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Os Contos dos meus Sonhos
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Ngola Mufasa
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Os Contos dos meus Sonhos
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Ngola Mufasa
À Ana Malengue e
Suriela Chipululo
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Os Contos dos meus Sonhos
AGRADECIMENTOS
Para que esta obra fosse produzida, foi necessário, primeiro, que eu
tivesse vida e acesso ao ar que respiro. Consequentemente,
agradeço à Deus que me dá a vida e o ar que respiro, força e
motivação.
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Mia Couto
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Os Contos dos meus Sonhos
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Os Contos dos meus Sonhos
NOTA DO AUTOR
Cada conto deste livro foi escrito para entreter o leitor, porém cada
um carrega consigo, um momento qualquer – uma página, um
parágrafo ou mesmo uma linha –, com uma intenção lúdica, que se
manifesta, muitas vezes, pela interpretação subjectiva.
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Ngola Mufasa
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Os Contos dos meus Sonhos
Sumário
PRÓLOGO……………………………………………………...14
A FORMIGA PREGUIÇOSA……………………………….…16
O SONHO DOS CHOROS: CHOROS DOS GRILOS ............... 23
MORCEGOS DE OLHOS ESCUROS E ALMAS… ALIÁS,
ASAS CORTADAS ..................................................................... 28
A BORBOLETA DA BERTA ..................................................... 39
A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO ...................................................... 53
AS DOUTRINAS DA NOSSA ALDEIA .................................... 65
OS JOGOS DO JOJÓ .................................................................. 69
O CANECA EM PLENA SECA ................................................. 81
O KIAME ENTRE AS TREVAS ................................................ 95
“SE EU SOUBESSE…”, MAS NUNCA SE SABE ................. 104
O SEGREDO DOS EMBONDEIROS ...................................... 109
COMO AS CORES FORAM COLORIDAS............................. 115
SEJAMOS TODOS FORMIGA ................................................ 125
O NADA TAMBÉM É ALGO .................................................. 135
BIOGRAFIA .............................................................................. 137
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Ngola Mufasa
PRÓLOGO
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Local onde são realizadas reuniões de assuntos diversos, na Cultura Ovimbundu.
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Os Contos dos meus Sonhos
quarta palavra da sua “ex” pergunta: não seria bom ter um melhor
amigo surdo, mudo e cego. Para ser bem sincero, todos nós
estaríamos (surdos, mudos e cegos) caso o Filho-Tito dissesse a
resposta, o que nunca faz; mas o melhor, é sempre, nos limitarmos
em não perguntar.
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A FORMIGA PREGUIÇOSA
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Os Contos dos meus Sonhos
Como velhos amigos que somos, mesmo sabendo que temos pouco
Tempo de vida e por isso não somos necessariamente “velhos
amigos”, ficamos fora de nossas casas a observar as estrelas e
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Ngola Mufasa
Parei por alguns instantes, que só deu para conversar com o meu
amigo leão e o elefante – outro amigo há Tempos. Meu Avô
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Ngola Mufasa
O Avô ergueu a minha cabeça com uma das suas mãos do meio, e
direcionou os meus olhos num Além muito mais próximo do que o
que está perto e, de uma dinstância curta, além do normal, vi uma
formiga sentada à sombra de uma árvore, com olhos arregalados, e
a sua enxada que estava encostada no tronco da árvore.
Olhei para o Avô, com uma face que indicava interrogação, e ele
começou a proferir um sermão, depois de uma conversa amigável
– notava-se pelo seu semblante – com a formiga cansada, em uma
linguagem que só os do Além percebem:
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Os Contos dos meus Sonhos
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Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de “engraçada”.
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Ngola Mufasa
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Nesta manhã, jurei para mim mesmo nunca mais ser preguiçoso,
para evitar a desobediência e, assim, evitar o pior.
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Os Contos dos meus Sonhos
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Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de: “difícil compreensão”.
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Os Contos dos meus Sonhos
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Raízes ultilizadas para fazer uma bebida tradicional Bantu, “Kissangua”.
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Instrumento feito de madeira, utilizado para pisar o mbundi.
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Os Contos dos meus Sonhos
E o facto mais curioso, por quê é que temos que aprender no sonho
sobre “o choro dos grilos”?
