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Ngola Mufasa

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Os Contos dos meus Sonhos

Título original: Os Contos Dos Meus Sonhos


Copy right © 2020 por Ngola Mufasa

Edição: Fernando Evambi


Capa: Ivandro José/iDesigns92
Revisão: Sílvio Muxima do Assobio & A. L. Dark
Foto do autor: Ivandro José/ChamART
Diagramação: Fernando Evambi
Adaptação da capa: Ivandro José/iDesigns92

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Telemóvel/whatsapp: 944 775 250

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser


utilizada ou reproduzida sobre quaisquer meios existentes, sem a
autorização do escritor e do editor.

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Ngola Mufasa

“OS CONTOS DOS MEUS SONHOS é uma obra bastante


interessante, traz consigo o que muitos contos não trazem: o
factor educativo da vida. É uma obra embuída no espírito de
resgate dos valores culturais, éticos e morais, trazendo consigo a
relevância dos conhecimentos passados de geração à geração
através do Onjango”.
- Sílvio Muxima do Assobio (Escritor, professor de Língua
Portuguesa e várias outras áreas do saber)
“OS CONTOS DOS MEUS SONHOS, é uma novela que
apresenta um paradoxo temporal real e bastante contundente. A
maneira como o enrredo desenrola, os olhos de qualquer leitor,
saciar-se-ão pela linguagem muito própria do escritor, e nossa
em um contexto social. Livro recomendável para ler e
perspectivar um paralelismo literário, e assim outros mundos
ganham vida e o leitor viverá neles único de um”.
-A. L. Dark (Professor, escritor e palestrante)
“Uma obra recheiada de aventuras e lições valiosas a cada
conto, com técnicas enusitadas, para colocar o leitor numa
viagem inexistente, cujo gosto não é suportável pelo paladar, a
fim de adociar o corpo inteiro, estando o leitor propenso a um
diabete que proporcionará agrado, já que a doçura não será
fatal, muito pelo contrário, proporcionará novos aprendizados e
novos mundos que apenas existem em Greenland e especialmente
no livro OS CONTOS DOS MEUS SONHOS”.
-Abel Pataca (Escritor e membro da ALEK)

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Os Contos dos meus Sonhos

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Ngola Mufasa

À Ana Malengue e
Suriela Chipululo

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Os Contos dos meus Sonhos

AGRADECIMENTOS

Para que esta obra fosse produzida, foi necessário, primeiro, que eu
tivesse vida e acesso ao ar que respiro. Consequentemente,
agradeço à Deus que me dá a vida e o ar que respiro, força e
motivação.

Endereço agradecimentos aos meus pais, Analdino Chipululo e


Eunice Chipululo, que muito ajudam e contribuem para a minha
formação académica e como pessoa. Agradeço à minha irmã, Alice
Chipululo, por ter sido a minha primeira leitora e fiel companheira
nalguns momentos, a quando da manuscrição do livro e por me ter
corrigido inúmeras vezes a forma correcta de pegar a esferográfica
enquanto se escreve, e a forma correcta de escrever a letra “s”.

Agradeço também aos meus colegas, amigos e membros da ALEK,


que me motivaram mais do que qualquer uma outra entidade
individual ou colectiva, a terminar a presentre obra.

Por último, mas não menos importante, quero agradecer à três


pessoas que muito contribuíram directamente para a edição, estética
e digitalização do livro, os quais são: Fernando Evambi, Ivandro
José e Mauro Rodrigues.

À estas entidades, o meu muito OBRIGADO!

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Ngola Mufasa

“Os sonhos falam em nós o


que nenhuma palavra sabe
dizer.”
“De que vale ter voz se quando
não falo é que me entendem?
De que vale acordar, se o que
vivo é menos do que o que
sonhei?”

Mia Couto

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Os Contos dos meus Sonhos

Existe uma realidade escondida e tímida,


que os humanos insistem em dizer que não é real.
Ngola Mufasa

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Os Contos dos meus Sonhos

NOTA DO AUTOR

Antes de morrer, eu quero me certificar de que nunca morrerei –


tanto na dimensão espiritual, quanto na dimensão física. Esta obra
literária é só mais uma das várias contribuições para este processo
de certificação da minha imortalidade (física), porque o artista vai,
mas a sua obra e o seu legado ficam.

Desde o processo de idealização à escrita, o livro Os Contos dos


Meus Sonhos foi um grande desafio para mim, porque escrevi em
menos de vinte dias. Deixei de lado todas as outras obras, para
começar a escrever esta – este livro é o meu primeiro a ser
publicado, mas é/foi o sétimo a ser escrito e idealizado.

Eu acredito que esta obra terá contribuído para alguma coisa no


quotidiano do leitor, do mesmo jeito que contribuiu para o meu
status quo.

Este livro, é um livro de contos, escrito de uma forma excepcional.


Cada vez que eu me sentava para escrever os contos dos sonhos do
Zitúu, eu pensava sempre em viver e presenciar os sonhos e a vida
normal do Zitúu, e assim produzir estética. Porque, eu acredito que,
a beleza das artes nos conectam, também, de certa forma, ao
Criador, o Deus supremo.

Procurar entender os pensamentos e intenções do autor desta obra,


é uma condição sine qua non para se entender a mesma.

Cada conto deste livro foi escrito para entreter o leitor, porém cada
um carrega consigo, um momento qualquer – uma página, um
parágrafo ou mesmo uma linha –, com uma intenção lúdica, que se
manifesta, muitas vezes, pela interpretação subjectiva.

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Ngola Mufasa

No conto, a título de exemplo, do sonho do pesadelo do Zitúu, é


uma representação clara sobre como o nosso ódio – representado
na serpente –, entra em nós mesmos, nos corroe, desgasta e
consome, e depois vai embora, sem dizer nem deixar alguma coisa.

Há um dos contos, em que no meio da narrativa eu coloquei a


seguinte frase: “Os sonhos falam em nós o que nenhuma palavra
sabe dizer”; gostaria de informar que este pensamento pertence ao
grande escritor moçambicano Mia Couto – desde já recomendo os
seus livros como sugestão de leitura –, e não é obra da minha
criação.

Greenland é uma cidade dos sonhos, existente apenas em minha


mente. Resolvi criar uma cidade e espaço para produzir alguma
coisa mais criativa, e criar uma semelhança em todas as minhas
narrativas.
Procurei, ao máximo, usar uma linguagem simples e de fácil
entendimento, para que todas as faixas etárias consigam ler e
entender a obra sem muitas dificuldades.
Existem palavras, dentro da narrativa, que fui adulterando o sentido
das mesmas, como por exemplo, usei, maior parte das vezes, a
palavra “Tempo”, para significar “Idade”, pois as crianças da aldeia
do Zitúu não podiam conhecer palavra “Idade”, por motivos que
nem eu sei. Usei, também, as palavras “Momento” e “Instantes”, na
vez do verdadeiro sentido da palavra “Tempo”.
As histórias não foram escritas de forma sequencial, e do mesmo
jeito que todas têm semelhança, nenhuma tem a ver com a outra.
Cada personagem, cada espaço e cada acção, existem apenas na
mente do leitor, pois não são factos reais. Aliás, são, mas no mundo
da Inexistência.

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Os Contos dos meus Sonhos

Sumário

PRÓLOGO……………………………………………………...14
A FORMIGA PREGUIÇOSA……………………………….…16
O SONHO DOS CHOROS: CHOROS DOS GRILOS ............... 23
MORCEGOS DE OLHOS ESCUROS E ALMAS… ALIÁS,
ASAS CORTADAS ..................................................................... 28
A BORBOLETA DA BERTA ..................................................... 39
A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO ...................................................... 53
AS DOUTRINAS DA NOSSA ALDEIA .................................... 65
OS JOGOS DO JOJÓ .................................................................. 69
O CANECA EM PLENA SECA ................................................. 81
O KIAME ENTRE AS TREVAS ................................................ 95
“SE EU SOUBESSE…”, MAS NUNCA SE SABE ................. 104
O SEGREDO DOS EMBONDEIROS ...................................... 109
COMO AS CORES FORAM COLORIDAS............................. 115
SEJAMOS TODOS FORMIGA ................................................ 125
O NADA TAMBÉM É ALGO .................................................. 135
BIOGRAFIA .............................................................................. 137

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Ngola Mufasa

PRÓLOGO

O sonho é a narrativa de uma realidade inexistente: incoerente,


algumas vezes. O desejo de ver como realidade o que sonhamos é
uma utopia, das grandes; porém eles continuam a ser reais no
mundo da inexistência, essa é doutrina de Greenland.

O Filho-Tito [lê-se mesmo: “Filho-Tito”], tem na aldeia o trabalho


e a responsablidade de transmitir aos mais novos os contos, as
lendas, adágios, as histórias da nossa aldeia e, sempre que restar
algum tempo, das outras bandas de Greenland.

Para o nosso mundo os sonhos representam um símbolo muito


importante: é a comunicação dos nossos ancestrais para conosco.
Eles, segundo o que nos conta o Filho-Tito, no período nocturno,
enquanto todos na aldeia dormem, passam por todas as casotas para
dar sonhos.

Aqueles que no passado foram maus para as suas famílias e para a


aldeia, são perdoados no Além pelos seus maus actos, porém têm a
reponsablidade de distribuir pesadelos às crianças que não
comportaram-se bem durante o dia; os ancestrais que foram bons
no passado oferecem sonhos alegres e confortáveis às crianças que
tiveram uma boa conduta durante o dia.

“Os adultos não sonham e nem podem!”, exclama o Filho-Tito. Ele


nunca nos diz o porquê, antes, nos diz que toda criança que souber
o porquê dos adultos não sonharem, torna-se muda, cega e surda.
Uma vez o Kiame tentou perguntar ao Filho-Tito, enquanto
estávamos no Onjango1, mas eu tive de interromper, lhe dando um
tapa quase discreto na perna esquerda, antes mesmo de ele soltar a

1
Local onde são realizadas reuniões de assuntos diversos, na Cultura Ovimbundu.

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Os Contos dos meus Sonhos

quarta palavra da sua “ex” pergunta: não seria bom ter um melhor
amigo surdo, mudo e cego. Para ser bem sincero, todos nós
estaríamos (surdos, mudos e cegos) caso o Filho-Tito dissesse a
resposta, o que nunca faz; mas o melhor, é sempre, nos limitarmos
em não perguntar.

Durante o dia, procuro ao máximo me comportar bem, para ter bons


sonhos; durante a noite, temo que eu não tenha me comportado bem
e por isso ter maus sonhos. Odeio os pesadelos da nossa aldeia, não
são como qualquer um que possas imaginar: são bem piores. Mas
os sonhos bons são muitas vezes melhores que a Realidade Real,
dentro deles é tudo diferente e incomum, porém agradável e surreal.

Já conversei com objectos, animais e fiz até coisas que na Realidade


Real não me é permitido. E sempre que possível, no Onjango à
noite, conto ao Filho-Tito os contos dos meus sonhos:

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Ngola Mufasa

A FORMIGA PREGUIÇOSA

Na nossa aldeia é fundamental que as crianças respeitem os adultos,


não por obrigação ou formalidade, mas porque devemos este
respeito à eles. “A dívida é paga com a submissão ao longo dos
Tempos”, é isso que nos ensina o Filho-Tito. O Filho-Tito nos
ensinou que os adultos de agora deviam os adultos de ontem. Isso
implica dizer que a minha dívida só será paga daqui a não sei quanto
Tempo. Não sei o Tempo exacto porque não sei quando serei
adulto, nem quando deixarei de ser criança. Apenas a Prima-Fati
(minha mãe) e o Primo-João (meu pai) sabem: só eles sabem a
minha “idade”. Na minha aldeia a palavra “idade” não existe no
vocabulário infantil. Nós, as crianças, temos apenas, e somente, que
dizer Tempo.

***

A noite de ontem foi longa, felizmente não tive um sonho ruim,


pelo contrário, aprendi muita coisa que o Filho-Tito nunca nos tinha
ensinado, porque é dever dos ancestrais ensinar algumas coisas para
as pessoas com o meu Tempo vida.

– Zitúuuuu… vem vamos à lavra. – foi assim que a Prima-Fati me


acordou aos gritos.

Eu estava todo sonolento, mas tive que levantar para ir ajudar a


Prima-Fati: LHE DEVO SUBMISSÃO.

No caminho de casa para a lavra, quase adormeci em pé, mesmo


em movimento, mas o Primo-João bateu-me com o cabo da sua
enxada para que eu andasse rápido. E resultou: não só comecei a
nadar rápido como também acordei do sono morto.

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Os Contos dos meus Sonhos

Como distração, enquanto íamos à lavra, eu observava os grandes


matos de Greenland, que ficam perto da nossa aldeia.

Já na lavra, tiramos o capim que estava na plantação, e depois


recolhemos alguns tomates para oferecer aos vizinhos e ao Pai-
Mingo – soba da aldeia.

Não recolhi o tomate como eu costumava, não capinei o capim


como eu costumava, nem sequer andei como eu costumava. Por um
único motivo: precisava muito de dormir e terminar o sonho que
começara; o desejo ardente de dormir que não era suprido, trouxe
consigo preguiça: muita preguiça, das piores que eu já vira.

Na lavra, a Prima-Fati não parava de gritar comigo e o Primo-João


chegou mesmo a me bater. A preguiça e a submissão me
dominavam em simultâneo.

Quando o sol começou a sonegar, nos metemos a andar até a aldeia,


carregando sacos com tomates e as nossas enxadas; eu carregava
algo a mais: a preguiça.

Quando chegamos na aldeia passamos de porta à porta para


distribuir o tomate vermelhinho aos nossos vizinhos: é uma das
regras da nossa aldeia – partilhar. E por último, fomos à casa do
Pai-Mingo para lhe ofertar alguma parcela dos tomates.

Quando entramos em nossa casa, estava tudo escuro, então, a


primeira coisa que fiz foi acender o candeeiro. Depois de me
acomodar, pedi à Prima-Fati para que eu fosse ter com o Kiame;
passamos todo dia sem nos vermos.

Como velhos amigos que somos, mesmo sabendo que temos pouco
Tempo de vida e por isso não somos necessariamente “velhos
amigos”, ficamos fora de nossas casas a observar as estrelas e
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Ngola Mufasa

dando-lhes nomes. Jogamos muita conversa e risada fora, em


seguida contei-lhe sobre a preguiça que domou-me durante o dia, e
ele como sinal de confiança contou-me que desobedecera seus
Primos. Isso me deixou triste porque, assim, ele teria maus sonhos
nesta noite. Não pude fazer nada mais do que encorajá-lo e desejar
má sorte.

Me levantei do chão onde estávamos sentados, sacudi a parte


traseira do meu calção, e quando dei o segundo passo em direcção
à minha casa, o Kiame me pediu para ficar:

– Fica só mais alguns instantes comigo, por favor. Não quero ir em


casa e dormir – me pediu, soluçando no mesmo ritmo das lágrimas
que escorriam no seu rosto. Como não foi dia dos que têm o meu
Tempo reunir com o Filho-Tito, decidi ficar. Fiquei alguns instantes
com o Kiame até a Prima-Fati ir me chamar aos berros.

Quando cheguei em casa, fui até ao meu quarto, deitei na minha


esteira e fechei os olhos querendo dormir, pois estava ansioso para
sonhar e me submeter, não mais à Prima-Fati ou qualquer outro
adulto da aldeia, mas me submeter ao meu Avô – nome que cada
criança tem de chamar ao seu ancestral –, e estar sujeito ao sonho
que ele quiser me dar. Estive convicto que o sonho seria
maravilhoso, porque me comportei da melhor maneira possível
durante o dia:

O Conto do meu Sonho:

Logo que me desliguei da Realidade Real, me encontrei na


Realidade Inexistente. Era tudo branco, e eu não via nada, senão o
“tudo branco”. Mas com o andar dos Tempos (que os adultos
chamariam de minutos), as coisas começaram a dar formas às
coisas e os seres aos seres. No Além não há céu: o céu é inexistente
na Inexistência.
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Os Contos dos meus Sonhos

Na medida em que as formas iam dando forma às formas, os


animais começaram a surgir, as plantas e árvores a existir e a
Inexistência foi obrigada a adormecer sem, no entanto, morrer. Se
o cenário não fosse este, eu entraria para a Realidade Inexistente da
forma mais brusca que já se vira em Greenland.

Enquanto eu observava a fauna, a flora e outras coisas – que não


me é permitido dizer –, vi no além do Além uma alma que se
aproximava de forma tão lenta, isso fez com que a alma estivesse
mais próxima de mim, do que eu podia imaginar: no Além não se
pode imaginar.

– Meu filho… – Disse a alma com regozijo


– Rasgada carne e invisível osso em, estou aqui. – Pois, é isso que
o Filho-Tito disse que devemos dizer como resposta quando nos
encontrarmos com os nossos Avôs, os chefes e autores da nossa
descendência, pela primeira vez nalguns sonhos.
– Siga me! – disse o Avô sem tom nem voz, entrelaçando os seus
dedos-de-vento aos meus.

Andamos por Tempos em volta do Além. Eu via tudo, enquanto os


meus olhos observavam nada. A grama era suave, tal como a
Inexistência. Era agradável o passeio sem fim final.

– Animais os cumprimentar para parar quero eu, licença sua a com,


Avô. – É assim que devemos falar: tudo ao contrário, conforme nos
ensinou o Filho-Tito. Mas isso só depois da primeira frase, que
normalmente é dita de forma coerente, no primeiro contacto.
– Bem tudo – me permitiu o Avô com um sorriso apagado,
enquanto desentrelaçava os seus dedos-de-vento entre os meus.

Parei por alguns instantes, que só deu para conversar com o meu
amigo leão e o elefante – outro amigo há Tempos. Meu Avô
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Ngola Mufasa

interrompeu as carrícias tímidas mas mútuas com os animais, e


levou-me para um lugar onde só tinha insectos.

No Além da Inxistência, os seres certos de incertezas cumprem a


mesma vida que outrora tiveram enquanto vagueavam pelos
mundos da Realidade Real.

Os leões dominam as selvas, os cães são os melhores amigos das


almas e, como era de se esperar, as formigas não param de
trabalhar. Tive Tempo de conversar com algumas delas, fiz até
amizades novas.

O Avô ergueu a minha cabeça com uma das suas mãos do meio, e
direcionou os meus olhos num Além muito mais próximo do que o
que está perto e, de uma dinstância curta, além do normal, vi uma
formiga sentada à sombra de uma árvore, com olhos arregalados, e
a sua enxada que estava encostada no tronco da árvore.

Fiquei tristemente alegre ao ver a formiga descansar, porque até os


animais merecem um descanso, ainda mais no Além, porém triste
porque não faz parte da natureza da formiga descansar.

– Filho vamos. – Ordenou o meu Avô.

Me levantei, depois de interromper a conversa com as outras


formigas, e caminhamos uma longa distância curta, ao encontro da
formiga que descansava na sombra da árvore transparente.

Olhei para o Avô, com uma face que indicava interrogação, e ele
começou a proferir um sermão, depois de uma conversa amigável
– notava-se pelo seu semblante – com a formiga cansada, em uma
linguagem que só os do Além percebem:

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Os Contos dos meus Sonhos

– Cansada está ela se perguntou se você!? – Indagou o Avô, me


olhando sem os seus olhos, o que transformou a pergunta em
afirmação. O Avô conhece todos os meus pensamento, então eu não
podia negar ou mentir.
– Sim. – Respondi à afirmação.
– Preguiçosa é, cansada está não ela. – afirmou o Avô, agora no
sentido literal da palavra afirmar. – Bafos dar lhe de acabei. – essa
última frase do Avô foi um tanto quanto engraçosa2, pois aquele
semblante é o mais tolo e menos apropriado para se dar bafos. Mas
é assim que tudo funciona no Além: o que é, nunca é!

Num instante, a formiga cansada tornou-se na formiga preguiçosa.


Comecei a entristecer, e num outro instante, aquele que pensei que
seria um sonho maravilhoso, não foi: no Além o que é, nunca é!

Levei uma bronca do Avô, como nunca antes na Realidade Real as


pessoas levaram. O Avô, entre outras coisas, disse-me que a
preguiça também é desobediência. E por sorte, muita sorte, ele
escolheu não me dar um pesadelo. Me disse, também, que eu tinha
de seguir o exemplo das formigas trabalhadoras e que se eu
continuasse preguiçoso ele mesmo me castigaria. Tentei explicar
ao Avô a razão de eu estar preguiçoso durante o dia, mas não fiz
isso porque eu presumo sempre que ele conhece os meus
pensamentos – o que não é verdade –, e também porque eu não
queria despertar a sua ira adormecida. Seria bem pior do que ter um
pesadelo pesado. Me limitei em chorar, em poucos instantes eu
tinha a face toda molhada de lágrimas secas. Nunca, em minha
existência, ouvi aquelas palavras.

– Ir que tem você; Real Realidade na noite uma e, Além no dias 30


passaram se já. – Me disse a alma sem boca do Avô, depois de
alguns instantes, quando se acalmou.

2
Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de “engraçada”.
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Ngola Mufasa

***

Abri os olhos para a Realidade Real, e constatei que os lençóis da


minha esteira estavam ensopados: o que é uma Realidade
inexistente no Além, pode ser uma realidade real na Realidade.

Nesta manhã, jurei para mim mesmo nunca mais ser preguiçoso,
para evitar a desobediência e, assim, evitar o pior.

–– Zitúuuuu… vem vamos à lavra.

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Os Contos dos meus Sonhos

O SONHO DOS CHOROS: CHOROS DOS GRILOS

O Filho-Tito, uma das pessoas da aldeia com mais Tempo, é a nossa


escola. Entre palavras faladas e canções cantadas, surge o encanto
de estar naquele meio: Onjango.

A Berta, a menina mais linda da aldeia – na minha opinião – tem


uma voz linda de se ouvir, com um som agradável de se sentir.
“Berta, hoje é dia dos ancestrais”, dizia o Filho-Tito todos os dias
dos choros dos grilos, antes de nos reunirmos em volta da fogueira,
que é: ensanguentada – nos dias normais – e uma entidade que
chora sangue – nos dias dos ancestrais.

Todos os meninos e meninas com o meu Tempo, já


compreenderam, em sonhos, com os seus Avôs, sobre a
importância do “choro dos grilos”. No meu sonho, o meu Avô
ensinou-me de uma maneira sem igual, que nem na Realidade Real
eu tivera aprendido de tal forma com o Filho-Tito.

Sempre que alguém tivesse o sonho do “choro dos grilos”, tinha


que contar ao Filho-Tito todos os detalhes, para que o Filho-Tito
ajudasse a compreender todos os factos incompreendíveis3 para os
meninos com meu Tempo. Quando eu tive o meu sonho, antes
mesmo de contar ao Kiame, contei à Prima-Fati, instantes depois
de eu me despertar do sono. A Prima-Fati, toda entusiasmada, deu-
me um beijo, do tipo que já não me dava há Tempos.

“Este sonho é muito importante meu ‘filho’ Zitúu”, disse a Prima-


Fati me chamando de “filho”, sendo que eu não posso lhe chamar
de “mãe”, aliás nem conheço esta palavra.

3
Palavra gramaticalmente errada, utilizada no sentido de: “difícil compreensão”.

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Ngola Mufasa

Depois da conversa com a Prima-Fati, antes mesmo de me certificar


de que estava vivo, fui à casa do Kiame.

O sol estava meio assanhado, logo no período que a noite


adormeceu. Convidei o Kiame para irmos ao rio banhar e ele trouxe
consigo não apenas a sua vida – o que, por sinal, é mais importante
para mim – mas trouxe também algumas batatas-doce no bolso do
seu calção branco: método amargo para adquirir coisas doces: foi
roubada.

Rimos até não poder mais, ao ritmo da batata se misturando com as


salivas em nossas bocas. Andávamos com os braços encostados nos
ombros um do outro no caminho para o rio, enquanto as deliciosas
batatas e as salivas se envolviam, num processo muito solene.

O Filho-Tito nos ensinou que podemos ir ao rio no período em que


o sol está acordado. Porém, quando o sol dormir não é permitido ir
ao rio para as pessoas do meu Tempo; mas é permitido para as
pessoas com longo Tempo de vida, os adultos.

No rio, ficamos a banhar: nos sentimos soltos, quando


mergulhamos nas correntes do rio; nos sentimos libertos, quando
mergulhamos nas profundas águas; ouvimos todo o barulho e a
agitação impossível, em plenas águas que oferecem tranquilidade
inimaginável. Eu gosto daquela liberdade, euforia, tranqui…

– Zitúu, temos que voltar para a aldeia. – Me chamou o Kiame, já


vestindo, na beira do rio, o seu calção branco, à uma pressa que lhe
fez engasgar os pés. Eu me matava de risos.

