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Contribuições de Arturo Jauretche para a descolonização

do pensamento nosso-americano

Com nosso-americano reivindico as palavras de José Martí,


para incluir aquelas coletividades que não estão contempladas no
termo latino-americano.
Arturo Jauretche (1901-1974), escritor argentino, afiou a sua
caneta no calor das atividades práticas que os acontecimentos da
política demandavam. Apoiou os anos finais do governo de Hipólito
Yrigoyen, da União Cívica Radical, considerado por Jauretche uma
criação autêntica do povo. Empunhou armas em 1933 e combateu a
década infame juntamente com seus companheiros do FORJA
(Força de Orientação Radical da Jovem Argentina).
Com a chegada de Perón ao poder, Jauretche passou a
colaborar efetivamente na Secretaria de Trabalho e Previsão e no
Banco da Província de Buenos Aires. Foi, assim, um nexo entre
esses dois movimentos de massa conduzidos por Yrigoyen e Perón.
Foi, como fez questão de deixar claro, um homem comprometido e
é desta forma que pretendemos analisar no presente trabalho seu
aporte para a superação de nossa condição colonial.
Não é acidente ou mágica que esteja falando hoje aqui sobre
esse autor. Isso nos anos 90, no auge da longa e triste noite
neoliberal, seria pouco provável, porque o pensamento jauretchiano
não tinha espaço quando poucos duvidavam dos vaticínios de
Fukuyama. Mas a utopia do capital foi se desmoronando no
continente pela ação das ruas e das urnas - com a eleição de
Néstor Kirchner em 2003, no caso argentino - e o retorno da política
trouxe consigo a visibilização da dimensão do antagônico nas
relações sociais. Voltar a pensar a partir do conflito o país e a
região significou reivindicar a obra de Jauretche e outros autores
que haviam se posicionado desde o campo popular.
Então, hoje, podemos discutir com mais clareza a noção de
“intelligentzia”. Embora existam pelo menos sete acepções do
termo, para os efeitos desta apresentação nos interessa apenas
mencionar sua origem na Rússia do século XIX, onde aparece para
designar um "estrato social definido que é alienado da sociedade e
que reivindica a liderança moral da nação.” (Gella, 1976, p. 240)
Jauretche, no entanto, o modifica de maneira que, por sutil, não
deixa de ser importante: troca o s do original pelo z. Com isso,
confere unicidade ao conceito que vai desenvolver e ao mesmo
tempo salienta o caráter deformado, deslocado daquele grupo de
nativos que se intitulam intelectuais e se negam a criar um
pensamento próprio.

