Você está na página 1de 11

CONTRIBUIÇÕES DE ARTURO JAURETCHE PARA A

DESCOLONIZAÇÃO DO PENSAMENTO NOSSO-AMERICANO

Diego Freitas Garcia (FURG)

Arturo Martín Jauretche (1901-1974), escritor argentino, afiou a sua caneta no


calor das atividades práticas que os acontecimentos da política demandavam. Apoiou os
anos finais do governo de Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, considerado por
Jauretche uma criação autêntica do povo. Empunhou armas em 1933 e combateu a
década infame juntamente com seus companheiros do FORJA (Força de Orientação
Radical da Jovem Argentina).
Com a chegada de Perón ao poder, Jauretche passou a colaborar efetivamente na
Secretaria de Trabalho e Previsão e no Banco da Província de Buenos Aires. Foi, assim,
um nexo entre esses dois movimentos de massa conduzidos por Yrigoyen e Perón. Foi,
como fez questão de deixar claro, um homem comprometido e é desta forma que
pretendemos analisar no presente trabalho seu aporte para a superação de nossa
condição colonial. Além da atividade jornalística, publicou 12 livros, entre poemas,
ensaios e memórias autobiográficas.
Nos anos 90, no auge da longa e triste noite neoliberal, o pensamento
jauretchiano não tinha espaço quando poucos duvidavam dos vaticínios de Fukuyama.
Mas o início do século nosso-americano resgatou com vigor os escritos de Don Arturo.
A utopia do capital foi se desmoronando no continente pela ação das ruas e das urnas -
com a eleição de Néstor Kirchner em 2003, no caso argentino - e o retorno da política
trouxe consigo a visibilização da dimensão do antagônico nas relações sociais. A
ascensão de governos progressistas, as mobilizações sociais que culminaram na derrota
da Alca em Mar del Plata e as incipientes tentativas de integração impuseram a agenda
da segunda independência. Voltar a pensar a partir do conflito o país e a região
significou reivindicar a obra de Jauretche e outros autores que haviam se posicionado
desde o campo popular. Agora, quando a reorganização das forças conservadoras
ameaça as conquistas da última década, consideramos necessário retomar algumas
categorias presentes nos escritos de Arturo Jauretche a fim de desvelar os mecanismos
de perpetuação das “zonceras” em nosso meio social e analisar as contribuições do
argentino na construção de uma alternativa libertadora para os povos do Sul.
Tentamos estabelecer aqui um diálogo entre Jauretche e os estudos da opção
descolonial de Walter Mignolo, Zulma Palermo, Jorge Torres Roggero, entre outros, que
pelo caráter preliminar do presente estudo está longe de estabelecer paralelismos
definitivos e juízos que esgotem a questão. Pelo contrário, é um convite a pensar
prováveis pontos de encontro entre diferentes tradições do pensar nosso-americano.
Para isso, analisamos no primeiro capítulo a categoria jauretcheana intelligentzia e sua
função na colonização pedagógica, no segundo o esquema civilização e bárbarie em sua
constituição como universal abstrato que negou a particularidade do americano e no
terceiro o componente econômico da matriz colonial e sua inter-relação com os demais
na orientação de uma alternativa de libertação.

