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Apresentação
PARTE I – Teoria dos Regimes de Acumulação
1 – História do Capitalismo e Regimes de Acumulação
PARTE II – O Regime de Acumulação Integral
1 – O Significado Histórico do Toyotismo
A organização do trabalho no capitalismo: Questão de método
A produção capitalista de mercadorias
Processo de trabalho e processo de valorização
Desenvolvimento capitalista e formas de organização do trabalho
Toyotismo e acumulação integral
2 – Estado Neoliberal e Acumulação Integral
3 – Neoimperialismo, Relações Internacionais e Acumulação Integral
A acumulação integral e a nova dinâmica do capitalismo mundial
A dinâmica do Neoimperialismo
A especificidade do imperialismo norte-americano
Considerações finais
PARTE III – Acumulação Integral e Ideologia
1 – Crítica à Ideologia da Globalização
2 – Acumulação Integral e Pós-Modernismo
Pós-Modernismo: Armadilha ideológica
Regime de acumulação e mudança cultural
3 – A Crise da Sociedade do Trabalho
Claus Offe ou os descaminhos da sociologia contemporânea
Habermas: O racionalismo utópico-abstrato
Uma crise da sociedade do trabalho?
4 – A Ideologia do Trabalho Imaterial
A Ideologia do Trabalho Imaterial
Crítica da ideologia do trabalho imaterial
Negrismo ou o reino das abstrações metafísicas
Daniel Bell: Precursor de Antônio Negri
Capitalismo contemporâneo, acumulação integral e trabalho intelectual
PARTE IV – Consequências da Acumulação Integral
1 – Exclusão Social ou Lumpemproletarização?
2 – A Nova Dinâmica da Luta de Classes
Luta cultural: Ofensiva capitalista e resistência proletária
Estado e amortecimento da luta de classes
A luta proletária hoje
Referências Bibliográficas
Nildo Viana
O Capitalismo na era
da Acumulação Integral
Edição Digital
Aparecida-SP
2010
DIRETOR EDITORIAL
Marcelo C. Araújo
EDITORES
Avelino Grassi
Márcio F. dos Anjos
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Ana Lúcia de Castro Leite
COPIDESQUE
Leila Cristina Dinis Fernandes
REVISÃO
Bruna Marzullo
Eliana Maria Barreto Ferreira
DIAGRAMAÇÃO
Simone Godoy
CAPA
Alfredo Castillo
* Revisão do texto conforme o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, em vigor a
partir de 1º de janeiro de 2009.
Viana, Nildo
O capitalismo na era da acumulação integral / Nildo Viana. – Aparecida, SP: Editora Idéias &
Letras, 2009.
Bibliografia.
ISBN 978-85-7698-036-0 (impresso)
ISBN 978-85-7698-080-3 (e-book)
1. Capitalismo
2. Capitalismo – História I. Título.
Palavras-chave:
1. Capitalismo: História 330.12209
Todos os direitos reservados à EDITORA Idéias & Letras - 2010
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Apresentação
O capitalismo possui uma longa história. Em épocas passadas, os indivíduos
pensavam que a sua sociedade era a única forma de existência social possível. Aristóteles já
dizia que “a escravidão será eterna”. O mesmo muitos disseram sobre as relações sociais nas
quais nasceram e viveram. Perceber a historicidade das sociedades é algo muito difícil. Da
mesma forma, perceber as mudanças que ocorrem na história de uma mesma sociedade é
bastante difícil. A sociedade capitalista passou por diversas fases, e cada uma delas os
indivíduos – e isto inclui cientistas, pesquisadores, militantes políticos – julgaram ser a
definitiva ou a final.
Para alguns, a atual fase do capitalismo marca o fim da história, tal como para
Fukuyama e muitos outros; para outros, é seu “estágio final”. No entanto, a maioria julga que
esta fase é eterna, imutável. Se uma fase de uma determinada sociedade é tida como eterna, a
visão da historicidade de uma sociedade é muito mais difícil de vir à tona na consciência. O
presente livro visa discutir justamente a historicidade da sociedade capitalista e, portanto, sua
não-eternidade. A sociedade capitalista é histórica e transitória, tal como foram a sociedade
escravista, a sociedade feudal, entre outras. Por conseguinte, o capitalismo não é eterno. Além
disso, o capitalismo atravessa diversas fases de desenvolvimento, no qual sua reprodução fica
cada vez mais difícil. O foco de análise será justamente nesta dupla historicidade do
capitalismo: a historicidade da sociedade moderna e a historicidade de suas formas.
Para realizar esta análise do desenvolvimento histórico do capitalismo e seu atual
estágio de desenvolvimento, é necessário ter uma teoria como ponto de partida. A teoria do
modo de produção capitalista elaborada por Marx é o fio condutor de qualquer análise que
não queira perder-se em equívocos e ilusões. A essência do modo de produção capitalista está
exposta em O Capital, e ninguém pode, neste aspecto, ir além do que está lá. O
desenvolvimento histórico do capitalismo mostra a permanência desta essência e a mutação
de suas formas. Denominamos as formas assumidas pelo capitalismo por regime de
acumulação. O objetivo básico que nos propomos é compreender o atual regime de
acumulação, chave para a compreensão do capitalismo contemporâneo.
O regime de acumulação integral aprofunda e radicaliza vários elementos do regime
de acumulação anterior. Além disso, não somente produz mudanças nos aspectos básicos e
definidores de um regime de acumulação (processo de valorização, formação estatal e
exploração internacional) como também provoca mudanças culturais e sociais em geral. Neste
amplo quadro, falta um estudo de conjunto sobre o novo regime de acumulação. A partir dos
anos 1970 começa a se esboçar a emergência do regime de acumulação integral, mas ele
emerge efetivamente a partir dos anos 1980 e vai se expandindo em nível mundial.
A grande questão é conseguir perceber este processo de mudança no regime de
acumulação e possuir elementos teóricos e metodológicos para realizar a análise. O método
dialético e a teoria do capitalismo elaborada por Marx, como já dissemos, são o fio condutor
para tornar visíveis estas mudanças aparentemente invisíveis, pelo menos em suas
determinações. No entanto, é preciso, partindo deste fio condutor, avançar no sentido de
compreender a dinâmica do modo de produção capitalista e suas fases de desenvolvimento.
Assim, é necessária uma teoria dos regimes de acumulação. Essa teoria tem o papel de
apresentar não somente o conceito de regime de acumulação, mas também o processo de
passagem e mudança de um regime de acumulação para outro, os conceitos derivados e suas
implicações no conjunto das relações sociais. A este problema dedicamos a primeira parte da
presente obra.
Uma vez exposta a teoria dos regimes de acumulação, o passo seguinte é analisar as
características e os elementos constituintes do atual regime de acumulação. A segunda parte
deste livro aborda justamente este aspecto, em três capítulos que mostram as bases do regime
de acumulação integral: o toyotismo, o neoliberalismo e o neoimperialismo. Estes três
elementos são partes constituintes, constitutivas e complementares do regime de acumulação
integral.
Além de analisar as bases do regime de acumulação integral, é preciso ver as
mutações ideológicas que ocorrem e como surgem novas ideologias para legitimar, justificar e
naturalizar o novo regime de acumulação. A diversidade de ideologias que cumprem este
papel inviabiliza abordar todas, e por isso a terceira parte deste livro se limita a abordar
algumas delas. Algumas ideologias (tal como a da globalização, da crise da sociedade do
trabalho, do trabalho imaterial e a do chamado “pós-modernismo”) foram selecionadas para
serem abordadas e mostrarem sua íntima relação com o novo regime de acumulação. Isto
significa dizer que elas são tão históricas e transitórias quanto a realidade que expressam e da
qual são produto.
Na última parte do presente livro, discutiremos algumas das consequências da
implantação do regime de acumulação integral. A lumpemproletarização e a ideologia que
dificulta a sua percepção, a ideologia da exclusão social, são abordadas em um capítulo, e a
nova dinâmica da luta de classes, que envolve uma gama de questões (culturais, políticas,
sociais), em outro. Assim, o último capítulo visa mostrar que existe uma radicalização das
lutas sociais no regime de acumulação integral, mas que isso não significa uma crise do
capitalismo, como alguns supõem (desde Lênin, em 1916, quando escreveu O Imperialismo,
Fase Superior do Capitalismo, tornou-se mania na pseudoesquerda achar que sempre estamos
diante da “crise final do capitalismo”). Trata-se de uma fase de lutas mais radicais
comparadas com a fase anterior, do antigo regime de acumulação.
Mas isto não significa, ainda, um processo de questionamento e ultrapassagem do
capitalismo, embora manifeste a fraqueza deste e amplie tal possibilidade. A cada regime de
acumulação, a reprodução do capital fica mais difícil, e o atual regime de acumulação mostra
que a manutenção do capitalismo contemporâneo pressupõe o aumento geral da exploração e
dos conflitos. A crise deste regime de acumulação, o que ainda não ocorreu, possibilita uma
nova onda de lutas sociais tais como as que ocorreram no início do século 20. Porém, tais
tendências sempre são acompanhadas de contratendências, e a transformação social ou a
barbárie são possibilidades existentes, e são as lutas sociais que definirão qual será o destino
da humanidade. Tornar consciente esta realidade é um passo importante para que as pessoas
não decidam cegamente o seu destino e evitem a barbárie. O presente livro pretende, assim,
ser uma contribuição para evitar a cegueira e o caminho rumo à barbárie.
PARTE I – Teoria dos Regimes de
Acumulação
1 – História do Capitalismo e Regimes de Acumulação
Qualquer análise social do trabalho deve levar em consideração a existência de uma
grande diversidade de formas de organização social. Em cada sociedade se observam
fenômenos diferentes e singulares, cuja explicação remete a um método que não se pretenda
“universal” e “invariável”. Posto isto, podemos dizer que os apontamentos sobre o estudo da
organização do trabalho aqui apresentados se referem tão-somente ao processo de trabalho
numa sociedade capitalista9.
Qual é o método mais apropriado para se estudar a organização capitalista do
trabalho? A nosso ver, é o método dialético. Com este método busca-se descobrir as
determinações de um fenômeno, bem como sua inserção na totalidade das relações sociais.
Portanto, o nosso ponto de partida será a busca em descobrir as determinações da
organização do trabalho e como ela se insere na totalidade das relações sociais.
Segundo Marx, é o processo de produção e reprodução da vida material que
determina o conjunto das relações sociais. Este processo de produção é marcado por ser uma
determinada forma de organização do trabalho. Logo, percebemos que a organização do
trabalho é o aspecto determinante das demais relações sociais. Estas, porém, possuem uma
autonomia relativa e, por sua vez, influenciam a organização do trabalho. Nas sociedades
divididas em classes sociais, a organização do trabalho se manifesta como organização
marcada pelo conflito. O conteúdo da organização do trabalho é caracterizado pelas relações
instauradas entre as classes sociais envolvidas em tal organização.
Assim, podemos tomar como ponto de partida para o estudo da organização do
trabalho as relações de classes no processo de produção. No caso concreto da sociedade
capitalista, a organização do trabalho se manifesta como uma relação entre a classe
capitalista e a classe operária. Esta é a determinação fundamental do processo de trabalho.
Porém, resta especificar como ocorre esta relação no processo de trabalho e o que
ele significa. O processo de trabalho numa sociedade capitalista é um processo de valorização.
Essa afirmação será mais bem fundamentada mais adiante. Tomamos aqui tal afirmação como
um “dado” que mais adiante será explicado.
Este processo de valorização se caracteriza por ser conflituoso, ou seja, há uma luta
entre a classe capitalista, por um lado, e o proletariado, por outro. A luta se dá
fundamentalmente em torno do tempo do trabalho. Isto se justifica pelo fato de que, tal como
Marx havia colocado, o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para sua produção. Daí a classe capitalista querer exercer um controle
minucioso sobre o tempo de trabalho. Isto se revela não só na questão da jornada de trabalho,
mas também na luta para diminuir o “tempo morto” levada a cabo pela classe capitalista e
sistematizada como pensamento através da obra de F. W. Taylor. Se este é o objetivo da classe
capitalista, o do proletariado é, pelo contrário, diminuir o tempo de trabalho. Não se trata, na
maioria dos casos, de uma ação consciente visando diminuir a extração de mais-valor. Trata-se
de uma resistência provocada geralmente pelo caráter alienado do trabalho, pelo desgaste do
processo de trabalho, ou seja, pelo caráter negativo que ele possui para os trabalhadores,
devido ao fato de ser um trabalho alienado10.
Aí se encontra a determinação fundamental da organização do trabalho na sociedade
capitalista. Mas existem outras determinações que formam a totalidade dos aspectos que
explicam as formas de organização do trabalho. Existem duas outras determinações que
assumem grande importância explicativa em relação a este fenômeno. Quais são elas?
Uma se encontra no fato de que a produção de mais-valor ocorre no processo de
produção, mas sua realização ocorre no processo de distribuição. A realização e a repartição
do mais-valor assumem grande importância explicativa do fenômeno da organização do
trabalho, pois aí está presente um segundo nível da luta de classes: a luta em torno da
distribuição do que é produzido. A classe capitalista busca aumentar o seu lucro, e a classe
operária, o seu salário, assim como as demais classes sociais buscam para si uma maior parte
da renda nacional. O problema da repartição de mais-valor se desenvolve em escala nacional e
internacional, proporcionando, também, a influência das relações internacionais sobre o
processo de trabalho.
O aspecto mais importante aqui se encontra na relação entre lucro, salário e
consumo, pois a classe operária busca aumentar o salário real, e isto significa uma diminuição
no lucro do capitalista. Entretanto, o preço da força de trabalho, o salário, não é definido no
processo de produção, e sim de distribuição (bem como no processo institucional através da
intervenção do estado e dos sindicatos, entre outras instituições), ou seja, no mercado. Além
disso, o mais-valor só se realiza com a venda da mercadoria no mercado, o que significa que é
necessário um mercado consumidor. Acontece que o mercado consumidor pode influenciar no
processo de produção ao se expandir ou retrair, e o mesmo ocorre com a questão do salário,
pois seu aumento pode provocar estratégias compensadoras por parte da classe capitalista
visando recuperar as perdas com aumentos de salários reais. Também as relações de
exploração em nível internacional criam necessidades nacionais específicas.
Por fim, existe uma terceira determinação que escapa das esferas da produção e da
distribuição e se localiza nas formas de regularização das relações sociais (“superestrutura”).
É aí que se dá a organização institucional de classes e frações de classes na defesa de seus
interesses e se definem o tamanho da jornada de trabalho, as ideologias sobre a produção e
distribuição, as pressões em torno da questão salarial. Enfim, é onde há ação do estado, ação
sindical, movimentos sociais e políticos, produção de ideologias e da legislação etc.
Portanto, existem várias determinações na organização do trabalho. Mas essa
constatação em si é insuficiente. É necessário saber como essas determinações se articulam.
Em primeiro lugar, podemos dizer que a luta de classes na produção é a determinação
fundamental da organização capitalista do trabalho. Isto ocorre devido ao fato de que é no
próprio processo de trabalho, simultaneamente processo de valorização, que se dá a produção
de mais-valor. Desta forma, o trabalhador, ao resistir em utilizar toda sua capacidade de
trabalho, tende a diminuir a extração de mais-valor. É por isso que surge uma luta nas
unidades de produção, em que o capitalista busca controlar a força de trabalho para que ela
não desperdice tempo e, por conseguinte, faça decair o seu lucro.
Entretanto, a produção de mercadorias só tem sentido com a possibilidade de sua
venda no mercado. O mercado consumidor precisa absorver o conjunto de mercadorias
produzidas. Mas isto nem sempre ocorre, e a solução que a classe capitalista busca para esse
problema está na constante ampliação do mercado consumidor. Isto, contudo, não é feito sem
critérios. O capitalista tem de levar em consideração as preferências, necessidades etc. do
mercado consumidor. A mercadoria, em primeiro lugar, tem de possuir não só um valor de
troca, mas também um valor de uso. Em segundo lugar, deve ser desejada pelos
consumidores. É por isso que a partir de certo estágio de desenvolvimento capitalista se inicia
um conjunto de iniciativas visando criar necessidades fabricadas. Tais iniciativas se encontram
na publicidade, por exemplo. Se a publicidade de um determinado produto surte um efeito de
grandes proporções, isto terá ressonâncias no processo de produção, que irá intensificar a
produção da mercadoria em questão. Portanto, existe uma ação de retorno da distribuição
sobre a produção. O mesmo ocorre na obsolescência planejada das mercadorias e no caso dos
produtos descartáveis. Porém, esta ação do mercado sobre a produção é determinada pela
própria produção, que incentiva através da publicidade, entre outros meios, o consumo e este,
uma vez desencadeado, reforça o processo de produção.
A luta salarial também se reflete no processo de produção, pois o aumento real de
salário diminui o lucro do capitalista e faz com que este busque compensar esta perda com um
aumento de extração de mais-valor. Isto, por sua vez, faz retornar a luta operária visando um
novo aumento salarial. Desta forma, existe uma constante luta em torno do lucro e do salário,
embora haja quase sempre o predomínio dos interesses da classe capitalista. As relações de
exploração entre países capitalistas também influenciam o processo de trabalho, pois nos
países capitalistas imperialistas existe um contexto de extração de mais-valor, mercado de
consumo, específico, bem como articulado com um contexto tecnológico próprio. Nos países
capitalistas subordinados, por sua vez, a situação possui diferenças, e isto se reflete no
processo de trabalho.
A terceira determinação do processo de trabalho é a que se refere aos espaços
jurídicos, institucionais, ideológicos, ou seja, ao mundo das formas de regularização. A
legislação trabalhista interfere sobre o processo de produção, por exemplo, ao delimitar a
jornada de trabalho, bem como a ação sindical, que pode reivindicar a diminuição desta. A
cultura e as ideologias também interferem na ação das classes sociais no processo de
produção, sendo que a hegemonia da classe dominante tende a amortecer os conflitos no
processo de trabalho, e a penetração das ideias socialistas, por exemplo, tende a radicalizá-
los. Além destas determinações existem outras, tais como a especificidade cultural e política
de cada país, as relações internacionais etc., embora sejam menos influentes que as acima
apresentadas.
Ocorre, porém, que estas determinações são rearticuladas em cada período histórico
concreto, e isto significa que não se pode elaborar um modelo abstrato que sirva de
generalização para todos os períodos. Neste sentido, a reflexão sobre o método de estudo da
organização do trabalho na sociedade capitalista deve limitar-se a estes apontamentos.
Partindo deste referencial, iremos a partir de agora analisar o desenvolvimento da
organização da produção capitalista e daí analisar a emergência do toyotismo enquanto
fenômeno histórico contemporâneo e buscar explicá-lo.
A produção capitalista é uma produção de mercadorias, ou seja, voltada para a
criação de valores de troca, que são produtos comercializáveis. As mercadorias são valores de
uso portadores de valores de troca, ou seja, elas possuem uma utilidade e é por isso que são
trocadas. No entanto, não são produzidas, na sociedade capitalista, por serem úteis, e sim
porque são portadoras de valor de troca. Assim, as mercadorias são produtos do trabalho
humano que são portadoras de valor de uso e valor de troca11.
No capitalismo, ao contrário dos modos de produção pré-capitalistas, cria-se uma
separação entre quem produz e quem consome o que foi produzido. De um lado está o
produtor e de outro o consumidor. Sem dúvida, o produtor também é um consumidor.
Contudo, ele não consome o que ele mesmo produz, e sim o que outro produtor produziu e que
ele nem sequer conhece, pois compra tal meio de consumo no mercado.
As unidades de produção, no capitalismo, produzem mercadorias para vendê-las no
mercado. A própria força de trabalho do trabalhador se torna uma mercadoria12. O
trabalhador a vende no mercado de trabalho para um capitalista. Desta forma, percebemos
que o modo de produção capitalista é um modo de produção de mercadorias. Ocorre, porém,
que é um modo de produção de mercadorias específico. Sua especificidade se encontra no fato
de que a mercantilização se generaliza e atinge até mesmo a força de trabalho, que se torna
ela mesma uma mercadoria. Isto significa a instauração do trabalho assalariado, sendo que a
mercadoria força de trabalho recebe por seu uso um salário, que é o seu preço.
Para descobrirmos como são as relações de trabalho neste tipo de sociedade,
precisamos inicialmente saber como é determinado o valor de uma mercadoria. Nós todos
sabemos que as mercadorias não se reproduzem sozinhas e que são produtos do trabalho
humano. Sabemos também que uma mercadoria deve ser vendida por um valor superior ao
gasto para produzi-la, pois, caso contrário, ninguém iria produzir mercadorias.
Quais são os gastos existentes na produção de mercadorias? O capitalista possui dois
tipos de gastos: os referentes aos meios de produção (máquinas, ferramentas, matérias-
primas, instalações etc.) e a força de trabalho (o conjunto de trabalhadores empregados). Os
meios de produção, entretanto, não acrescentam valor às mercadorias. Se o capitalista
quisesse vender as matérias-primas tais como as comprou, ou seja, sem elas serem
trabalhadas (ou seja, transformadas, pelo trabalho, em mercadorias), não conseguiria nenhum
lucro, nenhum valor a mais. O mesmo ocorre com as máquinas, instalações etc.
Daí se conclui que estes meios de produção apenas repassam o seu valor às
mercadorias. Entretanto, o capitalista só realiza a produção visando o lucro, ou seja, visando
receber mais do que gastou. Por isso, ele precisa encontrar algo que não só repassa o seu
valor à mercadoria como lhe acrescenta mais valor. Este “algo” só pode ser o trabalho.
Segundo Latouche,
A mercadoria que cria mais valor do que custa efetivamente existe, mas não é fornecida pela
natureza. Ela não existe em si e para si, como as ideias hegelianas. Embora sua necessidade se baseie na
lógica da mercadoria e embora essa mercadoria só exista em condições históricas bem definidas. Essa
mercadoria é a força de trabalho (Latouche, 1977, p. 98).
Os gastos do capitalista com o conjunto de trabalhadores empregados é o salário.
Mas o salário não é equivalente ao valor acrescentado à mercadoria pelo trabalhador. É o
trabalho que acrescenta valor à mercadoria. O valor de uma mercadoria é determinado pelo
tempo de trabalho social médio gasto para produzi-la. Ocorre, porém, que o capitalista extrai
do trabalhador um mais-trabalho, ou seja, o trabalhador trabalha o período suficiente para
repor os gastos do capitalista com o seu salário e ainda trabalha um período que produz um
mais-valor que é apropriado pelo capitalista.
Se um trabalhador é vagaroso e gasta muito tempo na produção de uma mercadoria,
isto não significa que ela custará mais caro, pois o que determina seu valor é o trabalho social
médio. Isto quer dizer que outros trabalhadores, em outras fábricas, estão produzindo a
mesma mercadoria em tempo mais rápido, e é o tempo social médio que determina o valor da
mercadoria, e, portanto, é esta média que irá determinar o valor da mercadoria. Segundo
Marx,
Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma
propriedade, que é a de serem produtos do trabalho. (...) Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do
trabalho, desaparecem também, portanto, as diferentes formas concretas desses trabalhos, que deixam de
diferenciar-se um do outro para reduzir-se em sua totalidade a igual trabalho humano, a trabalho humano
abstrato (Marx, 1988a, p. 47).
É por isso que o valor de uma mercadoria é determinado pelo tempo de trabalho
socialmente necessário para produzi-la, isto é, quanto tempo, sob condições normais de
trabalho, os trabalhadores demoram em média para produzi-la. Por conseguinte, o valor de
uma mercadoria é determinado pelo trabalho incorporado nela, e este é medido pelo tempo de
trabalho social médio despendido na sua produção.
Este trabalho incorporado (materializado) na mercadoria é tanto o trabalho passado
(que foi utilizado na produção, transporte etc. dos meios de produção) quanto o trabalho
presente (a força de trabalho em atividade, ou seja, a transformação realizada pelos
trabalhadores). Por conseguinte, o que se chama custos de produção é, na verdade, o trabalho
anteriormente incorporado nas mercadorias que servem de meios de produção. E o valor da
mercadoria é a soma deste trabalho anterior com o trabalho acrescentado pela força de
trabalho em sua atividade na sua produção.
O capitalista explora um conjunto de trabalhadores e assim extrai o lucro. Os seus
gastos são de dois tipos: gastos com os meios de produção (investimentos) e gastos com a
força de trabalho (salários). Com a venda da mercadoria ele adquire os recursos necessários
para suprir seus gastos e ainda, devido à exploração do trabalhador, para retirar seu lucro.
O que ele faz com o lucro? O capitalista (hoje, na verdade, a maioria das empresas
capitalistas possui mais de um dono e geralmente se organiza como sociedade por ações)
utiliza uma pequena parte do seu lucro para gastos pessoais (meios de consumo, pagamento
de empregados domésticos, despesas pessoais e familiares diversas etc.) e a maior parte ele
reinveste na produção, comprando uma quantidade maior de meios de produção e
contratando mais trabalhadores assalariados. O capitalista é constrangido a investir cada vez
mais na produção e também a aumentar o seu lucro (que é equivalente à taxa de exploração
dos trabalhadores) cada vez mais para manter um investimento crescente na produção.
Aqui cabe a pergunta: qual é a necessidade de investimentos crescentes na
produção? O que faz com que o capitalista seja impelido a aumentar cada vez mais o processo
de reprodução ampliada de capital? A resposta se encontra na competição existente entre os
capitais individuais, ou seja, entre as empresas capitalistas particulares.
Esta competição é provocada pela disputa, entre as empresas capitalistas, pelo
mercado consumidor. A realização do mais-valor ocorre com a venda da mercadoria no
mercado. A produção de mais-valor é realizada no processo de trabalho, mas ela só se
concretiza quando a mercadoria é vendida, pois é neste momento que o capitalista recebe o
dinheiro com o qual irá pagar os salários e os meios de produção e que lhe proporcionará um
valor a mais, o lucro. Para uma empresa capitalista sobreviver ela necessita vender suas
mercadorias. Outras empresas, porém, produzem a mesma mercadoria e também precisam
vendê-la. Assim, cria-se uma disputa pelo mercado consumidor.
Essa disputa constrange as empresas capitalistas a reinvestirem na produção, o que
provoca a ampliação da produção, o desenvolvimento tecnológico, o aumento da taxa de
exploração etc. Este processo de acumulação capitalista produz a concentração e
centralização do capital. As empresas que fracassam na concorrência se extinguem e deixam o
mercado consumidor nas mãos de poucas empresas. Surge, nesta fase histórica, o capitalismo
monopolista (o nome mais correto é oligopolista – quando poucas empresas dominam o
mercado –, embora a palavra monopolista seja mais utilizada).
Portanto, a partir destes elementos, podemos desenvolver uma análise mais ampla
do desenvolvimento das formas de organização do trabalho, em especial do toyotismo. Para
tanto, só nos resta aprofundar a questão da relação entre processo de trabalho / processo de
valorização que realizaremos na próxima seção.
Como Marx analisava o processo de trabalho e o processo de valorização? Para
Marx, o processo de trabalho é um processo de mediação entre o ser humano e a natureza. É
através do trabalho que o ser humano media e regula sua relação com a natureza. Isto ocorre
em todas as épocas e em todos os lugares. O processo de trabalho é, assim, um conceito
universal. Entretanto, ele não se manifesta da mesma forma em todas as épocas e em todos os
lugares. Em cada modo de produção específico existe uma forma específica de manifestação
do processo de trabalho.
O processo de valorização é a forma específica sob a qual o processo de trabalho se
manifesta no modo de produção capitalista. Isto quer dizer que o processo de trabalho, na
sociedade capitalista, é processo de valorização. Segundo Marx:
Como unidade do processo de trabalho e processo de formação do valor, o processo de produção é
processo de produção de mercadorias; como unidade do processo de trabalho e processo de valorização, é ele
processo de produção capitalista, forma capitalista da produção de mercadorias (Marx, 1988a, p. 155).
Se processo de trabalho e processo de valorização são a mesma coisa, então o foco
essencial da análise deve recair sobre este ponto. Pode-se argumentar, sem dúvida, que o
processo de valorização só começa após o processo de trabalho ter reposto o valor da força de
trabalho e o valor dos meios de produção.
Para realizar esta análise do processo de trabalho, ele teria de ser decomposto em:
a) tempo de trabalho gasto na reposição do valor da força de trabalho; b) tempo de trabalho
gasto na reposição do valor dos meios de produção; e c) tempo de trabalho que produz mais-
valor. Esta decomposição poderia basear-se num período de trabalho de um mês ou um dia.
Tomando um dia como o período que serve para medir o tempo de trabalho decomposto,
poderíamos, hipoteticamente, afirmar que o trabalhador gasta, numa jornada de trabalho de
oito horas, cerca de duas horas para repor o valor de sua força de trabalho, cerca de duas
horas para repor o valor dos meios de produção e cerca de quatro horas acrescentando valor
às mercadorias.
Porém, esta análise se revela equivocada, pois processo de trabalho e processo de
valorização são uma única e mesma coisa. Apenas na imaginação se poderiam decompor os
tempos de trabalho, e isto pode ser feito para se calcular os gastos, o lucro, a taxa de mais-
valor etc., mas, na realidade, todo tempo de trabalho significa produção de mais-valor. O
trabalhador, ao produzir uma mercadoria, está, simultaneamente, produzindo mais-valor e
repassando valor. Desta forma, produção de mais-valor e reposição do valor ocorrem
simultaneamente. Tal como colocou Marx, o trabalhador não trabalha duas vezes: uma para
agregar valor, outra para conservar o valor anterior. Segundo ele,
Antes, pelo contrário, pelo mero acréscimo de novo valor conserva o valor antigo [e acrescenta] no
mesmo instante, o trabalho, em uma condição, tem que gerar valor e em outra condição deve conservar ou
transferir valor (Marx, 1988a, p. 157).
O valor da força de trabalho é correspondente a um padrão historicamente definido
de necessidades do trabalhador, e isto quer dizer que ele não é definido no próprio processo
de produção, e sim no processo de repartição do mais-valor, em que o capitalista deve levar
em consideração o valor dos meios necessários para a reprodução da força de trabalho, sendo
que o que é considerado “necessário” varia de acordo com a época e o lugar e também com a
pressão da classe trabalhadora.
O valor dos meios de produção é expresso no quantum em dinheiro que o capitalista
cede para adquiri-los antes de usá-los no processo de produção. Isto quer dizer que, antes
deste, já se sabe qual é o seu valor. Ocorre, porém, que o capitalista só recupera este valor
investido, assim como passa a ter acesso ao valor que será despendido com a força de
trabalho, com a venda da mercadoria no mercado. Juntamente com esta recuperação, ocorre a
apropriação do mais-valor produzido.
Ao produzir a mercadoria, ou seja, mais-valor, a força de trabalho repõe,
simultaneamente, o valor dos meios de produção e produz o seu próprio valor. Neste sentido,
não há como decompor o tempo de trabalho no processo de produção, e por isso o capitalista
deve exercer um controle sobre o tempo total de produção, e não apenas ao tempo reservado
à produção de mais-valor.
Ao reconhecer que o processo de trabalho é simultaneamente processo de
valorização, então se torna impossível separar a análise do processo de trabalho da análise do
processo de valorização e, por conseguinte, da luta de classes na produção. A luta de classes
na produção gira em torno do mais-valor, em que a classe capitalista busca aumentar a
extração do mais-valor, e a classe operária busca reduzir esta extração13.
A classe capitalista busca extrair cada vez mais lucro dos trabalhadores. Na época
da revolução industrial, a jornada de trabalho chegava até 16 horas diárias. A luta dos
trabalhadores diminuiu esta jornada para 10 e posteriormente para 8 horas diárias. Se ocorre
uma diminuição da jornada de trabalho, então cai a taxa de lucro (exploração). A produção de
mais-valor absoluto cai, e a classe capitalista busca reagir através do aumento da extração de
mais-valor relativo. O mais-valor absoluto é determinado, fundamentalmente, pela jornada de
trabalho, ou seja, pelo tempo de trabalho. O mais-valor relativo é determinado pelo índice de
produtividade, isto é, pelo aumento de produção num mesmo espaço de tempo.
Mas como há o aumento de extração de mais-valor relativo? Tomemos um exemplo.
Digamos que numa jornada de 10 horas diárias se produzam 10 unidades de determinada
mercadoria e que devido à luta operária a jornada seja reduzida para 8 horas. Podemos dizer
que, neste caso, a jornada de 8 horas leva à produção de 8 unidades e que isto significa,
portanto, uma queda da taxa de exploração. Mas, se os operários nas mesmas 8 horas
passarem a produzir 12 unidades, isto significa (desde que o salário não aumente ou aumente
numa proporção inferior ao da produtividade) que houve um crescimento da taxa de
exploração através da extração de mais-valor relativo.
Como os operários podem produzir mais num mesmo período de tempo? A classe
capitalista encontrou duas formas principais para conseguir isso: uma é através da
organização do processo de trabalho: através da disciplina, do controle rígido, do cronômetro
e de especialistas em vigiar, planejar e dirigir o trabalho dos operários, busca-se acabar com o
desperdício de tempo e aumentar o rendimento do trabalho. Outra forma é através do
desenvolvimento tecnológico – a utilização de máquinas cada vez mais modernas e eficientes
faz com que haja um aumento de produtividade.
Mas isso significa apenas aumento da massa de lucro, e não da taxa de lucro, se for
provocado apenas por desenvolvimento tecnológico. Segundo Barrot,
O aumento de produtividade faz aumentar a massa do lucro, mas provoca uma baixa da sua taxa.
Esta é determinada pela relação do lucro com o capital total (constante e variável); o crescimento da
proporção de capital constante diminui na mesma quantidade a parte do único capital que fornece a mais-
valia e é, portanto, fonte de lucro: o capital investido em força de trabalho (Barrot, 1977, p. 62).
Esta análise do aumento de produtividade de Barrot é correta desde que se acredite
que somente através de desenvolvimento tecnológico é que se pode aumentar a produtividade.
Ocorre, porém, que através da organização do trabalho, por exemplo, pode-se conseguir
aumento de produtividade, e isto não pressupõe alteração nos gastos relativos ao capital
constante (meios de produção) e ao capital variável (força de trabalho). Contudo, o aumento
de produtividade não pode ser conseguido indefinidamente através de mudanças na
organização do trabalho, pois existem limites que impedem uma utilização intensiva da força
de trabalho (além da luta de classes). Desta forma, devemos abordar as formas de extração de
mais-valor relativo para esclarecer esta questão de fundamental importância para nosso
estudo.
Além da utilização de maquinaria cada vez mais moderna, o aumento de
produtividade pode ser conseguido através da organização do processo de trabalho, que
utiliza diversos recursos, tais como: a) a busca em aumentar o ritmo da produção através de
diversos artifícios, como a cronometragem, a gerência e vigilância constante etc.; b)
supervisão e disciplina rigorosas em relação ao afastamento das atividades de produção, tais
como multas por atraso ou ausências (inclusive as idas ao lavatório) durante as horas de
trabalho, redução dos horários de refeições, ou então relacionadas ao descuido no trabalho tal
como o exemplo das multas por destruição de máquinas e ferramentas etc.; c) “métodos de
adulação” (Eaton), como a proposta de participação nos lucros, oferecimento de pensões e de
ascensão na empresa, instituição de prêmios, como, por exemplo, o de “operário-padrão” etc.
Além desses recursos, existe mais uma forma de se tentar aumentar a produtividade:
trata-se da forma de pagamento dos salários. Segundo John Eaton,
As formas de pagamento de salários constituem uma batalha entre o empregador e os sindicatos.
Salário-tarefa, ou seja, salário pago de acordo com a produção, proporciona ao capitalista um meio de obrigar
o trabalhador a fazer mais durante o dia de trabalho, já que disso depende quanto o trabalhador leva para
casa. À primeira vista, pode parecer que o pagamento de salários-tarefa contradiz o que dissemos
anteriormente sobre os salários e o valor da força de trabalho, como correspondendo aproximadamente ao
valor dos meios de subsistência do trabalhador. O pagamento “por peça”, ou seja, de acordo com a produção,
sugere que quando esta se eleva, os salários se elevarão de forma correspondente. Isso só ocorre a prazo
muito curto. A experiência de muitas décadas mostrou aos trabalhadores que os salários-tarefa são, no final,
fixados em preços baseados em salário-tempo, e na soma de artigos que o trabalhador deve comprar para
viver. Se a produção aumenta acentuadamente, então o preço pago unitariamente é logo reduzido. O salário-
tarefa de todo um dia de trabalho pode, é certo, ser um pouco mais do que o salário-tempo do dia, mas a isso
se contrapõe o fato de que a maior intensidade de trabalho aumenta as necessidades do trabalhador. Para o
capitalista, porém, é compensador pagar pelo trabalho executado, já que essa produção extra aumenta o
volume de mais-valia numa proporção que excede consideravelmente qualquer extra pago em salários (Eaton,
1965, p. 101).
Portanto, o que se depreende disso tudo é que existem várias formas de se aumentar
a extração de mais-valor relativo. Estas formas são derivadas da utilização de tecnologia mais
avançada ou da organização do trabalho. Dentre as formas derivadas da organização do
trabalho, tal como já colocamos, podemos citar a racionalização, o controle e vigilância do
processo de trabalho, a relação salarial, os métodos de cooptação etc. Sem dúvida, estas
formas podem estar, e muitas vezes estão, mescladas em sua aplicação prática. Às vezes são
aplicadas isoladamente. Isto depende do caso concreto em que há o processo de trabalho. Esta
disputa em torno do tempo de trabalho, tal como já foi dito, é uma disputa em torno do mais-
valor. Nesta disputa, a classe capitalista busca aumentar a extração de mais-valor, e a classe
operária visa diminuir essa extração. As formas de organização do trabalho são determinadas
principalmente por esta disputa. É disto que trataremos a seguir.
