Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Hoje li no jornal que o tio Álvaro morreu. Fazia tempo que não o via. Uma nota breve, sóbria. Não
falava nada sobre a caixinha de metáforas, então nem me interessei pela causa do óbito.
Lembro dele dos almoços de domingo: sorrisinho cúmplice e eu sabia que ia abrir o diminuto
reservatório descanso de todas as figuras do mundo. A verdade é que o tio Álvaro juntava com
maestria os mais inusitados ingredientes. Pra elogiar a salada de maionese, por exemplo, ele podia
usar o affair Marilyn/Kennedy ou o volante do Grêmio na libertadores de 95.
Talvez nem fosse uma caixinha, mas um pote, porque meus pais sempre confundiram com a
sobremesa. Na voragem homogeneizadora daqueles domingos, ninguém reparava nos arranjos
semânticos do tio Álvaro. Reclamaram um pouco, é certo, quando ele revirou a nossa casa de praia
em busca do objeto perdido. Era sim uma caixinha, agora eu lembro, uma dessas de MDF, ele me
disse, porque fui o único a ajudá-lo. Tio Álvaro fez o trajeto de volta a 5km/h, com a porta do carro
aberta, na esperança de encontrar a caixinha, e uma longa fila de buzinas e ofensas formou-se entre
o Cassino e o centro.
Depois disso eu já não vi o tio Álvaro. Ele foi oportunamente desmamado, como seria de bom tom
dada a repercussão do arroubo excêntrico. Eu era pequeno, mas sei que não houve nisso briga, ele
foi apenas gentilmente esquecido. No jornal, nenhuma linha sobre o pesado que deve ter sido viver
no denotativo. Eu diria que o peso de ser exilado político ou que te traia a mulher que amas, mas
não posso falar assim. Só um homem no mundo tinha o direito de falar assim. E ele morreu.