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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS

UNISINOS

Centro de Ciências da Saúde

Curso de Psicologia

A escuta e o exercício de contar

histórias...

Módulo II - Recortes do fazer psicológico

Paola Lazzarotto

São Leopoldo, 19 de junho de 2012


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_______________________________

Paola Lazzarotto

Estagiária de Psicologia

Mat: 0955002-6

_______________________________

Lígia Hecker Ferreira

Supervisora local

CRP:07/3752

_________________________________

Nelson E. Rivero

Supervisor acadêmico

CRP: 07/5508

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Sumário

Prefácio - Sobre escutar, contar e escrever histórias....

Pg.4

Cap. 1 – Um faz de conta que acontece!

Pg.8

Cap. 2 – A história do abandono – "Faz de conta” que cuida de

mim? Pg.10

Cap. 3 – A voz da esperança - Será que alguém tá vendo que eu

tô aqui? Pg.12

Cap. 4 – O “fato” – A história se repete? A história se inverte?

Pg.16

Cap. 5 – A procura de um personagem – Quem sou eu afinal?

Pg.19

Cap. 6 – A transferência no atendimento psicológico como

possibilidade de escrever outros modos de (re)significação - Tu

me ajuda a contar esta história? Pg.21

Posfácio – E sigo escutando, contando e escrevendo histórias...

Pg.29

Referências Bibliográficas Pg.31

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Prefácio

Sobre ouvir, contar e escrever histórias....

“Cada um que conta um conto aumenta um ponto”. Se aumenta eu não


tenho certeza, mas o fato é que cada história que contamos, fala um pouco de
como fomos afetados por aquilo que ouvimos. Enquanto escrevia este módulo,
fiquei pensando em como ocorre o processo de escrita de um caso clínico.
Este não é somente um relato do que escuto no setting, mas sim uma tentativa
de transmitir em através das palavras aquilo que se coloca na relação
terapêutica e que, portanto, diz muito do meu afetamento e de mim como
terapeuta.

Deste modo, não se trata de aumentar um ponto, mas sim um pouco de


mim e do que se produz, na escrita que faço a partir da escuta de uma história,
na tentativa de resignificar algumas vivências e potencializar outras formas de
subjetivação. Por isso, escrever, para mim, se assemelha com o próprio
processo terapêutico, pois exige tempo, disposição, implicação, às vezes uma
parada para (se) pensar, apagar e escrever (ou elaborar e resignificar).

Neste módulo irei discorrer sobre como está se dando o trabalho


terapêutico com um paciente que atendo individualmente no estágio
profissional do PAAS - Projeto de Atenção Ampliada a Saúde. Mas
concomitante a isso, procuro colocar em palavras como está, a partir desta
experiência, acontecendo o meu próprio percurso formativo.

Ao mesmo tempo em que me coloco disponível para escutar o que este


paciente me traz, também conto (um pouco) da minha própria história, em um
momento bastante importante, que é o da formação profissional. Não tenho
dúvidas de que esta formação não se encerra com a conclusão do estágio ou
da graduação. Pelo contrário, do mesmo modo como me construo a partir

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desta intervenção que escolhi debruçar-me neste módulo, outras tantas


histórias irão atravessar e afetar-me, colocando-me em constante desafio e
reflexão do que é e como se é terapeuta.

Durante o segundo semestre de estágio profissional, pude aprofundar as


minhas intervenções no PAAS, principalmente no que se refere aos
atendimentos individuais, que me chamam muito atenção e cuja minha
experiência ainda é bastante incipiente. Como já citei no módulo anterior,
qualificar a minha intervenção no atendimento clínico era uma das principais
motivações para a realização do estágio neste local.

Acredito que o potencial da clínica está em auxiliar os sujeitos a escrever


outras possibilidades de vida, a partir da alteridade, do encontro com o outro.
Este outro que acolhe, prontifica-se a estar lado-a-lado, aceitando o sujeito
como ele se apresenta, disposto a novos modos de olhar e escutar uma
história que já foi vivida, contada e que não pode ser apagada, mas que pode
ter outro sentido no próximo capítulo.

Esta história é uma daquelas tantas que não deveria ter sido escrita
desta forma, pois deixou marcas que não aparecem nas fotografias. O meu
maior desafio, neste caso, é tornar menos doloroso para Leonardo contar
alguns capítulos desta história e potencializar que novas imagens e histórias
possam ser escritos neste espaço.

Entendo que pensar na escrita deste caso e do próprio módulo desta


maneira diz muito do funcionamento de Leonardo, que por vezes conta sua
própria história como se ela não fosse sua – talvez como fosse seu desejo.

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A história de Leonardo

“ Eu tenho 15 anos e me chamo Leonardo. Meus pais são a Márcia e o


Luciano. Tô no 1º ano do Ensino Médio e moro na Casa de Acolhimento desde
março de 2011. Minha mãe engravidou do meu pai quando ela tinha 16 anos,
meu pai tinha 18 na época. Ele não quis me assumir, já tinha outra namorada.
Minha mãe entrou na justiça pra que ele pagasse pensão e reconhecesse que
era meu pai. Isso só aconteceu quando eu tinha 4 anos.

Logo depois ela casou com meu padrasto e engravidou dos meus
irmãos, a Milena, que tem 12 anos e o João que tem 9 anos. Eu fiquei morando
com eles até quando eu tinha uns 9 anos, que foi quando meu padrasto morreu.

“Eu não lembro muito bem como era nesta época, na verdade eu não
gosto muito de lembrar.” Sei que meu padrasto foi preso e quando ele foi solto
mataram ele. Ele era bravo e eu não gostava muito dele, batia na minha mãe
às vezes. Quando ele morreu minha mãe teve que me mandar morar com meu
pai, que eu não via há muito tempo. Ela ficou preocupada que a gente ia passar
dificuldades, mas foi bem pior eu ter ido morar lá.