Num plano histórico-concreto, o confronto de classes no processo de produção é
mediado por um conjunto de relações tanto dentro quanto fora do processo diretamente
produtivo. Em primeiro lugar, existe a luta em torno do mais-valor. Esta é a determinação
fundamental do confronto entre a classe capitalista e a classe operária no processo de
produção. As demais determinações são derivadas desta.
É claro que esta luta ultrapassa o espaço do processo de produção e se expande para
as demais relações sociais. A luta pela redução da jornada de trabalho não se deu apenas no
interior da fábrica, pois sua regulamentação ocorre no plano jurídico-institucional, que ocorre
na esfera das formas de regularização. A classe operária lutou pela redução da jornada de
trabalho e conquistou sua redução e regulamentação para 10 horas diárias e posteriormente
para 8 horas. Ora, isso significou uma perda para a classe capitalista, que viu sua taxa de
mais-valor ser reduzida. É nesse contexto e buscando responder as necessidades do capital
que surge a organização científica do trabalho, objetivando combater a redução da taxa de
mais-valor.
A diminuição da jornada de trabalho significa uma queda na extração de mais-valor
absoluto. A isto se respondeu com a busca de aumento da extração do mais-valor relativo. A
obra de Friedrich Taylor representa a tentativa de realizar um aumento de produtividade, ou
seja, de extração de mais-valor, através da organização do trabalho. A chamada “organização
científica do trabalho”, ou simplesmente taylorismo, é o primeiro passo para se conseguir
combater a tendência de queda da taxa de lucro médio. Tal tentativa de combater a tendência
declinante da taxa de lucro acontecia espontaneamente, e foi com a obra de Taylor que surgiu
uma concepção consciente e racionalizada de como fazer isto.
Para conseguir isso, Taylor se preocupou com o tempo de trabalho e seu
aproveitamento máximo. Surge assim a racionalização do processo de trabalho, e sua
vigilância se torna mais profunda. O método elaborado por Taylor apresentava um controle do
tempo de trabalho, que passa a ser cronometrado. Sem dúvida, o objetivo de Taylor é
aumentar a produtividade do trabalho (o que é equivalente, na maioria dos casos, ao aumento
de extração de mais-valor relativo) através de diversos artifícios, entre os quais o controle
rígido do processo de trabalho, o uso do cronômetro, os prêmios por produtividade individual,
o parcelamento das tarefas, a formação de especialistas em gerência, a divisão entre trabalho
de elaboração e de execução etc. (Taylor, 1987).
Sem dúvida, houve a resistência operária, tal como o próprio Taylor reconheceu ao
citá-la e dizer que foi até mesmo ameaçado de morte. O taylorismo, entretanto, surgiu num
período histórico em que o desenvolvimento tecnológico ainda não tinha assumido as
proporções verificadas em anos posteriores. Tratava-se de uma tentativa de aumento de
extração de mais-valor relativo apelando-se para a racionalização do processo de trabalho,
caracterizada pelo reforço da disciplina, das técnicas de trabalho, pelos incentivos materiais
etc. O desenvolvimento tecnológico ainda era lento, a diminuição da jornada de trabalho levou
à diminuição da extração de mais-valor absoluto e o taylorismo foi a resposta do capital ao
proletariado. A luta se deslocou para a extração de mais-valor relativo. A “indolência” que
Taylor via nos trabalhadores significava a resistência operária, e a obra de Taylor significava a
resposta do capital.
Assim, o taylorismo pode ser considerado como o primeiro momento da estratégia do
capital voltado para a organização do trabalho na disputa em torno do mais-valor relativo e
fornecedor da base de todas as outras formas de organização do trabalho posteriores, tal
como o fordismo, o fayolismo etc., o que significa que não há nenhuma mudança fundamental
entre o taylorismo e as formas de organização do trabalho posteriores. As alterações
implantadas pelo fordismo, por exemplo, referem-se a questões superficiais e são provocadas
pelo desenvolvimento histórico do capitalismo. O contexto histórico de surgimento do
fordismo remete ao aceleramento de desenvolvimento tecnológico em relação ao período
anterior.
O fordismo é uma aplicação do taylorismo à produção de massa, ou, em outras
palavras,
O fordismo caracteriza o que poderíamos chamar de socialização da proposta de Taylor, pois,
enquanto este procurava administrar a forma de execução de cada trabalho individual, o fordismo realiza isto
de forma coletiva, ou seja, a administração pelo capital da forma de execução das tarefas individuais se dá de
uma forma coletiva, pela via da esteira (Neto, 1989, p. 36)14.
Sendo assim, o taylorismo pode ser considerado a estratégia do capital na luta em
torno do mais-valor relativo e a base de todas as outras formas de organização do trabalho
que o “sucederam”.
E o toyotismo? Ele não marca um momento de ruptura total com o “paradigma”
taylorista? Na verdade, existem teorias que afirmam a continuidade entre ambos os sistemas
de organização do trabalho e outras que falam numa mudança radical entre um e outro. A
nosso ver, o toyotismo segue a mesma lógica do taylorismo e se diferencia dele em aspectos
secundários.
Para comprovarmos ou não esta hipótese teremos de aprofundar a definição de
taylorismo fornecida e compará-lo com o toyotismo. O taylorismo, tal como o concebemos,
caracteriza-se por um processo de controle da força de trabalho realizado segundo uma forma
“racionalizada”, ou seja, calculada, medida, normatizada, objetivando o aumento da
produtividade, isto é, de extração de mais- -valor relativo, e isto pressupõe a “gerência
científica”, o que significa não só a aplicação do conhecimento técnico-científico ao processo
de produção, conhecimento este extraído em parte do próprio saber operário, como também a
existência dos gerentes, ou seja, um conjunto de especialistas encarregados em planejar a
execução das tarefas. Em outras palavras, o taylorismo pressupõe uma camada de burocratas:
a burocracia empresarial. O fordismo e as demais formas de organização do trabalho também
possuem a mesma razão de ser e por isso não são nada mais do que extensões e adaptações
do sistema Taylor às necessidades históricas de determinado estágio de desenvolvimento do
modo de produção capitalista.
O toyotismo se diferencia do fordismo, segundo alguns pesquisadores, devido à
“flexibilização” que se encontra em oposição à rigidez daquele. Isto não contradiz, na verdade,
as características fundamentais do taylorismo, que estão presentes no fordismo. A grande
mudança apresentada pelo toyotismo seria a produção submetida a este tipo de organização
do trabalho estar voltada para a demanda do mercado, e não para a produção em massa, tal
como no fordismo. Na verdade, o que ocorre é que a produção estandardizada do fordismo se
vê substituída por uma produção personalizada, ou seja, a produção em massa ou em série de
um mesmo produto é substituída por uma produção variada (Coriat, 1992). Isso não impede a
produção em massa, pois apenas personaliza os produtos por cotas, ou seja, a produção em
massa deixa de ser de apenas de um produto para ser de vários produtos.
Resta tratar da “rigidez” do taylorismo e do fordismo e da “flexibilização” do
toyotismo. Segundo Ricardo Antunes:
Outro ponto essencial do toyotismo é que, para a efetiva flexibilização do aparato produtivo, é
também imprescindível a flexibilização dos trabalhadores. Direitos flexíveis, de modo a dispor desta força de
trabalho em função direta das necessidades do mercado consumidor. O toyotismo estrutura-se a partir de um
número mínimo de trabalhadores, ampliando-os, através de horas extras, trabalhadores temporários ou
subcontratados, dependendo das condições de mercado. O ponto de partida básico é um número reduzido de
trabalhadores e a realização de horas extras. Isto explica por que um operário da Toyota trabalha
aproximadamente 2.300 horas, em média, por ano, enquanto na Bélgica (Ford-Genk, General Motors-Anvers,
Volkswagen-Forest, Renault-Vilvorde e Volvo-Gand), trabalha entre 1.550 e 1.650 horas por ano (Antunes,
1994, p. 28).
Aqui cabe abrir um parêntese para apresentar uma crítica da expressão
“flexibilização”. Tal expressão pode tanto significar “aptidão para variadas coisas ou
aplicação” ou então “submissão e docilidade”, tal como se vê nos dicionários. Ao se falar de
“acumulação flexível”, “especialização flexível”, “flexibilização dos trabalhadores” e “aparato
produtivo”, vê-se que a palavra é utilizada em sentidos diferentes e inexatos. O duplo
significado da palavra revela sua ambiguidade e também a ambiguidade que reside em falar
de “especialização flexível”, “acumulação flexível” e “flexibilização dos trabalhadores”. A
flexibilização se refere, na maioria dos casos, a aptidão múltipla. A nosso ver é preciso
apresentar uma linguagem mais próxima do fenômeno que ela representa. Na verdade, não
existe “flexibilização” do aparato produtivo e muito menos dos trabalhadores, o que existe é
uma “inflexibilidade”, pois tanto o aparato produtivo quanto os trabalhadores são submetidos
“inexoravelmente” e “implacavelmente” ao objetivo de aumentar a extração de mais-valor
relativo.
A expressão mais adequada a qualquer relação ou fenômeno social deve ser
compatível com o “ser” que expressa. No caso da acumulação, o que se busca é concretizar
uma acumulação integral, simultaneamente intensiva e extensiva através da extensão do
processo de mercantilização das relações sociais e da busca de ampliação do mercado
consumidor, mesmo que esta busca se caracterize, em parte, pela produção personalizada, e
também pelo aumento da intensificação da exploração da força de trabalho através do
aumento de extração de mais-valor relativo e absoluto. No caso da especialização ou do que
alguns chamam de pluriespecialização (Coriat), trata-se de uma especialização ampliada, em
que ao invés de o trabalhador se dedicar a apenas uma atividade passa a se dedicar a várias,
embora se mantenha afastado do controle do processo de trabalho – o que significa
especialização no processo de execução – e continue não executando certas funções práticas
que ficam a cargo de outros trabalhadores. No caso dos trabalhadores, o que ocorre é uma
intensificação da exploração com a retirada de seus direitos já conquistados e da formação de
um mercado de trabalho inflexível, em que os trabalhadores se submetem à subcontratação,
ao desemprego etc. No caso da subcontratação (bem como no caso das horas extras), o que se
vê é um aumento disfarçado da jornada de trabalho, o que significa aumento de extração de
mais-valor absoluto. Aliás, mais-valor relativo e mais-valor absoluto andam juntos no período
de acumulação integral, embora isto seja constante no capitalismo15, mas agora assume
proporções intensas, tal como não ocorria há muito tempo na história do capitalismo.
A fábrica flexível também é assim chamada por causa das “novas tecnologias” que
criam “ferramentas flexíveis”. Segundo Coriat,
Num primeiro sentido, o mais rigoroso, mas aquele cuja aplicação no meio industrial em larga
escala é a mais rara, a flexibilidade de um bem de capital diz respeito à sua capacidade de captar informações
em tempo real sobre processos de produção em curso e, com base nisso, modificar por si mesmo seu
programa de operações, a fim de levar em conta eventos não previstos que se manifestem tornando suas
formas de operação coerentes com a nova situação com a qual é confrontado. Neste sentido, “flexibilidade” e
“capacidade de retroação” são quase sinônimos (Coriat, 1988, p. 100).
Essas ferramentas, ao invés de serem chamadas de “flexíveis”, deveriam ser
chamadas de autorreguláveis, pois elas mesmas podem mudar seus regulamentos, isto é, seu
programa de operações. Na verdade, a distinção entre automação “rígida” e automação
“flexível” (Dina, 1987) expressa a mesma questão, pois se trata de uma automação
autorregulável em contraposição a uma automação heterorregulável. Novamente observamos
que o termo “flexível” é questionável. Na verdade, a expressão vem para encobrir o
verdadeiro caráter do processo de superexploração ao qual a classe operária é submetida em
tempos “flexíveis”. Este caráter autorregulável retira a capacidade de regulação por parte do
trabalhador, e a definição do programa de operações é realizada pela burocracia, de acordo
com os objetivos do capital, isto é, voltados para o aumento da exploração e controle.
Do ponto de vista do capitalista, trata-se de uma fábrica flexível em relação ao
mercado consumidor, de trabalhadores flexíveis (“moldáveis”) pelos seus interesses etc. Do
ponto de vista do operário, trata-se de uma exploração integral. Na verdade, esta confusão na
linguagem revela, em alguns casos, a falta de uma teoria da atual fase do capitalismo mundial
e das formas de organização do trabalho assumidas contemporaneamente e, em outros, uma
posição ideológica que busca amenizar as palavras utilizadas para não permitir uma imediata
consciência do seu significado real. Além disso, a expressão flexível passa a ser utilizada para
fenômenos tão diferentes que não se sabe mais qual é o significado da palavra: acumulação
(integral), ferramenta (autorregulável), trabalho (superexplorado), especialização (ampliada),
direitos (restringidos), automação (autorregulável) passam a ser fenômenos em que a
expressão “flexível” passa a ser aplicável.
Podemos dizer que a diferença entre o toyotismo e o taylorismo e seus derivados não
é tão grande assim, pois a chamada “flexibilização” da empresa através da sua “pretensa”
subordinação à demanda do mercado se revela uma mudança no quanto se produzir, e não no
que e como se produzir. Pensar o contrário só seria possível imaginando que o consumidor iria
idealizar um produto ainda inexistente e depois iria solicitá-lo à empresa. Isto também não
quer dizer que o mercado passou a direcionar a produção da fábrica, pois foi a fábrica que
elegeu esta forma de organização na produção de bens visando muito mais o aumento de
produtividade do que qualquer outra coisa, ou seja, a pretensa subordinação da fábrica ao
mercado revela apenas que a primeira busca aumentar o ritmo da produção, pois o método
utilizado para “subordinar” a fábrica ao mercado garante o aumento da eficácia do controle
sobre a força de trabalho e da cadeia produtiva16, o que significa o aumento da produtividade
(de extração de mais-valor relativo). A própria produção personalizada é uma forma de
conquistar e ampliar o mercado consumidor e é incentivada pelos mecanismos de divulgação
das empresas, principalmente através da publicidade, pois para se manter a reprodução
ampliada do capital é preciso garantir a reprodução ampliada do mercado consumidor, e isto
implica produzir necessidades fabricadas, já que estas realizam esta ampliação.
Nos casos em que se vê um crescimento de extração de mais-valor absoluto, com o
aumento da jornada de trabalho, observa-se que a “flexibilidade” se caracteriza por uma
ofensiva do capital na tentativa de combater a tendência à queda da taxa de lucro médio, e tal
“flexibilidade”, interferindo até na legislação trabalhista, tem como objetivo remover
obstáculos jurídico-legais e deixar um espaço aberto e mais “flexível” para a ação do capital.
Outro motivo para a adoção do toyotismo se encontra na limitação do mercado consumidor, o
que provoca a necessidade de tornar as mercadorias produzidas mais atraentes para o
consumidor e de acordo com a capacidade do mercado consumidor existente.
Em síntese, o toyotismo apresenta os mesmos objetivos do taylorismo e do fordismo,
o aumento de extração de mais-valor relativo. Isto é colocado em prática do mesmo modo que
no modo tradicional, através da racionalização e da gerência científica. Vê-se isto no combate
ao desperdício, na intensificação do controle da direção sobre a força de trabalho etc. Enfim, o
toyotismo não traz nenhuma grande alteração nas formas de organização do trabalho. Em
outras palavras, existe uma mudança na forma de se aplicar o taylorismo, mas não no seu
conteúdo. O significado histórico do toyotismo se encontra no fato de ele ser uma adaptação
ao novo estágio de desenvolvimento do capitalismo mundial, fundamentado sob a lógica da
acumulação integral. Ele nasce no Japão e se expande para os outros países imperialistas,
devido à queda da taxa de lucro médio e à competição oligopolista internacional.
Posteriormente, ele busca generalizar- se e atingir os países capitalistas subordinados, devido
ao processo de constante reconversão capitalista (atualização subordinada das mudanças do
capitalismo que se irradia dos países imperialistas para os países capitalistas subordinados),
porém, não se pode deixar de alertar que nos países capitalistas subordinados, tal como o
Brasil, a implantação do toyotismo ocorre de forma muito mais vagarosa e contraditória, tanto
devido ao atraso tecnológico em relação aos países imperialistas quanto pela resistência
patronal (a utilização de tecnologia mais avançada aumenta os custos de produção) e operária,
sendo que esta última existe com mais força no capitalismo subordinado graças à já
superexploração da força de trabalho nestes países.
Portanto, observamos que há uma relação entre luta de classes na produção, na
distribuição e nas formas de regularização das relações sociais. Também notamos que a
ideologia da “flexibilidade” corresponde aos interesses da classe dominante e que esta
ideologia faz parte do processo de luta de classes. O toyotismo, portanto, pode ser
compreendido como um processo produzido pelo atual estágio de desenvolvimento capitalista,
marcado pela acumulação integral.
O toyotismo significa, portanto, uma adaptação do taylorismo à nova fase do
capitalismo. O capitalismo no período de acumulação integral expressa uma ofensiva
capitalista no sentido de combater a queda da taxa de lucro médio através do aumento da
exploração da classe operária e da extensão da mercantilização das relações sociais. Porém, a
acumulação integral não resolve os problemas do capitalismo, pois, se, por um lado, ela
combate a queda da taxa de lucro médio, e com isso evita a crise e o acirramento das lutas de
classes, por outro, intensifica a exploração do proletariado e cria um processo de
lumpemproletarização (tal como expresso no crescimento do desemprego) que leva a uma
radicalização das lutas sociais. Porém, devido à manutenção da hegemonia burguesa na
sociedade civil, a guerra civil oculta não se transforma em guerra civil aberta. Neste sentido, a
acumulação integral é contraditória e só se mantém enquanto perdurar a hegemonia
burguesa, com toda a sua fragilidade em períodos como este.
2 – Estado Neoliberal e Acumulação Integral
É a partir dos anos 80 que começa a se constituir o novo regime de acumulação. Este
marca uma mudança no processo de valorização, no qual a chamada reestruturação produtiva
(toyotismo e modelos similares) e o neoliberalismo assumem a vanguarda do processo. O
capitalismo continua sua marcha global no sentido do desenvolvimento das forças produtivas
e, por conseguinte, queda da taxa de lucro e ampliação do processo de centralização e
concentração do capital, criando verdadeiros oligopólios mundiais.
A crise do regime de acumulação anterior promove a constituição de um novo
regime de acumulação. Trata-se do regime de acumulação integral. No entanto, a cada regime
de acumulação o processo de reprodução do capital se torna mais difícil, tornando necessário
o aumento da exploração em escala cada vez mais intensa. A passagem do regime de
acumulação extensivo para o intensivo significou uma mudança na forma de exploração
complementada pela exploração internacional, isto é, só foi possível a passagem devido ao
imperialismo. O regime de acumulação intensivo-extensivo, que, aos olhos dos ideólogos do
capitalismo, significou a possibilidade de este modo de produção proporcionar níveis de renda
elevados aos trabalhadores, revela-se na verdade um processo combinado de alteração na
forma de exploração com uma intensificação da exploração internacional. A estabilidade
relativa do bloco imperialista foi conquistada graças à superexploração existente no bloco
subordinado e sua consequente instabilidade. O “terceiro mundo” é um produto do capital. Ele
não é, como colocam alguns ideólogos, originário da falta de capitalismo, mas sim o resultado
da divisão internacional do trabalho e da exploração capitalista internacional. Mas agora a
situação mudou. A exploração aumenta no bloco imperialista e deve ser complementada com o
aumento da taxa de exploração no bloco subordinado, agora contando com os países do
“segundo mundo”, que, depois da crise do capitalismo de estado da URSS, Leste Europeu etc.
e de seu processo de privatização e abandono do estatismo, vêm colocando-se de forma mais
integrada no capitalismo mundial. O regime de acumulação integral altera as relações
internacionais, bem como a forma do Estado e do processo de valorização. Neoliberalismo e
reestruturação produtiva são os nomes fornecidos a esse processo.
O neoliberalismo surge na principal potência imperialista, os EUA, e se instala
imediatamente no seu aliado incondicional, a Inglaterra. Logo, a nova forma do Estado
capitalista se espalha pelo mundo, generalizando o neoliberalismo, com a missão de realizar
uma política impopular, considerada austera, e necessária, segundo os seus ideólogos, que
visa contribuir com o aumento da exploração da força de trabalho, principalmente com a
corrosão da legislação trabalhista, bem como diminuir os gastos estatais (prioritariamente
com a política social), realizar a privatização e reforma fiscal etc.
O toyotismo, por sua vez, surge no Japão uma década depois do pós-guerra e é um
importante instrumento utilizado para a reestruturação nacional e reequiparação deste país
com as grandes potências imperialistas depois da derrota na Segunda Guerra Mundial.
Modelos similares ao toyotismo vão surgindo em países da Europa Ocidental, tal como no caso
da Itália. As novas formas de organização do trabalho são uma continuidade do taylorismo-
fordismo e do objetivo básico, que é o aumento da taxa de exploração via aumento de
produtividade. O taylorismo focalizou a organização do trabalho; o fordismo, a tecnologia e
incentivos materiais. O toyotismo e similares buscam mesclar ambos os processos, atuando
tanto no que se refere à organização do trabalho (o trabalho em equipe visa com o seu
participacionismo integrar o trabalhador no processo de trabalho, e outras estratégias, como o
“controle de qualidade”, são apenas uma modernização participacionista da vigilância
taylorista) quanto no que se refere ao uso de novas tecnologias, pois eles estão intimamente
ligados. Um exemplo seria o kan-ban, método que os japoneses importaram dos
supermercados dos EUA e que, através do sistema de luzes, comanda a intensidade do
processo de trabalho. Outro objetivo presente nestas novas formas de gestão da força de
trabalho se encontra na tentativa de envolver o trabalhador com o processo de produção, ou
seja, uma nova forma de buscar criar um “operário-padrão”, ao envolvê-lo com o seu trabalho.
A tentativa de “catexizar” (para utilizar palavra psicanalítica, derivada de catexia, que
significa investimentos, desejos do indivíduo, cujo significado, portanto, é formar desejos e
investimentos) o trabalhador vai do participacionismo até novas ideologias e técnicas, tal
como a da inteligência emocional. Mas a grande novidade da chamada “reestruturação
produtiva” reside no seu objetivo de buscar aumentar não somente a extração de mais-valor
relativo (produtividade), mas também mais-valor absoluto (Viana, 2003; Harvey, 1992), no qual
se utiliza também, de forma complementar, o que Marx denominou “métodos secundários de
exploração capitalista”, tal como se vê em certas formas de trabalho autônomo. Isto é
complementado pelo retorno do uso em massa da força de trabalho precoce (crianças e
jovens).
O aumento do exército industrial de reserva também está incluído neste processo,
que denominamos “lumpemproletarização”, é resultado tanto da política neoliberal quanto da
reestruturação produtiva que tem o efeito de aumentar a competição pelo mercado de
trabalho e fazer crescer fenômenos como xenofobia, miséria, violência, e, o que é do interesse
do capital, pressionar os salários para baixo. É neste contexto que surgirão a ideologia da
“exclusão social” e as políticas paliativas (renda cidadã, bolsa-escola etc.), que vêm substituir
as políticas sociais clássicas do estado integracionista, dito do “bem-estar social”.
Assim, a nova dinâmica do capitalismo mundial se fundamenta na busca de aumento
da taxa de exploração. Trata-se de um novo regime de acumulação, denominado por alguns de
“acumulação flexível” (Harvey, 1992), expressão que tem o defeito de ser um eufemismo que
encobre o processo de exploração integral, fundado no aumento de extração de mais-valor
relativo e absoluto (Harvey, 1992; Viana, 2002; Viana, 2003). Por isto, preferimos a expressão
acumulação integral. Mas, tal como colocamos anteriormente, um regime de acumulação se
caracteriza não somente por uma determinada organização do processo de valorização e
forma estatal, mas também por determinadas relações internacionais. É justamente isto que
iremos abordar a partir de agora, isto é, a nova fase do imperialismo que caracteriza as
relações internacionais na era da acumulação integral.
A dinâmica do Neoimperialismo
É neste contexto que emerge o neoimperialismo. Trata-se do imperialismo da época
da acumulação integral. Ele cumpre o papel de generalizar a busca de acumulação integral
em todo o mundo e reproduzir o processo de exploração intensificado nas relações
internacionais, o que é complementar, pois quanto maior é a exploração nos países de
capitalismo subordinado, maior é o quantum de mais-valor produzido, o que possibilita, por
sua vez, um maior índice de transferência de mais-valor dos países subordinados para os
países imperialistas. Em outras palavras, quanto maior a exploração nacional dos
trabalhadores, maior a possibilidade de exploração ampliada internacional de nações. Por
conseguinte, a generalização mundial do neoliberalismo e da reestruturação produtiva são
partes da estratégia do capital visando combater a queda da taxa de lucro.
Obviamente, a reestruturação produtiva e o neoliberalismo assumem formas
peculiares no capitalismo subordinado, pois setores do capital nacional destes países possuem
dificuldades em adotar novas tecnologias, além do fato de o Estado integracionista (Estado de
bem-estar social) nunca ter existido nos mesmos moldes que nos países imperialistas. No
capitalismo subordinado, a taxa de exploração já era elevada, mas tende a aumentar, via
política neoliberal de corrosão dos direitos trabalhistas e estratégias de reestruturação
produtiva, que se volta principalmente para a busca de aumento de extração de mais-valor
relativo (organização do trabalho, novas tecnologias, catexização), devido ao fato de a
extração de mais-valor absoluto já ser intensa, embora também haja a tentativa de aumentá-la
ainda mais.
Assim, o neoimperialismo produz um Estado neoliberal subordinado, que executa o
papel de aumentar a exploração interna e, ao mesmo tempo, permitir o aumento da
exploração externa. A proeminência de organismos internacionais na elaboração das políticas
nacionais dos Estados subordinados (FMI, Banco Mundial etc.) apenas revela esta
subordinação e alguns dos mecanismos utilizados pelo bloco imperialista (e pelo capital
oligopolista transnacional por detrás dele). O bloco subordinado realiza uma política
neoliberal que revela a debilidade do capital nacional e, por conseguinte, das burguesias
nacionais, subordinadas e ao mesmo tempo associadas ao capital oligopolista transnacional (A
reprodução subordinada dos capitalismos nacionais permite sua reprodução. O fato de o nível
da exploração dos trabalhadores locais ser maior não lhes interessa). O neoliberalismo
subordinado não só busca aumentar a exploração dos trabalhadores como também permite a
transferência de parte do mais-valor ampliadamente extorquido para os países capitalistas
imperialistas. Isto, por exemplo, é visível quando se vê o caráter protecionista dos Estados
neoliberais imperialistas em comparação com a política de livre mercado dos Estados
neoliberais subordinados. O protecionismo cumpre dois papéis: ele faz parte da luta
interimperialista e ao mesmo tempo da estratégia de ampliação da subordinação dos países do
bloco subordinado, embora no primeiro caso tenham surgido alternativas na competição
interimperialista.
É neste momento que devemos discutir a questão da chamada “transnacionalização
do capital”, tese defendida por diversos autores e que tende a se tornar hegemônica. A ideia
de “transnacionalização do capital” não significa a emergência do capital transnacional, uma
realidade desde o período após a Segunda Guerra Mundial, e sim um processo no qual o
capital supera o Estado. A concentração do capital, segundo Bernardo (1998), chegou a um
estágio que tornou possível para as grandes empresas dispensar as funções reguladoras do
Estado. Isto é reforçado pelo processo de privatização e pelo controle que as grandes
empresas exercem sobre aparelhos do Estado. Isto ocorreria em nível internacional,
proporcionando uma transnacionalização do capital, pois este estaria, agora, além do Estado-
Nação.
Esta concepção parece convincente, mas carece de correspondência com a
realidade. É preciso compreender a relação entre capital e Estado para entender as mutações
contemporâneas. Sem dúvida, o capital oligopolista transnacional exerce uma influência maior
sobre o Estado do que há algumas décadas, mas isto não significa que ele consiga estar acima
ou além dele. O Estado não só continua sendo o grande regulador da sociedade civil e mesmo
do processo de produção, como é o sustentáculo da dominação burguesa, pois continua
exercendo o seu papel, inclusive intensificando seu papel repressivo.
O aumento da influência do capital oligopolista apenas coloca o Estado mais voltado
para as necessidades do grande capital, mas aqui o que temos é apenas uma variação de grau,
pois desde o surgimento do capitalismo sempre foi assim. O processo de privatização também
fica nesse nível, o que não significa grandes alterações a ponto de se falar de fim do Estado-
Nação ou de produção de um novo quadro de análise, fundado na chamada
“transnacionalização do capital”. João Bernardo pensa que as fronteiras nacionais não são
mais o palco onde se processa o ciclo da produção e reprodução do capital, e que se torna
questionável a ideia de que o “capital estrangeiro” realiza uma intromissão de um país em
outro (1998). Tais ideias são, simultaneamente, verdadeiras e falsas. O ciclo da produção e
reprodução do capital ocorre no interior das fronteiras nacionais e além delas (isto é, pelo
processo de valorização em determinado Estado-Nação e pelas relações internacionais), assim
como o capital estrangeiro realiza, evidentemente, uma intromissão de um país em outro. Isto
é tão verdadeiro que João Bernardo cita o protecionismo como estratégia de competição
interimperialista (o que provoca a substituição do processo de exportação pela implantação de
unidades produtivas nos países protecionistas). Além disso, este autor não percebe que seus
exemplos se voltam todos para a relação entre países imperialistas e não toca na relação entre
estes e o bloco subordinado (o que é normal, tendo em vista que o autor é português e vê o
mundo com as lentes europeias).
Toda esta discussão carece de sentido se observarmos que o Estado, como já dizia
Engels, é o “capitalista coletivo ideal” e continua a exercer o papel de regularizador nacional e
internacional, com a diferença de que em nível nacional ele possui legitimidade e tem nas
disputas do bloco dominante via parlamento, governo etc. os meios de resolução dos conflitos
pelo poder e a competição das empresas capitalistas. No nível internacional, esta legitimidade
é muito mais frágil, e os organismos internacionais também não a possuem, sendo que a ONU,
que teria um maior quantum de legitimidade, foi desmoralizada pelos EUA com a Guerra do
Iraque. Desta forma, a regularização internacional cabe principalmente aos Estados-Nação,
embora de forma conflitual, num jogo de interesses e disputas. Mas quais são os interesses
por detrás destes conflitos? Os do capital oligopolista transnacional. Obviamente, aqui é
preciso compreender que cada Estado-Nação representa os interesses de seu capital nacional,
mas de acordo com sua força e potência financeira e no interior do bloco imperialista. O
Estados capitalistas subordinados, na verdade, apresentam uma proeminência do capital
transnacional sobre ele e sobre o capital nacional, pois a subordinação do Estado e do capital
nacional ao capital transnacional é uma das características do capitalismo subordinado. Os
Estados capitalistas imperialistas, por sua vez, apresentam a proeminência do capital nacional
sobre o capital transnacional. No capitalismo subordinado, o capital nacional é limitado, não
ultrapassando, em seu limite máximo, o papel de um capital de pequena força fora das
fronteiras nacionais. Já no capitalismo imperialista, o capital nacional é um capital
transnacional, lançando seus tentáculos sobre o mundo inteiro. É isto que faz com que este
último tenha proeminência não só em seu Estado-Nação, mas também nos dos países
capitalistas subordinados, embora encontrando resistência do capital nacional subordinado e
enfrentando a concorrência do capital transnacional dos demais países e, em alguns casos, do
próprio país.
A competição interimperialista produz a necessidade da interferência dos Estados-
Nação no processo de regularização das relações internacionais. Do ponto de vista do ciclo de
produção e reprodução do capital, isto se dá pelas ações do próprio capital transnacional
(investimentos, por exemplo), mas é limitada pela ação estatal, não somente através do
protecionismo, por exemplo, como através de diversas outras instâncias, tal como a
regularização das organizações internacionais, tratados internacionais, ação bélica etc.
Tomemos um exemplo, o Banco Mundial:
Desde a sua criação, os Estados Unidos sempre tiveram enorme peso na gestão do Banco Mundial,
que, por sua vez, vem desempenhando importante papel como instrumento auxiliar do governo norte-
americano na execução de sua política externa. Os estatutos do Banco Mundial estabelecem que a influência
nas decisões e votações é proporcional à participação no aporte de capital, o que tem assegurado aos EUA a
presidência do Banco desde a sua fundação, e hegemonia absoluta entre as cinco nações [EUA, Japão,
Alemanha, França e Reino Unido] líderes na definição de suas políticas e prioridades (Soares, 2003, p. 16).
O FMI, desde o seu surgimento, também esteve submetido à proeminência norte-
americana (Pou, 1979). Essas duas instituições são instrumentos fundamentais para a
ampliação da exploração imperialista:
Através de programas de ajuste estrutural, elaborados com o objetivo de indicar aos países
endividados os meios para a obtenção dos recursos necessários ao pagamento dos juros, o FMI e o Banco
Mundial condicionam sistematicamente seu “auxílio” financeiro à colocação em prática dos planos elaborados
e definidos por sua tecnoburocracia mundial. Numerosos países endividados passam, desse modo, à tutela do
sistema financeiro internacional que, por sua vez, “recoloniza” o Terceiro Mundo (Braga, 1997, p. 184).
Assim, a prioridade à política de exportações, a abertura comercial e o pagamento
dos juros das dívidas são incentivados pela ação destas e outras instituições internacionais.
O capital transnacional norte-americano tem seus interesses representados pelo
governo norte-americano, assim como os demais Estados-Nação representam os seus capitais
nacionais-transnacionais. Os organismos internacionais (Banco Mundial, FMI, BIRD etc.)
concretizam as políticas internacionais do interesse do bloco imperialista e do país dominante
no seu interior, os EUA. Basta notar que 75% da produção de mais-valor se concentra nos
países onde estão as matrizes das empresas transnacionais, justamente nos países
imperialistas (Hirst e Thompson, 1988), para ver que o Estado e o capital possuem relações
íntimas e que não foram, e nem podem ser, ultrapassadas.
Depois destas colocações a respeito da pretensa “transnacionalização do capital”,
continuemos nossa análise do neoimperialismo.
Os organismos internacionais são partes do processo de regularização da exploração
internacional. Com a passagem para o regime de acumulação integral, muda a política dessas
instituições. O Banco Mundial, por exemplo, cumpriu o papel de propiciar investimentos no
regime de acumulação intensivo-extensivo, mas no regime de acumulação integral passa a
exercer o papel de “guardião dos interesses dos grandes credores internacionais, responsável
por assegurar o pagamento da dívida externa e por empreender a reestruturação e abertura”
do capitalismo subordinado (Soares, 2003, p. 21).
O regime de acumulação integral faz com que as organizações internacionais atuem
no sentido de constranger o bloco subordinado a implementar e/ou aprofundar o
neoliberalismo, a reestruturação produtiva e uma nova política internacional, fundada no
“livre comércio”, isto é, livre para o capital transnacional. O neoimperialismo é, tal como o
regime de acumulação que lhe gerou, integral, buscando aumentar a transferência de mais-
valor do capitalismo subordinado através de várias formas, além das tradicionais. E desloca
investimentos para locais onde a força de trabalho é mais barata e busca criar nichos
exclusivos de mercado consumidor (veja, no caso dos EUA, a NAFTA, o projeto da ALCA etc.),
o que faz acirrar a competição interimperialista. Também há o aprofundamento da estratégia
de emperrar o desenvolvimento das forças produtivas, desviando os investimentos para bens
de consumo, indústria bélica etc. Assim, a dinâmica do neoimperialismo é marcada por uma
busca desenfreada de aumentar a exploração imperialista, buscando combater a tendência
declinante da taxa de lucro.
O imperialismo norte-americano possui algumas especificidades. O imperialismo
mundial é composto por uma diversidade de países, destacando-se os EUA, Japão, Alemanha
etc., marcados pela competição e por uma hierarquia. No cume da hierarquia temos os
Estados Unidos, embora existam competidores querendo conquistar seu lugar. O imperialismo
norte-americano possui as mesmas características do imperialismo dos demais países, mas
tem uma especificidade derivada de seu processo específico de formação.
Os EUA emergem da Segunda Guerra Mundial como grande potência mundial. Já
antes da Primeira Guerra Mundial o processo de industrialização norte-americana estava num
estágio avançado. No século XIX, “Os Estados Unidos atravessam um auge industrial” e no
final deste século “colocam-se à cabeça do mundo pelo volume de produção da sua indústria”
(Polianski & Shemiskine, 1973). O abastecimento dos países da Entente durante a guerra
impulsionou ainda mais o capitalismo norte-americano, que passou a ter uma
sobreacumulação oriunda dos lucros da guerra. Os oligopólios norte-americanos se
fortaleceram neste processo, e os EUA se tornaram a grande potência mundial.
Após a Primeira Guerra Mundial, no entanto, o volume das exportações decresceu,
fazendo cair o preço dos produtos agrícolas, bem como a venda de armamentos. Os Estados
Unidos extraíam vantagens da exploração imperialista, mas isto não foi suficiente para evitar
sua crise em 1929. A Segunda Guerra Mundial possibilitou a recuperação norte-americana. “A
guerra serviu de mola impulsora da indústria americana de armamentos” (Polianski &
Shemiskine, 1973, p. 91). A indústria bélica se tornou um componente fundamental do ciclo de
produção e reprodução do capital nos Estados Unidos.
