-
são” – por extensão, “momento decisivo, difícil”, termo igual-
mente derivado do verbo grego krínō krínō:: “separar, decidir, julgar”.
Ainda segundo o dicionário, a palavra “crise” já ocorre
no latim com a acepção de “momento decisivo na doença”, que
pode resultar num agravamento ou num desfecho positivo. So-
mente a partir do século XIX a palavra entra no vocabulário
econômico. Hoje, pode-se dizer que não há área do saber hu-
mano, e até mesmo não humano, que não conheça algum tipo
de crise. Pode-se também imaginar que o famoso “The time is
out of joint” de Hamlet (Shakespeare, 1975, p. 1080) seja uma
das primeiras expressões de crise em literatura. Já o substantivo
As artes e o discurso da crise 249

crítica relaciona-se com a mesma raiz greco-latina, indicando o


duplo gesto de discernir e julgar. O vocábulo apenas terá pleno
curso em artes e em literatura a partir do século XIX, como fa-
tor de institucionalização dos discursos e das práticas; isso ocor-
re, por exemplo, com os famosos salões de Charles Baudelaire
(2005), um dos grandes formatadores da crítica de artes.
Assim, nomeemos algumas das crises recentes e seus
grandes momentos críticos, por décadas. Nos anos 1960: crise
essencialmente política – ditadura militar no Brasil, maio de 68
no mundo. Nos anos 1970: primeira grande crise do petróleo
(les chocs pétroliers).
pétroliers). Nos anos 1980: crise do comunismo, queda
do muro de Berlim. Nos anos 1990: crise do fim da História,
advento triunfal da era neoliberal (supostamente crise final e
decisiva da síndrome da crise). Nos anos 2000: crise do fim do
fim da História, com o 11 de setembro de 2001, bem como
crise, enfim, do neoliberalismo (2008). Agora nos anos 2010:
crise da era da informática, com a espionagem norte-americana
sobre o mundo, testando os limites da democracia etc., etc. Pa-
rece mesmo não haver mundo, nem vida sem crise. A história
da humanidade e da vida, sobretudo na era moderna, seria uma
sucessão de crises...
Gostaria, portanto, de observar que a crise é um discurso
que, na modernidade, alimenta a si mesmo. Crítica e crise, que
não por acaso, como visto, têm a mesma etimologia, são dois
termos que poderiam servir para definir a própria Modernida-
de, desde pelo menos as indagações de Charles Baudelaire no
século XIX, como mapeadas por Walter Benjamin (2006). Mas
250

o movimento crítico (em duplo sentido: de crise e de crítica)


começou bem antes, com Kant, o primeiro grande pensador
da crítica como gesto de crise, que faz avançar o pensamento,
com suas três grandes Críticas
Críticas.. Recorro aqui a uma lítotes
lítotes:: não
deixa de ser sintomático, absolutamente necessário e, ao mes-
mo tempo, redundante que haja, neste momento, ainda tantos
discursos em torno da crise, visto que no Ocidente pelo menos
(e a questão geopolítica aqui não é supérflua), desde que nos
entendemos por “modernos”, há críticas acerbas em função das
muitas crises.
Desse modo, em vez de abordar o vastíssimo tema “críti-
co”, em seu duplo sentido, diretamente, prefiro optar por um
desvio e explorar um assunto que me tem assediado cada vez
mais, com e mais além da formulação nietzschiana: o problema
do niilismo hoje.
hoje. Interessa-me, em particular, conforme já anun-
ciado no título, pensá-lo a partir das artes. E essa palavra deve
ser entendida em seu sentido amplo, englobando aos menos as
artes visuais (pintura, cinema, vídeo, artes plásticas) e as ver-
bais (literatura, ensaio, biografia). Sempre achei enigmática a
distinção, tão corrente em discursos acadêmicos e jornalísticos,
entre escritores, de um lado, e artistas, de outro, levando sub-
repticiamente a entender a literatura como não pertencendo ao
campo das artes, mas no máximo como sua prima empobrecida
ou sua irmã bastarda.
Ora, a questão do niilismo nas artes só pode começar a ser
entendida (e é de esboço que se trata de ponta a ponta nesta fala-
escrita) se se articulam as diversas linguagens artísticas, como
As artes e o discurso da crise 251

foram moldadas pelas vanguardas históricas (cubismo, futuris-


mo, dadaísmo e surrealismosobretudo) e reformatadas ao longo
do século XX (um século pleno de crises), atingindo a vã e por
definição transitória pós-modernidade, ora finda, até chegar
a este nosso crítico século XXI. De modo que solicitaria que,
onde se lê niilismo, leia-se crise, embora essa substituição (ou
suplementação, como diria Derrida), não seja anódina. Quan-
do um termo tão aparentemente destrutivo (como o niilismo)
desloca outro de natureza tão mais destrutiva e transformadora
(como a “crise”), é porque a força que move um discurso é a
mesma que alimenta seus pretensos objetos. Noutras palavras,
só consigo falar da crise e do niilismo, com alguma legitimida-
de, do “fundo de um naufrágio”, como sentenciou há mais de
um século Mallarmé em seu Um lance de dados (2004, p. 369).
Um naufrágio que perpassa “uma noite suave das coisas”, como
declarou Bispo do Rosário (cf. Denizart, 1982), “antiartista”
que aqui ficará como referência não desenvolvida. Abordarei,
então, o niilismo do fundo crítico de um naufrágio.
Dentro da noite veloz das coisas, no fundo de um nau-
frágio, é assim que gostaria de traçar o esboço não de um vasto
painel, pois me faltam o talento e o gosto para os panoramas
históricos, mas sim de detalhes que me chamam a atenção
no discurso da crise e nos mais arrevesados (enviesados tam-
bém) discursos niilistas. Esses traços, que vou tentar minima-
mente levantar a partir de sujeitos-objetos que logo nomearei,
devem ser entendidos como traços efetivamente diferenciais.
Toda analogia que acaso advenha ao discurso será menos para
252

gerar aglutinações do que para ressaltar dissimilitudes. Analo-


gias normalmente servem para aproximar diferentes a partir de
traços comuns, mas, ao fim e ao cabo, as dessemelhanças devem
preponderar – ao menos, é o que pretendo aqui. É essa prudên-
cia metodológica que evita a redução dos exemplos singulares
ao “estudo de caso”, os quais acabam por reconduzir o discurso
crítico à clínica, transformando o texto da crise num pseudo-
divã, no qual repousariam casos-limites, aqueles pacientes ditos
incuráveis.2 Aqui desejaria suspender o paradigma terapêutico
e repropor uma ateoria do esboço – esboço de uma impossí-
vel teoria niilista,
niilista, a qual se anularia a si mesma no momento
em que tentasse se articular. Motivo pelo qual passo direto aos
exemplos singulares que me inspiraram a escrever e a falar nesta
nossa noite suave das coisas.
Os autores que comentarei estão entre os mais consagra-
dos da atualidade. São dois estrangeiros com livros traduzidos
e bem divulgados em diversos países, tanto quanto costumam
frequentar de inúmeros festivais e feiras literárias. Trata-se do
português Gonçalo M. Tavares e do catalão Enrique Vila-Ma-
tas, representantes até certo ponto do que melhor literariamen-
te se faz na Península Ibérica. Falarei a partir de dois de seus
livros mais emblemáticos, respectivamente, segundo a ordem
de nomeação, os joycianos Uma viagem à Índia e Dublinesca
Dublinesca..
A epígrafe de Macedonio Fernández apenas nos adverte que
muitas das problemáticas ditas contemporâneas (até bem pouco
2
Este texto entretece um diálogo silencioso com o livro Crítica e clínica, de Gilles
Deleuze, que tive o prazer de ler quando acabara de sair em 1993 na França.
As artes e o discurso da crise 253

tempo nomeadas como “pós-modernas”) compareceram desde


cedo na modernidade novecentista, embora com outra modu-
lação. Todavia, é esse trânsito entre modernismo agora clássico
(da primeira metade do século XX) e modernidade tardia (da
segunda metade do mesmo século até o atual) que desejo hoje
esboçar a partir do tema pouco ilustre do niilismo, com ou sem
referência a Nietzsche. Antes de continuar, retomo literalmente
as últimas palavras da epígrafe roubada a Fernández: “O Não-
Existente-Cavaleiro; é dotar uma obra de arte do personagem
necessário para que os outros ostentem sua existência; o único
não existente personagem,
personagem, que funciona por contraste como vi-
talizador dos demais” (Fernández, 2010, p. 8, grifos do autor).
Talvez esteja aí sintetizada uma das funções elementares da arte
modernista (visual e verbal), que se desdobra na contempora-
neidade: dar vida ao nada, criando inexistências ficcionais, para
que, por contraste, os outros personagens que somos nós todos
ganhem vida. Seria esse talvez o nada que é tudo pessoano, ou-
tro inventor de inexistências singulares: “O mytho é o nada que
é tudo. [...]/ Este, que aqui aportou,/ Foi por não ser existindo./
Sem existir nos bastou” (Pessoa, 1983, p. 6). Exemplos de tais
singulares inexistências seriam também as muitas personas que
inventou (ou que o inventaram) e que singelamente batizou
como “heterônimos”. Recorrerei, portanto, a algumas “inexis-
tências ilustres” para falar do niilismo como crise que acomete
os assim nomeados artistas, que inventam mundos no mundo:
Tavares e Vila-Matas, tendo como pai ancestral um certo ine-
xistente cavaleiro chamado Marcel Duchamp.
254

O niilismo artístico
O melhor de Enrique Vila-Matas e de Gonçalo Tavares
é o refinamento literário de que se revestem suas invenções.
O pior desses dois autores é o epigonismo de que também se
reveste parte de sua produção. Não por acaso os dois livros
que abordarei (tocando realmente apenas a borda, a beirada,
sem ter espaço de avançar mais) tomam Joyce como ponto
de partida. Há uma espécie de cinismo que consiste em repe-
tir muitas vezes o mesmo, sem dar um passo adiante, num
modo paralisante de emulação. O melhor de ambos é quando
conseguem deslocar o modelo joyciano, rompendo até mesmo
com a ideia de modelo – e, consequentemente, com a ideia de
representação. Neste ponto, gostaria de fazer uma distinção
entre emulação clássica e emulação pós-romântica. Sabemos
que até o século XVIII imperava no Ocidente o procedimento
emulatório, em que se partia da imitação dos antigos, a fim
de aperfeiçoá-los. Já na emulatio latina havia uma ideia de ri-
validade entre o modelo e seu epígono, mas o modelo como
ideal permanecia. Na verdade, cópia e modelo eram movidos
por um mesmo ideal de perfeição que só o exercício contínuo,
dentro de uma linhagem tradicional, poderia levar a alcan-
çar. Sabe-se também que, a partir do fim do século XVIII, o
paradigma emulatório começa a ser abalado em seu princípio
mesmo. Não é que a emulação não seja mais possível; o que se
tornou impossível foi o gesto da emulação clássica de cultuar
os mestres do passado como modelo para alcançar um ide-
al. O diálogo com o passado continuará (basta lembrar cer-
As artes e o discurso da crise 255

to pendor romântico pela estética medieval, pelo gótico, por


exemplo), mas de maneira descontínua e não programática
ou ortodoxa. Pode-se dizer que a estética romântica inventou
o antiprograma, embora, sobretudo no século XX, esse anti-
programa tenha se tornado um novo programa, ou seja, um
novo modo de emulação. Isso levou a estética da ruptura à
exaustão, dentro de uma crise muito bem mapeada por Octa-
vio Paz (1984).
No fim do século passado, o pós-modernismo represen-
tou uma tentativa de retomar o diálogo programado com o
passado (rompendo, assim, com o antiprograma modernista),
possibilitando novas formas de emulação, cujo exemplo máxi-
mo se tornou o pastiche. É certo pastichismo agônico que se
pode perceber no pior de Vila-Matas e de Tavares. Um pasti-
chismo que, aliado a certo cinismo, gera uma espécie de epigo-
nismo decadentista contraditório com relação à abertura de um
novo século e de um novo milênio. Isso porque o decadentismo
se aplica milhormente (para falar como Mário de Andrade) aos
fins de século. A saída do círculo decadentista seria a passagem
de um niilismo epigônico, a la Joyce, para um niilismo ativo,
deslocador, como logo veremos. Isso implicaria não lidar com
a história da arte e da literatura (gostaria de pensá-las como
inseparáveis irmãs siamesas) como um playground estético, em
que as formas do passado estão ao alcance da mão como num
hipermercado muito bem servido. É aí que o viés crítico, de
crise inventiva ou reinventiva, se aplica.
256

