PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA TÓPICOS AVANÇADOS DE LITERATURA BRASILEIRA
MEMORIAL MARGINAL
Diego Freitas Garcia
De certa forma, reconheço e revisito agora em minha história a proximidade com a
temática marginal. Minha mãe soube apresentar-me à realidade do abandono: primeiro expulsou-me impiedosamente daquilo que eu imagino ter sido um útero cálido e, dois anos depois, fugiu. A ausência sempre esteve recheada de histórias às quais fui conferindo fascínio – dançarina de boate, prostituta, quem sabe, atendente de padaria, vendedora de churrasquinho, chapista de bauru. No contato intermitente que estabelecíamos, eu era apresentado ao seu novo namorado ex-presidiário ou não era apresentado – porque ele ainda estava no cárcere – e ela mostrava alguma carta de amor. Presa por roubar roupas, envolvida no tráfico de drogas, minha mãe, ela mesma figura de transição, foi como narrador a introduzir-me no universo dos de baixo. Logo, por conta própria, recorri caminhos que me levaram a dormir com travestis no Peru, cheirar cola com esquecidos da Bolívia, alfabetizar senhoras nas vilas da Argentina… Sem embargo, até a disciplina de Tópicos Avançados de Literatura Brasileira, ministrada pela profª Luciana Coronel, eu não havia realizado qualquer reflexão de ordem teórica sobre o termo marginal e nem tentado conceituar a marginalidade no campo literário. Confesso, inclusive, que muitos dos nomes apresentados na disciplina eram totalmente desconhecidos para mim, como Carolina Maria de Jesus, João Antônio, Plínio Marcos, Ferréz. Foi então nessa condição de ingenuidade que entrei em contato com as primeiras discussões, surpreso da dificuldade de estabelecer critérios para a classificação de determinada literatura como marginal. A série de questões levantadas por Robert Ponge no texto Literatura marginal: tentativa de definição e exemplos franceses (número de livros vendidos, composição social dos leitores, classe social, temas tratados, forma, língua, editoração, ponto de vista) aproximava a discussão de um terreno mais prático, mas eu sentia que desses pontos se desprendiam outros. Pude perceber inicialmente que, se em alguns casos era imediata a classificação de autores como marginais, em outros, só alguns aspectos poderiam apresentar- se como tais. Mais ainda, o mesmo escritor poderia apenas em alguns dos seus textos apresentar-se como marginal. Talvez não se tratasse então de identificar autores marginais, senão de pensar a literatura marginal em oposição à literatura oficial, como aquela, segundo Ponge, “que, num momento dado, aparece à classe dominante (…) como sendo outra, como não lhe pertencendo. Insistimos que isso é num momento dado, o que implica que um autor, uma obra, pode deixar de aparecer como marginal e que, inclusive, o estado de marginalidade pode ser muito transitório, muito efêmero”. Eu ia avançando aos poucos assim para uma ideia que depois consolidamos enquanto turma de que nada é inerentemente marginal – com a progressão temporal, um tema marginal poderia deixar de sê-lo; uma escritora incorporada ao cânone, como Clarice Lispector, poderia incursionar na temática marginal em determinado momento de sua obra; um escritor tendo publicado originalmente seu livro com reduzida tiragem poderia posteriormente ser procurado por uma grande editora. Com Sérgius Gonzaga e o texto Literatura marginal, comecei a refletir sobre o desenvolvimento do conceito de marginalidade no contexto brasileiro. Sérgius relaciona a existência da literatura marginal com o desaparecimento daquelas produções artísticas identificadas com a via populista. Ainda que aborde o termo populismo de maneira imprecisa e não leve em conta experiências de organicidade entre intelectuais e setores populares, a crítica realizada por Gonzaga à intelligentzia que não pensava a partir do país real me parece acertada. Tal crítica me fez recordar da célebre cena do filme Memorias del subdesarrollo, dirigido por Tomás Gutiérrez Alea, na qual intelectuais brancos discutem literatura e subdesenvolvimento, criticando o poder colonial e a discriminação étnica, enquanto um garçom negro serve água no encontro. A formação de uma vanguarda cultural que partiria de pressupostos ilusórios, segundo Gonzaga, não abriu o espaço, naqueles anos de regime ditatorial, para a emergência da literatura marginal, pelo menos aquela realizada pelos “legítimos” marginais, ainda nas palavras de Gonzaga. Creio, nesse caso, que a situação seria diferente se o curso democrático e o processo