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA se tornaram a grande potência mundial,
tendo como único rival a URSS, que, na verdade, era um parceiro na dominação imperialista
mundial (Wallerstein, 2002). A indústria bélica não tinha grandes incentivos para se
reproduzir em escala ampliada. No entanto, ela continuava a ser prioridade dos investimentos
governamentais. A razão disto se encontra no processo de busca de emperramento do
desenvolvimento das forças produtivas para evitar a queda da taxa de lucro, juntamente com a
expansão da produção de meios de consumo. Mas esta política não se sustenta por muito
tempo, pois o deslocamento dos investimentos para a produção de meios de consumo produz a
necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor, e o mesmo ocorre com a
produção de armamentos. Os bens de consumo podem-se ser exportados, pode utilizar a
publicidade e outros estratagemas para criar necessidades fabricadas, produzir a
obsolescência planejada das mercadorias e produtos descartáveis etc. Os armamentos, no
entanto, possuem um escasso mercado consumidor (outras nações, consumidores de armas de
pequeno porte etc.) e têm como consumidor fundamental o Estado norte-americano. Este tem
de sustentar a indústria bélica não somente para desviar investimentos para um setor que não
aumenta a composição orgânica do capital no sentido do desenvolvimento tecnológico, mas
também devido ao papel estratégico que ela terá no capitalismo norte-americano, pois cria
postos de trabalho, consumo de matérias-primas e maquinaria, produz um mercado
consumidor (os trabalhadores, empresários etc. envolvidos na produção de armamentos) etc.
Os Estados Unidos, enquanto grande potência mundial e país avançado tecnologicamente, têm
a dupla necessidade de sustentar a indústria bélica, para evitar a queda da taxa de lucro e
reproduzir um dos sustentáculos de seu capitalismo.
A indústria bélica norte-americana ocupa um papel privilegiado no interior do setor
produtivo dos EUA e a partir do início do século XX se tornou uma das maiores do mundo até
se tornar a maior, o que significa que é o país em que o peso e importância dela são
proporcionalmente maiores. Desta forma, o Estado capitalista norte-americano se vê
constrangido a consumir armamentos, pois é o grande consumidor bélico. Caso não o fizesse,
a crise da indústria bélica atingiria todo o capitalismo norte-americano, pois o desemprego,
falência etc. neste setor iriam atingir vários outros. Assim, o Estado norte-americano sustenta
a indústria bélica. No entanto, a indústria bélica possui a mesma lógica de qualquer outra
indústria capitalista: a reprodução ampliada do capital. Ora, é difícil garantir um constante
aumento da produção bélica sem a ocorrência de guerras, e torna-se cada vez mais oneroso
para o Estado sustentar tal indústria. Tal como coloca Dantas (2003), os recursos do Estado
provêm fundamentalmente dos impostos, e estes, por sua vez, possuem sua origem no setor
produtivo, e o investimento estatal na indústria bélica significa transferência de mais-valor do
capital produtivo para o setor bélico (não entraremos aqui na discussão sobre o caráter da
indústria bélica, se pode ser considerada integrante do setor produtivo ou se seria um
“terceiro departamento”, fora do Departamento I – produção de meios de produção – e do
Departamento II – produção de meios de consumo, como considera Dantas, pois essa
classificação, seja ela qual for, não altera nossa análise). Mas esta transferência também gera
gastos estatais acima de suas possibilidades, o que gera a dívida pública e dificuldades
adicionais do capitalismo norte-americano (Dantas, 2003).
É possível argumentar que a indústria bélica também possui um papel importante
nos demais países capitalistas, principalmente nos imperialistas. Sem dúvida, isto é verdade.
Mas também é verdade que dentre todos os países do mundo, os EUA são o que mais gasta
com a indústria bélica. Segundo Dantas (2003),
Com os dólares que foram gastos em armas pelo governo americano entre 1947 e 1989 (total de
8,2 trilhões de dólares) se poderia construir um outro país do porte dos Estados Unidos, incluindo todas as
indústrias, toda a infraestrutura e tudo que lá foi fabricado pela mão humana (...). Só em 2001, segundo o
SIPRI [Stockholm Internacional Peace Research Institute] Yearbook de 2002, os gastos mundiais em armas
foram estimados em 0,8 trilhões de dólares, sendo que cinco países são responsáveis por metade daqueles
gastos, os Estados Unidos à cabeça. O orçamento do Pentágono é igual aos orçamentos somados dos 12 ou 15
países com maiores gastos militares depois dos Estados Unidos.
Este autor acrescenta que “Os Estados Unidos gastam 36% deste total; para se ter
uma ideia, a Rússia gasta 6% e França, Japão e Inglaterra 5% cada um, em dados de 2001”
(Dantas, 2003).
Assim, a guerra é a estratégia fundamental para reerguer o capitalismo norte-
americano, pois assim aquece a indústria bélica. É por isso que os EUA são um país que “não
pode passar dez anos sem guerra” (Moraes, 2003). A história dos Estados Unidos confirma
isto. A crise de 1948-1949 gerou a Guerra da Coreia em 1950, o que aqueceu sobremaneira a
indústria bélica norte-americana.
Em três anos de guerra na Coreia o total das encomendas feitas às fábricas de armamentos foi de
151.000 milhões de dólares. Em 1951, a produção destinada à guerra constituía 25 por cento da produção
mundial dos Estados Unidos. Todos os ramos industriais foram orientados para fins bélicos, em maior ou
menor grau. Em 1951-1952, por exemplo, 10 por cento da produção da indústria têxtil destinou-se a satisfazer
pedidos militares (Polianski & Shemiskine, 1973, p. 102).
Desta forma, é fácil perceber que o aquecimento da indústria bélica significa um
aquecimento da produção geral norte-americana e que isto precisa ser efetivado
periodicamente, num processo cíclico necessário para sustentar o capitalismo norte-
americano. Assim, a nova crise na década de 60 irá gerar a prolongada Guerra do Vietnam,
que vai iniciar nos anos 60 e encerrar na década de 70, além de outros casos como a Líbia
(1986), a Guerra do Golfo (1991) e diversas ações, conflitos, ameaças e intervenções em várias
partes do mundo (China, 1945-1946; Guatemala, 1954; Indonésia, 1958; Cuba, 1959-1960;
Guatemala, 1960; Congo, 1964; Peru, 1965; República Dominicana, 1965; Laos, 1964, 1973;
Camboja, 1969-1970; Guatemala, 1963-1967; Chile, 1972; Granada, 1983; Líbano, 1984; El
Salvador, 1980; Nicarágua, 1980; Panamá, 1989; Iraque, 1991-1999; Sudão, 1998;
Afeganistão, 1998, Iugoslávia, 1999). Esta lista apenas mostra alguns casos que serviram para
incentivar a reprodução ampliada da produção bélica e deve ser somada à chamada Guerra
Fria, uma justificativa permanente para o armamentismo desde o fim da Segunda Guerra
Mundial e que teve momentos de acirramento, como nas ameaças de confronto direto com o
bloco capitalista estatal, um império dentro do império capitalista, como no caso de Cuba,
Vietnã etc. A competição entre o capitalismo estatal comandado pela antiga URSS e pelo
capitalismo privado comandado pelos EUA não somente legitimava a corrida armamentista
nestas potências como gerava sua necessidade, pois quem tem armas pode utilizá-las. Daí as
análises de Castoriadis sobre a superioridade militar russa e a inevitabilidade da guerra entre
as duas potências (Castoriadis, 1982), que não passa de mais um dos equívocos deste autor,
que analisou a Rússia como se fosse uma totalidade fechada e autogeradora, esquecendo-se
das relações internacionais e da pressão dos EUA no sentindo de aumentar os investimentos
em produção bélica por parte deste país.
O complexo militar-industrial, segundo Beinstein, converteu-se em fator essencial da
reprodução do capitalismo norte-americano e foi legitimado pela Guerra Fria, mas, com a
decadência do capitalismo de estado russo, os EUA perderam este elemento legitimador, mas
não podiam abrir mão desta “muleta essencial” (Beinstein, 2003). Segundo este autor,
O colapso soviético deixou o aparelho militar industrial sem legitimação externa. Nesse novo
contexto, o império utilizou desculpas circunstanciais para continuar avançando, como na primeira Guerra do
Golfo e na da Iugoslávia. Mas estes eram inimigos insignificantes. A tensão entre a pequena realidade e a
busca doentia de adversários de grande estatura foi gerando megadelírios que começaram a tomar forma em
torno do 11 de setembro de 2001. Não devemos pensar que a guerra infinita contra o terrorismo foi pura
invenção do lobby militar e seu compadre petroleiro, mas sim o resultado de necessidades profundas da
cúpula do capitalismo norte-americano, transbordante de autoritarismo e desejo de rapina, para além das
conspirações mafiosas próprias desse sistema de poder (Beinstein, 2003, p. 26).
Embora não se possa concordar com o conjunto das ideias de Beinstein, sua
percepção da importância da indústria bélica para os EUA é uma contribuição importante para
compreender as últimas ações bélicas norte-americanas, incluindo a recente guerra contra o
Iraque, cuja determinação fundamental se encontra nas necessidades da indústria bélica
norte-americana. A recuperação parcial do capitalismo norte-americano após a Guerra do
Iraque é um elemento que reforça nossa análise. No entanto, a proeminência da indústria
bélica no capitalismo norte-americano tem outros efeitos. Um deles é que o Estado precisa
consumir a produção de armamentos em escala crescente. Para fazer isto, precisa aumentar
os seus recursos ou fazer empréstimos. Aí temos a fonte do endividamento público (Dantas,
2003) e da importância crescente do capital financeiro nos EUA. Assim, o Estado imperialista
norte-americano tem de combater a tendência declinante da taxa de lucro, ampliar o mercado
consumidor, sustentar o crescimento da indústria bélica, vencer a competição
interimperialista etc. Desta forma, o capitalismo norte- americano tem de aumentar a
superexploração local e internacional. Os resultados visíveis desta exploração local são
visíveis na nova política estatal e na lumpemproletarização de grande parte da população
norte-americana, e nas consequências disto, incluindo o aumento da violência e a
concretização da ideologia neoliberal do “Estado forte”, o Estado Penal, segundo Wacquant
(2001).
A exploração internacional, que é a que aqui nos interessa, manifesta- se sob várias
formas, entre elas, a busca de uma nova política internacional para a América Latina, visando
integrar o capitalismo subordinado do continente num sistema de exploração ainda mais
intenso. Este é o caso da NAFTA e ALCA. A NAFTA – Tratado de Livre Comércio da América do
Norte, surgiu em 1994, e seus países integrantes são os EUA, Canadá e México. O processo de
superexploração atingiu o México, que sofreu interferências em sua política interna, aumento
da miséria e desigualdades redução dos salários (o que também ocorreu no Canadá e EUA,
mas com maior intensidade no elo mais fraco, atingindo mais intensamente os já
superexplorados trabalhadores mexicanos), predomínio do capital transnacional norte-
americano, lumpemproletarização (200 mil desempregados foram produzidos apenas no setor
privado), solapamento da legislação trabalhista etc.
Isso, sem dúvida, serviu aos interesses do capitalismo norte-americano, mas é
insuficiente, e, por isso, novas ações devem ser implementadas. É neste contexto que surgem
o projeto da ALCA, o Plano Colômbia, as ações bélicas no Iraque e outras iniciativas norte-
americanas, tal como o protecionismo voltado para as outras potências imperialistas. A ALCA
faz parte da competição interimperialista norte-americana e visa conter suas dificuldades de
acumulação de capital. Segundo Petras, ela é incentivada pelo aprofundamento das
dificuldades do capitalismo norte-americano e pela “crescente competitividade” da Europa e
Ásia:
Num tempo de crise interna e externa e de crescente competitividade, Washington precisa se
apoderar de uma maior parte do mercado latino-americano, suas empresas e recursos naturais. A ALCA
estabeleceria a supremacia das companhias multinacionais dos Estados Unidos sobre os concorrentes
europeus, dando-lhes prioridade de acesso ao comércio e aos mercados. “Livre comércio” dentro da ALCA
significa controle monopolista dos Estados Unidos sobre seus competidores latino-americanos, especialmente
se forem consideradas as restrições protecionistas que Washington quer impor às exportações latino-
americanas (Petras, 2002, p. 27).
Assim, a ALCA é a “extensão lógica” do neoliberalismo ao continente americano
(Petras, 2002). Sem dúvida, ela é uma estratégia norte-americana na competição
interimperialista, bem como uma busca de superar as dificuldades da acumulação de capital.
Mas o caráter muito mais ofensivo, expresso na ação norte-americana com a NAFTA e ALCA,
não é derivado somente de sua posição de grande potência mundial e de sua força militar, mas
também de sua necessidade crescente de drenar mais-valor do capitalismo subordinado – no
caso, do capitalismo latino-americano.
A política internacional norte-americana de aumentar a exploração e possibilitar a
reprodução ampliada do capital bélico é reforçada pelo Plano Colômbia. Segundo Petras, o
Plano Colômbia é uma estratégia que visa combater a guerrilha (FARC – Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia e ELN – Exército de Libertação Nacional) e evitar uma vitória
das forças populares, que serviriam de exemplo a outras iniciativas e permitir uma aliança
entre Cuba- Venezuela-Colômbia, constituindo uma força econômica, política e militar
“formidável” e “poderosa” que seria “um sistema socioeconômico alternativo ao modelo
neoliberal” comandado pelos EUA. Interpretação curiosa e discutível. Em primeiro lugar, dizer
que Cuba, Venezuela e Colômbia formariam um bloco “formidável” ou “poderoso” é, no
mínimo, risível. Considerar que países mais pobres do que o Iraque poderiam, numa aliança
de pobres, competir com os EUA, seja do ponto de vista militar ou econômico, não tem o
menor sentido. Além disso, revive a ilusão de um nacionalismo terceiro-mundista, de redenção
do capitalismo subordinado via associação de subordinados que, no mínimo, para sobreviver,
teriam de executar a mesma superexploração planejada pelos EUA, a não ser que
caminhassem rumo ao socialismo, mas isto só ocorreria se houvesse uma revolução proletária
em Cuba, na Venezuela e a na Colômbia (pois dificilmente se poderia pensar que as FARC ou o
ELN poderiam implantar outra coisa que não um capitalismo de estado). Por fim, acreditar
que o motivo do Plano Colômbia se encontra no movimento guerrilheiro é o mesmo que
acreditar que a invasão do Iraque foi provocada pelas supostas armas nucleares lá existentes.
Na verdade, o Plano Colômbia visa servir aos interesses de reprodução ampliada do
capital bélico e possibilitar o controle da região para permitir o aumento da exploração e
impedir o surgimento de insurreições populares, e não a guerrilha propriamente dita. Os
Estados Unidos criam um inimigo imaginário, tal como aconteceu com o Afeganistão e Iraque,
para legitimar e justificar sua investida. Tal inimigo imaginário são as FARC e ELN, que, na
verdade, não constituem ameaças reais. A geopolítica aponta para a militarização da Colômbia
e região próxima, que serve de ponto de apoio para a intervenção em toda a América Latina,
não devido a movimentos guerrilheiros e outros tipos de movimentos existentes (Movimento
dos Sem-Terra, no Brasil, citado por Petras), e sim devido à tendência de ascensão de fortes
lutas sociais devido ao aumento da exploração, crescimento da miséria, lumpemproletarização
etc. em países cujo nível de vida já é extremamente precário.
Assim, a especificidade do imperialismo norte-americano advém de sua supremacia
mundial e da importância assumida pela indústria bélica no seu processo de reprodução, o
que gera sua política militarista e ofensiva. No entanto, a intensificação da exploração tende a
provocar a intensificação das lutas e resistências, e a repressão a estas, já planejada gera
mais luta e resistência. A política norte-americana também faz dos EUA o alvo principal de
fundamentalismos religiosos, nacionalismos, pacifismos, o que corrói em parte sua
legitimidade. Assim, a exploração crescente gera uma luta crescente, o que já se esboça no
mundo inteiro, e junto com isso a possibilidade de transformação social. O imperialismo, isto
é, o capitalismo mundial, é o seu próprio coveiro.
Considerações finais
O conceito de neoimperialismo expressa a nova realidade do capitalismo mundial, na
era da acumulação integral. O imperialismo assume a mesma ferocidade em busca da
ampliação da exploração internacional com que o capital busca aumentar a taxa de exploração
do proletariado e outros segmentos sociais. Não se trata de uma novidade radical, pois o
capitalismo e o imperialismo, seu derivado lógico e histórico, continuam possuindo a mesma
essência, embora com mudanças formais, concretas, resultado dos primeiros sinais de
esgotamento daquele.
O regime de acumulação integral vem para substituir o regime de acumulação
intensivo-extensivo. Os regimes de acumulação são formas assumidas pelo capitalismo
derivadas das lutas de classes e formam novas configurações no Estado, no processo de
valorização e nas relações internacionais, seus elementos básicos e definidores, mas também
em outras esferas, como a cultural, ideológica, científica, cotidiana etc., criando novos
materiais para novas lutas de classes. O regime de acumulação integral é, simultaneamente,
um produto do desenvolvimento capitalista espontâneo e uma resposta específica para sua
tendência à autodissolução e/ou à radicalização das lutas de classes. O capitalismo não é
eterno, a-histórico. Como todos os demais modos de produção, ele é histórico, transitório.
Embora tenha mostrado notável capacidade de superar suas crises, de integrar as classes
exploradas, de combater sua tendência à dissolução, tal processo é limitado, não pode ocorrer
indefinidamente. Cada novo regime de acumulação se reproduz com cada vez mais
dificuldades. Isto foi ofuscado pelo regime de acumulação intensivo-extensivo, que deslocou as
contradições maiores para o chamado “Terceiro Mundo” e assim conseguiu uma estabilidade
relativa, e, devido à colonização cultural que o bloco imperialista exerce sobre a cultura do
capitalismo subordinado, a luta de classes foi jogada para fora da realidade, como resíduo do
século XIX e início do século XX.
Hoje, no entanto, fica cada vez mais visível a falsidade disso. Embora muitos já o
denunciassem, agora a sua visibilidade atinge uma parcela maior da população, e já não é
mais possível sustentar as ideologias do fim da história e da eternidade do capitalismo. O
regime de acumulação integral, necessidade do capital para garantir sua sobrevivência,
mostra a dura realidade da historicidade do capitalismo e do barbarismo que ele pode gerar
para tentar resistir ao processo de sua derrocada. Assim, vivemos numa época de exploração
integral, inclusive no nível internacional. Neste sentido, é plenamente justificado o uso do
conceito de neoimperialismo, que aprofunda elementos do imperialismo fundamentado no
regime de acumulação anterior, mas inova formalmente e busca, seguindo a dinâmica da
acumulação integral, intensificar o processo de exploração no nível internacional. Lênin havia
dito que o imperialismo financeiro do final do século XIX e início do século XX era a “fase
superior do capitalismo” (Lênin, 1987), o que foi um equívoco, pois ele não percebeu que o
imperialismo poderia ser o sustentáculo da reprodução mundial do capitalismo, tal como
aconteceu no pós-Segunda Guerra Mundial. Isto proporcionou concessões para os explorados
e oprimidos do bloco imperialista, mas atualmente o processo está se invertendo devido às
dificuldades de reprodução do capitalismo, e as concessões são abolidas, bem como se acirra a
exploração no bloco subordinado. Um novo regime de acumulação, uma nova época de lutas.
No entanto, tal regime de acumulação ainda não concretizou seu ciclo de formação, ainda não
se formou totalmente, e a efetivação disto pode tornar as coisas piores do que estão. As lutas
sociais é que definirão algumas características deste novo regime de acumulação ou, se ele
atingir um certo nível de radicalização, podem levar à sua abolição, que só pode ocorrer com a
abolição do capitalismo.
PARTE III – Acumulação Integral e
Ideologia
1 – Crítica à Ideologia da Globalização
Cada novo regime de acumulação, traz em si, novas manifestações culturais. Tais
manifestações culturais não são “neutras”, são produtos das lutas de classes. Não se trata, no
entanto, de derivação imediata e automática. É um conjunto de manifestações que possui
contradições, e algumas delas são derivações imediatas do regime de acumulação, enquanto
que outras são indiretas ou estão mais relacionadas com aspectos da sociedade que não
aparentam ligação com o processo social global. Há muito se fala em pós-modernismo e
muitos livros já foram escritos para descrevê-lo, explicá-lo, defendê-lo, criticá-lo. A nossa tese
é a de que toda a discussão sobre o pós-modernismo acaba, de uma forma ou de outra, caindo
na autoilusão dos ideólogos “ditos” pós-modernos. O pós-modernismo nem sequer existe.
O pós-modernismo é um construto, isto é, um falso conceito (Viana, 1997). Ele não
expressa nenhuma realidade efetiva, a não ser num sentido muito restrito, invertendo esta
realidade. Segundo grande parte daqueles que abordaram tal fenômeno ideológico, ele surge
no mundo artístico e depois entra no mundo filosófico e científico. A emergência do dito pós-
modernismo se daria na arte, principalmente na arquitetura, mas depois se expandindo para a
literatura e outras artes, na década de 70. Embora outros façam uma arqueologia da
expressão (Anderson, 1999), alguns consideram que o fenômeno em si já surge na década de
50 ou 60. Na verdade, a expressão em si é problemática. O que seria o tal pós-modernismo no
mundo artístico? Para alguns, seria uma negação do modernismo, caracterizado por uma
“estética cartesiana” (Subirats, 1986). Esta interpretação não está longe das demais, que,
mesmo enfatizando outro aspecto do modernismo ou utilizando outra linguagem, todos
apontam para a ruptura com o modernismo e seu racionalismo, seu caráter totalizador etc.
Aqui se revela a armadilha do dito pós-modernismo: é acreditar em seu discurso. Na
verdade, a ideologia que utiliza o construto de pós-modernismo cria uma ficção sobre o
modernismo. O modernismo é tido, na maioria dos casos, como algo monolítico, homogêneo.
Assim, o racionalismo, por exemplo, seria uma das características fundamentais do
modernismo, ou a característica fundamental. Isto, no entanto, é um equívoco e não
corresponde à riqueza da realidade concreta. O modernismo, visto desta forma, é uma ficção.
O modernismo, como todas as manifestações culturais em nossa sociedade, é marcado por
diversas correntes, muitas vezes semelhantes, mas também, muitas vezes, divergentes. Sem
falar no antimodernismo que é confundido com o modernismo, que é o marxismo19.
A outra face da armadilha ideológica está em homogeneizar o pós-modernismo, como
se ele também fosse um todo homogêneo. Mas trata-se de um complemento do processo
anterior. No entanto, a ideia-força desta armadilha ideológica está em apresentar o pós-
modernismo como uma grande novidade histórica, antagônica ao modernismo. Se o
modernismo é um todo homogêneo, então pode ser rejeitado em sua totalidade e pode ser
substituído por uma nova forma de arte. A recusa do modernismo, chamada pós-modernismo
seria uma nova forma de arte. Mas, analisando-se a história da arte, vê-se que esta tese
dificilmente é sustentada. O dito pós-modernismo carrega em si elementos presentes em
vários movimentos modernistas, tais como dadaísmo, surrealismo, pop arte, entre outros. Uma
análise na história da arte faz ver muitas semelhanças entre a arte dita moderna e a dita pós-
moderna. Muitos tentam desfazer-se desta obviedade afirmando serem “precursores do pós-
modernismo”, tal como Marcel Duchamp ou, então, que na década de 60 havia emergido o
pós-modernismo com o eixo Duchamp-Cage-Warhol 20. Nenhuma das soluções ultrapassam a
autoilusão da época atual.
O pós-modernismo não é uma novidade histórica radical, pois o antagonismo entre
ele e o dito modernismo é uma criação fictícia. Ele é, na verdade, continuação da arte
moderna, que rompe com alguns aspectos presentes em grande parte dela e assimilando
outros. Ele, também, se inspira em certas correntes da arte moderna, cuja a assimilação é
muito maior, e nega outras correntes, com as quais a oposição também é mais intensa. No
entanto, há uma nova tendência artística, a que se chama costumeiramente de pós-moderna.
Porém, é preciso deixar claro que não é uma superação da arte moderna, é uma continuação
dela, e que também não é homogênea. Além disso, ela não aboliu as demais tendências e por
isso é apenas uma tendência, que, em certo momento histórico, se torna hegemônica.
O que caracteriza esta tendência? Isto já foi percebido, mas as consequências e
importância para explicar sua emergência e essência não foram consideradas em
profundidade. A ruptura que esta tendência realiza com outras tendências modernas, está na
negação das vanguardas artísticas. Assim, o melhor meio de interpretar o dito pós-
modernismo e nomeá-lo corretamente não se encontra numa oposição abstrata e temporal
entre moderno e pós-moderno, e sim na compreensão de mais uma tendência artística que,
surge num determinado momento histórico, como todas as outras, a partir de mudanças
sociais, e que possui algumas características definidoras oriundas do novo contexto histórico.
Desta forma, é necessário deixar de lado a ideia de uma oposição entre moderno e pós-
moderno, pois o que temos é apenas mais uma tendência no interior da arte moderna. Sendo
nova tendência dentro da arte moderna, ela traz em si uma novidade. Porém, não se trata de
uma novidade tão drástica a ponto de postular a superação da arte moderna por uma outra
que seria “pós-moderna”, o que é uma autoilusão bastante pretensiosa.
A recusa das vanguardas é característica comum entre as várias manifestações desta
nova tendência e é por isso, que alguns utilizaram a expressão pós-vanguardismo. Do nosso
ponto de vista, a expressão pós-vanguardismo é mais adequada e menos ilusória que pós-
modernismo. Por isso, alguns falam de “fim das vanguardas” (Ferry, 1994). As vanguardas
artísticas são elementos importantes, presentes na história da arte moderna:
A ideia artística de vanguarda e o conceito de modernidade ou de cultura moderna são afins.
Ambos designam, certamente, realidades distintas: de um lado, determinados movimentos artísticos
caracterizados por uma atitude social beligerante e mesmo agressiva, em todo o caso, de signo crítico; de
outro, a ideia geral de uma idade histórica ou a estrutura de uma civilização que identificamos com razão
científica e com tecnologia, ou, então, ao mesmo tempo, como objetivos sociais como a democracia ou o
socialismo (Subirats, 1986, p. 47).
Não podemos concordar com a totalidade do que está escrito acima. Entretanto, o
parágrafo traz uma relação fundamental para entender a arte moderna: a relação entre
vanguarda e movimento artístico. A arte moderna teve quase toda a sua história marcada por
uma sucessão de movimentos artísticos. Tais movimentos, no entanto, nem sempre eram
críticos, tal como coloca Subirats e a maioria dos intérpretes do “modernismo”. A arte
abstrata e o impressionismo, para citar dois exemplos, não exerceram atividade crítica. Do
ponto de vista histórico-teórico, o que eles expressaram não foi uma recusa da sociedade
burguesa, tal como alguns colocaram como sendo característica de toda a arte moderna, mas,
ao contrário, sua defesa, a partir de um ponto de vista específico, o da esfera artística, através
da ideologia da autonomia da arte. Daí o elitismo, que muitos adeptos do pós-vanguardismo
vão, acertadamente, identificar no “modernismo”, o que é verdade no caso de alguns
movimentos artísticos, mas não em outros. Este elitismo manifesto através de um fetichismo
da arte (Bourdieu, 1996; Viana, 2007a), ao mesmo tempo em que aparentemente afastava a
arte moderna da sociedade burguesa, acabava sendo o equivalente artístico da neutralidade
de valores no mundo científico.
O pós-vanguardismo revela, nada mais nada menos, que a recusa das vanguardas
artísticas, dos movimentos artísticos. Resta saber o motivo de tal recusa. A explicação disto
nos remete à realidade histórico-concreta. E é neste momento que podemos datar o
surgimento do pós-vanguardismo. Huyssen (1992), confundindo semelhanças entre pós-
vanguardistas e tendências vanguardistas da década de 60, acaba afirmando que existia um
pós-modernismo na década de 60 e outro, diferente, na década de 70. O primeiro seria crítico
e vanguardista, enquanto o segundo seria dividido entre uma tendência conservadora e outra
crítica, ambas não-vanguardistas.
Huyssen, por ver semelhanças entre Duchamp, Cage e Warhol, entre outros, com o
“pós-modernismo”, acaba julgando que eles também eram pós-modernos. O mesmo poderia
ser dito, como alguns afirmam, que o dadaísmo no início do século XX também seria pós-
moderno. Assim, ele vê “pós-modernismo” onde há “modernismo”. É por isso que ele tem que
dizer que o primeiro é “vanguardista” e o segundo não. Na verdade, apenas o segundo é pós-
vanguardismo e surge na década de 70.
Assim, temos a data de nascimento do pós-vanguardismo: a década de 70. Mas,
antes de continuarmos nossa análise, seria interessante observarmos como surge a ideia de
um “pós-modernismo” na esfera da filosofia e da ciência. Segundo Anderson (1999, p. 31), a
“primeira obra filosófica a adotar a noção” – de pós-modernismo – foi A Condição Pós-
Moderna, de Jean-François Lyotard. No entanto, o programa ideológico de Lyotard, tal como
defendido nesta obra, já estava sendo colocado em prática desde o início da década de 70.
Tanto em obras anteriores, como em seu texto sobre Marx e Freud, no qual afirma que a razão
está ao lado do capital (Anderson, 1999). Mas aqui, tal como no que se refere à arte, a
expressão pós-modernismo é equivocada. Alguns tomam como base, assim como o próprio
Lyotard (1986), a ideologia de Daniel Bell (1977) e Alain Touraine (1970) que afirmam a
passagem de uma sociedade industrial para uma sociedade pós-industrial. Esta sociedade pós-
industrial, ou pós-moderna, seria a base social das transformações culturais e aí se faz a
distinção entre ela, chamada também de pós-modernidade, e a cultura pós-moderna, ou pós-
modernismo.
A ideia de que a partir do pós-Segunda Guerra Mundial tenha surgido uma sociedade
pós-industrial é destituída de fundamentos. Sem dúvida, mudanças sociais ocorreram, mas
elas não podem ser consideradas profundas. E isso fica claro quando não temos mais que um
“pós” para definir a “nova” sociedade. Por qual motivo a sociedade pós-industrial não
abandona a sociedade anterior e para ser definida tem que se diferenciar dela, dizendo tão-
somente não o que é, mas sim o que deixou de ser? Ninguém diria que o capitalismo é uma
sociedade pós-feudal, embora o seja, simplesmente porque ele tem suas características
próprias. Isto o define e não a referência à sociedade anterior. Para se conceber uma
sociedade pós-industrial ou pós-moderna seria necessário comprovar que a essência da
sociedade industrial ou moderna tenha sido substituída por outra essência, e a falta de nome
para esta última revela justamente a ausência de tal transformação. A ideia de uma sociedade
pós-industrial apenas faz uma comparação com a sociedade antes da Segunda Guerra Mundial
e observa que houve um recuo da indústria e um aumento do chamado “setor de serviços”, ou
seja, uma mudança quantitativa dos termos e não uma alteração ou abolição, portanto,
conclui-se que houve a ocorrência de uma transformação social. Na verdade, depois da
Segunda Guerra Mundial, houve a mutação no capitalismo, marcada pela passagem do regime
de acumulação intensiva para o regime de acumulação intensiva-extensiva e este, tal como
colocamos anteriormente, adquiriu várias características novas em relação ao regime anterior.
Essa ideia de uma base social para a cultura dita “pós-moderna” encontra eco
também em pensadores influenciados pelo marxismo. É o caso de Fredric Jameson (2002) que
vai apresentar uma interpretação diferente do pós-modernismo, partindo da contribuição do
economista belga Ernest Mandel e do filósofo francês Louis Althusser. De Mandel, Jameson
retira a ideia de “terceira fase do capitalismo”, contida em sua obra O Capitalismo Tardio. De
Althusser, ele vai retirar a concepção de modo de produção com dominância, que afirma que
um modo de produção pode provocar a dominância de alguma de suas instâncias (econômica,
política e cultural). Assim, no capitalismo, a dominância seria do econômico, mas no
feudalismo seria da política, para citar dois exemplos. A concepção althusseriana vai ser a
base para Jameson considerar o pós-modernismo como sendo a lógica cultural do capitalismo
tardio, no qual a cultura seria o dominante.
A obra de Jameson, no entanto, acaba se revelando extremamente frágil. A base do
pós-modernismo, o capitalismo tardio, é amplamente questionável. Jameson se baseia apenas
em uma obra para caracterizar a sociedade capitalista pós-Segunda Guerra Mundial. Em que
pese Mandel ser um economista e trotskista renomado, isso não é suficiente. Jameson não é
economista, nem sociólogo, sua especialização é a crítica literária, mas já que adentrou no
terreno das mudanças sociais, então deveria ter feito uma pesquisa de maior amplitude. A
obra de Mandel (1985) é marcada por determinados preceitos ideológicos (o trotskismo) e é
subjacente em tal obra um determinismo tecnológico. Além disso, a periodização de Mandel
não combina com a de Jameson. O capitalismo tardio de Mandel é o do pós-Segunda Guerra
Mundial enquanto que o surgimento do pós-modernismo, segundo Jameson, é da década de
70. Como não bastasse isso, Jameson teve a oportunidade de ler, antes de encaminhar as
reedições de seus artigos, a obra de David Harvey, A Condição Pós-Moderna, que mostra a
transição do fordismo (período equivalente ao do capitalismo tardio de Mandel) para o pós-
fordismo, justamente no período da década de 70. Ao ler e citar nas reedições a obra de
Harvey, e manter sua posição baseada em Mandel, cuja obra foi publicada em 1972, e
abordando o período de 1940 a 1970, acaba por mostrar uma deficiência de análise.
A tese da dominância cultural do pós-modernismo, além de se basear em
fundamentos teórico-metodológicos já amplamente criticados21, ainda não consegue fornecer
uma teoria convincente do pós-modernismo. Jameson cai na armadilha ideológica de
considerar a existência de algo chamado pós-modernismo e não sai do círculo vicioso. Assim, a
saída althusseriana acaba dando uma resposta dita “marxista” no círculo vicioso da ideologia
referente ao pós-modernismo. Aliás, este é um dos motivos pelos quais ele resiste em criticar o
que considera pós-modernismo.
Mas, voltemos ao problema das ciências e da filosofia. No mundo artístico, a década
de 70 marca o nascimento do pós-vanguardismo e, no mundo científico e filosófico, a maioria
dos autores considera que o surgimento de uma nova tendência (que alguns denominam “pós-
moderna” ou “pós-estruturalista”) ocorre na mesma época (Jameson, 2002; Harvey, 1992;
Eagleton, 1998; Lemert, 2000). Assim, temos igual período histórico para demarcar o
nascimento do que preferimos denominar pós-estruturalismo.
O pós-estruturalismo, em sua autoimagem ideológica, “pós-modernismo”, realiza o
mesmo procedimento de crítica do dito “modernismo”, que é amalgamar uma diversidade de
tendências e concepções numa unidade e homogeneidade ilusória. Assim, o pós-estruturalismo
aparece como uma radical novidade que se lança contra as concepções modernas,
consideradas como totalizadoras, racionalistas etc. No entanto, assim como na arte moderna,
não podemos imaginar que no pensamento moderno tenha existido tal uniformidade. Isso é
ainda mais grave quando colocam Marx entre os “modernos”. O pensamento moderno não é
apenas racionalista ou totalizador. Basta lembrar pensadores como Nietzsche, Simmel, entre
outros. O pensamento moderno possui, no seu interior, tanto o racionalismo quanto o
irracionalismo, e cada um assume formas diferentes. Algumas concepções fundamentam-se na
totalidade e outras a negam. Na verdade, o “modernismo” do “pós-modernismo” não passa de
um espantalho. Temos muitas teses pós-estruturalistas já presentes no pensamento moderno,
o que significa que pós-estruturalismo não é pós-moderno, mesmo porque tal coisa não existe.
E isso é tão visível que basta ler os pós-modernos e suas eternas referências a pensadores
como Nietzsche, Spinoza etc. Aspectos do pós-estruturalismo, como a crítica da razão, podem
ser encontrados em Rousseau, no século XVIII, em Nietzsche, no século XIX. Uma concepção
que não se funda na ideia de totalidade também pode ser vista em Adam Smith, Georg
Simmel, Vilfredo Pareto, entre outros.
Assim, deixando os falsos espantalhos e corvos de lado, podemos dizer que o pós-
estruturalismo cria um falso inimigo, tal como o pós-vanguardismo, e desta forma se coloca
como uma novidade radical. Poderíamos elencar as principais características do pós-
estruturalismo, como muitos o fizeram, tal como a recusa da totalidade e do racionalismo, o
apego à diferença, e assim por diante. No entanto, embora existam algumas características
comuns nessa corrente de pensamento, temos também de reconhecer que existem diferenças.
A maioria das descrições do pós-estruturalismo apresenta características comuns e por isso
não iremos retomá-las. Vamos nos concentrar sobre as diferentes formas de pós-
estruturalismo.
Podemos considerar que existem três tendências pós-estruturalistas. Uma é o pós-
estruturalismo conservador, representando por nomes como os de Jean Baudrillard, Richard
Rorty, Michel Maffesoli, Jacques Derrida, Roland Barthes, entre outros. Esse é um pós-
estruturalismo que faz a apologia da sociedade contemporânea. Há também um pós-
modernismo crítico (o que não quer dizer revolucionário), cujos representantes são Foucault,
Deleuze, Guattari, entre outros. Há, também, o pós-estruturalismo eclético, que une pós-
estruturalismo e outras tendências do pensamento moderno, tal como o marxismo, e este é o
caso de Antonio Negri, Cornelius Castoriadis, entre outros. O primeiro tipo de pós-
estruturalismo faz apologia do capitalismo contemporâneo. O segundo focaliza a questão do
poder, da dominação e realiza uma crítica à sociedade moderna, mas não propõe uma ruptura,
uma revolução social. O terceiro aborda a questão da transformação social, mas de forma
ambígua e eclética, aproximando- se geralmente do conservadorismo da primeira corrente,
unindo teses de pensadores pós-estruturalistas e Marx, Spinoza, entre outros.
