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A cabeça e o chapéu
A árvore
O quebra-cabeças
“Cuando en 1934 el vice presidente de la República, Dr. Julio Roca,
como embajador argentino (negociación del tratado Roca-Runciman)
dice en Londres que “la Argentina forma parte virtual del Imperio
Británico”, no hace más que confirmar la naturaleza dependiente de
nuestra economía como pieza en el puzzle imperial.” (JAURETCHE,
2010, p. 28)
O governante argentino Julio Roca reconhece que seu país é uma peça do
quebra-cabeças do império inglês. Não é isso que incomoda Jauretche, uma vez que o
diagnóstico corresponde à realidade, mas o fato de que Roca, como cipayo1,
1
Termo originalmente atribuído aos soldados hindus a serviço do Império Britânico. Passou a ser
utilizado para designar todo aquele que atua contra o próprio país em favor de interesses estrangeiros.
vendepatria ciente da condição colonial, a persiga como futuro desejado e não poupe
esforços no sentido de aprofundá-la.
Com a imagem do quebra-cabeças, Jauretche destaca a posição subordinada que
a Argentina ocupa no âmbito global e como a colonização pedagógica conecta-se
concretamente com o campo econômico. “Del dominio económico surge el dominio
cultural” afirma no livro El medio pelo en la sociedad argentina (JAURETCHE, 2010,
p. 85). O colonialismo mental é fruto da nossa função na divisão internacional do
trabalho de exportador de matérias-primas. A descolonização, como sabemos, implica a
mudança da nossa matriz produtiva e um reposicionamento altivo na geopolítica
internacional através da formação de um bloco regional forte.
Jauretche explica a “relação adversa dos termos do intercâmbio”: a troca de
matérias-primas por manufaturas é desigual porque o país que industrializa seu produto
incorpora ao seu mercado os valores gerados nas sucessivas etapas de transformação.
Apresenta um caminho para alcançar a soberania: o estabelecimento de prioridades, a
concentração da banca, o manejo das divisas e da exportação, o controle da
infraestrutura econômica e a distribuição de renda. Don Arturo faz assim do desafio de
uma economia nacional integrada o seu próprio quebra-cabeças. As peças se uniriam
por meio de um Estado interventor, promotor do desenvolvimento industrial e protetor
da produção nacional para formar um país economicamente livre, em contraposição à
economia dependente do dr. Julio Roca e dos demais próceres das elites locais que, por
meio do liberalismo, impuseram à Argentina o destino de “granja do mundo”.
Mas Jauretche não é de forma alguma determinista. As transformações da matriz
produtiva e da matriz do conhecimento aparecem nele em dialética interação. A
economia depende da ideia, o que o leva a repreender aqueles que “acreditam que só os
fatores materiais determinam a história e subestimam o pensamento e a vontade”
(JAURETCHE, 2010, p. 30) Ele nos fala de “correntes da dependência” e, como os
teóricos descoloniais, centra sua análise nos “estados de consciência” gerados por nossa
condição colonial, e ao mesmo tempo, determinantes para a sua reprodução. É no
mesmo sentido de don Arturo que Walter Mignolo coloca que “el conocimiento cumple
un rol central en la matriz colonial de poder, puesto que sin su control no es posible
sostener una economía política que legitime prácticas económicas y, a la vez, admita sus
críticas.” (MIGNOLO, 2010, p. 17)
A fim de aprofundar o diálogo que aqui propomos entre o pensamento de
Jauretche e a opção descolonial, é elucidativo mencionar o diagrama com o qual
Mignolo (2010, p. 12) representa a matriz colonial de poder, com seus quatro
domínios interdependentes e inter-relacionados como lados de um losango,
representando o enunciado, e um espaço interior a ele, que seria o espaço da
enunciação. Respeitando as particularidades de cada construção teórica, acreditamos
que o sistematizado nesse diagrama muito se assemelha àquela lógica da colonialidade
desvelada por Jauretche e aqui apresentada.
