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Chuva

Pedro Paulo Gomes Pereira


Para Bárbara e Daniela; para meu amigo
Neto. Para meus sobrinhos, sobrinhas e
afilhadas.
A chuva escorre por dedos de mãos que saem da
janela. Enrugadas pelo tempo, as mãos sentem o toque
d’água que muda a compleição do instante. O corpo
força a lembrança a percorrer veias, a dilatar
músculos, a tocar a epiderme. E treme com o vivido
encarnado.
O corpo surge então no meio do jardim, a andar
descalço pela grama. Sentindo cheiro de terra molhada,
solta-se: percorre espaços, ocupa lugares e deságua
nos caminhos. A rua se torna o centro do corpo, que se
põe a fabricar barquinhos de papel e soltá-los na
enxurrada a bailar. A chuva forte convida a descer rua
– o corpo deixa-se levar pela água.
No movimento, depara-se com bolinhas de gude
multicolores; fincas dilacerando triângulos no barro;
piões de madeiras a rodopiar; meninos e meninas a
brincar de pega-pega, de esconde-esconde, a descer
ligeiro ladeiras com carrinhos de rolimã, a escorregar
na lama, subir em árvores e roubar mangas do quintal
vizinho. Extasiado, o corpo acomoda-se à beira de um
fogão a lenha, em busca de sossego; mas, logo sai a
correr pelo campo, a andar a cavalo e a tomar banho no
açude. Inquieto, viaja para ver o mar pela primeira
vez.
A memória aflita infiltra na carne e alenta o
rememorar: a primeira vez no cinema; o beijo debaixo
da marquise; a dança das mãos inexperientes e
ansiosas. O medo do pecado e as lições da casa
paterna.
Diante da imensidão, lembra-se de chorar de
saudade. Deixar-se nos braços da mãe e beijar seu
rosto. Andar pelo bairro a conversar com o pai. Chorar
de felicidade. Acalentar a filha, apertá-la sobre o
peito e ver o mundo parar por momentos que ecoam pela
vida, absorvendo os silêncios. Sorrir sem conseguir
parar. Falar sem preocupação. Ficar sem palavras.
Dizer “eu te amo”. Fazer cafuné despreocupadamente.
Cantar fora do tom. Ver o rosto de quem se ama e
perceber o dulçor dos olhos repousar na pele que
queima. Sentado num canto da cozinha, acompanhar a mãe
preparando algo, o tio cuidando de uma receita, o pai
ouvindo alto qualquer música.
O corpo também sonha com o eterno desfiar
despedidas que fragmentam, fazendo os corpos
diferentes de si mesmos. Lembra-se de lidar com a
enfermidade dos pais e com as urdiduras da morte. De
chorar escondido. De sofrer por paixão não
correspondida.
Confuso, quer dominar o instante, deseja voltar
momentos que não deveriam ter fim. Mas, a chuva
finaliza seu trabalho de burilar o tempo. As mãos
molhadas esvanecem janela adentro. Ninguém ao lado. E
num abraço fugidio que não mais pode ser, o mundo
açoda a existência. Diante dos longes instituídos, o
corpo conclui que a vida seria feita de gestos
inscritos na carne, que, insistentemente, esculpem
marcas em sonhos e recordos.

Gonçalves, MG, maio de 2020

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