O eterno retorno sem sair do lugar


Uma viagem à Índia:
Índia: melancolia contemporânea (um iti-
nerário),, de Gonçalo Tavares (2010), é um dos livros mais fas-
nerário)
cinantes e decepcionantes com que se pode deparar um mor-
tal, e isso já é indicado por Eduardo Lourenço no Prefácio.
Roland Barthes, num ensaio clássico dos Essais critiques ((En- En-
saios críticos),
críticos), “Qu’est-ce que la critique?” (O que é crítica?), já
falava do caráter deceptivo da literatura, por ela propor mais
indagações do que respostas (Barthes, 1993, p. 1360). Mas no
caso de Tavares a decepção assume um caráter mais come-
zinho, como resultado de um processo estético que é, antes
de mais nada, histórico. Poder-se-ia chamar Uma viagem à
Índia de o livro das decepções, pois, ao contrário das grandes
epopeias ocidentais, a chegada ao destino não trará o sucesso
esperado ao suposto herói, não por acaso, intitulado Bloom,
em homenagem ao personagem Leopold Bloom, do Ulisses Ulisses,, de
Joyce. Há, sim, um suceder de episódios estapafúrdios (coisa,
aliás, congenial à épica), mas que redundarão na desilusão que
é a Índia para o lusitano de hoje. Não o país sonhado, mas
um mesmo suceder de equívocos entre a pequena “razão viril”
(Mallarmé, 2004, p. 379) de Bloom e a cultura do outro. Em
certo sentido, é uma viagem tão deceptiva para o navegante
ocidental quanto a Índia atual, com seus estupros e violências
contra as mulheres, como tem sido amplamente divulgado
pela imprensa local e internacional. A questão a levantar seria:
qual viagem não é decepcionante se articulada pelo signo da
fantasia, do exotismo e do enriquecimento imediato ou fatores
As artes e o discurso da crise 257

congêneres? Mas Bloom, adverte-nos o narrador ou rapsodo


desde o primeiro Canto (são dez no total, tal como na epopeia
clássica), o “nosso herói” demonstra hostilidade com relação
ao passado e vai em busca de “sabedoria/e esquecimento” (Ta-
vares, 2010, p. 28), em vez de luxo e riqueza para se perpetuar
numa memória infinita, como os verdadeiros heróis.
Motivo pelo qual, talvez, mais do que a decepção, o ver-
dadeiro signo dessa Viagem de ida e volta ao mesmo ponto (a
cidade de Lisboa) é melancolia
melancolia.. Por isso, o subtítulo do porten-
toso volume, publicado entre nós pela lusitaníssima Leya, é o
citado Melancolia contemporânea (um itinerário). O itinerário
desse que voluntariamente é um anti-herói, hostil aos antepas-
sados, seria então uma parábola para a melancolia de hoje. Esta
nos acompanha a todos numa espécie de apocalipse sem fim.
(As manifestações em todo o mundo e, sobretudo, em nosso
país – até o impensável aconteceu, Wall Street, símbolo máxi-
mo do capitalismo, foi ocupada – fornecem o signo e o sintoma
desse apocalipse generalizado, que tanta euforia causa, quanto
melancolia, tédio ou spleen pós-agitações. E a ciclotimia antié-
pica mal parece ter começado...)
Citemos as palavras do ilustre rapsodo:

A infâmia ou o acto heroico não são o ponto final


de nada.
Se o mundo parar de rodar um dia,
o último instante não será bombástico,
mas sim discreto.
258

As grandes instituições como o universo


só terminam com o tédio; morrerão no
momento em que repetirem um hábito
(Tavares, 2010, Canto IX, 5, p. 364, grifos do autor).

Esse canto épico está repleto de aforismos desconcertan-


tes e contrassensuais, como os versos finais dessa quinta estrofe,
do nono canto, um verdadeiro anticlímax. Outro exemplo lapi-
dar: “Ninguém hesita quando está frio e é de noite” (Tavares,
2010, Canto X, 154, p. 451); pode-se fazer uma grande coleção
de antiaforismos. Seria já desconcertante escrever, hoje, um livro
de aforismos, com uma moral mais ou menos velada; todavia,
um livro de desaforismos (para lembrar os chistes do humorista
Millôr Fernandes, que também os nomeava apotegmas, como
os “apotegmas do vil metal”) é duas vezes mais desconcertante.
Como se a única moral possível na contemporaneidade fosse cí-
nica: já não dá para sermos sombrios após o chamado “século das
catástrofes”, o passado. Alegres e ditirâmbicos, tampouco é ima-
ginável num tempo de agudização da crise moderna; como se es-
tivéssemos numa eterna crise terminal, a crise das crises, cujo fim
no entanto se adia indefinidamente. O “cinismo”, tomado em
sua etimologia,3 seria um antídoto para o tédio que nos constitui
3
Segundo o Houaiss (2014), “fil doutrina filosófica grega fundada por Antístenes
de Atenas (444-365 a.C.), que prescrevia a felicidade de uma vida simples e natural
por meio de um completo desprezo por comodidades, riquezas, apegos, convenções
sociais e pudores, utilizando de forma polêmica a vida canina como modelo ideal e
exemplo prático destas virtudes”. Vem do grego: kunismós,oû – “o pensamento dos
filósofos cínicos”, de kúōn,kunós – “cão”, pelo. lat. tar. cinismus,i – “id.”; f. hist.1836:
cynismo.
As artes e o discurso da crise 259

e nos ameaça em permanência, pois, reza o evangelho segundo


Tavares, por mim grifado: “As
“As grandes instituições como o universo/
só terminam com o tédio; morrerão no/ momento em que repetirem
um hábito”.
hábito”. O hábito, a repetição, numa só palavra, a identidade
do que somos e do que é o próprio universo, é que trará a morte.
Morreremos todos, um dia, por causa de nosso tédio habitual,
sucumbindo num suspiro – diante do nada. Ou antes, rumo ao
nada: a verdadeira Índia, o verdadeiro Macau, a rota revelada das
especiarias – é para o abismo do caos que leva. Isso é o que também
sublinha Eduardo Lourenço em seu entusiasmado, quase eufóri-
co, prefácio, em contradição flagrante com o espírito da obra que
apresenta: “Uma viagem no coração do caos” (cf. Tavares, 2010,
pp. 5-16). Como se o crítico precisasse legitimar entusiasmada-
mente a obra de seu compatriota, o qual mostra heroicamente
que todos os antepassados de Homero a Joyce, passando por Vir-
gílio e Camões, mas também por nosso amado Jorge de Lima,
estavam redondamente equivocados, e a História seria a história
desse erro. Pois o futuro da Terra e do Universo é quadrado, a
rota leva ao caos e não à ordem como sempre sonhou o Ociden-
te com sua “pulsão imperial” (“pulsão conquistadora”, diz Lou-
renço), para tomar de empréstimo uma expressão de Sloterdijk,
em seu balanço fin-de-siècle acerca do continente europeu, Se a
Europa despertar (2002). Lourenço vaticina, no pórtico de uma
obra que acabara de ser publicada:

Para nós, todas as viagens são ‘viagens à Índia”, e não é o me-


nor dos seus desafios e atrevimentos que o Gonçalo M. Tavares
260

nos proponha repetir a viagem arquétipo à terra onde reali-


dade e sonho se confundem, subvertendo o sentido da viagem
canónica do Ocidente em aventura da ilusão de todas as buscas
divinas e epopeia luminosa da decepção.
decepção. Uma decepção à altura
do desespero e da agonia ocidental no momento mesmo em
que a sua história e meta-história, como pulsão conquistadora
e épica, converteu o Ocidente inteiro e a sua cultura sob o signo
de Ulisses em êxtase vazio, fascinado pelo esplendor do seu presen-
te sem futuro utópico, glosando sem descanso a sua proliferante
ausência de sentido (cf. Tavares, 2010, p. 10, grifos do autor).

Eis o homem que anuncia a história da Europa como


verdade revelada aos povos: tantos séculos de civilização, des-
de Homero, redundam em nada. Assim, três europeus (dois
portugueses, o escritor Tavares e o crítico Lourenço, este como
vate daquele, e um alemão, o filósofo Peter Sloterdijk), unem-se
para nos revelar que o fracasso universal é o sucesso, como suce-
der,, do mundo de hoje. Vivemos, sem nenhuma utopia, as úl-
der
timas horas do fim. Agonicamente, sobreviventes do naufrágio
que há muito ocorreu, no olho do furacão, na ponta extrema
da crise, por assim dizer em estado terminal. Isso é um diagnós-
tico discursivo, nem de longe um certificado de autenticidade.
Trata-se de uma nova versão da Crítica da razão cínica,
cínica, clássico
de Sloterdijk, de 1993, traduzido no Brasil apenas em 2012.
Importa-me mais pensar com esses escritores-pensadores
do que concordar (ou discordar – no fundo, daria no mesmo)
com eles. Qu’appelle t’on penser? (Heidegger, 1992) me parece
As artes e o discurso da crise 261

que continua sendo ainda a questão. Mais além de qualquer


grandiloquência (ou antigrandiloquência: verso, reverso, con-
traverso da mesma moeda simbólica), interessaria ouvir outra
voz, por enquanto quase inaudível. Talvez indecidível entre pre-
sença e ausência de sentido, esse duplo sentido que há muito
nos habita, como grande e verdadeiro hábito. Interessa, de fato,
não resumir a história do Ocidente, do Mundo, do Universo
nem a tudo nem a nada, para continuar prosseguindo. Entre
cúmulo de realização e fracasso entrópico, deve existir uma
possibilidade, que não seja simplesmente uma síntese dos dois.
Mais além de qualquer dialética, há de haver “algo em vez de
nada” (Heidegger, 1991). Ou tudo.
Nas linhas finais de sua antiperipleia, o rapsodo conta
que “A viagem/ à Índia acabou numa rua de Lisboa/nas mãos
de um velho que talvez não saiba ler/e que talvez até goste
de fazer desenhos/por cima de palavras grandiosas” (Tavares,
2010, p. 451). Trata-se de um metacomentário acerca do livro
que acabamos de ler, todo ele feito de “palavras grandiosas” ao
avesso; sua retórica grandiloquente vem de seu fortíssimo tom
antiépico – como de hábito, os opostos se reencontram. Com-
pletamente desiludido com o tudo que é nada, e vice-versa,
Bloom pensa em se matar, atirando-se às águas noturnas do
rio. É salvo por uma bonita mulher, que pergunta se não quer
conversar. Salvo da morte, mas não do tédio também mortal:
“Ele aproxima-se da mulher e o mundo prossegue,/mas nada
que aconteça poderá impedir o definitivo tédio de/Bloom, o
nosso herói” (Tavares, 2010, X, 156, p. 452). Essas seriam as
262

palavras terminais da antissaga, não fosse o fato de o livro con-


tar com um epílogo, uma espécie de gráfico ou mapa geral da
“Melancolia contemporânea (um itinerário)”, em que se dispõe
um traçado das diversas cidades e temas pelos quais nosso anti-
herói passou, incluindo o par “Ocidente/Oriente” – sempre
nessa ordem...
O tédio de Bloom e Tavares (alterego e ego, respectiva-
mente) também habita as artes plásticas contemporâneas. No
Brasil, Leila Danziger tem desenvolvido uma obra voltada para
a melancolia, o tédio e o afro-brasileiro banzo, porém despro-
vida de cinismo. Para isso, recorre ao riquíssimo tema da Va-
nitas, que igualmente comparece em algumas páginas do que
proponho literariamente (sobretudo em Cantos do mundo –
Nascimento, 2011). O trabalho de Danziger, que tem origem
judaica, dialoga fortemente com a problemática do holocausto
ou da shoah (cf. Danziger, 2012). Mas o artista que explorou ao
máximo, inclusive economicamente, o tema de Vanitas e do té-
dio contemporâneo, na vertente cínica, foi sem dúvida Damien
Hirst. Sua caveira cravejada de diamantes é o símbolo máximo
da ostentação e da futilidade diante da morte. Trata-se de pura
metalinguagem: principalmente após o falso leilão para se au-
topromover, ele se tornou o Midas das artes, que tudo faz para
transformar pedras e detritos em ouro, muitas vezes com apelo
ao kitsch mais desenvergonhado, como é o caso de suas colo-
ridíssimas borboletas, que lembram os suvenires das lojas de
Copacabana. Realizado nos dias 15 e 16 de setembro de 2008,
na Sotheby’s de Londres, o famoso leilão foi amplamente di-
As artes e o discurso da crise 263

vulgado pela mídia internacional; praticamente todas as obras


foram vendidas, resultando num montante de 140 milhões de
euros, valor jamais alcançado antes por um só artista no mesmo
leilão. Mais tarde, foi divulgado que grande parte do espetáculo
fora armada pelo próprio Hirst, que fez com que amigos e co-
nhecidos dessem lances para valorizar seus trabalhos. Ao que se
saiba, nem por isso o leilão foi anulado, nem muito menos foi
realizada uma investigação para verificar a veracidade da fraude
e, sobretudo, o valor real da venda. Um autêntico golpe de mes-
tre – na arte de enganar.
Não gostaria, contudo, em hipótese alguma de me ali-
nhar aos detratores da arte contemporânea. Penso que o próprio
Hirst tem obras admiráveis, como aquela que primeiro o con-
sagrou, o tubarão no formol, uma espécie de Vanitas animal.4
E mesmo a caveira diamantina não deixa de ter seu encanto, a
despeito ou por causa do cinismo. O único problema é quando
a produção artística se torna apenas uma linha de montagem
para produzir um artefato atrás do outro, com a ajuda de afai-
nados colaboradores. Tal é um dos temas do livro Isso é arte?,
arte?, de
Will Gompertz (2013), mas existe toda uma bibliografia sobre
o que chamo de querela sobre o fim da Arte hoje.5
4
HIRST, Damien. The physical impossibility of death in the mind of someone living.
Disponível em http://www.damienhirst.com/the-physical-impossibility-of. Acesso
em 10 fev. 2014.
5
A querela sobre “o fim da Arte”, com ou sem referência ao pensamento de Hegel, e so-
bre “a arte contemporânea”, conta já com uma vasta bibliografia, tanto brasileira quanto
estrangeira. A título meramente ilustrativo, assinalaria os seguintes livros (alguns bem
mais consistentes teórica e criticamente do que outros): 1 – ARCHER, Michael (2001);
2 – DANTO, Arthur C. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história
(2006); 3 – DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos: guia enciclopédico da arte
264

O que se perde com a linha de montagem é o lado artesanal


que dá toda a graça à arte, sua gratuidade, como evento de um
dom incondicional. Reduzida a mera mercadoria, a mais um item
entregue ao mercado, a obra de arte converte-se no simples de-
sign,, cuja única função é decorar residências de classe média e alta.
sign
Função, aliás, nobre, porém insuficiente, pois pouco leva a pensar,
como comprova a deslumbrante mansão no Morumbi de Edemar
Cid Ferreira, ex-controlador do falido Banco Santos, repleta de
joias da arte contemporânea. Ou até leva, mas a pensar no vazio
tedioso de parte da arte dita contemporânea – sublinho parte por-
que, por exemplo, um León Ferrari, argentino morto em julho
de 2013, nada tem de mero produtor de badulaques decorativos.
Ao contrário, a partir dos anos 1960, com o risco da própria vida,
Ferrari propôs e expôs uma arte de resistência, cuja obra-prima,
verdadeira Mona Lisa da arte recente é A civilização cristã ociden-
tal..6 A consagração internacional só veio nos anos 2000, quando,
tal
em 2006, recebeu o Leão de Ouro da Bienal de Veneza.

