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22-26
Autor: Augusto Ernesto Kunert
Data Litúrgica: 12º. Domingo após Trindade
Data da Pregação: 21/08/1983
Proclamar Libertação - Volume: VIII
Marcos é reconhecidamente o evangelista que leva a tarefa do Messias muito a sério. Sua
tese, que o Messias se revelará em toda sua autoridade depois da cruz, leva a guardar o
segredo do Messias. Daí o motivo do isolamento do enfermo, exigindo que o resultado
obtido com a cura permaneça desconhecido. (Schniewind, p. 113) Isto nos e dado a
verificar também em Mc 1,44; 5.43; 7.36.0 curado recebe a ordem de retirar-se para sua
casa, sem antes procurar o povoado. Jesus não quer que a ocorrência seja divulgada
entre o povo.
Um grupo de exegetas considera a cura por etapas como importante, dizendo que a cura
lenta, como a temos anteriormente mencionada (7.31), fica melhor descrita no texto Mc
8.22-26. (Schniewind, p. 113) Outro grupo de exegetas é de opinião que a cura lenta é
uma simples forma literária a descrever o contato entre Jesus e o enfermo.
Temos alguma semelhança nos textos Mc 7.31-37 (cura de um surdo e gago) e Mc 8.22-
26 (cura de um cego). A partir desta relação, não faltam as vozes dos que opinam que se
trata de uma só ocorrência, que foi, posteriormente, desdobrada em duas curas. Em geral
-se opina que são duas curas distintas, arrolando-se como argumentos: 1. A cura do surdo
e gago aconteceu no roteiro da viagem de Tiro para Sidon. A cura do cego ocorreu em
Betsaida. 2. A narrativa dos acontecimentos de uma difere da outra. 3. Numa ocorrência
fala-se nos que se maravilharam, a outra silencia a respeito. 4. Numa. em decorrência do
EFATA = abre-te, a cura foi mais rápida, enquanto que em 8.22-26 temos a cura lenta.
Concordo com os que afirmam que temos dois acontecimentos distintos.
II — Referências exegéticas
V.22: Nos textos 7.32 e 8.22 nos é dito que “lhe trouxeram um surdo, respectivamente um
cego. Considero esta constatação importante. Ela o é exatamente para o serviço cristão do
membro e da comunidade toda. Pessoas preocupadas com outras pessoas. Pessoas
envolvidas com problemas de irmãos. O cego não é abandonado. A família, amigos,
pessoas se põem a serviço do doente. No lhe trouxeram, mesmo que aconteça no
anonimato, se manifesta o serviço cristão (veja Ef 4.11-12). para o qual somos convocados
como membros no corpo de Cristo, na resposta obediente da fé.
As pessoas que trouxeram o cego pedem que Jesus o toque. O contato direto entre Jesus
e o doente é importante. É importante no ato da cura. mas não é menos importante como
relacionamento entre Jesus e nos. Mesmo que não haja hoje o contato físico, o nosso
contato/relacionamento com Jesus é indispensável. Enquanto que Mc 8.22 fala no que o
tocasse, Mc 7.32 diz que impusesse a mão sobre ele. Aqui me vem o pensamento da
bênção, da imposição das mãos como benção, como transmissão de força, de poder, de
ajuda, de aceitação. O procedimento de tocar no doente ou de lhe impor as mãos é praxe
em Israel como método de transmissão de forca. Tanto em 7.32, quanto em 8.22, o
contato pessoal transmite ao doente força que cura que renova, que salva da doença.
Vv.23 e 24: Jesus toma o cego à parte. A cura não ocorre no meio da multidão. Mesmo
assim, o v.24 nos deixa subentender que havia pessoas por perto. Não sabemos se foram
os discípulos ou se foram estranhos que estiveram por ali.
Jesus usa saliva. Jesus usa o contato físico e a saliva como método de cura. Com isto
Jesus não introduz novidade no processo da cura, mas permanece na tradição existente.