cultural de efervescência não fossem esmagados pelo golpe de 1964 e o acirramento da censura em 1968. Como a história não trata de condicionais, é certo afirmar que poucos são os casos de escritores periféricos que ganham notoriedade e há também um apagamento desses poucos, como é o caso de Carolina Maria de Jesus, esquecida pelo próprio Gonzaga. Por isso, sobretudo, que fui desvelando a importância dessa disciplina para a área de Letras e para a minha formação como profissional, enquanto oportunidade de examinar as fissuras provocadas pelos distintos movimentos sísmicos da produção marginal na literatura tradicional, o que, por consequência, me levou a dimensionar a importância da escrita de periferia do fim dos anos 90 e início dos 2000. O texto de Sérgius Gonzaga também me auxiliou a pensar que, na literatura, o marginal poderia aparecer sob três tendências principais: editorial, da linguagem e aquela que apresenta a fala dos excluídos. Talvez como produto do saber policialesco referido por Gonzaga, eu guardava anteriormente a ideia de que literatura marginal estava necessariamente ligada a situações de pobreza ou exclusão social. No entanto, ao acompanhar com alguns exemplos as experiências marginais no campo literário, fui percebendo que o status de marginal poderia advir de uma posição transgressora dos padrões convencionais da literatura de certo período. Creio, assim, que valeria dizer que uma escrita de vanguarda, lida por poucos, baseada em um jogo de experimentação com a palavra, poderia ser, ao mesmo tempo, elitista e marginal, ou melhor, poderia aparecer em determinado momento como marginal. Foi igualmente com o texto de Gonzaga que me deparei pela primeira vez com uma crítica que se mostrou recorrente no estudo posterior da obra Capão Pecado, de Ferréz. Referindo-se à tendência marginal que na escolha de protagonistas, situações e cenários opta por um comprometimento com o popular, Gonzaga afirma que isso “às vezes acarreta problemas com o instrumental técnico-semântico que garante a especificidade do fazer literário”. Entendi aí que Gonzava ilustrava o próprio processo que descrevia: a resistência da crítica em reconhecer novas formas literárias, marginalizando-as, relegando-as a um terreno de desconfiança e questionando sua qualidade enquanto produção criativa, quase sempre sob o pretexto de que o excesso de objetividade ameaçaria o domínio particular da literatura. Para além do aporte teórico, a apresentação de alguns contos serviu de introdução à multiplicidade daquilo que pode ser chamado de literatura marginal. Fiquei encarregado de apresentar inicialmente o conto Frio, presente no livro Malagueta, Perus e Bacanaço (1963), do paulistano João Antônio. A história do livro já indica a origem do autor e as dificuldades que teve que superar para a publicação: em 1960, um incêndio queimou a casa de João Antônio e dentro dela o original da coletânea de contos. O escritor conta que levou quase dois anos para reescrever, dormindo em casas de amigos, bibliotecas, pensões… João Antônio era um conhecedor do mundo noturno de São Paulo, frequentava os bares e jogava sinuca com seus personagens. Por isso dominava e usava com naturalidade a gíria da malandragem. Mas o que me chamou a atenção no conto Frio foi o deslocamento do foco para um personagem infantil que sofre com a ausência do Paraná, figura masculina que assume funções paternas. O menino, assim referido no conto, sem nome, expressa várias vezes sua adoração por Paraná, e considera “uma pena que não saísse da sinuca”. Paraná é seu mestre de virações e protetor, demonstra cuidado, mas ao mesmo tempo o joga na perigosa missão de entregar um “embrulhinho branco” em outro bairro da cidade. O conto inicia com a frase “O menino tinha só dez anos” e o narrador o descreve como pequeno, feio, preto, magrelo – tudo leva a destacar a vulnerabilidade na qual se encontra a criança, a condição de fragilidade, exaltada pelo uso constante de diminutivos: “coraçãozinho”, “embrulhinho”, “ombrinhos”, “cabecinha”, “perninhas”. No entanto, e isso me surpreendeu positivamente, a escrita afasta-se de qualquer sentimentalismo. Em uma sorte de torvelinho, mesclam-se cenas da madrugada da metrópole com lembranças desorientadas em um fluxo de consciência talvez motivado pela ansiedade em entregar o embrulho, o medo da polícia, medo de não encontrar com o Paraná, o frio, o cansaço. João Antônio fez com que eu, como leitor, experimentasse da ansiedade e ficasse com vontade de urinar, como termina fazendo