Viagem sem volta a Dublin


Antes de continuar, gostaria de declarar que tenho pro-
funda admiração pelos dois escritores, Tavares e Vila-Matas,
moderna (2003); 4 – FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end
of the century (1996); 5 – GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do
impressionismo até hoje. (2013); 6 – KOCUR, Zoya e LEUNG, Simon (org.). Theory in
contemporary art since 1985 (2006); 7 – SANT’ANNA, Affonso Romano de. Descons-
truir Duchamp (2003); 8 – SANT’ANNA, Affonso Romano de. O enigma vazio (2008).
9 – TRIGO, Luciano. A grande feira: uma reação ao vale-tudo da arte contemporânea
(2009); 10 – WOLFE, Tom. A palavra pintada (2009).
6
FERRARI, León. A civilização ocidental e cristã. Disponível em http://miltonribeiro.
sul21.com.br/tag/leon-ferrari/. Acesso em 16 fev. 2014.
As artes e o discurso da crise 265

que comento aqui de maneira um tanto desabusada. Utilizo,


na verdade, a mesma liberdade irônica, mas espero não cínica,
que eles se dão em suas invenções. Sou movido e comovido pelo
modo antitético como construíram suas obras, levando a litera-
tura (e as artes plásticas) a um impasse, verdadeira aporia para
a qual talvez não haja mesmo saída. Pelo menos, é o que pensa
Lourenço ao comentar um verso de Tavares que ironiza a saída
(Cf. Tavares, 2010, pp. 14-15). Se a própria saída se tornou
objeto de ironia, é porque provavelmente a ideia de abertura e a
solução para o labirinto estariam dentro do próprio labirinto e
não numa porta, nem mesmo numa janela. Quem sabe a única
saída seja adentrar-se mais e mais nos meandros asfixiantes, em
vez de buscar ilusórias passagens para fora, já que todos os vãos
parecem dar para dentro?
Ironia é o termo que Ricardo Piglia utiliza para qua-
lificar (e louvar) o segundo de nossos autores, o escritor
catalão Enrique Vila-Matas: “narrado com sutil ironia” é
a expressão a que recorre Piglia para caracterizar o, para
ele, grande romance que se chama sintomaticamente Du-
blinesca (Vila-Matas, 2011a), fazendo ecoar de pronto o
Dublinenses,, coletânea de contos de James Joyce. Antes de
Dublinenses
continuar, lembro que Vila-Matas ficou famoso no Brasil
primeiramente pela tradução de seu Bartleby e companhia
(2005), em que indexava todos os escritores que foram
acossados pelo mal de Bartleby, o da desistência literária.
Trata-se dos escritores do não, cujo eminente representante
brasileiro (não citado no livro de Vila-Matas) seria Raduan
266

Nassar. Já no plano internacional, Rimbaud é o clássico dos


clássicos quando se trata de abandonar uma promissora (no
caso dele, apesar de tudo realizada) carreira literária. É sin-
tomático também que Piglia nessa mesma apresentação, que
constitui a larga orelha do livro, diga que os romances (ou
não romances) de Vila-Matas, autor cujos livros são sempre
muito aguardados, parecem constituir “uma única obra em
que se narra – de diferentes ângulos – a história imaginária
da literatura contemporânea”. Eis o romancista convertido
em historiador, restando saber se o adjetivo “imaginária”
nobilita ou desqualifica a tarefa do investigador dos fatos
tidos e acontecidos. De qualquer modo, ser o arquivista do
contemporâneo literário não parece papel de pouca monta; e
que isso seja dito no pórtico – ou melhor, nas abas – de uma
obra que é a supraessência da metanarrativa redobra a sinto-
maticidade do próprio texto, tanto quanto da crítica que o
acompanha, ou seja, a orelha de Piglia, pespegada ao volume
de Vila-Matas. Como se (eis a ficção) o metanarrativo se
tivesse convertido, no mínimo desde Borges, mas Cervan-
tes seria o ancestral mais direto dessa linhagem – se tivesse
convertido no próprio labirinto do contemporâneo literário.
A impossibilidade de sequer poder imaginar a saída, em ou-
tras palavras, o diagnóstico de crise absoluta que se instala
quando (segundo Lourenço) a própria ideia de saída se torna
derrisória, para não dizer risível (e é o riso e o sorriso dessa
história toda que me interessa), essa impossibilidade é o de-
safio para o escritor (ou crítico) que deseje acrescentar uma
As artes e o discurso da crise 267

nota de rodapé que seja à imensa enciclopédia intitulada


História da Literatura Contemporânea, cujo autor ou edi-
tor-mor seria o ilustre Enrique Vila-Matas. Aliás, um autor
facilmente pastichável, e pelo menos dois livros já foram pu-
blicados no Brasil tomando-o como argumento principal.7
Saiamos um pouco do campo algo abstrato das conside-
rações gerais e adentremos minimamente o território movediço
de Dublinesca e seu ironicamente melancólico personagem Sa-
muel Riba, no limite do cinismo. A coincidência de prenome
com o também irlandês Samuel Beckett, decerto, nada tem de
casual, sendo antes da ordem do que um dia Derrida chamou
de clandestinação (cf. 1980, p. 42) o destino que clandestina-
mente se imiscui nos assuntos do acaso. A escolha do nome
do personagem já de algum modo traça e retraça seu destino,
nesse outro itinerário antiépico e profundamente melancólico.
A aproximação com a obra de Beckett também é assinalada por
Piglia. Ironia, melancolia – em suma, crise e razão cínica, eis os
temas e os termos de nosso ora adiantado percurso.
Tanto Tavares quanto Vila-Matas pendem ora mais
para o humor, ora mais para a ironia, conforme os humo-
res do momento. Mas, de uma ou de outra forma, não pode
faltar melancolia nos escritos de ambos. Qualquer um dos
livros de Vila-Matas – pelo menos os que li até aqui nas tra-
duções da Cosac & Naify, e que não representam sua obra
completa – se assemelha a um tomo inventivo de teoria ou
7
Se um de nós dois morrer, de Paulo Roberto Pires (2011), e Conversas apócrifas com
Enrique Vila-Matas, de Kelvin Falcão Klein (2011).
268

de crítica literárias. Abundam comentários sobre escritores e


livros, como se – enquanto bom discípulo de Mallarmé e de
Blanchot – o universo todo existisse para acabar em literatura,
e a única vida de fato legítima só pudesse se dar via ficção.
Tenho a impressão – a se confirmar com uma boa abordagem
comparada intra e intertextual – que sobram referências e lei-
turas e falta experiência nesse tipo de ficção liminar. Ficção
do limite em que tudo tem depassar por algum tipo de escrita
literária. Como se, igualmente, a biblioteca de Borges deslo-
casse e substituísse em definitivo aquilo que até bem pouco a
física ainda tentava descrever como o antigo Universo, atu-
almente em rota de conclusão – para o Nada. A um ponto
tal que um de seus últimos volumes traduzidos entre nós, o
referido Dublinesca
Dublinesca,, se passa em torno do fim da vida de um
editor fracassado. Embora tenha “apenas” 60 anos de idade,
a sensação que se tem é de que Samuel Riba, ex-editor e ex-
alcoólatra, não viverá ainda por muito tempo. Tal como a lite-
ratura de que cuidou a vida inteira, ele se encontra em estado
de crise permanente, rumo a um melancólico fim. Parece que
essa literatura se esforça também em provar que todo fim é
melancólico, que não há sabedoria na velhice, e que, como
bem descobre Rodrigo S. M., o narrador de A hora da estrela,
estrela,
de Clarice Lispector, todo gran finale é um blefe para escon-
der a tragédia iminente. Vejamos como o narrador de terceira
pessoa, duplo do escritor, descreve, desde o incipit da obra, o
melancólico personagem com quem havemos de conviver por
mais de trezentas páginas de pura literatura:
As artes e o discurso da crise 269

Pertence à estirpe cada vez mais rara dos editores cultos, li-
terários. E, comovido, assiste todos os dias ao espetáculo de
como o ramo nobre de seu ofício – os editores que ainda leem
e que sempre foram atraídos pela literatura – vai se extinguin-
do sigilosamente, no começo deste século. Teve problemas há
dois anos, mas soube fechar a tempo a editora que, no fim das
contas, mesmo tendo obtido um notável prestígio, caminhava
com assombrosa obstinação para a falência. Em mais de trinta
anos de trajetória independente, aconteceu de tudo, sucesso,
mas também grandes fracassos. A falta de rumo da etapa final
ele atribui a sua resistência a publicar livros com as histórias
góticas da moda e outras bobagens, e dessa forma esquece par-
te da verdade: que nunca se distinguiu por sua boa gestão eco-
nômica e que, além disso, talvez pudesse ter sido prejudicado
por seu fanatismo desmesurado pela literatura (Vila-Matas,
2011a, p. 11).

Trata-se de um o começo bastante conclusivo, para não


dizer terminal. Tem-se, de pronto, o fim desde o começo, o fim
inscrito no início. No princípio, era o fim... O que resta a dizer
depois disso? Quase nada. É o que vou continuar tentando:
falar sobre esse quase que ainda resta, a despeito de nada e de
tudo, que, como visto, são coisas equivalentes nesse horizonte
de liquidação literária...
Riba, tal como rivage
rivage,, palavra que aparece no primeiro
capítulo, como citação do livro mais famoso de Julian Gracq,
Le rivage des Syrtes [O litoral das Sirtes] – riba é a margem, a
270

beira, o litoral, se quiserem, o limite.8 O editor vive o momento


posterior à falência de sua pequena e cult editora, como signo
mesmo do fim da “galáxia de Gutenberg”, metáfora astronô-
mica e gráfica bastante pertinente com relação ao propósito do
livro. Qual, seja, provar que seu autor, Vila-Matas (como to-
dos nós), travestido em seu personagem-editor Samuel Riba,
chegou demasiado tarde ao banquete das musas, perdendo até
mesmo a sobremesa e ficando apenas com os restos e os des-
pojos da literatura. As grandes obras-primas da humanidade já
foram escritas, seja na Antiguidade Clássica, seja no Renasci-
mento e depois, seja na Modernidade primeira e segunda (entre
os séculos XVII e XX). Aos tardomodernos do século XXI, resta
apenas se deliciar com as sobras, requentando o que resta do
inspirado banquete e vertendo o novo apocalipse do final dos
tempos. Como diz de Riba seu pai-criador, num outro autoco-
mentário metalinguístico: “Tem uma imagem algo romântica
de si mesmo e vive numa permanente sensação de fim de época
e fim de mundo” (Vila-Matas, 2011a, p. 11).
A um ex-editor que vive desse modo póstumo, só resta
então escrever teorias
teorias,, e é o que acaba fazendo numa viagem
fracassada a Lyon, na qual, em vez de ir ao encontro editorial
para o qual foi convidado, fica no quarto do hotel escrevendo
uma teoria geral do romance, a partir do há pouco mencionado
O litoral das Sirtes (obra considerada ultrapassada), de Gracq.
8
O Houaiss fornece a seguinte etimologia de riba: “lat. rīpa,ae ‘margem (em geral
de rio), costa, litoral’; ocorre a f. ripa; ver rib-; f. hist. sXIV rryba, 1624-1649 riva”.
Arribar é chegar à riba, à margem, à costa, ao litoral, tal como arriver. Já rib-: “antepo-
sitivo, do latrīpa,ae ‘margem (em geral de rio); costa, litoral’ [...] ”.
As artes e o discurso da crise 271

Mas, depois que escreve a teoria, cujos princípios logo citarei,


ele se dá conta de que teorias são feitas para serem jogadas fora,
como coisas inúteis.

Foi embora com a plena convicção de que tudo o que havia


escrito e teorizado em torno do que devia ser um romance não
havia sido mais que uma ata erigida com o único propósito
de se livrar de seu conteúdo. Ou, melhor dizendo, uma ata
erigida com o propósito exclusivo de confirmar que a melhor
coisa do mundo é viajar e perder teorias, perdê-las todas (Vila-
-Matas, 2011a, p. 16).