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Ngola Mufasa
Senti os meus pés, mesmo não estando eles ligados ao meu corpo,
a serem picados por cobras venenosas sem dó e nem piedade, no
mesmo momento que os lagartos vindo de algures me picavam os
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Os Contos dos meus Sonhos
braços. Uma cobra que descansava numa árvore sem folhas nem
cáule, rastejou pelos ramos da mesma, e depois saltou e começou a
rastejar no capim e vinha em minha direção. Eu queria correr, mas
estava sem os meus pés, e os meus pensamentos que me ajudavam
a locomover, pararam de pensar.
porque estava cada vez mais sufocada e não conseguia mais respirar
em condições aquele ar nojento e fedorento.
***
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Os Contos dos meus Sonhos
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Calão, utilizado no sentido de “cansaço ou fadiga”.
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Os Contos dos meus Sonhos
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Palavra gramaticalmente errada, porém utilizada referindo-se ao “ouvido no seu todo”.
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Ngola Mufasa
O Avô, estava também a sentir o meu sofrimento, foi isso que ele
disse, depois de me envolver em seus braços invisíveis e sentar ao
lado de uma árvore que falava. “Mas não posso te livrar deste
sofrimento, infelizmente”, ele disse. Eu perguntei quais eram os
motivos que faziam com que eu não fosse livrado, e o Avô me disse
de forma subtil: “ Você desobedeceu as regras da sua mãe, que
consiste em não sair de casa logo após o almoço”. Eu levantei as
sobrancelhas, como sinal de que não estava a entender a situação.
“as regras, não importam quão antigas elas sejam, se não foram
revogadas continuam a ser regras”, continuou, “ e você
desobedeceu! Por isso estás a pagar neste sonho”, terminou.
– Ir podes já. – Me disse o Avô… ou melhor, a sua sombra, naquele
ambiente mais fúnebre e funesto que eu já conheci.
Limpei as lágrimas de sangue pela milésima e última vez naquela
noite, e em seguida deixei o Avô e seus morcegos de almas e asas
cortadas, para voltar à Realidade Real
***
Realidade Real:
Não vi, nem senti o meu rosto molhado de lágrimas, mas os lençóis
em minha esteira estavam húmidos. Não tinha nenhuma ferida nem
ferimento, mas sentia dores insuportáveis. Era como se os
acontecimentos e sentimentos daquela realidade inexistente se
transformaram em realidade real. Ou seja, não só nos sonhos, mas
em toda a aldeia: o que é, pode não ser.
ODEIO OS PESADELOS DA NOSSA ALDEIA. NÃO SÃO
COMO QUALQUER UM QUE POSSAS IMAGINAR, SÃO BEM
PIORES!
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Os Contos dos meus Sonhos
A BORBOLETA DA BERTA
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Palavra empregada no sentido de “tomar” – sol.
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Palavra utlilizada para descrever de forma abusiva pessoas que têm dificuldade visual.
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Ngola Mufasa
me tratam por este “facto”. Tentei ficar chateado com ela, mas era
a Berta; pensei em lhe dar um tapa pela ofensa, mas era a Berta. E
a Berta, não era qualquer um: é a menina mais linda da aldeia.
Quando cheguei ao rio, ele estava quente, o que era bom, e dei um
pino10, sem mesmo antes tirar a minha camisa laranja e um calção
desportivo. Quando entrei, me despi de mim mesmo para me vestir
de um outro eu; me aprisionei naquela liberdade perpétua, que
duraria instantes; abracei a água como nunca antes a senti; emergi,
me envolvi, sem medo de ser decepcionado pela seca. E como digo
e sentia: eu amava a liberdade, euforia e tranquilidade.
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Calão usado no sentido de “mergulhar”– dar um mergulho.
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Os Contos dos meus Sonhos
Fomos às corridas, cada um para a sua casa, mas o cão ficou ainda
fora a vaguear, pois não lhe era permitido comer com os seus donos.
Eu não podia nem lhe dirigir a palavra e, para além disso, ele já
estava com uma cara trombuda14, parecendo estar muito nervoso.
Eu só queria terminar de comer, ir para o meu quarto descansar e
sair daquela área que me causava tormento.
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Assento feito de madeira e pele de animal, na Cultura Bantu.
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Calão, significando assim seriedade ou uma certa má disposição.
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Ngola Mufasa
– Já podes ir.
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Contração de: “de uma”.
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Os Contos dos meus Sonhos
Ela carregava uma pasta bordada, que estava cheia de coisas que eu
não sabia o que eram, e nem queria perguntar. Não podia estragar
o momento.