– Tá bem. Vamos. – Eu disse, após lembrar que já passamos um


bom período no rio.

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Os Contos dos meus Sonhos

Me vesti às pressas, na mesma medida que as águias usam para


atingir os seus alvos, e nos metemos a correr à caminho da aldeia.
Nós só queríamos nos divertir, e aproveitar aqueles longos instantes
curtos de amizade. A Prima-Fati ensinou-me sobre a importância
da amizade e disse-me que eu tinha que aproveitar mais as minhas,
para não as perder por negligência: como aconteceu com ela.

“A Prima-Fati não vai me bater pelos instantes fora da aldeia. Estou


só a aproveitar a minha amizade, como ela me ensinou”, pensei, no
âmago, para acalmar.

Durante a caminhada, entre matas e capins tímidos, o Kiame


desafiou-me para uma corrida. Como sempre, ele venceu. Mas isso
não me entristeceu, antes, me alegrava: não há nada melhor do que
ver meu melhor amigo feliz.

Ficamos felizes, também porque, quando chegamos na aldeia


ninguém notou a nossa presença. E o melhor ainda a nossa
ausência.

Corremos até à Berta, que estava em num canto isolada, a pisar o


mbundi4. Contamos à ela, entre as gargalhas, sobre os momentos
de diversão que tivemos. Ela não se conteve, e pôs-se aos risos
também: pelos momentos divertidos que eu e o Kiame tivemos e
contamos e, também, porque eu perdi a corrida. “Era de se esperar”,
disse ela, lacrimejando de muitos risos, misturado com o som
violentamente sutil do mbundi a ser pisado no almofariz5.

***

4
Raízes ultilizadas para fazer uma bebida tradicional Bantu, “Kissangua”.
5
Instrumento feito de madeira, utilizado para pisar o mbundi.
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Ngola Mufasa

– Berta, hoje é dia dos ancestrais. – Disse o Filho-Tito, depois de


se acomodar no lugar onde costuma sentar no Onjango.

O choro do fogo era tão visível, quanto sentido. Os grilos


começaram a chorar pela morte dos ancestrais da nossa aldeia. A
Berta, ela que organizava e escolhia as canções cantadas no
Onjango, levantou e ficou em pé ao lado do Filho-Tito para
começar a cantar.

Os grilos, sem perder mais momentos, aumentaram o volume do


som dos seus choros; o fogo da fogueira ficou ensanguentado,
demostrando a sua agonia nas lágrimas de sangue; as estrelas no
céu, ficaram meio que tristonhas e eram visíveis as lágrimas da lua.
A Berta, começou a cantar com a sua linda voz e nós a seguimos:

Hojé é dia de alegria


Alegria triste
Com cantos de alegria
Lembramos o que sempre existe

Felizes estamos pelos ganhos


Tristes estamos pelas perdas
Aos ancestrais nós cantamos
Por toda eternidade fazemos festa…

Assim que a Berta cantava, nós a seguíamos em uníssono. Foi tudo


tão alegre na mesma proporção da tristeza.

Eu refletia sobre todo o cenário a volta, vezes sem conta: “porquê


é que os astros também choram pelos ancestrais? O fogo chora até
lágrimas de sangue, porquê? Os meninos a volta da fogueira
choravam também com grande amargura, porquê isso tudo?”

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Os Contos dos meus Sonhos

E o facto mais curioso, por quê é que temos que aprender no sonho
sobre “o choro dos grilos”?

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Ngola Mufasa

MORCEGOS DE OLHOS ESCUROS E ALMAS… ALIÁS,


ASAS CORTADAS

O lugar era escuro e sangrento. Vi almas girando em minha volta,


e num uníssono desorganizado diziam: “Zitúuuuu… Zitúuuuu”. O
lugar era extremamente lúgubre.

Eu estava pisando em lama preta, que fazia fronteita com o rio, e


dele saiam cobras venenosas, répteis perigosos, jacarés e
hipopótamos afogando-se no insaciável desejo de tomar o meu
corpo, e despedaçar a mil. Mil partes.

Aquele ambiente me fazia chorar, e na medida que eu limpava as


lágrimas com os meus dedos que eu nem via, eu via sangue: muito
sangue preto que fervia em minhas mãos. Não conseguia
compreender a situação.

Tentei mover os meus pés, mas eles se mantinham tetraplégicos e


imóveis, porém, para o meu espanto, o corpo movia-se na mesma
proporção em que os passos dos pés foram programados e
pensados.

Deixei os meus pés imóveis na lama que fervia e jorrava bólias de


fogo e, por isso, me movi somente com a força do meu pensamento.

As almas sangrentas, portadoras de cabeças de caveiras sentiam


prazer em me atormentar. Faziam caretas, mesmo sem cara, e risos
de aterrorizar, mesmo sem voz.

Senti os meus pés, mesmo não estando eles ligados ao meu corpo,
a serem picados por cobras venenosas sem dó e nem piedade, no
mesmo momento que os lagartos vindo de algures me picavam os
28
Os Contos dos meus Sonhos

braços. Uma cobra que descansava numa árvore sem folhas nem
cáule, rastejou pelos ramos da mesma, e depois saltou e começou a
rastejar no capim e vinha em minha direção. Eu queria correr, mas
estava sem os meus pés, e os meus pensamentos que me ajudavam
a locomover, pararam de pensar.

O medo superabundava no meu inconsciente e subconsciente. Eu


não estava consciente. Tive que aguentar a dor das minhas pernas a
serem devoradas e tive que começar a sentir frio na barriga e arrepio
malígno da serpente preta e sem cabeça que começou a passear pelo
meu corpo, e me apertava mais. a cada vez que eu me mexia.

A serpente girou pelo meu corpo todo, passando pelos braços,


vagueando na barriga, até ela ter a ideia brilhante de chegar até ao
pescoço e, como se não bastasse, apertar-me. Não consegui fazer
nada senão chorar.

As almas diziam palavras que não se entendiam, pareciam ser


insentivos para a cobra continuar a me causar sofrimento. Não
bastava o corpo ser dominado por uma serpente, eu tive que sentir
a dor próxima, à distância, que meus pés sentiam por cada picada
das cobras e lagartos e pelas queimaduras causadas pela lama que
se estava a vulcanizar. Vi sombras, fogo, animais perigosos, e
sofrimento: muito sofrimento.

As lágrimas que escorriam dos meus olhos eram lágrimas de


sangue. Pensei – um pensamento que não foi produzido pela minha
mente – em esticar os braços na direção dos olhos, para lhes limpar
e conseguir ter um visão nítida daquela realidade lúgubre. Ao
mover os meus dedos, para em seguida mover os braços completos,
a serpente apertou-me no pescoço e com sua cabeça inexistente –
eu não conseguia ver bem pelo sangue envolvendo os meus olhos
– olhou-me profundamente nos olhos e em seguida, com o resto do
seu corpo, apertou-me o pescoço. Abri a boca, e pus a língua fora
29
Ngola Mufasa

porque estava cada vez mais sufocada e não conseguia mais respirar
em condições aquele ar nojento e fedorento.

A serpente, serpente venenosa, fixou os seus olhos nos meus, como


quem que quer transmitir uma notícia fúnebre. Apertou ainda mais
o meu pescoço com a sua calda e eu, sem nem querer, abri a boca
por completo e a serpente, agindo por influência dos seus instintos,
entrou pela minha boca, e eu fiquei tanto engasgado, quanto
sufocado. Eu senti a serpente entrando às pressas no interior do
meu corpo, e os meu olhos? Os meus olhos só sabiam produzir
lágrimas de sangue, na vez de conseguir ver.
A serpente entrou com todo o seu corpo no meu corpo; copo, de
vidro, eu me senti porque estava cheio de heterogeneidade: cobra,
sangue, lagartos e mais cobras.
Eu sentia a cobra a comer o que conseguia comer em mim, –
órgãos/carne – e a picar, picar da forma mais violenta e funesta, o
que não conseguia – ossos. O corpo estava domado de veneno
mortal, porém eu não morria: a Inexistência existe para a morte e
não para se matar. É a morte em si. A serpente absorveu os meus
órgãos, e danificou todo o sistema digestivo e eu sentia a dor
causada pelo sofrimento.
Quando eu menos esperava, a serpente abriu um buraco na minha
barriga e saiu por ele, toda vermelha de sangue, e mais gorda do
que entrou. E só sentia dor, mas não podia morrer – era o que eu
mais queria.
As almas riam-se de mim. Eram milhares, mas saiam ainda mais
outras milhares das árvores, do chão e até de “todo lado”.
A serpente saiu do meu corpo por completo, passando pelo buraco
que ela mesma cavara. O único pensamento que a minha mente
30
Os Contos dos meus Sonhos

conseguiu produzir, depois de muitos momentos, foi: “ fica calmo,


ela já vai embora”. A nossa mente é o que temos de mais traiçoeiro.
A serpente voltou a envolver com a sua calda o meu humilde corpo,
e posteriormente subiu até o meu pescoço.
Como antes, observava-me profundamente com os seus olhos
inexistentes, e ria-se de mim. Vocês não se podem esquecer do
barulho estranho que as almas, as lamas, as águas e tudo que ali
habitava produzia: faziam parte do meu sofrimento.
Me encarava com os seus olhos maliciosos e, em simultâneo,
lambia a língua nos lábios como quem diz: “é hoje que eu vou
comer você”. E aconteceu. Não por completo, mas pelo menos
comeu, por aí dois terço.
Ela se aproximou dos meus olhos ensanguentados de lágrimas, e
era como se o sangue nos meus olhos a seduziam para: “me comer
todinho”.
Depois de lamber o sangue em volta dos meus olhos, num gesto de
arrepiar, rompeu as minhas pálpebras, e com gesto e geito de se
admirar, ela entrou novamente no meu corpo, mas dessa vez pelo
olho direito: a nossa mente é o que temos de mais traiçoeiro.
Corroeu e comeu, como mel, lambeu todo o meu cérebro e miolos.
A dor era tanta, que quase pensei em arrancar a cabeça: não
terminei de pensar porque a última linha que produzia pensamentos
foi cortada, arrancada e comida…
***
Realidade Real: o sol acabava de acordar:

O sol já estava disponível para disponiblizar os seus raios


luminosos no lado do planeta onde a minha aldeia se situa.
31
Ngola Mufasa

Como era hábito, eu e o Kiame fomos ao rio para banhar. As únicas


coisas que não aconteceram “como era de hábito”, é o facto de não
ser eu a chamar o Kiame, mas ele a mim; e um outro facto, estranho
e curioso, é o facto de ele não estar a vestir o seu calção branco
usual; desta vez estava com um calção preto: eu não gosto de preto.

Fomos ao rio, com a Berta, a Nzola e a Daniela, mas elas


recusaram-se a entrar na água e, antes disso, tirar as suas roupas.
As três ficaram na berma, a nos observar, jogando conversa fora.

A Berta e a Nzola como gostam de cantar, sentiam prazer em cantar


em ambientes naturais: aquele era um. Elas cantavam, na medida
em que eu e o Kiame mergulhávamos. A Daniela, a mais reservada
e tímida, era de poucas palavras – mesmo no Onjango –, não gosta
de chamar atenção – como no Onjango – e ficava sempre na parte
de trás de tudo – inclusive no Onjango. Então, enquanto na água eu
e o Kiame encontrávamos a mais pura das liberdades, a Nzola e a
Berta encontravam naquele habitat a melhor e mais perfeita
combinação dos seus sons, a Daniela fazia o que sabia fazer melhor:
não dizer nada, não chamar a atenção e estar na parte de trás dos
actos.

Nos divertimos por mais alguns instantes, e em seguida nos


metemos a andar a caminho da aldeia. No caminho para a aldeia,
aproveitamos a cada momento da brincadeira e diversão.

Esforçamos a timidez da Daniela a adormecer e ela falou como


nunca antes. Como nunca antes a vimos falar.

E assim, os primeiros momentos do primeiro show do sol


começaram a ter os holofotes apagados e a sonoplastia danificada.

***
32
Os Contos dos meus Sonhos

Realidade Real: o sol estava excitado:


Já acabávamos de almoçar, e como são ordens da Prima-Fati, há
Tempos, ficar em casa – na casota – logo depois de comer, para
descansar, eu fiquei. Fiquei deitado na minha esteira.
Tentei dormir para descansar melhor, mas não deu e nem consegui
– em Greenland, só aos ancestrias é possível e permitido dormir nos
momentos em que o sol penetra – de sol excitado.
Fiquei cansado de tentar descansar sem estar cansado, então fui lá
fora para brincar com o Kiame – em sua família não tem essa regra
de ficar trancados depois do almoço – antes mesmo que o meu
período de estar confinado terminasse.
Lá fora, brincamos às escondidas, com os outros meninos e
meninas da aldeia: não há nada mais agradável que isso. E como
diz a Prima-Fati: devemos aproveitar as amizades, e lutar pelas
nossas amizades: eu não estava a fazer nada mais além disso.
Quando eu cheguei, a brincadeira já estava no meio, ou talvez no
fim, e o Jojó, com a sua voz grossa de amedrontar, era quem dava
as ordens e regras do jogo. A primeira regra foi: mesmo que o Jojó
fosse apanhado primeiro, ele nunca pode ficar no lugar de quem
procura os outros. A segunda regra foi: se, por acaso, o Zitúu
chegar, ele estaria no lugar de quem procura, até o jogo terminar.
“O Jojó tem mesmo algo contra mim”, pensei, logo depois que me
foram ditas as regras pela Daniela-Tímida – conforme a tratávamos
nas fofocas – ter dito alguma coisa, ainda mais na frente do Jojó.
Todos temos medo do Jojó, apesar de ter o nosso Tempo.

33
Ngola Mufasa

Brincamos e jogamos, jogamos bastante. E por pena, ou talvez


empatia, o Kiame e a Nzola pediram ao Jojó para que ficassem no
meu lugar algumas vezes, pois eu estava muito rebentado6.
***
Realidade Real: o sol começava a enfraquecer e, por
consequente, adormecer:
Como já estava meio escuro, decidimos não mais ir ao rio para
banhar: pois é proibido ir ao rio a noite (ou quase noite) para as
pessoas do meu Tempo.
Quando cheguei em casa, a Prima-Fati não se importou com o facto
de eu ter saído, o que é bastante estranho. Entrei em casa como um
ladrão, mesmo estando a Prima-Fati a me observar no meio da
escuridão. Fui até a cozinha, peguei uma caneca de plástico da
pequena mesa de madeira, e com ela tirei água no balde azul de
plástico para, não matar, mas fazer adormecer a minha sede.
Em condições normais – aquela não paracia ser uma condição
normal, era totalmente anormal – a Prima-Fati me bateria por não
cumprir a “velha regra” dela de ficar em casa a descansar depois do
almoço. “Talvez é porque eu estava com os meus amigos, e como
ela mesma diz: devemos aproveitar as nossas amizades”, pensei,
enquanto procurava no chão da cozinha um palito pequeno para
meter entre os meus cabelos. “ Ou talvez será o Primo-João a me
dar porrada”, pensei, mais já ultrapassando a porta sem porta da
cozinha. Juro que eu já chorava dentro de mim. “ O Primo-João?”,
perguntei à Prima-Fati, interrompendo o momento íntimo de
reflexão que ela tinha com ela mesma. Uma, entre duas das

6
Calão, utilizado no sentido de “cansaço ou fadiga”.
34
Os Contos dos meus Sonhos

possíveis respostas àquela pergunta me salvaria. Caso a Prima-Fati


dissesse: “não es…”
– Não está – ela disse –, foi ao rio banhar.
Dei um suspiro um pouco difícil de disfarçar, e limpei as lágrimas
que escorriam dentro de mim. Agora, eu tinha que pensar em fazer
alguma coisa que me livrasse da maligna porrada do Primo-João. O
melhor que pude pensar em fazer, foi dormir (…), porque o Primo-
João não seria capaz de me acordar apenas para me bater. E no dia
seguinte, tudo voltaria ao normal. “Vou dormir”.
***
O conto do meu sonho:
As vozes assustadoras atormentavam os meus ouvidos que estavam
quase a avariar o ouvílogo7. As almas que tiravam proveito do meu
sofrimento, me causavam um arrepio muito difícil de se sentir,
porém fúnebre quando se sente.
A serpente voltou a sair do meu corpo (ou melhor, cabeça), mas
desta vez pelo olho esquerdo. De tão gorda que estava, não
conseguia sair do meu corpo com a mesma facilidade que entrou.
Teve que abrir um buraco muito grande, nesta zona do meu olho
direito e, para a minha triste felicidade foi-se, me deixando sem
olhos, cérebro – para pelo menos pensar – e, o pior de tudo,
danificando os meus órgãos da barriga. Eu estava totalmente
desfigurado. Não sei como, mas mesmo sem olhos eu conseguia
ver. Não tão bem, mas conseguia.

7
Palavra gramaticalmente errada, porém utilizada referindo-se ao “ouvido no seu todo”.

35
Ngola Mufasa

Me faltavam poucos pensamentos a serem pensados pelo cérebro


danificado, então eu não conseguiria me mover pela força do
pensamento. Sendo assim, voltei para tentar pegar os meus pés de
volta, e o que vi era assustador: toda a pele foi lambida, as carnes
comidas e os ossos corroídos. Era um cenário assustador.
Felizmente, consegui unir o resto do corpo aos pés, pés
extremamente danificados, mas que por força dos ossos ainda
moveriam.
Comecei a andar sem rumo, a pensar sem ideias – gastando os
últimos pensamentos que me restavam – a olhar sem vistas e a
correr sem movimento. Porém, tudo fazia com medo.
Num outro instante, não obstante, não muito distante, me encontrei
num outro habitat. Era mais assustador que o espaço anterior.
Com o corpo e a mente cobertos de sangue, senti as almas a me
puxarem para um outro ambiente, que estava ainda mais quente –
queimava a minha pele. Era ainda mais assustador. Eu preferiria
ficar no anterior, mas não tinha liberdade de escolha.
Quanto mais eu me envolvia no local, mais vapor queimava e
danificava a minha pele. Os meus cabelos, não conseguiram se
conter, e torravam por completo.
As almas, com as suas mãos transparentes e inexistentes,
empurravam o meu corpo para o fogo abismal. Quanto mais eu
resistia, do fogo mais almas surgiam. Umas mais, e outras menos
assustadoras que as outras. Cada alma multiplicava-se em mais
outras milhares a cada instante. E todas, absolutamente todas,
vinham contra mim.
Eu resisti aos empurrões das almas até onde era possível,
provocando-as a se multiplicarem cada vez mais. Umas me
36
Os Contos dos meus Sonhos

pegaram nos pés, outras nos braços e as outras no restante do corpo,


enquanto outras produziam melodias fúnebres e incompreensíveis.
Deitaram-me no fogo ardente, que se estendia por um buraco longo
sem fim. Enquanto eu descia para o infinito, as almas se jogavam
também no fogo, e tiveram a genial ideia de jogar com o meu corpo.
Coitado do meu corpo.
Felizmente, quando eu menos esperava, vi morcegos passeando em
torno da berma do buraco. Eram muitos, que formavam uma nuvem
preta, naquele lugar bastante escuro. Mas eles giravam, também,
em torno de uma outra sombra: era a sombra do meu Avô. Na
aflição sem fim, quando clamei por socorro, o avô enviou os
morcegos para me socorrer. Não eram quaisquer morcegos: eram
morcegos de olhos escuros, asas quebradas, partidas e corrompidas,
e almas mortas.
Os morcegos lutaram contra as almas, para me livrar daquela
tortura. Sem dúvidas, eles eram o meu socorro naqueles momentos.
Depois de uma longa-curta luta, os morcegos envolveram meu
corpo nas suas almas secas, e guiados pelos olhos escuros, com as
suas asas cortadas, levaram-me até a superfície.
Eu, nem queria acreditar que minha alma estava despedaçada, mas
não morta, meus órgãos danificados e depravados, porém ainda
funcionavam.
– Filho meu. – Disse o Avô, com um semblante não fácil de se
identificar.
Tentei dizer algumas palavras, mas não fazia nada mais do que
chorar e soluçar: odeio os pesadelos da nossa aldeia; não são como
qualquer um que possas imaginar, são bem piores.

37
Ngola Mufasa

O Avô, estava também a sentir o meu sofrimento, foi isso que ele
disse, depois de me envolver em seus braços invisíveis e sentar ao
lado de uma árvore que falava. “Mas não posso te livrar deste
sofrimento, infelizmente”, ele disse. Eu perguntei quais eram os
motivos que faziam com que eu não fosse livrado, e o Avô me disse
de forma subtil: “ Você desobedeceu as regras da sua mãe, que
consiste em não sair de casa logo após o almoço”. Eu levantei as
sobrancelhas, como sinal de que não estava a entender a situação.
“as regras, não importam quão antigas elas sejam, se não foram
revogadas continuam a ser regras”, continuou, “ e você
desobedeceu! Por isso estás a pagar neste sonho”, terminou.
– Ir podes já. – Me disse o Avô… ou melhor, a sua sombra, naquele
ambiente mais fúnebre e funesto que eu já conheci.
Limpei as lágrimas de sangue pela milésima e última vez naquela
noite, e em seguida deixei o Avô e seus morcegos de almas e asas
cortadas, para voltar à Realidade Real
***
Realidade Real:
Não vi, nem senti o meu rosto molhado de lágrimas, mas os lençóis
em minha esteira estavam húmidos. Não tinha nenhuma ferida nem
ferimento, mas sentia dores insuportáveis. Era como se os
acontecimentos e sentimentos daquela realidade inexistente se
transformaram em realidade real. Ou seja, não só nos sonhos, mas
em toda a aldeia: o que é, pode não ser.
ODEIO OS PESADELOS DA NOSSA ALDEIA. NÃO SÃO
COMO QUALQUER UM QUE POSSAS IMAGINAR, SÃO BEM
PIORES!

38
Os Contos dos meus Sonhos

A BORBOLETA DA BERTA

Aberta a porta da minha casota, a Berta já estava lá fora, sentada à


sombra da árvore de embondeiro, onde eu e o Kiame costumamos
sentar para conversar, e dar nome às estrelas a noite.

Os raios solares do sol, acabado de acordar, iam contra o meu rosto,


e eu tive de meter a mão esquerda na horizontal, justo em cima dos
olhos, na direcção da testa, para conseguir notar que era a Berta.

– Zitúuuuu, vais ao rio? – era a Prima-Fati.


– Não, Prima-Fati. Vou só apanhar8 sol.

Fechei a porta da casota, e em seguida andei em direcção à Berta,


que estava com os braços cruzados apoiados aos joelhos e com o
queixo encostado no braço. Me sentei ao lado dela, sem dizer
alguma palavra.

Todos os nossos amigos estavam a dormir, e a Berta tem sido a


última a se juntar às brincadeiras nas manhãs. Mas hoje, ela foi a
primeira dos nossos amigos a sair de casa; e pior, o seu semblante
não era dos melhores.

– Sai daqui. – Me expulsou, com um tom de voz mais alto que o


normal, e com uma arrogância que raras vezes a vejo demonstrar.
– Você precisa conversar… – Nem sei se afirmei, ou fiz uma
pergunta.
– Eu preciso que você me deixe em paz seu virosca. – Essa era a
pior coisa que eu poderia ouvir. Não a frase em si, mas a palavra
“virosca9”. É um facto, mas que eu odeio. Odeio quando as pessoas

8
Palavra empregada no sentido de “tomar” – sol.
9
Palavra utlilizada para descrever de forma abusiva pessoas que têm dificuldade visual.
39
Ngola Mufasa

me tratam por este “facto”. Tentei ficar chateado com ela, mas era
a Berta; pensei em lhe dar um tapa pela ofensa, mas era a Berta. E
a Berta, não era qualquer um: é a menina mais linda da aldeia.

Curvei em direcção a minha casa, com os punhos cerrados e as


lágrimas jorrando. Espreitei para trás e ela estava na mesma posição
de antes.

Pensei em ir até a casa do Kiame para desabafar a raiva que eu


sentia, mas achei melhor não. Ele devia estar no sétimo sono.

Para me acalmar, o primeiro e último lugar que pensei em ir, foi o


rio: a agitação do rio (daquele rio), se transformava em
tranquilidade.