Eis um comentário autoirônico, bem-humorado e me-


lancólico (tudo isso a um só tempo), cínico até, que serve para
entender a literatura de Vila-Matas como uma enciclopédia de
teorias, cuja única utilidade é serem lançadas à lata de lixo uma
vez formuladas. Isso possibilita a seu autor viajar, em seguida,
mundo afora como um escritor de... ficções teóricas! As fra-
ses dessa última citação, sobretudo o período final, são todas
aforismos, formulações teóricas mal disfarçadas em comentário
narrativo. Nesse sentido, vale a pena citar também os cinco ele-
mentos de sua teoria geral para o romance futuro (desnecessário
dizer que a narrativa vai logo em seguida dispensá-los como
inutilidades): “intertextualidade; conexões com alta poesia;
consciência de uma paisagem moral em ruínas; ligeira superio-
ridade do estilo sobre a trama; a escrita vista como um relógio
que avança” (Vila-Matas, 2011a, p. 15).
272

Essa teoria denegada pela própria narrativa vai estar na


base do argumento principal do romance DublinescaDublinesca,, que é,
desde o título, uma referência a Joyce e à cidade onde nasceu,
Dublin. Autor e cidade do monumento por excelência do alto
modernismo, o Ulisses
Ulisses.. Adicto convicto à literatura, Riba reúne
alguns amigos para com ele darem o “salto inglês”, numa viagem
quase inútil a Dublin para celebrar os funerais da alta literatura,
no simbólico 16 de junho, como se sabe o internacionalmente ce-
lebrado Bloom’s Day.9 A celebração coincidirá com o enterro da
velha prostituta, a própria literatura, numa paródia intencional
do poema “Dublinesque”, do poeta inglês Philip Larkin, o qual
aborda as exéquias de uma velha prostituta, num cortejo de que
participam apenas suas companheiras de infortúnio. Qualquer
semelhança com o meio literário de hoje é absolutamente inten-
cional... Depressivo, para Riba, o fim de uma época coincide com
a ascensão de outra, a era digital, a qual não é saudada com entu-
siasmo, mas com irônica e melancólica desconfiança. Como se o
enterro definitivo da tumultuada tradição literária fosse sua fran-
ca digitalização em curso, a passagem literal de uma para outra
vida, com o fim apocalíptico da galáxia de Gutenberg.
A biblioteca dos grandes autores, bem como as inúme-
ras referências cinematográficas e da cultura pop, transforma-se
numa imensa fantasmagoria, na qual os ancestrais parecem co-
brar de Vila-Matas, e de nós leitores e/ou escritores, um corpo
substancial onde encarnar. Numa passagem em que parodia “a
9
Bloomsday é uma homenagem internacional ao dia de Leopold Bloom: 16 de junho
de 1904.
As artes e o discurso da crise 273

morte do autor” (uma catástrofe para o futuro editor que Riba


pretendia se tornar) como frágil moda francesa e dos descons-
trutores americanos, o narrador faz um personagem que cruza
com o à época jovem Riba dizer “O autor é o fantasma do edi-
tor” (Vila-Matas, 2011a, p. 278).
Misto de elegia e paródia, tudo em Dublinesca não é para
ser levado muito a sério. Do contrário, corre-se o risco de trair o
espírito ou, melhor, o espectro da obra, perdendo-a de imediato
com uma boa teoria (esquecendo, assim, “o sagrado instinto de
não ter teorias” do altamente teórico Fernando Pessoa/Bernar-
do Soares, 1982, p. 411). O réquiem da era de Gutenberg e o
canto profano da era digital só podem se revelar como paródia
paródia,,
já que numa época de farsas sucessivas não há mais como escre-
ver nem muito menos encenar tragédias:

A Riba não escapa que é característico da imaginação se encon-


trar sempre no fim de uma época. Desde que se conhece por
gente ouve dizer que nos encontramos num período de crise
máxima, numa transição catastrófica em direção a uma nova
cultura. Mas o apocalíptico sempre existiu em todas as épocas.
Encontramo-lo, para não ir mais longe, na Bíblia
Bíblia,, na Eneida
Eneida..
Existe em todas as civilizações. Riba entende que no nosso tem-
po o apocalíptico só pode ser tratado como paródia. Se che-
garem a celebrar aquele funeral em Dublin, ele não poderá ser
outra coisa senão uma grande paródia do pranto de algumas
almas sensíveis pelo fim de uma era. O apocalíptico exige ser
tratado sem excessiva seriedade (Vila-Matas, 2011a, p. 115).
274

Dito de outro modo, por mais grave que seja, talvez por
isso mesmo, esse gênero desvelador que é o apocalíptico não
é sério, pelo menos na pena de autor. Em seguida, comenta
que nossos antepassados tinham a mesma sensação que nós,
de viverem uma situação “terrível”, de declínio da civilização e
iminente fim de mundo. E continua, num discurso indireto li-
vre, reproduzindo os fiapos de pensamento de seu personagem:

Qualquer crise é apenas, no fundo, a projeção de nossa an-


gústia existencial. Talvez nosso único privilégio seja simples-
mente estarmos vivos e saber que vamos morrer todos juntos
ou separados. Enfim, pensa Riba, o apocalíptico tem um
verniz romântico esplêndido, mas não há como levá-lo a sé-
rio, porque na realidade, se olho bem, o que me oferece é o
alegre, rotundo e feliz paradoxo de um funeral em Dublin,
ou seja, me oferece aquilo de que mais ando necessitado nos
últimos tempos: ter algo para fazer no futuro (Vila-Matas,
2011a, pp. 115-116).

Observo, de passagem, que, tal como em Tavares, a narrati-


va se trama com inúmeros aforismos travestidos de simples comen-
tários. No trecho citado, encontra-se esboçado um belo fragmento
de invenção da razão cínica. O cinismo está em constatar que o
drama em cena é o avesso de uma tragédia, pois tem um fundo
burlesco,, assim nomeado nesse verdadeiro não romance, pois nada
burlesco
de muito importante ou decisivo para a história da humanidade
acontece. Fútil como as coisas excessivamente preciosas, mas de
As artes e o discurso da crise 275

uma futilidade densa, longe de tíbia, mesmo assim tendente sem


dúvida alguma para o nada.
Essa “síndrome do nada” (a expressão é minha, e pode
servir como insígnia de toda a produção de Vila-Matas) tem
um predecessor ilustre. Não por acaso, Marcel Duchamp é
uma das referências da novela de Riba e, decerto, a principal do
pequeno volume, já mencionado, sobre a “literatura portátil”
(Vila-Matas, 2011b). Duchamp tem sido acusado, não sem razão, de
ser uma espécie de patrono da destruição das artes, atualmente em
curso de finalização. Certamente, ele não foi o inventor da arte mo-
derna ou da arte de vanguarda que atravessaria o século XX como
um bólide (Oiticica), pois esse mérito cabe provavelmente a Picasso
e Braque, ao introduzirem elementos não pictóricos na pintura, pro-
vocando a “explosão cambriana” que alteraria radicalmente o itine-
rário das artes nos novecentos. Porém, com sua postura francamente
niilista, Duchamp encarnou como ninguém a figura do antiartista,
aquele que, com seus ready-mades
ready-mades,, promoveu o não artístico à con-
dição de (não) arte. A partir de então, o valor da arte deixava em
definitivo de ser um valor de culto, para recorrer à terminologia de
Walter Benjamin (1996), e assumia seu valor de exposição – valor
este em ascensão desde, pelo menos, os salões do século XIX.
Com Duchamp, é (anti)arte aquilo que o (anti)artista, o
marchand ou o galerista expõem como arte, e a crítica e o público
reconhecem como tal. A complexidade está em que até mesmo
a recusa de uma obra, considerada como não artística pode ser
consagratória, auratizando-a em definitivo com o valor de culto
e de exposição, indecidivelmente. Tal foi o caso escandaloso de A
276

fonte (1917), que já foi considerada a obra mais influente do século


XX. Censurada em 1917 na exposição da Sociedade dos Artistas
Independentes em Nova York, da qual Duchamp era um dos cura-
dores, tornou-se um objeto-fetiche, a um ponto tal que, mesmo
tendo seu original desaparecido, seis novas “cópias” foram criadas
posteriormente e assinadas por seu suposto autor, “M. D”.

Inconcluindo
Nietzsche encerra sua Genealogia da moral demonstrando
como o ideal ascético pôde triunfar, pois deu um sentido ao
animal humano. Embora profundamente niilista, o ideal as-
cético é ainda uma vontade, uma força que se volta contra a
própria vida.

Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente


todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação:
esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais
ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mes-
ma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se
do que seja aparência, mudança, morte, devir, desejo, anseio
– tudo isso significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade
de nada,
nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fun-
damentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma
vontade!! E, para repetir em conclusão o que afirmei no iní-
vontade
cio: o homem preferirá ainda querer o nada, a nada querer...
querer...
(Nietzsche, 1987, pp. 184-185).
As artes e o discurso da crise 277

A esse niilismo desolador e redutor da experiência vital


em tudo o que comporta de riscos, A Vontade de poder opõe
outro niilismo, o ativo (cf. Nietzsche, 2008). Crítico com rela-
ção ao niilismo vigente, que no fundo expressa a decadência da
cultura europeia, o niilismo ativo da vontade de poder prepara
a transvaloração de todos os valores, como advento do “além do
humano”, após uma profunda crise. A pergunta final, que deixo
em aberto, como uma lacuna a ser preenchida pelos possíveis
leitores, é saber se cada um desses artistas plásticos (Duchamp,
Oiticica e Hirst, entre inúmeros outros) ou artistas literários
(Baudelaire, Tavares, Vila-Matas, idem) se posicionou ou se po-
siciona mais ao lado do niilismo passivo ou do niilismo ativo.
A resposta, se houver, é de enorme complexidade, podendo-se
imaginar inúmeras avaliações com relação a cada produção in-
dividual e com relação a elas mesmas entre si. Provavelmente,
nenhum artista é “puramente” passivo ou ativo, encontrando-se
combinações insuspeitas entre uma e outra forças, por vezes na
mesma obra ou antiobra, por vezes na mesma frase.

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Entre devaneios, sonhos e delírios: de
Carolina Maria de Jesus a Estamira

Daniele Ribeiro Fortuna1

Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, em Sacramento,


no interior de Minas Gerais. Com aproximadamente 30 anos, foi
para São Paulo, onde exerceu várias atividades para sobreviver: tra-
balhou como faxineira de hotel, auxiliar de enfermagem, vendedo-
ra de cerveja, artista de circo e empregada doméstica. Foi também
catadora de lixo. Durante vários anos, retirou do lixo o sustento de
seus três filhos, os quais criava sem a ajuda de ninguém.
Na época em que foi catadora, Carolina vivia na favela
do Canindé, em São Paulo. Durante vários anos, escrevia um
diário, no qual relatava seu dia-a-dia, seus pensamentos, senti-
mentos, sonhos, revoltas, angústias e dificuldades que enfrenta-
va para sobreviver.
1
Professora Doutora do Programa de Pós-graduação em Letras e Ciências Humanas
da Universidade Unigranrio. Bolsista de Produtividade em Pesquisa 1 A Unigranrio/
Funadesp.
284

Ao realizar uma reportagem no Canindé, o jornalista


Audálio Dantas conheceu Carolina Maria de Jesus, que lhe
mostrou seu diário. O jornalista se interessou pelo material e,
em 1960, conseguiu publicá-lo sob o título Quarto de despejo.
despejo.
O livro tornou-se um dos maiores sucessos editoriais do Brasil.
Vários anos depois, em 1996, outros trechos foram organiza-
dos pelos historiadores Robert Levine e José Carlos Sebe Bom
Meihy e publicados no livro Meu estranho diário.
diário.
Carolina tornou-se uma escritora conhecida, tendo sua
obra editada em vários países. Embora, durante um tempo,
tenha alcançado seu principal objetivo, de melhorar de vida,
faleceu em 1977 na miséria.
Quase 30 anos depois, em 2005, é lançado o docu-
mentário Estamira
Estamira,, produzido por Marcos Prado e José Pa-
dilha. O filme mostra um período de aproximadamente dois
anos da vida da personagem que dá nome à produção. Es-
tamira é uma catadora de lixo que trabalha no aterro sani-
tário de Jardim Gramacho, na cidade de Duque de Caxias,
no Rio de Janeiro.
Quarenta e cinco anos separam a publicação de Quarto
de despejo do lançamento de Estamira
Estamira.. Carolina e Estamira vive-
ram em cidades e contextos diferentes, mas suas trajetórias têm
algumas semelhanças. Ambas são o que Bauman (2004, p. 12)
considera “refugo humano”. Viviam à margem da sociedade,
em condições precárias, e tiveram no lixo sua forma de susten-
to. As duas tiveram seu corpo afetado por essa realidade e suas
palavras e gestos demonstram essas sensações.
Entre devaneios, sonhos e delírios 285

Neste texto, o objetivo é analisar como essas emoções se


apresentam no diário de Carolina (apenas o período em que a
escritora trabalhou como catadora de lixo)2 e no filme Estami-
ra,, tendo como foco os devaneios, sonhos e delírios das duas
ra
mulheres. Embora seja possível perceber que Carolina mantém
sua sanidade mental, ela se sente sempre cansada, um “obje-
to fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (Jesus,
1997, p. 33). As pessoas que a cercam vivem entorpecidas pelo
álcool ou atacadas por diversos males físicos. Para escapar dessa
realidade, a escritora relata seus devaneios e sonhos.
Quanto à Estamira, esta parece ter perdido a conexão
com o real. No filme, cenas mostram moscas caminhando
por seu corpo, sem que ela demonstre se dar conta. As falas
de Estamira são delirantes. A personagem acredita ter poderes
especiais e está sempre se referindo aos poderes do “Trocadilo”
e do “controle remoto”. Segundo relatos de sua família ao longo
do documentário, Estamira tornou-se delirante após ter sido es-
tuprada duas vezes. Além de perder a conexão com a realidade,
passou a se revoltar contra Deus.
A base teórica deste texto é a antropologia das emoções,
um campo recente de estudo, que analisa o papel das emoções
na sociedade e sua relação com o discurso. Para esta discussão,
são fundamentais as obras de Rezende e Coelho (2010), Le Bre-
ton (2009) e Foucault (1966, 2012).

2
Aqui não analisaremos Meu estranho diário, pois, nos trechos em que Carolina ainda
vive na favela, não há muitos exemplos de sonhos e devaneios. Nosso foco, portanto,
se limitará a Quarto de despejo.
286

O discurso pode ser utilizado para representar o que qui-


sermos, inclusive nossos sonhos, devaneios e delírios. Estes aca-
bam se tornando parte do real, já que, como considera Foucault
(2012), o discurso é a reverberação da verdade. Nesse sentido,
os sonhos, delírios e devaneios de Carolina Maria de Jesus e
Estamira, respectivamente, são aqui analisados como resultado
e parte de um real, que provoca uma emoção. Emoção esta que
podemos ler nas palavras de Carolina e ver e ouvir por meio da
fala de Estamira.
Para tratar de sonhos e devaneios, nossa base teórica prin-
cipal é Bachelard (2001) – para quem somente a fuga da reali-
dade dá abertura ao belo – e Bastide (1978), que considera que o
sonho é reflexo do real. Com relação aos delírios, estes são abor-
dados a partir das palavras de Estamira. Dialogamos também
com Martins (1996) e sua análise sobre o imaginário onírico.
Por fim, passamos aos sonhos e devaneios de Carolina e
aos delírios de Estamira. Procuramos analisar suas falas e as emo-
ções decorrentes dela. Mas, para chegar até aí, antes é preciso nos
concentrarmos nas emoções e sua relação com o discurso.