– Estou. – Sorri.
– Vamos, antes mesmo que eu me arrependa.
A Berta não era de poucas palavras. Mas naquele dia disse quase
nada. Eu nem lhe dirigi a palavra, mas depois de percorrermos uma
longa distância, achei que eu já podia dizer alguma coisa, porque
era já não era possível a Berta mudar de ideia.
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Ngola Mufasa
– Senta aí. – Ela disse, indicando para um outro sítio onde tinha
várias pedras de tamanhos diferentes. Escolhi a maior entre elas, a
que não me causaria muita dor nas nádegas, e me sentei, depois de
encostar a pedra ao lado da pedra onde sentava a Berta.
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Os Contos dos meus Sonhos
voz era linda. Os pássaros voando faziam para nós uma espécie de
coro.
– Oquê? – Perguntei.
– Você acha mesmo que eu te trouxe aqui para pedir desculpas? –
Ela soltava gargalhas sarcásticas.
– Foi você quem disse isso. – Falei me defendendo, mesmo sabendo
que eu sou indefeso e vulnerável diante dela.
– Ahn… eu estava a brincar.
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– Agi daquela forma porque não tive uma noite das melhores…
– Um sonho dos melhores, queres dizer. – Interrompi.
– Uma coisa causa a outra, então são a mesma coisa. – Se defendeu
ela.
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Os Contos dos meus Sonhos
Discutimos por mais alguns instantes, até que ela resolveu admitir
que estava errada, e continuar:
– Então vim aqui para te pedir perdão pela forma como te tratei
nesta manhã, e para me destrair também. Amo este… – Ela pensava
no que ia dizer – este monte das descobertas.
– Não faz mal. Eu entendo. Também já tive péssimos sonhos. – Me
aproximei mais dela.
– Tá bem. Obrigada Zitúu, virosca. – Já não ofendi-me mais com
esse comentário, porque ela riu enquanto dizia.
– Já está a anoitecer, vamos. – As luzes artificiais daquele lugar
distante estavam a se acentuar cada vez mais. Eu queria poder ficar
para contemplar tamanha beleza, mas não podíamos. Estava a
anoitecer cada vez mais.
– Você não sabe esperar? – Eu não disse nada, preferi me manter
calado. Ficamos alguns instantes lá, sem dizer nada, e depois
começamos a descer.
– Toma. – Esta era provavelmente a terceira vez que ela disse esta
palavra só nesta tarde. Me parecia que ela tinha tudo planejado há
Tempos. – Tens que pegar assim, e iluminar no caminho onde
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Os Contos dos meus Sonhos
Ela veio até mim, com a borboleta em suas mãos, que era mais
brilhante que vista de lá de cima. As mãos da Berta estavam
coladas, mas os dedos estavam entreabertos, e a borboleta estava
dentro. Eu nunca vi a Berta tão feliz, durante esses todos Tempos
em que nos conhecemos. Ela olhava para a sua borboleta com um
sorriso no rosto; e eu, não mais olhava para a linda borboleta, e
comecei a olhar para a beleza da Berta que estava possuída por um
sorriso distraído porém belo, contaminado pelas luzes das
borboletas: ela sim era a verdadeira borboleta. “ Você é a verdadeira
borboleta”, pensei, quando olhava para ela sorrindo feito louca.
A Berta, com o medo que tinha, lhe deu toda a batata que estava em
sua bolsa de renda.
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– Deves estar cansado e com fome. Janta e depois vai dormir. – Ela
disse. Aquele foi o melhor sentimento de alívio que já senti.
Aquele foi realmente o melhor dia da minha vida. Nunca subi uma
montanha tão alta, e nunca vi uma cidade tão linda, mesmo que de
longe. Nunca vi borboletas tão lindas e reluzentes. Nunca vi
também a Berta tão feliz com a “sua” borboleta. Mas, para mim, a
Berta era a verdadeira borboleta…
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Alimento feito de farinha de milho ou mandioca.
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Os Contos dos meus Sonhos
A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO
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Palavra usada no sentido exclamativo, na língua Umbundu.
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Os Contos dos meus Sonhos
algo que não acontece sempre, e depois fui à minha cama para
dormir.
“Talvez seja por isso que o meu Avô deu-me um sonho relacionado
à realidade da conversa no Onjango”, pensei.
***
Me levantei, meti o meu calção preto para sair e ver o que se pasava.