Jesus evita, com o seu procedimento, ser considerado milagreiro ou curandeiro. O método
é externo. O poder de curar tem outra fonte. O contato e a saliva dão ao cego o
entendimento de que algo vai acontecer com ele. De que Jesus se envolve com ele, de
que Jesus o aceitou. O contato não é a cura em si. Mas o meio da transmissão de poder,
como nos relata Mc 5.30: Jesus reconheceu que dele saíra poder... Aqui. No poder de
Jesus, está a (orça da cura).
Jesus pergunta ao cego: Vês alguma coisa? Ele vê alguma coisa. Os seus olhos
novamente receberam a luz. Eles sabem distinguir os objetos, porém, ainda não têm visão
nítida. Ela ainda está prejudicada, continua confusa. Mas a escuridão total foi vencida. No
cego nasce a esperança de que os seus olhos se abrirão novamente.
V.25: Diante da falta de nitidez da visão do enfermo, Jesus volta a colocar-lhe suas mãos
nos olhos e o enfermo passa a ver claramente. O homem tem suas vistas completamente
recuperadas. O termo restabelecido, em 8.25, ou, como fala em 3.5, restaurado é um
termo técnico na medicina da época, mas tem, ao mesmo tempo, significação apocalíptica.
O fato ocorrido indica a presença daquele que há de vir. Aponto a tese do segredo
messiânico de Marcos. Jesus, o Messias, cura os males, perdoa pecados, é Senhor sobre
o sábado.
V.26: Jesus despede o curado. O mesmo recebe a recomendação de que não divulgue o
acontecido, que evite o povoado. Diversos exegetas, conforme literatura à minha
disposição, opinam que Marcos usa este procedimento para encobrir ainda a identidade do
Messias; que, para Marcos, Jesus somente poderá ser reconhecido em sua plenitude, a
partir da cruz. A cruz, portanto, é a revelação do Filho do Deus vivo, que veio para buscar
e salvar o que estava condenado e perdido. Até o acontecimento da cruz, vale para
Marcos o que Jesus disse em Jo 2.4: Ainda não é chegada a minha hora. Para Marcos, a
cruz é a hora da revelação de Jesus como o Messias prometido.
Joachim Gnilka (p. 313) afirma que a perícope pertence à pregação missionária dos
cristãos judeus e helenistas. Ela anuncia a Jesus como o renovador da criação e como
aquele que traz a salvação messiânica.
A saliva, na compreensão popular e na dos rabinos, tinha força de cura de doenças, forças
para banir o maligno. Os rabinos a usavam como remédio contra infecções dos olhos. E
Jesus usou saliva na cura do surdo e gago e na cura do cego. Com este procedimento,
Jesus aceita e usa tradições e práticas conhecidas entre o povo. As curas nos textos 7.31s
e 8.22s obedecem a um processo com categorias populares e aceitas em Israel. O uso da
saliva e a imposição das mãos são o sinal para o doente de que algo está acontecendo
com ele. O enfermo nota que lhe é prestado auxílio. A saliva em si não tem poder. Ela é
veículo para transmitir ao paciente o poder renovador de Jesus, assim como o é a
imposição das mãos.
IV — Os milagres de Jesus
Os sinóticos relatam, de maneira especial, os milagres de Jesus. Joachim Gnilka esclarece
que os relatos dos milagres têm 3 partes essenciais (p. 221):
O poder da Palavra cria uma nova realidade. A partir daí, compreendemos que Jesus
renova o homem, tanto em sua vida interior, quanto de pessoa doente para pessoa
fisicamente sadia. O conceito que afirma que Marcos entende o Evangelho a partir da
Paixão de Jesus faz com que os milagres sejam para ele direcionados da mesma maneira.