A antropologia das emoções e o discurso


Do nascimento à morte, somos tomados por emoções,
que podem variar de acordo com as circunstâncias que nos
cercam. Embora tenham um papel crucial na nossa trajetória,
durante muito tempo, as emoções não foram profundamente
estudadas pela antropologia e pela sociologia até recentemente.
Eram consideradas um tema relacionado com a psicologia.
Entre devaneios, sonhos e delírios 287

Foram os sociólogos clássicos Émile Durkheim e Georg


Simmel, no início do século XX, que começaram a mudar tal
perspectiva. Apesar de seus estudos não tratarem as emoções
como estados sociais, revelam que “há sentimentos que são pro-
duzidos socialmente – nas relações sociais – e que têm efeitos
significativos para as interações e a coletividade de modo am-
plo” (Rezende e Coelho, 2010, p. 13).
Apenas na década de 1970, as emoções passaram a ser
foco de estudo da antropologia. Nesse período, desenvolve-se
nos EUA a abordagem interpretativa, que considera cultura
como “teias de significados transmitidas por símbolos e inter-
pretadas de maneira específica de sociedade para sociedade”
(Rezende e Coelho, 2010, p. 14).
Na década de 1980, o campo conhecido como antropo-
logia das emoções passou a analisar as emoções sob uma pers-
pectiva relativista, segundo a qual os sentimentos são conceitos
culturais que medem e produzem a experiência afetiva. Recen-
temente, o contexto em que se manifestam as emoções também
começou a ser considerado. Nesse sentido, podemos afirmar
que os sentimentos sofrem influência das relações e contextos
sociais em que se encontra o sujeito: “As emoções tornam-se
então parte de esquemas ou padrões de ação aprendidos em
interação com o ambiente social e cultural [...]” (Rezende e Co-
elho, 2010, p. 30). O contexto social e a relação com os outros
sujeitos podem influenciar, portanto, nossas emoções.
Para David Le Breton (2009, pp. 111-112), “o homem
está afetivamente presente no mundo” e “a vida afetiva impõe-
288

se, mesmo que de forma inintencional”. É impossível estar vivo


e não sentir algum tipo de emoção. A emoção é inerente ao ser
humano. Segundo Le Breton, a emoção manifesta-se no corpo,
tem significados culturais e pode relacionar-se com o passado,
o presente e o futuro. Dessa maneira, “o desencadear das emo-
ções é necessariamente um dado cultural tramado no âmago
do vínculo social e nutrido por toda a história do sujeito. Ele
mostra aos outros uma maneira pessoal de ver o mundo e de
ser afetado por ele” (Le Breton, 2009, pp. 117-118). Com isso,
as emoções apresentam uma motivação, que mantém conexão
com o papel do indivíduo na sociedade, suas relações afetivas e
sua história de vida.
Le Breton (2009, p. 117) considera, que as emoções “são
formas organizadas de existência, identificáveis no seio de um
mesmo grupo, porque elas provêm de uma simbólica social,
embora elas se traduzam de acordo com as circunstâncias e com
as singularidades individuais.” Nesse sentido, as circunstâncias
por que passa um indivíduo contribuem para intensificar ou
diminuir o impacto das emoções. A lembrança de uma situação
dolorosa, por exemplo, pode implicar medo quando o sujeito se
vê numa condição parecida à que provocou aquele sofrimento.
Por outro lado, o tempo e a experiência muitas vezes contri-
buem para apaziguar as emoções: o que, na infância, é motivo
de um sofrimento intenso, na maturidade, pode se transformar
em apenas uma suave recordação.
Outro aspecto fundamental no que diz respeito às emo-
ções é a sua expressão. Segundo Le Breton (2009, pp. 126-127),
Entre devaneios, sonhos e delírios 289

“para que um sentimento seja experimentado ou exprimido


pelo indivíduo ele deve pertencer, de uma forma ou de outra,
ao repertório cultual do seu grupo”, pois “as emoções são mo-
dos de afiliação a uma comunidade social, uma maneira de se
reconhecer e de poder se comunicar em conjunto sobre a base
da proximidade social”. Assim, é por meio do discurso que o
sujeito expressa o que sente. Ao compartilhar seus sentimentos,
é capaz ainda de despertar nos outros diversas emoções, como
empatia, pena, asco, felicidade e tristeza. A expressão da emo-
ção parece concretizá-la, torná-la mais palpável.
Para Rezende e Coelho (2010) – referindo-se a Lutz e
Abu-Lughod –, a função do discurso vai além da mera expres-
são. Segundo as autoras, o discurso seria uma fala “que mantém
com a realidade uma relação não de referência, mas sim de for-
mação” (Rezende; Coelho, 2010, p. 78). Nesse sentido, o real
seria formado a partir daquilo que se diz sobre ele. Por isso, “a
emoção seria algo que existiria somente em contexto, emergin-
do da relação entre os interlocutores e a ela sempre referida”
(Rezende e Coelho, 2010, p. 78).
Rezende e Coelho consideram que essa função do dis-
curso relaciona-se ao pensamento foucaultiano, segundo o
qual “o discurso nada mais é do que a reverberação de uma
verdade nascendo diante de seus próprios olhos” (Foucault,
2012, p. 46). Para Foucault, o sujeito anima, com seus atos,
as formas vazias da língua. E, ao fazê-lo, é capaz de conferir
ao discurso um imenso poder: o de representar, nomear, clas-
sificar e explicar.
290

De acordo com Foucault (1966, p. 405), “onde houver


discurso, as representações expõem-se e justapõem-se; as coisas
assemelham-se e articulam-se”. Só se podem conhecer as coi-
sas e sua ordem “através da soberania das palavras” (Foucault,
1966, p. 405).
Para Rezende e Coelho, ao relacionarmos emoção e dis-
curso, é possível se pensar numa “micropolítica da emoção”.
O discurso é capaz de “dramatizar, reforçar ou alterar as ma-
crorrelações sociais que emolduram as relações interpessoais nas
quais emerge a experiência emocional individual” (Rezende e
Coelho, 2010, p. 78). Por isso, “as emoções surgem perpassadas
por relações de poder, estruturas hierárquicas ou igualitárias,
concepções de moralidade e demarcações de fronteiras entre os
grupos sociais” (Rezende e Coelho, 2010, p. 78). Desse modo,
quem tem ‘voz’ – ou seja, quem fala e pode ser ouvido – tem
poder. E, se o discurso tem o poder de estruturar o real, tudo o
que se diz pode ser considerado parte deste, ainda que, muitas
vezes, não corresponda à realidade. Ao relatarmos um sonho,
por exemplo, embora saibamos que este de fato não aconte-
ceu, passa a fazer parte da realidade. E isso acontece não apenas
porque o sonho é passível de ser relatado num discurso, como
também porque, ao ser relatado, ele é o reflexo e o (possível)
causador de emoções.
Carolina Maria de Jesus e Estamira tinham algo em co-
mum: a fantasia. Mas se, para Carolina, a fantasia era devaneio e
sonho, uma fuga passageira da realidade, para Estamira, a fantasia
era delírio, uma fuga quase permanente da vida real. Como são os
Entre devaneios, sonhos e delírios 291

devaneios e sonhos de Carolina e os delírios de Estamira? Como


eles se configuram para formar o discurso e as emoções de ambas?
Antes de responder estas perguntas, é necessário nos de-
bruçarmos brevemente sobre os devaneios e os sonhos, para de-
pois chegarmos aos delírios de Estamira.

Devaneios e sonhos
No diário de Carolina Maria de Jesus, a escritora revela
seus devaneios e sonhos. Embora eles não sejam reais, fazem
parte da realidade da escritora, na medida em que se transfor-
mam em emoções ao serem relatados em discurso e em que são
capazes de proporcionar a ela um sentimento – ainda que pas-
sageiro – de bem-estar. Para María Zambrano (1978, p. 130):

na vida, uma realidade essencial corresponde à palavra. A pró-


pria palavra é real e com ela estamos situados na realidade [...].
Desse ponto de vista, nenhuma palavra é sonhada. [...] Isso
porque na palavra, e pela palavra, o sujeito se faz presente, é a
palavra que cria o verdadeiro presente, o presente real.

Assim, ao se transformarem em palavras, os sonhos e de-


vaneios de Carolina se tornam realidade, transportando-a para
outra vida, para outro mundo. De acordo com Meihy (2002, p.
335), os sonhos para Carolina Maria de Jesus “despontam in-
dicando duas significações: expectativas ou devaneios de quem,
acordada, vislumbrava possibilidades e manifestações oníricas
de quem, dormindo, projetava aspectos fundamentais da reali-
292

dade esperada”. Assim, Carolina sonhava porque desejava outra


vida; vida esta que só era alcançada em suas fantasias.
Os sonhos tomam conta da nossa mente quando dormimos.
São frutos do inconsciente e, embora, muitas vezes, pareçam sem
sentido, apresentam uma estrutura. Bastide (1978, p. 140) afirma
que, segundo a psicanálise, “essas imagens disparatadas, mesmo
quando não podiam ser traduzidas em um relato coerente, não
eram devidas ao acaso, e que o sonho tinha uma estrutura”. Tal es-
trutura, para Bastide, inscreve-se num determinado sistema social,
sofrendo, assim, consequências desse sistema. O autor considera
que não existe uma separação entre o mundo real e o mundo oníri-
co: “De fato, jamais se passa de um mundo a outro, porque se trata
sempre do mesmo mundo: o da noite e o do dia” (Bastide, 1978, p.
147). Isso porque o sonho é reflexo do real.
Os sonhos têm um significado para os habitantes da cida-
de. Segundo Martins (1996, p. 12), “o imaginário do habitante
da metrópole não é um acervo de fantasias. É antes a realidade
pelo avesso”. O cidadão, geralmente, precisa lidar com vários
problemas inerentes à vida urbana: desemprego, baixos salários,
transportes precários, violência, medo etc. Quando sonham,
tais indivíduos entram em contato com os temores e o desen-
canto que buscam evitar no seu cotidiano. Segundo pesquisa
realizada por Martins (1996) sobre o imaginário onírico na ci-
dade de São Paulo, o relato dos sonhos estudados revelou que
a rua é o lugar do temor e a casa, sinônimo de segurança: “Nos
sonhos, a rua está em oposição à casa da família. O lugar públi-
co é um cenário de medo” (Martins, 1996, p. 26).
Entre devaneios, sonhos e delírios 293

Já os devaneios se constituem em produto da nossa ima-


ginação enquanto estamos despertos, em estado de vigília. Se-
gundo Bachelard (2001, p. 11), “o devaneio é um fenômeno
espiritual demasiado natural – demasiado útil também para o
equilíbrio psíquico – para que o tratemos como uma derivação
do sonho, para que o incluamos, sem discussão na ordem dos
fenômenos oníricos”. Para o autor, a função do devaneio seria
contribuir para nossa felicidade, a partir de uma abertura para
um mundo de beleza e poesia.
Para Bachelard (2001, p. 13), “as exigências de nossa fun-
ção do real3 obrigam-nos a adaptar-nos à realidade, a constituir-
nos como uma realidade, a fabricar obras que são realidades”.
Dessa maneira, o devaneio possibilitaria ao sujeito escapar do
real, criando outra realidade, outro mundo.
No devaneio, permanece a clareza de consciência. No so-
nho, não, pois, quando dormimos, não estamos em estado de
vigília. Bachelard (2001, p. 144) afirma que “o sonhador do
devaneio está presente no seu devaneio. Mesmo quando o de-
vaneio dá a impressão de uma fuga para fora do real, para fora
do tempo e do lugar, o sonhador do devaneio sabe que é ele que
se ausenta [...]”.
Bachelard considera ainda que não existe bem-estar sem
devaneio, pois é este que possibilita o “bem-estar de um mun-
do feliz” (Bachelard, 2001, p. 152). É o devaneio que dá ao
indivíduo a ilusão de “ser mais do que ele é” (Bachelard, 2001,
p. 146).
3
Grifo do autor.
294

Tanto o sonho quanto o devaneio possibilitam a fuga


do real. Em nossos sonhos e devaneios, podemos ser quem
quisermos, ter o que desejarmos. É uma fuga necessária para
lidar com as dificuldades da vida. Mas e quando o real se
torna tão insuportável, que não conseguimos lidar com ele?
Em muitos casos, surgem os delírios. Nos delírios, a cone-
xão com o real é perdida, mas, ao contrário do que acontece
quando estamos dormindo, permanecemos despertos – deli-
rantes e despertos. A vida, então, transforma-se num eterno
– um sonho em estado de vigília. E, se o discurso converte o
sonho e o devaneio em real, o delírio já é o próprio real para
quem nele vive.
As condições de vida de Carolina Maria de Jesus eram
precárias, mas as dificuldades parecem se exacerbar para Esta-
mira. O contexto urbano, por exemplo, tornou-se muito mais
cruel. As emoções de uma parecem muito mais intensas na ou-
tra. Carolina mantém seus pés fincados no real, mas Estamira
não. Sua condição é própria de quem delira: de pouca ou ne-
nhuma conexão com a realidade. No delírio, a conexão com o
real se esgarça. A partir dos sonhos, devaneios e delírios revela-
dos no discurso de ambas as personagens, procuramos entender
suas emoções e o significado de suas fantasias.