Dai eu fiquei morando com meu pai até os 13 anos. Na verdade eu não
morava com meu pai, porque a namorada do meu pai, aquela que eu contei no
início sabe? Eles acabaram casando, então ela não gosta muito de mim. Eles
têm outra filha também, dai fica um pouco complicado. Eu morava com minha
vó e meu vô. Mas era bem ruim. “Eu fazia xixi na cama e eles me deixavam
dormindo em um quarto separado, na verdade na garage” e eu não podia ir pro
resto da casa. “Tudo eu tinha que pedir, não podia nem olhar TV como os
outros.”

“Teve um aniversário que ninguém me deu parabéns.” Eles nunca me


davam presente em nenhuma festa, tipo natal, páscoa. Todo mundo ganhava e
eu não. “Eles diziam que meu pai tinha problema no coração por causa de mim

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e diziam que eu fazia xixi na cama porque eu era sem-vergonha.” Eu sempre


apanhava por causa disso.

Na época que eu morava com a vó eu quase não falava com a mãe, ela
ligava às vezes ou mandava carta, mas nunca foi me visitar. Ela dizia que não
tinha dinheiro. Só quando ela casou de novo é que ela conseguiu me mandar
dinheiro para eu vir visitar eles. Foi quando eu vim passar as férias aqui. “Meu
pai ligou e disse que era pra eu ficar morando aqui, que minha vó tinha que
fazer uma cirurgia e era melhor eu ficar aqui.”

Foi bem difícil, eu tinha alguns amigos e tive que mudar de escola e tudo
mais. Agora não falo mais com o pai e a família de lá faz tempo, “nem lembro
mais o telefone, nem o nome dos cachorros.”

Quando eu voltei a morar com a mãe foi legal até, meu padrasto novo é
bem legal. Eu ia pra escola de manhã e cuidava dos meus irmãos o resto do
dia. Algumas vezes eu trabalhava também, em uma fruteira pertinho de casa,
“comprei uns tênis para meus irmãos até.” “A minha mãe nunca me deixava
fazer nada, por isso eu gosto de morar na Casa de Acolhimento.” Eu gostava
de jogar futebol e ela me tirou do time. “Uma vez eu arrumei uma namorada na
escola e ela me proibiu de namorar. A guria deve ter me achado um idiota.”

Eu sempre tive poucos amigos, “não gosto muito de conversar e falar do


que eu tô sentindo.” Agora lá na Casa eu tô melhor. “Quero dizer pra juíza que
eu não quero mais voltar para casa nem do pai, nem da mãe.” Eu sei que eu tô
aqui porque o meu pai não paga mais pensão, dai não tenho como pagar a
psicóloga que eu ia antes. Eu comecei a ir na psicóloga desde que eu fui para a
Casa de Acolhimento. Eu fui para a Casa de Acolhimento porque eu “sou um
pedófilo, abusei do meu irmão”*.

* História-ficção baseada em falas de Leonardo que me


permitiram construir o caso clínico.

Os fragmentos entre aspas são falas do próprio


paciente.

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Cap. 1

Um faz de conta que acontece!

O caso me chama atenção desde o princípio, talvez por eu me acreditar


mais livre de preconceitos e concepções morais, por se tratar de um caso
complexo e principalmente por saber, o quão difícil é, apesar da profissão que
escolhi ter como preceito a escuta supra-moral, profissionais que se dispõem a
atender “abusadores”, tendo em vista estágio anterior em um serviço que
atende situações de abuso sexual.

Entendo que o diagnóstico deve ser sempre processual, dinâmico,


nunca algo enrijecido, que sirva para classificar, incluir ou excluir. Tendo em
vista a dinamicidade da vida e o constante devir, bem como neste caso, o
diferencial de o paciente ser um adolescente, o que torna ainda mais
necessário considerar a plasticidade deste sujeito. No entanto, para guiar o
entendimento do caso e consequentemente orientar a minha prática, trago aqui
algumas questões que entendo como importantes no tratamento deste menino.

Observa-se que na adolescência os quadros clínicos com frequência são


pouco definidos, apresentando características de histeria, fobias, psicose,
psicopatia, entre outros, com o predomínio variável dos mecanismos e
fantasias envolvidos. Também se apresenta a plasticidades dos sintomas e as
mudanças na personalidade, que acompanham o momento de descobertas e
transformações, características da fase (LEVISKY, 1998).

Segundo Costa et al (2011) vários autores enfatizam a importância do


atendimento a adolescentes que se apresentem como abusadores sexuais,
tendo em vista que aproximadamente um terço dos abusos sexuais são
cometidos por sujeitos nesta fase. Além disso, trata-se de um período do
desenvolvimento que oferece a oportunidade de intervenção precoce e
consequentemente, melhores resultados.

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A partir de algumas questões levantadas durante o atendimento do


adolescente, apresento alguns fragmentos do caso e relaciono-os com a (De)
Privação1 e Tendência Anti-Social2, me utilizando de referencial Winnicotiano e
a partir de alguns traços de Perversão3, segundo Masud Khan, tendo como
base a revisão teórica deste autor sobre o tema, realizada por Flávio Ferraz.

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A tendência anti-social caracteriza-se por uma falha ambiental, o bebê, até certo ponto,
normalmente na fase de dependência absoluta, teve uma mãe que conseguiu “dar conta” de sua tarefa,
mas depois ela, por algum motivo, falha mais do que isso, ou antes disso, e este bebê se sente invadido
pelo meio (MAIA e VILHENA, 2002).
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Essa falha não consegue ser entendida pelo bebê, que em um primeiro momento, espera a
volta da mãe. Se esta não volta como ele espera, ou demora muito a se recuperar para poder reassumir
sua função, acontece a sensação de raiva e de abandono: surge o que Winnicott denomina de
(de)privação. Diante dessa (de)privação, o bebê desenvolve movimentos e atos para avisar a este meio
que ele espera que este mesmo meio o proteja de novo: seria o que Winnicott chama de esperança da
tendência anti-social (MAIA e VILHENA, 2002).
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Segundo Masud Khan apud Ferraz (2000), a perversão é uma patologia do ego, entendida
como uma estrutura, podendo se manifestar em diversas gradações e também em outras
psicopatologias. Para Freud são fantasias pré-genitais que não são mantidas em recalque e são atuadas.
A perversão seria a manutenção da sexualidade infantil perverso-polimorfa.