Assim, a pretensa unidade do pós-estruturalismo é uma ficção, embora observe-se
semelhanças no seu interior, o que justamente define essa corrente. A semelhança básica que
caracteriza o pós-estruturalismo é a recusa do marxismo, seja através de sua negação total,
seja através de sua mescla com ideologias burguesas. Elas visam negar a teoria da revolução
proletária, seja através do descarte do marxismo – sob a aparente negação de um suposto
“modernismo” – ou de sua reinterpretação e inserção em concepções não-revolucionárias. A
ideia de uma sociedade pós-moderna, ou pós-industrial, defendida pelos ideólogos pós-
estruturalistas, é um dos argumentos-chave para descartar o marxismo. As teses da “crise da
sociedade do trabalho”, “fim do trabalho”, “fim da história”, “fim das utopias” etc., são outras
teses fantasmagóricas produzidas para se afirmar o fim do marxismo, sua superação ou
necessidade de complementação por uma ideologia burguesa. A grande alternativa ao
marxismo, nos anos 60, era o estruturalismo, e a partir dos anos 70 é o pós-estruturalismo.
Inclusive o uso deste termo, ao lado de pós-modernismo, pelos ideólogos e estudiosos deste
fenômeno cultural, é revelador.
Sem dúvida, o pós-estruturalismo surge a partir dos anos 70. Alguns pós-
estruturalistas iniciam suas obras no âmbito do estruturalismo, do estruturalismo “marxista” e
de outras tendências semelhantes na década de 60. Jean Baudrillard, por exemplo, publica
algumas obras de caráter estruturalista-“marxista”, como Para uma Crítica da Economia
Política do Signo (1995). Porém, suas obras posteriores, como América (1986); À Sombra das
Maiorias Silenciosas – O Fim do Social e o Surgimento das Massas (1985)22, entre outras, são
tipicamente pós-estruturalistas. Michel Foucault produz seus primeiros trabalhos numa
abordagem estruturalista, como As Palavras e As Coisas (1987a) e Arqueologia do Saber
(1987b). A partir de Vigiar e Punir (1983) ele passa a ser pós-estruturalista. O mesmo ocorre
com Barthes, Lyotard, entre outros. Pelas datas dos livros, temos a visão que o pós-
estruturalismo surge, tal como o pós-vanguardismo, na década de 70. Aqui, podemos retomar
o fio da meada para explicar a gênese do pós-vanguardismo e do pós-estruturalismo.
A década de 50 e 60 foi marcada por uma relativa estabilidade do capitalismo. No
entanto, o modo de produção capitalista foi questionado por várias concepções políticas e
teóricas neste período. A crítica ao capitalismo nesse período foi realizada por integrantes da
chamada Escola de Frankfurt, especialmente Horkheimer, Adorno e Marcuse. Esses
pensadores fizeram uma análise da razão instrumental e mostraram que ela estava a serviço
da reprodução do capital. A crítica da manipulação do desejo, da indústria cultural – a forma
aparente sob a qual se percebe o capital comunicacional (Viana, 2007c) etc., – também estava
presente. O filósofo e sociólogo Henri Lefebvre também faria diversas críticas a esta
sociedade, qualificada por ele como “sociedade burocrática de consumo dirigido”. Também a
crítica dos integrantes da chamada Internacional Situacionista, tal como Debord, Jorn,
Vaneigem, estava presente. Além disso, ao contrário do estruturalismo e seu formalismo
abstrato, havia o existencialismo, – principalmente Sartre –, que apontava para uma
perspectiva crítica que foi se radicalizando com o passar do tempo. O freudo-marxismo
também contribuía com a crítica da sociedade fundada no consumo e burocratismo, bem como
nos efeitos psíquicos nocivos da nova era capitalista. Daniel Guérin contribuiria com a
tentativa de síntese entre marxismo e anarquismo23.
A nova fase do capitalismo, fundado no regime de acumulação intensivo- extensivo,
promoveu certa estabilidade nos países imperialistas, enquanto que nos países de capitalismo
subordinado era marcado por um aumento da exploração. Na Europa, o regime de acumulação
buscava combater a tendência declinante da taxa de lucro e para isso expandia o setor de
serviços, a produção de bens de consumo e invadia o cotidiano (Viana, 2003; Viana, 2002).
Devido a essa invasão do cotidiano, promovia a reflexão crítica sobre a cotidianidade e sua
relação com o processo de reprodução do capitalismo.
No entanto, a irrupção do movimento operário e a radicalização de alguns
movimentos sociais, bem como o surgimento da contracultura, marcaram um período de
ascensão das lutas sociais e de questionamento da sociedade burguesa, sob formas mais ou
menos radicais. O Maio de 68 assume um caráter exemplar e é justamente a derrota deste
movimento que marca a formação de ideologias embrionárias e passam a expressar a nova
situação histórica e a passagem para um novo regime de acumulação, que necessita de novas
ideologias.
O Maio de 68, bem como outras lutas sociais em outros lugares e momentos, a partir
do final da década de 60 e início dos anos 1970, marcaram uma retomada da crítica da
sociedade burguesa sendo visível a influência de Henri Lefebvre, Debord, Marcuse, Daniel
Guérin, entre outros. Os intelectuais críticos foram retomados pelos movimentos e
organizações desse período, que viram florescer o autonomismo italiano, os grupos radicais na
França e na Alemanha, e na prática dos trabalhadores que inspiraram a produção intelectual,
como ocorreu na Itália, Alemanha e França.
Neste contexto, os temas do cotidiano, da “indústria cultural”, da razão
instrumental, dos movimentos sociais, dos marginais, não podiam mais ser descartados.
Assim, a ideologia pós-estruturalista, em consonância com a ideologia pós-vanguardista,
apresentou uma alternativa ao movimento contestador. A forma como isto foi realizado
caracterizou-se, principalmente, pela retomada das temáticas anteriores (cotidiano, crítica da
razão instrumental, ciência etc.), e através de sua despolitização e recusa da totalidade. Em
grande parte dos casos, a crítica da razão instrumental aparece sob a forma de irracionalismo,
ou seja, aparece como uma crítica da razão em si, que é acompanhada por uma crítica da
categoria totalidade, ou das “meta-narrativas”. A análise do cotidiano se torna moda, mas
devido à recusa da totalidade, se torna descritiva ou fetichista, através do seu isolamento das
demais relações sociais. É nesse momento histórico que os intelectuais estruturalistas
(Foucault, Derrida, Kristeva etc.), pseudomarxistas (Toni Negri, Castoriadis etc.), entre outros,
vão se metamorfoseando em pós-estruturalistas. É nesse período que surge a “História das
mentalidades” no campo historiográfico francês, em substituição à geração de Braudel e da
história econômica, bem como surge a micro-história, a versão italiana do pós-estruturalismo
em historiografia. A terceira geração da Escola dos Annales, pós-estruturalista, assume o
poder em 1969. Isso não é mera coincidência.
Porém, o desenvolvimento capitalista também necessita ampliar o mercado
consumidor e a crise do regime de acumulação intensivo-extensivo tornou ainda mais urgente
esta necessidade. A reprodução ampliada do mercado consumidor significa o deslocamento
dos investimentos, cada vez mais para a esfera dos meios de consumo, visando barrar o
desenvolvimento acelerado dos meios de produção, significando desenvolvimento tecnológico
que teria como consequência o aumento ainda mais acelerado da composição orgânica do
capital. O que esta estratégia realiza não é a estagnação do desenvolvimento tecnológico e
científico, mas uma desaceleração. Esta desaceleração, no entanto, significa tão-somente que,
se tal estratégia de reprodução ampliada do mercado consumidor de meios de consumo não
fosse realizada, seria ainda mais acelerada do que já é. Isso gera, inclusive, a transformação
de tecnologia que servia como meio de produção passar a servir como meio de consumo. Mas,
o que nos interessa aqui, é a necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor e
das estratégias produzidas para efetivar isto, que se intensifica a partir do regime de
acumulação intensivo-extensivo e, devido às dificuldades mais intensas e permanentes no
regime de acumulação integral, é ainda mais necessário o uso desta estratégia por parte do
capital.
Assim, a reprodução ampliada do mercado consumidor na era do regime de
acumulação de capital gera nichos de mercado, antes não explorados (por exemplo, a
produção de mercadorias para atender as necessidades, na verdade criar tais necessidades,
para homossexuais, “afrodescendentes”, animais, ecologistas, torcedores de futebol etc.). Se
um grande nicho de mercado durante o regime de acumulação intensivo- extensivo foi a
juventude, hoje nós temos a ampliação e a diversificação desse mercado consumidor. O novo
regime de acumulação transforma até mesmo cães, gatos, hamsters, peixes e aves em
consumidores. Claro que esses animais não entendem a lógica mercantil e nem possuem o vil
metal para adquirir tais meios de consumo, mas seus donos passam a ser vítimas da coleira do
consumismo. Primeiro se consome o animal, uma mercadoria que se compra no mercado, e
depois passa a reproduzir o consumo de forma ampliada, ao comprar mercadorias – produtos
para os animais – para outras mercadorias – os animais que foram comprados. Assim como o
computador é uma mercadoria que traz a necessidade de outras mercadorias (“suprimentos”),
o mesmo acontece com o animal e o carro, para ficar em poucos exemplos.
O novo regime de acumulação, no entanto, encontrou uma fonte bastante promissora
de ampliação do mercado consumidor: a cultura. A mercantilização da cultura é algo antigo,
mas sua intensificação e intervenção se tornam cada vez mais intensiva e extensiva. As
universidades-mercadorias, as publicações-mercadorias, as ideias-mercadorias etc., são
expressões do novo regime de acumulação. Se a cultura mercantil podia renovar-se com as
mudanças existentes, tal como os movimentos artísticos no plano da arte e as escolas
acadêmicas, no plano da ciência, agora sua renovação deve ser mais rápida e ampla, além de
criar nichos de mercado específicos.
Assim, temos a arte pós-vanguardista convivendo com a vanguardista e a primeira
não tem muito o que oferecer em matéria de criatividade, e originalidade, podendo inclusive
repetir ou misturar coisas antigas. A ideologia pós-estruturalista não só convive com o nicho
de mercado das demais escolas acadêmicas, – como o pseudomarxismo, o positivismo clássico
redivivo etc. – como ainda conseguem recuperar o situacionismo, o anarquismo, o
conselhismo, e criar novos nichos de mercado.
Porém, os movimentos artísticos e as escolas acadêmicas passam a ter seu espaço
reduzido e em seu lugar surge o modismo cultural. O movimento artístico tem um processo de
formação e duração que as modas não possuem. Uma moda pode durar cinco anos e ser
substituída facilmente por outra, de acordo com a dinâmica do capital comunicacional. As
modas acadêmicas são mais lentas, devido à própria estrutura consumo acadêmico, mas é
bem mais veloz em sua superação que as antigas tendências expressas nas escolas
acadêmicas. Temos também o uso da tecnologia para transformar a cultura em produção
material, tal como CDs, DVDs, livros, revistas etc., e, em alguns casos, os aparelhos para sua
reprodução (aparelhos de DVD, por exemplo)24.
Desta forma, o pós-vanguardismo e o pós-estruturalismo são a manifestação de uma
contrarrevolução cultural preventiva, gerada pela derrota das lutas sociais do final da década
de 1960, que busca assimilar e domesticar a cultura contestadora do passado e,
simultaneamente, faz parte do processo da nova fase da mercantilização da cultura,
caracterizada pela produção de uma cultura descartável e diversificada. Essa diversificação
cria um nicho de mercado voltado até para os pretensos contestadores da sociedade
contemporânea, e assim temos o pós-estruturalismo crítico e eclético, que apresenta
contestação limitada, para ter espaço no mercado consumidor de parte da juventude e grupos
políticos. Herbert Marcuse já havia percebido isso, no início dos anos 70:
A contrarrevolução é predominantemente preventiva e, no mundo ocidental, inteiramente
preventiva. Aqui, não existe qualquer revolução recente a desmantelar nem nenhuma existe em gestação. E,
no entanto, é o medo da revolução que gera o interesse comum e cria os vínculos entre as várias fases e
formas da contrarrevolução. Esta percorre toda a gama desde a democracia parlamentar à ditadura
declarada, passando pelo Estado policial. O capitalismo reorganiza-se para enfrentar a ameaça de uma
revolução que seria a mais radical de todas as revoluções históricas. Seria a primeira revolução histórica
verdadeiramente mundial (Marcuse, 1981, p. 11-12).
O pós-estruturalismo, mesmo o crítico e o eclético, são partes componentes da
contrarrevolução cultural preventiva e são mercadorias consumidas em novos nichos de
mercado consumidor. Essa mutação cultural acompanha a mudança no regime de acumulação,
que necessita da reprodução ampliada do mercado consumidor, criando uma cultura
descartável e diversificada, e da contrarrevolução intelectual, através da expansão e
desenvolvimento de uma cultura conservadora (pós-estruturalismo conservador,
protofascismo, ideologia da globalização, sociologia conservadora, culturalismo etc.) ao lado
de uma cultura crítica domesticada (pós-estruturalismo crítico e eclético, tendências
revolucionárias domesticadas etc.). Desta forma, a dinâmica cultural no capitalismo neoliberal
é marcada pela diversidade (que gera nichos de mercado consumidor de cultura) e
descartabilidade, principalmente para o grande público.
Assim, o novo contexto cultural é marcado pelo vazio do pós-vanguardismo e do pós-
estruturalismo. A era do vazio e a luta contra o vazio ocorrem também no mundo cultural na
época do regime de acumulação integral. O problema é que muitos realizam uma luta vazia
contra o vazio cultural e não saem da lógica que buscam combater. A debilidade do pós-
estruturalismo, enquanto ideologia que simplesmente evita aprofundar qualquer questão, gera
sua esterilidade. Porém, isso é interesse de quem detém o poder. Ideias estéreis podem gerar
conservadorismo, imobilismo ou ações igualmente estéreis.
A única saída é a superação do pós-estruturalismo. Esse não precisa ser superado
teoricamente, porquanto ele foi um retrocesso intelectual. O fim do pós-estruturalismo
ocorrerá ou pela via da superação capitalista, que pode assumir um tenebroso caráter fascista
de uma contrarrevolução mais agressiva ainda, ou anticapitalista, através da luta pela
transformação social que irá gerar uma nova sociedade, abolindo as relações sociais que
geram necessidade de ilusões e, por conseguinte, das próprias ilusões.
3 – A Crise da Sociedade do Trabalho
Um dos principais adeptos da tese da crise da sociedade do trabalho é Claus Offe.
Para ele, o trabalho seria a categoria central da sociologia clássica, tanto de orientação
marxista quanto de orientação burguesa. Existiria, assim, nos clássicos da sociologia (Marx,
Durkheim, Weber) uma perspectiva analítica comum caracterizada pela centralidade do
trabalho como categoria explicativa da sociedade.
Para Offe, todas as sociedades são obrigadas a instaurar, através da mediação do
trabalho, uma relação metabólica com a natureza, que permita a sobrevivência da sociedade.
Mas, o que interessa a Offe é ir além dessa “trivialidade sociológica”, que é um aspecto
amplamente reconhecido e, centralizar sua atenção no papel do trabalho e da divisão do
trabalho e também de sua organização e racionalidade na fase clássica da sociologia. Segundo
Offe, o papel atribuído ao trabalho pela sociologia clássica é de elemento explicativo do
mundo social. Marx, Weber e Durkheim, apesar das divergências metodológicas e dos
resultados obtidos, elegeram o trabalho como a “categoria sociológica chave”. É claro que a
sociologia clássica possuía um ponto de partida empírico: o trabalho do século XIX, a visão do
conflito social (ou, no caso de Durkheim, da “integração”), a proletarização da força de
trabalho e a racionalização. Mas agora, segundo Offe, é a ideia do trabalho assalariado como
categoria explicativa que se torna questionável. Quais as razões disto? Segundo ele:
Esse questionamento confirma-se ao observar-se inicialmente a tônica temática da pesquisa, das
conferências e das publicações atuais nas ciências sociais, considerando os pressupostos e os critérios de
relevância, aí mais ou menos explícitos. Assim procedendo, o exame de documentos do campo das ciências
sociais, como catálogos de editoras, programas de fundações de fomento científico, índices de teses e
monografias, permite encontrar diversos indícios, pelo menos para a constatação negativa, de que o trabalho
e a posição do trabalhador no processo produtivo não é tratado como o principal princípio organizador das
estruturas sociais, de que a dinâmica do desenvolvimento social não é de antemão conceptualizada como
resultante de conflitos em torno da dominação no plano empresarial, de que a racionalidade capitalista
industrial da otimização das condições técnico-organizacionais ou da relação meios/fins econômicos não é
suposta como a racionalidade condutora da continuidade do desenvolvimento social etc. (Offe, 1989, p. 16).
Mas Offe sabe que tal fundamentação é frágil e por isso apressa-se em fornecer
“dados empíricos” para reforçar sua tese. Segundo ele, o papel fundamental do trabalho pode
ser questionado ao observar os “múltiplos aspectos empíricos do trabalho”. Ele coloca uma
série de “dúvidas” a respeito da centralidade do trabalho: a) a inexistência de uma identidade
coletiva na classe trabalhadora; b) o crescimento do número de trabalhadores empregados no
setor de serviços; e c) a perda de significado do trabalho para a população.
Para Offe não existe uma identidade coletiva na classe trabalhadora. Ele coloca que
há uma diferenciação interna na classe trabalhadora e que tal diferenciação vem crescendo e
corroendo sua unidade. Segundo ele:
A continuidade da já mencionada diferenciação interna do “trabalhador genérico” na sociedade,
assim como a erosão das sustentações culturais e políticas de uma identidade coletiva centrada no trabalho,
devem ter aguçado aqueles dilemas fundamentados na forma do trabalho assalariado, ao ponto de que o fato
do trabalho assalariado, ou da dependência do assalariamento não represente mais nenhum papel privilegiado
enquanto foco de atenção e significado social, ou de cisão sócio- política. Radicalizando: não é nada evidente
que indagar sobre a noção social “do” trabalhador seja a priori sociologicamente mais relevante que indagar
sobre a noção de sociedade do consumidor de gasolina ou do contribuinte do IPI (Offe, 1989, p. 21).
Offe também enfatiza a expansão do setor de serviços, dizendo que este, ao contrário
do setor industrial, não possui a mesma unicidade e sua expansão diminui a importância da
indústria. Para ele, o setor de serviços possui uma “racionalidade própria”, onde a
“racionalidade técnica” é substituída, nos serviços, por experiência, empatia etc. O trabalho
no setor de serviços diferencia-se do trabalho industrial em dois aspectos:
Primeiro, já por causa da falta de homogeneidade, da descontinuidade e da incerteza temporal,
social e material dos “casos” tratados pelo trabalho em serviços, frequentemente não é possível (a não ser
com consequências contraproducentes) normatizar uma função técnica de produção para o trabalho, a ser
adotada como critério de controle da execução do trabalho. Em segundo lugar, o trabalho em serviços se
distingue do trabalho na produção de bens, na medida em que ela não dispõe de um claro e inquestionado
critério de economicidade, a partir do qual se possa derivar estrategicamente o tipo, o volume, o local e o
momento de sua oferta, e isso porque diversos serviços gerados em organizações públicas e mesmo por meio
de “funcionários” em empresas privadas resultam quando muito em “utilidades” concretas, mas em nenhum
“rendimento” monetário (e no máximo em “economias” de volume dificilmente quantificável) (Offe, 1989, p.
23).
Offe também coloca em questão a perda de significado do trabalho. Ele refuta a tese
do trabalho como “necessidade moral” (Weber) e a tese do trabalho como “condição de
sobrevivência física” (Marx). A primeira tese, segundo ele, foi refutada pela “erosão das
tradições culturais religiosas e secularizadas” e pela expansão do hedonismo consumista,
entre outros fatores. Acrescenta que o trabalho não pode constituir uma unidade subjetiva por
dois motivos: a mudança na estrutura temporal e na biografia de trabalho. Hoje, segundo ele,
a continuidade entre formação e exercício profissional é mais uma exceção do que uma regra,
válida na própria continuidade da vida profissional. Além disso, há tendência de redução do
tempo de trabalho e, consequentemente, de aumento do tempo livre, que os elementos
determinantes são outras experiências, orientações e necessidades.
Para Offe, a tese do trabalho como condição para sobrevivência física perdeu sua
validade nos estados liberais de bem-estar, onde a seguridade social e a preferência pelo
subemprego e desemprego produzem uma alternativa ao trabalho assalariado.
Após essas observações, Offe coloca que, diante do fato de que o trabalho não é mais
a categoria fundamental da sociologia, então quais seriam sociologicamente aplicáveis à
descrição da sociedade? Offe afirma que a teoria habermasiana da “ação comunicativa” se
apresenta como proposta teórica satisfatória ao se separar razão instrumental e razão
comunicativa. A ideia clássica da centralidade do trabalho perde cada vez mais sua
“respeitabilidade acadêmica”, principalmente com a divulgação das concepções de Foucault,
Touraine, Gorz, entre outros. Mas, mesmo os “marxistas”, começam a mudar o eixo de suas
preocupações, do modo de produção para o modo de vida e o cotidiano. Mas essas últimas
concepções são criticadas por Offe:
No meu modo de ver, entretanto, a utilização de tais dicotomias apresenta, via de regra, duas
deficiências (...). Inicialmente, existe uma sensível assimetria no grau de estruturação conceitual nos dois
lados dessas dicotomias; enquanto que pelo lado do trabalho e da produção sabemos claramente com quais
estruturas, atores e princípios de racionalidade podemos contar e, por isso, com quais categorias devemos
trabalhar, pelo lado oposto, no “modo de vida”, isto é menos claro (Offe, 1989, p. 36).
Outra deficiência que Offe observa nessas dicotomias, com exceção do caso de
Habermas e Daniel Bell, é que tais esquemas binários não passam de classificações ad hoc,
que não são integrados numa teoria social. Ele conclui afirmando que, uma nova teoria
deveria dar conta da razão do trabalho ter perdido sua importância na determinação da
estrutura social e, devido a isto, libera espaço para novos atores sociais e novas
racionalidades.
Ao final do artigo de Offe surge uma sensação de vazio. Tal sensação ocorre por três
motivos: em primeiro lugar, a “fundamentação” de sua tese de superação da “centralidade” da
categoria trabalho é pouco convincente e demasiadamente “abstrata”, além de pouco
aprofundada em seu debate com os clássicos; em segundo lugar, ele não apresenta nenhuma
concepção alternativa, a não ser uma vaga referência a Habermas; em terceiro e último lugar,
fica a pergunta: de onde vem tamanho barulho em torno de Offe e seu artigo, um tanto quanto
pobre?
Antes de tratarmos dessa última questão, devemos recolocar a questão do trabalho
que foi posta de pernas para o ar por Offe. Antes de tudo, cabe indagar a afirmação de Offe,
segundo a qual o trabalho é uma categoria chave para a sociologia clássica, onde se incluem
em Marx, Durkheim e Weber. No caso de Marx, tal afirmação é correta (desde que se
ultrapasse sua simplicidade aparente e se penetre na complexidade da teoria do modo de
produção e das classes sociais). Mas no caso de Weber, já não se pode sustentar essa tese de
forma convincente, embora o trabalho tenha um papel importante em sua concepção, pois, é
difícil considerar sua “categoria fundamental”. No caso de Durkheim, isto é mais difícil de
sustentar-se, principalmente tendo-se em vista a sua concepção holista de sociedade. Isso é
tão verdadeiro que Offe nunca compara suas teses com as de Durkheim, mas tão-somente com
Marx e, em menor grau, com Weber. O que Claus Offe faz, na verdade, é buscar refutar Marx,
pois este é o único teórico que realmente fornece uma importância explicativa ao trabalho. É
por isso que iremos focalizar as teses de Offe, contrapondo-as, principalmente a teoria de
Marx e, em alguns casos, a Weber.
A primeira fundamentação apresentada por Offe é a temática de pesquisas,
conferências e publicações em ciências sociais e do exame de catálogos de editoras e índices
de teses e monografias etc. Mas tal fundamentação é inconsistente. O exame, citado pelo
autor, não é suficiente para levar às conclusões a que ele chega. Os catálogos de editoras,
índices de teses ou monografias etc., se referem apenas à Alemanha ou ao conjunto dos países
da Europa Ocidental? Ou, ainda, aos países capitalistas superdesenvolvidos ou ao mundo
todo? Outro questionamento que se pode fazer é o seguinte: o procedimento de tomar a ideia
mais difundida como sendo verdadeira é válido? Se isso fosse correto, talvez ainda
estivéssemos defendendo o geocentrismo... Além disso, Marx já dizia que “a ideologia
dominante é a ideologia da classe dominante” e por isso não podemos nos iludir com as ideias
dominantes.
Mas Offe também diz que não existe uma identidade coletiva na classe trabalhadora.
A diferenciação da classe trabalhadora teria corroído a identidade coletiva. Do ponto de vista
da teoria marxista, isso não tem o menor sentido. A identidade coletiva que Offe julga
necessário encontrar na classe trabalhadora é um equívoco. Em primeiro lugar, para a teoria
marxista, o conceito utilizado é o de consciência de classe e não o de identidade coletiva (que
ele retira de Habermas). Daí nota-se que é preciso distinguir entre o proletariado (composto
pelos trabalhadores assalariados produtivos) e demais trabalhadores. No interior do
proletariado existem divisões (algumas produzidas pelo próprio capital, como Marx colocou) e
estas, sem dúvida, interferem no processo de desenvolvimento de sua consciência de classe.
Mas não tem o menor sentido utilizar ideias apresentadas por Marx, e incluídas em sua
análise como elemento complicador, mas cuja solução a sua própria teoria já tinha indicado o
caminho, para refutá-lo, como Offe faz.
Marx afirmava que o proletariado passava de “classe-em-si” a “classe-para-si”
através da luta de classes (Marx, 1989). Vários pensadores posteriores, superando essa
linguagem hegeliana, trabalharam a tese da passagem da consciência de classe contraditória
para a consciência de classe revolucionária (Reich, 1986; Gramsci, 1987). A chamada
“identidade coletiva” da classe trabalhadora a que Offe se refere não é uma “coisa dada”,
segundo a teoria marxista. Ela é o resultado da luta de classes e significa a unificação do
proletariado, tanto ao nível da consciência coletiva quanto ao nível da prática concreta, mas
que só ocorre nos períodos revolucionários. A visão clara desse processo também é facilitada e
em períodos não-revolucionários ele se torna quase imperceptível. Portanto, a constatação de
Offe não refuta a teoria de Marx e demonstra, aliás, uma incompreensão desta.
O problema da expansão do setor de serviços é tratado de forma pouco convincente
por Offe. Em primeiro lugar, de acordo com a teoria marxista, a quantidade de pessoas
empregadas na indústria ou no setor de serviços não altera a importância relativa de um ou de
outro. Na verdade, a produção de mais-valor é a questão fundamental. O setor de serviços não
produz mais-valor e, portanto não possui um papel determinante no desenvolvimento do modo
de produção capitalista. A diminuição quantitativa de trabalhadores de indústria e o aumento
dos trabalhadores no setor de serviços não significa a perda de importância do primeiro. Aliás,
a própria expansão do setor de serviços é explicada pelo desenvolvimento do modo de
produção capitalista, que se fundamenta, como já foi dito, na produção de mais-valor.
Offe também afirma que há uma “racionalidade própria” no setor de serviços,
afirmação que se contrapõe mais às teses de Weber do que de Marx. Entretanto, a
racionalidade do setor de serviços é tão burocrática quanto de qualquer outro “setor”. É claro
que a racionalidade capitalista aplicada nesse setor assume características específicas, mas
mantém sua essência. Por isso a tese de Offe é bastante frágil, pois faltou comparar a
racionalidade dos outros “setores” com a do setor de serviços para demonstrar a diferença
radical que ele julga existir.
O trabalho deixou de ser uma “necessidade moral”? Quando Weber tratou da “ética
do trabalho” promovido pela religião protestante, ele deixou claro que se tratava de uma
análise de um período histórico delimitado – o do surgimento do capitalismo – e que não o
ultrapassava (Weber, 1987). Erigir isso em “princípio universal” é um tanto quanto
problemático. Mas, de qualquer forma, até hoje o trabalho é visto por certos grupos sociais
(que, sem dúvida, não são majoritários) como uma necessidade moral. Também persiste, em
nossos dias, certa ideologia do trabalho (produtivo).
O problema da “descontinuidade da biografia de trabalho” e da “redução do tempo
de trabalho” pode expressar apenas uma possibilidade de afastamento em relação ao trabalho
assalariado (que é, para Marx, um trabalho alienado deve ser superado historicamente),
elemento importante para a transformação social, pois abre espaço maior para a negação do
trabalho alienado e isso significa a unificação do proletariado e não, como quer Offe, sua
dispersão. Mas devemos alertar que isto gera apenas a possibilidade e não um
desenvolvimento natural. A própria “descontinuidade da biografia de trabalho” e a “redução
do tempo de trabalho” não são um processo natural, como deixa entrever o evolucionismo
unilinear e simplista de Offe, e sim um processo social contraditório que pode tanto avançar
quanto recuar, dependendo das lutas sociais.
Offe se defronta novamente com a teoria marxista quando nega que o trabalho seja
uma “condição de sobrevivência física” no mundo atual. Em primeiro lugar, seu quadro
analítico parece só levar em conta os países capitalistas superdesenvolvidos. Aliás, isso fica
claro quando fundamenta sua tese dizendo que “os estados liberais do bem-estar”
possibilitam, através da seguridade social, juntamente com a opção pelo subemprego, o “viver
sem trabalho”. Além de a tese circunscrever-se num espaço geográfico restrito e não
podermos deixar de relacionar o bem-estar do “primeiro mundo” com o mal-estar dos “demais
mundos” (ou seja, a questão da transferência internacional de mais-valor), ela é inexata, pois
toma uma determinada situação histórica como um estágio superior da história e que só pode
seguir rumo ao “progresso” e assim se descarta a possibilidade existente de retrocesso. Aliás,
a atual onda neoliberal, a perda de direitos sociais, o desemprego em massa, a luta pelo
mercado de trabalho, entre outros acontecimentos históricos contemporâneos, já são
suficientes para refutá-lo.
Podemos também discutir quais são as categorias sociológicas adequadas para
entender a sociedade do “pós-trabalho”. Offe, neste ponto, é mais vago ainda. Na verdade, ele
apenas aponta a teoria habermasiana da ação comunicativa como “proposta teórica
satisfatória” e faz algumas críticas à algumas teses existentes. Cabe aqui acrescentar que,
quando alguns marxistas tratam do modo de vida ou do cotidiano (Granou, 1975; Lefebvre,
1991; Harrington, 1977), o fazem de forma articulada com o modo de produção e que nestes
casos não há nenhuma dicotomia ou “esquema binário”. Além disso, o modo de vida se tornou
uma preocupação para a teoria marxista no momento histórico em que o modo de produção
capitalista realizou uma invasão burguesa do cotidiano, através de um amplo processo de
competição, mercantilização e burocratização do conjunto das relações sociais – a expansão
do setor de serviços é apenas mais um aspecto deste processo.
Por fim, resta descobrir de onde vem tanto sucesso de um artigo tão pouco
explicativo e carregado de equívocos. Há vários motivos para tão alardeado sucesso: o
modismo da crítica ao marxismo, o predomínio da consciência coisificada, a avalanche de
ideologias legitimadoras do novo regime de acumulação etc. Para encerrar, podemos dizer que
o trabalho continua sendo o fundamento explicativo da sociedade contemporânea.
O filósofo alemão Jürgen Habermas pertence à chamada “segunda geração” da
Escola de Frankfurt. Ele herda dessa escola a influência do Iluminismo e do racionalismo. Sua
tese principal, no que se refere ao problema aqui tratado, é que hoje vivemos uma “crise da
utopia da sociedade do trabalho” e essa crise teria levado a um “esgotamento das energias
utópicas”. Vejamos tudo isso mais de perto.
Habermas parte da constatação que a partir do final do século 18 surgiu uma nova
consciência de tempo. A ênfase passa a recair sobre a transitoriedade dos acontecimentos
históricos e na perspectiva de um futuro novo. A modernidade se caracteriza pelo
entrelaçamento da tradição e da inovação. Segundo ele, o “espírito da época” realiza a fusão
do pensamento histórico e do pensamento utópico. Esses dois tipos de pensamento,
inicialmente, se excluem. O pensamento histórico, devido sua ligação com a experiência,
critica o projeto utópico. Este, por sua vez, nega a continuidade histórica. Mas, desde a
Revolução Francesa, ocorre a fusão desses dois tipos de pensamento. O pensamento político
moderno busca resistir ao peso dos problemas atuais e se encontra repleto de energias
utópicas, mas ele controla o excesso de expectativas com o contrapeso da experiência
histórica e sua carga de conservadorismo.
O pensamento utópico e o pensamento histórico se uniram no pensamento político
dos socialistas pré-marxistas (Fourier, Proudhon, Owen, Saint-Simon) até chegar ao marxismo.
Mas, no limiar do século XXI, segundo Habermas, o pensamento histórico parece ter se
distanciado do pensamento utópico e o futuro passa a ser visto de forma negativa: a espiral
armamentista, a difusão sem controle das armas nucleares, o desemprego crescente, a
destruição ambiental etc., formam um quadro desanimador para o futuro. Desta forma,
Habermas conclui que há “esgotamento das energias utópicas”. Segundo ele:
Há certamente bons motivos para o esgotamento das energias utópicas. As utopias clássicas
traçaram as condições para uma vida digna do homem, para a felicidade socialmente organizada; as utopias
sociais fundidas ao pensamento histórico (que interferem nos debates políticos desde o século XIX (despertam
expectativas mais realistas. Elas apresentam a ciência, a técnica e o planejamento como instrumentos
promissores e seguros para um verdadeiro controle da natureza e da sociedade. Contudo, precisamente essa
expectativa foi abalada por evidencias massivas. A energia nuclear, a tecnologia de armamentos e o avanço no
espaço, a pesquisa genética e a intervenção da biotecnologia no comportamento humano, a elaboração de
informações, o processamento de dados e os novos meios de comunicação são técnicas de consequências
intrinsecamente ambivalentes. E quanto mais complexos se tornam os sistemas necessitados de controle,
tanto maiores as probabilidades de efeitos colaterais disfuncionais. Nós percebemos diariamente as forças
produtivas transformarem-se em forças destrutivas e que a capacidade de planejamento transforma-se em
potencial desagregador (Habermas, 1987, p. 105).
Neste momento histórico, logo surgem os anunciadores da crise da modernidade e o
aparecimento da pós-modernidade. Mas Habermas discorda da tese do surgimento da pós-
modernidade. Para ele, o que chegou ao fim é uma determinada utopia, a utopia da sociedade
do trabalho. Essa utopia está presente em Marx e na tese dos “trabalhadores livremente
associados”, ideia que ressurgiu sob o título de autogestão nos movimentos radicais do final
da década de 60. Segundo Habermas:
A utopia de uma sociedade do trabalho perdeu sua força persuasiva (e isso não apenas porque as
forças produtivas perderam sua inocência ou porque a abolição da propriedade privada dos meios de
produção manifestamente não resulta por si só no governo autônomo dos trabalhadores. Acima de tudo, a
utopia perdeu seu ponto de referência na realidade: a força estruturadora e socializadora do trabalho
abstrato. Claus Offe compilou convincentemente (sic) “indicações da força objetivamente decrescente de
fatores como trabalho, produção e lucro na determinação da constituição e do desenvolvimento da sociedade
em geral” (Habermas, 1987, p. 106).
Mas esta utopia de uma sociedade do trabalho também se manifesta sob a forma de
projeto sócio-estatal. A crise do estado de bem-estar social e dos partidos trabalhistas,
socialdemocratas e socialistas deixa entrever que tal projeto também está esgotado. O próprio
“sucesso” do estado de bem-estar social produz efeitos colaterais que levam à crise social.
Entre outros fatores, pode-se citar os custos crescentes com salários e encargos trabalhistas
que levam ao crescimento de investimento em racionalização que, por sua vez, intensifica a
produtividade do trabalho de forma elevada gerando diminuição do tempo de trabalho
socialmente necessário, o que provoca ociosidade crescente na classe operária.
Além disso, o objetivo do projeto sócio-estatal era controlar o crescimento econômico
e impedir que seus reflexos destrutivos atingissem os trabalhadores. Isto, segundo Habermas,
proporcionou um “alto grau de justiça social”, mas, ao mesmo tempo, devido ao unilateralismo
de objetivo, provocou excesso de regulamentação e burocratização que produziram “efeitos
contraproducentes” na política social, criando, pois, um “mundo da vida” excessivamente
“regulamentado, analisado, controlado e protegido” e, simultaneamente interferindo no ciclo
econômico de forma inadequada ao seu, crescimento. A partir disso Habermas conclui que a
utopia de uma sociedade do trabalho está esgotada.
Diante desse quadro, as respostas fornecidas pelos “agentes sociais” não oferecem
alternativa viável. Habermas coloca a existência de três tipos de reação: os “legitimistas”, os
“neoconservadores” e os “dissidentes”. Os legitimistas (a socialdemocracia de direita), que se
colocam numa posição defensiva, buscam harmonizar o desenvolvimento do “estado social” e
da modernização através da economia de mercado, abandonando assim o ideal de superação
do trabalho heterônomo. Mas a nova situação eleitoral e a crise do sindicalismo corroem suas
bases de sustentação. Os neoconservadores (neoliberais) estão em ascensão. As suas
propostas políticas e ideológicas enfatizam o crescimento econômico através do livre jogo do
mercado. O grupo dos dissidentes é composto pelos “novos movimentos sociais” que fazem
“aliança antiprodutivista” e possuem uma visão ambígua do estado social, pois recusam a
visão produtivista do progresso em voga e questionam tanto a mercantilização (dinheiro)
quanto à burocratização (poder) e apresentam um projeto que propõe formas de organização
mais próximas da base e “autogestionárias”, desvinculação da segurança social e emprego
etc.
