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CONFERÊNCIA

T EATRO A LÉM DO
O PÓS E O PRÉ-DRAMÁTICO
D RAMA

Hans-Thies Lehmann*
Professor Titular
Departamento de Estudos Teatrais
Universidade Johann Wolfgang Goethe

Tradução consecutiva de Wolfgang Pannek


Transcrição de Karine Matos
Revisão e Adaptação de Alexandre Nunes

Palestra, seguida de interlocução com a platéia, realizada por Hans-Thies


Lehmann, durante a Conferência Internacional de Teatro Pós-Dramático,
realizada pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal
de Goiás, no período de 30 de agosto a 01 de setembro de 2010. A
conferência integrou o Hans-Thies Lehmann Brasil Tour 2010, organizado
por Wolfgang Pannek, que percorreu diversas universidades brasileiras.

Nós vivemos um momento muito existe. A teoria do teatro pós-dramático reúne


significativo para o teatro, que está passando uma grande diversidade de formas e estéticas
por uma situação nova, desde o surgimento cênicas, razão pela qual não se pode falar sobre
do rádio e da televisão. Vivemos numa época uma estética pós-dramática, nem mesmo sobre
em que há pluralidade de ideias sobre teatro, o papel dos atores no teatro pós-dramático, ou
ideias que passaram e continuam passando por da questão do texto no teatro pós-dramático.
mudanças incríveis, que vêm se desenvolvendo Todas essas questões só podem ser respondidas
e se ampliando. Vamos tratar hoje do conceito de acordo com a forma específica com que cada
de teatro pós-dramático e, antes de mais experiência teatral é trabalhada. Esse é um dos
nada, gostaria de fazer um pronunciamento motivos pelos quais o livro Teatro Pós-Dramático
importante: “O” teatro pós-dramático não se tornou tão volumoso.

Hans-Thies Lehmann - Conferência Teatro Além do Drama: O Pós e o Pré-Dramático.


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 1, n. 2, p. 4-18, outubro 2014/março 2015
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Eu não posso dizer se vivemos na era Com frequência, nos estudos de teatro,
pós-moderna ou na era moderna, ou o que se nós temos uma noção equivocada acerca daquilo
entende exatamente pelo termo pós-moderno, que seria o teatro antigo, pré-dramático. O motivo
mas a maioria dos fenômenos que eu pesquiso, na para essa má compreensão está relacionado ao
literatura do teatro, têm a ver com os fenômenos nosso estudo da Poética de Aristóteles, que não
moderno e pós-moderno. Quando entendemos faz qualquer discussão acerca do coro, nem
o termo pós-moderno como concernente à aborda o ritual. Aristóteles fala exclusivamente
situação de autorreflexão da modernidade, o da fábula, ele fala efetivamente apenas de uma
conceito de teatro pós-dramático mostra-se útil parte constitutiva do teatro. Nos esquecemos
e aplicável a uma quantidade imensa de formas também que, na época clássica, o público não
teatrais. Eu usei esse conceito pela primeira vez lia os textos, que foram experimentados apenas
em 1991, no prefácio do livro Theater und Mythos: no contexto dos espetáculos teatrais, juntamente
Die Konstitution des Subjekts im Diskurs der com a música, a dança e todo o ritual; no contexto
Antiken Tragödie (Teatro e Mito: A Constituição de uma grande realização cívica da cidade de
do Sujeito no Discurso da Tragédia Antiga), onde Atenas. É particularmente importante salientar
tematizei as noções de pré-dramático e pós- que o coro era tão importante quanto as cenas da
dramático, observando que existiam muitas fábula. A tragédia começava com a aparição do
correspondências e analogias entre as duas. coro e terminava com a sua despedida. Aquilo
Hoje, no contexto das suas transformações, o que a fábula contava fazia parte dos episódios,
teatro redescobre formas de expressão cênica algo que tinha segunda importância no contexto
que existiam na época do pré-dramático. Por total da tragédia. Aristóteles se dispõe a falar da
este motivo, a noção de pós-dramático tem três estrutura do teatro, mas efetivamente só discute a
níveis diferentes de compreensão. Irei abordar estrutura do texto dramático. Certamente vocês
inicialmente os dois primeiros e, mais à frente, já participaram de discussões onde as pessoas
falarei sobre o terceiro. No primeiro nível, tematizaram a catarse no teatro, a famosa catarse
temos uma noção que abrange as mais diversas teatral. As pessoas costumam dizer que isso vem
expressões teatrais, desde os anos 1960. No de Aristóteles, e é um equívoco. Aristóteles disse,
segundo nível, temos uma noção que se encaixa expressamente, que a catarse ocorre na leitura
na sucessão de ideias oriundas dos conceitos de do texto. Por outro lado, quando Aristóteles
pré-dramático, dramático e pós-dramático. fala do teatro, ele fica muito mal humorado.
Ele diz que o teatro, aquilo que se vê no teatro,