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Cap. 2

A história do abandono –

"Faz de conta” que cuida de mim?

Segundo Khan apud Ferraz (2000), os traços de perversão podem ser


encontrados em pacientes que sofreram alguma situação de abandono durante
a infância. No que tange a figuras referenciais, define o pai como alguém que
embora esteja presente na experiência familiar da criança, não chega a ser
registrado como presença significativa. A mãe, por sua vez, proporciona
intensos cuidados corporais, mas de forma impessoal. Haveria por parte dela,
uma incapacidade de administrar “doses de experiência vital”. Esta mostra-se
instável, sendo ao mesmo tempo traumatizante e sedutora, alternando
experiências traumáticas com outras extremamente indulgentes, favorecendo a
dissociação do ego e dificultando o desenvolvimento emocional.

Esta mãe também tenderia a tratar seu filho como se fosse mais maduro
do que na verdade é, o que provoca um desenvolvimento egóico precoce, mas
por outro lado, estimula a manutenção de um vínculo primitivo do tipo auto-
erótico, fomentando a expectativa de receber dela satisfação e através dela,
obter prazer. Tendo esta baixo grau de tolerância quanto à frustração do filho,
permite-lhe uma infantilização das experiências corporais libidinais que não
corresponde com o desenvolvimento egóico (KHAN apud FERRAZ, 2000).
A partir de relatos, tanto do menino como da mãe, me parece que as
relações da família sempre foram pautadas, quase que exclusivamente, pelo
dinheiro, não possuindo relações de afeto e de cuidado. Leonardo traz a
questão do dinheiro como a preocupação central na relação entre a família,
referindo inclusive, esta como sendo uma das únicas motivações para ver a
mãe.

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O paciente refere em algumas sessões que se recebesse a pensão dos


pais, poderia organizar-se sozinho, bem como adquirir objetos pessoais que
deseja, já que não vislumbra a possibilidade de retornar ao convívio tanto do
pai, quanto da mãe.

Sobre esta relação com o dinheiro observo que esta também se desenha
na atribuição por parte da mãe, do papel do pai com o adolescente, pontuando
das suas obrigações como o menino, praticamente só através das questões
financeiramente, o que aparece desde o reconhecimento da paternidade e
cobrança da pensão por via judicial.

Também nos relatos da mesma sobre o que observa ser primordial no


cuidado com seus filhos, a mãe traz a questão financeira como a motivação
pela qual mandou o menino morar com o pai, pontuando sobre o que considera
cuidar corretamente dos filhos: “alimentar e vesti-los” (sic).

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Cap. 3

A voz da esperança -

Será que alguém tá vendo que eu tô aqui?

“Eu não roubava porque queria comer, entende?”

“Eu acho que isto tem a ver, quando eu era menor tinha
aquela coisa de fazer xixi na cama, depois de roubar as
coisas, depois veio a coisa com o meu irmão e agora isto
(referindo-se a vontade de agredir). Acho que isto
acontece porque eu seguro muito as coisas”.

“Eu tenho vontade de destruição”.

"Eu achei que eu ia surtar. Tenho vontade de quebrar


tudo."

Leonardo

A tendência anti-social implica esperança. No


período de esperança é que a criança manifesta a
tendência anti-social [...]

WINNICOTT, 2005

Leonardo refere nos atendimentos que durante a infância e início da


adolescência, costumava furtar pequenas coisas no mercado, tais como
bolachas recheadas e chocolates, deixando de fazê-lo quando um amigo foi
surpreendido durante o delito pelo segurança do local.

No que se refere ao furto, Winnicott (2005), explica que se encontra no


centro da tendência anti-social. Sendo que, quando a criança furta não está
desejando o objeto, mas sim a mãe. Este se questiona a respeito da união
entre as duas tendências, furto e destruição, pulsões libidinais e agressivas,

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explicando que estas surgem no sentido de uma auto-cura, cura de uma


dissociação de instintos. Neste sentido é necessário que haja um objeto que
ofereça constância, enquanto a criança ainda não se sente culpada, para a
“descarga” dos impulsos agressivos primários, mas que a criança não sinta
medo de agredir e perdê-lo.

Leonardo refere também a sensação de a mão direcionar-se para um


soco, antes de isto acontecer, costumando bater em árvores e portas para dar
vazão a sensação de angústia que isto lhe causa. Estas reações começaram a
acontecer por volta de março deste ano, sendo observadas algumas brigas no
abrigo. Para Winnicott (2000), a agressividade pode tomar vários caminhos,
estando estes em estreita relação com a resposta ambiental: o
desenvolvimento normal da capacidade de inquietude e duas alternativas
patológicas, que seriam a não capacidade para a inquietude e a questão da
formação do falso-self, ligado à questão da tendência anti-social.

Segundo Maia e Vilhena (2002), a família deve ser capaz de suportar o


indivíduo e sua agressividade. O meio deve ser capaz de continuar lá, mesmo
como a vontade de destruição, a criança precisa ficar muito agressiva e o meio
permanecer intacto, sobrevivendo aos ataques de destruição e agressividade
destas crianças. É a oportunidade de reparar oferecida pelos pais que faz
possível para a criança a confiança em sua atitude amorosa, favorecendo a
aquisição da capacidade de preocupar-se com o outro, enquanto se faz
responsável pelos próprios impulsos destrutivos.