o menino, à maneira de despejar toda a tensão vivida. A crueldade da noite na rua e a escassa contenção emocional tida pelo menino na ficção me afetou especialmente por lembrar de alguns garotos bolivianos com os quais convivi que superavam a realidade cheirando cola nos arredores da rodoviária de Cochabamba. O conto que dá nome ao livro é um passeio pela malandragem paulistana através de três viradores: Bacanaço, moreno vistoso e mandão, jogador maduro, rufião de boas relações; Malagueta, velho esmoleiro, bêbado e desanimado, de sapatos furados; Perus, dezenove anos, batedor de carteira, sonhando com o jogo da vila Alpina. Perus tem seu nome emprestado de um bairro de São Paulo, onde instalava-se a gigantesca Fábrica de Cimento Portland Perus. João Antônio introduz com esse personagem adolescente o impasse entre o emprego formal e a viração, a vidinha estúpida morando com a tia e dormindo cedo versus as aventuras das madrugadas no incerto joguinho de sinuca. Reconheci, além disso, que o autor tenta traçar, com os três homens de diferentes idades, as transformações pelas quais vai passando um malandro durante sua vida. A leitura de Malagueta, Perus e Bacanaço foi muito interessante porque derivou na descoberta de uma série de relações indiretas: primeiramente, sobre a história da Fábrica de Cimento Portland Perus – as lutas dos operários em greve na década de 60 e o movimento atual dos moradores pela transformação da fábrica em um centro cultural. A obra também me levou a conhecer a adaptação cinematográfica com o filme O jogo da vida (1977) e o excelente álbum do saxofonista Thiago França, comemorando os 50 anos da publicação da coletânea Malagueta, Perus e Bacanaço. Na procissão pelos salões de sinuca de diferentes bairros de São Paulo, onde os três malandros buscam a trapaça perfeita, João Antônio usa a figura da errância, como fez com o menino de Frio, para desvelar a cidade e as figuras da sua noite. Considerei interessante a forma como o autor não se deixa levar por idealizações e apresenta os riscos implicados pelo desejo dos viradores de “rodar, funcionar, vasculhar todas as bocas do inferno”. Para isso, ele estabelece uma estrutura circular, na qual os personagens começam e terminam quebrados de dinheiro, em um perde-ganha que pode fazer do malandro um otário. De qualquer forma, o mundo de João Antônio me pareceu ainda aquele dos pequenos delitos, dos conflitos sem morte, onde as forças da ordem e o malandro convivem no jogo da vida e a violência aparece mais como ameaça para resolver algum desentendimento ou reforçar a hierarquia, não como realidade efetiva que colocaria em risco a própria sobrevivência. No conto Leão-de-chácara, embora o personagem Pirraça expresse que mantém uma pistola na cintura para afastar aqueles que pretendam tomar seu lugar na porta da boate, acredita que o certo é conseguir o dinheiro das mulheres sem encrenca, na “maciota”. Pirraça inclusive critica duramente a atitude de um tal Miguelito, leão-de-chácara que, por ciúmes, acabou atirando em um cliente da boate na qual trabalhava. O cliente morreu, o bar fechou e a polícia começou a incomodar em busca do culpado. O marginal de João Antônio opta pela discrição, é aquele que pretende a ganhar a vida na esperteza, com uso da força, é claro, mas evitando as alterações de ordem que abalassem seu conluio com as forças policiais. Mas com o exemplo de Miguelito, o autor já aponta para uma transição a outro momento da formação social e literária brasileira. Neste sentido, para que eu pensasse mais seriamente sobre as mudanças aludidas, foi fundamental a análise do texto Dialética da marginalidade – caracterização da cultura brasileira contemporânea, de João Cezar de Castro Rocha. O crítico afirma que há um fenômeno em curso no Brasil: na disputa simbólica entre duas formas de compreender o país, a dialética da marginalidade vem substituindo a dialética da malandragem. Retomando as categorias de Antonio Candido, Rocha caracteriza o malandro como aquela figura que faz o comércio entre ordem e desordem e representa uma formação social comprometida com o acordo em vez da ruptura. Rocha utiliza ainda as contribuições de Roberto DaMatta para argumentar, no início do século XXI, que a ordem relacional estaria sucumbindo devido à incapacidade do “deixa- disso” evitar a irrupção do conflito aberto. A dialética da marginalidade, proposta por Rocha para entender a produção cultural contemporânea marcada pela violência, evidencia as diferenças entre as classes sociais e rechaça