Da aldeia ao rio, não é muito distante, então não demorei muitos


momentos caminhando, batendo os pés duramente no chão.

Quando cheguei ao rio, ele estava quente, o que era bom, e dei um
pino10, sem mesmo antes tirar a minha camisa laranja e um calção
desportivo. Quando entrei, me despi de mim mesmo para me vestir
de um outro eu; me aprisionei naquela liberdade perpétua, que
duraria instantes; abracei a água como nunca antes a senti; emergi,
me envolvi, sem medo de ser decepcionado pela seca. E como digo
e sentia: eu amava a liberdade, euforia e tranquilidade.

O caudal estava baixo, então não tive necessariamente que nadar


bastante do fundo à superfície, da superfície ao fundo. Dei um
último mergulho e sai das águas. Não o mesmo, mas com um “eu”
que só a minha relação com aquelas águas conseguiam gerar.

10
Calão usado no sentido de “mergulhar”– dar um mergulho.
40
Os Contos dos meus Sonhos

Na beira, estava quem eu menos esperava ver naquele momento: a


Berta. Resolvi não lhe dirigir palavras, para não ser novamente
ofendido. E ela, estranha que era, não parava de rir, enquanto
olhava para mim. Eu olhei para ela com os olhos estreitados, como
sinal de interrogação. Ela só ria e ria cada vez mais, indicando para
o meu corpo. Eu, sinceramente, estava sem entender.

Me aproximei dela, com a face mais interrogativa que eu consigo


fazer, e ela finalmente me explicou a razão dos seus risos:

– Você. Está. Com a roupa. Colada. Ao corpo. – Disse, com as


respectivas pausas, para dar lugar às gargalhadas.
– Isso é motivo de risos!? – Eu disse, tentando ser duro e tentando
não rir também com ela.
– Você tem. Um corpo. Mui… to feio – Agora não me contive, e ri
também, pelo que ela disse, pela forma como disse, e por ser ela a
dizer.

Eu simplesmente não lhe entendia. Num momento me ofende com


um comentário absurdo, noutro momento ri comigo como se nada
tivesse acontecido. “Não consigo mesmo ficar chateado com essa
louca”, pensei, encarando a sua beleza à beira do rio. A minha
mente estava dividida. Do lado direito eu ouvia: “ Tenta mais, você
está conseguindo ficar chateado com ela”; do lado esquerdo eu
ouvia: “ Isso é impossível”. A voz do lado esquerdo estava certa,
eu não consigo ficar chateada com ela e se eu consigo, só por
poucos momentos. Aliás, ela disse nada mais que a verdade, no
período da manhã: eu sou mesmo virosca no olho direito e magro,
muito magro.

– Desculpa pelo que disse… – Introduziu.


– Acabei mesmo de te desculpar. – Interrompi a introdução.
– Como pedido de desculpas, antes do sol começar a adormecer,
vou te levar para um lugar muito bom.
41
Ngola Mufasa

– Que lugar? – Perguntei, todo entusiasmado. – É perto, ou distante


da aldeia? – A Berta já me deu as costas sem responder. – É dentro
ou fora de Greenland? – Ela continuava a andar sem me responder.

Olhei para mim, com a roupa molhada, colada ao corpo, e logo em


seguida espremi para correr atrás dela, que estava no caminho para
a aldeia.
***

Já na aldeia, passei alguns instantes com o Kiame, a Nzola e o


Caneca – cão do Kiame. Felizmente, as meninas tiveram que ir mais
cedo para ajudar a preparar a refeição da tarde de suas casas, então
eu tive mais alguns instantes de sobra para partilhar com o Kiame
o que aconteceu nesta manhã. Nas minhas pausas, enquanto falava,
o Caneca ladrava parecendo estar a se comunicar conosco – aquele
cão era mesmo intrometido.

O sol começou a esquentar, então fomos até a sombra do


embondeiro, onde costumamos sentar para conversar e rir.
Conversamos, enquanto o Kiame fazia festas, com a sua mão
direita, na cabeça do Caneca.

Quando chegou a hora de comer, nem foi preciso sermos chamados.


Aliás, fomos chamados pelo cheiro do peixe da água doce frito e o
cheiro do lombi11 de abóbora – no meu caso –, e rama12 com peixe
frito também, no caso do Kiame.

Fomos às corridas, cada um para a sua casa, mas o cão ficou ainda
fora a vaguear, pois não lhe era permitido comer com os seus donos.

11 Verdura típica de alguns povos da Cultura Bantu.


12 Verdura proveniente da batata-doce.
42
Os Contos dos meus Sonhos

Quando entrei na minha casa, sentei logo num kachalo13 pequeno,


e a Prima-Fati mandou-me lavar as mãos antes que ela me servisse
no habitual prato de alumínio.

Durante o almoço, ninguém dizia nada para ninguém, apenas os


garfos e pratos de alumínio se comunicavam. O barulho que o
Primo-João produzia ao comer com a boca aberta era irritante. Mas
nem eu, nem a Prima-Fati podíamos reclamar, senão levávamos
alguns pontapés, como aconteceu há alguns Tempos: me lembro
muito bem destes Tempos.

Eu não podia nem lhe dirigir a palavra e, para além disso, ele já
estava com uma cara trombuda14, parecendo estar muito nervoso.
Eu só queria terminar de comer, ir para o meu quarto descansar e
sair daquela área que me causava tormento.

Comi numa pressa de difícil identificação em seguida me levantei


para levar o prato na cozinha.

– Senta aí. – Disse o Primo-João repentinamente, sem nem olhar


para mim ao dizer.
– Só vou levar… – Eu já estava a tremer nas mãos.
– Eu disse senta aí.

Não tive escolha. Aliás, nunca tenho.

Me sentei, e fiquei a espera de um deles dizer alguma coisa. Eu


ouvia os batimentos do meu coração e os batimentos rápidos
causados pelo medo, por causa do silêncio que lá habitava.

13
Assento feito de madeira e pele de animal, na Cultura Bantu.
14
Calão, significando assim seriedade ou uma certa má disposição.
43
Ngola Mufasa

O Primo-João terminou de comer, passado muitos momentos sem


me dizer alguma coisa, e eu estava lá na mesma posição e ouvindo
os batimentos do coração.

– Já podes ir.

Dei um suspiro discreto e notei que os meus olhos estavam cheios


de lágrimas, quando dei uma piscadela longa. Entrei no meu quarto,
me deitei na esteira e adormeci.

Quando me espantei do sono sem sonho ( durante o dia não se sonha


na nossa aldeia em Greenland. Chamamos o sono diurno de sono
seco.) pensei logo na Berta. “ Berta, Berta, Berta…”, minha mente
pensava vezes sem conta, em pouquíssimos instantes.

Felizmente, já tinham se passado os momentos de digestão, então


eu poderia sair à vontade. Mas antes, eu tinha que lavar a louça suja.

– Zitúuuuu, não sai sem antes lavar a louça – Gritou a Prima-Fati,


dizendo justamente o que acabei de pensar.

Lavei a louça duma15 rápida, e logo sai para brincar.

– Zitúuuuu! – Era a Berta me chamando. Ela estava sentada em


baixo do embomdeiro.

Corri ao seu encontro, tropecei numa pedra, depois me equilibrei e


já estava ao pé dela.

– Pronto para conhecer Greenland? – Disse a Berta sorrindo.

15
Contração de: “de uma”.
44
Os Contos dos meus Sonhos

Ela carregava uma pasta bordada, que estava cheia de coisas que eu
não sabia o que eram, e nem queria perguntar. Não podia estragar
o momento.

– Estou. – Sorri.
– Vamos, antes mesmo que eu me arrependa.

Antes que ela se arrependesse, andei com muita pressa, estando na


frente dela, sem nem conhecer o caminho: os caminhos da Berta.

O sol ainda estava excitado. Andamos entre os matos da nossa


aldeia, e só depois de uma longa distância é que entramos na
estrada.

A Berta não era de poucas palavras. Mas naquele dia disse quase
nada. Eu nem lhe dirigi a palavra, mas depois de percorrermos uma
longa distância, achei que eu já podia dizer alguma coisa, porque
era já não era possível a Berta mudar de ideia.

Andamos por muitos, mas muitos instantes, até chegarmos à uma


zona montanhosa de Greenland, onde habitava um silêncio, que
algumas vezes era rompido pelas conversas das aves voando.

– Vamos subir. – Ordenou a Berta.


– Quê? Você tá maluca? – Indaguei assustado, pois eu tinha o corpo
cansado, e as minhas chinelas de borracha a se gastarem cada vez
mais devido às distâncias percorridas.

A Berta não esperou por mim, e antes mesmo que eu a respondesse


“sim” ou “não”, ela já estava a subir a montanha, empregando
algum esforço.

45
Ngola Mufasa

Eu não tinha escolha, senão a de segui-la, e foi o que fiz. A Berta


era uma criança teimosa e persistente, tal como a Nzola. Quando
punha algo na cabeça, não parava antes mesmo de concretizar.

Eu estava totalmente cansado, só queria chegar ao cume e me sentar


para descansar.

– Vamos voltar! – Eu disse, já bem rebentado.


– Quê? Você tá maluco?! – Aquilo pareceu ser mais uma afirmação,
do que pergunta.

Cada vez mais ela se distanciava, eu tentava correr para alcançá-la,


mas logo abrandava.

Finalmente chegamos ao fim da montanha. Aliás, eu cheguei,


porque lá já encontrei a Berta sentada numa pedra como se nada
tivesse acontecido.

– Senta aí. – Ela disse, indicando para um outro sítio onde tinha
várias pedras de tamanhos diferentes. Escolhi a maior entre elas, a
que não me causaria muita dor nas nádegas, e me sentei, depois de
encostar a pedra ao lado da pedra onde sentava a Berta.

O sol começou a ameaçar no horizonte, então queria perguntar algo


à ela porque comecei a ficar com medo. Mas não queria estragar
aquele momento com perguntas.

– Toma. – Disse ela, depois de tirar da sua bolsa de renda algumas


batatas-doce e ginguba torrada. Era só alegria, até já me esqueci de
todo o sofrimento que passei para chegar até aquele local.

Comi a batata, sem mais me preocupar com o anoitecer. E, para


melhorar o momento, a Berta começou a cantar. Ah… como a sua

46
Os Contos dos meus Sonhos

voz era linda. Os pássaros voando faziam para nós uma espécie de
coro.

– Não há forma melhor de pedir desculpa. – Eu disse,


interrompendo a sua linda voz que cantava.

A Berta pôs-se a rir, e eu estava sem perceber a razão das suas


gargalhadas.

– Oquê? – Perguntei.
– Você acha mesmo que eu te trouxe aqui para pedir desculpas? –
Ela soltava gargalhas sarcásticas.
– Foi você quem disse isso. – Falei me defendendo, mesmo sabendo
que eu sou indefeso e vulnerável diante dela.
– Ahn… eu estava a brincar.

Eu me senti envergonhado e sem jeito. “Mas eu te trouxe para ver


isso…”, dizia a Berta apontando com o indicador para um lugar
muito distante.

Eu me encantei de tal forma, que tive que esfregar os olhos, para


tentar ver melhor, pois eu não acreditava no que via.

– Na minha primeira vez não acreditei também. – Confessou a Berta


sorrindo.

O que eu via naquele lugar, era muito diferente do eu que já vi até


mesmo em sonhos ou na Realidade Real. É algo que não fui capaz
de ver nem mesmo na imaginação.

Fiquei olhando para a Berta boquiaberto. Ela estava com um


semblante de missão cumprida, por fazer com que meus olhos
vissem tamanha beleza.

47
Ngola Mufasa

– Como você descobriu isso?


– Zitúu, é uma longa história.
– Então resuma Berta. – Orientei.
– Eu e a Nzola gostamos muito de cantar diante da natureza…
– Disso eu sei.
– Então, certo dia estávamos a procurar por um lugar não só perto
da natureza, mas também perto do céu azul. Então procuramos por
montanhas…
– E encontraram esta. – Interrompi.
– E encontramos esta, que nos dá a possibilidade de olhar de longe
zonas urbanas de Greenland.
– Wau…! – Exclamei admirado.

Eu nunca, durante os meus Tempos de vida, vi aquilo antes: eram


edifícios muito grandes, carros, e uma grande população se
movimentando de um ponto para outro. Eu achava que Greenland
era só o que eu via nos espaços da nossa aldeia. Afinal de contas, é
muito mais do que isso, existe um grande mundo afora.

– Toma! – Disse a Berta, me dando mais batata.


– Este vai se chamar… – Pensava eu… – O monte das descobertas.
– A Berta ria, pois achava graça.
– Desculpa por te tratar daquele jeito hoje de manhã. – Se
desculpou.
– Você disse que não viemos aqui para se desculpar. – Retruquei.
– Eu estava a brincar.

“Como é que essa menina de cabelo natural e missangas, consegue


ser tão… assim, sei lá!?”, pensei.

– Agi daquela forma porque não tive uma noite das melhores…
– Um sonho dos melhores, queres dizer. – Interrompi.
– Uma coisa causa a outra, então são a mesma coisa. – Se defendeu
ela.
48
Os Contos dos meus Sonhos

– Não. Não são a mesma coisa. – Respondi.


– Mas…

Discutimos por mais alguns instantes, até que ela resolveu admitir
que estava errada, e continuar:

– Eu tive um péssimo sonho, que nem sequer quero lembrar. – Ela


disse, com os olhos brilhando por causa das lágrimas que lá
estavam. Eu já sabia quais eram as coisas que causam os maus
sonhos, então decidi não mais perguntar por detalhes.

– Então vim aqui para te pedir perdão pela forma como te tratei
nesta manhã, e para me destrair também. Amo este… – Ela pensava
no que ia dizer – este monte das descobertas.
– Não faz mal. Eu entendo. Também já tive péssimos sonhos. – Me
aproximei mais dela.
– Tá bem. Obrigada Zitúu, virosca. – Já não ofendi-me mais com
esse comentário, porque ela riu enquanto dizia.
– Já está a anoitecer, vamos. – As luzes artificiais daquele lugar
distante estavam a se acentuar cada vez mais. Eu queria poder ficar
para contemplar tamanha beleza, mas não podíamos. Estava a
anoitecer cada vez mais.
– Você não sabe esperar? – Eu não disse nada, preferi me manter
calado. Ficamos alguns instantes lá, sem dizer nada, e depois
começamos a descer.

Já na terra plana, na medida em que nos movíamos entre as matas


e os caminhos com capim cortado, o sol também começava a acabar
de se esconder.

– Toma. – Esta era provavelmente a terceira vez que ela disse esta
palavra só nesta tarde. Me parecia que ela tinha tudo planejado há
Tempos. – Tens que pegar assim, e iluminar no caminho onde

49
Ngola Mufasa

passas. – A sério que ela estava a me ensinar como usar uma


lanterna!?

Aquele lugar estava muito escuro, então as lanternas não se faziam


sentir como deviam.

Sempre que eu estivesse com medo de alguma coisa no caminho, a


Berta me acalmava, e sempre que ela estivesse com medo, eu a
consolava: aquele não era o melhor lugar para se passar durante a
noite.

Andamos mais algumas distâncias, quando, de longe, nós vimos


luzes azuis se movendo no ar. As luzes vinham de um desvio
antagónico ao que nós seguiríamos mas, por curiosidade, nos
aproximamos mais ainda delas: eram borboletas resplandecentes.
Aquilo era muito agradável.

Eu e a Berta tentamos apanhá-las, para ver de mais perto, mas não


conseguimos: quanto mais próximos delas estávamos, mais elas se
afastavam. Mas aquela era a nossa alegria: não conseguir apanhar
o que não nos pertence.

Ficamos a brincar com as borboletas que voavam, sem controlar os


instantes. Umas brilhavam mais que as outras, mas elas partilhavam
da mesma energia: aquela foi a melhor festa de animais que eu já
tinha visto; aquele azul era o mais brilhante que já vira; aqueles
momentos foram os melhores da minha vida.

Sorríamos, enquanto tentávamos apanhar algumas e…

– Apanhei… apanhei… apanhei… – Gritava a Berta, naquela


escuridão silenciosa.

50
Os Contos dos meus Sonhos

Ela veio até mim, com a borboleta em suas mãos, que era mais
brilhante que vista de lá de cima. As mãos da Berta estavam
coladas, mas os dedos estavam entreabertos, e a borboleta estava
dentro. Eu nunca vi a Berta tão feliz, durante esses todos Tempos
em que nos conhecemos. Ela olhava para a sua borboleta com um
sorriso no rosto; e eu, não mais olhava para a linda borboleta, e
comecei a olhar para a beleza da Berta que estava possuída por um
sorriso distraído porém belo, contaminado pelas luzes das
borboletas: ela sim era a verdadeira borboleta. “ Você é a verdadeira
borboleta”, pensei, quando olhava para ela sorrindo feito louca.

Largamos a borboleta, e deixamos elas aos cuidados da natureza.


Nos metemos no nosso caminho para a aldeia.

Quando chegamos, parecia que só os nossos amigos – incluindo o


Jojó – notaram a nossa ausência por longos momentos. Mas antes
disso, o Caneca – cão do Kiame –, nos viu de longe e começou a
ladrar muito alto. Eu tive que correr ao seu encontro para lhe tapar
na boca, e assim não chamar a atenção de todos.

Quando chegamos mais perto da aldeia, apenas os nossos amigos


estavam fora das casotas, a brincar. O Jojó ameaçou contar aos
nossos Primos, caso a Berta não lhe desse batata-doce.

A Berta, com o medo que tinha, lhe deu toda a batata que estava em
sua bolsa de renda.

Depois de alguns palavreados, eu e a Berta nos juntamos às


brincadeiras.

Quando chegou o momento de dormir, cada um foi para a sua


casota. Eu e a Berta fomos em nossas casas com o medo saltitando
em nossos peitos.

51
Ngola Mufasa

Antes de abrir a porta, apanhei no chão um palito de vassoura


pequeno, e envolvi entre os cabelos da cabeça para não ser batido:
é uma técnica que nunca falha.

– Zitúu. – Disse a Prima-Fati com muito calma. – Como foi a vossa


brincadeira?

Neste momento, passaram milhares de informações e pensamentos


em minha mente.

– Deves estar cansado e com fome. Janta e depois vai dormir. – Ela
disse. Aquele foi o melhor sentimento de alívio que já senti.

Comi o funje16 e o peixe, depois fui para a minha esteira me deitar.


“ Esse foi o melhor dia que eu já tive”, pensei enquanto olhava para
o teto e cruzava os pés.

Aquele foi realmente o melhor dia da minha vida. Nunca subi uma
montanha tão alta, e nunca vi uma cidade tão linda, mesmo que de
longe. Nunca vi borboletas tão lindas e reluzentes. Nunca vi
também a Berta tão feliz com a “sua” borboleta. Mas, para mim, a
Berta era a verdadeira borboleta…

Aquilo foi para mim um sonho real.

16
Alimento feito de farinha de milho ou mandioca.
52
Os Contos dos meus Sonhos

A FÚRIA DO PRIMO-JOÃO

Na nossa aldeia, em Greenland, é permitido e quase admissível


acordar tudo, menos a fúria do teu Primo. Eu cometi este erro, e
como consequência fiquei sem o meu olho direito, me tornei
virosca. Vou vos dizer como isso aconteceu, desde o princípio.

– Ajudar os nossos irmãos sempre que podemos, é uma das


melhores qualidades que vocês, desde criança, têm que cultivar,
enquanto estão no período de formação da vossa personalidade…
– Dizia o Filho-Tito no Onjango.

Era numa noite totalmente acesa, e naquela sessão o Filho-Tito nos


ensinava sobre a filantropia e altruísmo.

– Hoko17! – Reivindicou o Jojó. – Nem todos os homens merecem


a nossa ajuda.

Aquilo não era engraçado, mas todos no Onjango riram. Menos o


Filho-Tito, o Kiame e eu.

– Jojó, é importante ajudar todas as pessoas que precisam. Não só


as pessoas, mas também a natureza, os animais, enfim… tudo a
nossa volta. – Explicou o Filho-Tito.
– Como podemos ajudar a natureza e os animais Filho-Tito? –
Perguntou a Nzola, esfregando as mãos nos seus joelhos com
calma.
– Ahn… boa pergunta menina Nzola. Alguém consegue responder?
– Filho-Tito, eu acho que devemos ajudar os animais alimentando-
os. – Foi o Kiame a dizer.

17
Palavra usada no sentido exclamativo, na língua Umbundu.
53
Ngola Mufasa

– Matar para comer, também é ajudar. – Disse o Jojó aos risos. E


todos os outros meninos riram-se também.
– Tens razão Kiame. – O Filho-Tito, ignorou os comentários do
Jojó. – Devemos alimentar e cuidar.

– E a natureza? – Indagou a Daniela. – Como podemos ajudar ela?


– Cantando para ela. – Respondeu a Berta, e a Nzola concordou
dizendo “ yah”. Aquilo não parecia ser uma piada, mas algumas
meninas riram-se. Talvez pelo entusiasmo e rapidez da Berta,
quando disse.
– Sim. – Disse o Filho-Tito. – Cantar encanta a natureza, mas isso
não basta…
– Podemos também plantar ávores. – Completei.
– Também podemos fazer isso meus amiguinhos. – Falou o Filho-
Tito.
– Que tal plantar árvores? – Sugeriu a Nzola.
– Boa ideia. – Gritou a Berta.
– Podemos começar amanhã? – Eu Tenho plena certeza de que a
Berta se dirigia ao Filho-Tito, mas ela olhava para mim e a Nzola
enquanto dizia. Então eu nem tinha como responder à pergunta que
tinha certeza que não era para mim, ou…
– Tá bem. Eu vou organizar algumas plantas da estufa, e amanhã
começaremos. – Concordou o Filho-Tito.
– Boa. – Gritaram a Berta e a Nzola em simultâneo.

Continuamos no Onjango por mais alguns instantes, e quando


terminou, sai de lá com uma lição que cantava em meus ouvidos:
devemos ajudar os animais e a natureza.

***

Na noite de ontem, depois do Onjango, eu fui até a minha casota,


para comer e dormir. Conversei com o Primo-João sobre as lavras,

54
Os Contos dos meus Sonhos

algo que não acontece sempre, e depois fui à minha cama para
dormir.

No meu sonho, eu estive no lugar onde costumava estar, em maior


parte dos sonhos em que o meu Avô aparece: um lugar cheio de
árvores e animais.

O Avô me ensinou sobre a importância de cuidar dos animais e da


natureza. Foi uma lição muito relacionada com a que tivemos
durante a noite no Onjango, quando falamos sobre a filantropia e o
altruísmo. Existe uma explicação para essa semelhança entre o
sonho e a Realidade Real:

As nossas reuniões com o Filho-Tito têm sido ao lado da árvore de


embondeiro, onde eu e o Kiame costumamos nos sentar. Segundo
o Filho-Tito, os espíritos dos ancestrais da nossa aldeia ficam lá
durante o dia, espalhados nos troncos, nos ramos e nas flores, a
observar tudo o que se passa na aldeia. Sendo assim, enquanto nos
reunimos no Onjango, eles ouvem as nossas conversações.

“Talvez seja por isso que o meu Avô deu-me um sonho relacionado
à realidade da conversa no Onjango”, pensei.

***

Na manhã seguinte, acordei com o barulho da porta de madeira, que


foi causado pela agressividade com que o Primo-João fechou ao
sair.

Me levantei, meti o meu calção preto para sair e ver o que se pasava.
Encontrei a Prima-Fati sentada em um kachalo, na nossa pequena
sala. Ela estava calma, porém lacrimejava. Mas quando me viu,
limpou e disfarçou.

55
Ngola Mufasa

– O que foi? – Perguntei, me encostando na porta. Segurei com a


mão esquerda a cortina do meu quarto.
– Você só vai entender isso quando fores adulto. – Disse a Prima-
Fati, que estava sentada e encostada na parede de adobe.

