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1, dezembro de 2006
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ciência; e os cientistas são convidados a propostas para o próximo milênio (1990),
entrar no reino da narrativa de ficção, para que a Multiplicidade é um dos principais
onde seus textos são levados pelo recurso valores para o próximo milênio: "Uma
da citação. literatura que tome para si o gosto da
Poderíamos aqui recuperar um ordem intelectual e da exatidão, a
gênero em que ciência e arte se inteligência da poesia juntamente com a
encontram: a ficção científica, a narrativa da ciência e da filosofia" (p. 133).
que se faz a partir de pressupostos Essa relação entre ciência e arte
científicos, com pretensão a ter como está presente em várias de suas obras, mas
fundamento idéias e/ou teorias também e de modo explícito em sua
concebidas por grandes autores e/ou participação no Oulipo (Ouvroir de
teorias da ciência. Não irei deter-me na litterature potentielle – Oficina de
discussão da ficção científica (esse seria literatura potencial), grupo do qual fez
trabalho para um outro texto), até porque parte na década de 70, cujo pressuposto
Calvino não pretende que o seu livro esteja era o diálogo entre matemática e
fundamentado no discurso científico, o literatura. No Oulipo, escritores como
que iria conferir-lhe o estatuto de George Perec e Queneau escreviam livros
verdadeiro, rompendo com o que o que se constituíam como desafios lógicos a
literário tem de falso, de ficcional. Em seu serem enfrentados, em uma relação lúdica
livro, ao contrário, a ciência e a ficção se e lúcida entre ciência e literatura. La vie
encontram, para, aí, descobrirem-se mode d’emploi, de George Perec, por
menos diferentes do que se imaginavam, exemplo, traz narrativas que vão se
menos diferentes por que ambos constituindo a partir do movimento em L
imaginam, e é a imaginação, entendida do cavalo no tabuleiro de xadrez, esse
como “poder capaz de produção livre de jogo, definido como racional, no qual não
sínteses imagístico-intutitivas” interferem a sorte e o acaso, é semelhante
(WELLBERY, 1998, p. 76), que move à narrativa; é, aliás, uma narrativa de
muito da ciência e da arte. A idéia de guerra encenada pelas peças no tabuleiro:
ficção científica postula a supremacia da peões, reis, rainhas, cavalos, bispos, torres
ciência em relação à arte, vincula a enfrentam-se até a morte, até a captura de
elaboração artística a formulações um dos reis pelo exército inimigo.
(pretensamente) científicas, o que parece Em As cosmicômicas, além da
contrário ao projeto de Calvino, no livro citação na epígrafe que atua como mote
em questão. Esses contos, vale para o conto, há também outras
acrescentar, distanciam-se da definição de incorporações do discurso científico.
ficção científica principalmente pelo Chama a atenção, já de saída, a forma
registro cômico. impronunciável de denominação das
Confesso partidário de uma relação personagens. Vejamos alguns desses
íntima entre ficção e conhecimento, nomes: Qfwfq, Rvd Rvd. Aqui o verbo ver
Calvino é alguém que vê o exercício é mesmo mais adequado do que ouvir. As
intelectual como desafio à invenção. Não denominações mimetizam equações
por acaso, conclui, em seu livro Seis matemáticas ou fórmulas de Física ou
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Ciência & Ensino, vol. 1, n. 1, dezembro de 2006
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Em Seis Propostas..., Calvino afirma A partir de um conjunto de imagens
que, em As cosmicômicas, tentou "(...) legadas pela ciência, Calvino nos leva a
demonstrar como o discurso dos contos dos quais podemos sair com outro
personagens, característico do mito, pode olhar para o mundo e a ciência. Irei deter-
brotar de qualquer tipo de terreno, até me, para concluir, em uma dessas
mesmo da linguagem mais afastada de narrativas. "O último dinossauro". Cuja
qualquer imagem visual, como é o caso da epígrafe diz:
linguagem da ciência hodierna" (1990, p. “Parecem misteriosas as causas da
105). extinção dos dinossauros, que tinham
No entanto, esse autor encontra na evoluído e crescido durante todo o
Triássico e Jurássico, e foram por cento
ciência a elaboração de universos que
e cinqüenta milhões de anos os
mais parecem narrativas literárias, como a dominadores incontestáveis dos
imagem da lua próxima à Terra, no continentes. Talvez fossem incapazes de
primeiro conto do livro. Assim também se adaptar às grandes alterações do
clima e das vegetações que ocorreram no
outras imagens que a ciência nos legou e o Cretáceo. No fim daquela era haviam
autor retoma para inseri-las no campo da todos desaparecidos” (CALVINO, 1992,
literatura: o período que precede o p. 95)
surgimento do sistema solar, em que, na O início da citação, com o verbo
escuridão, os planetas começam a “parecer” e, mais adiante, a presença do
condensar-se, ou o tempo do percurso do advérbio “talvez” indicam a oscilação entre
sol na Via Láctea, ou ainda um tempo e verdade e dúvida. Respondendo à
um espaço anteriores ao Big-Bang, em que epígrafe, o personagem central, Qfwfq,
tudo e todos estariam concentrados em inicia o seu relato afirmando ter sido, após
um único ponto, antes de começar a o período da extinção dessa espécie, um
expandir-se, e que é encenado na dinossauro: “Todos menos eu, precisou
narrativa intitulada “Tudo num ponto”, Qfwfq, porque fui eu também, em certo
marcadamente cômica, na qual se articula período, dinossauro – digamos, durante
a discussão sobre tempo e espaço e é uns cinqüenta milhões de anos; e não me
enfrentada a questão: o que significa, para arrependo: ser dinossauro naquela época
a narrativa, que todos e tudo estavam num era ter a consciência de ser justo, fazendo-
único espaço, num único lugar no tempo? se respeitar” (CALVINO, 1992, p. 95, grifo
Compreende-se que todos estivéssemos meu).