a solução conciliadora do malandro. Acredito que alguns escritos de Rubem Fonseca marcavam de maneira incipiente as mudanças relatadas. Meus colegas apresentaram os contos “Botando pra quebrar”, “O outro”, “Feliz ano novo” e “O cobrador”. Eu já tinha lido anteriormente o autor, mas a seleção realizada e a possibilidade de discutir sua construção me fez encontrar uma lógica em seus escritos que enriqueceu minha compreensão. No conto “Botando pra quebrar”, o narrador-protagonista é, como o Pirraça de João Antônio, um leão-de-chácara, mantém-se igualmente a divisão entre aqueles que aturam e aqueles que faturam, mas a solução que o porteiro encontra para faturar é baseada na briga que ele arruma com os clientes ricos. Além do dinheiro que retira do patrão a modo de indenização, o leão-de-chácara precisa remarcar as diferenças entre ele e “as pessoas importantes”, do “alto escalão”, e o faz quebrando o patrimônio do dono da casa. Para os ladrões de “Feliz ano novo”, não basta a pilhagem – eles sabem que para os ricos da festa tudo aquilo que roubaram era migalha. Para que nada daquilo soasse como uma concessão dos senhores da mansão e os três ganhassem visibilidade, eles estupram, cagam e brincam de ver se os corpos grudam na parede com um tiro. No “O Cobrador”, a destruição do consultório do dentista é o começo do acerto de contas entre o protagonista e os bacanas, os homens bem-sucedidos, de boa aparência, donos de Mercedes. O ódio do personagem é imenso, mas seu sadismo é dirigido: ele poupa “uma fodida que mora com sacrifício num quarto e sala” e se diverte tentando rolar com um golpe de facão a cabeça de um homem elegante, recusando inclusive o dinheiro que ele oferecia. Em “O outro” o desconforto mote de todo o texto também é superado pela morte do oponente; no entanto, aqui o foco narrativo é deslocado para o outro polo – o do executivo que se sente incomodado por um pedinte e incapaz de perceber nele a alteridade, negando a humanidade de um menino franzino apresentado como monstro cínico e ameaçador. Ficou evidente para mim a partir das leituras de Rubem Fonseca que não se tratava de questão meramente individual, de brutalidade gratuita e que aparecia bem marcada a estratificação social. Nesses contos já não existe um malandro tentando encontrar as brechas numa estrutura que é desigual, mas uma tentativa desesperada e caótica de aniquilar o inimigo de classe pelo uso desmedido da violência. Como uma colega bem atentou, Rubem Fonseca dá no “O Cobrador” o diagnóstico de que a raiz está podre, o que demanda uma ação drástica. No entanto, é com a literatura de periferia da virada do século que a reação aparece de maneira mais organizada. A análise do manifesto do Ferréz, “Terrorismo literário”, prefácio do livro Literatura marginal: talentos da escrita periférica, me apresentou os princípios desse fenômeno e me despertou imediatamente o interesse para conhecer mais, creio que motivado pelo desejo de viver o literário conjugando o prazer estético e o compromisso pela democratização da palavra. Como se depreende do título, o manifesto admite seu caráter belicoso (“a maior satisfação está em agredir os inimigos novamente”), em que a literatura aparece inserida em um movimento mais amplo que reivindica a melhora nas condições de vida do povo. E Ferréz sabe que mudança alguma virá sem o confronto com o patrão, não que a guerra seja uma invenção do gueto violento (“o barato já tá separado há muito tempo, só que do lado de cá ninguém deu um gritão”). O marginal, assim, é ressignificado positivamente enquanto fator de identidade para essa multidão que grita, um grupo que historicamente foi a minoria autoral, que está à margem da grande cultura nacional, mas corresponde à maioria da nossa população e não pretende pedir licença para usar a linguagem a fim de retratar a realidade vivida. Nessa direção, afirmar-se como marginal é também inscrever-se na linha histórica de dominação e extermínio dos indígenas e africanos e, por consequência, rebelar-se contra o apagamento dos antepassados. Aqui me parece que Ferréz dá espaço ao “sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós”, do qual nos fala Walter Benjamin alertando para o acordo que existe entre as gerações passadas e a nossa. Ferréz resgata a força messiânica do passado, parece que ele acredita que através da literatura comprometida os vencidos podem encontrar a redenção, a dos manos que morrem na mão da polícia atualmente e também a dos escravos vigiados pelos capitães do mato. Considerei