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é o menos artístico na tragédia. O teatro, diz à época do surrealismo, do dadaísmo, do
Aristóteles, não acrescenta nada de relevante à expressionismo; quando emergiu uma nova ideia
tragédia. Nós temos que levar em consideração de teatro. Uma dessas novas ideias foi o teatro
o papel fundamental de Aristóteles para a brechtiano, mas somente uma entre muitas
compreensão da tragédia no teatro europeu, outras. E uma segunda etapa da redescoberta
pois ainda continuamos muito aristotélicos. do teatro como teatro se realizou nas últimas
Ainda acreditamos que o drama é o centro do décadas, numa situação de generalização
teatro, que o texto é o centro do teatro. Essa ideia das mídias. O confronto diário com imagens
resulta da tese de Aristóteles e produziu uma midiatizadas, que dominam toda nossa
grande tradição teatral. Nós podemos dizer de existência, levou o teatro a se perguntar: Qual é
uma forma um pouco reducionista que, para a especificidade teatral? E, por essa razão, temos
Aristóteles e seus seguidores, existe uma coisa agora essa grande diversidade de investigações,
no teatro que atrapalha: o teatro. de artistas jovens que procuram entender o
teatro enquanto teatro. Podem haver respostas
Essa consciência modificou-se por uma variadas à questão e, por isso, temos uma grande
série de motivos históricos. Um desses motivos variedade de expressões e essa plenitude de
foi a grande transformação tecnológica pela qual formas teatrais. Para imaginar melhor a questão,
o teatro passou, e que gerou novas possibilidades podemos usar a metáfora da explosão de uma
de expressão cênica. Seria possível dizer que, estrela, e as fotografias dos astrônomos, a alguns
na verdade, o teatro se descobriu como forma milhares de anos depois da explosão, que nos
artística autônoma somente no século XX, permitem ver os fragmentos. Algo similar
em função dessas novas tecnologias. O inglês ocorre com o teatro dramático, estamos vendo
Edward Gordon Craig é um dos grandes nomes, todos os pedaços e fragmentos dele: o corpo, a
nesse contexto. O primeiro a deslumbrar o voz, o espaço, o movimento, o tempo, a duração,
teatro como uma arte espacial e corporal, com a velocidade, a gestualidade, a mímica, os
luzes, arquitetura cênica, e para a qual o texto figurinos. Todos os elementos que antigamente
era somente um dos elementos constitutivos, formavam a totalidade do teatro dramático,
entre vários outros. Mas a redescoberta do teatro agora estão liberados e podem alcançar e
enquanto teatro se dividiu em duas etapas. A realizar novas conexões. Um determinado tipo
primeira etapa é aquela que nós chamamos hoje de teatro trabalha apenas com espaço e corpo,
de vanguardas históricas, e que corresponde um outro apenas com gestualidade e música, e

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assim por diante. É uma situação de criatividade centro do drama. E esse teatro, que tem o texto
extraordinária. Essa criatividade se tornou muito como centro catalizador, surgiu na Renascença
visível no teatro entre os anos 60 e 90. por vários motivos. Um desses motivos é que,
a partir do foco na linguagem, o teatro passa a
Agora vou retroceder mais um passo, poder ir para as casas. Ele pode sair da praça e
para falar do terceiro nível de entendimento. entrar nas casas de teatro, o que também permite
Vimos essa noção do teatro pós-dramático que o público possa se concentrar melhor na
enquanto uma teoria geral que categoriza as mais figura do ator, diferentemente do teatro de
diversas formas teatrais. Também percebemos arena, de praça ou de rua. Surge assim uma
que existe uma noção histórica do pós- nova intimidade e uma nova psicologia teatral,
dramático relacionada às categorias do teatro que fica ainda mais clara com Shakespeare, e
pré-dramático e dramático. Ao mesmo tempo, que nos séculos XVIII e XIX resultará em um
sabemos que o teatro dramático não cessa de teatro expressamente psicológico. Num teatro
existir. Pelo contrário, nas instituições, o teatro dramático, psicológico, concentrado no eu e no
dramático continua muito forte. E muitas vezes diálogo.
pergunta-se por que as pessoas vão ao teatro,
se aquilo que elas esperam dele se encontra em O mais importante é que existe uma ordem
melhor forma no cinema. Pergunta-se: Qual é a lógica no drama. Talvez vocês possam observar,
força do drama? Nós amamos o drama, não há na próxima vez que forem ler Aristóteles, e
dúvida. O drama instala uma ordem na vida. Ele talvez também se divirtam com a definição de
surgiu na renascença, na mesma época em que “todo” de Aristóteles. É muito importante, para
surgiu a ideia da perspectiva. O drama também o conceito aristotélico de beleza, que o belo só
foi a forma pela qual surgiu a ideia do eu humano, pode ser belo se ele constituir um todo. E aquilo
que se origina a partir da situação de diálogo que é um todo é aquilo que possui início, meio
entre um indivíduo e outro. Ele surgiu numa e fim. O começo é aquilo que não é precedido
época em que a linguagem, em si, foi da maior por nada, mas do qual surge alguma coisa. O
importância. Shakespeare e Racine acreditavam meio é aquilo que surge de alguma coisa e que
que o essencial do ser humano estava no diálogo causa outra coisa. O fim é aquilo que emerge de
e podia ser mostrado através do diálogo. algo, mas do qual não resulta mais nada. E assim
Juntamente com outros fatores históricos, como, como nós estamos rindo aqui, os estudantes
por exemplo, a retórica, a linguagem entrou no alemães também riem quando leem esses textos.