A cabeça e o chapéu

Aqui discutiremos, como modo de aproximar-nos dos conceitos de Jauretche,


sua noção de “intelligentzia”. Embora registrem-se na historiografia pelo menos sete
acepções do termo, para os efeitos desta apresentação nos interessa apenas mencionar
sua origem na Rússia do século XIX, onde aparece para designar um "estrato social
definido que é alienado da sociedade e que reivindica a liderança moral da nação.”
(GELLA apud MARTINS, 1986, p.1)
A “intelligentzia” é formada pelos agentes da cultura que acreditam ter um status
diferenciado; suas análises não partem das condições concretas, mas de esquemas
importados, os quais pretendem impor à realidade preexistente. É condição básica o
afastamento do real, então, a “intelligentzia” recorre a elucubrações gerais,
pretensamente universais, que são, na verdade, a universalização de valores relativos,
europeus, limitados a um tempo e espaço definidos. Evidente que isso pressupõe a
exclusão do outro, do americano, do indígena, que é sempre um obstáculo e deve ser
eliminado. O país real é sempre o obstáculo, não o ponto de partida.
A “intelligentzia”, segundo Jauretche, integra uma ampla superestrutura cultural
que abarca jornais, livros, rádio, TV, escola, estátuas, nomes de lugares, ruas, praças,
revista de celebridade. O autor dá especial atenção à imprensa que pretende aparecer
como independente, mas, como qualquer outra, responde a interesses e, sendo uma
empresa, responde ao seu dono. É instrumento de colonização porque, diferente da
imprensa de opinião, tenta nos convencer da universalidade da sua abordagem
mascarando seus interesses.
A formação desse setor, no entanto, não é casual: ela corresponde à nossa
condição semicolonial. Jauretche explica que na colônia a supremacia é garantida pelo
uso da força, na semicolônia isso se dá pela colonização pedagógica. A “intelligentzia” é
fruto dessa colonização pedagógica que busca perpetuar a condição de dependência.
Nossos países da América ficaram na divisão internacional do trabalho com a função de
abastecer o centro de matéria-prima e comprar produtos manufaturados. Para garantir
isso, importou-se o liberalismo, que impediu a formação da indústria e do mercado
interno, impediu assim que a nação se realizasse de maneira soberana. O liberalismo é,
para nós, como andar com um “Manual do cliente” escrito pelo dono do comércio.
Mas nem só de liberalismo vive a “intelligentzia” segundo Jauretche. A esquerda
que nega o país concreto também serve à colonização pedagógica e forma um só corpo
com a direita porque, embora contrária ideologicamente, sente que faz parte do mesmo
terreno abstrato, distante do povo que não corresponde com a imagem do operário
consciente que pressupõe. Essa observação nos leva a pensar a “intelligentzia” como
diversa mas dotada de forte sentido de pertencimento graças à função de instrumento de
colonização desempenhada em oposição ao povo. O modus operandi desse grupo é
perfeitamente delineado por uma das tantas analogias presentes na argumentação de
Jauretche: "'Si el sombrero existe, sólo se trata de adecuar la cabeza al sombrero'. Que
éste ande o no, es cosa de la cabeza, no del sombrero, y como la realidad es para él la
barbarie, la desestima.” (JAURETCHE, 1973, p. 10)
Ainda que a oligarquia e a esquerda abstrata discordem no que se refere à teoria
adequada, concordam quanto à primazia do teórico em detrimento do real. Para ambas,
é a realidade que tem que se ajustar à ideologia, a cabeça ao chapéu. Confiantes de seu
papel civilizador, negam o povo como sujeito ativo e protagonista do processo histórico.
A primeira em certa coerência com seus interesses de classe, a segunda por ser incapaz
de pensar para além dos esquemas conceituais coloniais. O mérito de Jauretche foi
debruçar-se sobre esses esquemas, revelar suas origens e funcionamento. Pôde dessa
forma afirmar que estão compostos pelo que chamou de zonceras:

[…] principios introducidos en nuestra formación intelectual desde la


más tierna infancia —y en dosis para adultos— con la apariencia de
axiomas, para impedirnos pensar las cosas del país por la simple
aplicación del buen sentido. Hay zonceras políticas, históricas,
geográficas, económicas, culturales, la mar en coche. Algunas son
recientes, pero las más tienen raíz lejana y generalmente un prócer que
las respalda. […] Su fuerza no está en el arte de la argumentación.
Simplemente excluyen la argumentación actuando dogmáticamente
mediante un axioma introducido en la inteligencia —que sirve de
premisa— y su eficacia no depende, por lo tanto, de la habilidad en la
discusión como de que no haya discusión. Porque en cuanto el zonzo
analiza la zoncera —como se ha dicho— deja de ser zonzo.
(JAURETCHE, 1973, p. 5)

As zonceras compõem o repertório do espetáculo colonial: misturadas, dispersas


e inter-relacionadas, são elementos pedagógicos que nos orientam a pensar os nossos
fatos a partir de conclusões exteriores a eles e, dessa forma, coibir o uso do bom senso e
a constituição de um pensamento original, descolonial. Refém de esquemas forâneos,
parte da esquerda, noiva eterna da revolução, reage com incompreensão quando o povo
irrompe no cenário nacional e, em vez de juntar-se às multidões nas praças, une-se à
direita no combate ao “populismo”, à barbárie. Eis que surge um ponto-chave para
entender o pensamento de Jauretche: para ele, a mãe de todas as zonceras é “civilização
e barbárie”, questão que aprofundaremos no próximo capítulo.