ali, disse o velho Qfwfq, e onde mais Esse dinossauro sobrevivente passa a
poderíamos estar? Ninguém sabia ainda
que pudesse haver o espaço. O tempo, viver com um grupo intitulado "novos".
idem; que queriam que fizéssemos do Essa narrativa, como outras do livro
tempo, estando ali espremidos como problematiza a pretensão de objetividade e
sardinha em lata? verdade do discurso científico, mostrando,
Disse “sardinha em lata” apenas para com o riso, que há muito de imaginação
usar uma imagem literária; na verdade, no que sabemos do passado, de tempos
não havia espaço nem mesmo para se remotíssimos dos quais não poderíamos
estar espremido (CALVINO, 1992, p.
ter participado como observadores, e
45).
mais: a observação tampouco nos
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aqueles membros exterminadores, como o repertório do potencial, do virtual,
falavam uma linguagem agora ilegível,
daquilo que não foi, talvez não seja nem
não diziam mais nada a ninguém, a não
ser aquele vago nome que permaneceu poderia ter sido, mas sim daquilo que
sem ligação com as experiências do desejaríamos que tivesse sido (Calvino,
presente” (CALVINO, 1992, p. 109). 1990).
Ou, em outro trecho: “Agora aqueles
despojos serviriam aos novos e distraídos Referências
ocupantes do planeta para assinalar um
ponto da paisagem, seguiriam o destino ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia.
do nome ‘dinossauro’ tornado um som Trad. Alfredo Bosi (coord.). São Paulo:
opaco sem sentido” (CALVINO, 1992, p. Martins Fontes, 2000.
109). ALMEIDA, M. J. P. M. Discursos da ciência e
Literatura e ciência debatem-se com da escola: ideologias e leituras possíveis.
as possibilidades de constituirmos Campinas, SP: Mercado de Letras, 2004.
sentidos em um mundo marcado pela BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e
mobilidade, pela transformação, pelo técnica; arte e política. Trad. Sérgio Paulo
contínuo deslocamento do que é instituído Rouanet. 2ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
como verdadeiro, ambas atuam nesse BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de
campo móvel e contraditório da ordem do Estética. A Teoria do Romance. São Paulo:
Hucitec, 1988.
discurso. Foucault pergunta: “É possível
admitir, tais como são, a distinção dos CALVINO, I. As cosmicômicas. Trad. Ivo
grandes tipos de discurso, ou das formas Barroso. São Paulo: Companhia das Letras,
1992.
ou dos gêneros que opõem, umas às
outras, ciência, literatura, filosofia, CALVINO, I. Seis propostas para o próximo
religião, história, ficção etc., e que as milênio. Lições americanas. Trad. de Ivo
Barroso. 9ª ed. São Paulo: Companhia das
tornam espécies de grandes Letras, 1990.
individualidades históricas?” (2000, p.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. 6ª
25).
ed. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. Rio de
Se colocarmos em diálogo a pergunta Janeiro: Forense Universitária, 2000.
de Foucault e as narrativas de As
WELLBERY, D. E. Neo-retórica e
cosmicômicas, de Italo Calvino, podemos
desconstrução. Trad. Luiz Costa Lima. Rio de
dizer que elas dizem não a essa questão, Janeiro: Editora UERJ, 1998.
pois desfazem a miragem da separação
estanque entre os discursos, movendo as
fronteiras que separam o que aceitamos
como verdadeiro, e lançando-nos, assim,
em questões próximas do insolúvel acerca
da ordem do discurso, ordem esta sempre
ameaçada por campos que ela tenta _______________________________
Susana Souto Silva é professora do Curso de
adestrar, como o da literatura, que Letras da Universidade Católica de Brasília e
incorpora a dispersão, a ambigüidade, a doutoranda na Universidade Federal de
contradição, encarando a imaginação Alagoas.