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Mas ao mesmo tempo a gente se esquece do fato europeu e norte-americano; não por princípio,
de que isso é absolutamente genial. Aristóteles mas porque é o teatro que conheço. E a intenção
está dizendo que o belo precisa construir uma do livro é também relativizar a ideia teatral
moldura. Ele precisa construir ou inventar europeia. Eu nem tenho certeza se isso é muito
uma totalidade, pois na vida não existe nem interessante para a situação brasileira, mas para
início nem fim, tudo já começou, tudo sempre a situação do teatro alemão é muito importante.
continua. A ideia do belo, enquanto início, meio Porque lá nós temos uma tradição muito forte
e fim, e como um todo, é um postulado estético. da crença no drama. Para muitas pessoas
Essa ideia significa que o belo tem uma ordem. (críticos, público e os próprios artistas), o teatro
Essa se tornou a nossa ideia clássica da arte. Isso, dramático parece ser a forma natural do teatro.
por outro lado, tem muito a ver com a teoria do Mas, na verdade, é uma forma europeia muito
drama. Agora podemos nos perguntar por que específica, construída durante trezentos anos, e
essa ideia alcançou tanto poder. Pois é facilmente essa consciência histórica pode ser muito útil.
imaginável que haja outras culturas que não Porque ela nos mostra que não precisamos nos
desenvolveram essa ideia do início, meio e fim surpreender demais quando, de repente, surgem
e do todo. Existem construções narrativas e outras formas teatrais, totalmente distintas. A
dramáticas em outras culturas que não insistem Índia tem formas de teatro que chegam a atingir
nesta estrutura. Mas é ao mesmo tempo claro que duas semanas de duração. O teatro japonês
ela tem uma semelhança com a nossa ideia cristã é totalmente diferente do teatro dramático
do tempo. O início do mundo através da criação, europeu. Existem muitas formas de teatro e
a história do mundo e o apocalipse. É um dos muitas culturas teatrais, além da europeia.
motivos pelos quais nós amamos o drama: por Hoje estamos em uma situação histórica onde
causa dessa analogia. Ele corresponde à nossa a noção do dramático se transformou por
concepção do tempo. Mas nós temos que nos inteiro. Também é importante não ficarmos
dar conta, todos os dias, de que isso não passa de medindo, a todo momento, as novas formas
uma construção, é uma ficção. Isso é uma ficção teatrais, tomando as antigas como referência.
relacionada a uma certa ideia de tempo, de ser Por outro lado, é importante compreendermos
humano e é uma ideia muita europeia. as novas formas de teatro como expressões de
novas experiências. Nesse sentido, a noção do
Então, para retomar a noção do pós- pós-dramático pretende também relativizar a
dramático, no livro eu me refiro ao teatro concepção europeia do termo dramático.

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Eu também gostaria de acrescentar que transcender essa barreira, já que temos muitos
essa sequência “pré-dramático, dramático e artistas, como referência, que fazem a mesma
pós-dramático” não pretende instaurar uma coisa.
concepção hegeliana do mundo. Trata-se da
descrição de um desenvolvimento específico, Um ponto muito importante de ser
ocorrido na Europa. E talvez seja esse o motivo destacado é que o teatro pós-dramático não
pelo qual há uma grande ressonância da teoria mostra as idiossincrasias de certos diretores
do teatro pós-dramático em outras culturas loucos. Se assim fosse não poderia ser um
teatrais. Pois eu estou particularmente tocado e, movimento tão abrangente e não se referiria a
ao mesmo tempo, surpreendido em encontrar tantos grandes artistas. Eu vou simplesmente
tanta ressonância da teoria do teatro pós- soltar alguns nomes: Robert Wilson, Tadeusz
dramático aqui no Brasil e na América do Sul. Kantor, Jan Fabre, Jan Lauwers, Frank Castorf,
Pois quando eu trabalhava no livro, raramente Rimini Protokoll, Socìetas Raffaello Sanzio, na
pensava no teatro da América do Sul. Mas, ao que Itália (que curiosamente usa o nome de um pintor
tudo indica, vocês estão vivendo um momento para nomear uma companhia teatral), Théâtre
muito importante aqui, no qual algo novo está du Radeau, na França, Forced Entertainment, na
começando a surgir, e eu ficarei feliz se essas Inglaterra, Christoph Marthaler, René Pollesch
noções ajudarem a refletir sobre as novidades e muitos outros. Todos procedentes de países
que estão surgindo no Brasil. cujos idiomas são muito produtivos no âmbito
teatral. Existe o teatro de imagens, o teatro de
Agora pretendo voltar a discutir uma vozes, o teatro de coros e o teatro monológico;
noção mais específica do termo “teatro pós- existem performances de longa duração, o teatro
dramático”. Mas também quero encerrar minha multimidiático e novas formas de documentário.
exposição às oito horas, pois estou muito O teatro com atores não profissionais, o teatro
interessado em ouvir e dialogar com vocês, pop e assim por diante. O artista alemão Heiner
para que possamos interagir e debater todas Goebbels, por exemplo, é simultaneamente
essas questões. Acho muito bacana essa situação compositor e diretor, ele compõe sua música
aqui, mas ao mesmo tempo ela reconstitui a como teatro e entende seu teatro como música.
estrutura de um teatro clássico dramático1, e Existe também o teatro com vídeo, o teatro
a gente sempre volta a esse tipo de situação na com dança, que se tornou referencial por toda
universidade. Mas, juntos, nós podemos tentar parte, atualmente. Existem as extensões do