O lugar de referência e suporte ao adolescente que transgride o código


social é a família. Quando esta família não consegue dar conta, surge a
necessidade de cuidado nas instituições. Os estudos a respeito da tendência
anti-social, postulam que o tratamento para ela não seria a psicoterapia
somente, mas, e principalmente, um ambiente externo coeso e firme, um “pai” e
uma “mãe” que sustentem um sistema que funcione, e que contenha a criança,
e que sobreviva aos ataques desta quando ela acreditar no meio e puder
agredir para testá-lo (MAIA e VILHENA, 2002).
O paciente através de pulsões inconscientes compele que alguém se
encarregue de cuidar dele. O comportamento antisocial questiona, pela atuação

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direito a um lugar, o colo e atenção da mãe, e um limite e significação para os


seus atos na figura do pai. Caso não seja atendido tende a aumentar a sua
área de ação e passar a ser destrutivo (WINNICOTT apud COSTA et al, 2011;
MAIA e VILHENA, 2002).
Ainda segundo Winnicott (2005), quando há na época da privação
original, alguma fusão de raízes agressivas com libidinais (do tipo ambivalência
entre sedução e trauma), a criança reclama à mãe através de furto,
agressividade e sujeira (enurese!). E ainda acrescenta, pontuando que a
enurese, surge como um momento de regressão a época em que as crianças
oferecem um valor incômodo à mãe, tal como urinar no seu colo, bem como ao
momento do sonho, ou sobre a compulsão para reivindicar o direito de molhar
o corpo da mãe.
Pude observar que Leonardo utiliza o mecanismo do acting-out,
anunciando, por exemplo, a agressão e partindo para o ato. O acting-out ou
atuação, é definido por Marcelli e Braconier apud Costa et al (2011), como um
agir que expressa o conflito ao invés de um agir. Khan (2000) utiliza-se deste
conceito para explicar o funcionamento do perverso, visto que tal mecanismo
permite ao ego reverter uma dificuldade intrapsíquica, projetando a tensão
provocada pela necessidade sobre outra pessoa. Se o ego luta contra a
entrega passiva, a projeção permite-lhe sentir o domínio ativo do impulso e do
objeto.

Deste modo, também se apresenta de modo a reparar o objeto real, já


que pela dificuldade nas primeiras relações com a mãe este vive um estado de
impotência frente a tendências reparadoras e criativas, impulsos agressivos e
libidinais. Com relação ao acting-out, Winnicott pontua como uma das
características da personalidade anti-social (WINNICOTT, 2005).

Leonardo também refere em alguns atendimentos queixas físicas, tais


como dores de cabeça, enjôos, vômitos e dores no corpo. Em uma das
sessões diz ter passado mal antes de vir ao atendimento, referindo que isto
costuma acontecer, “sem causa” e logo após associa com a visita da mãe ao
abrigo que aconteceria no dia posterior. Outra situação importante foi este ter
ficado com muitas dores no corpo após ter brigado no abrigo, sem, no entanto,

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ter justificativa física para isto. Estas queixas, nos últimos meses tem se
intensificado, inclusive impedindo o mesmo de ir à escola.

No desenvolvimento saudável a área de ilusão instaurada e diante das


falhas positivas da mãe, faz com que a criança identifique que ele e a mãe não
são a mesma pessoa e com isto surge um espaço "entre", denominado espaço
transicional. Esta área intermediária entre o interno e o extreno, comumente
vem acompanhada de objetos, que não pertence nem ao mundo da criança,
nem o da mãe. É neste momento que surgem os objetos transicionais, raiz do
simbólico (SCHNEIDER e VIEGAS, 2012).
Quando o ambiente falha, há uma ameaça de aniquilação, sendo
necessários mecanismos de defesa primitivos. Em virtude desta imaturidade do
self ainda prevalece o pensamento concreto, não simbólico. Esta dificuldade de
simbolização faz com que surja o fenômeno do acting-out (SCHNEIDER e
VIEGAS, 2012).
Deste modo, acreditamos que tal falha possa ter ocorrido com Leonardo,
já que não possuímos maiores elementos de sua infância, pela ausência da
mãe nos atendimentos, o que pode resultar nesta dificuldade de simbolização
do menino, colocando em ato o que não pode ser recordado e no corpo o que
não pode ser falado.
Com relação ao modo como Leonardo se descreve, como alguém que
não gosta de falar sobre si e inclusive fazendo a relação entre conter todas
estas vivências traumáticas. Winnicott (2005) pontua que a criança agressiva
pode manter esta agressividade dentro dela, reprimindo-os. Neste autocontrole
excessivo, transparece uma criança incapaz de fazer mal a alguém, no entanto
esta pode estar sujeita a surtos de condutas e sentimentos agressivos, através
de uma explosão de raiva ou uma ação perversa, podendo nem lembrar-se do
que aconteceu.

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Cap.4

O “fato” –

A história se repete?A história se inverte?

Com relação à enurese e à própria situação do abuso sexual ao irmão,


não pude deixar de cogitar a possibilidade de Leonardo ter sido também vitima
de abuso, tendo em vista as diversas referência que assinalam no sentido da
repetição deste ato. Através de pesquisa, Sebold (1987) concluiu que vítimas
do sexo masculino que sofreram abuso sexual durante a infância, tem maior
potencial em se tornarem abusadores, bem como 32% de 106 abusadores
entrevistados relatam ter sofrido algum tipo de trauma sexual na infância.

“A gente tava todo mundo olhando TV, deitados na cama.


Dai chegou um carro na frente de casa e meu padrasto
fugiu pelos fundos. Mas prenderam ele. Ele ficou lá e
quando saiu mataram ele.”