Encontrei a Prima-Fati sentada em um kachalo, na nossa pequena
sala. Ela estava calma, porém lacrimejava. Mas quando me viu,
limpou e disfarçou.
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Os Contos dos meus Sonhos
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Ngola Mufasa
Quando acordei, fui até a casa do Kiame para lhe chamar, e juntos
fomos ao rio com baldes para pegar água e regar as nossas plantas.
O rio em que nós fomos, não é o mesmo onde o Primo-João estava.
Segundo a Prima-Fati, o rio onde o Primo-João estava era muito
distante da aldeia. Era um pouco no além de Greenland.
***
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Os Contos dos meus Sonhos
Como eu não estava com muita fome, nem estava muito cansado, a
minha comida foi suficiente para que eu ficasse satisfeito.
Senti pelo cão. “ Não há nada que eu possa fazer. Não, há…”,
pensei, com o indicador encostado no queixo. Fui até a cozinha,
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Ngola Mufasa
O cão foi, todo feliz da vida para o seu caminho. Fiquei feliz por
ter ajudado o cão, mas pensei: “ eu não devia ter tirado a comida do
Primo-João”, mas esta linha de pensamento foi imediatamente
corrompida por outra, que se baseou nas palavras da Prima-Fati: “
ele só vem amanhã, ou na próxima semana”. Até aí estava tudo
bem, até eu ter o maldito pensamento de que o “amanhã” a que a
Prima-Fati se referia, era “hoje”. Agora, fiquei mesmo preocupado.
***
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Os Contos dos meus Sonhos
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Neologismo. Assim escrito em vez de “claro”.
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Os Contos dos meus Sonhos
– Coisa outra qualquer não e, Avô chamar-te que tenho é quê por,
Avô?
– Importantes tão assim são não nomes dos significados os, aldeia
nossa da distantes, bandas aquelas para. – Falava o Avô, ainda
sobre as outras bandas de Greenland.
– São nós para e? – Indaguei.
– Não também. – Respondeu o Avô.
– Avô porquê?
– Importantes mais o são tratamento de formas as nós para. – Disse
Avô.
– Ahn… – admirei.
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Os Contos dos meus Sonhos
Mais tarde o Avô explicou-me que devo lhe chamar de Avô porque
ele é o pai e progenitor da minha descendência. O Filho-Tito, tem
que ser chamado de Filho porque milhões de pensamentos nascem
em sua mente cada vez que lhe fazemos uma pergunta no Onjango.
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Os Contos dos meus Sonhos
OS JOGOS DO JOJÓ
O Jojó era maior, e mais habilidoso que eu. Ele parecia ser mais
forte, e talvez era. Mas quando se fala de rio, eu sou um perito:
passei mais momentos naquele rio com o Kiame e o Caneca, do que
em qualquer um outro lugar: eu nadava feito peixe, porque o rio era
também a minha casa.
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Chegamos à aldeia, e tudo estava calmo por lá, como sempre. Antes
mesmo de ir até a minha casa, fui até a casa do Jojó para pegar a
minha comida. Comida dele que ganhei, na verdade. O Kiame
decidiu me acompanhar.
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Os Contos dos meus Sonhos
Eu e o Kiame não nos importamos com mais nada, nem com facto
de ter que comer com as mãos, e começamos a devorar. Depois de
comer, o Kiame rotou e disse:
Em minha casa comi, lavei a louça e dormi: não era um sono como
o sono dos sonhos. Este é mais superficial e seco. Na verdade, nem
é dormir., é apenas descansar.
Aqueles animais viviam numa paz sem igual, pelo menos foi o que
constatei. Mas, na Inexistência, o que é, pode não ser. Mas eu tenho
quase uma plena certeza de que aquilo foi. Foi real. Eles viviam
numa paz sem igual.
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– Não. Esse não. – Neguei porque eu sabia que seria o maior dos
castigos para mim carregar o Jojó, caso eu perdesse, o que era o
mais provável: ele era do meu Tempo, mas um pouco mais forte
que eu.
– Tá bem. Tive outra ideia.
– Diz…
– Quem perder, entregará o seu almoço para o vencedor. – Essa
proposta era mais leve, pois eu teria outra alternativa caso perdesse:
comer muita manga das árvores que estão no caminho da aldeia.
– Está bem. – Concordei. Eu estava muito confiante. Mesmo que o
Jojó era mais forte que eu fisicamente, eu tinha que mostrar para
todo mundo que era capaz de vencer, então não podia ficar tímido.
