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Dos Deveres foi escrito pouco mais de um ano antes de sua morte. Fora
endereçado a seu filho Marcos e a maior parte de seu conteúdo é destinado a tratar de
quase todos os aspectos concernentes à arte de governar. Essa obra deve ser interpretada
como uma tentativa de “elevar os ensinamentos político-morais dos filósofos gregos
antigos fora dos estreitos limites da cidade-estado para o cenário cosmopolita do
Império Romano” (REICHBERG, SYSE, BEGBY, 2008, P. 51).
Assim como Platão e Aristóteles, no que diz respeito aos temas políticos, Cícero
idealizava o papel atribuído ao estado como a forma mais elevada de organização social,
considerando a sua preservação como essencial ao bem-estar físico e moral de todo
indivíduo. Como destaca Cícero (On The Republic, XXIII.23). “um estado deve ser
estabelecido para ser eterno: portanto, não há morte natural para um estado, como para
um homem, cuja morte não é apenas inevitável, mas muitas vezes até desejável; mas
quando um estado termina, é destruído, extinto”. Nessa perspectiva, as ações mais
extremas podem ser justificadas pelo governante se elas visarem a necessária
preservação do estado.
Muito influenciado por essa concepção política e moral de Cícero foi Santo
Ambrósio, governador romano no norte da Itália e depois bispo de Milão, principal
mentor de Santo Agostinho de cujas mãos recebeu seu batismo. Para Ambrósio, as leis
humanas existem sob duas formas: uma forma exterior, que indica o aspecto legal do
código prescrito, e uma forma interior, que dá sentido e fundamento para as leis.
Em vez de encarar o aparato legislativo como algo intrinsicamente ruim ou
indesejável, ele o concebe como condicionalmente bom na medida em que esse aparato
esteja informado com os preceitos do Evangelho. Isso o permite trabalhar
dialeticamente os princípios cristãos da coragem militar e do amor ao próximo, se
distanciando de uma visão puramente pacifista dos primeiros escritores cristãos que o
precederam.
Para Santo Ambrósio o Império Romano e a Igreja Católica eram duas entidades
que deveriam trabalhar conjuntamente para a salvação das pessoas. Assim, justificava a
defesa cristã do território romano como uma defesa da própria fé. Em certo sentido,
Santo Agostinho irá corroborar essa ideia defendendo a proposição de que algumas
guerras, senão todas, refletem em alguma medida a vontade divina que orienta o destino
do homem. Sob certos aspectos os conflitos iminentes serviam como eventos que
confirmavam e reforçavam os desígnios cristãos no mundo.
Baseado em exemplos do Antigo Testamento, Ambrósio advoga pela
preponderância da misericórdia na aplicação das penas aos inimigos derrotados,
julgando ser para um propósito divinamente ordenado aqueles casos em que, após o
conflito, os judeus destruíram totalmente seus adversários. Lembrando o exemplo do
profeta Eliseu, que proibiu o rei de Israel de aplicar um castigo desproporcional ao
derrotar os sírios, Ambrósio recomenda ser decente ao vitorioso “poupar a vida de um
inimigo quando, na verdade, ele poderia tê-la perdido, se não a tivessem poupado”
(AMBRÓSIO, Duties of the clergy, III.14).
Diferentemente de Cícero e Ambrósio, que viveram no período expansionista do
Império Romano, Santo Agostinho vive o seu ocaso e iminente colapso. As invasões
bárbaras vindas do norte da Europa e da Ásia central se tornam constantes e constituem
um novo desafio para os governantes tentar preservar as fronteiras do território.
Nesse sentido, quando ele se refere à justiça das guerras, na maioria das vezes
tem em mente guerras destinadas a reprimir rebeliões internas a fim de restaurar a
ordem temporal pacífica, ou guerras travadas para proteger as fronteiras do Império.
Certamente, ele não está se referindo a guerras de expansão imperialista do tipo que
caracterizava o Império nos séculos anteriores.
Para se entender melhor como Agostinho analisa a questão da guerra justa faz-se
necessário indicar a metáfora a respeito das duas cidades de Deus: uma que tem como
finalidade o Reino dos Céus e a outra que está condenada ao castigo eterno por
perseguir somente as coisas terrenas.
Os membros da cidade de Deus estão neste mundo apenas como visitantes, uma
vez que as suas atenções se voltam a propósitos que não existem senão sob a forma de
uma promessa de bem-aventurança futura, em contraste com os membros permanentes
da cidade terrena que se satisfazem com objetos e prazeres adquiridos
momentaneamente. Como as duas cidades estão separadas espiritualmente nenhuma
possibilidade de se encontrar paz, justiça e ordem neste mundo deve ser esperada.
Desse modo, não há nenhuma lógica, a não ser a perdição consciente e
voluntária, para que alguma instituição se identifique como sendo terrena, enquanto há
vários motivos para que se apresente como representante da verdadeira cidade celeste.
A Igreja e o estado são os dois principais candidatos a ocupar esse posto.
Os membros da cidade de Deus só possuem as suas respectivas cidadanias de
maneira incerta, e provisória de modo que “muitos que parecem estar fora estão dentro e
muitos que parecem estar dentro estão fora” (AGOSTINHO, On baptism, XVIII. 49).
Se não houvesse essa distinção, a questão sobre a justiça das guerras não faria nenhum
sentido pois ambos os lados do conflito estariam autorizados a agir em nome da cidade
de Deus.
Como tudo o que existe não existiria sem a permissão de Deus, Santo Agostinho
defende que se as guerras existem elas devem ter sido ordenas e dispostas segundo a
vontade de Deus como meio necessário de correção e punição à humanidade, uma vez
que todo conflito possui o seu início, meio e fim. Isso implica ponderar se um conflito
deve ser necessariamente empreendido contra indivíduos que, se deixados livremente,
optariam por rejeitar a noção de bem e fazer más ações. Como destaca Mattox (2006, p.
34), para Agostinho “aquele que realmente possui uma boa vontade, sob a orientação de
Deus, não hesita em administrar a um companheiro que erra a disciplina punitiva que a
guerra pretende trazer”.
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