Para Bárbara e Daniela; para meu amigo Neto. Para meus sobrinhos, sobrinhas e afilhadas. A chuva escorre por dedos de mãos que saem da janela. Enrugadas pelo tempo, as mãos sentem o toque d’água que muda a compleição do instante. O corpo força a lembrança a percorrer veias, a dilatar músculos, a tocar a epiderme. E treme com o vivido encarnado. O corpo surge então no meio do jardim, a andar descalço pela grama. Sentindo cheiro de terra molhada, solta-se: percorre espaços, ocupa lugares e deságua nos caminhos. A rua se torna o centro do corpo, que se põe a fabricar barquinhos de papel e soltá-los na enxurrada a bailar. A chuva forte convida a descer rua – o corpo deixa-se levar pela água. No movimento, depara-se com bolinhas de gude multicolores; fincas dilacerando triângulos no barro; piões de madeiras a rodopiar; meninos e meninas a brincar de pega-pega, de esconde-esconde, a descer ligeiro ladeiras com carrinhos de rolimã, a escorregar na lama, subir em árvores e roubar mangas do quintal vizinho. Extasiado, o corpo acomoda-se à beira de um fogão a lenha, em busca de sossego; mas, logo sai a correr pelo campo, a andar a cavalo e a tomar banho no açude. Inquieto, viaja para ver o mar pela primeira vez. A memória aflita infiltra na carne e alenta o rememorar: a primeira vez no cinema; o beijo debaixo da marquise; a dança das mãos inexperientes e ansiosas. O medo do pecado e as lições da casa paterna. Diante da imensidão, lembra-se de chorar de saudade. Deixar-se nos braços da mãe e beijar seu rosto. Andar pelo bairro a conversar com o pai. Chorar de felicidade. Acalentar a filha, apertá-la sobre o peito e ver o mundo parar por momentos que ecoam pela vida, absorvendo os silêncios. Sorrir sem conseguir parar. Falar sem preocupação. Ficar sem palavras. Dizer “eu te amo”. Fazer cafuné despreocupadamente. Cantar fora do tom. Ver o rosto de quem se ama e perceber o dulçor dos olhos repousar na pele que queima. Sentado num canto da cozinha, acompanhar a mãe preparando algo, o tio cuidando de uma receita, o pai ouvindo alto qualquer música. O corpo também sonha com o eterno desfiar despedidas que fragmentam, fazendo os corpos diferentes de si mesmos. Lembra-se de lidar com a enfermidade dos pais e com as urdiduras da morte. De chorar escondido. De sofrer por paixão não correspondida. Confuso, quer dominar o instante, deseja voltar momentos que não deveriam ter fim. Mas, a chuva finaliza seu trabalho de burilar o tempo. As mãos molhadas esvanecem janela adentro. Ninguém ao lado. E num abraço fugidio que não mais pode ser, o mundo açoda a existência. Diante dos longes instituídos, o corpo conclui que a vida seria feita de gestos inscritos na carne, que, insistentemente, esculpem marcas em sonhos e recordos.