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teatro na internet, nos computadores; o teatro com o público. É uma coisa muito interessante
como jogo, entre muitas outras formas. Nós para se refletir. Mas, nas grandes instituições
podemos também falar de formas hibridas do europeias, o teatro dramático continua sendo a
teatro, misturando instalação ao teatro, como forma cênica predominante, e eu imagino que
acontece nas artes plásticas. Por outro lado, aqui ocorra o mesmo. Por outro lado, na época da
temos diversas formas teatrais muito próximas à ruptura do impressionismo, a pintura dos salões
performance, e chegamos ao ponto no qual não é era predominante. Isso quer dizer que o sucesso
mais possível distinguir claramente o teatro atual e a relevância não são a mesma coisa. Aquilo que
da performance. é mainstream no teatro não é necessariamente
a expressão mais significativa da própria época.
Também é muito importante que o novo Existe uma piada alemã muito boa e ao mesmo
teatro procure reconquistar o caráter de festa. tempo maliciosa: Qual é o teatro mais bem
Eu preciso admitir que, na Alemanha, o teatro sucedido do século XX? O teatro do século XIX.
se aproximou demasiado da academia. Então os Isso pode ser interessante para nós do ponto de
estudantes estão acostumados a ficar sentados vista sociológico, mas não do ponto de vista de
numa cadeira, dilatando os ouvidos, ouvindo a uma teoria do teatro. Quando tentamos entender
leitura dos textos. E ficam se perguntando: “Será qual é a arte mais importante da nossa época, nós
que todas as falas foram efetivamente faladas?” temos que nos deparar com essa questão: Qual é
Antigamente, entretanto, o teatro era uma festa, a expressão mais característica da nossa própria
um ritual. Na Antiguidade, na Idade Média, época?
e ainda na revolução russa. Não sei se vocês
discutem o teatro de Meyerhold aqui. Um dos Eu me refiro ao teatro pós-dramático
grandes diretores da época pós-revolucionária na da mesma forma como Peter Szondi se referia
Rússia, que atuou nesse breve período da história ao drama puro. Em seu livro Teoria do Drama
do teatro russo, que antecedeu a destruição Moderno, Peter Szondi descreve o drama puro
praticada pelos stalinistas, e o assassinato como a forma ideal do drama. O drama puro
de diversos artistas. O teatro de Meyerhold talvez exista em Racine e Schiller, autores nos
acontecia da seguinte forma: quando o público quais, na maior parte do tempo, não existem
chegava, primeiro era realizado um debate. outros elementos que não dramáticos. A forma
Depois, a peça teatral, propriamente dita, era pura é algo raro e mesmo assim é o grande
apresentada; e depois os atores dançavam junto objetivo do autor dramático. Esse esclarecimento

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sobre a noção do drama é importante porque, a Em resumo, estão relacionadas a forças bastante
princípio, seria possível classificar como drama anônimas. E, efetivamente, os indivíduos
qualquer texto escrito para teatro. Mas existe uma políticos têm muito menos influência nas esferas
diversidade muito grande de textos escritos para de decisão do que eles mesmos gostariam de
teatro, de forma que é melhor distinguir o texto acreditar. Eu não acredito que hoje nós podemos
teatral do texto dramático, num sentido mais ainda representar a vida política mostrando
específico. Bertolt Brecht já usava a expressão um presidente dialogando com um de seus
teatro dramático para poder diferenciar o seu ministros, sobre alguma questão política. Nós
teatro épico do teatro dramático tradicional. não acreditamos mais nessa forma. As estruturas
Isso foi muito importante, mas Brecht também de decisão ocorrem num outro lugar. Eu tenho
incluía todo o teatro clássico antigo em sua noção uma pequena metáfora para isso: a imagem de
de teatro dramático. Hoje em dia, por outro lado, Obama ficando com os cabelos grisalhos. Obama
é possível distinguir melhor as coisas. certamente é um dos mais poderosos políticos
do mundo, mas as decisões mais importantes da
Eu disse antes que nós amamos o política norte-americana não estão ocorrendo
drama, mesmo sabendo que a forma dramática na pessoa dele. Então, nesse sentido, nós não
não é a mais adequada para estabelecermos acreditamos mais na relevância do significado
uma representação artística sintonizada com desses protagonistas individuais.
a realidade contemporânea. Neste momento,
gostaria apenas de sublinhar uma ou duas razões Isso foi diferente na época em que o
para esse nosso amor. Um dos axiomas do drama histórico surgiu. Foi muito importante,
drama diz que as decisões humanas são tomadas na época de Shakespeare, avaliar o caráter de
a partir do diálogo entre protagonistas. Mas será um rei. Mesmo no século XVII, o caráter de um
que hoje em dia ainda acreditamos que decisões aristocrata era muito decisivo para a vida política.
importantes são tomadas a partir do diálogo que Mas, desde os séculos XVIII e XIX, essa situação
os protagonistas envolvidos estabelecem? Eu vem se tornando cada vez mais problemática. E
creio que hoje temos uma outra noção da vida hoje em dia simplesmente desapareceu a base
política. A maior parte das decisões, na verdade, para esse tipo de representação, na sociedade.
é tomada por blocos anônimos de poder. Talvez seja possível contra-argumentar, dizendo
Estão relacionadas a estratégias geográficas, a que a vida privada das pessoas continua igual.
conflitos ideológicos e estruturas econômicas. Mas também podemos nos perguntar: Estamos