Do sonho e do devaneio ao delírio: Carolina Maria de Jesus e


Estamira
Carolina Maria de Jesus (1997, p. 19) afirma em seu diá-
rio: “O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto
Entre devaneios, sonhos e delírios 295

preço, residir numa casa confortável.”4 Este tipo de fala é recor-


rente em sua escrita, que, em muitos momentos, oscila entre o
sonho e a realidade: “Eu cato papel, mas não gosto. Então eu
penso: faz de conta que eu estou sonhando” (Jesus, 1997, p. 26).
Na verdade, os sonhos e devaneios de Carolina Maria de
Jesus podem ser entendidos como uma “saída do refugo que
lhe foi dado viver antes do polêmico sucesso causado pelo seu
diário” (Meihy, 2002, p. 333). Eles são a busca de uma emoção
positiva em meio a um cotidiano massacrante.
Carolina também relatava em seu diário devaneios sobre a
beleza do dia, o canto dos pássaros, a natureza, enfim: “Dia das
mães. O céu está azul e branco. Parece que até a Natureza quer
homenagear as mães que atualmente se sentem infeliz por não
poder realisar os desejos dos seus filhos. [...] O sol vai galgando.
Hoje não vai chover. Hoje é o nosso dia” (Jesus, 1997, p. 26).
A escritora parece querer ver beleza onde não há. Seu
discurso reflete a tentativa de encontrar uma sensação de feli-
cidade e beleza numa realidade de sofrimento e precariedade.
Geralmente, seus devaneios terminam com frases que remetem
à realidade, o que acaba quebrando a atmosfera onírica:

[...] O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens va-


gueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves
perpassam conduzindo os perfumes das flores. E o astro rei
sempre pontual para despontar-se e recluir-se. As aves percor-

4
Todos os trechos dos diários de Carolina Maria de Jesus são aqui transcritos fielmen-
te, de acordo com o original.
296

rem o espaço demonstrando contentamento. A noite surge as


estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há varias coisas
belas no mundo que não e possível descrever-se. Só uma coisa
nos entristece: os preços, quando vamos fazer compras. Ofusca
todas as belezas que existe (Jesus, 1997, p. 39).

Outra fantasia de Carolina relaciona-se com as vestimen-


tas ou o local onde mora: “[...] A noite está tepida. O céu já está
salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um
pedaço do céu para fazer um vestido” (Jesus, 1997, p. 28). “Eu
durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que era um anjo.
Meu vistido era amplo. Mangas longas cor de rosa. Eu ia da ter-
ra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las”
(Jesus, 1997, p. 107). A escritora diz ainda:

[...] Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo


cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata
e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim
e eu contemplo as flores de todas as qualidades. [...] É preciso
criar este ambiente de fantasia para esquecer que estou na fa-
vela (Jesus, 1997, p. 52).

Este trecho, mais uma vez, retrata o desejo por uma vida
melhor e a quebra da atmosfera onírica. Revela ainda uma pre-
ocupação da escritora: a aparência. Carolina gostava de se vestir
bem, mas, como estava sempre andrajosa, era em seus sonhos e
devaneios que aparecia com roupas bonitas.
Entre devaneios, sonhos e delírios 297

Os trechos de Quarto de despejo que se referem à realidade


indicam tristeza, revolta, angústia, desânimo, solidão. Mas seus
devaneios mostram outro mundo, de beleza, cores, fantasia, no
qual a escritora se sente bem. Por isso, Carolina diz: “As horas
que sou feliz é quando estou residindo nos castelos imaginarios”
(Jesus, 1997, p. 52).
De acordo com Martins (1996, p. 35), “na vida cotidiana
não se sonha”, pois “o sonhador se descobre completamente des-
provido de vontade própria, de poder sobre suas decisões e sobre
as consequências de suas decisões”. Dessa maneira, Carolina tem
em seus devaneios um lugar em que domina suas vontades. Em
seu diário, suas fantasias revelam a escolha pela beleza.
Ainda que o discurso seja o lugar de concretização do
real – e, portanto, os sonhos e devaneios de Carolina, de certo
modo, eram reais –, por vezes, a vida torna-se tão cruel que o
sujeito não consegue enfrentá-la. Em seu diário, a escritora afir-
ma: “Eu ando tão nervosa que estou com medo de ficar louca”
(Jesus, 1997, p. 104).
Cinquenta anos depois da publicação de Quarto de des-
pejo,, conhecemos Estamira. As semelhanças entre as duas são
pejo
muitas: ambas foram catadoras de lixo, viveram em condições
precárias e tiveram três filhos – uma das filhas de Estamira, in-
clusive, se chama Carolina. Mas, para Estamira, as dificuldades
parecem ter se tornado muito maiores. A cidade onde ela vive é
mais cruel, mais pobre, mais excludente e muito mais violenta.
Estamira precisa enfrentar ainda o que Carolina Maria
temia: a loucura. No diário de Carolina, é possível perceber,
298

como no trecho citado, que a escritora, por vezes, não aguenta a


realidade e tenta, a todo custo, fugir dela. Mas, embora busque
se evadir da realidade, são apenas sonhos e devaneios. Na fala
de Estamira, tal fuga é praticamente completa, principalmente,
quando ela delira.
O filme Estamira mostra alguns momentos da vida de
Estamira Gomes de Souza, uma catadora de lixo, com cerca
de 60 anos, no início da década de 2000, no Rio de Janeiro.
Estamira sofreu vários reveses ao longo da vida – o avô a as-
sediou quando era criança, o pai morreu prematuramente, a
mãe foi internada à força em um manicômio, foi obrigada a se
prostituir aos 17, casou-se por duas vezes com dois homens que
a maltrataram e a traíram, foi estuprada duas vezes –, o que
contribuiu para que ela buscasse formas alternativas físicas e
emocionais de sobrevivência.
Foi diagnosticada como “portadora de quadro psicótico
de evolução crônica, alucinações auditivas, ideias de influência,
discurso místico”.5 No documentário, altera momentos de lu-
cidez com fases de delírio, nas quais fala palavras desconexas e
frases sem sentido. Segundo relatos de sua família, Estamira agia
como uma pessoa que o senso comum consideraria normal até
ser estuprada duas vezes. Antes religiosa, tornou-se descrente e
revoltada com Deus. No filme, sua filha, Carolina, relata que,
um dia, Estamira ficou olhando fixamente para um coqueiro e,

5
Esta definição foi retirada do documentário, no momento em que Estamira mostra
um papel assinado por um psiquiatra, que contém este diagnóstico.
Entre devaneios, sonhos e delírios 299

então, disse: “Isso é que é o poder. Isso é que é real.”6 A partir


de então, Estamira tornou-se delirante. Em alguns momentos,
entretanto, ela é lúcida e capaz de contar em detalhes episódios
da sua vida. A catadora mesmo se define: “Eu sou perturbada,
mas lúcida, e sei distinguir a perturbação”.
Bastide (1978, p. 139) considera que “a maioria de nossas
doenças mentais provém do fato de que não se dá livre curso a
todos esses fantasmas e a todos esses desejos que se encontram
no fundo de nós”. Nesse sentido, é provável que, antes religiosa
e pacata, Estamira encontrou na loucura uma forma de dar va-
zão aos seus demônios interiores.
Os delírios de Estamira estão em torno de três temas:
“sua missão”, o “Trocadilo” e o “controle remoto”. A persona-
gem também se refere muito a Deus, mas suas falas nesse sen-
tido, paradoxalmente, nem sempre são de delírio, mas mais de
revolta, decepção e até nojo. Estamira perdeu a fé em Deus e se
refere a ele com desprezo. Neste artigo, optamos por concen-
trar a análise nos três temas citados, que acreditamos revelar de
modo mais contundente os delírios da personagem.
Numa das primeiras aparições no filme, Estamira afirma:
“A minha missão, além de eu ser a Estamira, é revelar a verda-
de, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e
tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem
os inocentes”. A personagem parece acreditar que há coisas que
somente ela pode perceber – “cegaram o cérebro, o gravador
6
Todas as falas de Estamira foram fielmente copiadas do documentário. Não repetire-
mos aqui a referência bibliográfica do filme, que se encontra na seção de referências.
300

sanguíneo de vocês” –, pois não foi afetada pelos poderes do


que ela chama de Trocadilo:

E o meu, eles não conseguiram, porque eu tô no formato de


gente, carne. Sangue, formato homem, par. Eles não consegui-
ram. [..] A bronca deles é essa, do Trocadilo, do Trocadilo! O
Trocadilo amaldiçoado, excomungado, hipócrita, safado, ca-
nalha, indigno, incompetente. Sabe o que ele fez? Mentir pros
homem, seduzir os homem, cegar os homem, incentivar os
homem e depois jogar no abismo! Por isso que eu tô na carne.
Sabe pra quê? Desmascarar ele com a quadrilha dele todinha.
E derrubo!

Segundo Estamira, as mulheres são “formato homem,


par” e os homens, “formato homem, ímpar”. Tal modo de per-
ceber as pessoas e os delírios da personagem parecem revelar a
revolta dela com os homens, que a enganaram, seduziram e a
jogaram no abismo. Dessa maneira, Estamira parece reviver as
emoções que a acometeram ao longo de sua vida. A conexão
com o real está esgarçada, mas o sentimento permanece vivo e é
retomado a partir de sua fala.
O Trocadilo, que Estamira também chama de “esperto ao
contrário”, parece representar, para ela, ora os próprios homens,
de quem ela tem raiva e nojo – “Eu tenho raiva do Trocadilo, do
esperto ao contrário, do mentiroso, do traidor. Desse é que eu
tenho raiva, ódio, nojo!” –, ora Deus (“Deus é o próprio Troca-
dilo”). Mas a personagem parece também acreditar que detém
Entre devaneios, sonhos e delírios 301

poderes de onisciência e onipresença geralmente atribuídos a


Deus: “Eu, Estamira, sou a visão de cada um. Ninguém pode
viver sem mim. Ninguém pode viver sem Estamira. Eu me sin-
to orgulho e tristeza por isso. Porque eles, os astros negativo,
ofensível, suja o espaço e quer-me. Quer-me e suja tudo”.
Assim, os “astros negativos” – que podem também ser
os homens – querem Estamira por ela saber de tudo e por nin-
guém poder viver sem ela. Parece haver aí, mais uma vez, uma
confusão entre Deus e homem. Sua filha revela que, ao ser estu-
prada pela segunda vez, Estamira suplicou ao criminoso: “Para
com isso, pelo amor de Deus!”. Ao que o estuprador respondeu:
“Que Deus? Esquece Deus”. Daí, essa possível relação entre os
homens e Deus. Suas emoções de vergonha, revolta e impotên-
cia ao ser estuprada parecem ter se voltado contra Deus, trans-
formando-se em delírios em que a própria Estamira assume o
lugar Dele. Estamira está em todo lugar e se confunde até com
a natureza. A personagem diz: “Estamira, Esta mar, Esta ser-
ra. Estamira está em tudo quanto é canto, até meu sentimento
mesmo vê. Todo mundo vê Estamira”.
Outro tema recorrente na fala de Estamira é o que ela
chama de “controle remoto”. Ela explica que existe o “controle
remoto superior, natural” e o “controle remoto artificial” e que
o controle remoto é uma força quase igual à luz. Caberia aos
deuses, segundo ela cientistas técnicos, controlarem esse con-
trole remoto. Esses cientistas seriam deuses e também o próprio
Trocadilo: “Os deuses que são os cientistas técnico, eles con-
trola, ele vê aonde ele conseguiu. Os cientistas, determinados
302

Trocadilos, ele consegue porque o controle remoto não queima,


torce. O cientista tem o medidor que controla igual ao ferro”.
Estamira acredita que o controle remoto tem poderes espe-
ciais sobre seu corpo. Quando sente alguma dor, algum tipo de
incômodo, atribui ao controle remoto, que parece ser um aparato
imaginário dotado de força elétrica: “Ah, o controle remoto... [...]
O controle remoto é uma força quase igual, assim mais ou menos
igual, à luz, à força elétrica, à eletricidade”. Esta força elétrica seria
responsável por atuar diretamente no corpo, provocando certas
reações físicas. Quando arrota, por exemplo, Estamira afirma
que é o controle remoto, assim como quando relata sentir dor.
Em alguns momentos, Estamira confunde tudo – “con-
trole remoto”, “esperto ao contrário” e “astros negativos”:

O controle remoto atacou. Em desde manhã. A noite inteira


perturbando, os astros negativo, ofensível... Eles tá pelejando
pra ver se atinge uma coisa que se chamam de coração meu ou
então a cabeça. Eles tão fodido. Tão poderoso ao contrário, o
hipócrita, o safado, traidor, mentiroso, manjado, desmasca-
rado, que se mete com a minha carne visível, com a minha
camisa sanguínea, carnífica.

O sentimento de revolta de Estamira, mais uma vez, é


retomado e se concretiza na sua fala, mas, de certa maneira, é
superado porque a personagem acredita ter poderes especiais.
Ao final do filme, em sua última cena, Estamira afirma: “Tudo
que é imaginário, tem, existe, é”. A personagem parece que-
Entre devaneios, sonhos e delírios 303

rer dizer que seus delírios são realidade. Se o discurso, como


considera Foucault (2012), é a reverberação da verdade, e se
a emoção se concretiza no discurso, então, sonhos, devaneios,
delírios, todos são parte do real.

Considerações finais
Carolina Maria de Jesus via beleza no sonho. Ela se con-
siderava uma poetisa e, como tal, seus sonhos eram lindos e
diferentes. Assim, a beleza do sonho e do devaneio podia, por
vezes, substituir a dureza da vida.
Estamira só via a dureza da vida. Em seus delírios, porém,
sentia-se capaz de superar as dificuldades, porque tinha poderes
especiais: como Deus, era onipotente, onipresente e onisciente.
Os sonhos e devaneios de Carolina mostram uma von-
tade de superação e de realização de desejos. Os delírios de Es-
tamira revelam uma necessidade de esquecimento – para ela,
superar já não é possível. Seus discursos são, de fato, a reverbe-
ração foucaultiana da verdade. A verdade de construir castelos
de alvenaria e a verdade de substituir Deus pelo próprio eu.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.
BASTIDE, Roger. “Sociologia do sonho”. In CAILLOIS, Roger e
VON GRUNEBAUM, G. E. O sonho e as sociedades humanas. Rio
304

de Janeiro: Francisco Alves, 1978.


BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. São Paulo: Zahar, 2004.
ESTAMIRA. Produção de Marcos Prado e José Padilha. Rio de Janei-
ro: RioFilme, 2005. (vídeo).
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1966.
------. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 2012.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada.
São Paulo: Ática, 1997.
LE BRETON, David. As paixões ordinárias: antropologia das emoções.
Petrópolis: Vozes, 2009.
MARTINS, José de Souza (org.). (Des)figurações: a vida cotidiana no
imaginário onírico da metrópole. São Paulo: Hucitec, 1996.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. “Subversão pelo sonho: a censura
cultural nos diários de Carolina Maria de Jesus”. In TUCCI, Ma-
ria Luiza Carneiro (org.). Minorias silenciadas: história da censura
no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002.
REZENDE, Claudia Barcellos e COELHO, Maria Claudia. Antro-
pologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
ZAMBRANO, María. “O sonho e a criação literária”. In CAILLOIS,
Roger e VON GRUNEBAUM, G. E. O sonho e as sociedades hu-
manas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978.
Depoimento do artista Hugo Denizart

Geraldo Motta

“Corpos diversos” manteve diálogo visceral com o tra-


balho de Hugo Denizart, principalmente, com sua exposição,
realizada no Museu de Arte Moderna (MAM), em 2012, Es-
tado de concentração: a violência muda,
muda, a qual foi reproduzi-
da em vídeo durante os dias do evento. Também escolhemos
uma das imagens para compor a identidade visual do colóquio.
A exposição foi montada a partir de um conjunto de bonecos
que compõem carros alegóricos nos carnavais e foram descarta-
dos num terreno. Denizart, trabalhando com painéis fotográ-
ficos de séries ou conjuntos destes manequins, recriou um am-
biente ao mesmo tempo lírico e trágico, que remetia ao que ele
chamou “estado de violência”. A trajetória do artista mantém
com este trabalho uma linha criativa que não se furta a encarar
o que a experiência estética poderia chamar de obsceno, abjeto,
deslocado. Hugo já trabalhou com mulheres no hospício, com
306

as mutações corporais dos travestis e com a arte perturbadora


de Artur Bispo do Rosário. Eis aqui, nas palavras do artista, sua
poética da ruptura.

Eu acho que toda arte é uma arte de ruptura. A arte jamais


se propõe a ser um apaziguamento. Ela se propõe a ser – ao
menos o que eu entendo como arte – uma maneira de abrir
novos horizontes e levar o pensamento a um ponto a que ele
normalmente não vai. Considerada nestes termos, a arte é
sempre convulsional. Ela convulsiona muito mais do que apa-
zigua, e é nesse sentido que eu a concebo essencialmente como
ruptura. Nota-se que há uma mudança entre, por exemplo, o
que o Foucault chama de sociedade disciplinar e a sociedade
de controle. Inspirado nisso, tive a ideia de fazer a Violência
muda;; de operar uma mudança que é mais sutil. E porque
muda
mais sutil? Porque ela aponta para os dispositivos da sociedade
de controle, na qual não se usa mais camisas de força nos hos-
pitais psiquiátricos, mas, sim, a camisa de força quimioterá-
pica, que é violentíssima e continua sendo usada sem grandes
escândalos. Trata-se de uma violência que está, digamos assim,
normatizada. O propósito do trabalho com os manequins foi,
portanto, inspirado nessa ideia de mudança de uma sociedade
disciplinar pra uma sociedade de controle.
Eu descobri esses bonecos fazendo uma pesquisa sobre Car-
naval de rua. Eles estavam jogados num galpão, sofrendo
a ação do tempo. De imediato, fiquei fascinado pelo que
vi. E não por outro motivo senão porque a arte é, para
Depoimento do artista Hugo Denizart 307

mim, o que eram os rituais de destruição para os antigos.


Na verdade, eu gosto daquilo que o tempo esculpe com a
sua usura, com a sua destruição. Eu fiquei muito impres-
sionado com eles porque pareciam cadáveres de campo de
concentração. Foi movido por esta percepção que abando-
nei o trabalho sobre o carnaval. O trabalho que estava fa-
zendo sobre restos de carnaval. Eu gosto de trabalhar sobre
aquilo que está muito decomposto. As decomposições me
atraem porque elas são obra do acaso. Os donos do galpão
me deram 200, 300 bonecos. E a cada vez que eu ia lá o
sujeito havia modificado tudo em função das suas necessi-
dades. Não era eu que interferia no ambiente, eu estava su-
jeito à lógica própria dos trabalhos que eram feitos naquele
galpão, que servia a múltiplas finalidades: coisas de teatro,
Carnaval de grupos, blocos de rua, havia de tudo. Enfim, o
dono do espaço ia modificando aquilo e eu ia aproveitando.
Na verdade, eu fui um coautor do tempo, da destruição do
tempo que esses bonecos sofriam e das injunções que eram
ali feitas de maneira aleatória em função de trabalhos reali-
zados pelo dono do galpão, pois aquilo ali era um lugar onde
ele ganhava o seu dinheiro. Para mim, em contrapartida,
era um lugar de prazer. Hitler mostrava que a arte moderna
era uma arte doentia, era equivalente aos desenhos dos do-
entes mentais. E ele tinha alguma razão, no sentido de que
toda experimentação é uma experimentação louca. Ela só
pode ser uma experimentação na medida em que ela recusa
o senso comum. Se ela não recusar o senso comum, torna-se
308

repetitiva. Ela passa a ser, digamos assim, linear, e é preci-


so recusar isso pra abrir um horizonte novo. E não importa
qual é o objeto, importa o tratamento que eu vou dar a ele.
Os corpos dos bonecos me facilitam. Porque a questão é o
olhar transformador sobre esses objetos, não importam quais
sejam. É claro que aquilo ali de alguma maneira me afeta,
porque me afeta facilita-me a transformação.

Segundo Hugo Denizart, seu trabalho busca uma es-


tranheza, procura uma inadequação, um aspecto não uni-
forme. Ele confessa que não saberia trabalhar de maneira
diferente:

Eu não sabia que eu não sei ser afetado de outra forma. Na


verdade, aqueles objetos, são eles que me afetam, não sou eu
que os afeto. Os objetos me pegam. E, para que eu possa fa-
zer um trabalho em que me sinta coerente, é preciso que eles
me inquietem e me sacudam e sejam apaixonantes. Loucos,
interessantes e apaixonantes. Os painéis são montagens das fo-
tos dos bonecos. E o Photoshop não é para embelezar, é para
forçar uma estranheza, é um instrumento poderosíssimo que
utilizo em função daquilo que quero atingir.

Denizart discorre sobre a ambientação da exposição no


MAM que lembrava o campo de concentração. O artista asso-
cia essa ambientação ao que chama, contemporaneamente, de
guetos morais:
Depoimento do artista Hugo Denizart 309

Porque a moral continua a ser uma moral miserável e aprisio-


nadora. Ela só tomou uma nova aparência. Hoje em dia é mui-
to difícil distinguir os “estados de violência”. Por exemplo, um
hospital psiquiátrico. Antes, o hospital psiquiátrico tinha uma
violência muito mais chocante. Hoje, no entanto, a violência
continua, só que é muito dissimulada, porque as sociedades de
controle têm mecanismos de contenção muito mais sofistica-
dos, diluídos.

O dilema do artista, segundo Hugo Denizart, está em


inventar ou copiar. Esse sempre foi um dilema: até onde se
copia, até onde se inventa. Para ele, o pensamento é experi-
mental, como a arte deveria ser experimental e abrir novos
horizontes. Assim, ele define a função social da arte: criar no-
vas sensibilidades, criar novos horizontes, criar novas possibi-
lidades.

Não teria o menor sentido para mim escrever ou fotografar, ou


fazer qualquer coisa, que fosse apenas uma reprodução. Porque
eu acho que os reprodutores são lunáticos.

No trabalho Estado de concentração – a violência muda,


se inscreve, portanto, essa experimentação do pensamento e do
olhar. A foto não tem mais nada a ver com a imagem captada.
Ela é uma invenção do sujeito que fotografa. O artista é afetado
pelo objeto. E ele reinventa aquele objeto e é importante que
ele reinvente aquele objeto.
310

Veja bem. Quem me batia na rua, na época da ditatura, não


era apenas a polícia. Eram os responsáveis civis pela ditadura
que diziam: “Seu gringo”. E eu dizia: “Mas, cara, eu falo por-
tuguês que nem você”. E eles continuavam... Era tão forte que
eles continuavam a me chamar de gringo. Eles me cercavam
para me bater. Não era a polícia! Eu era o “seu gringo”, man-
dando imagens do Brasil para o exterior. Eram esses caras que
sustentavam a ditadura. É esse tipo de pensamento retrógra-
do e violento que a arte precisa combater, fundamentalmente;
qualquer tipo de arte.

A montagem do espaço da exposição, conforme explica


Hugo Denizart, utilizou tubos de ferro e uma espécie de qua-
drado ou quarto negro, a fim de criar um aprisionamento, um
novo espaço dentro de um museu, como se abrisse mão do mu-
seu, daquele espaço clean
clean,, limpo, e o sujasse como uma prisão.
O objetivo foi criar um espaço não culturalizado, transgressivo,
onde o público não visse apenas obras nas paredes. Criou-se,
dessa maneira, um espaço de transgressão, menos “limpo” no
sentido burguês do termo. O intuito era que o público experi-
mentasse o aprisionamento dos guetos, dos espaços de exclusão,
de modo a também ser sujeitado a um estado de violência.
De certo modo, Hugo sempre trabalhou com corpos de
exclusão, corpos excluídos. Sempre houve por parte do artista
um compromisso com corpos que estavam fora do comum. Há,
de algum modo, um compromisso com o corpo que está fora
do controle. Todavia, este “fora do controle”, segundo Denizart,
Depoimento do artista Hugo Denizart 311

tem de ser relativizado porque nada contemporaneamente es-


capa totalmente ao controle. O que há são pequenas rupturas
no controle, e o artista precisa investir nessas pequenas rupturas
para que algo respire.
O trabalho de Hugo Denizart sempre teve o compromis-
so de visitar esses lugares e romper com o esperado. O artista
acaba pagando um preço alto por este investimento: seu interes-
se pelo outro passa a ser confundido com a autorrepresentação.
A opção do artista Hugo Denizart o levaria a ver seu tra-
balho classificado numa seção de coisas esquisitas, como acon-
teceu com seu livro Engenharia erótica (1997). A obra traz ima-
gens de travestis em fotos que não os naturalizam, mas fazem
aparecer o contexto de violência e de pobreza em que desenvol-
vem sua arte transformista. Segundo ele, estas imagens tornam
o livro mais forte do que um texto apenas escrito, porque a
relação com a imagem seria, nos seus termos, diabólica.

No sentido de ela trazer um vigor que às vezes o texto intelec-


tual não traz, por uma virtude da linguagem, uma virtude da
língua, uma elegância da língua. Não que as fotos não sejam
elegantes porque eu não faço um trabalho grotesco, eu não tra-
balho com o grotesco. Não sou uma Diane Arbus da vida, que
consegue transformar a Disneylândia no Castelo do Drácula.
Ela faz isso. Eu não consigo, eu lamento, mas o meu olhar é...
quando eu vou para a Vila Mimosa. O que me interessa é ver
as prostitutas de uma maneira diferente do que normalmente
aparecem, como decadentes, estereotipadas, taradas, ou sei lá o
312

quê. Eu detesto reproduzir isso, eu não tenho nenhum interesse;


seria mais fácil para mim. Construir um corpo, a ideia de um
corpo que já está dado. Tento captar os travestis e reinventá-los
de outra maneira. Porque o grande problema, a grande questão,
é que a minha paixão é reinventar esses objetos; essa é a minha
paixão, é isso que me move. Fora disso, não tenho o menor
interesse em documentar o que quer que seja.

Para Hugo Denizart, o trabalho artístico capta esta ema-


nação “diabólica” da imagem, mostra o seu avesso, e ele temeria
perder o ”punctum
”punctum”” quando trabalha com fotografia. Este mo-
mento é fugaz; num minuto pode ser captado, noutro minuto
já pode ter-se perdido. Sua arte é dirigida a quem tem sensibili-
dade para ser afetado, porque infelizmente não é o mais habitu-
al afetar-se por aquilo, porque não é uma arte que provoca uma
comoção sentimental novelesca.

Eu só entendo a arte como algo que sacuda o sujeito na es-


trutura que ele montou, nessas estruturas rígidas. São peque-
nos abalos que não têm nenhuma pretensão transformadora,
até porque essas estruturas se recompõem com muita facili-
dade, com meia dúzia de buzinadas nas ruas e xingamentos
aquilo some, os velhos ódios, os velhos rancores, tudo volta
como era dantes.
Depoimento do artista Hugo Denizart 313

Figura 1 – Um dos 38 painéis de Estado de concentração – a violência muda, se inscreve

(2012).
Sobre os autores

Ana Bernstein
Doutora em Estudos da Performance (New York Uni-
versity), Mestre em História Social da Cultura (PUC-RJ) e
Bacharel em Artes Cênicas (Unirio). É pesquisadora e profes-
sora de História da Arte, Estética e Teoria do Teatro e Estu-
dos da Performance. Tem experiência na área de Artes, com
ênfase em Performance e Teatro, trabalhando principalmente
com os seguintes temas: corpo e arte, teoria da performance,
performance art,
art, estudos de gênero, teoria e crítica teatral. Além
das atividades de pesquisa e ensino, tem trabalhado extensiva-
mente como tradutora de teatro, produtora cultural, curadora
de eventos e festivais e fotógrafa. É autora de A crítica cúmplice
– Décio de Almeida Prado e a formação do teatro brasileiro moder-
no. Contato:
no. Contato: ana.bernstein@nyu.edu.
316

Ana Chiara
Doutora em Letras pela PUC-RJ, Professora-associada
de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro desde 1995, dedica-se à pesquisa nos seguintes temas:
corpo, sexualidade, memória, escritas de si. Autora dos livros
Pedro Nava: um homem no limiar (EdUERJ, 2001) e Ensaios de
possessão (irrespiráveis) (Caetés, 2006), organizadora junto com
Fátima Cristina Dias da Rocha dos livros Literatura Brasileira
em foco – volumes 2,3,4 e 5, 5, co-organizadora também do livro
Escritas do corpo (Caetés, 2011), autora de Angela Melim por
Ana Chiara (EdUERJ,2011). Participa do GT ANPOLL de
Literatura Comparada e Coordena o GPESq Vida, arte, lite-
ratura: bioescritas. Bolsista de Produtividade CNPq. Contato:
anac.chiara@gmail.com.