Porém, afirma Habermas, hoje não apenas o capitalismo, mas também o “próprio
estado intervencionista deve ser socialmente contido”. Isso complica a situação. Segundo ele:
Se agora contenção e controle indireto devem dirigir-se também contra a dinâmica interna da
administração pública, a capacidade indispensável de reflexão e controle deve ser procurada em outro lugar, a
saber, em uma relação completamente transformada entre as esferas públicas autônomas auto-organizadas,
de um lado, e os domínios de ação regidos pelo dinheiro e pelo poder administrativo, de outro lado
(Habermas, 1987, p. 112).
Isso significa que o estado social deve buscar controlar a economia capitalista e a si
mesmo. Mas, desta forma, o trabalho perde o privilégio de ser o ponto central de referência.
Habermas acrescenta que o poder, o dinheiro e a solidariedade são os três recursos que a
sociedade moderna possui para garantir o exercício do governo. Para ele:
As esferas de influência desses recursos teriam de ser postas em um novo equilíbrio. Eis o que
quero dizer: o poder de integração social da solidariedade deveria ser capaz de resistir às “forças” dos outros
dois recursos, dinheiro e poder administrativo. Pois bem, os domínios da vida especializados em transmitir
valores tradicionais e conhecimentos culturais, em integrar grupos e em socializar crescimentos, sempre
dependeram da solidariedade. Mas desta fonte também teria de brotar uma formação política da vontade que
exercesse influência sobre a demarcação de fronteiras e o intercâmbio existente entre essas áreas da vida
comunicativamente estruturadas, de um lado, e Estado e economia, de outro lado (Habermas, 1987, p. 112).
Portanto, é o surgimento de esferas públicas autônomas que podem produzir lutas
nos “microdomínios da comunicação cotidiana” que busquem criar uma nova
intersubjetividade, um novo consenso. Assim, a crise da utopia da sociedade do trabalho não
destrói a utopia em geral. Ela apenas nos revela a ilusão de que a razão instrumental
desencadeada no interior das forças produtivas poderia cumprir um papel emancipador.
Habermas afirma que:
O projeto do Estado social voltado para si mesmo despede-se da utopia de uma sociedade do
trabalho. Esta orientara-se pelo contraste do trabalho vivo e do trabalho morto, pela ideia de autoatividade.
Para isso ela certamente precisou supor as formas subculturais de vida dos trabalhadores industriais como
uma fonte de solidariedade. Ela precisou pressupor que relações de cooperação no interior da fábrica até
mesmo forçariam a naturalmente estabelecida solidariamente da subcultura dos trabalhadores. Mas essas
relações de cooperação têm se desagregado tanto quanto possível nesse meio tempo; e é de certa maneira
duvidoso que sua capacidade de instituir solidariedade no emprego possa ser restaurada. Seja como for, o que
para a utopia de uma sociedade do trabalho era pressuposto ou condição marginal hoje se converteu em tema.
E com esse tema os acentos utópicos deslocam-se do conceito do trabalho para o conceito de comunicação
(Habermas, 1987, p. 114).
Habermas enfatiza o papel destas “esferas públicas autônomas”. Habermas, em seu
texto Soberania Popular Como Procedimento, retoma sua crítica a Marx e ao reformismo e,
curiosamente, defende a ideia de que o anarquismo ainda possui uma atualidade. A partir do
reconhecimento da atualidade do anarquismo, ele fundamenta sua tese de formação de
associações espontâneas e auto-organização. Habermas coloca que:
Estas apresentam um grau mínimo de institucionalização: os contatos horizontais no plano das
interações simples devem adensar-se numa prática intersubjetiva de deliberação e execução que seja o
suficiente forte para manter todas as outras instituições no estado fluido de agregado da fase de fundação,
preservando-as por assim dizer do coagulamento. Esse anti-institucionalismo tem pontos de contato com
antigas concepções liberais de um espaço público sustentado por associações, no qual a prática comunicativa
pode realizar-se numa formação de opinião e vontade dirigida de maneira efetivamente argumentativa
(Habermas, 1990, p. 107).
Assim, segundo Habermas, só é possível uma “democratização fundamental” através
da instauração de espaços públicos autônomos, pois somente estes podem possibilitar a
formação racional de uma vontade e opinião para efetivá-la, bem como a soberania popular.
As colocações de Habermas sobre o “esgotamento das energias utópicas” são
parcialmente verdadeiras. Podemos dizer que os “legitimistas” e “neoconservadores”
realmente não produzem nenhuma alternativa ao mundo existente e, se encontram numa
situação de perplexidade, embora a extrema-direita esteja ansiosa para conquistar o poder. Os
que ele chama de “dissidentes”, entretanto, ainda são uma reserva de energia utópica. De
qualquer forma, a ideia de se instaurar uma “sociedade do trabalho” equilibrada está
ultrapassada.
Ocorre, porém, que Marx e os marxistas revolucionários nunca propuseram tal coisa.
Pelo contrário, no marxismo, a crítica ao estado socialdemocrata (e também ao estado liberal
e fascista) sempre esteve presente. Do ponto de vista da teoria marxista, não se trata de
controlar o desenvolvimento capitalista e nem a organização burocrática do estado e sim
substituí-los pela “livre associação dos produtores”. Mas esta não se caracteriza por ser uma
“sociedade do trabalho” e nem, como querem outros, do não-trabalho, pois ela rompe
justamente com essa divisão entre trabalho e não-trabalho. Pode-se falar isto quando se refere
à concepção stalinista, à União Soviética etc., mas não quando se trata das ideias de Marx ou
do marxismo revolucionário. A dicotomia que Habermas erige entre a razão instrumental e
razão comunicativa, parcialmente verdadeira no que se refere ao capitalismo, seria inexistente
neste tipo de sociedade.
Abordemos rapidamente a ideologia habermasiana do agir comunicativo. Para
Habermas existem dois tipos de racionalidade: a razão instrumental e a razão comunicativa.
Segundo ele, a razão instrumental é produzida por um discurso técnico e científico que
cumpre a função de legitimar a dominação. O desenvolvimento das forças produtivas não
possui mais um caráter revolucionário. A ciência e a técnica, partes constitutivas das forças
produtivas no capitalismo tardio, se tornaram ideológicas. Isto ocorreu devido ao fato de que o
capitalismo tardio precisa, para se reproduzir, da crescente intervenção do estado no
desenvolvimento do modo de produção capitalista, principalmente a partir da Segunda Guerra
Mundial. Um dos aspectos centrais dessa intervenção se localiza na pesquisa científica e
tecnológica, criando grandes centros de pesquisas estatais (Habermas, 1987b).
O discurso técnico assume uma importância fundamental como fonte de legitimação
do capitalismo tardio. As decisões relativas ao poder passam a ser tomadas a partir de
critérios técnicos a cargo de uma minoria de especialistas, técnicos. Essa ideologia, segundo
Habermas, possui em comum com as outras ideologias a característica de nunca
problematizar a questão do poder existente. Ocorre, porém, que ela distingue-se das outras
ideologias, que dominaram no passado, pelo fato de não buscar sua legitimação em normas
consideradas justas e sim sustentando que são as normas técnicas que devem comandar o
processo de decisão, pois só elas são eficazes. Para Habermas, a ideologia tecnocrática ou
discurso técnico é muito mais radical que qualquer outra ideologia. A razão disso se encontra
no fato de que ela busca assimilar a estrutura da ação comunicativa à ação instrumental.
Surge assim, um consenso factual baseado na razão instrumental. Essa razão
instrumental cria um “falso consenso”. O objetivo passa a ser, então, a criação de um novo
consenso, que deve fundamentar- se no agir comunicativo.
Mas é interessante ressaltar as limitações da alternativa apresentada por Habermas.
Segundo a tradição marxista, tal alternativa seria definida como reformista, pois busca uma
nova configuração do “estado social” e não sua abolição. Apesar de suas referências elogiosas
ao anarquismo, ele considera esta última concepção apenas em seus meios e não em seus
objetivos (a autogestão em pressupõe o fim do estado e do mercado). Ele simplesmente evita
aprofundar questões fundamentais como, por exemplo, a revolução tecnológica e suas
consequências sociais (desemprego), a tendência declinante da queda da taxa de lucro médio
e as crises do capital etc. Habermas prefere, ilusoriamente, repartir a realidade social em três
esferas (o poder, o dinheiro e a comunicação, ou “solidariedade”) e buscar um equilíbrio com a
primazia da comunicação. Postura nada radical, pois não postula nenhuma ruptura, que revela
uma mistura de comodismo e evolucionismo. Sua concepção é até mesmo conservadora, pois
busca apenas mudar as relações entre as esferas e não substituí-las.
A proposta de surgimento do que ele chama de “espaços públicos autônomos” e
“associações voluntárias”, em si mesma, é interessante e não se contrapõe à tradição
socialista. Mas tal proposta carece de fundamentação. Afinal, Habermas nunca coloca quais
são as condições necessárias para surgirem tais espaços públicos autônomos e associações
voluntárias. O estado, instrumento do poder (e da razão instrumental) aceitaria a formação
desses “espaços públicos autônomos” e “associações espontâneas”? Até que ponto os espaços
e associações não se corromperiam, tal como ocorreu com os partidos e sindicatos?
As respostas a estas questões deixam claras as limitações da ideologia
habermasiana. Portanto, devemos concluir que Habermas acaba caindo numa concepção
“utópica” (no sentido de “utopia abstrata”, segundo expressão de Ernst Bloch) influenciada
pela filosofia iluminista, caracterizada por excessiva fé na razão. Trata-se de um racionalismo
utópico-abstrato.
É por isso que ele pode evitar a questão dos agentes da transformação social. Quem
são os responsáveis pela formação dessas associações e espaços? Habermas não responde. Ele
prefere acreditar em um desenvolvimento metafísico de espaços e associações, ao invés de
identificar que são os agentes, os indivíduos histórico-concretos, que irão realizar tal tarefa.
Ao reconhecer isso teria que retomar a teoria marxista. Isso provocaria uma discussão sobre
necessidades, interesses, classes sociais, luta de classes etc., e que nos remete a um plano
histórico-concreto. Em primeiro lugar, seria necessário observar que o poder não existe sem
motivo e que ele busca manter as relações de produção capitalistas. Mas o estado não é uma
entidade metafísica e sim uma relação de dominação de classe, mediada pela burocracia
estatal, que se encontra aquartelada nos meios estatais de administração. A classe capitalista
e as classes auxiliares (a burocracia estatal, em especial) combateriam qualquer tentativa de
transformação social. Essa tentativa, por sua vez, precisaria ser encaminhada por indivíduos
concretos que teriam interesse, assim como a possibilidade de transformar as relações de
produção, que é a determinação fundamental da sociedade. Esses indivíduos só podem ser os
provenientes das classes exploradas e em especial aqueles que possuem uma posição chave
para transformar tais relações, os indivíduos proletários, envolvidos diretamente no processo
de produção capitalista. Por conseguinte, somente a teoria marxista das classes sociais
poderia superar o utopismo abstrato, racionalista, de Habermas.
Habermas tenta refutar o marxismo, mas não consegue. Quando ele fala do “papel
decrescente do trabalho” nos remete a Claus Offe, que, como já vimos, comete inúmeros
equívocos e fracassa na tentativa de demonstrar que o marxismo foi superado pelo
desenvolvimento histórico do capitalismo. Habermas não consegue ultrapassar a estratégia,
mil e uma vezes utilizada (algumas vezes intencionalmente, outras não), de simplificar o
marxismo, para conseguir refutá-lo, tal como na repetida fórmula do “desenvolvimento das
forças produtivas” como motor da história.
Também é digno de nota o fato de Habermas, da mesma forma que Offe, centrar sua
atenção nos países capitalistas superdesenvolvidos e se esquecer do resto do mundo, ou seja,
dos países capitalistas subordinados, e também das relações internacionais, onde ocorre a
transferência de mais-valor.
Por fim, podemos dizer que o racionalismo habermasiano não consegue explicar o
mundo contemporâneo e nem apontar uma alternativa a ele. Habermas fica preso no prédio
de concreto da razão comunicativa, que não tem portas e nem janelas. Trata-se de uma prisão
que não tem saída.
Desta forma, podemos observar que tanto Habermas quanto Offe equivocam-se ao
falar de uma importância decrescente do trabalho na sociedade contemporânea. Na verdade,
para sustentar essa tese seria necessário comprovar que a produção de mais-valor foi
superada ou então que foi subjugada por outra forma de produção. Entretanto, isso não é
verdadeiro e nem esses autores tentaram fundamentar tal ideia. Somente no caso do fim da
produção de mais-valor é que se poderia falar em “crise da sociedade do trabalho” ou da
“importância decrescente do trabalho”. Mas como nem Habermas nem Offe o fazem, então
não há como dizer que eles conseguiram refutar a teoria marxista do modo de produção
capitalista e tudo que deriva daí.
Mas deixando o plano da ideologia e retornando ao plano histórico e social, podemos
dizer que o trabalho assalariado produtivo continua sendo a base da produção e reprodução
da sociedade contemporânea e, por isso não há como dizer que ele está em crise. Sem dúvida,
o trabalho assalariado produtivo está diminuindo quantitativamente, embora alguns neguem
tal fato, mas isso não significa, que ele perde sua relevância social, pois sua importância não
vem do seu quantum e sim de sua característica como elemento constituinte da sociedade
capitalista. Marx já dizia que, durante o período manufatureiro, a supremacia do capital
comercial fornecia o predomínio do capital industrial. Posteriormente, o capital industrial
passou a caminhar com as próprias pernas e esse fato traz consigo a supremacia comercial.
Isto quer dizer que para o capital industrial predominar não é necessário que seja
quantitativamente superior a outras formas de produção. Por conseguinte, o capital industrial
continua coordenando o desenvolvimento da sociedade contemporânea e ele se fundamenta
sobre o trabalho assalariado produtivo.
Também não se pode negar que a revolução tecnológica e o desemprego em massa,
cujo processo ocorre de forma mais avançada nos países capitalistas superdesenvolvidos,
estão corroendo as bases da sociedade capitalista. Isso não significa, corroer a base de sua
destruição, ou seja, destruir o proletariado, que é o “seu coveiro” (Marx)? Tal visão se esquece
que o proletariado é uma classe social que possui a possibilidade de destruir as relações de
produção capitalistas e instaurar novas relações de produção. Para que ele faça isso é preciso
que passe a dirigir o processo de produção. O fato do processo de automação acabar com
alguns postos de trabalho não significa o fim do processo de produção e sim sua limitação
quantitativa. A diminuição quantitativa, por sua vez, não implica em impossibilidade, pois
qualquer processo de transformação social só pode ocorrer atingindo-o. O aumento massivo
de desemprego não impossibilita esse processo. Por isso, tal fato não anula a possibilidade de
revolução social nos moldes apontados por Marx.
Mas é preciso ver o outro lado da moeda. O processo de transformação social é
reforçado em suas tendências. Isto ocorre pelo fato de a sociedade capitalista acabar sendo
corroída por tais acontecimentos. De que forma? Basta observar que a produção de mais-valor
continua existindo e dominando a sociedade moderna, mas ao mesmo tempo, com o processo
de revolução tecnológica e desemprego em massa, ocorre a queda da taxa de lucro médio, tal
como Marx havia colocado. Cada vez mais aumenta-se o uso de trabalho morto (tecnologia),
que apenas repassa seu valor às mercadorias, e cada vez menos utiliza o trabalho vivo (a força
de trabalho), que produz mais-valor. Isso aumenta a composição orgânica do capital e
reproduz, de forma mais intensa, a dificuldade de reprodução do capital. Além disso, a massa
de desempregados tende a tornar-se uma forte aliada do proletariado e dos demais setores
sociais que buscam a transformação social. Sem dúvida, o estado capitalista e a burguesia
buscam criar contratendências (tanto no nível “econômico”, quanto nos demais níveis) e
inviabilizar tal processo, mas mesmo assim a crise e a possibilidade de uma mudança
revolucionária estão dadas. É exatamente o regime de acumulação integral que constitui a
resposta do capital a esta situação. Porém, nem Offe, nem Habermas, levam em consideração
as lutas de classes e sua expressão na acumulação de capital. Outra alternativa é a volta do
nazi-fascismo e a guerra e, consequentemente, a destruição em massa das forças produtivas, o
que restauraria, por algum tempo, o crescimento capitalista.
Independentemente das possibilidades de resolução da crise, o que se constata é que
a teoria de Marx sobre a sociedade capitalista, deixando de lado todos os modismos
acadêmicos, continua explicando a realidade social. Isto significa, simultaneamente, que o
trabalho assalariado ainda é o pilar que sustenta a moderna sociedade burguesa e que
qualquer tentativa de mudança radical, necessariamente, deve passar por superação e isso só
poderá ocorrer com a ação do proletariado. Ou, em outras palavras, tanto o trabalho
assalariado quanto o proletariado submetido a ele, que é sua negação, não foram
ultrapassados e nem perderam sua importância.
4 – A Ideologia do Trabalho Imaterial
Antônio Negri e seus colaboradores colocam que houve uma transformação no
capitalismo contemporâneo, que promoveu a passagem do modo de produção fordista para o
pós-fordista. A velha classe operária foi substituída, em sua centralidade, pelo trabalho
imaterial. Antes de iniciar a exposição das teses negristas, devemos asseverar ao leitor de que
elas, em parte, são produtos de uma deformação da concepção marxista. Por isso iremos, em
várias oportunidades, apresentar tais deformações.
O modelo pós-fordista, segundo Negri, baseia-se na centralidade do trabalho vivo e
este é sempre “mais intelectualizado”, pois tal modelo pede o “investimento da subjetividade”.
Segundo ele:
Se hoje em dia definimos o trabalho operário como atividade abstrata ligada à subjetividade, é
necessário, todavia, evitar todo mal entendido. Esta forma de atividade produtiva não pertence somente aos
operários qualificados: trata-se também do valor de uso da força de trabalho, e mais genericamente da forma
de atividade de cada sujeito na sociedade pós-industrial (Negri & Lazzarato, 2001, p. 25-26).
Aqui já temos algumas novidades apresentadas pelo negrismo: trabalho vivo,
subjetividade, trabalho produtivo, sociedade pós-industrial. Os conceitos de trabalho vivo e
produtivo são de origem marxista, mas na concepção negrista são, num primeiro momento,
deformados e, num segundo momento, redefinidos. No texto citado, por exemplo, o trabalho
vivo não tem nada a ver com a concepção marxista e é por isso que em textos posteriores se
coloca a necessidade de “ampliá-lo”27. A redefinição de trabalho vivo pelos negristas acaba
reduzindo-o ao que denominam de “trabalho imaterial”. Voltaremos a isto mais adiante.
Negri e Lazzarato consideram que as transformações do trabalho na
contemporaneidade (organização do trabalho descentralizado, fábrica difusa, terceirização
etc.), marcam a passagem para uma sociedade pós-industrial, na qual o trabalho imaterial
ganha centralidade. Há uma integração do trabalho imaterial28 no trabalho industrial e
terciário.
O ciclo do trabalho imaterial é pré-constituído por uma força de trabalho social e autônoma, capaz
de organizar o próprio trabalho e as próprias relações com a empresa. Nenhuma organização científica do
trabalho pode predeterminar esta capacidade e a capacidade produtiva social (Negri & Lazzarato, 2001, p.
27).
As lutas operárias da década de 70 consolidaram “espaços de autonomia”, que são
espaços independentes de organização do trabalho imaterial, e com a emergência do modo de
produção pós-fordista, são subordinados às grandes indústrias, valorizando a “nova qualidade
do trabalho”. Assim, estão dadas as condições de desenvolvimento da sociedade pós-fordista.
A transformação integral do trabalho imaterial e da força de trabalho em intelectualidade de
massa transmuta-se em “sujeito social e politicamente hegemônico”.
Tal tese é inspirada em Marx. Negri e Lazzarato utilizam uma citação dos
Grundrisse:
Como, com o desenvolvimento da grande indústria, a base sobre a qual ela se funda – ou seja, a
apropriação do tempo alheio cessa de constituir ou criar riqueza, assim, com ele, o trabalho imediato cessa de
ser, como tal, a base da produção, porque por um lado vem transformado em uma atividade prevalentemente
de vigilância e regulamentação; mas também porque o produto cessa de ser o produto do trabalho isolado
imediato e é, ao contrário, a combinação da atividade social a apresentar-se como o produtor (Apud. Negri &
Lazzarato, 2001, p. 28).
Assim, o trabalho imediato e o tempo de trabalho deixam de ser medida de produção
e riqueza e passam a ser “apropriação de sua produtividade geral”. A nova base criada pela
própria indústria abole o tempo de trabalho e, por conseguinte, o valor de troca. O mais-valor
deixa de ser medida de riqueza e o não-trabalho deixa de ser condição do desenvolvimento
intelectual. A produção fundada no valor de troca desmorona, o capital busca diminuir o
trabalho necessário, provocando desenvolvimento artístico, científico etc.
Devemos abrir parênteses e expor que a referida citação de Marx, que serve de
fundamento para a tese de Negri e Lazzarato, foi descontextualizada. Marx buscava
apresentar, no trecho citado e nos posteriores, resumidos por Negri e Lazzarato, a tendência
evolutiva do capital para sua autodissolução, num estágio extremamente avançado, marcado
pela automação (Marx, 1985)29. Marx queria dizer tão-somente que o movimento do capital
tende a produzir sua autodissolução. No entanto, não se trata de um movimento automático,
pois o movimento do capital busca desenvolver forças produtivas e impedir seu
desenvolvimento, seu processo contraditório. Por isso existe o que Marx denominou
“destruição periódica de capital” (Marx, 1985), sem falar nas “contratendências” (Marx,
1988c) e na ação estatal, ausentes na análise dos negristas. O movimento do capital busca
desenvolver forças produtivas capitalistas e emperrar aquelas que não lhe são prejudiciais. A
questão está em compreender quais são as forças produtivas capitalistas e quais não são.
As forças produtivas capitalistas são aquelas que se integram na produção de mais-
valor. As forças produtivas prejudiciais ao capital são aquelas que comprometem a produção
de mais-valor. O processo de automação é prejudicial, pois não só reforça o processo de
declínio da taxa de lucro (devido à composição orgânica do capital) como, caso “completado”,
significaria a própria abolição da produção de mais-valor, ou seja, do capitalismo. Portanto,
somente numa concepção economicista e evolucionista se poderia pensar em tal
desenvolvimento, deixando de lado a ação da classe capitalista, do estado etc. Somente uma
leitura dos Grundrisse, isolada dos outros textos de Marx, é que pode possibilitar a ideia que
seria possível abolir a produção do mais-valor pelo desenvolvimento das forças produtivas.
Se, como coloca Negri e Lazzarato, baseando-se em citações do Grundrisse, o valor
de troca tivesse “desmoronado”, então estaríamos realmente em uma sociedade pós-
capitalista, mas não é este o caso, como mostraremos adiante. Aqui fechamos o parêntese.
Negri e Lazzarato prosseguem o raciocínio dizendo que o novo “ator fundamental”
do processo de produção é o intelecto geral (general intellect). A relação sujeito-produção não
é mais caracterizada pela subordinação ao capital e coloca-se, em termos de autonomia, em
relação à exploração. Assim, o conceito clássico de trabalho mostra-se incapaz de explicar a
atividade do trabalho imaterial. Ele é “tempo de vida global”, no qual é difícil distinguir tempo
de trabalho, tempo de produção e tempo livre. No momento em que o trabalho passa a ser
trabalho imaterial e se torna “a base fundamental da produção”, passa a dominar a produção,
e todo o processo de reprodução e consumo. Não há nova produção sob a forma de exploração
e sim como “forma de reprodução da subjetividade”. Desta forma, o trabalho imaterial vai
conquistando uma independência progressiva em relação ao domínio capitalista. O controle
capitalista torna-se totalitário, mas sua influência é apenas formal, pois o conteúdo do
processo pertence a outro modo de produção, caracterizado pela “cooperação social do
trabalho imaterial”.
O que interessa, segundo eles, é a produção da nova subjetividade que surge a partir
de 68 (época da rebelião estudantil), criando focos múltiplos, heterogêneos e transversais de
resistência. Há o surgimento de uma “nova subjetividade”, que possibilita novas análises
(Habermas, Krahl, Foucault, Deleuze, e outros). A questão passa a ser a da “produção
autônoma da subjetividade”:
A subjetividade, como elemento de indeterminação absoluta, torna-se um elemento de
potencialidade absoluta. Não é mais necessária a intervenção determinante do empreendedor capitalista. Este
último torna-se sempre mais externo ao processo de produção de subjetividade, isto é, processo de produção
tout court, se constitui “fora” da relação de capital, no cerne dos processos constitutivos da intelectualidade
de massa, isto é, da subjetivação do trabalho (Negri & Lazzarato, 2001, p. 35).
Essa intelectualidade de massa produz novos antagonismos na “sociedade pós-
industrial”. Para eles, a inteligência coletiva cria contradição entre a “nova subjetividade” e o
domínio capitalista que não é mais “dialética” e sim alternativa, pois sua relação com o capital
está além do antagonismo, é alternativa constituinte de uma nova relação social, nova
realidade, e por isso não cabe a ideia de transição. O que importa não é mais o conflito entre
burguesia e proletariado e sim a constituição autônoma da “subjetividade alternativa”. A
identificação dos antagonismos está subordinada ao reconhecimento dos “novos poderes
constituintes”. Isso produz uma nova noção de revolução que passa a ser compreendida como
uma ruptura radical subordinada à constituição do novo poder.
Assim, estamos diante do pós-fordismo e de um novo ciclo de produção, a do
trabalho imaterial. O fundamental passa a ser o “tratamento da informação”, a “venda e a
relação com o consumidor”. “Esta estratégia se baseia sobre a produção e o consumo da
informação, ela mobiliza importantes estratégias de comunicação e marketing para
reaprender a informação (conhecer a tendência do mercado)” (Lazzarato, 2001, p. 43-44).
Esse processo ocorre tanto na indústria quanto no setor de serviços, é mais visível, e
o consumidor intervém, “de maneira ativa”, na produção. A economia pós-industrial
fundamenta-se no tratamento imaterial (produção audiovisual, publicidade, moda, produção
de software, gestão do território etc.) que institui uma relação específica entre produção-
mercado-consumo. O trabalho torna-se a interface de relação produção-consumo, passando a
ativar e organizá-la. Isto é realizado através do processo comunicativo, formando e
materializando os gostos, o imaginário e as necessidades do consumidor. A mercadoria passa a
ter conteúdo informativo e cultural, constituindo o “ambiente cultural e ideológico” do
consumidor.
Isso, segundo Lazzarato, cria uma nova configuração para o mais-valor. Publicidade
e consumo passaram a ser “processo de trabalho”. O trabalho imaterial tem um valor
econômico quando produz uma relação social (inovação, produção, consumo), cuja “matéria-
prima” é a subjetividade; satisfaz e produz o consumidor, gera valor econômico e
subjetividade.
A nossa hipótese é que o processo de produção da comunicação tende a tornar-se imediatamente
processo de valorização. Se no passado a comunicação era organizada, fundamentalmente, por meio da
linguagem (a produção ideológica, literária e as suas instituições), hoje ela, investida pela produção industrial,
é reproduzida por meio de formas tecnológicas específicas (tecnologia de reprodução do saber, do
pensamento, da imagem, do som, da linguagem) e por meio de formas de organização e do management, que
são portadoras de um novo modo de produção (Lazzarato, 2001, p. 48).
O trabalho imaterial é coletivo, autônomo, produtor de subjetividade, comunicativo e
criativo. Assim, o “produtivo” passa a ser o conjunto das relações sociais, que coloca em jogo o
“sentido” questionando a “apropriação capitalista” do processo, que busca normatizá-lo e
padronizá-lo. “A mais-valia deriva da produção e do controle dos fluxos, em primeiro lugar dos
fluxos financeiros e comunicativos” (Lazzarato, 2001, p. 48).
Lazzarato retoma os críticos de Marx (Habermas, Arendt, Gorz etc.) e coloca que a
crítica que endereçam ao marxismo resulta da incompreensão da relação entre “sujeito e
objeto”:
A particularidade do método marxiano consiste no fato de que suas categorias apreendem, ao
mesmo tempo, a objetividade da produção e a subjetividade dos agentes da transformação, consentindo uma
tradução, em ambos os sentidos, entre estrutura e sujeito. O conceito de trabalho vivo é a chave para analisar
e compreender a produção, seja para apreender o sujeito revolucionário (Lazzarato, 2001, p. 48).
Existe uma “nova centralidade do trabalho vivo” e a superação do “economicismo”
de Marx, postulada por seus críticos, ocorre através da radicalização e ampliação do conceito
de trabalho vivo. Assim, Marx, ao contrário de seus críticos, funda sua teoria da ação no
conceito de trabalho vivo, uma potência ontológica que produz não apenas mercadorias, mas
também relações políticas.
Devemos, depois de explicar e refutar a ideologia do trabalho imaterial, fazer
algumas observações sobre o procedimento “metodológico” de Negri e de seus colaboradores,
é uma crítica ao método de Negri por não ser a dialética positivista fundada por Engels33.
Trata-se, na verdade, da necessidade de revelar o caráter metafísico do conjunto dos
construtos da ideologia negrista.
Entendemos por metafísico uma ideia desligada de uma base concreta, isto é, da
história e das relações sociais concretas, existentes34. Demonstramos que a base do edifício
negrista, a abolição da produção de mais-valor, é irreal e fictícia. O mesmo vale para suas
teses. Mas o caráter metafísico da tese da superação da produção de mais-valor se encontra
no fato de não ter sido fundamentada em material informativo convincente.
O mesmo ocorre com a ideologia da “produção de subjetividade”. Deixando de lado o
caráter ideológico do próprio termo “subjetividade”, a ideia de que a produção é “autônoma” e
“independente” da dominação capitalista não foi fundamentada em lugar algum. Aliás, os
próprios ideólogos negristas falam do “domínio totalitário do capital”, demonstrando
contradição no interior desta ideologia. Somente num isolamento fantástico, típico das
concepções metafísicas, se pode pensar em uma produção de subjetividade autônoma e
independente do domínio do capital.
A pesquisa científica e tecnológica é financiada pelo estado burguês ou pelas
empresas capitalistas para atender aos seus interesses, centrados no lucro, na produção de
mais-valor, isto é, na reprodução do capitalismo. O mesmo ocorre com a comunicação, a arte
etc., que mesmo não sendo financiados pelo capital, são formas-mercadorias que são vendidas
e estão submetidas ao capitalismo, expressando uma cultura mercantil. Basta observar a
decadência artística contemporânea para notar que a arte virou uma forma-mercadoria que
nada tem de autônoma e independente. Mas não só na mercantilização da produção cultural e
intelectual se percebe isso, pois basta observar os indivíduos reais e concretos que são seus
produtores (e não indivíduos “metafísicos”) para ver que seus valores e interesses não são
“autônomos” e “independentes” e nem expressam uma “nova subjetividade”.
O modo de produção pós-fordista, o general intellect, as multidões, o império e todos
os outros construtos da ideologia negrista são metafísicos. Se existe algum império no mundo
contemporâneo é o império das abstrações metafísicas do negrismo.
Outro problema metodológico do negrismo é a substituição da concepção dialética
por uma concepção metafísica de transformação social. Negri quer ser o porta-voz daquilo que
chama “novos antagonismos” da “sociedade pós-industrial”. Negri afirma que a “inteligência
coletiva” dos “sujeitos sociais independentes e autônomos” cria uma contradição entre a
“nova subjetividade” e o domínio capitalista que não é mais “dialética” e sim “alternativa”,
pois sua relação com o capital está além do antagonismo. Ela é alternativa, constituinte de
uma relação social, nova realidade e por isso não cabe a ideia de transição (Negri &
Lazzarato, 2001, p. 35-36).
Já colocamos que esta pretensa “inteligência coletiva”, estes “novos sujeitos sociais
autônomos e independentes” etc. são construções metafísicas. Mas a tese tem um problema
adicional, pois a ideia de trocar dialética pela alternativa tem o objetivo de substituir o sujeito
revolucionário da teoria marxista por um novo sujeito, os trabalhadores imateriais. O desejo
de romper com a dialética não é nada mais que a vontade de ultrapassar a contradição
fundamental entre capital (burguesia) e trabalho (proletariado), pois é do conflito entre
trabalho morto e trabalho vivo que surge o novo, a revolução proletária que instaura a
autogestão social. A “alternativa”, que está “além do antagonismo” com o capital, é um
produto endógeno e não-antagônico ao capital (Negri irá “pescar” seus “peixes” na filosofia de
Spinoza, buscando uma potência metafísica que se desenvolve por si mesma).
É assim que o negrismo descobre o novo “sujeito revolucionário”, os trabalhadores
imateriais que, sem dúvida alguma, não são antagônicos ao capital (como uma classe auxiliar
da burguesia seria antagônica a ela?) e traz em si uma “potência”, que é justamente a
“subjetividade”. A ideologia negrista, assim, substitui o proletariado como produtor de mais-
valor pelos trabalhadores imateriais, e, por conseguinte, o substitui como sujeito
revolucionário. Os trabalhadores imateriais são o substituto negrista do proletariado,
tornando-se, nesta ideologia, os produtores de mais-valor e o sujeito revolucionário.
Observamos, por detrás das teses negristas, um conjunto de valores: supervaloração
da “cultura”, do “intelecto” etc., que se expressa em sua tese que é a “nova subjetividade” e
os sujeitos portadores dela, que realizam a mudança e o novo reino, a sociedade dos
intelectuais, obviamente, os negristas (Negri, Hardt, Lazzarato, Virno etc.) estão entre os tão
privilegiados “trabalhadores imateriais”. Os trabalhadores “materiais”, por sua vez, são
desvalorados (já que não produzem tão rica obra filosófica como Negri e seus colaboradores),
pois a “velha classe operária industrial” foi relegada a segundo plano.
A alternativa proposta pelo negrismo se encontra fora do antagonismo burguês e
proletariado. Agora a intelligentsia é o novo sujeito revolucionário. Antonio Negri foi além do
leninismo, pois em sua concepção a intelligentsia deixa de ser vanguarda para ser o próprio
sujeito revolucionário. Assim, fica fácil compreender por qual motivo o negrismo rompeu com
a tese leninista do “período de transição”. Não se trata de “radicalismo” esquerdista, muito
pelo contrário. Já que o negrismo trocou o “sujeito revolucionário” (o proletariado pelos
“trabalhadores imateriais”) e que o novo agente da revolução está “além do antagonismo” com
o capital, então é dispensável a ideia de revolução. Esse é o motivo pelo qual muitos irão
denunciar o reformismo de Negri e seus colaboradores. Como havíamos mencionado
anteriormente, em nenhum momento o negrismo coloca a necessidade da ruptura, da
revolução. Não se trata aqui de defender, tal como os trotskistas (Castillo, 2002), a “tomada do
poder político”, a conquista do estado. O processo de constituição do modo de produção
comunista pressupõe a destruição das relações de produção capitalistas e do estado burguês.
Consequentemente, a instauração da autogestão social, ou seja, de novas relações de
produção, abolem a existência das classes sociais (propriedade privada, produção de mais-
valor, divisão social do trabalho) e do estado (cuja razão de ser é o conflito de classe).
O projeto político negrista pode ser assim resumido:
A) Cidadania global:
As massas precisam ser capazes de decidir se, quando e para onde se movem. Precisam ter o
direito também, de ficar parada e apreciar um lugar, em vez de ser forçada a viver permanentemente em
marcha. O direito geral de controlar seu próprio movimento é a demanda definitiva da cidadania global. Essa
demanda é radical na medida em que desafia o aparato básico de controle imperial sobre o rendimento e a
vida a multidão. Cidadania global é o poder do povo de se reapropriar do controle sobre o espaço e, assim,
desempenhar a nova cartografia (Negri & Hardt, 2001, p. 424).
B) Direito a um salário social:
O salário social estende-se muito além da família, para toda a multidão, mesmo para os
desempregados, porque a multidão inteira produz, e sua produção é necessária do ponto de vista de todo o
capital social; uma vez que a cidadania se estende a todos, podemos chamar esta renda garantida de renda de
cidadania, devida a cada um como membro da sociedade (Negri & Hardt, 2001, p. 427).
C) O direito à reapropriação:
Direito à reapropriação é antes e acima de tudo o direito à reapropriação dos meios de produção.
Socialistas e comunistas de há muito exigem que o proletariado tenha livre acesso a, e o controle de,
máquinas e matérias que usam para produzir. No contexto da produção imaterial e biopolítica, entretanto,
esta demanda tradicional toma novo aspecto. A multidão não apenas usa máquinas para produzir, mas se
torna cada vez mais maquinal, enquanto os meios de produção são progressivamente integrados às mentes e
aos corpos da multidão. Nesse contexto reapropriação significa ter livre acesso a, controle de, conhecimento,
informação, comunicação e afetos – porque esses são alguns dos meios primários de produção biopolítica. Só
porque essas máquinas produtivas foram integradas à multidão não significa que a multidão tenha controle
sobre elas. Em vez disso, sua alimentação torna-se mais viciosa e nociva. O direito à reapropriação é
realmente o direito da multidão ao autocontrole e a autoprodução autônoma (Negri & Hardt, 2001, p. 430-
431).