Leonardo

Leonardo não trouxe para os atendimentos nenhuma outra questão que


pudesse confirmar esta hipótese de abuso, apenas a relatada acima. Este
relata que após a prisão do padrasto, a mãe separou-se do mesmo. Outra
hipótese que se anuncia é de talvez a mãe tenha mandado Leonardo morar
com o pai por conta de alguma situação de abuso por parte do padrasto, ou
que esta associação entre o episódio da cama e a prisão do padrasto, seja o
modo como entendeu o ocorrido, já que refere não lembrar os motivos pelos
quais esta prisão ocorreu.

Tal hipótese será mais bem investigada nos percurso terapêutico do


menino e nas entrevistas com a mãe, que possibilitarão integrar as partes da
história do mesmo que ainda não foram trazidas nos atendimentos.

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Marsshal apud Costa el al (2011) em um estudo com adolescentes que


praticaram abusos sexuais, aponta que estes não necessariamente passaram
por estas experiências, embora este seja um fator importante no
desenvolvimento de uma conduta agressiva. Mas aparece na vida destes
adolescentes outros componentes como experiências de maus-tratos,
ambiente familiar agressivo, falta de acolhimento afetivo familiar e experiências
emocionais que desenvolvem baixa auto-estima no adolescente. São
características de desenvolvimento que despertam no adolescente fantasias de
dominação e força sobre o outro como forma de enfrentamento de relações
sociais e afetivas e como estratégia de resolução de problemas.

No entanto, segundo Chagnon apud Costa el al (2011), observa-se que o


abuso sexual também acontece devido a práticas educativas inadequadas e
conflitos com autoridade, não necessariamente caracterizando-se como uma
prática perversa. Estes adolescentes normalmente recebem castigos físicos
como método educativo, reforçando a culpa e impedindo a elaboração.

Estes adolescentes reivindicam continência e limite para a vivência das


experiências desta fase, bem como o conflito entre separar-se da família e
continuar pertencendo a ela (separação dos pais e abandono do corpo e
comportamento infantil). A adolescência é o momento de separação destes pais,
necessitando que estes se experimentem neste lugar, sendo assim, o
impedimento que este tenha outros espaços de socialização e vivências
possibilita a ocorrência de um acting-out, pois já que esta separação não ocorre
por bem, acontece a partir de uma transgressão (COSTA et al, 2011).

Neste sentido, podemos relacionar com as proibições por parte da mãe


de que o menino tivesse outras relações, tais como jogar futebol, sair com os
amigos ou até mesmo ter uma namorada. Por outro lado, esta permitia que
este trabalhasse e cuidasse dos irmãos, assumindo tarefas que também lhe
exigiam responsabilidade e maturidade, mas que de certo modo, serviam ao
funcionamento da família e as necessidades da mãe. A mãe de Leonardo não
permitiu que o menino, na eminência de todas as mudanças características da
adolescência, pudesse se ensaiar em outras formas de existir, bem como
experimentar sua sexualidade.

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Em pesquisa-ação realizada por uma entidade pública e outra privada do


Distrito Federal com adolescentes abusadores, evidencia-se que estes tinham
características semelhantes quanto à organização familiar, tendo proximidade
física e papel de cuidador de crianças mais novas e posição contraditória com
relação a autoridade e poder (COSTA et al, 2011).

Oliver apud Costa el al (2011) enfatiza que os adolescentes agressores


sexuais são invadidos por fantasias sexuais que acabam sendo concretizadas
na medida em que o ambiente proporciona espaço para isto. Este aponta a
dificuldade destes adolescentes de conterem seus impulsos sexuais ou investi-
los em outros alvos já que a situação familiar acaba por potencializar,
oferecendo um meio oportunizador. Este ainda completa que este adolescente
não é capaz de duelar sozinho com seus impulsos e fantasias, necessitando de
um adulto que possa auxiliá-lo neste momento.

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Cap. 5

A procura de um personagem –

Quem sou eu afinal?

“Eu sou de gêmeos, sabe como é, tem duas caras, às


vezes sou mal, mas não quer dizer que eu seja sempre”.

“Lá no abrigo não tem ninguém que presta”.

Leonardo

Logo nos primeiros atendimentos identifico alguns elementos de


dissociação no discurso do menino. Este traz alguns relatos um pouco
desconectados, fragmentados, com dificuldade para lembrar, relacionar e
ordená-los.

Segundo Ferraz (2000) uma das características da perversão é a


clivagem, cisão do ego. A partir desta divisão o ego passaria a funcionar em
dois registros diferentes, sendo uma atitude que se ajusta ao desejo e outra a
realidade. A perversão deste modo pode ser considerada uma patologia do ego,
tal como a psicose.

Leonardo aparece no abrigo como alguém muito adequado, comportado,


prestativo. Inclusive, a coordenação do abrigo, ao procurar o PAAS refere que
consideram importante que ele receba atendimento tendo em vista que no
abrigo ele praticamente “não é notado”. Quando questionamos a respeito do
seu comportamento com outros adolescentes da casa, nos seus

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relacionamentos e com os próprios educadores, estes referem que o menino é


sempre muito cuidadoso com os menores e até mesmo já foi motivo de “piada”
com relação ao modo como se relaciona com as meninas, já que mostra-se
muito diferente dos demais, não concordando com ficar com todas ou
“aproveitar-se” delas.

Segundo Khan apud Ferraz (2000), o comportamento do sujeito com


traços perversos parece ser, aos seus olhos e aos dos outros, uma pessoa
disposta a atender as necessidades dos outros. Surge dai, a ilusão de ter
estabelecido boas relações e o sentimento de aprovação decorrente disto, que
são fundamentais para a manutenção de sua auto-estima, exibindo
aparentemente o “ar de bom moço” .