A fé, no contexto a fé no crucificado e ressurreto, vem a ser fundamental (Mc 10.52). A fé
faz com que tenhamos sal em nós mesmos e paz uns com os outros. (Mc 9.50) O anúncio
da Palavra, a exposição doutrinária e os milagres estão interligados. Os relatos dos
milagres são mensagem. Considero-os a concretização, o serviço da Palavra. Isto
compreendemos melhor, quando Mc 1.2 nos diz maravilharam-se de sua doutrina; também
1.27 o repete com as palavras todos se admiraram. A admiração, o maravilhar-se está
ligado com a doutrina, tanto quanto com os milagres (Mc 7.37). O milagre é pregação
visível. O milagre é a concretização da Palavra. Exatamente por este motivo, devemos
manter a unidade de pregação e ação, de anúncio e serviço. Separar anúncio e serviço é
também separar a vivência cristã em sacro e profano; seria divorciar a mensagem da
vivência concreta do homem.
Mesmo que Jesus proíba aos curados de falarem no ocorrido, seu nome se torna
conhecido pelo país afora. E o povo se pergunta: Quem é este Jesus? (1.27; 4.41; 6.14-
16) E o próprio Jesus pergunta aos discípulos: Mas vós, quem dizeis que eu sou? (8.29)
Os milagres fazem parte da revelação de Deus em Jesus Cristo. Eles também são
resposta à pergunta: Quem é Jesus?. Eles são testemunho do poder, da autoridade de
Jesus. Eles participam da revelação a quem é dado reconhecer: Tu és o Cristo. (8.29) Os
milagres atestam a presença de Deus no mundo; Deus está conosco. São sinais da
preocupação do Senhor com o mundo, com o homem, sua saúde, seu bem-estar. Os
milagres são sinais da atuação renovadora de Jesus Cristo no mundo caído. São sinais do
Reino de Deus, já agora e aqui. Eles são serviço do amor de Jesus Cristo.
A mensagem da Paixão e a mensagem dos milagres estão ligadas entre si. Jesus, o
operador dos milagres, é o mesmo Jesus do sofrimento. Há aqui uma tensão dialética.
Não podemos, porém, separar o próprio Jesus. Sim, ele é o Senhor e Salvador do mundo
e, ao mesmo tempo, sofre para salvar o mundo. É importante reconhecermos que Jesus, o
que fala com autoridade, e Jesus, o que opera milagres, é o mesmo Jesus da Paixão, da
morte na cruz, pois o caminho da ressurreição e da reconciliação passa pela cruz.
a) Jesus é o Cristo. Jesus é o Filho do Deus vivo e, como tal, é o Senhor do mundo, que
age com autoridade, tem poder sobre o sábado, a doença, etc.
b) Jesus, o Senhor do mundo, nos abre, juntamente com a cura dos males, a
compreensão de sua Palavra.
4. O texto nos permite a compreensão de que a cura do cego (outras curas também) é a
ação de Jesus Cristo contra a miséria humana em um mundo caído. Ele nos dá margem
para situar a cura como transformação de situações, a partir do poder e da ação de Jesus
Cristo, contra a injustiça social, contra a marginalização de pessoas e contra a exploração
do homem pelo homem. Seguramente os milagres, como de resto a mensagem de Jesus,
estão relacionados com a situação calamitosa em que vive grande parte do povo. Ao
reconhecermos que os milagres são pregação concretizada, reconhecemos a importância
dos mesmos para a nossa situação brasileira. Devemos, porém, ter todo cuidado para não
nos atermos a princípios econômicos, sociais e políticos, prejudicando ou até confundindo
a mensagem evangélica com conceitos ideológicos, resultando nossa prédica numa
tremenda moralina, e caracterizando-se como se mudanças, transformação e renovação
dependessem da maior ou menor boa vontade do homem. Uma tal linha na prédica seria
um desastre e um total abuso do texto.