Resolvi não perguntar mais nada, pois a Prima-Fati não gosta


quando alguém a complica.
– Prima-Fati, hoje vamos plantar árvores com o Filho-Tito. –
Afirmei, mas ao mesmo momento estava a pedir para sair.
– Senta ainda aqui. – Disse a Prima-Fati, puxando um outro kachalo
ao lado de si. Me aproximei, e sem dizer alguma coisa me sentei.
– O que eu vou dizer não é para a tua idade, então deves esquecer
depois de ouvires. – Disse ela. “Eu sinceramente não sei qual é a
minha idade, então não sei se vou mesmo esquecer. E, para além
disso, esse todo suspense da Prima-Fati está a me deixar ainda mais
pensativo e curioso”, pensei.
– Como você sabe, os adultos não sonham. – Eu olhava para os
olhos dela. – Mas existe uma excepção para esta afirmação. –
Estreitei os olhos – o Primo-João, teu pai – para mim era muito
desconfortável ouvir a palavra “pai”, se não for usada por e
simplesmente para o Pai-Mingo. Aliás, eu desconhecia, se fosse
para ser usada no sentido de progenitor. – Com a idade que ele tem,
ele tinha que ter um “sonho especial”. – Eu sinceramente não
percebia nada de idade, ainda mais de “sonho especial”.
– Sonho especial? – Admirei.
– Sim. Um sonho que nem eu conheço.
– Só acontece com os homens?
– Não Zitúu. As mulheres também têm os seus, mas é bem diferente
do sonho dos homens. Na verdade, cada um tem o seu, que é
diferente de qualquer outro.
– Como você sabe Prima-Fati?
– Quando tu tiveres mais Tempo de vida, vais aprender no Onjango
como isso funciona.
– E tu já tiveste o teu? – Perguntei.
56
Os Contos dos meus Sonhos

– Eu já tive. Este é o problema.


– Problema? – Eu estava totalmente confuso.
– Sim. As mulheres não podem ter este sonho antes dos homens,
quando os dois são casados. E eu tive antes do teu pai. Na verdade,
ele nem teve ainda.
– É por isso que ele está furioso?
– Sim. Por isso mesmo. Mas já foi conversar com o Pai-Mingo, e
tudo vai ficar bem.
– O Pai-Mingo vai lhe ajudar? – Questionei preocupado.
– Não. Se ele não tiver o sonho o quanto antes, pode ser sancionado.
– E o que vamos fazer?
– O que vamos fazer não. O que ele vai fazer…
– O que ele vai fazer? – Perguntei cabisbaixo.
– Neste momento ele foi à um rio para banhar, e o rio vai lhe deixar
mais calmo.
– Só isso? – Também achei que estava a perguntar demais.
– Não Zitúu. Levou um ramo de embondeiro, para suplicar aos
ancestrais que lhe deiam o “sonho especial”. E vai demorar para
chegar, pode só vir amanhã ou na próxima semana,
independentemente de quantas pessoas estiverem no rio.
– Está bem.
– Tá. Agora vai ajudar os outros a plantar. – Disse a Prima-Fati me
dando um beijo na testa.

Abri a porta, senti a radiação solar contra os meus olhos. Entrei


novamente em casa, fui até a cozinha para pegar na caneca com
água, e usei a água para lavar a cara.

Depois de lavar a cara, em frente da porta da nossa casa, fui ao


encontro dos outros do meu Tempo e do Filho-Tito no Onjango.

Plantamos árvores em várias áreas da nossa aldeia, até bem perto


do momento do almoço. Cada um tinha que plantar pelo menos
duas árvores, e em seguida prometer cuidar delas.
57
Ngola Mufasa

Depois de plantar, antes mesmo de ir almoçar, eu e o Kiame e mais


outros meninos fomos ao rio para banhar. O sol estava suculento,
então a água estava ainda mais agradável.

***

Quando cheguei à casa, depois do rio, encontrei o almoço já feito.


A minha comida estava servida num prato de plástico que estava
sobre a mesa da cozinha.

A Prima-Fati não estava em casa, mas deixou comida para mim e


para o Primo-João, para a eventualidade de ele voltar no mesmo
dia. Eu soube, de longe, distinguir qual dos pratos era o que tinha a
minha comida, pela quantidade diferenciada de comida nos dois
pratos: um tinha mais, e outro menos funge.

Comi a minha comida, mas pela pouca quantidade, eu não estava


satisfeito. Olhei para o prato do Primo-João e, por conta disso, a
minha mente só produzia as palavras da Prima-Fati: “ pode só vir
amanhã, ou na próxima semana”. Essa frase se reproduzia como um
eco. Com um grande esforço, ignorei tais vozes.

Fui até ao meu quarto para a digestão, conforme ditam as ordens da


Prima-Fati. Infelizmente, a minha barriga não parava de me dizer
que estava com fome. “ Trabalhei muito hoje no processo de
plantação. Então mereço comer bem não só em qualidade, mas
também em quantidade”, dizia a minha barriga.

Consegui controlar o zumbido na minha barriga e os meus


pensamentos golosos. Mas, felizmente, não consegui controlar os
pés. Quando dei por mim, eu já estava sentado no kachalo a comer
a comida do Primo-João.

58
Os Contos dos meus Sonhos

Voltei ao meu quarto e finalmente consegui descansar em paz.

***

Já era momento do sol descansar, e passei todo o dia a torcer para


que o Primo-João não chegasse: e assim aconteceu. A Prima-Fati
nem me ralhou por ter comido a comida do Primo-João. “ Fizeste
bem, senão as formigas brincariam na comida”, disse ela.

Caso o Primo-João chegasse, obviamente ficaria furioso por não


encontrar alguma coisa para comer e se assim fosse, eu ficaria
muito triste e com medo, pois a última coisa que eu queria naquele
momento era levantar a fúria do Primo-João.

***

Não são muitas as vezes em que o Primo-João dorme fora de casa,


com excepção das vezes em que saem para caçar, e ficam na mata
durante um longo período.

Na noite de ontem para hoje, dormi de forma muito tranquila e,


felizmente, eu tive um bom sonho, onde aprendi sobre a
importância das cores.

No meu sonho, o Avô me ensinou que se não houvesse cor, o


mundo não seria agradável, e nós estaríamos numa existência sem
sentido.

No meu sonho, eu e o Avô nos sentamos em um arco-íris gigante,


e ele ensinou-me a amar todas as cores que lá se hospedavam, do
geito que cada uma é.

***

59
Ngola Mufasa

Quando acordei, fui até a casa do Kiame para lhe chamar, e juntos
fomos ao rio com baldes para pegar água e regar as nossas plantas.
O rio em que nós fomos, não é o mesmo onde o Primo-João estava.
Segundo a Prima-Fati, o rio onde o Primo-João estava era muito
distante da aldeia. Era um pouco no além de Greenland.

Regamos as nossas árvores, e com um sentimento de que


estávamos a ajudar a natureza, voltamos ao rio. Mas desta vez foi
para banhar, e não para pegar água.

O Caneca, como sempre, nos seguia. Em momentos ele estava em


frente, e noutros momentos atrás. E, o que ele nunca se esquecia de
fazer, era mijar e se rebolar no capim.

Enquanto banhávamos, o Caneca não parava de beber água do rio,


como sempre faz. Para ele, era como se aquela água não saciasse
simplesmente a sua sede, mas lhe domava de uma sensação
incrível. Sensação esta, que lhe dava uma sede inesgotável. Ah…
como eu gosto daquele cão. É do Kiame, mas eu cuido dele como
se fosse meu.

***

Quando chegamos na aldeia, o Kiame foi para a sua casa, e eu para


a minha. Lavei a louça, e esperei a Prima-Fati terminar de fazer o
almoço, pois eu estava muito faminto.

Enquanto eu esperava, pensava na esperança de um dia ser adulto e


poder ter o “sonho especial”. Mais tarde, comecei a pensar nas
lições que tivemos no Onjango. E fiquei muito feliz por estar a
praticar o que aprendi: cuidar da natureza. Só me faltava uma
oportunidade para cuidar também dos animais e assim que
aparecesse eu não existiria.

60
Os Contos dos meus Sonhos

– Zitúu, já podes comer. Vou só ao rio para banhar. – Me avisou a


Prima-Fati, antes de fechar a porta principal da nossa casota.

Me levantei, calcei as chinelas de borracha, e em seguida fui até a


cozinha. Como no dia anterior, os pratos estavam no mesmo sítio e
da mesma forma. A forma como eles estavam alinhados não os
diferenciava, apenas a quantidade.

Como eu não estava com muita fome, nem estava muito cansado, a
minha comida foi suficiente para que eu ficasse satisfeito.

Voltei para o meu quarto, me deitei na esteira para descansar, e


descansei. Descansei, não por muitos momentos nem o suficiente,
porque o Caneca estava a ladrar sem parar na porta da minha casa,
e isso me estava e incomodar bastante.

Levantei para ver o que se passava. A Prima-Fati ainda não estava


em casa, o que era estranho, para quem só foi banhar.

Abri a porta, o sol estava calmo e o ambiente da aldeia silencioso.


Porém, tendencioso.

O Caneca não parava de ladrar, mesmo depois de me ter visto. Pelo


contrário, aumentou ainda mais, e da sua boca escorriam babas. Me
parecia estar faminto e com muita sede.

Entrei, fui à cozinha, e voltei de lá com água numa tigelinha de


alumínio, e lhe dei para beber. Mas mesmo assim, ele não parava
de ladrar, pois o Caneca só ficava saciado quando bebia a água do
rio, e no rio.

Senti pelo cão. “ Não há nada que eu possa fazer. Não, há…”,
pensei, com o indicador encostado no queixo. Fui até a cozinha,

61
Ngola Mufasa

peguei no prato de comida que lá estava, levei até fora, e dei a


comida ao Caneca.

Ele comeu e lambeu. Os seus choros se transformaram em alegria:


ele estava muito feliz por ter comido, e até baixou a sua cabeça,
para que eu lhe fizesse festinhas na cabeça.

O cão foi, todo feliz da vida para o seu caminho. Fiquei feliz por
ter ajudado o cão, mas pensei: “ eu não devia ter tirado a comida do
Primo-João”, mas esta linha de pensamento foi imediatamente
corrompida por outra, que se baseou nas palavras da Prima-Fati: “
ele só vem amanhã, ou na próxima semana”. Até aí estava tudo
bem, até eu ter o maldito pensamento de que o “amanhã” a que a
Prima-Fati se referia, era “hoje”. Agora, fiquei mesmo preocupado.

– Zitúu, vamos brincar. – Me chamou o Kiame, pois eu ainda estava


na porta da minha casa.

Não há nada melhor que uma boa brincadeira, em momentos de


aflição.

***

A brincadeira estava tão boa, até eu sentir a batida carregada de


raiva de um ferro no meu ombro. Quando virei, para ver o que era,
levei uma chapada bem esquentada do Primo-João.

Ao lado dele, estava a Prima-Fati chorando e implorando para que


ele não me batesse mais. Levei uma dura porrada: das piores que já
levei. Fiquei com feridas em todo corpo, e fiquei também com o
olho direito furado: só quando o meu olho furou, foi quando o
Primo-João parou de me bater, e eu apaguei.

***
62
Os Contos dos meus Sonhos

Quando acordei, não acordei em minha casa, em minha cama. Eu


estava na casa da Tia-Xica, onde se costuma tratar os doentes da
aldeia. Olhei a volta do lugar, obviamente apenas com o olho
esquerdo, e vi a Prima-Fati ao lado da cama onde eu estava deitado,
derramando lágrimas.

– Porquê que o Primo-João me bateu? – Foi a primeira coisa que eu


disse ao acordar, depois de alguns dias.
– Lembras quando eu te disse que ele iria ficar no rio durante um
Tempo que nem eu sabia? – Fiz que sim com a cabeça. – Lá onde
eles ficam, eles não podem comer. – Apertei os meus olhos para
espremer as lágrimas, mas só senti em minha face as lágrimas do
olho esquerdo, porque o meu olho direito (que já não existia) estava
tapado com um pano, que estrategicamente passou pela cabeça. –
Então, quando ele chegou estava com muita fome. E o facto de não
encontrar comida, o deixou furioso.
– Estranho… – Eu disse, com um semblante melancólico.
– Sim filho. Eu cheguei na aldeia no mesmo momento em que ele
chegou.
– Demoraste muito para chegar. – Não sei se afirmei, ou perguntei.
– Sim. Kilaro18. Aproveitei passar na lavra para tirar comida para o
jantar.
– Está bem.
– Quando eu cheguei, ele me perguntou onde estava a sua comida
e eu disse que estava na cozinha.
– Eu… – Interrompi choramingando.
– Depois de eu ter lhe dito, fui ao quarto para mudar de roupa, e
pegar algumas coisas.

18
Neologismo. Assim escrito em vez de “claro”.
63
Ngola Mufasa

Eu queria que a Prima-Fati parasse de contar, pois não suportava


ouvir a história que me deixou cego, mas eu achava também que
não podia ser injusto comigo mesmo, e tinha que saber.

– Depois de ele ter ido à cozinha, me encontrou no quarto e disse


que na cozinha não tinha comida nenhuma.
– E foi assim que ele foi a minha procura?
– Não. Eu lhe disse para ver bem, pois só estavas tu em casa. E foi
assim que…
– Chega. Pode parar Prima-Fati. – Eu disse, entrelaçando seus
dedos aos meus.
– E foi assim que aconteceu o que aconteceu. – Ela completou, com
uma face de tristeza.

***

Depois de algumas semanas terminei o tratamento, e sai da casa da


Tia-Xica. Voltei para casa mas não, obviamente, como eu estava da
última vez que lá estava.

Jurei para mim mesmo nunca mais provocar a ira do Primo-João,


mesmo que fosse para salvar uma vida. Pelo que aconteceu, não
culpo o Caneca, nem a lição que eu aprendi naquele Onjango.
Culpo, por e simplesmente, a fúria do Primo-João.

64
Os Contos dos meus Sonhos

AS DOUTRINAS DA NOSSA ALDEIA

– Coisa outra qualquer não e, Avô chamar-te que tenho é quê por,
Avô?

O Avô sorriu suavemente, devido àquela pergunta. O seu sorriso


era agradável, ao ouvir aquela pergunta. Aquele sonho que ele me
dera não era como os outros – na verdade nenhum é como um outro
– era mais real – para ser sincero cada sonho é real do seu jeito –,
mais descontraído e confortável.

Quando eu me desliguei da Realidade Real e reapareci no Além da


Inexistência, vi tudo de forma tão colorida, húmida e reluzente. O
aroma surgia da fusão entre as diferentes rosas lá existentes.

As folhas das árvores moviam-se, obedecendo à cada batida das


gotículas da chuva que vinha de céu nenhum, e no mesmo momento
o sol queimava estas gotículas.

Antes de encontrar o Avô, procurei-o entre as matas e os caminhos


abertos do Além e, finalmente, depois de percorrer longas
distâncias, encontrei-o sentado à beira-mar – aquele mar era sem
fim –, sentado num banco feito de madeira. A madeira provinha de
uma árvore que só existe na Inexistência.

Me sentei bem ao lado do Avô, em seguida encostei a minha cabeça


no seu ombro suave e transparente, e juntos contemplamos o dançar
das águas do mar. O Avô estava lá, pronto para me ensinar mais
alguma coisa sem, as vezes, ter esta intenção.

– Pergunta desta espera a estava eu que teus sonhos muitos há –


Disse o Avô, respondendo à minha pergunta inicial. Enquanto
dizia, ele sorria. Mas não era um sorriso qualquer, era um sorriso
65
Ngola Mufasa

que não se consegue ver, nem explicar. Com actos inexplicáveis,


eu acompanhava as ondas sonoras do seu sorriso que se perdiam no
ar sem ar.
– Tudo explico te eu que aqui senta. – Disse o Avô, batendo com a
palma da mão em seu colo.

Me sentei no seu colo leve e transparente, e ao som da silenciosa


natureza, começou a me ensinar sobre a questão dos nomes e as
formas de tratamento das nossas doutrinas.

– Aldeia nossa da além, bandas outras muitas existem, Greenland


em. – O Avô acariciava o meu cabelo, enquanto explicava.
– Avô, montanha uma de partir a bandas dessas uma vi eu, Tempo
muito há. – Interrompi.
– Conhecer vais provavelmente adulto fores quando. Kilaro –
Completou o Avô.
– Avô, conhecer porquê posso não agora?
– Cultura nossa a amar a aprender de precisas primeiro porque.
– Avô bem está. – Eu disse.

E a conversa fluía na maior normalidade. Uma normalidade que era


anormal ver na Realidade Real. Como nunca antes, o Avô contava-
me também sobre a sua vida enquanto vivia.

– Importantes tão assim são não nomes dos significados os, aldeia
nossa da distantes, bandas aquelas para. – Falava o Avô, ainda
sobre as outras bandas de Greenland.
– São nós para e? – Indaguei.
– Não também. – Respondeu o Avô.
– Avô porquê?
– Importantes mais o são tratamento de formas as nós para. – Disse
Avô.
– Ahn… – admirei.

66
Os Contos dos meus Sonhos

Mais tarde o Avô explicou-me que devo lhe chamar de Avô porque
ele é o pai e progenitor da minha descendência. O Filho-Tito, tem
que ser chamado de Filho porque milhões de pensamentos nascem
em sua mente cada vez que lhe fazemos uma pergunta no Onjango.

– Prima-Fati porquê e? – Questionei.


– Neto meu, isso explicar simples é. – Dizia o Avô, sempre com o
seu sorriso inesgotável, de morango. Mas não qualquer morango,
um morango que só existe na Inexistência, então é quase impossível
descrever.

Com as suas palavras a soprarem aquele vento, que estava


contaminado com a respiração do mar, o Avô disse-me que a
Prima-Fati é minha Prima e não mãe, por enquanto, porque eu não
pertenço à ela. E sim à aldeia, e ao mundo.

O Avô me disse que quando eu souber a minha idade e outros


segredos sobre mim que a Prima-Fati esconde, poderei lhe chamar
de “mãe”. É uma palavra muito pesada, que só deve usar quem for
digno.

“A dignidade surge com o cumprimento da submissão ao longo dos


Tempos”, explicou o Avô.

– Nome outro um de vez em Prima de chamar lhe devo porquê e?


– Indaguei.

Quanto à esta questão, o Avô me respondeu o seguinte: “ tu tens


que lhe chamar ‘Prima’, porque é através dela que tu existes. Ou
seja, ela é a Matéria-Prima da tua existência”.

A partir deste dia, comecei a perceber muitos aspectos culturais da


nossa aldeia que me esqueço aqui de dizer.

67
Ngola Mufasa

Quanto aos Primos, também aprendi que eu nunca poderei chamar


o Primo-João de pai: “ele é eternamente meu Primo. Ao contrário
da Prima-Fati, que pela sua grandeza e importância, seria chamada
de mãe.

Pai, dizia o Avô, devemos apenas chamar ao soba da aldeia, porque


ele é o pai, protector e cuidador de todos nós.

Mas, disse mais o Avô, quando faltava muito pouco para eu


acordar, existe uma banda em Greenland chamada Shakespeare,
que tem a seguinte doutrina: uma flor não muda de aroma, só
porque mudou de nome.

68
Os Contos dos meus Sonhos

OS JOGOS DO JOJÓ

Na beira, inteira estava a Berta com o coração aberto e o estômago


fechado. O rio era para nós um parque de diversão. O rio era o nosso
melhor amigo, melhor amigo do mundo. Foi naquele rio, onde os
ancestrais deixaram a sua marca, encontraram uma capa, e lavaram
parte das suas almas.

Eu, o Kiame e o Jojó éramos os únicos rapazes naquele meio. O


restante eram meninas: a Berta e a Nzola faziam parte delas. Elas,
as meninas, como quase sempre, não quiseram entrar na água para
banhar. Elas se limitavam em ficar na beira, molhando os braços, e
banhando as pernas.

– Meninas. Olhem… – Gritou o Kiame, antes de dar um pulo a


partir de uma superfície elevada.

Depois de ele pular, as meninas riram bastante, pela forma como o


Kiame caiu. Aquilo foi realmente engraçado, e depois de constatar
eu também ri. Se não fosse na água, o Kiame estaria bem alejado.

No momento em que o Kiame gritara para pular, eu e o Jojó


estávamos do outro lado da beira do rio. Mas interrompemos o
nosso desejo de pular, pela vontade de ver o Kiame a cair na água.

Segundos depois, ele saiu da água com os braços levantados e os


punhos apertados, como sinal de vitória. E, como sempre, ele não
deixou de lado os seus gritos atrapalhados que nos divertiam:
éramos felizes e não sabí… aliás, não sabíamos bem.

– Kiame, como você teve tanta coragem de pular de lá para o rio?


– Perguntei, oferecendo um sorriso que só as crianças sabem dar.
– É símples. Vá e pula. – Me respondeu, munido do seu sarcasmo.
69
Ngola Mufasa

Olhei para o Jojó, e lhe disse com os olhares: “ vamos?”, e fomos.

Fomos para o outro lado do rio, pisando em rochas grandes que se


estendiam contra as leves correntes, até chegarmos à zona elevada,
onde o Kiame estivera outrora para pular.

Subimos até ao pico daquela superfície elevada. O Kiame estava


com as outras menimas do outro lado do rio, batendo palmas e
dando para o Nada gritos bem altos. Não sei se as suas palmas
tinham intenções individuais, ou colectivas. Ou seja, não sei se
estavam todos a apoiar aos dois, ou uns a mim, e outros ( ou
“outras”, porque o Kiame obviamente me apoiaria) ao Jojó.

– Vamos ver quem vai ter o melhor salto, e posteriormente nadar


até ao outro lado do rio – Está bem. Como quiseres. – Respondi
com um sorriso confiante.
– Mas espera. – Me pegou no braço. – Se eu ganhar… ou melhor,
quando eu ganhar, vou comer o teu almoço. – Disse o Jojó, com o
seu sorriso malicioso.
– E se eu sei ganhar vou comer o teu. – Completei.

O Jojó era maior, e mais habilidoso que eu. Ele parecia ser mais
forte, e talvez era. Mas quando se fala de rio, eu sou um perito:
passei mais momentos naquele rio com o Kiame e o Caneca, do que
em qualquer um outro lugar: eu nadava feito peixe, porque o rio era
também a minha casa.

– Esquece essa ideia. – Disse o Jojó, irónico. – Eu sou o rei dos


jogos de competição. – Eu me ri dele. O Jojó poderia estar certo,
mas eu tinha que ter confiança, ou pelo menos fazer parecer que
tinha.

70
Os Contos dos meus Sonhos

“ Vou começar a contagem…”, gritou o Kiame do outro lado com


o seu braço direito levantado: “ um, dois e… três”, antes mesmo do
Kiame dizer “ três”, contando também com os dedos, o Jojó já havia
pulado na água. Mas eu era magro, e como pesava pouco: poderia
lhe encontrar e passar em poucos momentos.

Não perdi mais instantes, pulei no momento oportuno. Pulei,


virando o meu corpo no ar, o que me deu mais alguns pontos
(pontos imaginários), e em seguida comecei a nadar, batendo a água
com muita força.

Entrei para mais fundo da água e me encolhia, depois me esticava.


Fiz este movimento umas tantas vezes, que quando levei a minha
cabeça até a superfície, notei que eu estava na beira do rio, e o Jojó
estava muito, muito distante de mim. Ele nadava de forma tão lenta
que nos dava bastante graça

Fiquei na margem, levantado a olhar para o Jojó enquanto (ainda)


tentava vencer o jogo. Instantes depois, ele também chega até a
margem. Ele era mais forte e com a voz mais grossa que as nossas,
mas naquele momento, eu e os outros não nos importamos com a
sua fisiologia, porque só estávamos interessado em lhe abusar por
perder o seu próprio jogo. Até o Caneca lhe abusava, com o seu
ladrar.

– Vamos. Vamos já. – A Berta falou. – Está quase a chegar a hora


de almoçar. – Ela olhava para o Jojó enquanto dizia, de forma
irónica. Os olhares da Berta dirigidos ao Jojó, diziam: “ Está na
hora do nosso almoço, e não do teu.”

Nos metemos a andar no meio daquele matagal, e durante todo o


trajecto, o Jojó só pensava no facto de que não teria almoço, por se
achar superior que todos em tudo.

71
Ngola Mufasa

No Caminho, a caminho da aldeia , paramos para “ roubar” manga


verde (lá tinha muitas mangas verdes) numa árvore onde eu e o
Kiame quase sempre costumamos tirar. Não sabíamos de quem era,
mas como estava a deriva, era de todo mundo.

O Kiame, usufruindo das suas habilidades, foi o primeiro a trepar


na árvore. O Jojó foi o segundo: não por que era habilidoso ou coisa
alguma, mas porque tinha que garantir um almoço; aquele seria o
seu almoço.

Depois de observar as zonas da árvore em que tinha manga, eu


também subi, mas com bastante cautela.

Eu e o Kiame tiramos duas para cada um de nós, e mais duas


mangas para cada menina, porque elas não subiram na árvore. Já o
Jojó, tirou o máximo possível de mangas que pude, enchendo todos
os possíveis compartimentos do seu corpo. Nós assistíamos à
maneira como ele procurava por bolsos no seu corpo, o que nos fez
rir dele ainda mais.