interessante como Ferréz revisita a própria história da literatura marginal quando afirma que “O mimeógrafo foi útil, mas a guerra é maior agora”, o que é também uma forma de apontar os precursores no campo literário ao mesmo tempo que critica suas limitações. Ferréz mostra conhecimento das experiências transgressoras dos anos 70, quando, à margem das grandes editoras, um grupo de criadores distribuía pelos bares seus poemas mimeografados. Alguns destes apareceram na antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda. Referindo-se a essa geração, Ferréz defende que atualmente é preciso ampliar o alcance para fazer frente à comunicação de massa, que só incentiva o consumismo. Acredito que Ferréz fala da necessidade de reunir muito mais gente e de recorrer a todos os meios de propagação possíveis, adiantando a possibilidade de publicar por uma grande editora. Apresentar o seminário sobre Capão Pecado (2000), o livro que catapultou Ferréz e abriu as portas para outros autores da periferia, me levou a pesquisar sobre o fenômeno da “literatura do gueto”. Percebi que essa trama estava inserida em um movimento muito mais amplo e que me levava a pensar o bairro Capão Redondo, os saraus da periferia paulista, a cultura do hip hop e o trabalho do autor na comunidade, com a ONG Interferência, a marca de roupas 1dasul e a editorial Selo Povo. É curioso o fato de que Capão Pecado tenha tido uma história semelhante à ocorrida com o primeiro livro de João Antônio. No caso de Malagueta, Perus e Bacanaço foram as chamas que destruíram os originais; com Ferréz, a enchente tomou sua casa em Capão Redondo e ele levou 4 anos para reelaborar tudo que havia perdido. Isso, somado à exaustiva busca do autor por uma editora que decidisse levar adiante o projeto, me disse muito da dificuldade de produzir em um circuito marginal, de criar em um ambiente onde são precárias as próprias condições de existência. E acredito que, ainda mais, se o material para a ficcionalização é a própria realidade da periferia, ou, como diz Ferréz, morar dentro do tema. Meu interesse imediato por Capão Pecado explica-se pelos elementos que podia perceber antes mesmo da primeira leitura: a abundância e beleza dos registros fotográficos, a capa que se pretendia uma provocação ao sistema, a extensa lista de agradecimentos, a dedicatória ao amigo morto, a participação de Mano Brown e os relatos-denúncia realizados por outros expoentes do rap cortando a linearidade tradicional do romance. Tive a certeza de estar diante de uma nova concepção de literatura, que questionava a noção de autoria, não desde uma certidão de óbito pretensamente universal, mas como movimento pulsante em um território específico e expresso no livro (Capão Redondo – o fundo do mundo). Mas minha surpresa foi maior ao constatar que esse potencial de mudança ia se diluindo nas edições posteriores da obra. Na publicação de 2005, pela editora Objetiva, já pude perceber a supressão das fotos e de alguns relatos, além do aumento da fonte que sinalizava o autor na capa, capa preta, sóbria, sem o fundo de barracos e o menino com arma, substituídos pela repercussão da obra em dois veículos da grande imprensa. Seria o processo de transfiguração, no sentido de suavizar a recepção com a retirada dos componentes mais impactantes, uma tentativa de atingir um público maior? Ou o esforço para inscrever-se no cânone literário? As fotos são retiradas devido ao alto custo que teria um livro com tanta impressão colorida ou para que o texto cobre protagonismo? Pois esse movimento é completado com a edição de 2013 da Planeta, que apresenta o texto de maneira a reduzi-lo a folhetim de um amor proibido, simbolizado no coração de arame farpado. Com todos os interrogantes suscitados, passei a pensar nas possíveis causas e efeitos do apagamento dos índices comunitários na obra. Na pesquisa para a realização do seminário, ao me deparar com a fortuna crítica, entendi que o romance impôs novos desafios ao campo dos estudos da literatura brasileira. Parte da crítica especializada questionou a literariedade do romance, destacando suas fragilidades e buscando classificá-lo mediante categorias preexistentes. Acredito que a mais representativa disso é a propagada por Oliveira e Brandileone: “o que se verifica é que a obra de Ferréz, devido a esse alto teor de realidade, deixa-se cair no utilitário e perde o aspecto literário, pois no enredo do livro Capão Pecado, pode-se notar uma representação literária engajada, focada na demonstração de uma