5. O Evangelho nos mostra a grande luta do Reino de Deus contra o poder das trevas. O
poder das trevas nada poupa. (1 Jo 3.8) E a luta acontece na vida das pessoas e na
história do mundo. A Bíblia desenvolve os acontecimentos desde a criação do mundo, da
queda do homem, da salvação e consumação dos tempos. A mesma caminhada está no
sofrimento e na cura do cego. Assim como o corpo sadio pode ser um exemplo para o
milagre da natureza intata, demonstra-se no sofrimento do cego a miséria do mundo caído
que, submisso ao poder maligno, não consegue ouvir a Deus. Mas o Senhor do mundo,
que tudo fez bem com o cego, fará tudo bem no final dos tempos e devolverá à criação
caída sua ordem primitiva, voltando a ser válido o que foi válido no principio dos tempos.
(Lohmeyer, p. 202) Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. (Gn 1,31) Assim,
com o Cristo presente, na ação do Cristo no mundo, na vida das pessoas, como
renovação do homem interior e como renovação do corpo, irrompe o Reino de Deus entre
nós, em nosso tempo. No sofrimento do ainda não, nos vem a alegria do já agora. Assim
foi dado aos discípulos experimentar, na ação de Jesus, o Reino de Deus em seu meio. A
cura do cego é indício da presença do Reino de Deus. Na cegueira, o cego vivia no
sofrimento do ainda não. Em sua cura, tanto espiritual, quanto corporal, viveu a alegria do
já agora do Reino de Deus. Vivemos na tensão do ainda riflo e do já agora, indo ao
encontro da consumação dos tempos, quando Deus será tudo em todos, quando a criatura
receberá libertação plena, os homens e toda criação serão renovados, então o já agora se
terá desenvolvido em sua plenitude e o Reino de Deus se manifestará em todo seu
resplendor.
6. Ao povo de Deus, que atende a sua missão na obediência de fé, o Senhor do mundo e
da Igreja não deixará de confirmar a pregação da Palavra por meio de sinais (Mc 16.20); o
serviço cristão (Ef 4.11-12) deverá considerar o homem todo. A separação do homem em
corpo, espirito e alma não tem validade. Experiência muito importante temos na poimênica.
A preocupação com o homem todo, como os milagres no-lo mostram, nos ensina que a
oração com doentes, a bênção de doentes e a imposição das mãos são fatores
importantes na vida do irmão que crê em Jesus Cristo. Não são poucos os casos que nos
testemunham curas também de males físicos. Os milagres tratam da preocupação de
Jesus com o homem todo. Ele age em nossa vida espiritual: Os teus pecados te são
perdoados. (Mt 9.2) Ele age em nossos males físicos: Toma a tua cama e vai. (Mt 9.6)
VI — Subsídios litúrgicos
2. Oração de coleta: A ti, Senhor e Salvador, que sofreste as dores da cruz, nós rogamos:
fortalece, segundo a tua promissão, com a força do teu Espirito, a todos irmãos em
sofrimento; em sofrimento por doença; em sofrimento por perseguição; em sofrimento por
injustiça, em sofrimento por fome! Consen-te, Senhor, que a tua Igreja, em meio ao
sofrimento, cresça em graça, cresça em consolo, para a glória de teu santo nome.
3. Sugestões para a oração de intercessão: Lembraremos os irmãos em sofrimento.
Devemos incluir na intercessão os cegos, os paraplégicos, a todos os prejudicados física e
mentalmente. Devemos também, no espirito da Palavra de Deus, como anúncio e ação,
dizer da nossa responsabilidade de serviço em favor dos que sofrem; incentivar e
agradecer pelos grupos de serviço na comunidade que visitam doentes e idosos, tanto nos
lares, quanto nos hospitais. Julgo importante incluir na oração o trabalho anónimo,
realizado por familiares, por vizinhos e pessoas amigas, em favor de pessoas fisicamente
prejudicadas. Para tanto nos induz o e lhe trouxeram um cego do nosso texto. É
importante considerar o serviço cristão nos valetudinários, nos hospitais, nos lares e nas
ruas. Eu intercederia também pelo trabalho dedicado da APAE e de serviços similares
existentes no âmbito da comunidade.
VI — Bibliografia