Nós, eu o Kiame e as meninas, comemos todas as nossas mangas


durante a caminhada. O Jojó comeu algumas, mas as outras
guardou para comer mais tarde.

Chegamos à aldeia, e tudo estava calmo por lá, como sempre. Antes
mesmo de ir até a minha casa, fui até a casa do Jojó para pegar a
minha comida. Comida dele que ganhei, na verdade. O Kiame
decidiu me acompanhar.

Cheguei lá, com o Kiame, e o Jojó trouxe o prato de comida,


acompanhado pelo seu olhar fervoroso, e um semblante completo
de raiva.

72
Os Contos dos meus Sonhos

– Quando acabares de comer, mete ali o prato. – Ordenou,


indicando para a bacia laranja que estava em frente da sua casa. Os
seus olhos continuavam a brilhar de lágrimas. O Jojó gostava muito
de funge com peixe grelhado e lombi, e nos dar o seu prato de
comida, era para ele uma tortura.

Eu e o Kiame não nos importamos com mais nada, nem com facto
de ter que comer com as mãos, e começamos a devorar. Depois de
comer, o Kiame rotou e disse:

– Estou repleto. – Com um sorriso malicioso.


– Eu também. Mas ainda vou comer mais na minha casa. – Falei
mais alto que o normal, apenas para o Jojó ouvir e sentir.
– Kilaro. Eu também. – Falou o Kiame, ainda mais alto que eu.

Deixamos o prato na bacia laranja que lá estava, mas antes demos


o lixo que restou da comida ao Caneca. O cão gostava muito de
picos de peixe.

Em minha casa comi, lavei a louça e dormi: não era um sono como
o sono dos sonhos. Este é mais superficial e seco. Na verdade, nem
é dormir., é apenas descansar.

Quando me espantei do sono, já estava a escurecer, então decidi


não sair mais e fiquei a conversar com a Prima-Fati que aproveitou
aquele momento para contar-me mais, uma vez, sobre o seu período
de infância e juventude. Contou sobre factos que aconteceram
quando tinha mais ou menos os meus Tempos de vida. E ela, triste
da vida dela, como sempre fica quando conta estas histórias,
terminou com a frase: “ Se eu soubesse, mas nunca se sabe…”

Longos momentos depois, quando chegou o verdadeiro momento


de dormir, dormi: desta vez não para descansar, mas para sonhar.
Vocês não têm noção do quão bom são os sonhos bons da nossa
73
Ngola Mufasa

aldeia. Eles dizem o que nenhuma palavra sabe dizer, e as vezes


prefiro não acordar mais.

O Conto do meu sonho:

Aquele sonho era tão sonhado, quanto realizado. Ou seja, aquele


era real. Era até mais real que a Realidade Real. Me encontrei ao
lado de uma árvore colorida, mas sem cor e com dor, dor de alegria,
me sentei encostado ao tronco daquela linda árvore.

As sombras que se movimentavam no chão, levaram os meus olhos


a observar o que estava em cima. Nos ramos da árvore habitavam
flores e planta de toda espécie, e nelas pousavam toda espécie de
animal voador.

Aqueles animais viviam numa paz sem igual, pelo menos foi o que
constatei. Mas, na Inexistência, o que é, pode não ser. Mas eu tenho
quase uma plena certeza de que aquilo foi. Foi real. Eles viviam
numa paz sem igual.

Me levantei, e com os olhos fixos a tamanha beleza, contemplei.


Aquela árvore era diferente de todas. Tinha todas as cores, no
mesmo momento em que tinha nenhuma. Na medida em que eu
tocava nas folhas, elas ficavam ainda mais coloridas. Mais
coloridas que o arco-íris. Aquilo era tão… wau!

Estiquei os meus braços na horizontal, e algumas borboletas vieram


nele pousar. As borboletas moviam as suas asas sem parar. “ As
asas são o sentido da vida das borboletas”, dizia o Avô em um dos
meus sonhos, “ sem elas, elas não podem voar. E não poder voar, é
para as borboletas estar morta.” Disse mais o Avô: “Você é como
uma borboleta. Não permita que cortem as tuas asas.”

74
Os Contos dos meus Sonhos

Girei em volta da árvore, com a minha mão direita se arrastando no


tronco. O sol penetrando a árvore, contribuía para a formação
daquela combinação perfeita.

Não ouvi, nem vi o Avô a se aproximar, mas repentinamente, senti


ele a aparecer. Apareceu como tudo, no meio daquele Nada, e me
encontrou a contemplar a árvore colorida.

– Animais dos vida da árvore a é esta. – Informou o Avô, também


contemplando a árvore, sem olho nenhum. Quando fiquei a saber
do que o Avô disse, fiquei ainda mais feliz e entusiasmado.
– Algo mostrar-te vou, vamos, – Me chamou.

Deixei a árvore, e com os meus dedos entrelaçados aos dos Avô,


lhe segui para não sei aonde. Eu depositava toda a minha confiança
em si.

Andamos por momentos, até chegar a um lugar muito diferente do


lugar onde estávamos. Era estranho o lugar, mas eu não estava
amedrontado, porque aquele não era um lugar lúgubre e sangrento,
muito menos colorido e esbelto: parecia ser o meio. Era o meio dos
sonhos. O intermediário entre os dois, ou talvez mais lugares (
lúgubre e esbelto).

– Aí entra. – Ordenou o Avô.


– Bem está. – Aceitei.

O Avô queria que eu entrasse em um buraco negro que se movia no


ar todo. Antes de entrar, eu observei para ver se veria outra coisa
no buraco em forma de disco, para além do preto carregado. Mas
como foi o Avô quem ordenara, não neguei e entrei.

Quando dei por mim, eu já não estava na Inexistência, e sim na


Realidade Real. Só que aquela Realidade era um sonho também.
75
Ngola Mufasa

Não parecia ser um sonho, pois eu me encontrei na aldeia, e nunca


antes os meus sonhos aconteceram dentro da aldeia. Tudo era real,
mas não me conformei, pois aquilo ainda parecia ser um sonho.

– Zitúu, vamos ao rio. – Me convidou o Kiame, pois o sol fervia.


– Também quero ir. – Gritaram a Berta e a Nzola em simultâneo,
depois de ouvirem o Kiame a me convidar.
– Também quero ir. – Não sei se pediu ou afirmou o Jojó, mas nem
eu, nem o Kiame, podia aceitar ou negar, porque o Jojó iria mesmo
assim.

Já no rio, o Kiame correu até um pequeno monte de areia, que


estava do outro lado do rio, e a partir dele saltava para o rio. Eu e o
Jojó só estávamos mesmo a nadar. As meninas limitaram-se em
ficar na beira molhando os pés e lavando os braços. A Nzola e a
Berta não eram as únicas meninas que lá estavam, porque a Daniela
e mais outras meninas também foram.

Os pulos do Kiame pareciam divertidos. Então o Jojó convidou-me


também para pularmos a partir daquela superfície elevada. Fomos
até a margem onde as meninas estavam, e em seguida fomos a
correr para a ponte de pedras grandes que se estendiam contra as
leves correntes do rio. Com muito cuidado, passamos para o outro
lado, onde o Kiame estava.

– Vamos pular. – Eu disse entusiasmado e com o sangue a ferver,


depois de chegarmos no monte.
– Não. Espera. – Disse o Jojó, ao me travar pegando em meus
braços. – Tive uma ideia melhor.
– Qual? – Perguntei perplexo.
– Vamos competir. O que primeiro chegar lá na margem ganha.
– E qual será o prémio do vencedor? – Perguntei.
– Quem perder levará o outro nas costas até a aldeia.

76
Os Contos dos meus Sonhos

– Não. Esse não. – Neguei porque eu sabia que seria o maior dos
castigos para mim carregar o Jojó, caso eu perdesse, o que era o
mais provável: ele era do meu Tempo, mas um pouco mais forte
que eu.
– Tá bem. Tive outra ideia.
– Diz…
– Quem perder, entregará o seu almoço para o vencedor. – Essa
proposta era mais leve, pois eu teria outra alternativa caso perdesse:
comer muita manga das árvores que estão no caminho da aldeia.
– Está bem. – Concordei. Eu estava muito confiante. Mesmo que o
Jojó era mais forte que eu fisicamente, eu tinha que mostrar para
todo mundo que era capaz de vencer, então não podia ficar tímido.

“Vou começar a contagem”, gritou o Kiame, levantando o seu


braço direito, e fazendo gestos com os dedos. “Um, dois e…”, antes
mesmo que o Kiame dissesse “três”, eu já pulei na água, mas o Jojó
ainda não havia pulado.

Eu, na água, batia a água com muita força e rapidez, mas não valeu
para nada, porque o Jojó era – desde sempre, em tudo – mais rápido
do que eu. Ele me passou com uma habilidade de natação
excepcional.

Fiquei bastante cansado, e ainda só estava no meio do rio, e comecei


a naufragar. Batia os braços com muita força, para chegar à
superfície, mas eu não conseguia.

Afundava e afundava cada vez mais. O rio estava prestes a me


matar: aquele rio era meu amigo, mas os amigos também nos
decepcionam, e as vezes da pior forma que os inimigos.

Vi o meu último suspiro a ser soprado pelo vento das correntes. E


daí, eu vi o começo do meu fim. O fim dos Tempos da minha vida…

77
Ngola Mufasa

Momentos depois:

Momentos depois me espantei do… sono, ou sei lá o quê, e estava


a tossir pela água que estava dentro de mim. Olhei a volta, e todos
estavam me rodeando. Eu estava deitado na margem do rio.

– O que aconteceu? – Perguntei, com os olhos semiabertos.


– Você estava a se afogar. E o Jojó entrou na água para te salvar. –
Disse a Nzola.
– Não é porque eu gosto de ti, mas porque nós todos seríamos
sancionados se morresses aqui. – Esclareceu o Jojó. Momentos
depois me lembrei que eu e o Jojó fizemos uma competição, e fruto
disso ele comeria a minha… – O facto de estares quase a morrer,
não quer dizer que não vou comer a tua comida do almoço. –
Esclareceu novamente. Eu nem ousei em dizer alguma, pois ele
tinha toda a razão.
– Vamos. Já é quase a hora do almoço. – Disse a Berta.

Me levantei, e nos metemos a caminhar. Durante a caminhada, eu


olhava para as matas a procura de árvores de manga para garantir o
meu “almoço”.

Ainda no caminho, durante toda a caminhada, falei quase nada, pois


eu estava com vergonha, mas todos olhavam para mim, tentando
sempre disfarçar.

Avistei uma árvore de manga. O jojó, como não parava de olhar


para mim, somente para abusar, achou estranha a minha fixação
para um além não muito distante, e começou a seguir a direcção dos
meus olhos, até ver também o que eu estava a ver.

Todas as árvores que eu via no caminho, só tinham folhas e o


tronco. Ou seja, estavam totalmente vazias. Algumas ainda tinham
manga, mas verdes. Deixa-me dar-te um conselho muito simples,
78
Os Contos dos meus Sonhos

caso tu queiras viver na nossa aldeia em Greenland: nunca. Eu disse


NUNCA, coma manga verde. Para o teu próprio bem.

Mas aquela árvore que avistei tinha uma manga amarela, que
parecia estar pronta. Eu vi primeiro, então seria minha, segundo as
nossas regras de amizades escritas nas estrelas e nas nuvens. Mas o
Jojó, rebelde que era, correu para lá primeiro. Ele mandava lixar
todas as nossas regras.

Depositei em mim uma certa esperança e confiança, e tentei correr


para chegar primeiro na árvore. Mas desta vez, ela foi a primeira a
morrer. Na Inexistência não se morre, mas a minha esperança não
resistiu.

O Jojó, para me irritar ainda mais, pegou o meu “almoço”, e veio a


comer com a boca aberta na minha direcção. Para me humilhar mais
do que já estava, ratou um pedaço grande da manga bem na minha
frente, e ofereceu-me.

Com aquele acto do Jojó, algumas meninas riram-se de mim. O seu


semblante sarcástico que usara para agir, também contribuiu para
que elas achassem a cena mais engraçada ainda. Mas os meus
amigos não disseram e nem fizeram nada. Eu apenas ignorei, e me
meti a andar.

Só de pensar que comeram o meu “almoço”, e depois comeriam o


meu almoço, eu comecei a chorar de forma disfarçada e discreta.
Era muita dor para um goloso19 como eu. Sentia ainda mais dor por
quase ter me afogado, e quase morrer no rio.

19
Calão, siginificando “pessoa que come excessivamente”.
79
Ngola Mufasa

O Jojó era mesmo mais forte do que eu, em todos os sentidos e eu


tinha que aprender a admitir esta realidade, por mais dura de aceitar
que fosse.

Mas o que mais me custava admitir é o facto de que na Realidade


Inexistente eu venci e comi o almoço do Jojó com o Kiame, e na
Realidade Realidade Real o Jojó venceu e comeu os meus almoços.

Não sei, sinceramente, qual dos factos foi real. Não consigo sentir,
nem explicar qual deles foi o sonho. Mas o que mais me dói é o
facto de ter perdido, em qualquer uma das realidades, o jogo do
Jojó.

80
Os Contos dos meus Sonhos

O CANECA EM PLENA SECA

Os olhos do Caneca brilhavam e estavam acesos. Não porque era


noite… aliás, em nossa aldeia os cães não conseguem ver no
período nocturno. A noite os cães são guiados pelos seus instintos.
Durante a noite, eles fazem tudo que fazem no período diurno,
porém, não observam com os olhos do corpo, e sim com os olhos
da alma.

Naquela tarde seca de sol radiante, eu e o Kiame resolvemos ir


visitar o rio, com o objectivo de ver o nosso eterno amigo rio, que
há semanas estava incompleto e vazio. O rio estava completo de
secura e tristeza, por não ver a sua água a circular. Era tempo de
muita seca, jamais vista na nossa aldeia.

O Caneca, como sempre, nos seguia onde quer que fôssemos,


correndo hora atrás, hora em frente. Os seus olhos brilhavam
bastante. Quanto a isso, o Filho-Tito dizia: “é a sua natureza.
Sempre que estão doentes, eles ficam com os olhos a brilhar.” Eu
sentia muito pelo Caneca, inclusive mais que o próprio Kiame,
dono dele; o Caneca era mais meu do que dele.

As babas da boca do Caneca estavam a ser absorvidas pelo vento.

Chegamos ao rio, e estava como há duas semanas: seco. Os espaços


que eram completados pelas águas, estavam munidos de areia. Eu
vi o Caneca cabisbaixo, quando ele viu que o nosso amigo rio
continuava desmaiado, ou talvez morto. Para acalmar o Caneca, lhe
fiz umas festinhas na cabeça, mas não surtiu nenhum efeito
positivo.

Sendo assim, ele começou a chorar, e os olhos brilhavam ainda


mais.
81
Ngola Mufasa

– Vamos… – Disse o Kiame, com os olhos completos de lágrimas.


Eu me virei, fiz mais algumas festinhas na cabeça do Caneca, e me
pus a andar também.

Na verdade – toda a verdade – a seca era só para os animais. Ou


seja, nós, as pessoas, bebíamos águas de raízes, e nós tínhamos ela
em abundância. “Os animais não podem beber essa água das raízes,
senão terão maus sonhos. Pior que os vossos pesadelos”, diz o
Filho-Tito, sempre que nós vamos ao seu encontro para lamentar a
(quase) morte do Caneca.

Me lembro muito bem dos momentos em que nós íamos ao rio,


todas as manhãs, para nos purificar e enquanto emergíamos nas
profundas águas, o Caneca ficava perto do rio a beber a água sem
parar. E quando se cansava, ele ia até aos capins perto para mijar, e
neles se rebolar. Repetia a mesma coisa, até o momento de voltar
para casa.

Chegamos à aldeia, chorando os três, lágrimas secas. Mas, em


momentos, o Caneca gritava gritos calados. O mais curioso – que
nem é mais, na verdade, é que na aldeia tudo estava como antes.
Nada mudou, tirando a aflição que os animais passavam.

– Kiame, Kiame, – nos chamava a Nzola gritando, mesmo sem nós


termos chegado (bem) à aldeia –, vem, vem!

Eu e o Kiame ficamos espantados com aquele entusiasmo da Nzola,


porque ela sabia que nós não estávamos bem, devido o estado do
nosso… aliás, do cão do Kiame.

A Nzola chegou bem perto de nós, em seguida pegou no braço do


Kiame e lhe puxava. Eu, sem saber como reagir, fiquei apenas
parado onde estava.
82
Os Contos dos meus Sonhos

– Zitúu, tás parado porquê? Vamos. – Eu sinceramente estava a


espera que a Nzola dissesse isto.

Peguei no Caneca, e juntos começamos a andar, atrás do Kiame e


da Nzola. O Kiame que, também, nem sabia para onde iria, apenas
obedeceu.

– Vamos pessoal, andem rápido. – A Nzola falava sorrindo. E cada


vez mais nos apressava. Eu, sinceramente, comecei a achar que ela
estava louca, pelos actos dela, alguns indescritíveis.

Andamos por mais alguns momentos, até chegarmos a um lugar


onde só tinha árvores. Eram inúmeras árvores, que por serem
muitas estavam apertadas.

Tivemos que “cortar caminho”, até chegarmos ao “centro” daquele


matagal, conforme informou a Nzola.

– Nzola. – O Kiame parou repentinamente. – Estamos a fazer o quê


aqui? – Perguntou pasmado.

O Caneca, estava com os olhos a brilharem cada vez mais – isso


significava que ele estava prestes a morrer. “É hoje que ele vai
morrer”, pensei, já lacrimejando.

Como no lugar onde a Nzola nos levou é um pouco distante da


aldeia, no meio do caminho eu tomei o Caneca e os carreguei nos
meus braços.

– É aqui. – Disse a Nzola suspirando um sorriso, com as mãos na


cintura.
– É aqui o quê? – Perguntou o Kiame já irritado.

83
Ngola Mufasa

– Espera. Depois vais me agradecer. – Disse a Nzola carregada de


um dos seus melhores sorrisos: o sarcástico.

Aquele lugar não me era familiar. Eu pensava conhecer todas as


bandas da nossa aldeia e que o monte das descobertas que há muito
conheci com a Berta era o último a ser conhecido por mim. Mas
não, eu estava totalmente enganado: existiam outros milhares de
lugares por serem descobertos em Greenland. Mas aquele lugar,
obviamente, segundo pensei, não tinha nenhuma semelhança com
os outros “milhares”. Aquele era autêntico, genuíno e com uma
natureza paradoxal.

Vou aqui, da melhor maneira possível, tentar descrever o lugar:

Existiam muitas árvores próximas umas das outras, e outras


coladas. Algumas com folhas coloridas. As mesmas árvores se
moviam, com movimentos semi-coordenados. Os galhos caiam no
chão a cada instante, enquanto as folhas dançavam. O barulho
produzido pelas árvores, soavam como música:

O mais estranho, curioso e belo, é que estas árvores rodeavam uma


única árvore. Era um círculo muito bem organizado, muito melhor
do que os círculos que temos feito no Onjango. No centro do

84
Os Contos dos meus Sonhos

círculo, tinha um embondeiro de folhas e tronco seco. Ela,


infelizmente, não era colorida como as outras:

– Nzola como você descobriu este lugar? – Perguntei admirado,


depois de observar o lugar durante momentos. Por uns momentos,
me esqueci de pensar no facto de o Caneca estar a morrer.

– Faça esta pergunta à Berta. – Instantes antes da Nola terminar a


frase, a Berta apareceu, saindo de trás do embondeiro, deixando
todos espantados. “Todos”, na verdade não, pois a Nzola já devia
saber que a Berta estava lá. É Bem provável que elas foram para lá
juntas.
– Sejam bem-vindos! – Disse a Berta, acompanhada de uma ironia
visível, e uma enxada onde apoiava o braço.
– Trouxeste enxada aqui para quê? – Perguntou o Kiame com uma
face confusa.
– Para dar de beber ao Caneca, antes que a morte o mate. – Mais
uma vez a Berta vinha com a sua ironia.
– Como vamos fazer isso? – Tal como o Kiame, eu também estava
confuso sobre alguma coisa.
– Calma. Já vão perceber. Me sigam. – Ordenou a Berta.

85
Ngola Mufasa

Eu, o Caneca, a Nzola e o Kiame fomos até ao outro lado da árvore


onde a Berta estava. Do outro lado, a Berta cavou um buraco no
chão, não muito profundo. Eu já admirava a Berta pelo que ela era
e fazia, aquele acto só aumentou ainda mais a minha admiração.

– Aqui só vejo árvores, e um buraco. Como vamos dar de beber ao


Caneca? – Eu continuava sem entender alguma coisa, porém estava
cada vez mais preocupado com a sede do Caneca.
– Nzola explica para este chato. – A Berta parecia mesmo estar cada
vez mais chateada com as minhas perguntas.
– Então, eu perguntei ao Filho-Tito… – Dizia a Nzola. Eu não
duvidava, pois ela era a que mais perguntava coisas ao Filho-Tito.
– Sobre onde ficam os nossos ancestrais no período em que não
passam para distribuir sonhos, ou seja, durante o dia, – isso até eu
sei, então não era novidade para mim – e ele me disse que ficam no
embondeiro. Só que ele nunca nos disse que nós também podemos
encontra-lhes, nos momentos em que não dormimos, do mesmo
jeito que eles fazem quando dormimos. – Essa era a novidade para
mim. Mas a pergunta era: “como? Como podemos fazer isto?
– Vocês os dois devem estar a se perguntar “como?” – Esse “vocês
os dois” usado pela Nzola, me deu a entender que a Berta também
já sabia disso tudo. Parecia, também, que a Nzola estava a ler os
meus pensamentos.
– Então, há duas semanas que eu e a Berta encontramos este lugar.
– Vocês andam muito. – Disse o Kiame. Ele não me parecia estar a
brincar, mas nós não conseguimos controlar as gargalhas.
– E então… – Continuou a Nzola, depois de controlar as
gargalhadas. – Todos do Onjango achavam que eles ficam apenas
no embondeiro da aldeia.
– Eu não. Sempre fui esperto. – O Kiame parecia mesmo não estar
sério com aquela situação.
– Kiame! – Exclamou a Berta, tentando lhe ralhar, mas nem ela se
conteve com as “piadas” do Kiame, e caiu novamente nas
gargalhadas.
86
Os Contos dos meus Sonhos

– Nós descobrimos que as árvores têm vida, porém essa vida não
é delas. Lhes é emprestada pelos ancestrais. Eis a razão de, durante
a noite, as árvores respirarem com muita brutalidade: para
adqurirem o máximo possível de oxigénio, por ausência de vida. –
“ Ahn…!” Eu e o Kiame admiramos.
– Por isso dizem que não devemos dormir próximo de árvores e
plantas. – Disse a Berta, terminando o pensamento da Nzola.
– Outro facto curioso, que o Filho-Tito me ensinou, é que apenas
os que têm o nosso Tempo de vida é que têm os seus ancestrais
escondidos em embondeiros…
– Apenas os meninos com os nossos Tempos sonham. – Disse eu
completando, ou talvez discordando com a Nzola.
– Vocês não acham que estamos a falar muito, e os olhos do Caneca
estão cada vez mais brilhantes? – Disse o Kiame. Desta vez, sem
sarcasmo nem intenção humorística.
– Ele tem razão Nzola. – Concordou a Berta.
– Yah. Mas só mais uma coisa: esta árvore de embondeiro está no
centro destas árvores, porque é o centro dos nossos ancestrais.
Aquela lá da aldeia é uma espécie de… sei lá, talvez um quarto. –
A Nzola só podia estar mesmo maluca. Mas não duvidei, pois ela
pode ter aprendido isto em um dos seus sonhos, tal como eu já
aprendi muita coisa nos sonhos, que não têm sentido na Realidade
Real.
– E o que temos que fazer? – Questionei, pois ainda estávamos no
meio daquele Nada.
– Não estamos no meio do Nada. – Disse a Nzola, se movendo de
um lado para outro. Ela parecia estar mesmo a ler os meus
pensamentos. Como é que ela sabia que eu achava aquilo um Nada?
– Temos que entrar na árvore.
– O quê? Nzola você está mesmo louca. – Afirmou o Kiame, algo
que eu já queria fazer há muitos momentos.
– Temos que fazer isso para salvar o Caneca.

87
Ngola Mufasa

– E como tens certeza de que… seja lá onde tu queres ir tem água?