Ana Lúcia M. de Oliveira


Possui  graduação em Letras (UERJ, 1976), mestrado em
Literatura Brasileira (UERJ, 1992) e doutorado em Literatura
Comparada (UERJ, 1999). Atualmente é professora associada de
Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro, pesquisadora no programa Prociência da UERJ/FAPERJ
UERJ/FAPERJ
e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Traduziu e/
ou coordenou a tradução de várias obras filosóficas, das quais
se destacam:  Caosmose
Caosmose,, de Félix Guattari;  Ensaios sofísticos 
sofísticos  e  O
efeito sofístico,
sofístico, de Bárbara Cassin; Mil
Cassin;  Mil platôs,
platôs, de Gilles Deleuze
e Félix Guattari. Além de publicar vários artigos em livros e re-
vistas, é autora de  Por quem os signos dobram: uma abordagem
Sobre os autores 317

das letras jesuíticas (EdUERJ,


jesuíticas (EdUERJ, 2003) e organizou as obras Linhas
obras Linhas
de fuga: trânsitos ficcionais (7Letras,
ficcionais (7Letras, 2004) e Antônio Vieira: 400
anos   (EdUERJ, 2011).  Contato: analuciamachado 54@terra.
anos
com.br.

André Masseno
Doutorando em Letras pela Universidade de Zuri-
que. Mestre e especialista em Literatura Brasileira pela UERJ.
Graduado em Artes Cênicas pela Unirio. Integrante do grupo
de pesquisa Corpo e Experiência, vinculado à UERJ. Há vinte
e três anos vem trabalhando nos segmentos artístico e cultural
nacionais, desenvolvendo projetos nas áreas de teatro, perfor-
mance e dança contemporânea no Brasil e no exterior. Contato:
planob_masseno@yahoo.com.br.

Ângela Maria Dias


Ângela Maria Dias é professora de literatura brasileira e
literatura comparada da UFF, ensaísta, crítica literária e pesquisa-
dora do CNPq. Foi pesquisadora, com bolsa Capes/Fulbright, na
Brown University (EUA, 2007), e professora visitante na George-
town University (EUA, 2007-2008). Publicou nos últimos anos
Cruéis Paisagens Literatura Brasileira e Cultura Contemporânea
(EdUFF, 2007) e A forma da emoção Nelson Rodrigues e o melo-
drama (7Letras, 2013). Atualmente, trabalha com Figurações do
Excesso e Poéticas do Melodrama na Arte e na Literatura Con-
temporâneas. Contato: angelmdias@gmail.com.
318

Daniele Ribeiro Fortuna


Possui pós-doutorado em Comunicação pela Universi-
dade do Estado do Rio de Janeiro, Doutorado em Letras pela
Universidade do Estado do Estado do Rio de Janeiro, com es-
tágio de doutorado-sanduíche na Georgetown University, em
Washington, D.C., EUA, mestrado em Letras pela Universida-
de do Estado do Rio de Janeiro e graduação em Comunicação
(Jornalismo) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Com-
parada e Língua Portuguesa, e na área de Comunicação Social,
com ênfase em jornalismo, redação, redação publicitária, revi-
são e edição de textos. Trabalha com os seguintes temas: corpo,
nojo, Literatura Brasileira Contemporânea, Estudos Culturais.
Atualmente é professor Adjunto Doutor I da Universidade
Unigranrio, atuando na graduação em Comunicação Social
e no mestrado acadêmico em Letras e Ciências Humanas.
É ainda bolsista de produtividade em pesquisa 1A (Unigranrio
/Funadesp). Contato: drfortuna@hotmail.com
drfortuna@hotmail.com..

Eliane Vasconcellos
Sua dissertação de mestrado “Sexo e linguagem”, publi-
cada com o título “A mulher na língua do povo”, foi traduzida
na França com o título “La femme dans la langue du peuple
au Brésil”; doutourou-se em Letras na UFRJ, com a tese Entre
a agulha e a caneta: um estudo das personagens de Lima Barreto,
Barreto,
editada pela Lacerda. Fez seu pós-doutorado no Institut de Tex-
tes et Manuscrutis Modernes (ITEM). Dirigiu o Arquivo-Mu-
Sobre os autores 319

seu de Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Rui Barbosa,


por quase 20 anos. Foi professora titular do Centro de Ensino
Superior de Juiz de Fora, já tendo lecionado em universidades
francesas (Sorbonne Nouvelle, Nanterre e Charles de Gaulle,
Lille III). É especialista em acervos literários, tendo organizado
e publicado os inventários dos arquivos de Clarice Lispector,
Pedro Nava, Vinícius de Morais, entre outros. Dedica-se tam-
bém ao estudo da relação mulher-literatura, Participou da obra
Escritoras brasileiras do século XIX; publicou, com Maria Apa-
recida Ribeiro, Drummon(d)tezuma: correspondência trocada
entre Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Montezuma
de Carvalho. Contato: vasconcellos@rb.gov.br.

Evando Nascimento (escritor convidado)


Professor universitário (UFJF), pesquisador e escritor.
Seu trabalho se desenvolve em torno das áreas de Filosofia, Lite-
ratura e Artes Plásticas. Fez Graduação na UFBA, Mestrado na
PUC-Rio e Doutorado na UFRJ. Completou sua formação em
Paris, onde foi aluno de Jacques Derrida (na École des Hautes
Études en Sciences Sociales) e de Sarah Kofman (na Sorbonne).
Lecionou durante três anos na Université Stendhal, de Greno-
ble. Tem diversos livros publicados, como autor ou organiza-
dor: Derrida e a literatura (2ª. ed., EdUFF), Ângulos: literatura
& outras artes (Argos), Derrida (Zahar) e Pensar a desconstrução
(Estação Liberdade), entre outros. Coordena atualmente a Co-
leção Contemporânea Literatura, Filosofia & Artes, pela Civili-
zação Brasileira, com a participação de renomados especialistas.
320

Publicou, igualmente, os livros de ficção Retrato Desnatural


(2008) e Cantos do Mundo (Contos 2011, Finalista do Prêmio
Portugal Telecom 2012), ambos pela Record. Contato: evando-
bn@uol.com.br.

Geraldo Motta
Pernambucano, cineasta e mestre em filosofia, foi grande
amigo de Hugo Denizart, com quem desenvolveu alguns en-
saios fotográficos e cinematográficos. O presente texto é mais
uma dessas parcerias.

Hilan Bensusan
Possui graduação em Filosofia pela Universidade de Bra-
sília (1989), Mestrado pela Universidade de São Paulo (1994)
e doutorado pela University Of Sussex (1999). Atualmente, é
professor adjunto da Universidade de Brasília. Interessa-se por
metafísica, especulação, filosofia do processo e política. Conta-
to: hilantra@gmail.com.

Hugo Denizart (artista convidado)


Nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1946, e singulari-
zou-se por unir a fotografia à sua experiência como psicanalista
e psiquiatra, muito embora tenha tido um começo de carreira
ortodoxo no campo da imagem por atuar como repórter foto-
gráfico do Jornal
do Jornal do Brasil entre
Brasil entre 1971 e 1973. Seu primeiro en-
saio pessoal focalizou os moradores de rua do Ceará, em 1971.
Concentrou-se depois na cidade do Rio de Janeiro, onde reali-
Sobre os autores 321

zou significativos e distintivos ensaios sobre temas polêmicos e


candentes como a Cidade de Deus (1978); os internos da colô-
nia psiquiátrica Juliano Moreira (1980); as prostitutas de Vila
Mimosa (1988); e os travestis da praça Tiradentes (1997). Pu-
blicou os livros de fotografia: Região
fotografia: Região dos Desejos (1983);
Desejos (1983); Inven-
tando Corpos (1987); 
Corpos (1987); Como
Como Eles Dizem… (1991);
Dizem… (1991); e Engenharia
e Engenharia
Erótica (1998);
Erótica  (1998); assim como um livro de poesia e textos curtos
intitulado Conto
intitulado  Conto do Vigário (2003).
Vigário (2003). Atuou igualmente como di-
retor de cinema, assinando os seguintes documentários: Líderes
documentários: Líderes
de Quadrilha (1980);
Quadrilha (1980); Prisioneiro da Passagem (1982);
Passagem (1982); e Região
e  Região
dos Desejos (1983).
Desejos (1983). Faleceu em 2014.

Leonardo Davino de Oliveira


Doutor em Literatura Comparada pela UERJ, especia-
lista e mestre em Literatura Brasileira. Atualmente, é pesqui-
sador residente do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa da
FBN. Ensaísta, procura refletir sobre as múltiplas e heterogêne-
as modalidades da palavra cantada, focando na canção popular
urbana mediatizada, em especial nas canções em que a ideia
de experiência vocoperformática apareça com suas possibilida-
des de relação antropofágica entre a canção e outras linguagens
estético-artístico-filosóficas. Escreve para o site da revista Musa
Rara e é autor do blog Lendo canção (lendocancao.blogspot.
com). É autor do livro Canção: a musa híbrida de Caetano Veloso
(Ibis Libris, 2012). Contato: leonardo.davino@gmail.com.
322

Marcelo Santos
Possui graduação em Letras pela Universidade do Esta-
do do Rio de Janeiro (2003), mestrado em Literatura Brasi-
leira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2006) e
Doutorado em Literatura Comparada, atuando principalmente
nos seguintes temas: literatura, história da literatura e das ar-
tes, cultura, artes plásticas, vida literária e arquivos. É professor
adjunto na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
(Unirio). Desenvolveu, como pesquisador bolsista do Arqui-
vo-Museu de Literatura Brasileira na Fundação Casa de Rui
Barbosa, pesquisa em arquivos literários, contribuindo para a
revisão historiográfica, a crítica de literatura e de arte moderna
e contemporânea. Contato: m.santos1977@gmail.com.

Marcia Tiburi
Graduada em Filosofia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul (1991), graduação em Artes Plás-
ticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1996),
mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul (1994) e doutora em Filosofia pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul (1999) com ênfase em
Filosofia Contemporânea. É professora da Pós-graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbite-
riana Mackenzie. Temas de interesse: filosofia contemporânea,
filosofia da linguagem, ética, estética, biopolítica e feminismo.
Contato: marciatiburi2011@gmail.com.
Sobre os autores 323

Marcus Alexandre Motta (UERJ)


Possui graduação em História pela Universidade Santa
Úrsula (1985), mestrado em História Social pela Universida-
de Federal do Rio de Janeiro (1991) e doutorado em Histó-
ria Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1997).
Atualmente é professor adjunto 40 horas da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Orienta e Pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Uerj. Tem
experiência nas áreas de História, Letras e Arte, com ênfase em
Historiografia da Cultura, Crítica e História da Arte, atuando
principalmente nos seguintes temas: Antônio Vieira, Literatu-
ra Portuguesa, Crítica e História da Arte. Desenvolve pesquisa
sobre Fernando Pessoa e Aparato Literário e Pensamento Plásti-
co. Contato: marcusalexandremotta@globo.com.

Marília Rothier Cardoso


Possui graduação em Letras pela Universidade Federal
de Minas Gerais (1967), mestrado em Letras pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976) e doutorado
em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Ja-
neiro (1990). Atualmente é professora associada da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro. Tem experiência na
área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando
principalmente nos seguintes temas: critica literária, arquivo,
composição textual, escritor e intelectual e crítica biográfica.
É pesquisadora 1D do CNPq. Contato: mariliarothier@gmail.
com.
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Raúl Antelo       


Graduado em Letras Modernas pela Universidad de Bue-
nos Aires (1974) e em Língua Portuguesa pelo Instituto Su-
perior del Profesorado en Lenguas Vivas (1972), mestrado em
Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (1978) e
doutorado em Literatura Brasileira pela mesma Universidade
(1981). Atualmente é professor titular da Universidade Federal
de Santa Catarina. Contato: antelo@floripa.com.br.

Rodrigo Jorge
Doutorando em Estudos de Literatura (Literatura Com-
parada) pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Mestre
em Letras (Literatura Brasileira e Teorias da Literatura) por esta
mesma instituição e graduado em Artes Cênicas pela Univer-
sidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Como
pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa, desenvolve o
projeto “Edição da correspondência de Mário de Andrade e Pe-
dro Nava”, sendo responsável pela fixação do texto, a elabora-
ção de notas críticas e a preparação do livro a ser publicado pela
Edusp. Membro dos grupos de pesquisa “Caminhos da Litera-
tura Brasileira” (UFF/CNPq), “Autobiografias e outras formas
de expressão do eu” (UFJF/CNPq) e membro convidado do
GT de Literatura Comparada da ANPOLL. É também pro-
fessor substituto de literatura brasileira na Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato:
rodrigorjrn@gmail.com.
Formato 14 x 21
Tipologia: Adobe Garamond Pro (texto) Nebrasca (títulos)
Papel: Couché Matte 90/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
CTP, impressão e acabamento: Editora Vozes

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