Eu, na água, batia a água com muita força e rapidez, mas não valeu
para nada, porque o Jojó era – desde sempre, em tudo – mais rápido
do que eu. Ele me passou com uma habilidade de natação
excepcional.
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Ngola Mufasa
Momentos depois:
Mas aquela árvore que avistei tinha uma manga amarela, que
parecia estar pronta. Eu vi primeiro, então seria minha, segundo as
nossas regras de amizades escritas nas estrelas e nas nuvens. Mas o
Jojó, rebelde que era, correu para lá primeiro. Ele mandava lixar
todas as nossas regras.
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Calão, siginificando “pessoa que come excessivamente”.
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Não sei, sinceramente, qual dos factos foi real. Não consigo sentir,
nem explicar qual deles foi o sonho. Mas o que mais me dói é o
facto de ter perdido, em qualquer uma das realidades, o jogo do
Jojó.
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– Nós descobrimos que as árvores têm vida, porém essa vida não
é delas. Lhes é emprestada pelos ancestrais. Eis a razão de, durante
a noite, as árvores respirarem com muita brutalidade: para
adqurirem o máximo possível de oxigénio, por ausência de vida. –
“ Ahn…!” Eu e o Kiame admiramos.
– Por isso dizem que não devemos dormir próximo de árvores e
plantas. – Disse a Berta, terminando o pensamento da Nzola.
– Outro facto curioso, que o Filho-Tito me ensinou, é que apenas
os que têm o nosso Tempo de vida é que têm os seus ancestrais
escondidos em embondeiros…
– Apenas os meninos com os nossos Tempos sonham. – Disse eu
completando, ou talvez discordando com a Nzola.
– Vocês não acham que estamos a falar muito, e os olhos do Caneca
estão cada vez mais brilhantes? – Disse o Kiame. Desta vez, sem
sarcasmo nem intenção humorística.
– Ele tem razão Nzola. – Concordou a Berta.
– Yah. Mas só mais uma coisa: esta árvore de embondeiro está no
centro destas árvores, porque é o centro dos nossos ancestrais.
Aquela lá da aldeia é uma espécie de… sei lá, talvez um quarto. –
A Nzola só podia estar mesmo maluca. Mas não duvidei, pois ela
pode ter aprendido isto em um dos seus sonhos, tal como eu já
aprendi muita coisa nos sonhos, que não têm sentido na Realidade
Real.
– E o que temos que fazer? – Questionei, pois ainda estávamos no
meio daquele Nada.
– Não estamos no meio do Nada. – Disse a Nzola, se movendo de
um lado para outro. Ela parecia estar mesmo a ler os meus
pensamentos. Como é que ela sabia que eu achava aquilo um Nada?
– Temos que entrar na árvore.
– O quê? Nzola você está mesmo louca. – Afirmou o Kiame, algo
que eu já queria fazer há muitos momentos.
– Temos que fazer isso para salvar o Caneca.
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Cavei por muitos momentos, até chegar a uma zona em que parei,
porque achei melhor cavar com as mãos. Convidei os outros a me
ajudarem a cavar com as mãos e, escavando mais cavando, sempre
na direcção do embondeiro, chegamos até uma tampa de metal
muito pesada e condensada.
A água, que eu não via mas sentia, subiu lentamente até tapar a
minha cabeça, e comecei a me afogar por completo. A Berta e a
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Os Contos dos meus Sonhos
Cada um, entre nós, ficava afogado no seu momento, até estarmos
completamente possuídos pela água que lá estava. Água que nem
víamos, só sentíamos. E, com muito prazer, ela nos afogava.
Era incrível, não podíamos falar, para não engolir água, mas
conseguíamos respirar.
Quando chegamos ao rio, o Avô do Caneca lhe disse para beber até
se fartar, porque o rio lhes pertencia. E o Caneca, com o seu antigo
hábito, enchia-se da água do rio até não poder mais beber.
Por mais que não quiséssemos, nós tínhamos que voltar. Ainda nos
faltavam muitos Tempos de vida para habitar naquele lugar.
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Palavra usada para descrever a parte superior e menos pronta da cana, isto na lingua
Umbundu.