A árvore

La idea no fue desarrollar América según América, incorporando los


elementos de la civilización moderna; enriquecer la cultura propia con el
aporte externo asimilado, como quien abona el terreno donde crece el árbol.
Se intentó crear Europa en América trasplantando el árbol y destruyendo al
indígena que podía ser obstáculo al mismo para su crecimiento según Europa,
y no según América. (JAURETCHE, 2002, p. 2)

Referindo-se aos estadistas e pensadores que organizaram o Estado argentino


depois da sua independência, Jauretche argumenta que estes rechaçaram o solo nacional
e suas potencialidades, chão de onde podia brotar uma forma inédita, para tentar trazer
da Europa um modelo de sociedade. Nessa empresa, tudo aquilo que era diferente do
solo europeu, ou seja, todo o preexistente, todo o americano, tornou-se empecilho para o
crescimento da planta exógena. Essa figura reforça o caráter aniquilatório que a
aventura da modernidade representou em nossas terras para os povos autóctones e,
posteriormente, para os mestiços pobres, mas também serve como convite para pensar a
nacionalidade a partir dessa imagem. O também argentino Ricardo Rojas já o tinha
feito: identificou raiz e território, tronco e raça, galhos e tradição, folhagem e cultura. O
que nos interessa, contudo, é o sentido expresso no livro La opción por América, de
Graciela Maturo: “Por ser el árbol una entidad terrestre de participación aérea, connota
la fusión de los estados existenciales y, sobre todo, la tendencia a la apertura abarcadora
e irradiante (copa), desde un punto de la tierra (raíz).” (MATURO, 2008, p. 93)
Uma árvore depende do seu arraigamento na terra para crescer saudável e
expandir sua copa nas alturas. O mesmo vale para o país: as ideias genuínas só se
desenvolvem a partir de uma relação orgânica com o solo, com a base material, através
do fortalecimento das raízes. É também dizer que não há ideia que não tenha uma
origem específica. As ideias que tentaram se fixar aqui sem adaptação alguma tinham
uma procedência particular, vinham de um “lugar”, como nos ensina Zulma Palermo:

“La opción descolonial entiende que todo conocimiento se produce en


un “lugar” específicamente situado, lugar que no es sólo la
territorialidad, la espacialidad geográfica en la que se producen
prácticas y saberes, sino también una categoría, una construcción que
resulta clave para la definición de las pertenencias. Por eso las
políticas del saber y del hacer no sólo se encuentran sustentadas en un
lugar sino que están atravesadas por su presencia en el pasado, bajo la
forma de memoria social.” (PALERMO, 2010, p. 33):

Assim, a tentativa de transplantar a árvore da Europa em nosso solo, foi também


a tentativa de trazer as práticas e saberes, o pertencimento, a memória social de uma
geografia específica, não para enriquecer os nossos, mas para suplantá-los. Fundou-se a
base da nossa pedagogia colonial: uma das tantas formas de saber erigiu-se como
universal, nas palavras de Walter Mignolo e Enrique Dussel, um universal abstrato.

Uma cultura particular, que é a européia, se pretende “universal” e


nega todo valor às outras particularidades. Aceita-se como evidente
que a cultura européia é a cultural universal. Este universalismo não é
mais do que o universalismo abstrato de uma particularidade que
abusivamente se arroga a universalidade, e que com isso nega todos os
outros particularismos e exterioridade das outras culturas. (DUSSEL,
1977, p. 263)