– Perguntou o Kiame. A Berta continuava sem dizer nada, apoiada
ao cabo da enxada.
– Porque no Além da Inexistência tudo tem. – Afirmou a Nzola.
– Como, também, nada tem. – Afirmou também o Kiame, um pouco
pessimista.
– Kiame deixa de ser pessimista. Nós só queremos ajudar. –
Finalmente a Berta disse alguma coisa, depois de só estar a observar
a discussão.
– Está bem, como quiserem. Mas como podemos ter a certeza de
que iremos todos para o mesmo sonho?
– E o pior, como podemos ter a certeza de que o Caneca vai também
para os nossos sonhos, de nós humanos? – Completei.
– Tentando… – Respondeu a Nzola.
– Está bem. E como vamos tentar? – Perguntou o Kiame.
– Entrando… – A Nzola já estava a ficar irritada.
– E como vamos en…?
– Kiame cala ainda a tua boca, por favor. – Ordenou a Berta. Só
faltava o Kiame perguntar: “como vou calar?”. Mas foi a Nzola a
dizer alguma coisa:
– Então, continuando… – Também já estávamos a ficar cansados
com as explicações da Nzola. – Eu e a Berta tentamos muitas
maneiras de entrar, e não deram certo. – Isso explica o facto de eu
ver alguns buracos, uns mais grandes que os outros, no embondeiro.
– Até nós encontrarmos esta última alternativa.
– E qual é a alternativa? – Kiame novamente.
– Já vou explicar. Mas primeiro tens que calar a boca.

Houve um silêncio por momentos, que foi completado com a troca


de olhares.

– Berta é a tua vez de explicar, por favor. – A Nzola cansou de vez.


– Na verdade, “eu” achei esta alternativa. E o que temos que fazer
é entrar neste buraco.
88
Os Contos dos meus Sonhos

– Berta, isso não é muito fundo? – Perguntei. Mas não pensando


muito em mim, pois eu era um pouco alto. Estava a pensar no
Kiame e na Nzola.
– Por isso mesmo é que temos que entrar. – O lado irónico da Berta
voltou a acordar. – Zitúu, tu serás o primeiro a entrar. – Eu não
fiquei conformado com esta ideia, então olhei para a Berta com uma
face meio trancada, e as sobrancelhas levantadas. Ela me ofereceu
a mesma face. Então vi que não tinha outra escolha, se não ser o
primeiro a entrar.

Saltei para dentro do buraco.

– Como te sentes? – Perguntou a Berta, olhando para mim de cima.


– Não me sinto. Nada sinto, simplesmente. – Respondi sorrindo.
– Wau… – Admirou a Berta, sorrindo também.

Em seguida pulou também a Berta no buraco. Depois a Nzola, e em


seguida o Kiame. Peguei no Caneca e pus-lhe dentro do buraco
também.

Não sentir nada, era a melhor sensação para se sentir. Dentro


daquele buraco, era como se estivéssemos imortalizados, e
vivificados com a vida que só nos sonhos encontramos.

– Wau… – Admirou também a Nzola, já estando dentro do buraco.


– E agora? O que temos que fazer? – Perguntou o Kiame, já
confiante do que estávamos a fazer.
– Precisamos cavar na direcção da árvore um outro buraco, e
encontrar uma porta qualquer, que nos possiblite a entrada na
árvore. – Falou a Berta. Estiquei os meus braços para pegar a
enxada, que ainda estava fora do buraco.
– Afastem. – Ordenei. E, sem mais perder instantes, comecei a
cavar.

89
Ngola Mufasa

Cavei por muitos momentos, até chegar a uma zona em que parei,
porque achei melhor cavar com as mãos. Convidei os outros a me
ajudarem a cavar com as mãos e, escavando mais cavando, sempre
na direcção do embondeiro, chegamos até uma tampa de metal
muito pesada e condensada.

– Temos que remover esta tampa. – Eu disse, depois de ter dado um


suspiro, e limpar o calor em minha testa com o dedo indicador. –
Vou mesmo precisar de beber água. – Brinquei.
– Vamos. – Disse o Kiame todo ofegante.

Pegamos os quatro na ponta da tampa, e sem medo nenhum


começamos a remover. “ Um, dois e…”, contava a Berta, “três”,
terminamos todos.

Depois de puxarmos a tampa, não vimos nada excepcional. Só tinha


uma entrada, e uma segunda porta de madeira com a maçaneta
enferrujada, que estava dentro do segundo buraco.

– Eu pensava que as árvores tinham raízes. – Espantou a Nzola ao


ver aquilo.
– Elas têm raízes, é a vida. – Disse eu.
– E os nossos ancestrais são as vidas das árvores. – Completou o
Kiame, como se tivesse descoberto algo muito importante.
– Eu vou entrar. – Falei, já entrando. Meti primeiro os pés dentro
do buraco.

Quando pisei aquele chão, ouvi um barulho estranho, causado pelos


meus pés. Era como se eu tivesse a pisar em águas profundas. Mas
aquela era água seca.

A água, que eu não via mas sentia, subiu lentamente até tapar a
minha cabeça, e comecei a me afogar por completo. A Berta e a

90
Os Contos dos meus Sonhos

Nzola também entraram no buraco do buraco. O Kiame meteu o


Caneca dentro, e depois entrou também.

Cada um, entre nós, ficava afogado no seu momento, até estarmos
completamente possuídos pela água que lá estava. Água que nem
víamos, só sentíamos. E, com muito prazer, ela nos afogava.

Desde aquele momento deixamos de respirar com o corpo, e


começamos a respirar com a alma. Nossos corpos morreram
afogados, mas as almas estavam mais vivificadas ainda: é
necessário que morramos, para podermos ter realmente a vida.

Aquela água (eu não sei se devo continuar a chamar de água, ou


uma outra coisa. Mas enfim…) nos punha a flutuar naquele lugar.
E quando demos conta, estávamos no ar a flutuar, mas os nossos
corpos afundavam cada vez mais.

Aquela sala (sala, ou sei lá o quê…), tinha dois corredores. Um para


a direita, e outro para a esquerda. Tivemos, os quatro, uma luta de
gestos, bolhas e movimentos, para se escolher o caminho a seguir.
Até, finalmente, decidirmos ir pela direita: era esta a sugestão da
Berta.

Era incrível, não podíamos falar, para não engolir água, mas
conseguíamos respirar.

Meti o Caneca em minhas costas, e começamos a nadar. Tudo


porque decidimos não abrir a porta que nós vimos primeiro, aquela
que estava logo na direcção do buraco, e optamos por escolher um
dos corredores.

No final do corredor, tinha uma porta de madeira, como a primeira


que vimos; aquela porta estava também com a maçaneta
enferrujada.
91
Ngola Mufasa

Estando naquele lugar, nós sentíamos uma sensação jamais sentida


nem na Realidade Real, nem na Inexistência: sendo assim, não
queríamos estragar o momento abrindo portas erradas. Mas para
nada vale a vida, se não tentarmos viver. E viver é estar disposto a
arriscar.

Me revesti de coragem, peguei na maçaneta e abri. E… wau…


estávamos no Além da Inexistência, sem nem sequuer ter deitado e
dormido para sonhar. Aquilo foi totalmente fora do comum.

Respiramos profundamente, e já não estávamos a flutuar, nem a


sufocar. Já nos encontrávamos no Além da Inexistência. Aquela
porta nos levou até este lugar. Ou talvez todas fariam a mesma
coisa, mas não importava mais isso naqueles instantes.

– Rio um por procurar vamos. – Disse a Berta, atenta à alma do


Caneca.
– Vamos. – Concordou o Kiame.

A sensação que o Além transmitia, era a melhor que qualquer


humano poderia sentir. Foi um erro ter comparado a sensação do
lugar em que estávamos antes com a do Além, do Além era bem
melhor. É que as vezes, eu me esqueço dos feelings produzidos pelo
meu sonho, e por isso comparo com outras coisas.

– Mostramos vos nós, precisam não. – Para a nossa surpresa, o Avô


do Kiame apareceu do Nada. Ficamos espantados, nos mesmos
momentos assustados.
– Vamos nós. – Disse o meu Avô, depois de aparecer também.

Os Avôs da Berta e da Nzola apareceram poucos momentos depois


também. Ficamos felizes por não estarmos só no Além: aquele
lugar era um eterno mistério.
92
Os Contos dos meus Sonhos

Segundinhos depois o Avô do Caneca apareceu também. Eles


abraçaram-se logo a se ver; nunca vi o Caneca tão feliz daquele
jeito. Beijaram-se, e rebolaram também naquela relva mansa do
Além. Afinal, eles estavam a matar as saudades de duas semanas.
“Nestes dias de tristeza profunda, os animais não conseguem
dormir direito para sonhar. E, para além disso, os Avôs dos animais
ficam escondidos no rio, e o rio desapareceu”, disse o Filho-Tito
num desses dias de seca.

Enquanto conversávamos com os nossos Avôs, o Caneca e o seu


ladravam: “ aquela era a conversa deles”, disse certo dia o Filho-
Tido.

Quando chegamos ao rio, o Avô do Caneca lhe disse para beber até
se fartar, porque o rio lhes pertencia. E o Caneca, com o seu antigo
hábito, enchia-se da água do rio até não poder mais beber.

Infelizmente, não podíamos ficar por mais instantes, porque cada


um voltaria para o seu Avô a noite.

– Voltar podemos não e, morremos nós mas! – O Kiame não estava


mesmo disposto a voltar à Realidade Real.
– Adormeceram só, morreram não vocês. – Explicou o meu Avô.

Por mais que não quiséssemos, nós tínhamos que voltar. Ainda nos
faltavam muitos Tempos de vida para habitar naquele lugar.

Feliz, e estranhamente, a porta que usamos para entrar no Além, lá


já não mais estava: desapareceu. Wau… eu adoro a forma como as
coisas são no Além, na mesma medida em que NUNCA são.

Os nossos Avôs não pareciam espantados com tal situação. Pelo


contrário, trocavam olhares, como uma forma de linguagem que
93
Ngola Mufasa

apenas eles entendiam e, ao mesmo momento, puseram as suas


mãos em nossa cabeças.

Daí, não consigo narrar o que aconteceu, apenas me lembro de ter


pego o meu corpo e voltar à Realidade Real. Lá, naquele ambiente
de muitas árvores em volta de uma, estávamos nós novamente.

– Wau… como é bom estar aqui novamente! – Exclamei, com um


tom muito baixo, mas o Kiame me ouviu e começou a sorrir.

Sinceramente, eu não consigo dizer qual dos lugares era melhor. Na


verdade, todos eram melhores do seu jeito, desde que tu saibas te
envolver na realidade de cada um, na mesma medida de todos.

Tivemos que tapar o buraco para que ninguém mais conhecesse a


nossa porta secreta para entrar no Além.

– Vou contar ao Filho-Tito o que aconteceu aqui. – Disse a Nzola


batendo palmas sem, na minha opinião, ter motivos.
– Não. Isso vai ficar entre nós. – Repreendeu a Berta à Nzola.

E lá andávamos nós, de volta à aldeia, felizes pela aventura que


tivemos; e mais feliz ainda, por ter feito algo para encher o Caneca
de água em plena seca.

94
Os Contos dos meus Sonhos

O KIAME ENTRE AS TREVAS

Estávamos nós, eu e o Kiame, no período nocturno, ao relento, a


observar as estrelas, e os outros astros do céu. Jogamos muita
conversa fora, até chegarmos ao assunto da nossa conduta durante
o dia – como fazemos quase sempre.

– Eu tive um dia fixe. Mas tive muita preguiça. – Confessei.


– Eu, infelizmente – dizia o Kiame, com lágrimas assente nos olhos
–, fui desobediente aos meus Primos, e terei maus sonhos.

Não pude fazer nada, se não desejar-lhe uma má sorte: devemos


desejar má sorte às pessoas quando temos a certeza de que eles terão
maus sonhos.

Me levantei do chão onde estávamos sentados, sacudi a parte


traseira do meu calção, e quando eu dei o segundo passo em
direcção à minha casa, o Kiame me pediu para ficar, dizendo:

– Fica só mais alguns instantes, por favor. Não quero ir em casa e


dormir. – Me pediu o Kiame, soluçando com as lágrimas
escorrendo.

Naquela dia, nós não estaríamos no Onjango com o Filho-Tito,


então resolvi ficar com o Kiame por mais alguns instantes. Eu
também, sinceramente, não queria ir para casa naquele momento.
Fiquei conversando com ele, para lhe acalmar, até a Prima-Fati me
chamar para ir à casa.

Cheguei em casa, e fiz tudo pensando no Kiame – inclusive comer.


Então, eu tive que me deitar e dormir, para sonhar, e no Kiame
deixar de pensar.

95
Ngola Mufasa

No dia seguinte, acordei com um bom ânimo, devido o sonho que


tive na noite anterior, que foi dos melhores. Logo depois de acordar,
reflecti por alguns momentos sobre a lição do sonho que tive até a
Prima-Fati me chamar para ir à lavra.

Me levantei bem rápido, escovei os dentes e nos metemos os três –


com o Primo- João – a caminho da lavra. Lá, na lavra, eu tive uma
boa prestação, pela boa disposição que o sonho anterior me
proporcionara.

Passamos lá todo o dia. E quando estávamos já pestes a voltar em


casa, escolhemos tomates para ofertar aos vizinhos e ao Pai-Mingo.

Posto lá, fizemos as distribuições dos tomates, e depois fomos para


a nossa casa. Como ainda não era tarde, eu poderia sair para me
encontrar com o Kiame.

– Zitúu… – Falando em Kiame, era ele a me chamar.


– Já vou. Calma. – Gritei de dentro de casa. Sorte minha é que o
Primo-João não estava em casa porque foi ao rio banhar, e a Prima-
Fati era um pouco tolerante algumas vezes.

Me aprontei e sai. O Kiame não estava com aquele humor de


sempre, então precisava mesmo de mim para conversar. Mas a boa
notícia, é que ele também foi à lavra com os seus Primos, e trouxe
muita cana. Ah, como eu gosto de cana.

– Vamos naquela árvore, preciso te contar alguma coisa. – Disse


ele, segurando a cana a partir da mbolua20. O Kiame não indicou
nenhuma árvore quando disse “naquela”, mas eu já sabia qual era a
árvore a que ele se referia.

20
Palavra usada para descrever a parte superior e menos pronta da cana, isto na lingua
Umbundu.
96
Os Contos dos meus Sonhos

Para tentar lhe animar segurei-lhe no seu ombro, sorri para ele, e
tomei de si o pau de cana. Nos metemos a andar. O estranho – muito
estranho – é que o Caneca não estava a nos seguir. Demos mais
alguns passos, e vi o Caneca a brincar no capim com a cadela dos
Primos da Daniela: ele estava nem um pouco interessado em nós
naquele momento.

Andamos por não longos instantes, até chegarmos à árvore onde


costumamos subir para conversar quando não nos encontramos em
baixo do embondeiro.

O Kiame subiu primeiro na árvore. Depois de ele se posicionar bem


na árvore, dei-lhe a cana. Depois subi também. Procurei por troncos
fixos, para me sentar também, e o único confiável era onde o Kiame
já estava sentado, então me sentei ao seu lado. Aquele tronco era o
mais resistente da árvore, só que estava muito distante do chão, e
uma queda a partir de lá poderia ser fatal.

Parti a cana ao meio com o joelho, e começamos a conversar,


enquanto mastigávamos a saborosa e doce cana.

– Eu estive entre as trevas. – Falou o Kiame, mudando de assunto


e semblante.
– Como foi? – Indaguei, comovido com a dor que ele transmitia em
suas palavras.
– Espera, já te vou dizer…

O Kiame entre as trevas:

Nós havíamos nos separado ontem a noite, quando a tua Prima veio
te chamar. Quando foste, eu fiquei em baixo do embondeiro por
mais alguns instantes.

97
Ngola Mufasa

Quando eu já estava a ficar cansado de ficar fora, e estava a ficar


cada vez mais tarde, eu fui para a minha casa dormir. Eu não queria
dormir, mas isso era impossível e inevitável.

Sendo assim, não tendo uma outra escolha, fechei os olhos para a
Realidade Real, e abri os olhos para a Realidade Inexistente. Foi
horrível o que vi logo de primeira, muito horrível.

O meu Avô lá estava também, mas ele não podia fazer nada para
me livrar – aliás foi ele quem me deu este sonho – porque eu tinha
que pagar pela minha desobediência.

Eu não estava a acreditar no que estava a ver, e sentir. Mas aquilo


era real. Por causa da minha descrença, eu esfregava sempre os
olhos para ter uma visão mais lúcida. Só que, cada vez que eu
esfregava, eu via uma realidade diferente da anterior. Porém mais
lúgubre e fedorenta.

De tanto esfregar os olhos, cheguei à uma realidade onde tinha


homens e mulheres sem roupa, mas com os corpos banhados de
sangue. De tanto corpo que lá tinha – uns mortos, e outros na
fronteira –, uns estavam em cima de outros. E todos, absolutamente
todos Zitúu, estavam com uma deficiência. Uns lhes faltava cabeça,
outros braços e outros estavam com as barrigas vazias – parecia que
todos os órgãos foram comidos.

O meu Avô lá estava, apenas a observar a minha angústia. O seu


rosto era de tristeza, mas no âmago transbordava de alegria.

Eu estava lá, observando os corpos a serem jogados uns em cima


dos outros. Ouvia também gritos de pessoas que pareciam estar a
ser torturadas.

98
Os Contos dos meus Sonhos

Eu via também sombras de pessoas que estavam acorrentadas, mas


se moviam sem dizer nada. Todo animal perigoso lá também
habitava.

Fui observando, até que dois homens muito grandes, um com duas
cabeças, e outro com dois narizes gigantes e cortados ao meio,
vinham na minha direcção. Me encolhi, com medo de que eles
estivessem a vir (propriamente) na minha direcção e, para o
verdadeiro início do meu sofrimento, eles estavam mesmo a vir na
minha direcção.

Eles ficaram parados a me observar até que o homem com duas


cabeças pegou-me nos braços, e o homem com dois narizes
levantou as minhas pernas, e cortou todos os dedos do meu pé
direito.

O homem de dois narizes, parecia ter visto nos meus dedos a melhor
comida de sempre, pela maneira como ele olhava nos meus pés em
suas mãos, e pelo sorriso ruidoso que apresentava. Ele cheirou os
dedos de uma forma muito profunda, e em seguida comeu-os.

Não bastava o homem de dois narizes comer os meus dedos. Ele


tirou numa faca, ainda mais afiada que a que usou para cortar os
meus dedos, da sua cintura e com ela cortou o meu nariz. Depois
de cheirar o nariz, comeu-o.

Eu queria poder gritar e chorar, mas não conseguia. Apenas


conseguia sentir prazer: prazer em sentir aquela dor, na medida em
que ela me consumia. Para eles Zitúu, eu era mesmo uma comida.

O homem de duas cabeças, sem querer perder a oportunidade,


soltou os meus braços, e pôs-me no chão junto à uma parede de
enxofre. Pegou, também, uma faca da sua cintura e começou a
cortar a minha cabeça, a partir do centro.
99
Ngola Mufasa

Depois de ele abrir um buraco grande, meteu a sua mão dentro da


minha cabeça, e comia o meu cérebro como se fosse uma carne
qualquer.
***

O Kiame não parava de chorar enquanto contava o conto do seu


sonho. Então eu lhe disse:

– Podes parar, se não quiseres mais dizer.


– Não, vou continuar. – Disse ele, limpando as lágrimas.
– Está bem. – Disse eu, fazendo que sim com a cabeça.
– Deixa-me continuar:

Depois o homem de duas cabeças pôs-me nos seus ombros, e


levaram-me para uma sala cheia de ratos vivos e mortos, e baratas
sem cabeça.

No centro daquela sala tinha um barril com brasas de fogo. E no


teto, na direcção do barril, tinha correntes de ferro.

O homem de duas cabeças meteu-me de cabeça para baixo,


prendendo-me na corrente. A mesma corrente era controlada com
uma manivela pequena que estava fixada na parede.

A minha cabeça estava muito próxima do carvão, por isso estava a


carbonizar.

O homem de dois narizes, chegou bem perto de mim, me


concentrou, e em seguida meteu a sua mão dentro do barril cheio
de brasas ardentes. Tirou de lá uma boa porção de brasas, e com o
dedo indicador metia as brasas de fogo na minha cabeça que já
estava vazia porque o meu cérebro foi comido.

100
Os Contos dos meus Sonhos

Era muita dor, que eu não conseguia suportar, nem morrer. E o pior,
é que aquilo era real. Eu não estava a sonhar, estava viver.
Depois, os dois, começaram a tirar brasas de fogo do barril de
metal, e esfregavam no meu corpo. Esfregavam fogo no meu corpo
todo.

Após terminarem de esfregar fogo no meu corpo, o homem de dois


narizes pegou em uma das suas facas de metal, e meteu no fogo
para aquecer. Com ela, raspava a minha pata, e depois cortava os
meus dedos do pé, e das mãos.

Eles, cada um com a sua faca, abriram a minha barriga, e tiraram


todos os órgãos para comer. Depois de terminarem de comer parte
do meu corpo, os dois homens olhavam um para o outro com
sorrisos melancólicos.

Neste momento, comecei a perceber o porquê daqueles corpos


estarem danificados: também foram torturados. Só que alguns já
estavam mortos. Ou talvez não estavam, porque na Inexistência, o
que é pode não ser.

O homem de duas cabeças, tirou um ferro que estava no canto da


parede e, com ele me batia com muita força. Enquanto eu apanhava,
de não sei quem, o homem de dois narizes girava a manivela que
controlava a corrente na qual eu estava preso.

Eu sentia a dor do ferro que vinha contra mim em toda parte do


corpo e a dor do fogo a me possuir em simultâneo. Era muita, muita
dor. Mas como é que humanos conseguem ser tão malvados assim?
Se é que eles eram humanos.

Em poucos momentos, eu tive o corpo todo carbonizado. Eu


pensava que eles estavam a me queimar, mas não. Estavam, na
verdade, a me grelhar.
101
Ngola Mufasa

Zitúu não ri, isso é muito sério.

Tiraram-me do fogo, e puseram-me sobre uma mesa de metal, que


estava também muito quente.

O homem de dois narizes passeou por todo o meu corpo com o seu
nariz, como se aquele cheiro – de corpo grelhado – fosse agradável
demais.

Logo que terminaram de cheirar e contemplar a sua comida


grelhada – que era eu – cortaram o meu corpo em pedaços
pequenos, e comiam estes pedaços. Foi horrível para mim.

Não desmaiei, nem morri, mas quando dei por mim eu estava entre
aqueles corpos cortados, danificados e ensanguentados.

Abri os olhos que eu já não os possuía, e a alma do meu Avô estava


bem ao meu lado.

O Avô pegou-me pelos braços que eu não tinha também, e levou-


me para fora daquele lugar. Não fazia nenhuma diferença, porque
fora daquele lugar era mesmo lá.

“Já se passaram aqui trinta dias, e na Realidade uma noite. Podes


voltar”, disse o Avô, se dirigindo a mim.

Eu não sei mais como aconteceu, mas voltei para a Realidade Real.
Aquela me parecia ser a verdadeira Realidade Real.

***

– E como te sentes agora? – Perguntei ao Kiame, logo depois de ele


terminar de contar o conto do seu sonho.
102
Os Contos dos meus Sonhos

Ele olhou-me bem profundamente nos olhos, deu uma pausa para
mastigar um pouco da pouca metade de cana que lhe restava, e
disse:

– Sinto-me bem, por um lado. Mas, por outro, estou com uma
sensação estranha.
– Estranha? – Perguntei, um pouco confuso.
– Sim. É inexplicável. Mas esqueça.
– Kilaro. – Calei, para não lhe fazer lembrar mais no seu sonho
horrível.
– Prometi para mim mesmo nunca mais desobedecer os meus
Primos, pois lhes devo submissão, e não quero mais pisar naquele
lugar Zitúu. Eu estive entre as trevas.

103
Ngola Mufasa

“SE EU SOUBESSE…”, MAS NUNCA SE SABE

– Zitúu, vem ainda aqui. – Era a minha Prima me acordando de um


belo sono. Me levantei da cama, meti um calção e uma camisa, e
fui ao seu encontro.

A Prima-Fati estava na sala sentada num kachalo, e tinha outro


kachalo na sua frente. Eu pensei que era para me mandar alguma
coisa (buscar água era o mais provável), mas não. Me mandou
sentar no kachalo.