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ainda vivendo a vida de acordo com a lógica da por exemplo, escreveu: “eu é um outro”. E esse
linha dramática? Ou nossa experiência atual se desenvolvimento se reflete tanto no nível macro
relaciona mais com momentos, descontinuidades quanto no nível individual, no nível de nossa
e fases variadas de vida? Será que nós ainda pequena existência.
acreditamos na profunda identidade de um
caráter do qual emergem as decisões? Eu creio Eu também gostaria de acrescentar que,
que não. Acredito que ganhamos hoje uma nova na vida profissional, algo mudou bastante. No
imagem do eu humano. Para que emergisse século XX havia ainda algumas pessoas que
essa nova imagem do eu, tanto a experiência exerciam uma determinada profissão durante
prática, concreta, quanto o campo da teoria toda a vida, e que desenvolviam certo orgulho,
colaboraram. Pelo menos desde o surgimento uma ideia de identidade, a partir de sua
das indústrias, das linhas de produção em profissão. Nós, como pessoas que trabalham na
série, da reprodutibilidade e da produção em universidade, somos uma espécie de dinossauro
massa, a ideia do indivíduo vem se reduzindo. nesse aspecto: nós ainda temos essa possibilidade.
E, com isso, também se transforma a ideia Ainda existem muitas pessoas com essa
do herói dramático. No âmbito das teorias, possibilidade, mas é cada vez menor a quantidade
podemos observar também o surgimento de de indivíduos que podem se identificar dessa
novas teorias que colaboraram com a mudança forma. Também, nesse contexto, a pessoa que
na imagem do eu. Pensemos, por exemplo, o atua de acordo com uma ideia dramática não é
quanto a sociologia nos legou, ao demonstrar mais convincente. Por isso nós encontramos, no
como nossa consciência é determinada por teatro contemporâneo, tantas formas diferentes,
estruturas sociais. Ou o quanto as teorias com sujeitos coletivos. Encontramos os coros,
linguísticas colaboraram, ao mostrar como encontramos dramaturgias fragmentadas,
nosso pensamento é determinado por estruturas encontramos formas onde corpo e música se
de linguagem. E, não por último, o quanto a misturam, como parte da consciência. E sempre
teoria psicanalítica colaborou, ao mostrar até se trata de formas de expressão artística nas
que ponto nossa consciência é determinada por quais ocorre uma espécie de investigação. Nós
estruturas subconscientes. Todos estes foram vivemos numa época em que nos perguntamos:
grandes ataques do campo da teoria contra a O que vem depois do eu? O que vem depois do
teoria do eu. Grandes e importantes artistas já sujeito da sociedade burguesa? Não sabemos,
perceberam isso no século XIX. Arthur Rimbaud, com certeza, mas o teatro é um dos campos onde

