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ESPAÇO-TEMPO DE MANAUS: a natureza das


águas na produção do espaço urbano
!JOSÉ ALDEMIR DE OLIVEIRA1

Terras altas e baixas; casas nos oiteiros e à beira da água. Ora rua, ora igarapé, ali uma
estrada, aqui uma comprida ponte de madeira; junto à margem um vapor; perto dele uma
canoa do Amazonas; numa porta boceja uma cara branca; perto daí, banha-se um menino
fusco; e assim tudo gira, pára, anda e nada confusamente em Manaus.
Robert Ave-Lallemant, 1859.

RESUMO
COMO PARTE DA PESQUISA SOBRE AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS DA CIDADE DE MANAUS ENTRE 1920 E 1967, O TEXTO
DISCUTE CONTRADIÇÕES DA PRODUÇÃO DO ESPAÇO URBANO, ENTRECORTADO DE IGARAPÉS, UTILIZADOS NÃO APENAS
PARA A REALIZAÇÃO DE ATIVIDADES COMO LAVAR ROUPA, APANHAR ÁGUA, PESCAR, MAS TAMBÉM COMO LUGAR DA
CIRCULAÇÃO E DA FESTA. COMO CIRCULAÇÃO, O TEXTO DESTACA UMA PEQUENA EMBARCAÇÃO CONHECIDA COMO
CATRAIA E O TRABALHO DO SEU CONDUTOR, O CATRAEIRO, QUE MANEJAVA HABILMENTE DUAS FAIAS TRANSPORTANDO
ENTRE QUINZE A VINTE PASSAGEIROS. ALÉM DISSO, O TEXTO RELATA FESTAS QUE SIGNIFICAVAM FEIXES DE POSSIBILIDADES
E ENSEJAVAM O CONTROLE E A APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PELOS SEGMENTOS POPULARES. O TEXTO CONCLUI QUE NA
MANAUS DOS IGARAPÉS LIMPOS E DE ÁGUAS CRISTALINAS HAVIA ABUNDÂNCIA DE NATUREZA E HAVIA TAMBÉM ABUNDÂNCIA
DE TEMPO PARA O DESFRUTE DAS CONDIÇÕES DE HUMANIZAÇÃO.
PALAVRAS-CHAVE: CIDADE DE MANAUS; IGARAPÉS; CIRCULAÇÃO E FESTA.

A apresentação do presente texto à discussão va do “rio comanda a vida” (Tocantins, 1961). Ten-
reveste-se de todos os cuidados e acerca-se de pru- tarei reverter esse olhar apresentado idéias que são
dência teórica visto que, para o autor, ela se com- hipóteses de trabalho, nas quais me interesso pe-
para a navegar em águas nunca dantes navegadas, las pessoas que navegam nas águas amazônicas ou
não porque a temática seja inédita (outros já trata- numa parte dessas águas, as que banham a cidade
ram da Amazônia e de suas representações antes), de Manaus. Esse texto é parte da pesquisa sobre as
mas porque ela quase sempre ocorre na perspecti- transformações urbanas de Manaus no período