Leonardo mostra-se resistente para falar sobre sua infância, falando


como se contasse uma história, que não se relaciona a sua vida. Este é um
modo muito semelhante de como a mãe conta sobre os fatos, um discurso sem
afeto. O adolescente por vezes, apesar de falar algo bastante difícil a respeito
de sua vida e dizer o quanto isto foi doloroso, poucas vezes parece estar
realmente afetado pelo que está relatando, o que entendo ser do próprio
mecanismo de defesa utilizado pelo adolescente, tendo em vista as diversas
violências pelas quais passou e a dificuldade em lidar com suas sensações e
afetos.

Conforme já pontuei acima, a partir do que tem surgido no atendimento


do menino acredito que houve a privação dos objetos transicionais e/ou a
perturbação destes fenômenos transicionais, o que segundo Winnicott (2005)
pode resultar na cisão da personalidade. Esta dissociação aparece por
exemplo, quando a criança mente a respeito de algum delito que cometeu, na
verdade ela nega saber do que aconteceu e está declarando que isto é
verdadeiro para ela, sendo que o aspecto do eu que cometeu o delito, não faz
parte da sua personalidade total.

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Cap. 6

O desejo de escrever novos e diferentes

capítulos nesta história –

Eu queria que tivesse sido diferente...

“A vida segue, não posso ficar parado por causa do que


aconteceu.”

“Não preciso lembrar e falar de nada, tenho que


esquecer o que passou”

"Eu quero entrar para o exército, depois para a polícia.


Eu gosto muito de armas."

Leonardo

Nos últimos atendimentos, juntamente com a intensificação das queixas


físicas, este tem se mostrado desmotivado e desanimado. Chegando algumas
vezes atrasado na sessão e faltando a algumas delas, o que não havia ocorrido
até então. Este sempre fala sobre o desejo de morar sozinho, de emancipar-se,
inclusive planejando como seria isto. Em uma das últimas sessões este fala
pela primeira vez, sobre uma possibilidade de configuração diferente de sua
própria família e do desejo de ter uma família. Isto aparece com a adoção de
outro colega do abrigo, em que este imagina como seria ser adotado.

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“Não que eu não goste da minha família, mas seria


legal ter o pai e a mãe, sem esta coisa de separação.
Eu não tenho como ser adotado porque eu já tenho
família, mas acho que seria muito legal. Meu amigo
reclamou que os pais o tratam diferente do irmão, que é
filho biológico. Eu falei que ele tem que se comportar,
para que os pais gostem dele do mesmo modo que do
outro”.

Leonardo

Neste momento, ao ser questionado se somente em casos de adoção é


que alguns filhos podem ser tratados de forma diferente dos outros, Leonardo
não responde, segue falando de como estão seus irmãos. Questiono-o sobre o
motivo pelo qual se lembrou dos irmãos e este diz que apenas queria me
contar como foi a sua semana.

A hipótese de que o tratamento oferecido pela mãe a Leonardo após a


chegada dos outros filhos e do padrasto, bem como a situação de abandono
por que passou após ter engravidado do menino, corroboram apresento na
revisão teórica deste caso. Márcia parece ter tido uma relação de bastante
proximidade e cumplicidade com Leonardo até um dado momento, em que
possivelmente motivada pela "raiva" sentida pelo pai do menino, parece ter
realizado um abandono com este.

Também como já foi pontuado anteriormente, Márcia tem dificuldades


em colocar-se de forma afetuosa com os filhos. Importante ressaltar também o
não-lugar ocupado por este menino, já que em nenhum dos lugares onde
residiu parece sentir-se acolhido, sendo sempre preterido em detrimento de
outras crianças (irmãos por parte da mãe, filha do atual padrasto, irmãos do
pai).

O cuidado e o ambiente estável surgem como base para o


desenvolvimento do self, sendo a vulnerabilidade e instabilidade das relações
objetais causam angústia, desamparo e sentimento de aniquilamento, fazendo
com que o sujeito desenvolva um falso-self e cometa transgressões sociais. O
cuidador suficientemente bom atenderá as necessidades de vir-a-ser do sujeito

22
23

por meio dos processos psíquicos de holding, handling e apresentação de


objetos, oferecendo cuidado (amor), segurança e limites (proteção) (BERGER,
CHAHINE, TINOCO, 2011).

Segundo Winnicott apud Berger, Chahine, Tinoco (2011), não há


possibilidade de o bebê avançar do princípio do prazer para o princípio da
realidade a menos que haja uma mãe suficientemente boa. A mãe
suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades
do bebê, diminuindo gradativamente segundo a capacidade do sujeito.

23
24

Cap. 7

A transferência no atendimento psicológico como

possibilidade de escrever outros modos de (re)

significação-

Tu me ajuda a contar esta história?

"Só tu me entende."

"Eu tenho que te contar um segredo que ninguém sabe."

"Ela sabe o porque eu não quero ir na escola." - para


assistente social do abrigo.

"Eu só falo aqui sobre isto."

Leonardo

A partir do início dos atendimentos de Leonardo observei a necessidade


de manter uma articulação com a rede de serviços que atendia o menino,
visando unificar as ações e pensar de forma integral o atendimento da família.
Leonardo encontra-se em Acolhimento Institucional, onde a mãe era
atendida pela assistente social, quinzenalmente e os irmãos do menino foram
encaminhados para atendimento no CREAS - Centro de Referência
Especializado da Assistência Social, serviço da Secretaria de Assistência,
Cidadania e Inclusão Social do Município.
Sendo assim, passamos a realizar reuniões mensais para discutirmos o
caso e pensar linhas de cuidado para este adolescente e para a família,
incluindo em alguns destes encontros a mãe do menino, com vistas a construir