Me sentei. Quando terminei de me posicionar bem, a Prima-Fati


olhou bem no fundo dos meus olhos e agarrou as minhas duas mãos,
com as suas.

Como já era de se esperar – mas mesmo assim eu não esperava –, a


Prima-Fati começou a contar. Contar uma história que ela já me
contara inúmeras vezes, e que acabava com: “e se eu soubesse…”,
mas nunca se sabe.

O estranho disso tudo, é que eu nunca me cansava de ouvir essa


mesma história, pois cada vez que eu ouvia aprendia uma lição
diferente da anterior.

– Sei que já ouviste inúmeras vezes essa história. Mas preciso


repetir até se tornar uma música para ti.

Eu não podia negar, mas não queria aceitar estar lá: algumas vezes
o que não podemos é muito mais forte do que o que queremos.

– Quando eu tinha mais ou menos os teus Tempos de vida… – A


Prima-Fati começava sempre assim. E quando começava assim, eu
tinha plena certeza do que ia dizer a seguir. – Eu tinha muitas
104
Os Contos dos meus Sonhos

amigas. – Até aí não houve para mim nenhuma novidade. – Eu era


muito feliz com a amizade delas. – Acho que não preciso repetir
que isso também não era novidade.

– A mesma história de sempre? – Perguntei com uma coragem que


nem sei de onde vinha: na nossa aldeia nunca se questiona os actos
dos seus Primos.
– É. A história pode ser a mesma, mas o sentido nunca é. Os
motivos nunca são. – Admirei o gesto e as palavras da Prima-Fati.
Não é muito normal ela assim se proceder.
– Está bem. – Consenti.
– Eu era muito feliz com as minhas amigas. Nós íamos sempre ao
rio de manhã para banhar, com mais outros meninos. Do mesmo
jeito que tu vais ao rio com o Kiame, a Berta, a Nzola e mais outros
meninos. – A introdução da sua história era sempre a mesma, mas
eu tinha que ficar calado, em silêncio, para ouvir.
– Mas eu cometi um erro… – Disse a Prima-Fati.
– Não. – Interrompi.
– Não quê? – Retrucou a Prima-Fati.
– Falta a parte do sonho.
– Ahn… é verdade. – Reconheceu.

Aquela história toda parecia ser mais minha do que dela. Eu


conhecia cada detalhe, de tanto ouvir.

– Até o dia em que eu tive o meu último sonho. Eu não sabia que
aquele seria o último.
– Prima-Fati faltou contar sobre o dia…
– Sim. Essa história agora parece ser mais tua do que minha. – Ela
sorria enquanto dizia.
– Parece… – Sorri também.
– Eu tive um dia perfeito antes daquele sonho. Me comportei da
melhor forma que pude, para ter bons sonhos. Eu gostava bastante
dos bons sonhos que o meu Avô me dava. – Acho que a Prima-Fati
105
Ngola Mufasa

não era a única. – Eu queria estar sempre com ele, pois amava
aquela realidade inexistente.
– Eu também gosto muito. As vezes nem quero mais voltar. –
Sorrimos os dois em simultâneo.
– Eu me lembro de, naquele dia, ter ido ao rio com as minhas
amigas. Nos divertimos bastante. Depois voltamos para a aldeia, e
cada uma foi fazer o almoço da sua casa. E na hora de comer,
batemos cuta21. – Ela disse isso rindo. Eu também ri, pois achava
que apenas eu e o Kiame batíamos cuta.
– A tarde – Continuou –, ficamos ao relento a brincar…
– Não era literalmente a brincar… – Interrompi.
– Como sabes que eu ia dizer isso? – Disse a Prima-Fati com um
sorriso aberto.
– Porque sempre dizes isso. – Tentei ser irónico.
– Pois é, não era literalmente brincar como vocês brincaram, porque
nós já estávamos a entrar na fase adulta. – Eu não sei o porquê que
devo insistir em dizer que tudo que ela estava a dizer eu já sabia.
Custa perceber isso caro leitor?
– Kilaro. – Concordei.
– Mas quando estava a entardecer, eu tive que me recolher, porque
tinha que fazer o funge do jantar.
– Sim, kilaro. – Concordei novamente, fazendo que sim com a
cabeça.
– Quando cheguei em casa, tudo estava como sempre – eu não sei
por que na nossa aldeia as coisas têm a mania de estar como sempre
–, e fiz o jantar, como sempre.
– Tudo como sempre. – Disse eu.
– Depois de jantarmos, eu fui para o meu quarto com uma vela
acesa, para organizar algumas coisas e depois dormir.
– Antes de dormir te deitaste na cama. – Brinquei.

21
Termo usado para descrever a acção de comer na casa de um, e em seguida na casa de
outro (entre amigos).
106
Os Contos dos meus Sonhos

– Me deitei. E tive o melhor sonho de sempre. Só não sabia que


seria o meu último.
– Ainda não eras adulta? – Indaguei.
– Não. As pessoas aqui são consideradas adultas a partir do
momento em que deixam de sonhar.
– Sim. O Filho-Tito nos disse.
– Aquele sonho era tão perfeito, que eu não queria seriamente voltar
à Realidade Real. Não consigo descrever o sonho, pois as vezes o
perfeito é indescritível.
– No dia seguinte, a noite, fiquei a espera de ter um sonho melhor
que o da noite anterior. Mas, infelizmente, não só não tive um sonho
melhor que aquele, como não tive sonho nenhum. Fiquei
preocupada com aquilo, mas decidi esperar. Aguardei durante uma
semana, mas não tive sonho nenhum.
– Nunca mais tiveste. – Completei, completo de agonia.
– Nunca! – Disse ela. – Desde aquele dia, só tive mais o sonho que
se tem quando a pessoa é adulta e casada.
– Podes me contar como é este sonho? – Perguntei, inseguro.
Sempre pergunto isto à Prima-Fati.
– Kilaro que não. Este é pessoal, nem mesmo o Primo-João sabe o
meu.
– Está bem.
– Daí, eu fiquei obcecada com as lembranças do meu último sonho,
e comecei a me corromper por uma grande onda de tristeza. Por
isso, comecei a ficar muito solitária.
– Que triste. – Eu já sabia disso há Tempos, mas não deixava de ser
triste.
– Comecei até a responder e tratar mal as minhas amigas, e por isso
perdi elas todas. Por não saber lidar com a situação, e por não
valorizar mais as minhas companheiras.
– Ahn… – Admirei, por algo que não era novidade.
– A Tina, mãe do Jojó, é uma das minhas amigas que perdi nestas
brincadeiras. – Essa sim, era a novidade.

107
Ngola Mufasa

A Prima-Fati deu uma pausa breve para derramar, e limpar as


lágrimas.

– Por isso, com os teus Tempos de vida, aproveita bem as amizades,


desfrute delas. Porque, se eu soubesse… mas nunca se sabe.
– Nunca se sabe, mas agora eu sei. – Completei.
– Agora tu sabes. Por isso faço questão de te contar este conto
sempre que posso. – Disse ela, limpando ainda as lágrimas que
restavam.

O Primo-João entrou na sala, e por isso demos uma pausa breve na


conversa. Depois de o Primo-João sair, eu disse:

– Prima, falando em Tempos, qual é mesmo a minha idade?


– Você tem… – Quando ela estava mesmo prestes a dizer, acordei.

108
Os Contos dos meus Sonhos

O SEGREDO DOS EMBONDEIROS

– Eu estava num sonho. – Disse o Filho-Tito. – Eu tinha mais ou


menos a vossa… aliás, o vosso Tempo de vida. Naqueles
momentos, eu ainda não sabia distinguir a fronteira entre a
Realidade Real e Realidade Inexistente.

O Filho-Tito parou um pouco, porque a Nzola estava a tossir.


Quando a Nzola recuperou, o Filho-Tito continuou:

– Eu vivia cada uma das Realidades consoante o feeling que cada


uma me transmitia.

Naquele Onjango, nós fizemos muitas perguntas sobre várias


árvores ao Filho-Tito. Até que a Nzola – kilaro, era quase sempre a
Nzola –, perguntou ao Filho-Tito sobre os embondeiros. O Filho-
Tito, com aquela alegria e prazer que tinha sempre ao nos ensinar
alguma coisa, nos ensinou, não só sobre o segredo dos
embondeiros, mas de todas as outras árvores, e da sua experiência
com elas nos seus sonhos, e na Realidade Real.

– Eu não vi o meu Avô naquele sonho. Me encontrei no Além


apenas com as árvores e os animais. Porém o sonho não deixou de
ser fantástico.
– E o teu Avô estava a fazer o quê Filho-Tito? – Perguntou a Nzola,
mansa.
– Deu o sonho e bazou22. – Brincou o Jojó, e nós rimos bastante.
– Talvez foi isso. – Disse o Filho-Tito, com o seu sorriso calmo. –
Mas isso não importa. E aliás, acho que vocês já tiveram muitos
sonhos sem os vossos Avôs.

22
Termo usado para referir-se à ida de alguém (calão).
109
Ngola Mufasa

“Aconteceu comigo várias vezes”, disseram algumas meninas, num


uníssono atrapalhado com as mãos levantadas ao ar.

– Sim. – Continuou –, naquele sonho eu me diverti com os animais.


Mas, de tantos instantes sem ver o meu Avô, comecei a ficar
aborrecido. Era o meu primeiro sonho sem ele.
– Primeiro de primeiro? – Perguntou a Nzola, surpresa.
– Sim. Foi o primeiro. Com a ausência do meu Avô, comecei a
procurar por Realidades escondidas em cada coisa que lá se
encontrava.
– Filho-Tito, qual foi a sensação do seu primeiro sonho? – Assim
eu tenho que dizer mais que foi a Nzola a perguntar? Não nê23?
Obrigado!
– Nzola não estamos a falar sobre isso agora. Aliás, foste tu que
fizeste a pergunta que o Filho-Tito está a tentar responder. – Disse
o Kiame.
– Mas podem perguntar sobre qualquer coisa, não tem problema. –
Disse o Filho-Tito, para a alegria, murmuro e risos da Nzola.
– Bem, Nzola, eu não me lembro do meu primeiro sonho, porque
era recém-nascido.
– O quê? – O Kiame deu um grito de susto. – Começa-se a sonhar
quando recém-nascido?
– Kiame, não estamos a falar disso. – Disse a Nzola, fazendo uma
careta e tentando imitar a voz e sotaque do Kiame. O Kiame ficou
sem saber o que dizer, apenas trocou olhares com a Nzola, e depois
virou-se para mim.
– Sim Kiame. Se eu não sonhasse quando recém-nascido, eu teria
graves danos mentais. Os sonhos são fundamentais para a
manutenção dos nossos pensamentos.
– Voltando naquele assunto… – Eu disse, na vez do Filho-Tito.
– Voltando àquele assunto, naquele sonho eu me dediquei em
descobrir. Descobrir cada vez mais coisas, e as coisas das coisas.

23
Forma curta de dizer: “não é?”
110
Os Contos dos meus Sonhos

Porque, há coisas que se sabem e aprendem-se melhor quando


estamos inconscientes.
– Descobriste alguma coisa nova sobre os sonhos, Filho-Tito? –
Não, desta vez não foi a Nzola perguntar, fui eu.
– Não Zitúu. – Disse ele sorrindo, enquanto apoiava as suas mãos
na sua barriga grande. – Coisas sobre os sonhos e os contos dos
sonhos, eu aprendi em outros sonhos com o Avô.
– E quais são estas coisas que aprendeste no sonho sem o teu Avô
Filho-Tito? – Agora sim, foi ela a perguntar.
– Por exemplo, descobri que os pássaros gostam do ar porque a terra
é muito quente para os seus pés.

“Wau…” Admiramos todos aquela informação.

– Descobri também que os ratos, há muitos, muitos Tempos, eram


gigantes como o elefante.
– E o que aconteceu depois? Para eles tomarem a forma que têm
agora? – Até eu, estava a ficar irritado com as interrupções da Nzola
mas, fazer o quê? É por isso mesmo que o Filho-Tito é nosso filho.
– Na selva, o leão deu a ordem para nenhum animal comer a comida
de um outro animal. Nem mesmo ter um outro animal como
comida. Todos os animais eram protegidos e tinham direitos.
– O que aconteceu depois Filho-Tito?
– Nzola te custa mesmo esperar de ouvidos abertos quando o Filho-
Tito está a dizer, e perguntar no final? – A Berta também já estava
a ficar irritada.
– Mas o rato, com a sua astúcia, decidiu não mais trabalhar para
comer, e comer toda a comida que era ajuntada pelas formigas.
– Coitadas das formigas. – Comentou a Daniela.
– Então elas decidiram marcar uma reunião com o leão, o rei. Nesta
reunião, o leão, com o seu poder decidiu punir os ratos por tais
actos.
– Punir com poder? – Indagou a Daniela surpresa.

111
Ngola Mufasa

– Sim menina Daniela. Antigamente, bem antes dos nossos


ancestrais, cada animal tinha um poder mágico. O poder do leão era
de fazer qualquer coisa que quisesse, mas só podia usar este poder
uma vez em toda a sua vida. O leão, arriscando tudo, usou o poder
para transformar os ratos em criaturas muito pequenas e depois
expulsou-os da selva.
– E assim, os ratos foram para bem longe? – Perguntei.
– Kilaro. Por isso eles estão entre nós humanos. – Respondeu o
Kiame, sem ter esta intenção.
– Eles foram. Por isso passam a vida a fugir. – Disse o Filho-Tito –
Mas antes de irem decidiram usar também os seus poderes para
lançar uma praga aos leões. E esta mesma praga acabou por destruir
a selva para sempre.
– E qual foi esta praga? – Perguntei curioso.
– A praga foi directamente lançada aos leões, mas acabou por
afectar todos os outros animais. A praga era para que todos os
animais vivessem para sempre em conflitos, e que os mais fortes
comecem os mais fracos.
– É por isso que os leões comem os outros animais?! – Perguntou
afirmando a Berta.
– Isso mesmo. Pela praga que lhes foi lançada, os animais estão uns
contra os outros, e o seu reino se destruiu.

Demos uma pausa rápida em homenagem ao reino destruído, e eu


perguntei depois:

– E sobre os embondeiros? –
– O quê? – Contrastou o Jojó.
– Eu perguntei ao Filho-Tito sobre os segredos dos embondeiros. –
Tentei ser arrogante, mas não conseguia ser melhor que ele. Não
deu certo.
– Bem, sobre os embondeiros eu descobri que eles não têm
segredos. Eles são o segredo. – Todos nos espantamos com esta
dica, e uns até murmuraram com outros. – Sim meninos. Não
112
Os Contos dos meus Sonhos

precisamos descobrir os segredos dele, antes, precisamos conhecer


o que ele é, porque ele é o segredo.
– E sobre a solidão deles? – Inquiriu a Nzola, ao Filho-Tito.
– Eles, os embondeiros, também viviam num espaço com todas as
outras plantas.
– E foram expulsos por desobediência também? – Questionou a
Daniela.
– Não. – Respondeu o Filho-Tito, sempre apoiando a sua mão na
barriga. – Eles decidiram se afastar e viver sozinhos porque foram
muito injustiçados, enquanto viviam na comunidade.

Era estranho. Muito estranho, o facto de a Nzola – dona das


perguntas – estar esse tempo todo calada, sem perguntar alguma
pergunta. Talvez é porque foi a Berta, sua melhor amiga, a lhe dizer
para ficar calada.

– O que aconteceu propriamente? – Perguntei. Acho que eu estava


a começar a perguntar mais que a Nzola.

O Filho-Tito esfregou a sua barba por alguns instantes, e depois


disse:

– Havia uma má distribuição e injustiça por parte da planta que era


responsável pelo controle das águas das plantas na sua comunidade.
– E qual era esta planta? – Perguntei.
– A mangueira. Ela era a administradora. – Respondeu o Filho-Tito.
– Mas o que aconteceu propriamente para que a mangueira deixasse
de dar água ao embondeiro? – Finalmente o Jojó disse/perguntou
alguma coisa séria e de juízo.
– Ciúmes. Chegou uma altura em que o embondeiro dava mais
frutos que a mangueira, e sua árvore em si tinha mais vida.

A Nzola interrompeu a conversa, bocejando. Ela devia estar muito


cansada. Aliás, era noite.
113
Ngola Mufasa

– E a mangueira não gostava disso? – Perguntou a Daniela.


– Não. A mangueira queria ser apenas ela a dar frutos. E foi aí que
o embondeiro começou a se sentir injustiçado e decidiu ir para bem
longe.
– É por isso que as árvores em si são secas? – Questionou
finalmente a Nzola.
– Sim. Mas os ancestrais, como nela habitam, a alimentam com
muita água seca.

“Então são estes os segredos do embondeiro…” pensei.

– Muitos outros segredos é esta árvore. – Disse o Filho-Tito,


indicando para o embondeiro ao lado do lugar onde estávamos
reunidos. – Que vocês próprios podem descobrir em vossos
sonhos…

Naquela noite, depois do Onjango, tentei também sonhar com os


segredos dos embondeiros, mas infelizmente nós nunca escolhemos
os nossos sonhos. Comecei até a achar que aqueles (segredos dos
embondeiros) que o Filho-Tito nos ensinou eram os únicos que
existiam, por desespero.

114
Os Contos dos meus Sonhos

COMO AS CORES FORAM COLORIDAS

Às vezes, o meu Avô costuma me ensinar sobre as mesmas coisas,


mas de formas muito diferentes. Foi o que aconteceu nas últimas
duas noites.

Perguntei à Prima-Fati as razões e motivos dessa repetição diferente


de sonhos, e ela me disse que é muito normal que isso aconteça.
Mas é anormal que aconteça.

– Como assim? – Perguntei de cabeça para baixo.


– Zitúu, isso pode significar duas coisas.
– Quais são essas coisas? – Levantei a cabeça, e direcionei o meu
olhar à Prima-Fati.
– Pode significar que o teu Avô acha que não aprendeste bem
aquelas lições e é essencial que aprendas, ou ainda… –
Repentinamente a Prima-Fati mudou de semblante, de mal para
pior –, Pode significar que os teus dias de sonho estão contados.

Era só isso que me faltava ouvir, naquela manhã que começou com
uma chuva intensa. Mas agora estava serena.

– Mas não fica assim. Conversa com o Filho-Tito. – Disse a Prima-


Fati, tentando me acalmar.
– Está bem. Amanhã quando estivermos no Onjango conversarei
com ele.
– Não. Pode ser agora.
– Está bem. – A Prima-Fati deu-me um beijo na testa, e depois foi
para a cozinha.

Eu fui na porta, espreitei de dentro e a chuva já estava mesmo a


bazar. O sol, com vergonha de aparecer, escondia-se entre as
nuvens, e o chão húmido produzia um aroma sem igual.
115
Ngola Mufasa

As nuvens ainda estavam pretas, e provavelmente choveria mais.


Então entrei para vestir o meu casaco laranja volumoso.

Depois de sair, a caminho da casa do Filho-Tito, encontrei a


Daniela a chorar em frente da sua casa. Me aproximei dela, a peguei
no ombro, e depois perguntei-lhe:

– O que se passa?

A Daniela estava com a cabeça para baixo, mas quando sentiu a


minha mão repleta de gotas de água no seu ombro, ela levantou a
cabeça e me concentrou:

– O que foi? – Perguntei novamente, com um tom mais suave.

Ela continuava sem me responder, apenas chorava. Olhava sem


mensagem nenhuma, mas os seus olhos diziam muita coisa, que eu
não conseguia compreender.

– Tive o mesmo sonho, mas de forma diferente, nas três últimas


noites. – Finalmente ela disse alguma coisa.

Eu achava que era o único a passar por isso, mas não. E o pior, é
que com a Daniela aconteceu três vezes, e comigo apenas duas.

– Vamos ao Filho-Tito contar-lhe. Talvez ele tenha alguma coisa


para nos dizer sobre isso.
– Está bem. – Consentiu ela.

A Daniela era de poucas palavras, mas de muito silêncio e muitas


acções. Ajudei-lhe a levantar do chão, e juntos fomos à casa do
Filho-Tito.

116
Os Contos dos meus Sonhos

Assim que levantei a minha mão para bater a porta do Filho-Tito,


quando lá chegamos, ele abriu a porta.

– Bom dia meus amigos. – Nos atendeu o Filho-Tito com uma


alegria contagiante. Eu, pelo menos, me contagiei, mas a Daniela
não sei.
– Bom dia Filho-Tito. – Ofereci um outro sorriso, fruto do seu
contágio.

O Filho-Tito estava com uma enxada. Me parecia que ele iria à


lavra, então achei melhor voltar em sua casa numa outra altura:

– Filho-Tito nós vamos voltar mais tarde.


– Não. Podem ficar. – O Filho-Tito encostou a sua enxada na parede
ao lado da porta. – Então, têm algo para me dizer? – Eu
sinceramente não sei onde é que o Filho-Tito tirava tanta alegria
para lidar com crianças como nós.
– Filho-Tito…
– Espere. Antes de começarmos a conversar, vocês devem entrar.
Porque devem estar a molhar. – Me interrompeu.

Olhei para a Daniela, como se tivesse a lhe perguntar se ela


concordaria em entrar, e ela concordou.

Depois de estarmos dentro, nos sentamos na pequena sala do Filho-


Tito, em alguns kachalos que foram feitos por ele. Ele sentou-se
também.

– Filho-Tito… – Comecei –, nós viemos aqui…


– Já imagino.
– O quê? – Perguntou a Daniela.
– Vocês gostam um do outro. – Obviamente ele estava a brincar.
Até a Daniela, que estava muito séria, começou a rir. Rimos todos
até não poder mais.
117
Ngola Mufasa

– Brincadeira meus amigos. O que foi? – Disse ele, depois de se


acalmar.
– Na verdade, nós viemos aqui por causa dos nossos sonhos. Temos
tido sonhos repetidos, mas de formas diferentes. – Explicou a
Daniela.
– Sim. É isso mesmo. – Concordei.
– Ahn… meus amigos acreditam que vocês não são os primeiros a
virem conversar comigo sobre isso.
– Não somos? – Espantei.
– Não. Vocês não são. Já recebi também alguns meninos com os
vossos Tempos, que vieram me dizer isso.
– É isso que está a acontecer Filho-Tito.

Houve um silêncio repentino na sala. O Filho-Tito rompeu o


silêncio dizendo:

– Meus amigos, está a acontecer aqui na aldeia algo que só acontece


de quinze em quinze longos Tempos.
– Como assim Filho-Tito?
– Como vocês têm visto, aqui tem chovido muito nas… – O Filho-
Tito parou de falar de repente, porque alguém estava a bater a porta
da sua casa.

Ele levantou para abrir a porta, mas eu fui mais rápido: por uma
questão de educação. Abri a porta, e lá fora estava o Kiame, que
veio acompanhando do mesmo semblante que a Daniela. Parecia
que vinha pelo mesmo motivo que eu e a Daniela.

– Pode entrar Kiame. – Gritou o Filho-Tito, com grande esforço, a


partir de dentro.

Entrou na casa também o Kiame, e sentou-se em um dos kachalos


– em casa do Filho-Tito tinha muitos, pois ele fabricava kachalos
para quase toda aldeia.
118
Os Contos dos meus Sonhos

– Então, tudo bem meu amigo? – Cumprimentou o Filho-Tito ao


Kiame.
– Sim. Mas vim falar sobre os meus sonhos. – Respondeu o Kiame,
derramando lágrimas meio secas.
– Sim, podes dizer.
– É que nos últimos dias eu tenho tido o mesmo sonho, mas de
forma diferente. A minha Prima me disse que provavelmente os
meus dias… aliás, as minhas noites com o Avô estão contadas.

Não sei porquê, mas o Filho-Tito achava a última coisa dita pelo
Kiame engraçada. Eu, o Kiame a Daniela trocamos olhares, sem
entender os motivos dos risos do Filho-Tito.

– Meus. Amigos. Vocês. Têm. Muitos. Sonhos. Pela. Frente. – Ele


falava assim, porque não parava de rir.
– Ainda vos falta muitos Tempos de vida para pararem de sonhar.
– O Filho-Tito já estava mais calmo.
– Curioso, porque a Prima-Fati me disse exatamente a mesma coisa
que foi dita ao Kiame.
– Fiquem calmos meninos. Isso não vai acontecer agora.
– Então? – Questionou a Daniela.
– Como eu ia dizendo, estamos a viver uma situação que apenas
acontece de quinze em quinze longos Tempos.
– E por quê que esta situação afecta os nossos sonhos Filho-Tito? –
Questionou a Daniela.
– Calma. Vou explicar.
– Sim. Está bem.
– Como vocês devem saber, os vossos ancestrais ficam na árvore
de embondeiro.
– Sim, sabemos. – Concordou o Kiame.