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Para tentar lhe animar segurei-lhe no seu ombro, sorri para ele, e
tomei de si o pau de cana. Nos metemos a andar. O estranho – muito
estranho – é que o Caneca não estava a nos seguir. Demos mais
alguns passos, e vi o Caneca a brincar no capim com a cadela dos
Primos da Daniela: ele estava nem um pouco interessado em nós
naquele momento.
Nós havíamos nos separado ontem a noite, quando a tua Prima veio
te chamar. Quando foste, eu fiquei em baixo do embondeiro por
mais alguns instantes.
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Sendo assim, não tendo uma outra escolha, fechei os olhos para a
Realidade Real, e abri os olhos para a Realidade Inexistente. Foi
horrível o que vi logo de primeira, muito horrível.
O meu Avô lá estava também, mas ele não podia fazer nada para
me livrar – aliás foi ele quem me deu este sonho – porque eu tinha
que pagar pela minha desobediência.
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Os Contos dos meus Sonhos
Fui observando, até que dois homens muito grandes, um com duas
cabeças, e outro com dois narizes gigantes e cortados ao meio,
vinham na minha direcção. Me encolhi, com medo de que eles
estivessem a vir (propriamente) na minha direcção e, para o
verdadeiro início do meu sofrimento, eles estavam mesmo a vir na
minha direcção.
O homem de dois narizes, parecia ter visto nos meus dedos a melhor
comida de sempre, pela maneira como ele olhava nos meus pés em
suas mãos, e pelo sorriso ruidoso que apresentava. Ele cheirou os
dedos de uma forma muito profunda, e em seguida comeu-os.
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Os Contos dos meus Sonhos
Era muita dor, que eu não conseguia suportar, nem morrer. E o pior,
é que aquilo era real. Eu não estava a sonhar, estava viver.
Depois, os dois, começaram a tirar brasas de fogo do barril de
metal, e esfregavam no meu corpo. Esfregavam fogo no meu corpo
todo.
O homem de dois narizes passeou por todo o meu corpo com o seu
nariz, como se aquele cheiro – de corpo grelhado – fosse agradável
demais.
Não desmaiei, nem morri, mas quando dei por mim eu estava entre
aqueles corpos cortados, danificados e ensanguentados.
Eu não sei mais como aconteceu, mas voltei para a Realidade Real.
Aquela me parecia ser a verdadeira Realidade Real.
***
Ele olhou-me bem profundamente nos olhos, deu uma pausa para
mastigar um pouco da pouca metade de cana que lhe restava, e
disse:
– Sinto-me bem, por um lado. Mas, por outro, estou com uma
sensação estranha.
– Estranha? – Perguntei, um pouco confuso.
– Sim. É inexplicável. Mas esqueça.
– Kilaro. – Calei, para não lhe fazer lembrar mais no seu sonho
horrível.
– Prometi para mim mesmo nunca mais desobedecer os meus
Primos, pois lhes devo submissão, e não quero mais pisar naquele
lugar Zitúu. Eu estive entre as trevas.
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Ngola Mufasa
Eu não podia negar, mas não queria aceitar estar lá: algumas vezes
o que não podemos é muito mais forte do que o que queremos.
– Até o dia em que eu tive o meu último sonho. Eu não sabia que
aquele seria o último.
– Prima-Fati faltou contar sobre o dia…
– Sim. Essa história agora parece ser mais tua do que minha. – Ela
sorria enquanto dizia.
– Parece… – Sorri também.
– Eu tive um dia perfeito antes daquele sonho. Me comportei da
melhor forma que pude, para ter bons sonhos. Eu gostava bastante
dos bons sonhos que o meu Avô me dava. – Acho que a Prima-Fati
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não era a única. – Eu queria estar sempre com ele, pois amava
aquela realidade inexistente.
– Eu também gosto muito. As vezes nem quero mais voltar. –
Sorrimos os dois em simultâneo.
– Eu me lembro de, naquele dia, ter ido ao rio com as minhas
amigas. Nos divertimos bastante. Depois voltamos para a aldeia, e
cada uma foi fazer o almoço da sua casa. E na hora de comer,
batemos cuta21. – Ela disse isso rindo. Eu também ri, pois achava
que apenas eu e o Kiame batíamos cuta.
– A tarde – Continuou –, ficamos ao relento a brincar…
– Não era literalmente a brincar… – Interrompi.
– Como sabes que eu ia dizer isso? – Disse a Prima-Fati com um
sorriso aberto.
– Porque sempre dizes isso. – Tentei ser irónico.