24
25

com ela o projeto terapêutico da família. A mãe do menino sempre se mostrou


bastante resistente – faltando ou desmarcando as reuniões, não comparecendo
às visitas – ou ainda, tentando isentar-se da responsabilidade com Leonardo,
deste modo pensamos que incluir a mesma nas discussões de que modo
encaminharíamos o caso, poderia ser importante.
Sempre fiz questão de comunicar o menino de todos estes encontros,
explicando-o que eu estaria, a partir do que este trazia nos atendimentos,
pensando no que poderia ser o melhor para ele e me posicionando deste modo
junto aos outros serviços da rede, sempre ressaltando, porém a questão do
sigilo. A maior preocupação desde o início do processo terapêutico sempre
girou em torno da guarda e para onde ele iria se a juíza determinasse sua
saída do abrigo.
Esta sempre foi uma questão bastante abordada, inclusive, a meu ver,
muitas vezes eram deixadas de lado outras questões muito importantes e
talvez anteriores, em detrimento da discussão da guarda e do retorno de
Leonardo para casa da família. Entendo que nesta questão impunham-se
atravessamentos que implicam no entendimento e encaminhamento do caso.
Quando se toma a questão judicial como de maior relevância, por exemplo,
parece que deixamos um pouco de lado a questão terapêutica e singular do
processo, desconsiderando o modo e o ritmo de cada sujeito e cada família.
Acredito que neste caso também pareceu evidente o atravessamento da
Casa de Acolhimento e de todo o funcionamento do Acolhimento Institucional.
Segundo Art. 1º da Sessão I, do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Toda criança ou adolescente que estiver


inserido em programa de acolhimento familiar
ou institucional terá sua situação reavaliada, no
máximo, a cada 6 (seis) meses, devendo a
autoridade judiciária competente, com base em
relatório elaborado por equipe interprofissional
ou multidisciplinar, decidir de forma
fundamentada pela possibilidade de
reintegração familiar ou colocação em família
substituta […]

BRASIL, 2000
Deste modo, a instituição colocada fundamenta-se neste artigo para
pontuar o retorno de Leonardo com maior brevidade possível ao convívio

25
26

familiar e comunitário, também previstos neste mesmo estatuto. No entanto,


nestas discussões do caso, apesar de entender a importância do retorno de
Leonardo para o convívio da família, buscou-se fundamentar a necessidade
de trabalhar melhor a família e o próprio adolescente, visando não expor
novamente o adolescente e nem mesmo os irmãos a uma situação de
violência e negligência por parte da família e da possibilidade de uma
reincidência de Leonardo.

Segundo Winnicott (2005), quando o lar não consegue oferecer-se como


suficientemente protetivo e constante é necessário que o ambiente
substitutivo e a própria terapeuta se ofereça deste modo. Sendo assim, é de
extrema importância para o tratamento de Leonardo que possamos oferecer
provimento de cuidados e estabilidade de suprimento ambiental em
acolhimento institucional, com possibilidade de testá-los, tal como foi referido
na questão da agressividade ao ambiente.

Ainda segundo Winnicott (2005), é tarefa do terapeuta envolver-se com


a pulsão inconsciente do pacientes, administrando, tolerando e
compreendendo-o. Também a ligação egóica deve obter apoio do lado do
relacionamento com a terapeuta, este deve orientar-se para tornar o paciente
capaz de completar o seu desenvolvimento emocional, estabelecendo uma
boa capacidade de sentir a realidade de coisas reais, externas e internas e
estabelecendo a integração da personalidade.

Leonardo após um episódio de extremo descontrole no abrigo dirige-se a


assistente social do local e durante alguns minutos fala de modo contínuo
sobre suas angústias, expondo questões a respeito de sua vida, que nunca
antes haviam sido faladas neste local. Depois disto, pede que esta fale
comigo, pois "eu saberia quais os motivos pelos quais este não queria ir para
a escola" (sic).

Esta funcionária do abrigo me procura, contando-me o ocorrido.


Leonardo em nenhum momento me falou que não gostaria de ir à escola ou
me disse algum motivo pelo qual não gostaria de ir, eu apenas sabia que em
alguns dias este não conseguia ir à escola por estar sentindo-se indisposto e
com dores, como já relatei anteriormente. Deste modo entendi este fato como
um pedido de cuidado e responsabilização pelo mesmo, como uma tentativa

26
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de engajar-me na contação desta história. Observo que o menino já está


transferenciado comigo há algum tempo, no entanto, como já pontuei
anteriormente vejo como uma necessidade de testar até que ponto eu poderei
oferecer-me como uma mãe suficientemente boa para ele.

Quando este se envolve em brigas, deixa de ir à escola e passa a


"abandonar" a figura de bom moço, Leonardo testa o ambiente e pede que
estes possam olhar para ele, o que anteriormente não ocorria, já que este
"praticamente não era visto no abrigo". Também provoca estas agressões a
terapeuta quando deixa de vir aos atendimentos e fala da vontade de agredir
quando chega ao setting.

Em uma das faltas de Leonardo, sem que eu me desse conta, liguei para
o abrigo para saber se estava tudo bem e comunicar a falta do menino, o que
é uma prática que não costumo ter. Acredito que a partir destas faltas,
Leonardo vem “testando” a suportabilidade da terapeuta e também, até que
ponto, pode confiar em mim, tendo em vista que tem trazido mais elementos a
respeito de sua vida e da situação do abuso. Acredito que observando a
minha reação frente aos seus relatos e principalmente, se como ele acredita
com relação a outras pessoas, não irei "abandoná-lo" quando souber do
ocorrido.

Na medida em que Leonardo observa a disposição da terapeuta para


ouvi-lo e implicar-se no seu cuidado, este se sente mais autorizado a
expressar de fato as suas angústias, medos e desejos. Nos últimos
atendimentos Leonardo tem conseguido começar a falar mais sobre o que
ocorreu entre ele e o irmão, sempre demonstrando não entender - ou até
mesmo não lembrar – como foi que aconteceu, bem como o demonstrar
dificuldade em ter que se haver com o ocorrido e com a culpa e questões
morais implicadas neste ato.