Não demorou muitos momentos, e o Jojó também chegou. Parecia


que vinha contar a mesma história. E o Filho-Tito, com muita
119
Ngola Mufasa

paciência, repetiu a explicação do começo, e depois retomou onde


já estava:

– Então, nestes momentos, os ancestrais saem dos embondeiros.


– Porquê? – Perguntei.
– Porque os embondeiros já ficam completos de água.
– Não estamos a entender. – Disse a Daniela. Eu acho que quando
ela estava a dizer “nós”, queria dizer “eu”, porque eu tenho a plena
certeza que eu e o Kiame sabíamos muito bem do que o Filho-Tito
estava a dizer.
– Menina Daniela é o seguinte, os ancestrais é que alimentam de
água os embondeiros. Mas nestes Tempos, os embondeiros já se
enchem de muita água da chuva, e os ancestrais ficam sem espaço
para lá estar.
– Ahn… agora estou a entender.
– É isso mesmo Daniela. Eles vão para não sei aonde, por isso os
sonhos ficam escassos.
– Mas voltam? – Perguntou a Daniela preocupada.
– Sim, eles voltam.
– Ainda bem… – Ela deu um suspiro. Eu e o Kiame também demos
outros.
– Mas eu tenho uma receita para vocês voltarem a ter os sonhos
normais. Isso pode, ou não funcionar. E se funcionar, pode
funcionar a qualquer momento.
– Sim. Nós queremos. – Eu disse por todos.
– Está bem. Me esperem aqui.

O Filho-Tito saiu por alguns instantes, e nós ficamos dentro da casa


a olhar um para o outro.

Já não estávamos tristes, mas estávamos apreensivos. Então,


esperamos o Filho-Tito voltar, para nos dar o que ele tinha para nos
dar como receita para curar os nossos sonhos.

120
Os Contos dos meus Sonhos

Até o Filho-Tito voltar, trocamos entre nós os quatro mais olhares


do que palavras.

O Filho-Tito voltou, e ficamos ainda mais comedidos. Ele tinha


consigo alguns paus que aparentemente foram partidos do
embondeiro.

– Eu parti isto do embondeiro. – Dizia o Filho-Tito, enquanto


distribuía para cada um de nós um ramo.
– O que vamos fazer como isso? – Perguntou a Daniela.
– Vocês têm que mastigar, ou mesmo usar para fazer chá. –
Explicou o Filho-Tito.
– Antes de dormir? – Indagou o Jojó.
– Antes de dormir, e quando quiserem dormir. Isto vos dá sono e
sonho.

“Muito obrigado Filho-Tito”, agradecemos, felizes.

Saímos da casa do Filho-Tito, os quatro, e cada um com o seu ramo


em mão.

– Zitúu, vamos ao rio. – Me convidou o Kiame, exitando entrar em


sua casa.
– Está a chuviscar, e não é o melhor momento para nadar.
– Não vamos ao rio para nadar. Vamos apenas para observar.
– Está bem.
– Também quero ir. – Pediu a Daniela.
– Vamos…

Fomos ao rio os três, e juntos observávamos o correr das águas.

Nos sentamos no capim que cresceu ao lado do rio, e lá trocávamos


as mais variadas conversas.

121
Ngola Mufasa

– Vou ainda experimentar, para ver se isso funciona. – Falou para


nós o Kiame, observando profundamente o ramo que estava entre
o seu dedo polegar e o indicador.
– Também vou mesmo me certificar se funciona. – Disse eu, com
um tom sarcástico.
– Otah24… não façam isso. – Dizia a Daniela.

Não esperamos mais ela terminar de falar, e mastigamos. Uma


coisa que o Filho-Tito não nos disse é que o embondeiro estava tão
vivificado, que o seu efeito seria imediato. E foi.

O conto do meu sonho:

Neste sonho o meu Avô vestia todas as cores, mas não se


identificava com nenhuma. As árvores, as plantas e o ambiente todo
em si, ganharam todos uma identificação. Uma cor.

– Assim está aqui tudo que quê por Avô? – Questionei, ao me


contemplar com aquela toda colorização.
– Assim é aqui nada porque. – Respondeu o Avô, sem ser irónico.
Pelo contrário, me ofereceu o seu melhor sorriso.

Naquele instante, estávamos naquele jardim de cores acesas e


coloridas. Num outro instante estávamos na beira do rio das cores.

– Cores das rio chama-se este. – Me explicou o Avô antes.


– Cores das rio? – Questionei quase assustado.
– Mesmo isso. – Me disse o Avô.

A naturalidade do rio já explica o seu nome. Mas mesmo assim eu


achava um pouco estranho.

24
Palavra usa no sentido de “aviso ou medo”, fruto da interferência do Umbundu no
Português.
122
Os Contos dos meus Sonhos

Naquele rio, não corriam águas normais e incolores. Corriam nele


águas com todas as cores. Não sei como explicar da melhor forma,
mas lá havia uma espécie de misturas separadas de águas. Era como
se cada cor ocupava o seu lugar na corrente, mas todas elas
ocupavam os seus lugares dentro de uma outra.

É de lá onde nascem os arco-íris, segundo o que me ensinou o Avô.

– Assim chamado é rio este que é quê por? – Perguntei ao Avô,


enquanto seus olhos transparentes também se deliciavam com
tamanha beleza.

O meu Avô contou-me que, aquele rio não era um simples rio. Era
a junção dos rios e dos mares.

Me explicou ainda mais o Avô, que antes que tudo existisse, esse
rio-mar já existia. Mas era incolor, e nele habitavam as Sereias.

Mas chegou um dia, me explicou o Avô, que a Sereia-Mãe decidiu


ver e conhecer como eram as outras realidades; como era o mundo
para além dos rios e mares.

Quando esta mesma Sereia deixou o rio-mar, houve grande pranto


entre as Sereias que restaram na água. Pois amavam aquela
realidade, e dela não queriam se desfazer. Mas sentiam muita falta
da Sereia-Mãe.

Estes choros, começaram a colorir todo rio. Porque os choros das


Sereias são coloridos. E isso acontece até nos dias de hoje. Foi a
partir daí que houve uma separação entre o mar e o rio. As Sereias
que choravam lágrimas azuis decidiram também fugir daquela
realidade. Mas como não foi possível, como castigo, elas ficaram
com o mar que é salgado.
123
Ngola Mufasa

“E a Sereia que saiu da água o que fez?”, foi isso que perguntei ao
Avô em seguida. O Avô me ensinou que esta Sereia encontrou no
mundo um grande Nada. Por isso, chorou com agonia. E, mesmo
sem esta intenção, o seu choro começou a colorir as coisas e a
diminuir cada vez mais o Nada. Foi assim que as cores, e as coisas
foram coloridas.

124
Os Contos dos meus Sonhos

SEJAMOS TODOS FORMIGA

– Filho-Tito, por quê é que tudo na natureza existe? – Perguntou a


Nzola.

Nós não estávamos no Onjango. O Filho-Tito resolveu ir ao rio


conosco naquela manhã de céu excitado.

– Olhe a volta de tudo, e verás que tudo completa tudo. O Nada


também completa o tudo. – Respondeu o Filho-Tito.
– Tudo completa tudo? – Questionou a Berta confusa.
– Sim, kilaro. Uns morrem para dar vida aos outros e outros vivem
porque outros morreram. Todas as plantas servem para dar cor e
brilho ao planeta, e as águas servem para alimentar e vivificar essa
cor. Os solos dão mais águas às águas, e nas nuvens elas se
guardam.
– Wauu… – Admiramos todos em simultâneo.
– E sobre os animais? – Questionou a Nzola.
– Sobre os animais, eles também servem para completar. Todos têm
um papel a cumprir.

As meninas ficaram na beira do rio com o Filho-Tito, e nós os


rapazes ficamos a nadar, e algumas vezes ir também para ouvir o
que o Filho-Tito tinha para dizer.
– Filho-Tito desculpa perguntar isso, mas até as formigas têm um
papel a cumprir na natureza? – Perguntou o Jojó, e todos rimos.
Não pela pergunta, mas pela forma como ele perguntou. O Filho-
Tito deu uma pausa, olhou a volta e depois disse:
– Elas…
***
– Zitúu, acorda para ir buscar água. – Me chamou a Prima-Fati.

125
Ngola Mufasa

Hoko25, aquilo só podia mesmo ser um sonho, porque o Filho-Tito


nunca vai conosco ao rio: NUNCA. Mas mesmo assim, o sonho era
muito real. Foi tão real, que tem uma pergunta do Jojó no sonho
que me deixou muito curioso: qual é o papel das formigas para as
nossas vidas?
Resolvi esperar pela reunião (Onjango) à noite para fazer esta
pergunta ao Filho-Tito. Enquanto isso, me levantei e lavei a boca e,
com a água que restou no copo lavei o rosto.
A Prima-Fati já não estava em casa, notei isso pelo barulho
produzido pela porta. Fui até a cozinha, e constatei que ela já levou
todos os recipientes que usamos normalmente para acarretar água.
Sendo assim, eu só tinha que ir ao rio para lhe ajudar a carregar para
casa os recipientes.
Abri a porta de casa, cumprimentei o Kiame e mais outros meninos
que estavam fora, a brincar, e depois corri feito louco para alcançar
a Prima-Fati, pois ela não gostava de atrasos.
Felizmente, quando lhe alcancei, ela ainda estava a caminhar com
um balde que tem mais ou menos a metade da minha altura, e mais
dois bidons26 pequenos que tinham a metade da altura do balde.
Chegamos ao rio (que não era bem um rio, mas uma espécie de foz,
que tinha um tubo em que saia água como espécie de torneira. Esta
água é que vinha do rio) e estava cheio de pessoas, por isso tivemos
que esperar por muitos momentos.

25
Palavra usada de forma exclamativa, fruto da interferência da língua Umbundu no
Português.
26
Recipiente de plástico, usado para a conservação de líquidos (água, mel, kissangua,
etc.).
126
Os Contos dos meus Sonhos

Enquanto esperávamos pela nossa vez de tirar água, eu fiquei numa


zona com terra preta e húmida e fiz o exercício de observar os
animais que lá passavam.
Fazendo um esforço muito grande com os meus olhos, eu comecei
a observar as formigas e as suas acções. Eu estava pasmado com o
que via, então me aproximei ainda mais do chão, que quase beijei-
o.
Os movimentos, gestos e falas das formigas me encantavam de tal
forma que nem vi os momentos a passarem.
Quando finalmente me levantei, notei que apenas eu estava no rio
e, obviamente, os bidons que a Prima-Fati deixou lá para eu levar.
Eu não queria sair daquele lugar, mas tinha mesmo que bazar.
Me levantei, para levantar os bidons, e pelo peso notei que ainda
estavam vazios, então tive que encher antes.
Enchi os bidons de água, e comecei a andar a caminho de casa. No
caminho para casa, sempre que encontrava um conjunto de
formigas eu parava por instantes para lhes assistir. Se eu pudesse,
seria elas; mas como não posso ser elas, serei apenas como elas:
desde as suas qualidades, até os defeitos.
Cheguei na aldeia, mas a Prima-Fati já havia chegado há muitos
momentos. Ela me ralhou porque, segundo ela, eu atrasei por Nada.
Mas ela não compreendia que observar as coisas pequenas é como
fazer tudo.
Despejei a água num balde vazio, que estava na cozinha. E a mando
da Prima-Fati, eu fui novamente ao rio buscar água. Mas desta vez
fui com o Kiame.

127
Ngola Mufasa

– Como foi o teu sonho? – Perguntou-me o Kiame, enquanto ele


batia os seus bidons contra os joelhos.
– Foi fixe. – Sorri. – Parecia ser real, como muitos sonhos que tenho
tido ultimamente.
– Como todos os sonhos que já tiveste. – Disse o Kiame, me
interrompendo.
– Kilaro. Todos os sonhos são tão reais, que me esqueço da
Realidade. – Rimos.

Brincando, batemos com os bidons um no outro, e até tivemos uma


corrida. E como sempre, o Kiame venceu.
– Sonhei com formigas. – Eu disse, enquanto enchia os bidons de
água. O Kiame riu, pois achava engraçado sonhar com formigas.
Podia até ser engraçado, mas eu acho que tem algo mais do que isso
neste sonho. Acredito que foi uma mensagem que o meu Avô me
proporcionara.
– Sonhaste com quê!? – Disse o Kiame, Ainda gargalhando.
– Pois é. – Tentei ficar sério.
– E o que aconteceu no “sonho com as formigas” – Disse o Kiame,
com as devidas aspas no ar.
– Bem – Disse eu, levantando os bidons – não foi bem sonhar com
as formigas. Eu é que não paro de pensar nelas.
– Ahn… houve uma época em que eu só sonhava com as aves.
Fiquei tão obcecado, que eu queria ser elas.
– Por isso é que tentaste pular daquela árvore e partiste o pé. –
Brinquei, mas era mesmo verdade. O Kiame tentou pular de uma
árvore. Eu só não sabia os motivos que o levaram a fazer isso.

O Kiame parou por uns instantes, riu comigo e depois disse:

128
Os Contos dos meus Sonhos

– Ei, é segredo o motivo de eu ter pulado. – Ele sorrira. – Daqui a


mais alguns dias vais querer te cortar para ser como as formigas.
– Isso nunca. – Retruquei.
– Se continuares a pensar nelas, é isso que vai mesmo acontecer.
– Naaaaaa…
– Vamos esperar para ver. – Disse ele, batendo nas minhas costas.
– Vamos…

Terminamos de encher, e começamos a caminhar. Sem volta, em


volta dos matos, de volta nós estávamos.
Quando cheguei em casa, despejei a água no mesmo balde de antes,
e encheu.
Tive o meu almoço, descansei, e depois sai para brincar. Em meio
as brincadeiras, a Berta me puxou para um canto, tirou batata-doce
da sua bolsa de renda, e me deu para comer.
Achei estranho o facto de ela ter me dado batata-doce do Nada. Mas
Nada melhor do que agradecer, mesmo quando não se entende
Nada.
Meti a batata na boca para dar a primeira rata27. Depois da primeira
rata, tive uma ideia genial: usar a batata como uma isca para atrair
as formigas.
Fui atrás da minha casa, cortei a batata com os dentes em pedaços
pequenos e deixei no chão. Aos poucos, as formigas começaram a
aparecer.
Eu me aproximei mais do chão para poder enxergar melhor. E, mais
uma vez, contemplei sem ver os momentos a passarem. Quando dei

27
Referindo-se à uma “mordidela”.
129
Ngola Mufasa

por mim, já estava a escurecer, mas os meus amigos continuavam


fora de suas casas a brincar.
Fui até a minha casa, vesti um casaco, e sai para brincar também
com os meus amigos. Já estava meio escuro, mas mesmo assim
brincamos bica-bidon28.
Brincamos durante muitos instantes, até chegar a hora de ir para o
Onjango. Corremos para tomar os nossos lugares antes do Filho-
Tito, mas ele já estava lá bem sentadinho.
– Como foi o vosso dia? – É sempre essa a primeira pergunta, que
ele faz. E todo mundo tem que explicar detalhadamente, os detalhes
do seu dia. Mas eu decidi por começar por contar sobre os contos
dos meus sonhos. Contei-lhe também sobre a minha inquietação
sobre as formigas; inquietação que começou no sonho.
Enquanto contava ao Filho-Tito sobre o conto do meu sonho, só
não contei-lhe que foi o Jojó a fazer a pergunta sobre as formigas.
– Já vamos falar sobre o teu sonho Zitúu. Vamos ainda procurar
saber sobre o dia do Kiame. – O Kiame era o último, que tinha algo
por contar.
O Kiame falou também sobre o seu dia, mas saltou a parte em que
fomos ao rio buscar água. Na verdade, ele nem gostava que as
meninas o vissem a fazer isso. Também nunca entendi claramente
os motivos.
– Bem Zitúu, agora podemos falar sobre o teu sonho. – Disse o
Filho-Tito, voltando para mim.
– Filho-Tito qual é a importância da existência das formigas na
natureza? – Questionei.

28
Brincadeira infatil, que tem como principal objecto de uso o bidon
130
Os Contos dos meus Sonhos

– Meu amigo, tudo na natureza tem um papel. Tudo. Tudo existe


por um motivo, uma razão…
– E qual é o motivo da existência das formigas. – Perguntei, pois
eu tinha muita pressa de aprender sobre aquilo.
– Calma meu amigo, vou chegar aí. Algumas coisas existem para
morrerem, e assim darem lugar a existência das outras. Outras são
as vítimas da existência, causada pela morte das outras.
– E qual é o papel da formiga? – A Nzola começou a parecer mais
curiosa que eu.

O Filho-Tito sorriu, pois estava feliz com as nossas perguntas, e a


nossa curiosidade. Mas depois continuou:
– Há ainda outras que só existem para observar e aprender, e outras
existem para ensinar.
– E qual é papel das formigas? – Perguntou novamente a Nzola.
– As formigas existem para ensinar?! – Perguntei. Mas acho que eu
estava a afirmar mais do que perguntar.
– Kilaro. Isso mesmo. O meu Avô, na época em que eu ainda podia
sonhar, ensinou-me três virtudes que nós podemos encontrar e
aprendemos na natureza com as formigas.
– E quais são estas coisas? – Perguntou a tímida da Daniela.

Alguns murmuraram, outros riram em silêncio, e outros silenciaram


porque não era muito comum a Daniela fazer perguntas, ou mesmo
dizer alguma coisa. Mas quando dizia algo, falava ou perguntava
coisas de juízo. Acho que o Filho-Tito fica ainda mais feliz com
isso.
– A primeira coisa – todos ficaram silenciosos e atentos, alguns
com as mãos no queixo para ouvir – é: nós somos pequenos, muito

131
Ngola Mufasa

pequenos. Mas quando nos juntamos e trabalhamos em união,


podemos fazer coisas muito grandes.
– É isso que eu tenho visto muitas formigas a transportarem uma
barata muito grande! – Exclamou o Kiame.
– Outra vez eu vi elas a levarem um osso grande de peixe. – Disse
o Jojó.
– Isso mesmo Kiame e Jojó. Uma só não consegue, mas elas unidas
conseguem. – Completou o Filho-Tito.
– Por isso devemos ser muito unidos para conseguir fazer coisas
grandes, que possam servir para todos. – Disse a Berta, depois de
alguns instantes calada.
– Sim Berta. Devemos…
– E qual é a segunda virtude? – Perguntou o Jojó, deixando mais
uma vez todo mundo admirado porque ele não é de muitas
perguntas com sentido.
– A segunda é: respeitar a todos, sem se importar com a raça, etnia
ou crenças.
– E as formigas respeitam Filho-Tito? – Perguntei.
– Sim, elas respeitam. E este respeito começa por saudar a todos
que encontramos. Vocês nunca verão uma formiga que se encontra
com uma outra no caminho, e não lhe cumprimenta. Por mais que
esta formiga seja uma desconhecida.

“Wau…!” Exclamei, “as formigas têm mesmo muito que nos


ensinar”.
Nós estávamos totalmente encantados com as virtudes das
formigas, que só queríamos naquele momento saber qual é a
terceira.
– E qual é a terceira virtude? – O Jojó estava mesmo a surpreender
todo mundo.

132
Os Contos dos meus Sonhos

– A terceira é: trabalhar, pois o trabalho dignifica. Não existe um


outro animal que tenha em sua natureza o espírito de trabalho como
as formigas. Elas simplesmente não dormem.
– Agora está tudo explicado. – Disse eu.
– Também não devemos dormir Filho-Tito? – O Jojó voltou às suas
brincadeiras. Talvez não estava a brincar, mas nós achamos
engraçado e começamos a rir.
– Existe uma quarta virtude das formigas, que eu não aprendi em
um sonho, mas mesmo assim eu vou dizer…
– Diga, diga, diga… – Dissemos todos, entusiasmados.
– A quarta virtude é: humildade. – Disse o Filho-Tito.
– No reino animal, não existe um professor de humildade melhor
que a própria formiga. Ela é pequena, reconhece isso e vive assim.
– Mas não deixa de fazer coisas grandes. – Completei.
– Kilaro, Zitúu. Isso mesmo. Ela reconhece ser pequena, e por isso
faz coisas grandes.

“Já podes te cortar para ser uma formiga”, o Kiame sussurrou no


meu ouvido. O Filho-Tito deu conta, e por isso perguntou:
– Estão a falar sobre quê Kiame e Zitúu?
– Para ser como as formigas. – Mentiu o Kiame. Mas talvez, não
totalmente.
– Kilaro, o Kiame tem razão. – Disse o Filho-Tito. – Devemos
respeitar como as formigas, trabalhar como as formigas, ser
humildes como elas são e ser unidos também como as formigas são.
– Enfim… – Dizia o Jojó, se levantando para me dar um abraço –,
sejamos todos formigas.

“Sejamos todos formigas”, disseram os outros também, de forma


desordenada e levantando.

133
Ngola Mufasa

“Sejamos todos formigas”

134
Os Contos dos meus Sonhos

O NADA TAMBÉM É ALGO

Num eterno antes de a Sereia sair do rio-mar para a terra, antes


mesmo de ela chorar e colorir a terra, na terra já habitavam cinco
seres: os cinco Nada.

Quando a Sereia deixou o rio-mar, passou a ter pernas, por instintos


naturais. Ela andou entre as selvas e savanas, e sentia uma energia
que lhe motivava a lutar contra aquele(s) Nada.

Dentre os cinco Nada, existia um que controlava o Tempo, outro


que controlava as coisas, e ainda um outro que controlava as acções.
Ou seja, a Sereia não podia fazer alguma coisa em nenhum
momento. Porque tanto os momentos, as coisas e os afazeres eram
controlados por Nada.

“Que triste”, lamentei.

Chegou uma altura em que a Sereia começou a ficar farta daquela


realidade que encontrou na terra. Sendo assim, pensou em voltar
para o mar. Mas viu que fez um mal muito grande em sair, e não
mais poderia voltar à sua antiga casa.

Sendo assim, a Sereia começou a procurar por formas de lutar e


eliminar cada Nada que lá habitava.

“E como é que ela fez isso?”, perguntei, ainda lamentando.

A Sereia-Mãe, procurava sempre por coisas e formas de eliminar


cada Nada.

“E como ela fez isso?”, questionei.

135
Ngola Mufasa

Ela procurou por cada coisa que fosse contra o Nada-Tempo. Mas
não teve êxito, porque o Nada-Tempo era amigo muito íntimo do
Nada-Coisa. E o Nada-Coisa, fiel que era, contou todas as coisas ao
Nada-Tempo que a Sereia estava a planejar.

Sendo assim, a Sereia fracassou na primeira missão para eliminar


os Nada, e trazer algum algo.

Com muita paciência, a Sereia começou a pensar em uma outra


coisa para fazer. Mas não passou de pensamento, pois o Nada-
Acções era o irmão mais novo, e tudo foi reportar aos seus irmãos
Nada.

A Sereia ficou ainda mais desesperada, e começou a chorar em


baixo de uma árvore. Sem ser sua intenção – aliás, ela nem sabia
que isso aconteceria –, a árvore começou a ter cor e a ganhar vida.
As folhas ficaram verdes, e os troncos e ramos castanhos: as vezes
quando nós menos esperamos, é quando as coisas acontecem.

A Sereia ficou muito feliz ao ver aquilo, pois nunca tivera visto
antes uma árvore; ainda mais uma árvore colorida.

A Sereia achou que podia colorir mais outras coisas: árvores,


animais, e tudo que lá não estava. Só que as coisas eram controladas
por um Nada.

“E o que aconteceu depois?”, questionei.

A Sereia pensou em uma ideia genial, mas esta ideia poderia lhe
custar muitas coisas. Talvez até mesmo a sua própria vida e/ou a
sua condição física. E custou…

Continua no livro: A Sereia Perdida Na Terra.

136
Os Contos dos meus Sonhos

BIOGRAFIA

Ngola Mufasa, pseodónimo artístico-literário de Ismael Chipululo,


que nasceu aos 24 de Dezembro de 2003 (16 anos). É artista,
escritor e palestrante, estudante de Língua Potuguesa, graduado em
Inglês pela Academia de Línguas do Grupo Educacional
Chamuanga. É membro e um dos fundadores da ALEK
(Associação de Letras do Kuito).

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