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A flauta vértebra

A todos vocês,
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem num banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos levanto meu crânio.
Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.
Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
Maiakóvski
Quanto Mais Vela Mais Acesa

Um dia quando eu não menstruar mais


vou ter saudade desse bicho sangrador mensal
que inda sou
que mata os homens de mistério

Vou ter saudade desse lindo aparente impropério


desse império de gerações absorvidas

Desse desperdício de vidas


que me escorre agora mês de maio.

Ensaio:

Nesse dia vou querer a vida


com pressa
menos intervalo entre uma frase e outra
menos respiração entre um fato e outro
menos intervalos entre um impulso e outro
menos lacunas entre a ação e sua causa
e se Deus não entender, rezarei:

Menos pausa, meu Deus


menos pausa.

Elisa Lucinda
Exterior

Por que a poesia tem que se confinar?


às paredes de dentro da vulva do poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
da greta
da gruta
e se espraiar além da grade
do sol nascido quadrado?
Por que a poesia tem que se sustentar
de pé, cartesiana milícia enfileirada,
obediente filha da pauta?
Por que a poesia não pode ficar de quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
- carpe diem! -
fora da zona da página?
Por que a poesia de rabo preso
sem poder se operar
e, operada,
polimórfica e perversa,
não pode travestir-se
com os clitóris e balangandãs da lira?
Wally Salomão
Erro de português

Quando o português chegou


Debaixo de uma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

Oswald de Andrade
“... as oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos
excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho
a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus
tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a
impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de
despejo.”

Carolina Maria de Jesus


Carolina Maria de Jesus

Comprei um sapato lindo número trinta e nove


sendo que calço número quarenta e dois. Andei
muito a pé, adoentei-me. Pra acalmar os pés e
não repetir esse ato insano fiz uma salmoura de
água quente e ensinei crianças e adolescentes
que não se vende o próprio sonho.

Maria Tereza
Poema tirado de uma notícia de jornal

João Gostoso era carregador de feira livre e morava no morro da Babilônia


num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

Manuel Bandeira
Liberdade
"Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.
Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.
Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.
E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome”

Marighella
Ode ao Tomate

"A rua se enche de tomates.


Meio-dia, verão, 
a luz se parte em duas metades de tomate,
Corre pelas ruas o suco.
Em Dezembro, se solta
o tomate invade as cozinhas,
Entra pelos almoços e se senta repousado em travessas,
Entre os vidros 
e as manteigueiras e os saleiros azuis.
Tem luz própria, 
majestade benigna.
Devemos, infelizmente, assassiná-lo:
afundar a faca em sua polpa viva,
é uma vermelha víscera, 
um sol fresco, profundo, inesgotável.
Enche as saladas do Chile,
se casa alegremente com a clara cebola,
e para comemorá-lo, deita-se-lhe o azeite, 
filho essencial da oliveira,
sobre os hemisférios entreabertos,
adiciona a pimenta a sua fragância,
o sal o seu magnetismo:
são os esponsais do dia,
a salsa embandeira-se,
as batatas fervem ruidosamente,
o assado bate à porta
com o seu aroma,
está na hora!
E sobre a mesa
na curva do verão,
o tomate, astro da terra
estrela repetida e fecunda,
nos mostra suas formas,
seus canais,
sua amplitude notável
e abundância desossada,
sem armadura,
sem escamas ou espinhos,
nos dá o presente
de sua cor de fogo
e a totalidade de seu frescor."
Pablo Neruda
é o poema da mulher suja
da mulher suja que vi na feira
no chão juntando bananas
e uvas caídas nos cachos
tinha o rosto sujo
as mãos imundas
e sob as unhas compridas
milhares de micróbios

e em seus cabelos
longos, sujos, cacheados
milhares de piolhos

a mulher suja da feira


ela mesma uma fruta
caída de um cacho

era frugívora
pelas circunstâncias

gostava muito de uvas


mas em não havendo uvas
gostava também de bananas

Angélica Freitas, em Um útero é do tamanho de um punho (2012)

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