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essa investigação ocorre. formam o modelo dos roteiros hollywoodianos,
mas isso funciona justamente porque, na arte do
Volto mais uma vez ao nosso amor ao entretenimento, nós podemos justamente usar
drama. Vou estabelecer diferenças, novamente, esses modelos que nos consolam e alegram, sem
entre o entretenimento e a arte. Eu sei que nenhuma outra função crítica.
esse é um grande problema, porque não existe
arte sem entretenimento e existem formas de Antes de terminar, eu gostaria de contar
entretenimento muito artísticas. Mesmo assim uma pequena história sobre Aristóteles e sua
existe uma espécie de fronteira entre os dois. Pra proposição da sequência de início, meio e fim.
mim, a arte só existe se ela contém uma espécie Acrescento que nossa percepção sempre funciona
de reflexão crítica a respeito da realidade. De de forma dramática, segundo o conhecimento
alguma forma, a arte precisa questionar nosso que a teoria da Gestalt nos legou. A percepção
próprio ser. O entretenimento geralmente não funciona criando formas, configurações,
precisa disso. O entretenimento é aquilo que nos conjuntos organizados (gestalten). Por isso,
alegra e nos consola através de coisas com as quais uma realidade pode ser bastante caótica, mas
nos reconhecemos. Em um filme hollywoodiano, a nossa percepção dá um jeito de encontrar o
por exemplo, não podemos esperar uma reflexão drama no caos. Por exemplo, um relógio soa
crítica acerca do mundo contemporâneo. No tic-tic-tic-tic, mas o que nós lemos em uma
máximo, uma reflexão de superfície, a partir história em quadrinhos? Nós não lemos tic-
de algum tema que está na moda ou algo tic-tic-tic, nós lemos tic-tac, tic-tac, tic-tac. Isso
assim. Mas as estruturas do filme não criticam corresponde à forma como nossa percepção
fundamentalmente a realidade. O dramaturgo funciona. Efetivamente ouvimos tic-tac, porque,
Heiner Müller disse uma frase muito bonita, que na continuidade da repetição sonora, nossa
eu gostaria de repetir aqui: “A tarefa da arte é percepção cria pequenas unidades. Isso significa
tornar a realidade impossível”. Essa ideia acerca que, se nos lembrarmos do modelo temporal
da arte estabelece uma diferenciação em relação cristão (gênesis, história, apocalipse), temos: tic
à ideia de entretenimento. É muito interessante (gênesis), intervalo (meio), e tac (um pequeno
quando você está numa livraria e de repente se apocalipse). Temos um mini drama. E da
depara com um livro, cujo título é Aristóteles mesma forma como nossa percepção estrutura
em Hollywood. Essa é a situação. Efetivamente, os sons, ela estrutura todo material que o teatro
as regras aristotélicas, as ideias dramáticas, nos apresenta. Poderemos saciar nosso desejo

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dramático, mesmo em um material muito é capaz de questionar o corpo culturalmente
labiríntico e caótico. Nós vemos três elementos codificado. Eu não acredito que nós temos um
no palco e já construímos um nexo; vemos corpo natural, acho que o corpo é formado
três outros elementos, e criamos outro nexo. através da cultura e da história de cada um. E,
Nós não necessitamos mais da grande forma por esse motivo, eu acredito que a prática crítica
dramática. Essa grande forma dramática é o que do corpo é sempre uma prática da desconstrução
implica ideias e ideologias nas quais nós não cultural. O corpo não tem, automaticamente, um
acreditamos mais. Mesmo assim podemos ter o potencial crítico. Tanto quanto a linguagem, ele
prazer dramático em contextos pós-dramáticos. corre o risco de se transformar num instrumento
ideológico e, por esse motivo, a possibilidade de
Pergunta: Gostaria de falar sobre esse corpo se realizar uma crítica da contemporaneidade,
cênico, que foi a imagem que me veio à mente, ao através do corpo, está relacionada a uma
escutar as suas palavras. Esse corpo expressivo, reinvenção das expressões do corpo. Na dança
onde a percepção é conectada a uma nova contemporânea, na Europa (mas também no
forma de expressão. Entendo que esse corpo tem Japão, por exemplo), encontramos muitos artistas
várias aberturas, que eu chamaria de brechas, que se concentram em usar micro-movimentos
de silêncios, onde nós podemos estabelecer um do cotidiano como temas de seus trabalhos. E
diálogo, e onde você propõe também a vigência suas danças não são mais reconhecidas como
de um distanciamento crítico. E é através desse dança, no sentido tradicional da palavra, por
distanciamento crítico que eu entendo que esse diversos artistas. Mas efetivamente trata-se de
corpo é um corpo antropofágico, que se apropria de uma política da percepção. Pois essas danças nos
seu tempo, com toda a sua força. E essas formas de dão a possibilidade de olhar o habitual de uma
expressão, de transgressão da lógica, do texto, são nova maneira. O corpo se torna, através delas,
uma resistência vital do nosso tempo, assim como caminho para uma nova percepção do sujeito.
as formas de teatro popular, a cultura popular. Eu E, por esse motivo, o trabalho artístico com o
gostaria de escutar um pouco sobre isso, já que seu corpo consiste basicamente num trabalho da
livro não discute essas relações. desnaturalização do corpo.

Eu penso que hoje o corpo se tornou um A tradição humanista sempre enxergou


campo de pesquisa central para muitas pessoas o corpo somente como uma função do espírito.
que atuam nas artes da cena. A presença do corpo Nesse sentido, o corpo sempre parecia ser

Hans-Thies Lehmann - Conferência Teatro Além do Drama: O Pós e o Pré-Dramático.