D) A posse:
O único evento que ainda estamos esperando é a construção, ou melhor a insurreição, de uma
poderosa organização. A cadeia genética é formada e estabelecida em ontologia, o andaime é continuamente
construído e renovado pela nova produtividade cooperativa, e dessa maneira esperamos apenas a manutenção
do desenvolvimento político da posse. Não dispomos de qualquer modelo para este evento. Só a multidão, pela
experimentação prática, oferecerá os modelos e determinará quando e como o possível se torna real (Negri &
Hardt, 2001, p. 435).
O negrismo, como “reino das abstrações metafísicas”, e também suas imprecisões
(tanto terminológicas quanto projetivas –, nunca apontam para o processo de revolução social
e de constituição do comunismo como modo de produção), sempre deixam para o futuro o
delineamento da transformação social; é um claro papel ideológico. A ideologia negrista
produz uma prática (a dos seus seguidores e simpatizantes) que não tem um sentido definido,
o que permite sua apropriação pela burocracia – tendência já presente nas concepções
negristas, com nítido caráter burocrático.
Sem entrar na questão da linguagem burguesa expressa no projeto político negrista
(direito, cidadania etc.), devemos dizer que tal projeto ao mesmo tempo em que parece exigir
tudo, não exige nada. Todas as reivindicações desse projeto são assimiláveis pelo capital. Elas
não se opõem à dominação burguesa – não é antagônica – e podem tanto ser integradas nela,
como podem ser incluídas em uma nova forma de dominação. A “cidadania global” é o velho
direito burguês de ir e vir, só que agora, em escala internacional. Sem dúvida, esse direito é
na maioria dos casos, fictício, mas lutar pela concretização das promessas da revolução
burguesa significa ficar nos limites da burguesia.
O direito de um “salário social” ou “renda cidadã”, que os próprios governos
burgueses colocam parcialmente em prática, também é assimilável pela sociedade burguesa.
Aliás, tal proposta, na atualidade faz parte da estratégia contrarrevolucionária do capital,
como colocaremos mais adiante.
O direito à reapropriação é tão vago quanto complementar ao direito a um salário
social. Pedir um “salário social” ou “renda cidadã” (inclusive para os desempregados)
pressupõe que alguém (ou alguma instituição) ofereça tal renda. Essa instituição só pode ser o
estado capitalista. A reapropriação do controle sobre o conhecimento, informação etc., revela-
se, como uma autonomização da intelligentsia no interior do capitalismo. No entanto, com o
advento de uma “poderosa organização”, podemos imaginar uma nova forma de dominação.
“Posse” e “reapropriação” realizada pelos “trabalhadores imateriais” (na verdade, pela
burocracia) significam uma nova oposição de classe: de um lado, a burocracia enquanto classe
dominante, dirigente, privilegiada e exploradora (pois controladora da renda produzida pela
população) e, de outro, a verdadeira “multidão” que recebe uma renda menor do que produz
(uma vez que na ideologia negrista não é ela que produz e sim “todos”, inclusive os
burocratas), pois a maior parte da renda ficará com a burocracia. Trata-se de um novo modo
de produção, o modo de produção burocrático, no qual a extração de mais-trabalho assume
outra forma e, por conseguinte, novos conceitos explicariam este novo modo de exploração.
Neste novo reino da burocracia, agora sem a produção de mais-valor como no capitalismo de
estado (Rússia, China, Leste Europeu, Cuba), os bustos de Lênin e Stálin seriam substituídos
pelos de Negri e de Lazzarato.
Por isso nada é mais revelador do que esta frase de Negri e Hardt:
Agora o militante não pode sequer fingir ser um representante, mesmo das necessidades humanas,
fundamentais dos explorados. A militância política revolucionária hoje, ao contrário, precisa redescobrir o que
sempre foi a sua forma própria. Atividade não representante. Mas constituinte. A militância atual é uma
atividade positiva, inovadora (Hardt & Lazzarato, 2001, p. 437).
A socialdemocracia e o bolchevismo foram ultrapassados pelo negrismo. O militante
não é mais “representante”, “vanguarda”, é constituinte! Um marxista russo, já no início do
século XX, antes da socialdemocracia revelar-se “social-chauvinista” e antes do bolchevismo
realizar a contrarrevolução burocrática na Rússia, já denunciava a “ciência socialista”, a “nova
religião dos intelectuais”. Makhäisky revelou os fundamentos de classe da socialdemocracia e
do bolchevismo (Makhäisky, 1981) e hoje temos que revelar o caráter de classe do negrismo: a
mais nova ideologia da intelectualidade e da burocracia.
É interessante notar as semelhanças entre as teses de Antônio Negri e do negrismo
em geral com a dos ideólogos antimarxistas da “sociedade pós-industrial”, principalmente
Daniel Bell, autor de famosos textos conservadores: O Fim da Ideologia e a Sociedade Pós-
industrial. Podemos inclusive considerar Bell como precursor de Negri e do negrismo.
Segundo Lojkine,
As teses sobre a sociedade ‘pós-industrial’, de que Daniel Bell permanece como grande formulador,
estão associadas, com efeito, a uma certa concepção da revolução ‘informacional’ fundada numa ideia que
parece ter a simplicidade da evidência: a da substituição da produção industrial pela informação e,
decorrentemente, da experiência profissional pela ciência, dos operários pelos engenheiros (Lojkine, 1995, p.
238).
Lojkine destaca os vínculos ideológicos entre Daniel Bell e Frederich Taylor, com
Radovam Richta (ideólogo da revolução técnico- científica), Serge Mallet (ideólogo da “nova
classe operária”) e outros. Segundo Lojkine:
De acordo com Daniel Bell, estamos assistindo a uma substituição inexorável (ligada ao processo
técnico) das atividades industriais fundadas na manipulação da matéria por atividades fundadas no
tratamento de informação – tal como se assistiu, no século passado, à substituição da agricultura pela
indústria35.
Lojkine percebeu muito bem o caráter burocrático (ou “tecnocrático”) da concepção
de Bell e outros ideólogos da sociedade pós-industrial. Lojkine destaca a semelhança entre as
teses de Bell e Richta:
Para Bell, o “princípio axial” da sociedade pós-industrial é, na verdade, “a centralidade do saber
teórico, tanto gerador da inovação quanto das ideias matrizes que inspiram a coletividade”. Ora, este princípio
hipertecnocrático (...) está também na base da noção de revolução científica e técnica desenvolvida por R.
Richta; “no processo das mutações atuais da produção, a ciência impregna o conjunto do processo de
produção, tornando- se progressivamente a força produtiva central da sociedade e, praticamente, o fator
decisivo do crescimento das forças produtivas (...). A ciência e suas aplicações na técnica (...) substituem hoje
o trabalho simples, parcelado, que até aqui constitui a base da produção. (...) Nas condições da revolução
científica e técnica, a prioridade da ciência sobre a técnica e da técnica sobre a produção direta tornam-se a
lei do desenvolvimento das forças produtivas (Lojkine, 1995, p. 239).
Lojkine diz que a “concepção tecnocrática de inovação pelo alto”, influenciada por
Taylor, é questionada por diversos economistas e gerentes ocidentais. A concepção
substitucionista de Bell, baseada na “tecnologia do intelecto” leva a redução da automação à
“simples substituição dos homens por máquinas”. O seu ideal é construir uma fábrica
inteiramente automatizada.
Daniel Bell já havia expressado, muito antes de Negri e seus colaboradores, a “nova
centralidade” do trabalho intelectual (“imaterial”, científico, informacional). Mas ele também
já havia defendido a tese da superação da produção de mais-valor, e, por conseguinte, a da
perda da validade da teoria do valor-trabalho:
Se, como pensam Bell e os teóricos da sociedade pós-industrial, o saber abstrato (a ciência)
substitui o trabalho simples, na produção direta, o valor-trabalho, fundação da economia política clássica
(Smith, Ricardo) e de sua crítica marxista, deixa de ser o critério central para a avaliação do progresso
tecnológico e do crescimento das atividades informacionais. O valor-trabalho da sociedade industrial
(capitalista) seria substituído, então, pelo “valor-saber” da sociedade pós-industrial (pós-capitalista). Por isto,
a sociedade pós-industrial recupera as teses sobre o pós-capitalismo gerencial: uma classe de “gerentes” –
organizadores deslocaria o antigo poder dos acionistas capitalistas (Burnham, Dahrendorf, Bell etc.); as
“antigas” relações de exploração seriam substituídas por relações de dominação (Touraine) (Lojkine, 1995, p.
240).
Continuemos citando Lojkine:
Último grande componente da sociedade pós-industrial, a emergência de uma “nova classe” de
“profissionais” da ciência e da técnica substituiria a classe operária da revolução Industrial, na sociedade pós-
industrial, é a expansão de atividades de saúde, de ensino, de pesquisa e de administração que desempenha o
papel decisivo – “Ora, é nestes domínios que cresce a nova intelligentsia (nas universidades, nas instituições
de pesquisa nas profissões liberais e similares, na administração)” (Lojkine, 1995, p. 241).
Lojkine coloca que essa última tese tem “duas variantes”, que são mais
complementares que antagônicas: ‘a tese ‘consensual’, sobre a proeminência da classe dos
‘profissionais’; e a tese ‘conflitual’ da ‘nova classe operária’ – os técnicos da sociedade pós-
industrial substituindo os operários da sociedade industrial em seu combate revolucionário
contra a classe dominante. É de notar que Daniel Bell (1977) sabe, admiravelmente, utilizar as
contradições de alguns trabalhos qualificados como ‘neomarxistas’ (Richta, Mallet, Gorz,
Garaudy) para demonstrar que, de fato, eles também se vinculam ao tema da sociedade pós-
industrial:
Se é verdade que, na sociedade pós-industrial, a classe operária está em regressão, como preservar
a visão marxiana da história? (...). Não é afirmando que todo mundo, ou quase todo mundo faz parte da classe
operária que se poderá salvar a teoria (Lojkine, 1995, p. 241).
Notamos uma grande semelhança entre as teses de Bell e as de Negri e seus
seguidores. Obviamente, também existem muitas diferenças, algumas delas são superficiais,
como as de linguagem, e outras mais importantes. As teses de Negri são mais próximas do
“modelo conflitual” e de Touraine (1970), entre os citados por Lojkine, do que de Bell (1977),
embora ambos tenham semelhanças, como pregar o advento da sociedade pós-industrial e
prever o papel cada vez mais importante da tecnocracia. O nosso objetivo com essa
comparação não é simplesmente desacreditar o negrismo devido sua proximidade com as
teses de um renomado ideólogo conservador, e sim, demonstrar a capitulação do negrismo
diante das ideologias pós-modernas, sendo que manifesta claramente que se inspira em
algumas delas. Esta capitulação tem razões diversas, como a incompreensão da atual fase do
desenvolvimento capitalista, mas também está ligada aos valores e interesses que inspiram o
negrismo.
Lojkine lança algumas críticas à ideologia da sociedade pós-industrial que, do nosso
ponto de vista, também podem ser dirigidas ao negrismo:
A) O processo de inovação é um ciclo que não realiza uma visão completa entre o
saber abstrato e as experiências concretas dos usuários de novas tecnologias (essas críticas
não se aplicam ao negrismo, que sustenta a tese do “ciclo de produção imaterial”). Outro
elemento é a tese da substituição-automação e da fábrica “sem homens”, que é colocada em
questão devido sua “ineficácia econômica” (Lojkine, 1995), ou seja, ser prejudicial para o
capital e, portanto, ser barrado por ele;
B) O crescimento das atividades de serviços (informacionais) depende do
crescimento das atividades industriais;
C) A teoria dos três setores da economia não corresponde à realidade e nem às
tendências perceptíveis. Existe uma imbricação entre eles;
D) Inexiste uma substituição da classe operária por uma classe dos “trabalhadores
da informação”, assim como não ocorreu a absorção dos assalariados dos serviços em uma
“nova classe operária” (Lojkine, 1995). Isso compromete a produção de mais-valor, e provoca
a reação do capital, coisa que os negristas não percebem.
Embora não possamos concordar com algumas teses de Lojkine, podemos dizer que
parte dessas críticas também são aplicáveis à ideologia negrista e demonstram sua fragilidade
e ligação com ideologias conservadoras e burocráticas.
Os atrativos da ideologia negrista encontram-se na descrição de alguns aspectos
contemporâneos, na nova linguagem (que aparenta significar uma concepção nova) e na busca
de apropriação de tese de pensadores influentes (Marx, Foucault etc.). Para aqueles aos quais
falta senso crítico ou que estão perdidos (ou “maravilhados”) diante do mundo
contemporâneo, o negrismo fornece um ponto de vista ao qual a realidade pode ser
subsumida, amenizando assim os conflitos intelectuais de alguns indivíduos, tal como as
religiões trazem “a paz para a alma” de muitos outros, bem como expressam os interesses da
nova intelligentsia, formada por trabalhadores informacionais e intelectuais caçadores de
novas ideologias burocráticas com aparência de “esquerda”.
No entanto, não basta revelar o fracasso da tentativa negrista em compreender o
mundo contemporâneo, pois é preciso ultrapassar o nebuloso véu da ideologia e chegar ao
mundo da realidade concreta. O capitalismo contemporâneo atravessa uma nova fase,
complexa e cheia de dificuldades analíticas, pois nada é mais difícil do que analisar a
realidade presente, na qual a distinção entre o essencial e o aparente é difícil, principalmente
se consideramos o conjunto de ideologias que surgem para obscurecê-la.
Consideramos que o capitalismo hoje vive uma fase de acumulação integral, tal como
pode ser visto em outros capítulos da presente obra. O processo de desenvolvimento
capitalista possui a tendência de declínio da taxa de lucro e, em certos momentos históricos,
este declínio se torna tão intenso e as lutas de classes tão fortes que provocam mudança no
regime de acumulação. Assim, a crise capitalista que gerou a Segunda Guerra Mundial
marcou o início de uma nova fase do capitalismo e de um novo regime de acumulação.
O processo de acumulação de capital possui uma contradição básica: o capital para
sobreviver precisa realizar uma reprodução ampliada (expresso no ciclo: produção – lucro –
investimento – +produção – +lucro – +investimento e assim sucessivamente) que gera o
desenvolvimento tecnológico e, a necessidade de reprodução ampliada do mercado
consumidor. O capital busca incessantemente aumentar a extração de mais-valor, mas
encontra o proletariado como obstáculo. Assim se instaura, ao lado da luta operária nas
formas de regularização, uma luta de classes na produção, em torno do mais-valor. As lutas
operárias nas formas de regularização produzem efeitos visíveis no processo de acumulação
de capital (a redução da jornada de trabalho, por exemplo, ocorre na esfera jurídica e
interfere no processo de produção e extração de mais-valor) e as lutas de classes na produção
demonstram a resistência operária que impõe limites ao processo de exploração. Ao lado
disso, o desenvolvimento tecnológico anteriormente citado, é, ao mesmo tempo, uma
necessidade e um entrave para o capital. Como já dizia Marx, o capitalismo precisa
constantemente revolucionar os meios de produção (Marx e Engels, 1988). Mas ao fazer isso
aumenta a produtividade e a composição orgânica do capital. Este processo provoca a queda
da taxa de lucro, ao mesmo tempo em que aumenta a massa de lucro.
Assim, a taxa de lucro possui dois grandes inimigos: o desenvolvimento tecnológico –
que expressa uma forma relativamente estável de luta de classes – e a luta operária. No
entanto, esses não são os únicos problemas para a reprodução do capitalismo, pois existe, a
partir de certo estágio de seu desenvolvimento, o problema do mercado consumidor, que deve
acompanhar a ampliação da produção de mercadorias.
Após a Segunda Guerra Mundial e a destruição em massa das forças produtivas
(principalmente na Europa), o capitalismo começou um novo ciclo de expansão. Na esfera da
organização do trabalho, o fordismo buscava o uso da tecnologia objetivando uma
produtividade cada vez maior; o estado capitalista passa a intervir intensivamente na
produção e distribuição, bem como cria um aparato de serviços sociais; a expansão
transnacional ocorre velozmente; há uma expansão da produção de meios de consumo e novas
estratégias são criadas para que haja o processo de reprodução ampliada do mercado
consumidor (Viana, 2002). O ciclo de expansão, beneficiado pela exploração imperialista dos
países capitalistas subordinados, começou a perder o fôlego, já na década de 60, quando as
lutas operárias e estudantis se destacaram (neste ponto, nossa abordagem coincide com a dos
negristas), e continuou no início da década de 70 (reforçada pela crise do petróleo) (Granou,
1974).
É neste momento que a competição capitalista internacional se acirra (EUA, Japão,
Europa etc.) e a hegemonia norte-americana se vê ameaçada. O desenvolvimento do
capitalismo japonês começa a aparecer como modelo ideal a ser seguido, pois a
superexploração dos trabalhadores japoneses no “sistema Toyota” aparece como solução para
aumentar novamente a taxa de lucro. O capitalismo mundial inicia uma nova fase, pois a
queda da taxa de lucro faz assumir uma posição ofensiva. A crise do capitalismo de estado da
União Soviética (crise do regime de acumulação) reforça a constituição do novo quadro
mundial.
O toyotismo e formas similares de organização do trabalho revelam a ofensiva do
capital no processo de produção, buscando aumentar a extração de mais-valor, juntamente
com a política neoliberal e o processo de desregulamentação (o que gera diminuição dos
custos de força de trabalho para o capital), entre outras ações estatais. O capitalismo retoma
os “métodos secundários de exploração capitalista” (Marx, 1986), expresso no que os
ideólogos negristas chamam de “pré-fordismo”; além da ampliação da exploração imperialista
e o novo desenvolvimento tecnológico, e da lumpemproletarização que acompanha todo este
processo. O neoliberalismo busca o protecionismo para as potências imperialistas e a
liberalização do mercado para os países capitalistas subordinados. A nova expressão desse
neoimperialismo pode ser vista na formação dos blocos internacionais, como a ALCA, que
significa nova partilha mundial de acordo com as grandes forças do imperialismo mundial,
deixando o continente americano sob comando dos Estados Unidos.
A acumulação integral, a atual estratégia do capital, busca realizar uma exploração
intensiva (mais-valor relativo) e extensiva (mais-valor absoluto) utilizando-se da chamada
“revolução da informática”, “reestruturação produtiva”, do “neoliberalismo”, da
lumpemproletarização, e se reforça com a utilização de métodos secundários de exploração
capitalista.
Os negristas buscam desvencilhar-se dos métodos secundários de exploração
capitalista através da sua exclusão da análise. Lazzarato cita os trabalhos de Serge Bologna
sobre o “trabalho autônomo” e o contesta:
O insistir sobre a descrição “sociológica” da organização do trabalho (as empresas individuais, o
trabalho autônomo consorciado – cooperativo –, o “artesanato”, o trabalho autônomo da segunda geração –
para distingui-lo daquele, por “antonomásia”, dos comerciantes e das profissões liberais –, o self-employment
dos muitos desocupados e inocupados da era pós-fordista, as pequenas empresas que produzem serviços para
as empresas etc.) e o destaque dado para os aspectos “econômicos” e “financeiros” (prolongamento da
jornada de trabalho, composição da “renda” segundo lógicas pré-fordistas) tem uma função diretamente
política: destacar o trabalho autônomo como novo filão de produtividade e como forma renovada da
exploração. Parece-me que a preocupação de Bologna seja aquela de salientar, frente ao lado liberatório e
inovativo colocado no primeiro plano pelas teorizações do General Intellect, o lado obscuro e trágico das
novas condições de produção. O pós-fordismo não é somente “produção de mercadorias por meio de
linguagem”, intelectualidade de massa, comunicação, mas também um retorno às formas de exploração pré-
fordista. Ao contrário, parece dizer Bologna, os trabalhadores autônomos são mais explorados do que os
operários fordistas”; “A exaltação deste aspecto “material” da exploração e do “sofrimento” incorre, porém, no
risco de passar para segundo plano a qualificação geral da relação social pós-fordista e do trabalho (do qual o
“trabalho autônomo” é apenas uma parte). A continuidade da exploração não deve nos impedir de apreender a
descontinuidade de suas formas de organização e de comando (Lazzarato, 2001c, p. 92-93).
O que Lazzarato não percebe é que sua exaltação do “trabalho imaterial” é bem pior
que a do trabalho autônomo. No entanto, Lazzarato e os negristas não explicam a emergência
do trabalho autônomo, pois foge ao “princípio abstrato” da concepção negrista e como já
colocava Karel Kosik, em sua discussão metodológica a respeito da totalidade concreta, tudo
que não se enquadra em tal princípio abstrato (a totalidade abstrata de Negri e seus
colaboradores) permanece inexplicado e relegado ao esquecimento, pois “destituído de
importância” (Kosik, 1986).
O uso da tecnologia, como sempre contraditório, busca aumentar a extração de mais-
valor e o caso mais específico da automação, visa à reprodução do trabalho morto, mas que
não fornece os resultados desejados. “O princípio da automação-substituição e da fábrica sem
homens (Unmamed Factory) é hoje, cada vez mais posto em questão, por causa de sua
implicância econômica” (Lojkine, 1995, p. 242). No entanto, a aplicação crescente de
tecnologia permite aumentar a massa de lucro. O toyotismo e modelos similares buscam
através das formas organizativas aumentar a produtividade (extração de mais-valor relativo),
adotando várias estratégias, entre as quais o modelo do supermercado colocando a produção
sob a dinâmica do mercado, como forma de subjugação do trabalhador no processo laboral, e
tentando catexizar o trabalhador36. A busca de catexização do trabalho se dá via trabalho em
equipe, pluriespecialização e apelo ao envolvimento “emocional” (esta é a origem da ideologia
da “inteligência emocional”). Segundo Vieira,
Apropriar-se da subjetividade do trabalhador passa a ser, diante das mudanças forjadas na
produção, uma condição importante para o prosseguimento normal do processo de trabalho e de valorização,
sem os obstáculos e dificuldades da produção próprios da organização de trabalho fordista que se vinham
acumulando. Utilizar-se intensa e prolongadamente da subjetividade do trabalhador tornou-se o cerne do
aumento da produtividade (Vieira, 2002, p.)37.
A política neoliberal, a lumpemproletarização e os métodos secundários de
exploração capitalista são componentes complementares na busca do capital em aumentar a
extração de mais-valor. Estes elementos formam algumas das principais características do
regime de acumulação integral. No entanto, isso não vem sendo suficiente para garantir a
reprodução do capitalismo, pois ao mesmo tempo em que ele consegue, com sua ofensiva, uma
vitória parcial no terreno da valorização, ele produz um descontentamento maior, que fragiliza
sua hegemonia na sociedade civil. Ao lado disso, mesmo no terreno da luta em torno do mais-
valor, o capital vem recebendo diversos golpes, como se vê no caso da Argentina, Paraguai,
Uruguai, Brasil etc., pois o regime de acumulação integral não foi eficaz, tanto por sua
aplicação em alguns casos parciais e lentos, quanto por sua incapacidade própria de retomar o
processo de acumulação nas mesmas bases que a anterior.
O processo de lumpemproletarização cria o complicador de diminuir o “poder
aquisitivo” de uma parcela da população, diminuindo, assim, o mercado consumidor. As
propostas de “renda cidadã”, salário social etc., tem dois efeitos práticos: conter o
descontentamento dessa parcela da população e lhe fornecer uma capacidade aquisitiva,
visando incluí-la no mercado consumidor. Daí seu caráter contrarrevolucionário e conservador,
pois não propõe uma solução fora da ordem capitalista nem tenta uma resolução dentro dos
marcos do capitalismo que beneficie o conjunto dos trabalhadores, redução da jornada de
trabalho sem diminuição salarial, aumentando a demanda pela força de trabalho.
Assim podemos ter uma visão do processo de formação do regime de acumulação
integral e de suas determinações. A ideologia negrista, ao contrário do que afirma38, apenas
descreve os fenômenos, mas não os explica. A ideologia negrista descreve e nomeia aspectos
do processo de acumulação integral, mas não fornece nenhuma explicação de sua gênese e
características. A abordagem negrista não consegue explicar por qual motivo, a produção de
mais-valor foi superada, se utiliza métodos secundários de exploração capitalista, bem como
não explica o neoliberalismo e diversos outros fenômenos.
É no contexto do regime de acumulação integral que podemos compreender a
dinâmica do trabalho intelectual (“imaterial”). Não iremos aqui fazer uma longa discussão
sobre a história e a diversidade do trabalho intelectual, mas tão-somente apresentar,
sinteticamente, o papel do trabalho intelectual no desenvolvimento capitalista.
Iremos abordar, no entanto, apenas uma forma assumida pelo trabalho intelectual, a
que mais se aproxima da discussão sobre “trabalho imaterial”, ligada ao processo de
informatização. O processo de expansão capitalista do pós-guerra marcou o desenvolvimento
da informática (cuja origem se deu na indústria bélica), o que gerou aumento dos
trabalhadores informacionais. E passaram a ter um papel importante na estratégia capitalista,
tanto no processo de busca de aumento de extração de mais-valor relativo, quanto no da
reprodução ampliada do mercado consumidor.
Contudo, no regime de acumulação integral, os trabalhadores informacionais
assumem uma importância muito maior e isto proporciona sua expansão quantitativa e
setorial (na produção industrial e no processo de distribuição-circulação-regularização). A
chamada “revolução informacional” através do uso mais intensivo de novas tecnologias e da
informatização controlada pelo capital é uma das principais fontes desta expansão do trabalho
informacional. No entanto, a informatização tem um papel fundamental no processo de
reprodução ampliada do mercado consumidor. Não apenas os trabalhadores informacionais se
tornam consumidores de forma-mercadoria (o próprio processo de formação da força de
trabalho) e de mercadorias, como o processo de informatização produz uma grande ampliação
do mercado consumidor que atinge outras camadas da população.
A informatização dos serviços sociais produz uma enorme demanda de
equipamentos, “sem os quais eles não funcionam”, como “equipamentos médicos,
instrumentação científica, computadores, redes informáticas e telemáticas, (cabos, fibras
óticas, material telefônico etc.), sistemas urbanos – sem esquecer a própria habilitação e o
equipamento eletrodoméstico” (Lojkine, 1995, p. 259). Assim, a produção capitalista de
necessidades amplia o mercado consumidor para permitir a ampliação da produção
capitalista. Não é necessário recordar que as mercadorias tecnológicas continuam submetidas
à estratégia do pós-guerra de “obsolescência planejada” e o exemplo do computador é
paradigmático: os modelos de computadores são substituídos por outros cada vez mais
modernos e a publicidade e a competição social constrangem os consumidores a se
“atualizarem” comprando o “último modelo”.
Mas se alguns produtos são substituídos por serem mais “modernos” e fornecerem
maior “status social”, o computador tem um elemento adicional que torna sua substituição, em
muitos casos, obrigatória. O computador, como outros instrumentos complexos, está inter-
relacionado com acessórios (softwares, impressoras, scanners, fax modem etc.), que são
desenvolvidos para não caberem nos modelos antigos (por exemplo: um modelo antigo, com
baixa capacidade de memória e outros recursos limitados não permite a instalação de certos
softwares, ou o caso do disquete, que foi substituído em forma e depois pelo CD, sendo que os
novos modelos não possuem saída para os disquetes antigos e não são mais encontrados no
mercado, bem como, daqui algum tempo, podemos prever, não haverá saída para os disquetes
recentes, obrigando ao consumo renovado).
Desta forma, os trabalhadores informacionais são apenas mais uma peça na
engrenagem do processo de acumulação capitalista. O controle do processo informacional, na
empresa, continua controlado pelo cume da hierarquia, pelo capital, e somente as
“informações” mais gerais são socializadas.
Assim, a informatização amplia a camada de trabalhadores informacionais, o
mercado consumidor e o processo de extração de mais-valor. O trabalho informacional
(imaterial) não produz riqueza, pois é improdutivo. A incorporação de saber técnico no
processo produtivo não cria mais-valor, apenas contribui para a intensificação da produção de
mais-valor. Ele apenas serve ao processo de reprodução capitalista. A ciência aplicada, quando
ocorre não formar mais-valor, pois não gera nova mercadoria, condição necessária para gerar
um novo valor. É um trabalho improdutivo, não gerando mais-valor. Quando um trabalhador
intelectual ou um cantor produzem o conteúdo de um software ou de um CD, respectivamente,
não criaram mais-valor. Só será criado quando for realizada a produção material do software e
do CD, geralmente em escala quantitativamente elevada, utilizando força de trabalho
explorada, que gera esses bens materiais, que, ao serem vendidos, gerarão lucro para o
capitalista. O mesmo ocorre com uma grande obra científica, que, por mais valor intelectual
ou social que possua, não produz mais-valor, mas somente quando se transforma em um livro,
uma mercadoria, produzida pelos trabalhadores gráficos, é que gera mais-valor.
O trabalho imaterial também não produz uma “nova subjetividade”, mas é formado
pela sociedade burguesa (família, escola, formação profissional), para realizar o papel de
contribuir com o processo de reprodução. A tecnologia e a ciência e a técnica são produzidas
para a expansão capitalista e não para o bem estar-social. Os trabalhadores informacionais
estão dominados pela mentalidade burguesa e pelas necessidades do capital e são, o trabalho
intelectual em geral, improdutivos. A ampliação do número de trabalhadores informacionais, e
do uso do trabalho intelectual em geral, é apenas mais uma face do processo de reprodução
capitalista que visa exercer maior controle sobre a sociedade e precisa de agentes concretos
para efetivar este processo. Os trabalhadores intelectuais, assim como a burocracia, possuem
o papel de auxiliar a dominação burguesa. Pensar que através deles poderia haver uma
transformação social é um equívoco e serve como pretexto para a formação de uma nova
classe dominante.
Assim, somente através de um isolamento fantástico, produto de uma ideologia, é
que a informatização (ou os trabalhadores informacionais) podem se desligar das
determinações do capitalismo e se “autonomizar”. Não é na informatização que podemos ver o
embrião de uma sociedade igualitária e libertária e sim nas lutas operárias e dos demais
grupos sociais oprimidos. A informatização, caso ultrapassasse a produção de mais-valor,
poderia gerar uma nova forma de exploração, o modo de produção burocrático. As concepções
fetichistas da informatização reforçam esta possibilidade histórica e por isso devem ser
combatidas.
PARTE IV – Consequências da Acumulação
Integral
1 – Exclusão Social ou Lumpemproletarização?
As mudanças culturais são marcadas pela hegemonia de determinadas ideologias, tal
como a ideologia da globalização, do pós-estruturalismo, neoliberalismo, entre outras, e
modismos acadêmicos. No campo do pensamento complexo, as novas ideologias manifestam
os interesses gerais e históricos da classe dominante aliados aos interesses imediatos e de
grupos no seu interior (frações de classes, categorias profissionais etc.). Como já abordamos
este aspecto em capítulos anteriores, abordaremos, a partir de agora, outras formas de lutas
culturais.
Porém, é necessário perceber, que há um processo, com a formação do novo regime
de acumulação, uma ofensiva da classe dominante. Isto se deve ao fato de que, em resposta à
crise do regime de acumulação anterior, se tornou necessário ampliar a exploração. Assim, a
ofensiva ocorre a partir da chamada reestruturação produtiva e do neoliberalismo, que visam
o aumento da exploração e outras medidas para permitir e reforçá-la. Logo após, as mudanças
nas relações internacionais reforçam esta tendência e a exploração internacional também
amplia-se. Para justificar e legitimar isto, várias ideologias que formam o quadro da
contrarrevolução cultural preventiva, especialmente o pós-estruturalismo, também avançam e
vão tornar-se hegemônico a partir dos anos 1980. No entanto, novas ideologias, algumas mais
específicas, também surgem. Para justificar e legitimar o neoimperialismo, nasce a ideologia
da globalização, o multiculturalismo, além da ideologia neoliberal. Algumas ideologias mais
específicas, como a da crise da sociedade do trabalho, fim do emprego, fim do Estado-Nação,
o fim da história, crise do marxismo, crise do comunismo etc., aparecem e se tornam parte
integrante da ofensiva ideológica da classe capitalista, visando não só legitimar e justificar a
nova fase do capitalismo como destruir e enfraquecer as tendências críticas, o que provoca
um enfraquecimento simultâneo das classes exploradas e grupos oprimidos.
Ao lado disso, novas ações são realizadas pela classe dominante e suas classes
auxiliares. O processo de mercantilização das relações sociais vê-se ainda mais ampliado,
principalmente na esfera cultural. O capital comunicacional oligopolista (indústria cultural)42,
cujo período de nascimento foi o capitalismo oligopolista transnacional (regime de acumulação
intensivo-extensivo). O capital comunicacional expande-se, tornando um dos elementos mais
importantes no novo regime de acumulação. A cultura foi mercantilizada já a partir de 1945,
num processo crescente e amplo, mas agora assume novas proporções. A estratégia
capitalista de aumentar a massa de lucro para combater a tendência declinante da taxa de
lucro e aumentar a produção de bens de consumo para evitar uma superaceleramento do
desenvolvimento tecnológico, o que comprometeria ainda mais a taxa de lucro, produz a
necessidade de reprodução ampliada do mercado consumidor. A estratégia, da época do
capitalismo oligopolista transnacional, é ampliada no capitalismo neoliberal. Isto ocorre
devido ao fato de que a tendência declinante da taxa de lucro persiste de forma ampliada e,
além do desenvolvimento tecnológico acumulado e em desenvolvimento tornar a situação do
capitalismo ainda mais frágil. Assim, no novo regime de acumulação é preciso garantir a
reprodução ampliada do mercado consumidor, rompendo novas fronteiras e reforçando as
antigas estratégias de criar necessidades fabricadas, aumentar a capacidade individual de
consumo etc. É neste contexto que ocorre, então a expansão de shopping-centers,
condomínios fechados, modismos culturais, novos nichos de mercado etc.
O capital comunicacional busca ampliar suas estratégias no mesmo sentido. Se ele é,
como já diziam os representantes da Escola de Frankfurt (Adorno & Horkheimer, 1986; Jay,
1988), uma fábrica de ilusões e consumo superficial, agora se torna mais amplo. A ampliação
do mercado consumidor e das necessidades fabricadas atinge principalmente a produção
cultural. A capacidade aquisitiva de um consumidor na sociedade capitalista já é bastante
elevada e suas necessidades de consumo em algumas instâncias já estão no limite da
saturação (alimentação, bens imóveis, automóveis etc.). A cultura acaba sendo um espaço
privilegiado para a reprodução ampliada do mercado consumidor. Assim, é preciso criar
condições para: a) aumentar a capacidade de consumo cultural da população em geral; b)
criar a necessidade de consumo cultural na população; c) criar uma renovação cíclica do
consumo cultural de cada vez mais veloz; d) criar nichos de mercado específicos.
O aumento da capacidade de consumo cultural da população está diretamente ligado
ao processo educacional. A expansão da alfabetização, do ensino superior etc., está
intimamente ligada a este processo. Nos países imperialistas, trata-se de aumentar o acesso
ao ensino superior, principalmente; nos países capitalistas subordinados, trata-se de ampliar a
alfabetização de parte da população e o acesso ao ensino superior de outra parte. Assim, cria-
se novos consumidores, tanto de produtos culturais com menor exigência de formação
intelectual quanto de mercadorias culturais que possuam uma maior exigência neste aspecto.
Este processo acaba sendo mundial e é um dos motivos do FMI e Banco Mundial pressionarem
os governos dos países capitalistas subordinados para que ampliem o processo educacional,
além de incentivarem novas ideologias43. Tais ideologias, por sua vez, se integram no circuito
de produção cultural mercantil e passam a servir também para a reprodução ampliada do
mercado consumidor. O consumo cultural exige certas capacidades, tais como de leitura,
apreciação (ou seja, valores, para apreciar “obras de arte”), etc. É o sistema de ensino que
fornecerá tais capacidades e irá, diretamente, provocar ampliação do consumo cultural, pois
faz com que algumas mercadorias culturais (livros, DVDs, CDs, revistas etc.) sejam
consumidas no próprio processo de ensino, principalmente, mas não unicamente, no ensino
superior.
O aumento do suporte tecnológico para o desenvolvimento da capacidade de
consumo cultural também se amplia, tal como no caso de computadores, MP3, aparelhos de
DVD etc. Isto, por sua vez, gera o consumo de tais aparelhos tecnológicos. O próprio uso
destes suportes tecnológicos, em parte, amplia a capacidade de consumo cultural, pois o uso
do computador e da internet, mais especificamente, incentiva o consumo de mercadorias
culturais relacionadas (desde a mais técnica, como manuais e livros de informática, até
aquelas oriundas de concepções vinculadas a eles ou simplesmente tornado acessível o
contato via internet). Também, através do computador e da internet, ocorre a “capacitação” a
certo consumo, via cursos, divulgação etc., do futuro consumidor cultural.
Esse processo não só amplia a capacidade de consumo individual de grande parcela
da população como também já se torna uma necessidade. A criação da necessidade fabricada
de consumir mercadorias culturais ocorre desde o status que isto promove (que era maior nos
setores mais privilegiados e intelectualizados da sociedade), à publicidade e à expansão dos
valores dominantes. A cultura passa a ser um valor cada vez mais forte em nossa sociedade.
Isto está expresso nas ideologias surgidas no capitalismo neoliberal, tal como a da “sociedade
do conhecimento”, “sociedade informacional”, “trabalho imaterial”, “culturalismo”,
“multiculturalismo”, “saberes e competências” etc. Assim, a cultura passa a ter uma
importância social maior e sua aquisição se torna uma necessidade. Quando uma ideologia
afirma que a cultura é determinante no desenvolvimento histórico e outra diz que ela é
proeminente em nossa época ou a geradora de riquezas, temos apenas um complemento
ideológico de uma necessidade do capital, que gera uma necessidade fabricada para a
população. O consumismo cultural é uma das faces do capitalismo neoliberal.