Voltamos, então, a imagem do quebra-cabeças para junto a Jauretche pensar a
colonialidade. Na visão do escritor, a pedagogia colonialista era um quebra-cabeças de
zonceras, ou seja, de lugares-comuns que nos impedem de pensar a nossa realidade a
partir dela mesma. A mãe de todas elas é a ideia de um enfrentamento entre civilização e
barbárie (poderíamos colocá-la no centro de um eventual diagrama jauretchiano da
matriz colonial do poder?). Mas essas zonceras espalham-se por toda a vida social e
Jauretche levava em conta que sem desarmar esses esquemas mentais, com a mera
reorientação do econômico, não seria viável a libertação. Pelo contrário, poderia
acontecer que os setores beneficiados pelas novas políticas se tornassem eles mesmos os
apoiadores de uma restauração conservadora. Explica tal fenômeno com o que ocorreu
no governo de Perón: “A la sombra de esa expansión del mercado interno y el
correlativo dasarrollo industrial surgió una nueva promoción de ricos […] Pero esta
burguesía recorrió el mismo camino que los propietarios de la tierra.” (JAURETCHE,
2010, p. 47) E pouco adiante, complementa: “Bajo la presión de una superestructura
cultural que sólo da las satisfacciones complementarias del éxito social según los
cánones de la vieja clase, buscó ávidamente la figuración, el prestigio y el buen tono.”
(JAURETCHE, 2010, p. 47) Surge, então, a figura do medio pelo, aquele indivíduo ou
grupo que aparenta um status superior à posição que realmente possui na sociedade.
Afastado da consciência dos seus próprios interesses, recorre a pautas de imitação para
formar sua identidade.
Álvaro García Linera (2016), vice-presidente boliviano, propõe uma discussão
acerca da batalha a ser travada no nível da superestrutura cultural, alertando para o
problema que significa a distribuição da riqueza sem a politização social. Nos últimos
anos, os governos da região promoveram uma ampliação da capacidade de consumo,
mas, como bem coloca, se ela “no viene acompañada con politización social, no
estamos ganando el sentido común. Habremos creado una nueva clase media, con
capacidad de consumo, [...] pero portadora del viejo sentido común conservador.” A
ameaça de um retrocesso a nível continental vale-se da incapacidade que as forças
populares demonstraram na difícil tarefa de enfrentar a colonização do senso comum
que a direita vem exercendo por todos os meios. O senso comum, na definição de
Linera, são os preceitos íntimos, morais e lógicos com que as pessoas organizam a sua
vida, a cosmovisão, a maneira de estar no mundo. Nossa batalha, portanto, deve dar-se
em todos níveis da matriz colonial de poder.
Como lutar por um novo senso comum? Para Jauretche, esse trabalho começava
por desarmar zonceras, para o qual o simples fato de descobri-las já é um ato de
liberação, pois elas só funcionam se não são questionadas. O domínio colonial depende
de uma superestrutura cultural que exerça o policiamento epistemológico sobre o povo,
encarregando-se de reprimir qualquer sublevação, ou seja, qualquer tentativa de pensar
desde uma perspectiva-otra, centrada em nós mesmos. Jauretche foi um montonero
epistemológico. Acreditava, todavia, que desarticular o arsenal colonialista era obra
coletiva: ele dava a ponta do fio para que entre todos desenrolássemos a madeixa. Isso
demandaria do intelectual uma postura de humildade: é o povo que sabe, o povo não
preso a ideologias alheias. Como nos versos de Martín Fierro: Aquí no valen dotores,
/Solo vale la esperiencia,/ aquí verían su inocencia/Esos que todo lo saben;/ Por que
esto tiene outra llave/ Y el gaucho tiene su cencia.
Estamos diante de uma mudança metodológica que implica deixar de pensar
para o povo para pensar desde o povo. Não significaria isso um elogio ao analfabetismo,
porque a forma de ver as coisas do homem comum é a mais próxima do verdadeiro
método científico, o método indutivo (do particular para o geral); a lei do povo, o bom
senso, é a mais adequada para apreender a realidade. Daí que a missão civilizadora
colonial tenha se baseado em apagar o bom senso, substituindo-o por esquemas
importados que pressupunham o ódio ao local e ao povo tido como bárbaro.
Descolonizar, pois, consiste em um giro epistemológico que nos coloque no centro da
nossa história e revalorize o popular, não só enquanto tradição, folclore, mas sobretudo
como futuro, como potencialidade, como “exterioridade” da maneira que nos esclarece
Sirio Velasco (1991, p. 17): “a 'exterioridade' é a transcendentalidade interior ao
sistema, isto é, o sujeito como Outro na sua dimensão não-funcional para-além do
sistema”. Nós, como povo com posse de nossas memórias soterradas, das experiências
próprias encobertas pela lógica colonial, reconhecemos que somos cultura capaz de
pensar e construir o mundo desde nós mesmos.
Referências
JAURETCHE, Arturo. Los profetas del odio y la Yapa. Obras Completas, vol. IV.
Buenos Aires: Ediciones del Corregidor, 2002.
MIGNOLO, Walter. Más sobre la “opción descolonial”. In: PALERMO, Zulma. (comp.)
Pensamiento argentino y opción descolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2010.