realidade cruel da favela”. No mesmo sentido, outra apreciação era de que Ferréz partia de um “verismo etnográfico”. Em comum, a ideia de que o compromisso social é um obstáculo para a boa literatura, reduzindo no escritor a preocupação com o estilo. Com a leitura do romance e a discussão de aula, considerei ingênua tal avaliação, pois, ao apontar a pobreza estilística de Ferréz, ignora tratar-se de um outro estilo, cuja compreensão depende da relação com o território de produção, com o público preferencial e, sobretudo, com a poesia do rap. Além disso, ao acreditar que tudo o que está em Capão Pecado “realmente aconteceu”, a crítica apenas confessa estar envolvida pela narrativa e pela sua aparência fatual. Me parece óbvio que tudo no livro é uma construção ficcional e que a utilização de elementos reais para a criação ocorre com os demais escritores. Penso que alguns artigos demonstram uma forte reação da crítica em defesa do cânone vigente diante da ameaça da democratização da literatura, entendendo-a como mais um espaço social marcado pela divisão de classes e pelo domínio da norma culta. É assim, por exemplo, que Tânia Pellegrini identifica “certo moralismo” na “impossibilidade de mudança” que o desfecho do romance revelaria. No entanto, em uma leitura mais apurada, vê-se que os destinos não estão completamente determinados pelo meio. Me chamou a atenção a figura de Matcherros, apresentado no começo como alguém sem perspectivas e que consegue armar uma empresa, empregando, inclusive, seus amigos para provar que o crime não é a única saída. Entendi que, para Ferréz, a literatura tem forte componente pedagógico; como no rap, as letras denunciam o descaso das autoridades, a repressão policial, atuam conscientizando, unindo para a resistência, além de colocar-se como alternativa de trabalho. “Minhas palavras são armas/ e estou tocando as sirenes/ levantando as massas”, já cantava Tupac na canção Violent. O estudo da escrita do testemunho me forneceu importantes fundamentos para ampliar a compreensão não só do livro Capão Pecado, mas de todas as obras apresentadas nos seminários. Isso porque, ainda que popularizada pelos relatos da Shoah, percebi que um teor testemunhal pode ser identificado em todos os escritos da literatura marginal, já que estamos lidando com uma realidade conflitiva frequentemente geradora de traumas, onde a narração entra como forma de elaboração de vivências pessoais, mas que também são coletivas e tem que responder à memória daqueles que não conseguiram sobreviver. Penso que em Capão Pecado o teor testemunhal é bem evidente, não deixando dúvidas que para o autor estética e ética estão articulados, como aponta Jaime Ginzburg. Ferréz toma posição e converte aquilo que ele viveu na periferia em missão de mudar. Em Carolina Maria de Jesus eu também percebi essa missão: muitas vezes ela fala em nome dos favelados contra os políticos que visitam os barracos em tempos de eleições e logo os esquecem, ou vocifera contra o alto custo de vista. Mas nela achei mais frequente o eu particular atribuindo aos comportamentos dos seus vizinhos as precárias condições em que estes se encontravam e manifestando o desejo de deixar de ser marginal pela ascensão individual. O interessante é que a linguagem nunca dá conta da totalidade do evento traumático e o relato aparece fragmentado – é a dificuldade de representar, o que poderia levar o indivíduo a reviver situações de dor, que forja narrativas não-lineares como a de Samuel Rawet no conto “Gringuinho”, no qual mescla-se em um turbilhão no extenso parágrafo a lembrança do rio gelado e dos amigos na Polônia com as humilhações que o menino migrante sofre no Brasil. A partir da escrita do testemunho pude encontrar um fio condutor para pensar a multiplicidade de vozes marginais presentes nos seminários, já que nem sempre elas estavam conectadas à situação de pobreza, o que é o caso do texto de Maura Lopes Cançado, marginal por plasmar uma condição mental que provocava um conflito constante entre realidade exterior e realidade interior, além de dar conta do cotidiano de uma instituição manicomial. Assim, tendo o testemunho enquanto eixo transversal, as questões levantadas me levaram a concluir que um texto não precisa perder sua especificidade quando confrontado com seu referencial extra-literário; pelo contrário, a análise da obra se enriquece quando leva em conta as circunstâncias sociais de produção, o que é necessário igualmente para entender o porquê de certa escrita ser considerada marginal.