Outro elemento deste processo é a criação cíclica de renovação cultural. Desde o
início da expansão do capital comunicacional, houve uma renovação do consumo. Porém, já a
partir da crise do regime de acumulação anterior, a renovação cultural ganhou uma maior
velocidade. A partir de 1970 esse processo teve uma ampliação e, a partir dos anos 1980, se
tornou ainda mais intenso. Na esfera acadêmica, isso pode ser visto na ampliação do mercado
capitalista de ideologias. Além de ideologias anteriores permanecerem, surgem novas, e estas
se renovam formalmente, criando a necessidade de “atualização bibliográfica”, inclusive com
o culto, no sistema de ensino superior, dos livros editados recentemente. O produtivismo
também gera a necessidade de ampliação de consumo cultural acadêmico. Assim, a renovação
da produção gera a necessidade de atualização, ou seja, de consumo de mercadoria cultural.
Na esfera musical isto é mais visível. Os modismos musicais são substituídos rapidamente,
renovando o consumo de modas de pouca durabilidade. Na esfera cinematográfica, com os
constantes lançamentos de filmes, – desde pobres remakes com muitos efeitos especiais até as
eternas continuações, cada vez mais frequentes, até chegar a produção considerada “Cult” –,
temos uma sucessão de novas mercadorias culturais desfilando nos cinemas e com todo um
circuito paralelo (salas de cinema, locadoras, DVDs para venda, lojas de DVD, brinquedos
temáticos inspirados em filmes, roupas etc.).
É neste contexto que a cultura mercantil passa a ser cada vez mais descartável e o
modismo (musical, literário, acadêmico) substitui toda a cultura anterior. Essa cultura
descartável é marcada pelos ciclos de renovação periódica de produtos, pois ela permite a
reprodução ampliada do consumo. Se um determinado estilo musical permanece por muito
tempo, então o consumo também se vê sem grandes crescimentos, pois quem compra um CD
de rock and roll de determinada banda, poderá continuá-lo ouvindo por muito tempo, mas se a
cada 5 anos surge um novo modismo musical, então o consumo expande-se em proporções
consideráveis. Assim, a transformação da MPB em cultura descartável apenas mostra que a
lógica do lucro domina tudo, inclusive a produção cultural, e mostra a razão de seu
progressivo empobrecimento.
Essa mercantilização amplia-se no novo regime de acumulação e invade cada vez
mais todas as esferas da vida social. O filme Monique, Sempre Feliz (Valerie Guignabodet,
França, 2002), é uma comédia que mostra como a coisificação das relações amorosas pode
promover a substituição de uma mulher de carne e osso por uma boneca moldada, uma
mercadoria que substitui um ser humano. A cultura mercantil é tão descartável quanto
qualquer outra mercadoria. Assim, o índice de obras publicadas passa a crescer, tanto pelo
incentivo do capital comunicacional, como através da ação estatal, inclusive na esfera
acadêmica. A produção em massa requer o consumo em massa. O consumidor que efetiva esta
forma de consumo é o homo consumens, retratado por Erich Fromm: “um homem cujo
principal objetivo é consumir e para quem o mundo inteiro, as riquezas do mundo, se
transformaram em artigos de consumo” (Fromm, 2006, p. 112).
Assim, a cultura, ao mesmo tempo em que se torna relativamente mais acessível
para uma parte da população, se torna um artigo de consumo, no qual o valor de troca é o
fundamental e, em muitos casos, o valor de uso é subjugado por ele, já que é o primeiro que
fornece status, visibilidade social e gera o consumo. O potencial crítico da cultura é anulado
desta forma, bem como o excesso de obras e manifestações culturais contraditórias, que faz
com que muitos indivíduos acabem aceitando tudo por não saber assimilar e trabalhar em sua
mente a diversidade cultural existente.
Esta imposição cultural da classe dominante e dos meios oligopolistas de
comunicação gera duas consequências. Por um lado, amplia o mercado consumidor,
beneficiando a acumulação de capital; por outro, despolitiza e anula o potencial crítico da
cultura. No entanto, aqui a contradição do capital comunicacional manifesta-se, pois o
potencial crítico é anulado para o homo consumens, mas não para determinados indivíduos,
que poderão ter acesso, graças a estas mesmas contradições, à cultura de maior qualidade e
criticidade, bem como podem interpretar e analisar criticamente a produção cultural
existente.
Novos nichos de mercado são criados, novos produtos personalizados, bem como o
uso da tecnologia para criar novas mercadorias culturais e suportes materiais44. Novos filões
de cultura mercantil se ampliam, tal como o da autoajuda, que vem se expandindo nos últimos
anos, sendo uma produção cultural realizada pelas grandes editoras, vendedoras de best-
sellers, um ramo que rende alto lucro. A origem da autoajuda se encontra nos livros sobre
Pensamento Positivo, cujo auge ocorreu na década de 70. Na década seguinte, os livros de
autoajuda, que utilizam mais estratagemas do que apelo ao “pensamento positivo”,
aumentaram suas vendas e desde a década de 90 até hoje, vem batendo recordes de
vendagem para o “estilo”.
A quem se deve a grande procura por livros de autoajuda? A própria expressão
“autoajuda” esclarece quem: aqueles que precisam de ajuda. São pessoas que estão em
condições de vida desfavoráveis, seja no sentido profissional, sentimental etc. O misticismo, a
cartomancia, entre outros recursos, são alguns dos concorrentes da autoajuda. Mas a
autoajuda se distingue das outras formas por ter como fundamento o indivíduo que ajuda a si
mesmo, bem como a razão de ser do misticismo e da cartomancia também poder ser
encontrada em problemas psíquicos, se diferenciando, assim, da autoajuda.
O individualismo – juntamente com a racionalização da vida moderna – está
intimamente ligado a esta resposta aos problemas sociais expressa pela autoajuda. Significa
que o indivíduo não busca a ajuda de outros, e sim, em si mesmo. A partir disto podemos
pensar que aquele que procura autoajuda pensa que os outros não podem ajudá-lo, o que em
parte é apenas expressão do caráter competitivo da sociedade moderna, e que ele pode ajudar
a si mesmo. Ironicamente, a busca de ajuda a si mesmo ocorre através dos livros de autoajuda,
dos conselhos e receitas fornecidos por outra pessoa, embora não seja pessoalmente, mas sim
a figura abstrata do escritor do livro (e sua propaganda pode ser o próprio “sucesso”).
A ironia está no fato do indivíduo pensar que está ajudando a si mesmo e, no fundo, é
ajudado por outro, que lhe diz como “se ajudar”. A outra ironia é que, ao pedir ajuda ao
escritor de livros desse segmento, ele ajuda a este, que ganha dinheiro e sucesso vendendo
esses livros. E grande parte daqueles que buscam a autoajuda precisam de socorro, não
devido a carências reais, necessidades básicas, mas sim graças aos valores que são
portadores. A busca de status, riqueza, poder, sucesso, revela um grande filão do mercado
daqueles que buscam autoajuda. Eles esperam que, utilizando este recurso, irão conseguir
realizar suas ambições e revelam os valores dessa sociedade que prega a necessidade de
ascensão social e outros objetivos socialmente desejados e dificilmente realizáveis para muitos
setores.
A autoajuda funciona? Os conselhos e receitas não resolvem os problemas dos
indivíduos e quanto mais graves, menores as probabilidades de qualquer ajuda fornecida por
este tipo de leitura. Ele traz uma série de ilusões e, posteriormente, desilusões, a não ser que,
como ocorre em muitos casos, o indivíduo se culpe pelo seu “fracasso” ou então torne sua
ilusão algo permanente. Se algum resultado se consegue, é do tipo que atinge apenas parte da
vida cotidiana, o que não faz ninguém chegar ao “sucesso”. A coincidência pode reforçar a
ilusão da eficácia da autoajuda, pois uma pessoa pode chegar a determinados resultados por
um conjunto de circunstâncias e atribuí-los a ela. A eficácia da autoajuda é muito restrita, mas
a crença é mais forte do que a razão, mesmo quando ela tem origem racional.
No entanto, essa análise não é suficiente para explicar o aumento do apelo aos livros
de autoajuda, que vem continuamente crescendo. Em 1994, a literatura de autoajuda vendia
em torno de 412 mil exemplares; em 1997 chegou a 1 milhão e 100 mil exemplares e, em
1998, quase dobrou, chegando a 2 milhões e 100 mil. Esses dados, fornecidos pela Câmara
Brasileiro do Livro (CBL), apresentam um aumento constante na venda de livros de autoajuda,
marcando um processo de consumo ampliado que continua até hoje. A explicação para o
aumento da procura pode ser encontrada em três determinações: a) a situação precária de
vida de grande parte da população, que procura a autoajuda como refúgio e esperança; b) a
expansão dos valores voltados para a ascensão social; c) a estratégia de vendas e divulgação
das editoras.
As mudanças da sociedade moderna explicam estas determinações. A partir das
décadas de 60 e 70 a situação foi marcada por crises e dificuldades mundiais, que se agravou
a partir dos anos 80, pois a solução encontrada foi um novo regime de acumulação, o integral.
Este novo regime de acumulação marca a queda do nível de vida e renda, inclusive nos países
considerados “desenvolvidos”, e o aumento da miséria, pobreza, violência, criminalidade. O
Estado neoliberal é agente desse processo e, ao mesmo tempo, busca reduzir seus gastos e
diminuir as políticas sociais, agravando ainda mais a situação. As novas ideologias e
exigências do mercado, como a competitividade, a “inteligência emocional”, juntamente com o
aumento do desemprego, promovem uma radicalização da competição social, que produz um
incentivo a mais para a literatura de autoajuda.
Aqueles que estão em situação desfavorável, juntamente com aqueles que
ambicionam a ascensão social, mas estão cada vez mais longe disso, criam todo um filão de
consumidores de livros de autoajuda. Esse mercado consumidor se apega à literatura de
autoajuda e as grandes editoras reforçam essa tendência com a publicidade, “variedade” de
produtos (alguns passam da leitura de certas obras para outras, já que as técnicas indicadas
não dão resultado e assim se buscam outras) e com obras mais acessíveis do ponto de vista
financeiro (livros de bolso com preço menor, por exemplo, para atender ao público de menor
poder aquisitivo), bem como criando novas formas de autoajuda, voltadas para públicos
específicos. Assim, temos a miséria geral da sociedade moderna reproduzindo-se sob a forma
de miséria psíquica e seus corolários: o misticismo e a autoajuda.
A literatura de autoajuda tem um nicho de mercado específico. No entanto, o nicho
de mercado formado pelo misticismo, esoterismo, autoajuda, irracionalismo, são partes de um
processo mais amplo. É o caso da esfera acadêmica, que também se relaciona e realiza uma
quase fusão com o misticismo e esoterismo. Assim, a cultura mercantil, seja sob a forma de
música ou livro, acaba criando toda uma cultura entorpecente. O irracionalismo geralmente
acompanha essa tendência, bem como o hedonismo, consumismo, entre outras manifestações
intelectuais que são como reflexos do espelho da miséria capitalista. O irracionalismo,
baseado em ideologias científicas ou filosóficas ou, ainda, em concepções místicas ou
religiosas, é, na verdade, manifestação das tendências regressivas na sociedade
contemporânea.
O irracionalismo tem como fonte inspiradora os antigos irracionalistas do século XIX
(Nietzsche, por exemplo) e as tendências ideológicas que resgatam o pensamento desses
ideólogos, (o pós-estruturalismo, também chamado “pós-modernismo”). Outra fonte
inspiradora se encontra no misticismo e no chamado “novo espiritualismo” que vem ganhando
espaço social nos últimos anos. Os pós-estruturalistas negam a razão e declaram a
necessidade de seu abandono. Esta ideologia é, na verdade, a expressão de uma
contrarrevolução cultural preventiva, tal como colocamos anteriormente, que simplesmente
troca a crítica da razão instrumental, realizada, pela Escola de Frankfurt, por uma crítica da
razão em geral. Assim, com a aparência de criticidade e em alguns casos até de “esquerda”,
os ideólogos pós-estruturalistas negam a razão e a teoria, sem fazer distinções. Eles retomam
teses irracionalistas e criticam o racionalismo, principalmente o marxismo, seu principal alvo.
O racionalismo é uma ideologia burguesa e metafísica e o seu amálgama com o
marxismo, que muitos ditos marxistas aceitam de bom grado, serve aos interesses intrínsecos
do capitalismo contemporâneo. O seu alter ego, o irracionalismo, vai consolidando-se e
convivendo ironicamente e hipocritamente com o racionalismo burocrático e cientificista. O
irracionalismo acaba virando moda e sendo uma arma do capital contra as tentativas de
transformação social. Trata-se, no fundo, de uma visão neoconservadora. Outra tendência é o
misticismo e novo espiritualismo que se instaura através do ecletismo ou da transformação do
sucesso e dinheiro no grande objetivo religioso. Os novos vendilhões das mais variadas seitas
e igrejas transformam os valores burgueses de ascensão social, competição, busca por status,
poder e riqueza, como o supremo objetivo da vida. Os místicos misturam várias religiões e
concepções (de Platão, passando por Nietzsche, até chegar a Jung), em alguns casos até
mesmo literatura de autoajuda, e passam a justificar e legitimar as relações sociais existentes,
alguns pregando veladamente concepções racistas, neonazistas, preconceituosas, partindo de
sua suposta superioridade espiritual ou de raça.
A razão instrumental, sem dúvida, está a serviço da dominação capitalista. Porém,
não se aplica à teoria ou à razão em geral. Ao evitar esta distinção, os ideólogos apenas
buscam retirar a teoria e a razão da luta dos explorados e dominados para facilitar a
reprodução da dominação e exploração. O que gera a adesão a esta nova onda de
irracionalismo é, por um lado, a miséria psíquica reinante atual, que transformou a “geração
coca-cola” em “geração prozac”, e, por outro, a pobreza e miséria real de algumas pessoas. A
depressão, a ansiedade (“stress”), a infelicidade, a pobreza, o desemprego, juntamente com a
falta de uma perspectiva de mudança, seja individual ou coletiva, faz com que as pessoas se
apeguem a crenças irracionais como forma de sobrevivência psíquica ou de esperança. Estes
dois elementos são reforçados pelos modismos ideológicos acadêmicos e pela ascensão da
extrema-direita e revigoramento do fascismo e neonazismo.
O processo de repressão social atinge os indivíduos sob todas as formas. O controle
torna-se cada vez mais intensivo sobre os indivíduos e trabalhadores. A busca de controle de
suas emoções (a ideologia da “inteligência emocional”), a videovigilância, a exigência cada vez
maior de produtividade e rendimento, o reino absoluto dos valores do sucesso e da riqueza (tal
como na “teologia da prosperidade”, “autoajuda” etc.) e se manifesta também no produtivismo
acadêmico. Há uma alienação total, que pode gerar uma recusa total ou uma reação alienada.
Isto fortalece tendências regressivas que podem levar a uma nova barbárie. O irracionalismo
(e o culturalismo) reforça esta posição ao pregar a recusa da razão e o relativismo, como se
tudo fosse cultural e relativo e, portanto, sem necessidade de discussão. A comunicação
humana é, desta forma, assassinada, pois esta só pode ocorrer via razão. A comunicação
através do confronto ou acomodação de valores e sentimentos é inviável, pois gera tendência
ao conflito irracional ou ao conformismo de rebanho.
O capitalismo hiper-repressivo sufoca o indivíduo nas relações de trabalho e na
aquisição de bens básicos pela maioria da população e é, ao mesmo tempo, um capitalismo
aparentemente hiperliberal, pois libera o indivíduo para prazeres hedonistas, sádicos e
pervertidos, enquanto satisfação substituta ou “válvula de escape”. Estas contradições podem
gerar, como resultado negativo, uma nova era de fascismo e, como resultado positivo, a
transformação social. A última tem como condição de possibilidade o reconhecimento da
necessidade da teoria e da razão humanista e, por conseguinte, sua defesa se torna também
uma necessidade.
Neste contexto de cultura entorpecente, a ofensiva ideológica e cultural burguesa
passa a expressar uma forte dominação em todas as esferas da vida social. A ideologia
dominante e outras manifestações da cultura burguesa declaram o fim da utopia e do projeto
socialista. A derrocada do Muro de Berlim em 1989 reforça esta visão da realidade
contemporânea como sem saída ou sem alternativa a não ser mudanças superficiais no
capitalismo. Porém, a crise do capitalismo estatal russo e do Leste Europeu teve um efeito de
reforçar a ofensiva ideológica e cultural burguesa, tanto no sentido de aprofundar a
mercantilização da cultura quanto de promover uma visão de que o socialismo foi derrotado,
mas também de abrir novas perspectivas para a luta cultural do proletariado. Efetivamente, a
partir desse momento histórico, alguns autores marginais no marxismo começaram a ser
resgatados (Bloch, Korsch etc.), bem como a busca de saída fez renascer o anarquismo e
outras tendências políticas que estavam extremamente enfraquecidas. A nova situação social,
marcada pelo aumento da exploração capitalista, era outro incentivo para a reação cultural
contra a hegemonia burguesa. A partir de 1996 houve um crescimento do anarquismo e, a
partir de 1999, e das manifestações antiglobalização, nova onda de resistência e luta cultural
emergiu. Assim, autores esquecidos começaram a ser recuperados (comunistas de conselhos,
situacionismo etc.) reforçando o movimento já esboçado.
Também ocorreu uma facilidade de comunicação devido o desenvolvimento
tecnológico e a internet. Este é o caso do processo de aumento de intercâmbio entre pessoas e
grupos, o crescimento do anarquismo, a divulgação e influência do situacionismo e
conselhismo. Embora ainda seja incipiente e muitas vezes, por medo do bolchevismo ou da
socialdemocracia, tais tendências acabem caindo na influência das ideologias burguesas,
principalmente o pós-estruturalismo crítico, outras vezes caem num dogmatismo e ao
contrário das lutas concretas e pela emancipação humana apegam-se a doutrinas e,
descontextualizam a história e dificultam a articulação entre as tendências de esquerda (que,
inclusive, foi facilitada pela expansão da internet); tal como um certo anarquismo dogmático,
cujo inimigo principal é o “malvado Marx” e não a classe dominante.
Apesar disso, as novas tendências políticas ajudam a recuperar o pensamento de
autores que foram ofuscados durante o regime de acumulação intensivo-extensivo, como os
marxistas revolucionários (Karl Korsch, Anton Pannekoek, Otto Rühle), anarquistas (Mikhail
Bakunin, Malatesta, Kropotkin), entre outros (Debord, Bloch, Bordiga etc.), que foram
abandonados por não estarem de acordo nem com o conservadorismo e nem com a
pseudoesquerda. Uma nova produção cultural também se esboça e assim temos, por um lado,
uma cultura descartável, entorpecente, asfixiante e, por outro, uma cultura contestadora.
O capital comunicacional, devido suas contradições, também está envolvido o
processo. Sem dúvida, estas contradições não são “explosivas” e predomina amplamente a
reprodução das mercadorias culturais, que geram os valores dominantes da sociedade
moderna. As pequenas brechas também são portadoras de potencialidade de ampliação e
colaboração com outras lutas no sentido da transformação social. Obviamente que novas
formas de comunicação devem ser produzidas e utilizadas, assim como o uso de formas
alternativas já existentes. A análise também deve levar estas formas alternativas em
consideração para conseguir perceber que a hegemonia daqueles que detém o poder não é
total e que possui brechas. Assim se torna possível perceber o processo de contradições em
movimento que demonstram a possibilidade de transformação social e a formação de uma
nova produção cultural, não-mercantil.
A emergência e consolidação do regime de acumulação integral promovem o
aumento da exploração internacional, da lumpemproletarização, da pobreza, miséria, violência
e criminalidade. Neste processo, o Estado capitalista tem um papel fundamental, entre os
quais, dentro de sua lógica (contribuir com o aumento do processo de exploração e conter
seus próprios gastos), amortecer os conflitos sociais. A estratégia utilizada é a da repressão,
cooptação e políticas estatais paliativas.
Esse processo ocorre em escala mundial e a migração e conflitos interétnicos,
marcam a ascensão da xenofobia e ascensão da extrema- direita, nacionalismo e racismo. As
reivindicações dos trabalhadores, esporádicas e localizadas, aliadas à insatisfação estudantil e
de outros setores sociais, provocam um mundo de contradições que, possuem como resposta,
por um lado, o aumento da repressão estatal que não quer executar políticas de assistência
social de caráter estrutural, mas apenas paliativas, tornando-se um estado penal. O aumento
da criminalidade acompanha todo o processo.
A partir da década de 1980, com a emergência do novo regime de acumulação,
começou-se a ampliar a violência criminal, atingindo índices cada vez mais elevados no mundo
inteiro. O desmantelamento do Estado integracionista e a diminuição dos investimentos
estatais em políticas de assistência social aliados à precarização do trabalho, o aumento do
desemprego, entre outros elementos, apontam para processos que geram aumento da
criminalidade. Sem dúvida, o crime organizado acaba sendo reforçado por esta situação. A
criminalidade torna-se uma estratégia de sobrevivência para setores mais carentes da
sociedade, seja pela ação individual e direta, seja pelo aliciamento pelo crime organizado.
Também não se pode descartar a importância explicativa dos valores dominantes em nossa
sociedade para justificar o aumento da violência e criminalidade, que leva à luta por status,
poder, riqueza, que brota no terreno da competição social, elemento característico da
sociabilidade moderna. O mundo moderno é um mundo axiológico (Viana, 2008b) e, por
conseguinte, é elemento propulsor de ações criminosas para realizar-se, seja por indivíduos
das classes exploradas ou das classes privilegiadas.
Essa situação é mais grave nos países fora dos centros hegemônicos constituídos
pelos Estados Unidos, Europa e mais alguns poucos países. Em alguns, por exemplo, o crime
torna-se uma empresa comercial semelhante a qualquer outra do gênero. O crime organizado
gera “emprego”, gera fidelidade, redes de contatos, produtores e consumidores (não apenas
no caso do tráfico de drogas), possui hierarquia etc. Também é claro que por detrás da
semelhança existe a diferença, que é visível, mas que ofusca o que existe em comum. O
objetivo da criminalidade é o dinheiro, a mercadoria das mercadorias. Mas não se trata de
produção de dinheiro e sim de aquisição, feita sob as mais variadas formas e com processo
distributivo interno.
O crime organizado é reforçado pela situação de crescimento da penúria em todo o
mundo, o que é revertido em maior força social para este setor da sociedade moderna. O
combate ao crime é a medida preconizada por muitos para desestruturá-lo. O Estado
Neoliberal, o principal responsável por este estado de coisas, assume-se, como já colocava
Wacquant (2002), como um Estado Penal. O aumento da violência estatal torna-se o remédio
sugerido ao invés da resolução dos problemas sociais gerados pelo próprio neoliberalismo. O
aumento da repressão ao crime é apenas mais do mesmo, num círculo vicioso e ascendente de
violência. A população carcerária mundial cresceu vertiginosamente a partir dos anos 80, e
isto reforça a base social da criminalidade, ao invés de enfraquecê-la, pois as prisões
proporcionam união, contato, redes, organização. Se não houver uma mudança social de
grandes proporções, a tendência é aumentar a violência criminal e estatal, que se reforçam
mutuamente.
Mas o Estado Neoliberal não é apenas repressivo, pois utiliza habilmente políticas
paliativas e a estratégia da cooptação de amplos setores da população, visando amortecimento
das lutas de classes. Desde o financiamento de instituições, grupos acadêmicos, entre outros,
até realizar ponte entre as políticas paliativas e sistema de cooptação, o Estado Neoliberal é
rico em estratégias e, para manter a dominação neste contexto de miséria social e psíquica,
necessariamente deveria sê-lo.
Podemos citar o exemplo das políticas de cotas. A gênese da política de cotas tem
raízes históricas e sociais. As políticas estatais (chamadas “públicas”) nunca nascem devido à
genialidade dos governantes ou ao acaso. Elas são um fenômeno concreto e por isso possuem
determinações que explicam sua gênese. O Estado, o aparelho produtor e realizador das
políticas estatais, sofre mutações com o desenvolvimento histórico. As mudanças estatais
explicam as alterações na constituição, alteração, conteúdo e forma das políticas denominadas
“públicas”.
As políticas estatais mudam com as alterações na forma do Estado capitalista e não
foi diferente na mais recente mutação estatal, a passagem do Estado integracionista (dito do
“bem-estar social”, ou keynesiano) para o Estado neoliberal (Viana, 2003). O Estado,
integracionista utiliza uma ampla gama de políticas estatais visando integrar o conjunto da
população na sociedade capitalista, sendo resultado de um processo de luta de classes que
coloca o Estado, enquanto instituição que busca salvaguardar o capitalismo, através de alguns
benefícios e da cooptação, após as tentativas de revoluções proletárias que sacudiram o
mundo na primeira metade do século XX e das duas Guerras Mundiais. Obviamente, é
necessário compreender que esta formação estatal só existiu plenamente nos países de
capitalismo superdesenvolvido, nos quais o processo de transferência de mais-valor dos países
“pobres” para os países “ricos” permitia este dispêndio estatal e a implantação da chamada
“sociedade de consumo”.
A transição para o neoliberalismo ocorre com a crescente dificuldade da acumulação
capitalista. O neoliberalismo complementa a reestruturação produtiva – corroendo os direitos
trabalhistas e “flexibilizando” as relações de trabalho no sentido de permitir, legalmente, uma
maior exploração da força de trabalho – e o neoimperialismo, assumindo o papel protecionista
nos países imperialistas e defendendo o livre comércio nos países de capitalismo subordinado.
O Estado neoliberal, mínimo e forte, segundo seus ideólogos, é aquele que busca conter
gastos sociais, reduzindo ao mínimo as políticas estatais para a população e adquirir um papel
repressivo cada vez mais intensivo, devido ao acirramento dos conflitos sociais, aumento da
miséria, criminalidade e violência. Ele se torna um “Estado Penal” (Wacquant, 2002).
O Estado neoliberal, ao contrário do seu antecessor, não possui um conjunto de
políticas estatais voltadas para o chamado “bem-estar social” e sim uma forte política
repressiva e um conjunto de paliativos que buscam amenizar as contradições sociais através
da cooptação e responsabilização da sociedade civil. É neste contexto que há a expansão do
chamado “terceiro setor”, das ONGs etc., bem como novas ideologias e ações que jogam para
a sociedade civil as antigas responsabilidades estatais (voluntariado, “amigos da escola” etc.).
Assim, as políticas estatais neoliberais são políticas paliativas, isto é, não visam à resolução de
problemas sociais e sim sua amenização, não estruturam um conjunto de políticas estatais
voltadas para áreas chaves, mas sim para legitimar e desmobilizar reivindicações sociais mais
intensivas e resolutivas. Isso está de acordo com o princípio neoliberal de diminuir os gastos
sociais, já que tais políticas possuem custos muito mais baixos. A privatização é o
complemento de todo o processo, pois ela joga para instituições que visam o lucro em diversos
serviços sociais (educação, saúde etc.) o que antes era responsabilidade do Estado.
É neste contexto que surge a chamada “política de cotas”. Este é um exemplo de
política tipicamente paliativa, isto é, neoliberal. As cotas (raciais, étnicas, sociais) não visam
resolver nenhum problema social ou minimizá-lo consideravelmente. O que este tipo de
política visa é beneficiar artificialmente uma parcela da população, sem aumentar seus gastos,
e buscando cooptar tais “beneficiados”, legitimando o neoliberalismo. Basta olhar os dados
estatísticos sobre a população negra no Brasil, por exemplo, para ver que o sistema de cotas
na universidade atinge uma ínfima minoria, que é justamente a parcela melhor posicionada na
sociedade.
Se observarmos que a maioria absoluta da população pobre não tem a menor
possibilidade de acesso ao ensino superior e é formada em torno de 70% por negros, então
vemos o tanto que tal política beneficia uma pequena minoria. Desta minoria beneficiada,
surgem ardorosos defensores da política de cotas que deixam de lado aqueles que são mais
necessitados, e ainda podem posar de militantes em prol do interesse coletivo daqueles que
são negros. A política de cooptação atinge parcela da população negra com maior capital
cultural e posição social, que, obviamente, possui uma maior penetração nos meios
acadêmicos, nos meios de comunicação, nos movimentos sociais etc.
Essa população negra cooptada também tem novos interesses criados, tal como
núcleos de estudos, publicações, pesquisas etc. Isto tudo está ligado ao financiamento
realizado por determinadas instituições (inclusive internacionais) e pelo Estado,
movimentando grandes somas em dinheiro e criando uma rede de interesses em torno da
política de cotas, de temáticas de estudo (“ações afirmativas”, cultura afro-brasileira etc.).
Isso encontra respaldo nas ideologias contemporâneas, especialmente na moda pós-
estruturalista (Foucault, Guatari, Deleuze, Lyotard etc.), com seu discurso conveniente contra
a totalidade, criando as bases fragmentárias do microrreformismo. Nada disto é inocente e
basta ver a influência das fundações norte-americanas na produção brasileira referente à
questão racial.
Poder-se-ia invocar, evidentemente, o papel motor que desempenharam as grandes fundações
americanas de filantropia e pesquisa na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário
brasileiro, tanto no plano das representações, quanto das práticas. Assim, a Fundação Rockfeller financia um
programa sobre “Raça e etnicidade” na Universidade Federal do Rio de Janeiro, bem como o Centro de
Estudos Afro-Asiáticos (e sua revista Estudos Afro-Asiáticos) da Universidade Cândido Mendes, de maneira a
manter intercâmbio de pesquisadores e estudantes. Para a obtenção de seu patrocínio, a Fundação impõe
como condição que as equipes de pesquisa obedeçam aos critérios de affirmative action à maneira americana
(...) (Bourdieu & Wacquant, 2001, p. 25).
O Estado, ao invés de investir na educação, aumentando o número de vagas, apenas
realiza um processo de substituição dos ocupantes das vagas, criando cotas que garantam tal
troca. Abrir 50% de cotas para alunos oriundos do ensino público, significa que não haverá
aumento de vagas, mas tão somente substituição dos ocupantes das vagas. Não ocorre gasto
adicional e ainda há a propaganda que afirma que o Estado realiza políticas em benefício da
população (ou melhor, de uma pequena parte da população em detrimento da sua maioria). No
caso de cotas para pessoas oriundas do ensino público, vemos apenas algumas pessoas serem
beneficiadas em detrimento de outras e sem haver aumento de vagas. Nenhum governo
neoliberal aponta para a criação de 50% de novas vagas no ensino superior. Ao contrário, a
política neoliberal sucateia o ensino superior público e incentiva a expansão das instituições
privadas de ensino superior.
O sistema de cotas não resolve nenhuma questão, mas possui muitos defensores. A
dissolução do Estado integracionista pulverizou as esquerdas institucionais. A
socialdemocracia se tornou um “neoliberalismo de esquerda”, que apenas busca unir um
microrreformismo ao sabor “pós-estruturalista” com o pragmatismo conservador e, portanto,
submetido à pauta neoliberal. As grandes reformas sociais nem sequer são mais citadas e a
ideia de transformação social já havia sido abandonada pela socialdemocracia até no discurso
após a Segunda Guerra Mundial. Os novos governos socialdemocratas reproduzem a lógica
neoliberal e se diferenciam apenas por apresentar projetos que não saem do papel juntamente
com um aprofundamento de paliativos e responsabilização da sociedade civil.
A ala mais à esquerda apresenta projetos de “economia popular”, “economia
solidária”, “desenvolvimento sustentável” e coisas do gênero, às vezes utilizando linguagem
mais radical e ainda falando de socialismo, mas sem rupturas e através de uma ideia de
desenvolvimento linear de cooperativas e iniciativas da sociedade civil até o socialismo,
lembrando o reformismo do início do século XX.
Assim, a transformação social sai do horizonte das esquerdas institucionais e o
microrreformismo, um reformismo em migalhas, assume seu lugar. Obviamente, que muitos
argumentam que não se pode esperar a realização da utopia para depois se fazer alguma
coisa. Tal colocação já revela um posicionamento ao colocar que a transformação social é uma
“utopia”, mas aponta para a necessidade de ações imediatas e pragmáticas. Sem dúvida, são
necessárias ações imediatas, mas elas só possuem algum valor real se realizadas a partir de
uma articulação com o projeto de transformação social e apresentarem propostas de reformas
que sirvam para a acumulação de forças do campo revolucionário e outras que coloquem em
xeque a própria sociedade existente, o que André Gorz denominou “reformas não-reformistas”
(Gorz, 1968).
A política de cotas não apresenta nem a solução do problema que diz vir para
resolver e nem possui este nível de articulação com um projeto de transformação social. Basta
ver o discurso que é preciso, imediatamente, pagar a “dívida histórica” com os negros, para
ver que o microrreformismo é a sua base. Se existe uma “dívida histórica” com a população
negra, esta dívida não é do conjunto da população e sim da classe dominante – já que foi ela
que colonizou, escravizou, explorou, oprimiu – e não é esta que irá pagar tal dívida, pois os
que perderão suas vagas devido ao sistema de cotas são os setores mais pobres da população.
Da mesma forma, se há uma “dívida histórica” com a população negra, também
existe a mesma “dívida” com os proletários, lumpemproletários, camponeses, índios,
mulheres, jovens, crianças, e diversos outros grupos sociais oprimidos, presentes na sociedade
moderna. Assim, a ideologia isola a questão negra das demais questões sociais e cria um
paliativo, que beneficia apenas os mais bem posicionados dessa população e permite pensar
que se trata de um projeto compromissado com toda uma população – a negra. A população
negra – já separada dos demais grupos oprimidos, e esta separação entre os oprimidos apenas
reflete a estratégia da classe dominante de dividir para dominar mais facilmente – não é
beneficiada por tais políticas que, na verdade, atendem interesses de uma minoria no seu
interior.
Propor aumento das vagas ao invés de cotas, melhoria dos demais níveis de ensino
ao invés de privilegiar os privilegiados de um grupo “desprivilegiado” (cuja maioria é
desprivilegiada, mas não todos), entre outras propostas, seria o caminho da articulação entre
propostas imediatas e concretas com outras a longo prazo. Isso também geraria uma forma de
ação que não é produto de paternalismo estatal que beneficia uma minoria e sim de lutas
populares que beneficiam a maioria. Ninguém consegue libertação assumindo-se como
“vítima” e pedindo aos algozes a sua libertação, quando isso ocorre, o que se faz é transformar
algumas “vítimas” em novos algozes.
É preciso ultrapassar o pensamento único, o neoliberalismo. Isto é possível
superando os marcos de seu pensamento, tanto neoliberalismo de direita quanto de esquerda,
pois ambos são neoliberais. A renda nacional cada vez mais se concentra em poucas mãos e o
Estado neoliberal cumpre o papel de evitar gastos e criar paliativos para substituir as políticas
estatais de atendimento à população e através de responsabilização da sociedade civil pelo
que antes era um atributo seu. O Estado sempre teve papel-chave no processo de repartição
do mais-valor na sociedade e, sempre fez isto de acordo com os interesses dominantes. As
dificuldades encontradas no processo de acumulação capitalista fazem com que haja a
intensificação da ação estatal no sentido de garantir uma maior parte da renda nacional para
o capital e a luta hoje deve ser contra isto e a favor da criação de condições favoráveis para a
transformação social.
Por conseguinte, temos uma sociedade dilacerada por inúmeros conflitos, por uma
dominação cultural asfixiante e entorpecente, aliado a um estado extremamente repressivo, as
explosões e lutas sociais tendem também a se acirrar. Uma nova época de luta de classes
surge. Para perceber isso é necessário observar os sinais do tempo. A manifestação do
proletariado, da juventude, dos demais setores oprimidos ou explorados continua existindo, de
forma mais ou menos radical, mais ou menos contraditória, com avanços e recuos, com
influências de ideologias burguesas ou não, mas permanece e se torna mais atuante do que
em épocas anteriores.
No regime de acumulação intensivo-extensivo, as lutas sociais diminuíram
drasticamente na Europa e EUA e, somente no período de sua crise é que elas ressurgiram
com força considerável. No regime de acumulação integral, novas ações e lutas surgem, que,
mesmo perpassadas por ambiguidades, expressam a nova fase da luta de classes. Trata-se de
uma luta cotidiana, espontânea, que é mais radical do que a que existia no regime de
acumulação anterior. Neste sentido, as atuais lutas sociais não são lutas revolucionárias e nem
expressam uma crise do capitalismo, como muitos supõem, nem sequer há uma crise do
regime de acumulação, muitos menos do modo de produção. As lutas que se manifestam hoje
são as lutas espontâneas e normais do novo regime de acumulação. O regime de acumulação
integral aumenta a exploração e por isso a integração do proletariado e dos demais setores
descontentes da sociedade é mais frágil, apesar do estado repressivo e do sistema de
cooptação, bem como da cultura mercantil e do novo consumismo e das novas tendências
culturais regressivas.
Assim, as lutas esporádicas são manifestações da luta de classes na sociedade
contemporânea. Isto significa, entre outras coisas, que quando o regime de acumulação
integral entrar em crise, tais lutas serão intensificadas e generalizadas, além de radicalizadas.
Uma nova onda revolucionária tende a surgir, tal como as grandes possibilidades
revolucionárias, especialmente as do início do século XX, mas agora tendo por base
sociedades capitalistas muito mais desenvolvidas e articuladas, possibilitando o que Marcuse
antecipou em 1972: a revolução mundial.
