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A visão otimista sobre os militares estava baseada em uma leitura na qual as Forças
Armadas haviam “aprendido a lição” após os anos de vivência democrática, e que não se
aventurariam em qualquer tentativa de quebra do Estado Democrático de Direito. Essa
visão não era tão otimista a ponto de esperar que a caserna fizesse uma mea culpa sobre
os anos de chumbo. Afinal de contas, os atos de insubordinação e discordância de
tentativas de apresentar a face oculta da história, como frente à Comissão Nacional da
Verdade, já mostravam que não chegariam a tanto. Todavia, esperava-se que a cúpula
militar, que jamais morreu de amores por Bolsonaro, fosse o freio de uma previsível
jamanta desgovernada no Planalto.
Essa expectativa, por si só, já não era positiva para a democracia. Não era porque já
concedia ao autoproclamado poder moderador que os militares historicamente têm
sobre a condução política doméstica no país. Quando os guardiões armados entram
para a política, diminui-se a previsibilidade, e a opção pelo uso da força passa a ser uma
alternativa mais próxima do que outras encontradas pelo diálogo democrático. É a
dominação pelo medo, o que fragiliza os controles democráticos constitucionais.
Mas a queda de braço trouxe rapidamente a tônica que esse controle seria uma ilusão,
simbolizada por uma grande debandada de militares “moderados” após fritura pública
feita pela ala ideológica durante o segundo semestre de 2019. Talvez as saídas que mais
representaram essa virada sejam as dos prestigiados generais Carlos Alberto dos Santos
Cruz, da Secretaria de Governo, e de Maynard Marques de Santa Rosa, da Secretaria de
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Assuntos Estratégicos, a SAE. O desengajamento dos moderados, no entanto, não
precipitou o fim do aparelhamento militar do Executivo, como era de se esperar se a
hipótese inicial da tutela fosse verdadeira. Muito pelo contrário.
“É general de pijama, não apita nada nas Forças da ativa”, dirão alguns desavisados que
ignoram a premissa fundamental da lógica militar: o respeito à hierarquia. Tanto que,
quase que imediatamente, a carta de Heleno foi endossada pelo ministro da Defesa,
Fernando Azevedo, outro general da reserva. Ainda que se possa questionar a utilidade
da apreensão do celular do presidente da República – e ainda que se possa também
questionar a possível desarmonia dos poderes com o pedido –, o alerta contra as
“consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” soa muito mais uma ameaça
contra a ordem democrática, com o apoio ou anuência das Forças Armadas, do que
qualquer outra coisa.
Chama também a atenção a nota emitida por oficiais da reserva da turma de Heleno, em
sua formação na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, de tom mais forte e
disruptivo, o que foi também seguido por outras turmas e associações de militares da
reserva, sempre reproduzidas pelo twitter de Heleno. Ecoando a visão binária
bolsonarista, separando pessoas entre boas e más, atacam enfaticamente o STF e seus
ministros, e culminam chamando de guerra civil as “consequências imprevisíveis”
apontadas por Heleno.
Com o apoio notório a milícias, com o incentivo ao armamento da população “de bem”
e, agora, com o apoio dos militares (por ora, majoritariamente da reserva), uma guerra
civil, de caráter irregular e complexo, é, sim, uma possibilidade real. O que os
signatários não parecem compreender é que seriam eles alguns dos responsáveis por
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sua deflagração, ao forçarem, pela via das armas, sua visão do que é certo ou errado
(ou, em suas visões, bom ou mau) para a condução do país. Resta evidente agora o
porquê de os militares não serem atores políticos em uma democracia consolidada.
Militares de patentes altas da reserva não são apenas respeitados, são, em muitos casos,
líderes que inspiram e mobilizam a ativa – em especial quando, abandonada a farda,
abraçam a agenda política. Esse é o caso também de outros dois generais simbólicos da
pauta autoritária do Exército brasileiro: Hamilton Mourão e Eduardo Villas Boas.
Já o segundo, Villas Boas, é igualmente um general da reserva com alto prestígio nas
Forças Armadas. Seu estado de saúde, acometido por uma grave e comovente doença
degenerativa, não lhe afastou da política. É bastante ativo no Twitter, onde ele fez
também ameaças ao STF, enquanto era comandante do Exército, às vésperas de
julgamentos de casos que envolviam o ex-presidente Lula. Junta-se, assim, a Heleno,
também bastante ativo na rede – e, não raramente, em posts nada republicanos, como
os que chama Ciro Gomes de “lixo humano” e “débil mental”.
Se havia prestígio acumulado nos anos da Nova República pelas Forças Armadas, esse
prestígio se esvaiu quando optaram pela política do coturno.
Outro general de prestígio, que foi para a reserva para assumir a Secretaria de Governo,
Luiz Eduardo Ramos também aderiu à agenda de esgarçamento das instituições ao
também promover o enfrentamento ao STF, rebatendo o alerta antifascista do ministro
decano Celso de Mello, inclusive acusando-o de ser antipatriota. A defesa do presidente,
aliás, segue a linha do que o próprio solicitou na reunião ministerial de 22 de abril. Está
posta a lealdade à figura e à agenda política dos Bolsonaro.
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política pública desenfreada do presidente, a produção em larga escala da medicação
pelas Forças Armadas. A militarização da saúde é, portanto, outro sintoma grave do
desequilíbrio das relações civis-militares no Brasil.
É o momento de valorizar as vozes dissonantes que, sim, existem dentro das Forças da
ativa e da reserva – com destaque para os pronunciamentos recentes de Santos Cruz.
Resta-nos saber se essas vozes conseguirão apoio suficiente para evitar o autogolpe já
em gestação, prenunciado por Mourão e abertamente defendido pela família Bolsonaro,
e com fortes ecos entre militares.
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