Revista Arte da Cena, Goiânia, v. 1, n. 2, p. 4-18, outubro 2014/março 2015
Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/artce
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apenas natureza, e foi tratado e concebido como se o teatro atual, ao redescobrir o sentido da
pura natureza. Mas o trabalho artístico com teatralidade, estaria refletindo, de modo indireto,
o corpo nos faz percebê-lo como um campo sobre o sentido da existência, de um ponto de vista
ainda inteiramente por descobrir. Na verdade, espiritual ou filosófico, de modo similar ao modo
qualquer corpo é uma multiplicidade de corpos. como refletia na época do pré-dramático. Numa
Nós temos um corpo do trabalho, um corpo palavra, quais as relações entre espetacularidade
do amor e muitos outros corpos que habitam e cerimonial, no contexto da teatralidade
o mesmo corpo, e o trabalho com as artes do contemporânea?
corpo possibilita-nos ressaltar esses múltiplos
aspectos. Para tratar da questão do cerimonial
e do espetacular, eu arriscaria a tese de que
Na Europa, eu vejo poucas experiências o cerimonial é o inimigo do espetacular. O
nessa área da cultura popular, mas talvez a gente espetacular, com frequência é apenas uma
também tenha que se afastar da ideia do populus. imitação do cerimonial. Claro que existem
O povo, em si, também é um conceito histórico. grandes cerimônias, como a coroação de uma
Se pensarmos hoje, junto com Deleuze, a partir rainha, que são bastante espetaculares. Mas o
da noção de multitude, então não estaremos cerimonial no teatro, ou o cerimonial que interessa
mais lidando com a noção de povo. Talvez ao teatro, é uma recordação da participação,
tenhamos apenas comunidades distintas, onde enquanto nos acontecimentos espetaculares, essa
a corporeidade pode se desenvolver de formas participação não passa de ilusão. O cerimonial,
diferenciadas. Essa seria minha observação no teatro, é aquilo que procura transformar o
inicial sobre o assunto. ser humano, mas na espetacularidade não se
pretende qualquer tipo de transformação. Um
Pergunta: Na contemporaneidade, nos deparamos acontecimento espetacular no mundo de hoje
com esse reencontro com o sentido da teatralidade. é uma herança do ritual arcaico, mas na arte o
Em Aristóteles, o que entendemos por teatralidade ritual não é arcaico. Na arte, o ritual se refaz,
está relacionado ao termo grego opsis, que pode vir ele é evocado para provocar um novo modo de
a ser traduzido tanto por cerimonial (um termo comunicação, enquanto nas sociedades antigas o
que possui proximidade com o campo do ritual), ritual servia para o fortalecimento da sociedade.
como também por espetacularidade (termo Este é um tema muito interessante e difícil de
de característica mais laica). Eu perguntaria tratar em poucas palavras.

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Pergunta: Você disse, no início de sua palestra, em encontrar alguém que nos mostre uma linha
que não existe um teatro pós-dramático. Não a seguir. Pelo contrário, a relativa unidade do
existe uma estética pós-dramática. Você também teatro europeu, durante um bom tempo, do
disse que hoje há vários tipos de teatro. Isso quer século XVIII ao século XX, foi resultado de um
dizer que nós estamos vivendo uma Babel do público relativamente uniforme. Existia uma
teatro? Que teatro é esse que nós vivemos hoje? espécie de público burguês, com um certo nível
É um teatro capaz de questionar o nosso ser e de de instrução, certas ideias específicas sobre a
proporcionar a festa? Assim como na Europa existe arte, a linguagem, que procurava uma espécie
uma cicatriz da segunda guerra mundial, aqui de espelhamento de si na arte. Mas esse público
no Brasil nós também tivemos algumas guerras uniforme está se desintegrando há tempos.
internas, com a instituição da ditadura militar. Eu Temos tipos de público muito distintos e,
acredito que essa tragédia interna tenha resultado consequentemente, também formas distintas de
num teatro com várias tendências. A história do teatro.
teatro brasileiro é muito nova, em relação à da
Europa, mas hoje eu percebo que existe um teatro Sobre as questões políticas, naturalmente
mais brasileiro, com várias tendências. o teatro sempre reage de uma forma muito
concreta ao mundo e à vida que ele está
Com certeza vivemos uma Babel das experimentando. E, neste aspecto, não existe
formas teatrais. Felizmente não temos mais nenhuma regra geral. Em cada país isso ocorre de
nenhuma academia ou governo que possa nos uma forma distinta, ou talvez até mude de cidade
dizer como o teatro deve ser. E isso eu só posso para cidade. Por outro lado, eu não creio que seja
achar um fato muito agradável. Afinal, temos a útil tentar procurar uma regra de dedução das
arte porque o ser humano sempre procura novas realidade sociais, diretamente para as expressões
formas para sua existência. E, por isso, com artísticas. Podem haver reações muito distintas
frequência, a defesa da arte em si já é um ato em relação a uma mesma situação. Não se pode
político. Pois o ser humano tem que ter o direito explicar o teatro a partir de uma determinante
de expressar as suas experiências. Qualquer histórica. Quando pensamos sobre teatro, nós
teatro é uma espécie de convite aos outros para temos que levar em conta essa experiência. E,
compartilhar um tipo de experiência. Então eu naturalmente, esperamos todos pela festa teatral.
não vejo nenhum problema em haver uma Babel Mas não se trata de uma simples festa, é uma
teatral. E também não tenho nenhum interesse festa com recordações. Recorda-se, por exemplo,