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entre 1920 e 1967 e que não foi utilizada quando O núcleo central que se foi estruturando a par-
da publicação dos resultados da pesquisa em for- tir do forte e da igreja encontra-se em terras fir-
ma de livro (Oliveira, 2003). A pesquisa foi apoi- mes, correspondentes aos divisores d’águas dos
ada em livros e artigos publicados em jornais e igarapés e de suas vertentes. Até meados do sécu-
revistas, fontes documentais, material iconográfi- lo XIX, os igarapés resistiram às intervenções e
co sobre a cidade de Manaus do período acima mantiveram-se presentes nas formas do espaço da
citado. Apoiou-se também em entrevistas revela- cidade, estabelecendo, de certo modo, os limites
doras de encontros e desencontros que, em al- de crescimento da cidade.
guns aspectos, são percebidos não necessariamente A hidrografia, portanto, exerceu e exerce for-
pelo que foi revelado, mas pelo que ficou implíci- te influência na configuração do sítio urbano e
to, até mesmo pela ausência da fala. de certa maneira na morfologia da cidade. Até
A retomada do tema é importante, pois num os anos sessenta sua ocupação produziu-se num
mundo em crise como se vive hoje, a questão da processo que retoma a forma da cidade do final
identidade volta ao centro das atenções (Haesba- do século XIX, com o aterro dos igarapés da
ert, 1999). Tal perspectiva ganha relevância tra- parte central da cidade e a construção de três
tando-se de uma cidade na Amazônia em que as pontes na Avenida Sete de Setembro. No final
transformações são rápidas e quase sempre despre- do século XIX, a cidade passou pela primeira
zam a história e a cultura do lugar. expansão urbana, quando então foram aterrados,
somente na parte central, sete igarapés (Valle,
A ÁGUA E O LUGAR __________________________ 1999), o que possibilitou a expansão da cidade
A localização da cidade de Manaus é alta- para o leste e para o norte.
mente privilegiada conforme apontam vários A forma urbana de Manaus foi sendo moldada a
autores (Spix e Martius, 1938; Ab´Saber 1953; partir do padrão topográfico limitado por vales
Agassiz, 1975). A vasta rede hidrográfica possi- afogados, com o rio Negro penetrando cidade
bilita a conexão entre a cidade e as diferentes adentro. A cidade foi se conformando aos igara-
localidades da Amazônia Ocidental e constituiu, pés que isolavam os blocos urbanos, e sua forma
desde sua origem, um centro importante para a foi estruturada pelo conjunto de sistemas naturais,
circulação de mercadorias e de pessoas desta igarapés, áreas alagadas e margem do rio Negro.
região com o restante do país e de outras partes Se até o final do século XIX foram os igarapés que
do mundo. condicionaram a direção do crescimento da cida-
A cidade foi construída à margem do rio Ne- de, no início do século XX, os fatores naturais de-
gro, tendo como limites primeiros os igarapés que limitadores da cidade foram sendo superados por
Aziz Ab´Saber conceitua como “cursos d´água aterramentos e pela construção de pontes. O es-
amazônicos de primeira ou segunda ordem, com- paço da cidade de Manaus foi sendo moldado a
ponentes primários de tributação de rios peque- partir de um sistema de objetos artificiais e por um
nos, médios e grandes” (2003, p. 72). sistema de ações (Santos, 1997) igualmente artifi-

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ciais como pontes e aterros e ocupação das mar- sivos e simultâneos às novas lógicas e dimensões
gens dos igarapés. de construção da cidade, que explicitam as con-
Pode-se sustentar que “os igarapés indicaram tradições e as desigualdades sociais, concretiza-
os caminhos da penetração”. Entretanto, a gene- das em desigualdades socioespaciais.
rosidade da paisagem natural esvaiu-se, as pontes Desvendar na espacialidade pretérita da cida-
constituíram-se como novos vetores da expansão de de Manaus as contradições que a forjaram im-
da cidade e, a partir dos anos setenta, houve a plica identificar que na estruturação do espaço
ocupação das margens dos vários igarapés da cida- urbano há dimensões criadoras e prenhes de sim-
de de modo mais intenso. Aqui aparece um aspec- bolismos e de imaginação. Tais dimensões também
to relevante no entendimento do espaço urbano: são importantes na produção do espaço urbano,
é o construído artificialmente que dá forma à ci- pois restituem e dão sentido à vida e garantem
dade (Oliveira, 2003). formas espaciais que tendem a desaparecer com a
Esse processo influencia a dinâmica urbana de tendência homogeneizante do espaço urbano, mas
Manaus e está associado aos sucessivos eventos da que permanecem no imaginário coletivo.
história socioeconômica da região. A economia da
cidade foi marcada por períodos de crescimento AS PESSOAS E O LUGAR _______________________
fortemente dependentes do mercado internacio- A Manaus da época da borracha é a cidade dos
nal, como o da borracha e da implantação da Zona poderosos, no auge ou na crise, é sempre a cidade
Franca, intercalados por outros de estagnação. harmônica. É a “cidade do Fausto” (Dias, 1999),
Embora se identifiquem causas pontuais, com do poder, da harmonia. É a cidade sem problemas
maior ou menor relevância, o processo de urbani- - pretendida, desejada e imaginada e, em alguns
zação recente de Manaus resulta da interação e do casos, vivida pela elite extrativista.
balanço de fatores de expulsão da área de origem A Manaus do período da borracha era conside-
e fatores de atração da área de destino (Renner et rada como uma
al, 1980). Como fator de atração, a partir dos anos
sessenta, há que se considerar a criação da Zona Cidade rica, progressista e alegre, de ruas retas
Franca, em 1967. A partir desse evento, Manaus e largas, calçadas com granito e pedra de liós
ampliou seus domínios espaciais, com a interiori- importadas de Portugal, sombreada por fron-
zação pelas “terras firmes”, num modelo de ocupa- dosas mangueiras, e de praças e jardins bem
ção mista, entre as intervenções planejadas pelo cuidados, com belas fontes e monumentos, tinha
Estado (conjuntos habitacionais) e ocupações es- todos os requisitos de uma grande urbe moderna:
pontâneas. A malha urbana expandiu-se para lon- água encanada e telefones, energia elétrica a
ge das margens do rio Negro, esparramando-se partir de 1896, rede de esgotos em construção e
pelos extensos platôs no sentido norte e leste. bondes elétricos desde 1895, espantando até
Na paisagem da cidade, os igarapés podem ser visitantes europeus do raiar do século, com suas
considerados lugares integrados de modos suces- alucinantes velocidades de 40 a 50 quilômetros