É neste contexto que ocorrem lutas como as que se desenvolveram (e continuam se
desenvolvendo) em vários países. Além da luta cultural, também a luta política se manifesta
através da emergência do chamado “movimento antiglobalização”, e outras lutas políticas que
explodem pelo mundo. O movimento antiglobalização, um nome impróprio e preso à ideologia
da globalização (Ludd, 2002)45, surgiu em 1999, depois das manifestações da Ação Global dos
Povos Contra o Capitalismo, no qual se destacou a manifestação em Seattle, Estados Unidos,
em 30 de novembro deste ano, um protesto contra o Fundo Monetário Internacional. A onda
de manifestações se espalhou por dezenas de países e cidades.
Nesse movimento estavam presentes os mais variados grupos, tendências, posições
políticas. Desde anarquistas até ONGs, passando por tendências ditas marxistas, esquerdistas,
antimilitaristas, feministas, esquerda católica, sindicalistas etc., mostrando o caráter amplo e
indefinido do movimento. Várias outras manifestações e desdobramentos ocorreram, em vários
países. Confrontos com a polícia ocorrem em vários casos, tal como aconteceu em Gênova em
2001, no qual o Black Bloc, um movimento que se diz antiautoritário, utiliza formas violentas
de protesto e em um confronto com a polícia ocasionou a morte de um militante do movimento
antiglobalização, Carlo Giuliani, que se transformou para muitos, em símbolo do movimento. O
movimento antiglobalização gerou vários desdobramentos, em várias perspectivas (inclusive
tendo em vista a variedade de indivíduos, grupos, tendências e organizações que participaram
de seu processo de constituição), tal como o FSM, Fórum Social Mundial, representante da ala
reformista do movimento e contatos e organizações anticapitalistas (Ryoki e Ortellado, 2004;
Ludd, 2002).
Também ocorrem lutas esporádicas e espontâneas em várias partes do mundo. Este
é o caso das lutas sociais na França, Argentina e México. As lutas sociais na França já
promoveram algumas ações esporádicas, mas que estão retornando com certa frequência. Os
acontecimentos de 2005 na sociedade francesa são apenas um sintoma de que algo está por
acontecer, que é a tendência da radicalização das lutas sociais na Europa e em todos os países
imperialistas. Esse sintoma é apenas mais um entre diversos outros e a percepção de suas
manifestações nos ajudam a entender todo o processo social em andamento no mundo
contemporâneo.
Os jovens, imigrantes, pobres, queimam os carros, enfrentam a polícia. O que
provoca isso? A situação precária de vida de grande parte da população francesa,
principalmente os imigrantes e outros setores mais empobrecidos da população. Mas essa
afirmação não revela tudo o que está por detrás dos acontecimentos contemporâneos na
França e no mundo. Em outros países, movimentos de revolta popular também ocorrem e
tendem a continuar ocorrendo. A explicação mais fácil dos acontecimentos na França remete a
revolta contra a superexploração e a pobreza. De certa forma, isso está correto, mas existe
algo mais: por qual motivo essa revolta não assume características contestadoras e de
exigências de mudanças sociais? Por qual motivo o ato destrutivo, a violência de massas, se
manifesta sem nenhum projeto alternativo?
As explicações são várias: o nível de consciência dos revoltados não permite a eles
ultrapassarem a ação simplesmente destrutiva. No entanto, existe algo mais. Existe a falta de
uma utopia. Como já dizia o filósofo Ernst Bloch, sem utopia não há revolução. Os projetos
alternativos de sociedade estão sendo bombardeados pela contrarrevolução intelectual e
cultural que se iniciou nos anos 70, com a ideologia pós-estruturalista e sua popularização e se
aprofundou com a derrocada do capitalismo estatal soviético (“dito” socialismo) e a crise do
“marxismo”-leninismo e transformação da socialdemocracia em “social”-liberalismo ou um
“neoliberalismo de esquerda”.
O anarquismo ressurgiu, mas não conseguiu adquirir uma força política considerável
e grande parte do que se diz anarquismo é na verdade, uma mistura eclética de ideologia pós-
estruturalista e pseudoanarquista – na qual o niilismo, a revolta, a destruição, se tornam a
razão de ser da ação – onde qualquer proposta de projeto alternativo de sociedade, de auto-
organização, é condenada. Estas teses acabam popularizando-se mais ou menos e influenciam
em parte o processo social e os movimentos sociais.
Os integrantes dos movimentos antiglobalização estão também numa situação
semelhante ao do anarquismo, pois acabam fazendo uma mistura de ideologias pós-
estruturalistas, por um lado, com o situacionismo, conselhismo, marxismo libertário ou o
anarquismo, por outro. Claro que deixando de lado as tendências reformistas, ou “social-
liberais” que continuam existindo. Neste contexto, o marxismo que, em períodos de
estabilidade capitalista passa de teoria para ideologia (Korsch, 1977), começa a ser
recuperado pelas lutas operárias e começa a retomar seu caráter teórico.
Esses elementos complementam a situação social concreta da sociedade francesa e
acaba explicando o caráter das ações dos jovens franceses, que tomam a destruição, o
individualismo, a revolta, a não-organização, a falta de um projeto, enquanto meio de ação.
Por conseguinte, enquanto não houver uma utopia, um projeto alternativo de sociedade, para
guiar as ações populares, o risco da mera destruição e da recuperação ou desvio destas ações
para práticas conservadoras é grande. Por isso, retomar a ideia de transformação social com
um projeto alternativo de sociedade, se torna hoje fundamental. E isso faz parte de uma ampla
luta cultural contra os antiutopismos existentes e ideologias dominantes, o que pode fazer
brotar um projeto coletivo de transformação social. Mas tanto uma possibilidade quanto a
outra estão dadas, isto é, tanto a revolta de massas pode gerar a mera destruição, ou seu
desvio direitista e fascista, quanto pode, a partir do momento em que haja uma utopia
concreta que dê direção ao movimento, uma possibilidade de caminhar rumo à transformação
social. De qualquer forma, a luta existe e não foi abolida, está presente, permeada por
contradições, mas faz parte do processo de desenvolvimento da consciência e organização. As
lutas espontâneas passam para uma luta mais efetiva e caminho para a lutas autônomas e
autogestionárias.
O caso argentino, em 2002, é outro exemplo. O regime de acumulação integral
provoca aumento geral da exploração internacional e cria dificuldades crescentes para a
acumulação capitalista em diversos países, gerando conflitos e lutas sociais. A formação das
“assembleias de bairro” (cerca de oitenta, em abril de 2002), que apresentam uma forma
organizativa semiconselhista, sendo que os conselhos operários surgem e ressurgem no
processo histórico, demonstrando o embrião da autogestão social. Desde a primeira grande
experiência histórica da Comuna de Paris (1871), o movimento operário e o movimento
popular em geral, sempre criaram formas de auto-organização, de autogestão, sendo que os
conselhos (de fábrica, de bairros, operários etc.) são as formas geralmente assumidas.
Durante a Comuna de Paris, o regime autogestionário reconhecido como a primeira revolução
proletária por Marx e Bakunin (Viana, 2004), representantes das duas correntes mais
importantes do movimento revolucionário, apresentou os conselhos de forma embrionária46.
Assim, a nova dinâmica da luta de classes passou a se desenvolver também na
América Latina, inclusive em alguns casos com maior radicalidade, tal como ocorreu na
Argentina. Assim, a possibilidade histórica de ressurgimento dos conselhos estava dada e o
renascimento do movimento político conselhista acompanha estes momentos de acirramento
dos conflitos de classes. Vejamos o caso das Assembleias de bairros na Argentina, que podem
ser consideradas embriões dos conselhos de bairros, formas organizativas que tendem a
evoluir. As assembleias de bairro rejeitam os partidos políticos e apresentam uma forma de
organização horizontal. Todos possuem direito de manifestação, o que permite o debate livre e
a decisão majoritária, considerada mesmo pelos que possuem outra opinião como sendo
legítima. As assembleias não são convocadas por um centro, por uma direção, mas sim pela
própria população. Elas criam grupos de trabalhos (voltados para diversas questões, como
saúde, educação, propaganda etc.) que se reúnem uma vez por semana para discutir as
propostas, para enfrentar a crise e, os problemas cotidianos e as apresentam nas assembleias
de bairro, onde serão discutidas, aprovadas e implementadas.
Nascidas de forma espontânea nas ruas e praças dos bairros dos grandes centros urbanos do país,
as assembleias implicaram a instalação de um novo âmbito político e a possibilidade efetiva de recuperação e
apropriação do espaço público. Certamente, a experiência das assembleias instalou uma forma original da
atuação política por fora do aparelho de Estado e das estruturas políticas tradicionais, instalando práticas
baseadas na democracia direta, o que implicou a rejeição de qualquer modalidade de organização que
supusesse delegação e/ou criação de candidatos ou representantes (Hopstein, 2007, p. 99).
Mas tal estrutura não se mantém isolada em um bairro. Existe também a assembleia
geral, que ocorre com a participação dos conselhos de todos os bairros, chamada Assembleia
Interbarrial. Tais assembleias significam autonomização da população Argentina, que dispensa
os intermediários, partidos políticos principalmente, inclusive os de esquerda. O movimento
ainda não assumiu a radicalidade de questionar o domínio do capital, a propriedade privada
das fábricas, o que pressupõe a formação dos conselhos de fábrica e transformação em
conselhos de bairros, mas já marca um momento de autonomização das classes exploradas na
Argentina. Essa primeira experiência de autonomização do proletariado ainda pode causar o
nascimento de um movimento revolucionário ou pelo menos formar uma primeira geração de
argentinos com experiência na luta direta, sem mediação burocrática, o que proporciona os
incentivadores de uma nova forma de organização e de ressurgimento dos conselhos, tal como
na Alemanha e outras experiências históricas47.
Na Argentina, a crise nacional e as ações governamentais impopulares geraram uma
crise de legitimidade do Estado capitalista argentino, o que provocou uma recusa dos partidos
políticos e novas formas de ação política, como o panelaço, o chaveiraço, e, principalmente, as
assembleias populares. Segundo a socióloga conservadora Graciela Römer:
Há uma crise de legitimação política, que compromete o conjunto dos dirigentes e dos partidos
políticos. Está em xeque a forma tradicional de fazer política, como ficou claro nas eleições de 2001, quando
50% dos eleitores não compareceram, votaram em branco ou anularam seu voto (entrevista em Zero Hora,
03/02/2002).
O surgimento dessas assembleias ocorreu, como os demais exemplos históricos
confirmam, de forma espontânea:
As assembleias surgiram da conversa informal de vizinhos, que se reuniam em esquinas e praças
de vários bairros para discutir o desastre De La Rúa, a insatisfação com o peronismo, o adiamento das
eleições diretas e, é claro, o confisco bancário. Dessa maneira, da informalidade, os grupos passaram a
reuniões semanais, inicialmente com cerca de 30 pessoas. Atualmente, em alguns bairros, os encontros
chegam a atrair 300. – Não temos líder, porque defendemos a democracia direta, comandada pelo povo – diz o
historiador Raúl Isman, do partido de Villa del Parque, tradicional bairro de classe média da capital (O Globo,
27/04/2002).
O Governo Argentino já percebeu o perigo representado por tais assembleias e, por
isso, se pode ler no Jornal O Globo, de 27/04/2002:
Nem os governadores, nem o Fundo Monetário Internacional (FMI). Tampouco os sindicatos e
muito menos as empresas espanholas. A principal preocupação do presidente Eduardo Duhalde hoje é a
crescente participação da população da capital em assembleias de bairros, um fenômeno de organização
apartidária que nasceu dos panelaços há menos de 30 dias, reunindo desde a classe média empobrecida,
estudantes, desempregados a pequenos empresários.
A preocupação não é só do governo, pois a socióloga conservadora Graciela Romer
também mostra sua preocupação e dá a mesma receita que o Governo Argentino: integrar os
movimentos atendendo parcialmente suas demandas e fazendo do discurso da cidadania,
forma de integração capitalista. Este é o discurso da classe dominante e do poder, que tem
como aliado os partidos de esquerda (Ferreiro, 2007).
Ao lado do surgimento e desenvolvimento das assembleias de bairro, surge o Truque,
feiras nas quais as trocas não se baseiam em dinheiro, ocupação de fábricas, entre outras
iniciativas que demonstram a efervescência política no país. A crise do capitalismo argentino
faz parte da instauração de um regime de acumulação que intensifica, mundialmente, o
processo de exploração e isto atinge determinados países e setores de forma mais rápida,
intensa e ampla do que em outros, geralmente revoltas e lutas mais fortes, mas que fazem
parte da dinâmica mundial do novo regime de acumulação.
Outro exemplo de ascensão das lutas sociais é o caso mexicano. Desde as ações em
Chiapas na década de 1990, através do movimento ligado ao EZLN – Exército Zapatista de
Libertação Nacional (Genari, 2002) que, apesar de suas limitações enquanto força política e
filiação ao leninismo, foi expressão das condições sociais e históricas, cujo movimento tende a
ultrapassar a própria organização leninista48.
Porém, as lutas sociais no México ampliaram-se com a mobilização de Oaxaca, e
vários conjuntos de mobilizações, como a marcha de 120 mil pessoas em 06 de junho de 2006
e várias manifestações, greves, ações, como a tomada de emissoras de rádio e TV, ocupação da
cidade de Oaxaca e formação da APPO – Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca. A aparente
derrota do movimento, apenas mostra, que a luta serviu para forjar novas esperanças e a
experiência de luta coletiva, dificultada pela direção ligada a partidos políticos, mas que tende
a ressurgir, cada vez mais forte, nos próximos anos.
Assim, os conflitos sociais geram formas de auto-organização, lutas, desenvolvimento
da consciência, ações esporádicas, dependendo do contexto, dos agentes, da situação histórica
e social. Apesar das lutas apresentadas anteriormente serem permeadas de contradições e
algumas sofrerem determinadas limitações, na própria luta e na tendência de generalização e
ampliação, isso tende a ser resolvido. A cada luta, mesmo derrotada, avança a auto-
organização e a consciência, permitindo e incentivando novas ações e lutas, preparando o
terreno para o fortalecimento da tendência histórica da transformação social.
O mais interessante disso tudo é que se trata, na maioria dos casos, de lutas
espontâneas e cotidianas. Estas, além da acumulação de experiência, auto-organização e
desenvolvimento da consciência, ainda podem ser reforçadas pela ocorrência de uma crise do
regime de acumulação integral, mesmo porque, tal regime dificilmente vai ter uma vida de tão
longa duração quanto os regimes de acumulação anterior. Assim, a possibilidade de
transformação social se coloca no horizonte. Além do horizonte, e cada vez mais próximo, está
a autogestão social.
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Notas
Parte – 1
Capítulo 1
1. A periodização de Preobazhensky e Mandel, citada por Frank, é pouco fundamentada e
não acrescenta muito em matéria de reflexão teórica. A periodização de Samir Amim, por sua
vez, parece-nos, no que se refere ao problema dos períodos históricos, mais adequada, embora
também seja teoricamente limitada.
2. Em outra obra ele tenta resolver essa questão: “A análise da formação e luta de classes é
particularmente deficiente em relação ao processo de acumulação de capital em conjunto. (...)
A este respeito limitar-nos-emos a algumas observações ou questões isoladas e superficiais
acerca da acumulação de capital e formação e composição de classes e acerca de conflitos e
lutas de classes tal como se manifestam através do estado, guerra e conflito ou revolução
ideológica ou religiosa e política” (Frank, 1979, p. 49). Além de o próprio autor reconhecer a
superficialidade do tratamento que fornece à questão das lutas de classes, ele realiza isto
como se acumulação de capital e luta de classes fossem coisas externas uma à outra, e assim
não percebe que a própria acumulação é expressão de luta de classes e que suas crises e
mudanças são produtos destas mesmas lutas. A ligação se torna entre duas coisas externas
uma a outra, o que transforma a acumulação de capital em algo fetichista.
3. Em outra obra, Lipietz afirma: “É necessário, portanto, que exista uma materialização do
regime de acumulação, sob a forma de normas, costumes, leis, mecanismos reguladores, que
assegure, através da rotina do comportamento dos agentes em luta uns contra os outros (na
luta econômica entre capitalistas e assalariados, na concorrência entre capitais), a unidade do
processo, o respeito aproximativo do esquema de reprodução. Este conjunto de regras
interiorizadas e de procedimentos sociais, que incorpora o social nos comportamentos
individuais (o habitus, conceito desenvolvido por Pierre Bourdieu), é o que se chama de modo
de regulação” (Lipietz, 1988, p. 30).
4. O desenvolvimento capitalista não é um processo automático e mecânico de forças
metafísicas, e sim luta de classes estabilizada e restrita ao processo de valorização e nos
elementos diretamente ligados ao processo de acumulação de capital.
5. As características de cada regime de acumulação serão discutidas mais detalhadamente
nos próximos textos, principalmente o regime de acumulação integral.
6. Isso significa luta de classes autônomas (ou, em certos momentos e casos,
autogestionárias), extraordinárias, radicalizadas, por um lado, e lutas de classes cotidianas,
ordinárias, estabilizadas, por outro. Porém, devido às características próprias das relações de
classes entre a classe exploradora, a burguesia, e a classe explorada, o proletariado, mesmo
as lutas cotidianas e estabilizadas encaminham o capitalismo para a crise, já que reforçam a
tendência declinante da taxa de lucro.
7. Na obra anterior, em que abordamos a teoria do regime de acumulação (Viana, 2003),
não discutimos o problema do nazi-fascismo, por um lado, nem o problema da acumulação nos
países de capitalismo de Estado e subordinado. Sem dúvida, o nazi-fascismo foi uma exceção e
tentativa de salvar o capitalismo da crise que se encontrava, e por isso não tinha tanta
importância para uma análise da sucessão dos regimes de acumulação. O caso do capitalismo
subordinado, devido à questão da exploração internacional e a suas formas, estava
parcialmente contemplado, embora necessitando análises mais completas e profundas, que
aqui também não estão desenvolvidas. O caso do capitalismo estatal mereceria, no entanto,
uma abordagem, devido a seu papel na divisão internacional do trabalho e sua importância
relativa no desenvolvimento capitalista, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial.
O pequeno trecho que dedicamos a algumas destas questões, especialmente ao caso do
capitalismo estatal, apenas apontam a necessidade de aprofundar o estudo da acumulação
capitalista neste caso, o que ainda está por ser feito, apesar de já existirem alguns estudos,
mesmo que deficientes, sobre isso.
8. Sobre o conceito de formas de regularização, veja: Viana, 1997.
Parte – 2
Capítulo 1
9. Tal afirmação, entretanto, não deve servir para uma interpretação que coloque o
presente trabalho entre as abordagens “relativistas”, pois aqui partimos do materialismo
histórico-dialético utilizado por Karl Marx e alguns de seus seguidores. A abordagem
lukacsiana (Lukács, 1989), segundo a qual o materialismo histórico-dialético só seria aplicável
à sociedade burguesa, não se encontra presente aqui, pois, para nós, ele possui tanto
elementos aplicáveis a todos os modos de produção que existiram na história quanto
elementos aplicáveis somente ao modo de produção capitalista (Viana, 1997).
10. “A forma de que se reveste o sofrimento varia com o tipo de organização do trabalho. O
trabalho repetitivo cria a insatisfação, cujas consequências não se limitam a um desgosto
particular. Ela é de certa forma uma porta de entrada para a doença, e uma encruzilhada que
se abre para as descompensações mentais ou doenças somáticas (...)” (Dejours, 1988, p. 133);
“as autoridades da saúde pública da Alemanha Ocidental já não podem ocultar o fato de que é
crescente a proporção de doenças funcionais entre a população assalariada. O ‘relatório
interno médico’ de 1970 menciona cifras alarmantes: em 63,9 por cento de homens e 71,1 por
cento de mulheres num total de 50 mil empregados (dos quais, porém, apenas 63 por cento
deixaram-se examinar), medidas terapêuticas foram consideradas necessárias. (...)”
(Schneider, 1977, p. 230).
11. “A riqueza das sociedades em que domina o modo de produção capitalista aparece
como uma ‘imensa coleção de mercadorias’, e a mercadoria individual como sua forma
elementar” (Marx, 1988, p. 45). É preciso notar aqui que Marx fala que “aparece”, ou seja,
remete ao mundo da aparência. De acordo com o método dialético, é preciso superar a
aparência para chegar até a essência. Assim, muitos leitores apressados de Marx passam a
definir o capitalismo como “produção de mercadorias”. No entanto, como demonstraremos a
seguir, a produção capitalista é produção de mercadorias, mas não é aí que reside sua
especificidade. A produção capitalista é uma forma específica de produção de mercadorias,
fundada na extração de mais-valor. Logo, a produção capitalista é, na verdade, produção de
mais-valor, processo de exploração. Definir o capitalismo como produção de mercadorias é
ficar no limite da aparência e não chegar à essência, o que muitos ditos marxistas fazem.
12. “Quando a força de trabalho torna-se mercadoria e os meios de produção capital, a
relação mercantil pode tornar-se a base da sociedade” (Latouche, 1977, p. 99).
13. Podemos dizer que, na perspectiva do proletariado, a luta pela diminuição da extração
de mais-valor é apenas uma etapa na luta mais geral e fundamental, que é abolir a existência
do mais-valor, o que significa abolir as duas classes que tornam esta existência possível – a
burguesia e o proletariado.
14. “O ‘fordismo’ é uma aplicação do sistema Taylor, na fabricação em massa: em 1913,
Henry Ford introduziu a primeira cadeia de montagem, na construção de automóveis, em
Detroit” (Linhart, 1983).
15. “A mais-valia relativa e a absoluta vão, frequentemente, de mãos dadas” (Eaton, 1965,
p. 103).
16. “O sistema toyotista supõe uma intensificação da exploração do trabalho, quer pelo fato
de que os operários atuam simultaneamente com várias máquinas diversificadas, quer através
do sistema de luzes (verde = funcionamento normal; laranja = intensidade máxima, e
vermelha = há problemas, deve-se reter a produção) que possibilitam ao capital intensificar –
sem estrangular – o ritmo produtivo do trabalho”; “o sistema de luzes permite um melhor
controle da direção sobre os operários” e “serve para elevar continuamente a velocidade da
cadeia produtiva” (Antunes, p. 27-28); “Barrier Lynn cita a terrível descrição do ‘inferno
Toyota’, elaborada pelo japonês Satochi. Sob a aparência do consenso voluntário e do
paternalismo patronal protetor, Satochi descreve a coerção permanente a que está submetida
a força de trabalho, o que desencadeia o karoshi ou morte por ‘overdose de trabalho’. Meio
milhar de trabalhadores morre ao ano em consequência das jornadas de trabalho de 15/16
horas, da ausência de férias, das agonizantes viagens de horas ao centros fabris e da
existência diária em habitações minúsculas. Estas condições de vida popularizam o ditado:
‘triturar-se a si mesmo até converter-se em pó’” (Katz, 1995, p. 34).
Parte – 3
Capítulo 1
17. Marcuse chegou a esboçar a compreensão disso sem suas últimas obras, produzidas na
época de crise do regime de acumulação intensivo-extensivo (cf. Marcuse, 1981).
18. O mesmo vale para o eufemismo “mundialização”, utilizado inclusive por muitos
“marxistas”: “Poder-se-ia analisar também em todos os seus detalhes a noção fortemente
polissêmica de ‘mundialização’, que tem como efeito, para não dizer função, submergir no
ecumenismo cultural ou no fatalismo econômico os efeitos do imperialismo e fazer aparecer
uma relação de força transnacional como uma necessidade natural. No termo de uma
reviravolta simbólica baseada na naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal, cuja
dominação se impôs nos últimos vinte anos, graças ao trabalho de São Paulo dos think thanks
conservadores e de seus aliados nos campos político e jornalístico, a remodelagem das
relações sociais e das práticas culturais das sociedades avançadas em conformidade com o
padrão norte-americano, apoiado na pauperização do Estado, mercantilização dos bens
públicos e generalização da insegurança social, é aceita atualmente com resignação como o
desfecho obrigatório das evoluções nacionais quando não é celebrada com um entusiasmo
subserviente que faz lembrar estranhamente a ‘febre’ pela América que, há meio século, o
plano Marshall tinha suscitado em uma Europa devastada” (Bourdieu, 2001, p. 19-20).
Capítulo 2
19. No caso, as manifestações artísticas embasadas no marxismo.
20. “Contra o codificado alto modernismo das décadas precedentes, o pós-modernismo dos
anos 60 tentou revitalizar a herança da vanguarda europeia e dar-lhe uma forma norte-
americana ao longo do que pode ser resumidamente chamado de eixo Duchamp-Cage-Warhol”
(Huyssen, 1992, p. 31).
21. Seria difícil citar toda a bibliografia de crítica a Althusser, sob os mais variados pontos
de vista, devido à quantidade, e por isso vamos colocar apenas algumas das mais conhecidas:
Thompson (1981); Vázquez (1980); Silveira (1978).
22. As datas de publicação das obras de Baudrillard são as seguintes:
O período estruturalista-“marxista”: 1968: O Sistema dos Objetos; 1970: A Sociedade de
Consumo; 1972: Para Uma Crítica da Economia Política do Signo.
O período pós-estruturalista: 1973: O Espelho da Produção; 1978: À Sombra das Maiorias
Silenciosas; 1979: Da Sedução; 1981: Simulacros e Simulação; 1988: América, entre diversas
outras neste período.
No caso de Foucault as datas são as seguintes:
Período estruturalista: 1954: Doença Mental e Psicologia; 1961: História da Loucura; 1963:
Nascimento da Clínica; 1966: As Palavras e as Coisas; 1969: Arqueologia do Saber.
Período pós-estruturalista: 1975: Vigiar e Punir; 1976-1984: História da Sexualidade; 1970: A
Vontade de Saber; etc.
Esta periodização serve para notarmos que o estruturalismo, que era moda e verdade absoluta
para muitos, logo foi facilmente trocado por um punhado de intelectuais, por uma nova moda
e nova verdade absoluta (mesmo que seja uma verdade absoluta que faz a pregação da
inexistência de verdade absoluta). Nos anos 1960, temos a hegemonia do estruturalismo; a
partir dos anos 1970 é a vez do “pós-estruturalismo”.
23. Adorno e Horkheimer produziram em coautoria uma das principais obras deste período,
A Dialética do Esclarecimento (1985); neste contexto, as demais obras destes autores
(Horkheimer, 1976) Adorno (1995), se enquadram nessa crítica da sociedade europeia.
Marcuse, por sua vez, produziu uma quantidade maior de obras, apesar de certos avanços e
recuos mais radicais e críticos (Marcuse, 1982; 1986; 1981). Debord lançou sua grande obra,
A Sociedade do Espetáculo (1997), mas a Internacional Situacionista e ele mesmo já haviam
adiantado parte das críticas muito tempo antes, inclusive sendo influenciados por Henri
Lefebvre (1981). O freudo-marxismo, especialmente Erich Fromm (2006; 1976), realiza uma
crítica à sociedade contemporânea, apresentando o predomínio do ter sobre o ser, a
burocratização e mercantilização etc. Sartre, em sua tentativa de unir marxismo e
existencialismo também forneceria elementos para uma crítica da sociedade europeia do pós-
guerra e do pseudomarxismo fossilizado da década de 60 (1967). Daniel Guérin efetivaria a
crítica do leninismo e buscaria um “marxismo libertário”, e simultaneamente recuperar o
anarquismo (Guérin, 1969; Guérin, 2007; Guérin, 1973; Viana, 2008a).
24. Claro que isso não ocorre apenas no que se refere à cultura, pois basta ver os exemplos
anteriores e diversos outros (celular, por exemplo), que mostra essa intensificação do mercado
consumidor, fundamentalmente através da criação de necessidades fabricadas e intensificação
do consumo por indivíduo.
Capítulo 3
25. Sobre as teses da crise do marxismo, veja: Viana (2007b).
Capítulo 4
26. Utilizaremos a expressão negrismo para qualificar as teses de Negri e seus
colaboradores, tendo em vista que elas formam uma ideologia, uma falsa consciência
sistematizada, que ainda não tinha sido “batizada” e porque se distingue do autonomismo
italiano dos anos 60-70 do século passado (o “obreirismo”), formando uma nova concepção
que, portanto, merece novo nome.
27. O texto citado, Trabalho Imaterial e Subjetividade, é de 1991, e o texto onde se coloca
explicitamente a necessidade de “ampliar” o termo “trabalho vivo”, O Trabalho: Um Novo
Debate para Velhas Alternativas, contida na mesma coletânea que citamos anteriormente
(Lazzarato & Negri, 2001), é posterior.
28. “A noção de trabalho imaterial – como figura subjetiva, social, cooperativa, difusa e
pública do trabalho intelectual – pretende levar em conta o novo valor de uso das forças de
trabalho na forma geral da atividade de todo sujeito da sociedade pós-industrial” (Cocco,
1996, p. 19).
29. A parte citada e resumida por Negri e Lazzarato tem versão portuguesa (Marx, 1980).
30. “O que entendemos por relações econômicas – que consideramos como a base
determinante da história da sociedade – é o modo pelo qual os homens de uma dada sociedade
produzem seus meios de subsistência e trocam os produtos (na medida em que exista divisão
social do trabalho)” (Engels, 1987, p. 53)
31. “Segundo dados do Banco Mundial de 1997, existem hoje 2. 806 bilhões de
trabalhadores assalariados, dos quais 550 milhões trabalham na indústria e 850 milhões nos
serviços” (Castillo, 2001). Deve-se acrescentar a estes trabalhadores da indústria, outros
setores, como os trabalhadores da construção civil, para se ter uma ideia mais exata do total
de operários no mundo.
32. Sem dúvida, uma pesquisa mais aprofundada dos textos de Marx se faz necessária para
ter uma posição definitiva sobre a existência de ambiguidade ou não. De qualquer forma,
nossa análise nada tem a ver com os pensadores que consideram que a obra de Marx é, em
geral, marcada por “ambiguidades”, que são apenas expressões de leituras imprecisas e
confusas, tal como o faz João Bernardo (2003).
33. Isto é o que faz Paula Bach: “creio que Negri, ao abandonar expressamente a dialética,
expressão das leis do movimento, acaba outorgando a seu valor um caráter ideal de que não
pode ser preenchido de conteúdo para explicar a realidade” (Bach, 2001, p. 02). Aqui apenas
se troca uma concepção metafísica por outra.
34. Marx trabalha com a ideia de abstração em dois sentidos: a abstração metafísica (tal
como se vê em sua afirmação de que “a população é uma abstração se não for percebida que é
composta por classes sociais etc.” – em como a “multidão” de Negri), embora não tenha
utilizado esta expressão, e a da abstração dialética, que capta a determinação fundamental do
fenômeno e por isso diz que a análise da sociedade é realizada utilizando o “método da
abstração” ou a “faculdade de abstrair” (cf. Viana, 1997; Viana, 1998).
35. “Esta substituição estaria marcada, ao mesmo tempo, por uma intelectualização dos
novos ofícios informacionais: o saber abstrato da ‘ciência’ e dos cientistas substituiria a
experiência dos saberes-fazeres produtivos” (Lojkine, 1995, p. 239).
36. A catexia é um conceito psicanalítico que expressa os investimentos (libidinais) de um
indivíduo. Utilizamos esse conceito retirando-lhe o caráter puramente sexual. Assim, catexia é
o conjunto de “investimentos” (valores, sentimentos, projetos etc.) de um indivíduo.
37. O grande problema desse texto encontra-se em sua capitulação diante dos construtos
da “moda”, tal como subjetividade e flexibilidade. O que Renato Vieira chama de
“subjetividade” é semelhante ao que denominamos catexia.
38. “O debate italiano definiu de maneira rica a ‘fenomenologia’ e a ‘ontologia’ do pós-
fordismo” (Lazzarato, 2001c, p. 106).
Parte – 4
Capítulo 1
39. Sobre construto e falso conceito, Cf. Viana (1997).
40. Tal crítica também foi endereçada à chamada “teoria da marginalidade” (em suas
diversas versões), que também teria uma visão dualista da sociedade (cf. Berlinck, 1975).
Consideramos que tais críticas se aplicam também à concepção de exclusão social, tendo em
vista suas características semelhantes.
41. O ex-governador do Distrito Federal e economista Cristovam Buarque também cai em
equívocos semelhantes. Ele utiliza a expressão “apartação” ou “apartheid social” para tratar
dos “excluídos”, que, segundo ele, estão próximos de ficar na mesma situação dos negros sul-
africanos durante o regime do apartheid: segregados e separados (Buarque, 1998). Aqui, além
de problemas semelhantes, vemos uma exasperação do problema, que mostra uma de suas
fontes: o medo dos “incluídos” (principalmente por parte das classes auxiliares da burguesia)
em relação aos excluídos.
Capítulo 2
42. Preferimos utilizar a expressão capital comunicacional ao invés de “indústria cultural”,
termo criado por Adorno e Horkheimer (1986), por ser mais adequado a uma teoria do
capitalismo e para a compreensão da realidade moderna. Sobre o conceito de capital
comunicacional e sua vantagem em relação ao construto de “indústria cultural”, cf. Viana
(2007c).
43. Estas novas ideologias se somam com as que defendem que serão a escola e a educação
que irão promover a “transformação social” (ideologia que consegue adeptos até na dita
“esquerda”, sem fazer nenhuma consideração crítica sobre qual escola e educação é fornecida
para a população). Elas defendem teses como as da proeminência da “sociedade do
conhecimento”, “informacional”, que o que gera riqueza é o “trabalho imaterial”, que a lógica
do capitalismo contemporâneo expressa a dominância da instância cultural, entre outras.
44. A generalização do uso da TV a cabo, DVDs, CDs etc., expressa o que alguns chamam
de “democratização”. Porém, é preciso perceber que esta democratização é para quem
compra e tem poder aquisitivo para fazê-lo. Os velhos filmes do cinema mudo agora podem ser
comprados em DVD e assistidos em casa, bem como uma diversidade de filmes de todas as
épocas; o telespectador, através da TV a cabo, passa a ter um leque muito maior para
selecionar o seu programa ou filme; as músicas agora podem ser compradas em suportes
materiais mais duráveis, tal como o CD e assim por diante. Antes, somente uma elite poderia
assistir aos filmes mudos ou ouvir certas músicas. Porém, esta democratização é limitada e
atinge uma parte da população, a que tem poder aquisitivo, que tem capacidade de aumentar
o consumo – mesmo se endividando – e assim integrar o circuito da reprodução ampliada do
mercado consumidor. Certamente, certas obras se tornaram acessíveis, mas também se
tornaram mercadorias. Enquanto mercadoria possui valor de uso e valor de troca. O valor de
uso muitas vezes inexiste para muitos consumidores. Na maioria dos casos, eles compram
devido à propaganda, ao status que a mercadoria pode fornecer, mas não para um uso e,
principalmente, um uso fundado na reflexão e que contribui com o desenvolvimento do
indivíduo, mesmo a obra tendo esta potencialidade. O valor de uso é deturpado e assim resta o
valor de troca e a função desta é dar prosseguimento ao processo permanente de acumulação
capitalista, a reprodução ampliada do capital, das mercadorias e do consumo de mercadorias,
que leva a destruição ampliada do meio ambiente.
45. Não somente o nome é impróprio, como cria um amálgama entre diversas correntes e
tendências, entre as quais a que se coloca como anticapitalista e outras reformistas. Assim
como “globalização” significa uma homogeneização de algo heterogêneo, a antiglobalização
também o é. Mantemos esta terminologia no presente texto até ocorrer uma elaboração mais
adequada, mas com a ressalva de seu caráter problemático.
46. Esta forma de auto-organização será aperfeiçoada e reaparecerá com a crise do regime
de acumulação intensivo e o aparecimento dos conselhos operários na Rússia (1905-1917), na
Itália (1919-1920), na Hungria (1919), na Alemanha (1915-1919-1921-1923), na Guerra Civil
Espanhola (1936-1939), e em diversas outras oportunidades. No início do século XX, um
período de acirramento da luta de classes, o surgimento dos conselhos operários e de bairros
foi diversificado, em vários países. Durante o capitalismo oligopolista transnacional o
surgimento de conselhos diminuiu bastante. Apesar disso, a formação de conselhos operários
e de bairros passou a acontecer em algumas ocasiões, como na década de 60, em diversos
países, início da década de 70 e na década de 80, na Polônia, em oposição ao capitalismo de
estado polonês (dito “socialismo real”). No Brasil, surgiram comissões de fábrica nos anos 60
e durante as greves de 1978. Assim como coloca Wright: “O suporte do movimento, a
insistência dos comunistas conselhistas na auto-organização dos trabalhadores como o
coração da política de classe não perdeu de nenhuma forma a sua pertinência. Enquanto isso,
os conselhos operários revolucionários continuam aparecendo nos momentos de intenso
conflito social, nos últimos setenta anos: da Hungria ao Chile, da Polônia ao Irã. O mais
recente exemplo ocorreu a quatro anos atrás, durante a rebelião em 1991 no Kurdistão; e não
será o último” (Wright, 2001).
47. Obviamente, o refluxo do movimento operário argentino gerou um processo de
burocratização e derrota desta experiência de luta (Ferreiro, 2007).
48. O movimento zapatista acabou exercendo uma forte influência no interior do chamado
“movimento antiglobalização” e em outros casos e movimentos, até mesmo anarquistas. Isto
se deve à sua luta, à efervescência política, a necessidade de adesão a modelos e exemplos por
parte da maioria dos militantes políticos, bem como ao uso da internet pelos zapatistas: “a
circulação de informações sobre o conflito em Chiapas e o movimento zapatista em escala
mundial, através da internet e das redes de comunicação alternativas que foram sendo tecidas
no espaço virtual, tornou-se um dos mais bem-sucedidos exemplos do uso das
telecomunicações via computador por movimentos sociais desde a popularização desta
tecnologia” (Ortiz, 2006, p. 48).