Conforme Jauretche, as elites locais e a intelligentzia justificaram o


universalismo identificando-se com a “civilização” - em oposição ao bárbaro do índio,
do gaucho, do criollo. Arrogavam-se de maneira messiânica a tarefa de implantar o
progresso, em sua versão eurocêntrica, numa Argentina fabricada por planos abstratos.
Todos esses planos tinham um fundamento: a zoncera civilização e barbárie. Jauretche
afirma que Sarmiento foi o sistematizador dessa dicotomia que domina o pensamento
colonial. Autor do clássico Facundo, Sarmiento é autor também dessas palavras: “No
trate de economizar sangre de gauchos. La sangre de esta chusma criolla incivil, bárbara
y ruda, es lo único que tienen de seres humanos". O gaucho, representante do país real,
necessitava ser eliminado – era essa a missão de Sarmiento. Aqui, é perfeitamente
possível o diálogo entre as conclusões de Jauretche e os apontamentos descoloniais de
Walter Mignolo, para quem “El pensamiento misional es un pensamiento imperial. La
misión de convertir a las formas de vidas y de creencias de quien convierte, lleva en sí
la semilla de la imperialidad” (MIGNOLO, 2010, p. 7). Defende, além disso, que “la
unidad de la civilización occidental reside en un discurso de conversión religiosa o
secular (misión civilizadora), de progreso y desarrollo” (MIGNOLO, 2010, p. 7).
O etnocentrismo dos europeus é o xenocentrismo dos americanos. Introjetando a
ideia de que somos bárbaros, de que “todo hecho propio, por serlo, era bárbaro, y todo
hecho ajeno, importado, por serlo, era civilizado” (JAURETCHE, 2002, p. 2) nos
especializamos em ver-nos como anti-cultura e praticar diuturnamente a
autodepreciação, a negação da nossa capacidade de ser-mais, que impede a criação.
Além disso, ao identificar-nos imediatamente com o outro-europeu, não podemos
pensar desde nosso lugar a alteridade com relação, primeiro, ao centro dominante;
segundo, às diferenças entre nações dentro da Nossa América; terceiro, à diversidade
étnica das sociedades nacionais. Como bem alerta Zulma Palermo, a zoncera de
Sarmiento não se limitou ao território argentino e segue no resto da América instalando
e naturalizando a colonialidade do poder, do saber e do ser. A contrapartida é a opção
descolonial, uma opção que se dá nos níveis epistêmico, político, econômico,
subjetivos, em todos os níveis da matriz colonial do poder. Não se trata de um universal
abstrato como o sarmientino, mas de uma perspectiva que pretende enfrentar a verdade
única do neoliberalismo com o pluriversalismo que dá atenção às histórias locais
soterradas pelo domínio colonial, às árvores que a nossa terra pode gerar.

O quebra-cabeças
“Cuando en 1934 el vice presidente de la República, Dr. Julio Roca,
como embajador argentino (negociación del tratado Roca-Runciman)
dice en Londres que “la Argentina forma parte virtual del Imperio
Británico”, no hace más que confirmar la naturaleza dependiente de
nuestra economía como pieza en el puzzle imperial.” (JAURETCHE,
2010, p. 28)