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que existem outros indivíduos que não podem a realidade essencial do ser humano aparece
participar dela. Uma festa teatral nunca pode ser como realidade da linguagem, não como uma
uma festa sem descontinuidade. Precisa haver realidade lírica ou da narrativa, mas de uma
uma recordação daquilo que está fora da festa. linguagem que, por sua vez, é intersubjetiva, ou
Não importa se são os excluídos ou os mortos, ou seja, o diálogo. Essa forma pressupõe a ideia de
aqueles que ainda não nasceram. Isso diferencia um sujeito que age, fundado na Renascença. A
talvez a festa teatral da festa na vida real, pois na ideia de uma nova consciência do ser humano.
festa da vida real podemos ser alegres de forma Esse sujeito entra em crise no final do século
contínua. Por outro lado, uma festa simples e XIX, com o desenvolvimento de um ceticismo
alegre, na arte, é um problema. em relação ao sujeito na sociedade burguesa.
Essa forma teatral, esse teatro dramático é
Pergunta: Eu tenho duas perguntas. A primeira multiforme. Às vezes existe coro, nas peças de
é: O pós-dramático está fundamentado numa Shakespeare. Mesmo em casos excepcionais,
compreensão do que é o dramático europeu. Eu aparecem coros depois. Existem também
gostaria de saber, com mais detalhes, o que é esse monólogos. Mas nada disso altera o fato de que
dramático europeu. A segunda questão é: Um das o diálogo é o fator central no drama. Além disso,
noções do teatro pós-dramático está relacionada o drama cria o que se pode chamar de cosmo
à ideia do fragmento, à estrutura fragmentada. fictício. Mesmo que, ocasionalmente, Ricardo
Como pode o fragmento ser crítico? III se dirija diretamente ao público, o drama
apresenta-se como um cosmo encerrado em si
Eu gosto muito da primeira pergunta, mesmo.
porque atualmente estou trabalhando num livro
que trata justamente dessa questão do dramático No século XVIII, esse coro se fecha
e de sua relação com o pós-dramático. Agora vou cada vez mais e, também nesse período, se nos
fazer um esboço para dar uma ideia acerca do lembrarmos, aparece a ideia da quarta parede.
assunto. Caso contrário, a gente vai ter que fazer Até esse momento, apesar da ideia de um cosmo
um seminário específico. Entre Shakespeare e fictício, os atores ainda se dirigiam diretamente
Ibsen, desenvolve-se uma linguagem teatral na ao público. Mas com as teorias de Diderot,
Europa, cujo centro é a intersubjetividade. O os atores começaram a se comportar como se
ser humano aparece no drama como indivíduo não houvesse público presente. E, com isso,
relacionado a outro indivíduo. Além disso, ocorre a transformação do teatro dramático

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num teatro literário. Esse modelo gerou obras esboço curto e incompleto. Mas o fato é que o
extraordinárias, de Shakespeare a Ibsen. Mas, teatro pós-dramático tende a superar as relações
ao mesmo tempo, reduziu certas possibilidades tradicionais com o espectador.
da comunicação teatral. Por exemplo, a ideia
da co-presença de público e atores foi utilizada

N
muito pouco, nesse modelo teatral. Na sociedade
midiática, redescobrimos que essa é justamente
uma das grandes possibilidades do teatro. Por
OTAS
isso, no teatro de hoje raramente encontramos
a ideia do cosmo fictício. Nós encontramos 1
Lehmann gesticula, em alusão à estrutura
fragmentos da realidade que, de alguma forma, clássica do teatro onde a palestra está ocorrendo,
estabelecem comunicação com a plateia, e isso com o distanciamento entre ele, falando em cima
eu gostaria de chamar de pós-dramático. do palco, e o público, ouvindo na plateia.

Nesta linha de pensamento, também


pode-se dizer que o aspecto fragmentário do
* HANS-THIES LEHMANN é um dos mais
teatro tem uma potência e um valor crítico. Ele
importantes teóricos do teatro contemporâneo
provoca a participação do público de uma forma e da estética teatral. É professor de Estudos
Teatrais da Universidade Goethe, em Frankfurt
aberta, muito distinta àquela forma fechada que
am Main/Alemanha, e membro da Academia
a noção de cosmo fictício provoca. Onde existe Alemã de Artes Cênicas. Entre seus livros
o fragmento existe a provocação para que se destacam-se Teatro Pós-Dramático e Escritura
Política no Texto Teatral. O Hans-Thies Lehmann
complete, que se acrescente algo. Aonde não existe Brasil Tour 2010, idealizado e produzido por
coerência, eu preciso usar de minha imaginação Wolfgang Pannek, co-diretor da Taanteatro
Companhia, promoveu uma série de palestras e
para criar contextos, conexões. E, por isso, o seminários realizados por Hans-Thies Lehmann
fragmento, para o teatro contemporâneo, torna- e Eleni Varopoulou (teórica teatral e tradutora).
Em Goiânia, o tour assumiu o formato de
se algo muito importante. Porque ele se opõe ao uma conferência internacional, realizada no
espetacular, no sentido negativo. Pois essa noção Teatro da Escola de Música e Artes Cênicas
da Universidade Federal de Goiás, através do
do espetacular pode muito bem se relacionar projeto Universidade em Cena, coordenado
com a teoria da sociedade do espetáculo, de por Alexandre Nunes. A conferência ocorreu
durante três dias consecutivos, reunindo cerca
Guy Debord. Esse é um tema muito específico
de 250 pesquisadores, oriundos de diversas
e também amplo, por isso só posso dar um partes do Brasil.

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