Tem conseguido, ainda timidamente, falar sobre sua sexualidade, sobre


sentir falta das amizades anteriores, da escola e de sua casa. Apesar de negar
veementemente a possibilidade de voltar para a casa da mãe, está mais ciente
de que se deparará com situações adversas em outros espaços e que terá que
pensar como lidar com estas situações.

27
28

No último mês, após o adolescente completar 16 anos, este não tem


comparecido mais aos atendimentos. Leonardo vinha pontuando a mudança
que se daria quando completasse esta idade, inclusive considerando a
possibilidade de emancipação e o entendimento de que se tornaria adulto,
podendo trabalhar. Deste modo, tenho trabalhado com a possibilidade de que
seja necessário retomar o contrato terapêutico do “mundo adulto” com o
paciente e tenho ficado atenta para interpretar estas faltas, podendo se tratar
de um “jogo” do menino, resistência por ter falado sobre algumas questões
que antes não foram trazidas ou até mesmo o movimento de testar a minha
constância neste lugar de terapeuta.

Conforme pontuo durante todo o texto, o caso me direciona para alguns


aspectos de perversão. Segundo Ferraz (2000) a maior questão no trabalho
com pacientes que apresentam esta estruturação é a disposição ética para
escutar, considerando o desafio que está colocado quando observamos
práticas a éticas, que visam ferir ou desqualificar o outro, comumente
apresentada nestes sujeitos. A disposição ética para escutar o lado mais
obscuro do perverso é colocada pelo autor como necessária para que
possamos atender estes pacientes e compreender que estas atuações
perversas foram a única forma possível de sobreviver psiquicamente àquela
mesma dor e sofrimento a que foi submetido.

Tenho buscado implicar a mãe no atendimento de Leonardo,


conseguindo realizar um atendimento com a mesma onde pretendia investigar
melhor a sua relação dela com o menino quando criança, tendo em vista toda a
história adversa pela qual o mesmo foi submetido. Neste encontro a mãe
mostrou-se muito fragilizada, culpabilizando-se pelo ocorrido e sentindo-se
pressionada pelos agentes da rede envolvidos no caso.

Esta também está doente e recentemente submeteu-se a uma cirurgia,


além de estar passando pelo momento de inquérito policial referente ao ato
infracional de seu filho. Deste modo, coloquei-me como continente e fiz a
combinação de que esta possa procurar-me quando for possível. Esta não
procurou o PAAS e no último contato que fiz com ela há aproximadamente
duas semanas, afirmou não poder vir ao serviço, pois estava fazendo um curso.

28
29

Posfácio

Eu sigo escutando, contando e escrevendo

histórias...

Encaminhando-me para o último semestre de estágio a sensação é de


que me aproximo do final de um livro. As expectativas aumentam, os anseios
se intensificam e a ansiedade do término se torna mais próxima. Neste
momento, os eixos deste estágio se tornam evidentes, principalmente no que
se refere a ensino-aprendizagem e saúde.

No que se refere a ensino-aprendizagem, vejo-me constantemente


colocando em questão o meu saber e os conhecimentos construídos na
academia acerca da prática clínica e da psicopatologia. Tenho aprendido muito
com a supervisão local, tanto com a supervisora, quanto com os colegas de
supervisão que me auxiliam nas discussões de caso e em muitos momentos se
oferecem para escutar as minhas dúvidas e me auxiliar, principalmente no que
se refere ao atendimento individual. Vejo-me ampliando e qualificando minha
escuta e técnica, tendo em vista que a ênfase que norteia a minha formação é
a Clínica Contemporânea, a partir da psicanálise.

Com relação ao eixo Saúde e sem separá-lo do primeiro, observo que as


minhas intervenções tem se mostrado mais consistentes e sinto-me muito
contente em observar as mudanças e “progressos” nos atendimentos dos
pacientes, como é o caso de Leonardo. Também em outras práticas que tenho
tido no estágio, tais como a participação na construção do Projeto Renascer4,

4
O Projeto Renascer iniciou como uma proposta de parceria para o PAAS dos alunos do Curso de
Administração da UNISINOS que estão cursando uma disciplina de Projeto Social. Visa realizar
intervenção em uma escola da região Leste do Município, com adolescentes, pais e professores,
buscando trabalhar questões referentes ao interesse destes na escola, bem como assuntos pertinentes a
esta fase do desenvolvimento.

29
30

que atualmente configura-se como uma ação na comunidade e vislumbra


angariar recursos para sua continuidade.

Neste semestre segui participando do Núcleo de Acolhimento, conforme


era meu desejo, sendo que este se configurou de outro modo a partir das
discussões ocorridas no semestre passado, transformando o processo de
cadastro e grupos de acolhimento em Acolhimento Permanente. Esta primeira
experiência de Acolhimento Permanente foi coordenada por mim e por outra
colega da nutrição, o que me deixou muito satisfeita, principalmente por estar
participando deste período de mudanças da instituição.

Com relação ao eixo Relações de Trabalho, ainda sigo participando do


grupo Tecendo Redes, que observo como um espaço instituinte já que muitas
mudanças e reflexões acerca do funcionamento do local e das relações de
trabalho são pensadas neste espaço.

Para o próximo semestre gostaria de estar coordenando um grupo, mas


também tenho interesse em me inserir no Núcleo de Práticas Jurídicas, tendo
em vista meu interesse na área e estar atendendo dois pacientes que estão
referenciados com o judiciário.

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Referências bibliográficas

BERGER Simone S.; CHAHINE, Marien Abou; TINOCO, Denise H. (org).


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em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acessado em:
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Traduzido ao português por Edileusa da Rocha. Revisão de Eva Faleiros e

31
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SCHNEIDER, Michele, VIEGAS, Patrícia. A infância de Alice e suas


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WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de


Janeiro: Imago, 2000.

_________________. Privação e Deliquência. Martins Fontes: São Paulo,


2005.

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Continua...

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