A “intelligentzia” é formada pelos agentes da cultura que


acreditam ter um status diferenciado, suas análises não partem das
condições concretas, mas de esquemas importados os quais
pretendem impor à realidade preexistente. É condição básica o
afastamento do real, então, a “intelligentzia” recorre a elucubrações
gerais, pretensamente universais, que são, na verdade, a
universalização de valores relativos, europeus, limitados a um
tempo e espaço definidos. Evidente que isso pressupõe a exclusão
do outro, do americano, do indígena, que é sempre um obstáculo e
deve ser eliminado. O país real é sempre o obstáculo, não o ponto
de partida e Jauretche ilustra que para a “intelligentzia” a cabeça
tem que se ajustar ao chapéu.
Mas a formação desse setor não é casual, ela corresponde à
nossa condição semicolonial. Na colônia, a supremacia é garantida
pelo uso da força, na semicolônia isso se dá pela colonização
pedagógica. A “intelligentzia” é fruto dessa colonização pedagógica
que busca perpetuar a condição de dependência. Nossos países da
América ficaram na divisão internacional do trabalho com a função
de abastecer o centro de matéria-prima e comprar produtos
manufaturados. Para garantir isso, importou-se o liberalismo, que
impediu a formação da indústria e do mercado interno, impediu
assim que a nação se realizasse de maneira soberana. O
liberalismo é, para nós, como andar com um “Manual do cliente”
escrito pelo dono do comércio. A perpetuação da condição colonial
por meio da colonização pedagógica tinha necessariamente que
criar países para poucos e evitar de todas as formas que a melhora
do nível de vida da população colocasse em perigo essa
configuração.
Daí decorre um fenômeno interessante que Jauretche pode
auxiliar na compreensão. Na última década da América Latina, com
o triunfo dos governos progressistas, a condução do Estado
promoveu um considerável crescimento dos setores intermédios.
Que as camadas mais altas sintam-se intimidadas com a ameaça
do fim dos privilégios seria de esperar, mas pode nos deixar
perplexos perceber que a onda de ódio contra os governos da
região partam principalmente dessas camadas médias tão
beneficiadas. Jauretche, no entanto, aponta que, na sociedade, os
problemas aparecem de forma clara para dois setores: o alto e o
baixo. A classe média é a que se movimenta pelas ideias e, como a
ascensão intelectual se dá pelas estruturas da colonização
pedagógica, é a que forma majoritariamente a “intelligentzia”
responsável por fundamentar ideologicamente um projeto de país
excludente que em síntese acarreta na sua própria desaparição. Em
benefício do livre-comércio e do Estado Mínimo, receitas vindas do
centro, ignora a realidade periférica da nossa região, ignora que os
bens adquiridos pela mobilidade experimentada é produto das
políticas que condena.
Mas nem só de liberalismo vive a “intelligentzia” segundo
Jauretche. A esquerda que nega o país concreto também serve à
colonização pedagógica e forma um só corpo com a direita porque,
mesmo contrária ideologicamente, sente que faz parte do mesmo
terreno abstrato, distante do povo que não corresponde com a
imagem do operário consciente que pressupõe. Essa observação
nos leva a pensar a “intelligentzia” como diversa mas dotada de
forte sentido de pertencimento graças à função de instrumento de
colonização que desempenha em oposição ao povo.
O vice-presidente boliviano, de origem marxista, nos diz: “Es
una izquierda que degusta su café descafeinado, que critica a los
gobiernos progresistas que no han construido en una semana el
comunismo. Que aprovechando el descanso de su fitness matinal
nos critican que no hayamos acabado de una buena vez con el
mercado mundial. (...) la única revolución que conocen es la que
han visto resumida en History Channel, y por ello la multiforme, a
veces desorganizada, lucha plebeya real por el poder, les resulta
totalitaria, tiránica, autoritaria.” Al no impulsar la movilización
autónoma de las clases subalternas, ni ser alternativa de poder
real, estos pseudo radicales trabajan para los restauradores del
neoliberalismo.”
É a esquerda infantil, que anda de mãos dadas com a direita
sempre que os movimentos de massa aparecem. É a esquerda que
dividiu as ruas com banqueiros recentemente no Equador contra a
Lei de Heranças impulsada pelo governo porque essa era
insuficiente para acabar com a desigualdade na distribuição de
renda. É a esquerda que atualmente critica os programas sociais
por assistencialistas, mesma palavra usada pela direita, e assim
enuncia um extremismo ideológico que mantém seu prestígio de
revolucionário e sua posição de “culto” em contraposição ao povo
incapaz de decidir seu próprio destino, o povo movido por
interesses. Essa esquerda reivindica com facilidade o maio de 68,
mas nada sabe da Guerra da Água boliviana.
Porque essa é outra característica da colonização
pedagógica: entender a cultura como técnica, o governo como
técnica, não como interesses que entram em conflito. A análise de
Jauretche antecipou a dimensão que a tecnização da política
alcançou nos anos 90 na Nossa América dominada pelo Consenso
de Washington, mostrando que a “cultura” era máscara para a
dependência. Nos sobram exemplos. Caso emblemático é o de
Jamil Mahuad, estudioso de Harvard, responsável pela crise
financeira de 1999 e pela dolarização do Equador, auxiliado por
Domingo Cavallo, que já elogiou publicamente o atual candidato da
direita argentina, Mauricio Macri, empresário que afirmou que
pagaria o valor integral exigido pelos fundos abutre. Errado estava o
governo que encabeçou o projeto aprovado na ONU que protege a
reestruturação da dívida desses tipos de ataque à soberania.
Jauretche explica que para os liberais a pátria se confunde com as
instituições importadas, o que seria dizer que qualquer atentado a
essa ortodoxia é um atentado à pátria. Podemos evidenciar uma
visão de pátria pequena, com o povo fora, semelhante aquilo que
García Linera colocou como as democracias fósseis do Velho
Mundo.
Tudo está relacionado. E relacionado também ao esquema
que fundamenta a “intelligentzia”: civilização X barbárie. A
civilização é o exótico, o alheio e aparece como cultura, a barbárie é
o nosso, o próprio e representa a anti-cultura. Jauretche afirma que
Sarmiento foi o sistematizador dessa dicotomia que domina o
pensamento colonial. Lembrando que Sarmiento, autor do clássico
Facundo, é autor também dessas palavras: “No trate de
economizar sangre de gauchos. Este es un abono que es preciso
hacer útil al país. La sangre de esta chusma criolla incivil, bárbara y
ruda, es lo único que tienen de seres humanos".
Retomando, já para encerrar, “intelligentzia” é o grupo de
intelectuais nativos que trabalham pela manutenção da condição
colonial integrando uma ampla superestrutura cultural que opera
sob a lógica da colonização pedagógica – ajustar a cabeça ao
chapéu. Essa superestrutura cultural abarca jornais, livros, rádio,
TV, escola, estátuas, nomes de lugares, ruas, praças, revista de
celebridade. Jauretche dá especial atenção à imprensa que
pretende aparecer como independente, mas, como qualquer outra,
responde a interesses e, sendo uma empresa, responde ao seu
dono. É instrumento de colonização porque, diferente da imprensa
de opinião, tenta nos convencer da universalidade da sua
abordagem mascarando seus interesses. Traz também a questão
do filtro que exercem as agências internacionais e aqui gostaria de
trazer um exemplo. Outro dia vi que a Carta Capital reproduzia um
artigo da Deustche Welle sobre a crise na Venezuela. Será que
realmente nos interessa um viés alemão sobre um fenômeno latino-
americano?
Mas como superar esse quadro? Não adianta substituir o
pensamento colonial por outro supostamente local, é necessário
buscar uma cultura própria na vida comum, na experiência
americana. Isso pressupõe também um compromisso militante com
um projeto de país que se proponha a emancipação. Ao intelectual
resta pensar não para o povo, mas desde o povo. Abandonar
esquemas preexistentes e ousar a criação original, o que implica
uma mudança metodológica: passar da dedução à indução.

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