O governante argentino Julio Roca reconhece que seu país é uma peça do
quebra-cabeças do império inglês. Não é isso que incomoda Jauretche, uma vez que o
diagnóstico corresponde à realidade, mas o fato de que Roca, como cipayo1,
1
Termo originalmente atribuído aos soldados hindus a serviço do Império Britânico. Passou a ser
utilizado para designar todo aquele que atua contra o próprio país em favor de interesses estrangeiros.
vendepatria ciente da condição colonial, a persiga como futuro desejado e não poupe
esforços no sentido de aprofundá-la.
Com a imagem do quebra-cabeças, Jauretche destaca a posição subordinada que
a Argentina ocupa no âmbito global e como a colonização pedagógica conecta-se
concretamente com o campo econômico. “Del dominio económico surge el dominio
cultural” afirma no livro El medio pelo en la sociedad argentina (JAURETCHE, 2010,
p. 85). O colonialismo mental é fruto da nossa função na divisão internacional do
trabalho de exportador de matérias-primas. A descolonização, como sabemos, implica a
mudança da nossa matriz produtiva e um reposicionamento altivo na geopolítica
internacional através da formação de um bloco regional forte.
Jauretche explica a “relação adversa dos termos do intercâmbio”: a troca de
matérias-primas por manufaturas é desigual porque o país que industrializa seu produto
incorpora ao seu mercado os valores gerados nas sucessivas etapas de transformação.
Apresenta um caminho para alcançar a soberania: o estabelecimento de prioridades, a
concentração da banca, o manejo das divisas e da exportação, o controle da
infraestrutura econômica e a distribuição de renda. Don Arturo faz assim do desafio de
uma economia nacional integrada o seu próprio quebra-cabeças. As peças se uniriam
por meio de um Estado interventor, promotor do desenvolvimento industrial e protetor
da produção nacional para formar um país economicamente livre, em contraposição à
economia dependente do dr. Julio Roca e dos demais próceres das elites locais que, por
meio do liberalismo, impuseram à Argentina o destino de “granja do mundo”.
Mas Jauretche não é de forma alguma determinista. As transformações da matriz
produtiva e da matriz do conhecimento aparecem nele em dialética interação. A
economia depende da ideia, o que o leva a repreender aqueles que “acreditam que só os
fatores materiais determinam a história e subestimam o pensamento e a vontade”
(JAURETCHE, 2010, p. 30) Ele nos fala de “correntes da dependência” e, como os
teóricos descoloniais, centra sua análise nos “estados de consciência” gerados por nossa
condição colonial, e ao mesmo tempo, determinantes para a sua reprodução. É no
mesmo sentido de don Arturo que Walter Mignolo coloca que “el conocimiento cumple
un rol central en la matriz colonial de poder, puesto que sin su control no es posible
sostener una economía política que legitime prácticas económicas y, a la vez, admita sus
críticas.” (MIGNOLO, 2010, p. 17)
A fim de aprofundar o diálogo que aqui propomos entre o pensamento de
Jauretche e a opção descolonial, é elucidativo mencionar o diagrama com o qual
Mignolo (2010, p. 12) representa a matriz colonial de poder, com seus quatro
domínios interdependentes e inter-relacionados como lados de um losango,
representando o enunciado, e um espaço interior a ele, que seria o espaço da
enunciação. Respeitando as particularidades de cada construção teórica, acreditamos
que o sistematizado nesse diagrama muito se assemelha àquela lógica da colonialidade
desvelada por Jauretche e aqui apresentada.
Voltamos, então, a imagem do quebra-cabeças para junto a Jauretche pensar a
colonialidade. Na visão do escritor, a pedagogia colonialista era um quebra-cabeças de
zonceras, ou seja, de lugares-comuns que nos impedem de pensar a nossa realidade a
partir dela mesma. A mãe de todas elas é a ideia de um enfrentamento entre civilização e
barbárie (poderíamos colocá-la no centro de um eventual diagrama jauretchiano da
matriz colonial do poder?). Mas essas zonceras espalham-se por toda a vida social e
Jauretche levava em conta que sem desarmar esses esquemas mentais, com a mera
reorientação do econômico, não seria viável a libertação. Pelo contrário, poderia
acontecer que os setores beneficiados pelas novas políticas se tornassem eles mesmos os
apoiadores de uma restauração conservadora. Explica tal fenômeno com o que ocorreu
no governo de Perón: “A la sombra de esa expansión del mercado interno y el
correlativo dasarrollo industrial surgió una nueva promoción de ricos […] Pero esta
burguesía recorrió el mismo camino que los propietarios de la tierra.” (JAURETCHE,
2010, p. 47) E pouco adiante, complementa: “Bajo la presión de una superestructura
cultural que sólo da las satisfacciones complementarias del éxito social según los
cánones de la vieja clase, buscó ávidamente la figuración, el prestigio y el buen tono.”
(JAURETCHE, 2010, p. 47) Surge, então, a figura do medio pelo, aquele indivíduo ou
grupo que aparenta um status superior à posição que realmente possui na sociedade.
Afastado da consciência dos seus próprios interesses, recorre a pautas de imitação para
formar sua identidade.
Álvaro García Linera (2016), vice-presidente boliviano, propõe uma discussão
acerca da batalha a ser travada no nível da superestrutura cultural, alertando para o
problema que significa a distribuição da riqueza sem a politização social. Nos últimos
anos, os governos da região promoveram uma ampliação da capacidade de consumo,
mas, como bem coloca, se ela “no viene acompañada con politización social, no
estamos ganando el sentido común. Habremos creado una nueva clase media, con
capacidad de consumo, [...] pero portadora del viejo sentido común conservador.” A
ameaça de um retrocesso a nível continental vale-se da incapacidade que as forças
populares demonstraram na difícil tarefa de enfrentar a colonização do senso comum
que a direita vem exercendo por todos os meios. O senso comum, na definição de
Linera, são os preceitos íntimos, morais e lógicos com que as pessoas organizam a sua
vida, a cosmovisão, a maneira de estar no mundo. Nossa batalha, portanto, deve dar-se
em todos níveis da matriz colonial de poder.
Como lutar por um novo senso comum? Para Jauretche, esse trabalho começava
por desarmar zonceras, para o qual o simples fato de descobri-las já é um ato de
liberação, pois elas só funcionam se não são questionadas. O domínio colonial depende
de uma superestrutura cultural que exerça o policiamento epistemológico sobre o povo,
encarregando-se de reprimir qualquer sublevação, ou seja, qualquer tentativa de pensar
desde uma perspectiva-otra, centrada em nós mesmos. Jauretche foi um montonero
epistemológico. Acreditava, todavia, que desarticular o arsenal colonialista era obra
coletiva: ele dava a ponta do fio para que entre todos desenrolássemos a madeixa. Isso
demandaria do intelectual uma postura de humildade: é o povo que sabe, o povo não
preso a ideologias alheias. Como nos versos de Martín Fierro: Aquí no valen dotores,
/Solo vale la esperiencia,/ aquí verían su inocencia/Esos que todo lo saben;/ Por que
esto tiene outra llave/ Y el gaucho tiene su cencia.
Estamos diante de uma mudança metodológica que implica deixar de pensar
para o povo para pensar desde o povo. Não significaria isso um elogio ao analfabetismo,
porque a forma de ver as coisas do homem comum é a mais próxima do verdadeiro
método científico, o método indutivo (do particular para o geral); a lei do povo, o bom
senso, é a mais adequada para apreender a realidade. Daí que a missão civilizadora
colonial tenha se baseado em apagar o bom senso, substituindo-o por esquemas
importados que pressupunham o ódio ao local e ao povo tido como bárbaro.
Descolonizar, pois, consiste em um giro epistemológico que nos coloque no centro da
nossa história e revalorize o popular, não só enquanto tradição, folclore, mas sobretudo
como futuro, como potencialidade, como “exterioridade” da maneira que nos esclarece
Sirio Velasco (1991, p. 17): “a 'exterioridade' é a transcendentalidade interior ao
sistema, isto é, o sujeito como Outro na sua dimensão não-funcional para-além do
sistema”. Nós, como povo com posse de nossas memórias soterradas, das experiências
próprias encobertas pela lógica colonial, reconhecemos que somos cultura capaz de
pensar e construir o mundo desde nós mesmos.
Referências

DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação latino-americana. III – Erótica e


Pedagógica. São Paulo: Edições Loyola e UNIMEP, 1977.

JAURETCHE, Arturo. El medio pelo en la sociedad argentina: apuntes para una


sociología nacional. Buenos Aires: Corregidor, 2010.

JAURETCHE, Arturo. Los profetas del odio y la Yapa. Obras Completas, vol. IV.
Buenos Aires: Ediciones del Corregidor, 2002.

JAURETCHE, Arturo. Manual de Zonceras Argentinas. Buenos Aires: A. Peña Lillo


editor, 1973.

LINERA, Álvaro García. Intervención en el auditorio de la Facultad de Ciencias


Sociales – UBA Viernes 27 de abril de 2016 .
Disponível em:
http://www.clate.org/backend/my_documents/my_files/Linera_en_BuenosAires.pdf

MARTINS, Luciano. A gênese de uma intelligentsia:os intelectuais e a política no Brasil


1920 a 1940. Disponível em:
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_04/rbcs04_06.htm

MATURO, Graciela. La opción por América. Rosario: Fundación Ross, 2008.

MIGNOLO, Walter. Más sobre la “opción descolonial”. In: PALERMO, Zulma. (comp.)
Pensamiento argentino y opción descolonial. Buenos Aires: Del Signo, 2010.

PALERMO, Zulma. Del pensamiento nacional a la opción descolonial: aportes desde el


Cono Sur. In: PALERMO, Zulma. (comp.) Pensamiento argentino y opción descolonial.
Buenos Aires: Del Signo, 2010.

ROGGERO, Jorge Torres Roggero. Dos profetas de la des-colonialidad en Argentina.


In: PALERMO, Zulma. (comp.) Pensamiento argentino y opción descolonial. Buenos
Aires: Del Signo, 2010.

VELASCO, Sirio Lopez. Reflexões sobre a filosofia da libertação. Campo Grande:


CEFIL, 1991.

Você também pode gostar