– Pois é, não era literalmente brincar como vocês brincaram, porque
nós já estávamos a entrar na fase adulta. – Eu não sei o porquê que
devo insistir em dizer que tudo que ela estava a dizer eu já sabia.
Custa perceber isso caro leitor?
– Kilaro. – Concordei.
– Mas quando estava a entardecer, eu tive que me recolher, porque
tinha que fazer o funge do jantar.
– Sim, kilaro. – Concordei novamente, fazendo que sim com a
cabeça.
– Quando cheguei em casa, tudo estava como sempre – eu não sei
por que na nossa aldeia as coisas têm a mania de estar como sempre
–, e fiz o jantar, como sempre.
– Tudo como sempre. – Disse eu.
– Depois de jantarmos, eu fui para o meu quarto com uma vela
acesa, para organizar algumas coisas e depois dormir.
– Antes de dormir te deitaste na cama. – Brinquei.
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Termo usado para descrever a acção de comer na casa de um, e em seguida na casa de
outro (entre amigos).
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Termo usado para referir-se à ida de alguém (calão).
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Forma curta de dizer: “não é?”
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– E sobre os embondeiros? –
– O quê? – Contrastou o Jojó.
– Eu perguntei ao Filho-Tito sobre os segredos dos embondeiros. –
Tentei ser arrogante, mas não conseguia ser melhor que ele. Não
deu certo.
– Bem, sobre os embondeiros eu descobri que eles não têm
segredos. Eles são o segredo. – Todos nos espantamos com esta
dica, e uns até murmuraram com outros. – Sim meninos. Não
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Os Contos dos meus Sonhos
Era só isso que me faltava ouvir, naquela manhã que começou com
uma chuva intensa. Mas agora estava serena.
– O que se passa?
Eu achava que era o único a passar por isso, mas não. E o pior, é
que com a Daniela aconteceu três vezes, e comigo apenas duas.
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Os Contos dos meus Sonhos
Ele levantou para abrir a porta, mas eu fui mais rápido: por uma
questão de educação. Abri a porta, e lá fora estava o Kiame, que
veio acompanhando do mesmo semblante que a Daniela. Parecia
que vinha pelo mesmo motivo que eu e a Daniela.
Não sei porquê, mas o Filho-Tito achava a última coisa dita pelo
Kiame engraçada. Eu, o Kiame a Daniela trocamos olhares, sem
entender os motivos dos risos do Filho-Tito.
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Ngola Mufasa
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Palavra usa no sentido de “aviso ou medo”, fruto da interferência do Umbundu no
Português.
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Os Contos dos meus Sonhos
O meu Avô contou-me que, aquele rio não era um simples rio. Era
a junção dos rios e dos mares.
Me explicou ainda mais o Avô, que antes que tudo existisse, esse
rio-mar já existia. Mas era incolor, e nele habitavam as Sereias.
“E a Sereia que saiu da água o que fez?”, foi isso que perguntei ao
Avô em seguida. O Avô me ensinou que esta Sereia encontrou no
mundo um grande Nada. Por isso, chorou com agonia. E, mesmo
sem esta intenção, o seu choro começou a colorir as coisas e a
diminuir cada vez mais o Nada. Foi assim que as cores, e as coisas
foram coloridas.
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Os Contos dos meus Sonhos
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Ngola Mufasa
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Palavra usada de forma exclamativa, fruto da interferência da língua Umbundu no
Português.
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Recipiente de plástico, usado para a conservação de líquidos (água, mel, kissangua,
etc.).
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Ngola Mufasa
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Referindo-se à uma “mordidela”.
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Ngola Mufasa
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Brincadeira infatil, que tem como principal objecto de uso o bidon
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Ngola Mufasa
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Ngola Mufasa
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Ngola Mufasa
Ela procurou por cada coisa que fosse contra o Nada-Tempo. Mas
não teve êxito, porque o Nada-Tempo era amigo muito íntimo do
Nada-Coisa. E o Nada-Coisa, fiel que era, contou todas as coisas ao
Nada-Tempo que a Sereia estava a planejar.
A Sereia ficou muito feliz ao ver aquilo, pois nunca tivera visto
antes uma árvore; ainda mais uma árvore colorida.
A Sereia pensou em uma ideia genial, mas esta ideia poderia lhe
custar muitas coisas. Talvez até mesmo a sua própria vida e/ou a
sua condição física. E custou…
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BIOGRAFIA
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