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por hora, nas linhas de aço espalhadas por A espacialização que se concretizou no perío-
toda a malha urbana e penetrando na floresta do só foi possível pela riqueza produzida pela bor-
até os arrabaldes mais distantes. O seu porto racha. Esta “Manaus do Fausto” repete-se nos anos
flutuante, obra-prima da engenharia inglesa, setenta do século XX com a implantação e ampli-
construído a partir de 1900, recebia navios de ação da Zona Franca de Manaus, só que neste pe-
todos os calados e das mais diversas bandeiras. ríodo não foi possível esconder as mazelas de um
(Loureiro, 1986, p.33) modelo de cidade genérica. O espaço urbano apa-
rece como resultado de processos geradores de
É a Manaus das avenidas, dos cafés, do teatro, formas e funções modificadoras da cidade encra-
dos palacetes, de um urbanismo higienizado e or- vada no meio da selva. No entanto, jamais signifi-
ganicista, fruto de uma racionalidade que se esta- cou, tanto num período como no outro, o espaço
belece a partir da abertura de ruas e de aterro de transformado para todos. Tratava-se apenas do
igarapés. Um urbanismo cuja finalidade era a bus- benefício de uma minoria. Os pobres da cidade
ca, por meio da construção de equipamentos ur- não eram levados em conta, a cidade era sempre
banos e de infra-estrutura, de soluções para alguns apresentada em largo cenário, onde só a paisagem
dos problemas de uma cidade e para dar conta de que interessava era mostrada.
suas novas funções urbanas. Esta Manaus, mais que Os pobres da cidade eram ninguém, seus ros-
uma cidade real, fazia parte do imaginário da elite tos queimados pelo sol, seus corpos impregnados
extrativista. do odor da borracha, suas mãos calejadas pelo
manuseio de pedras e tijolos das grandes constru-
O caríssimo Hotel-Restaurant Française da ções e de aparelhos eletrônicos, seus corpos can-
Eduardo Ribeiro n.º 35 era muito popular na sados de uma jornada estafante numa linha de
classe mais abastada. Edifício sólido, de dois montagem não contam na espacialização da cida-
andares, havia sido construído no melhor estilo de. Eles são os outros e a cidade embelezada não
francês “rococó”, tão popular no Brasil no início tinha e não tem lugar para eles.
do século. Ele oferecia uma comodidade nova, Os melhoramentos de infra-estrutura urbana
que só existia nos estabelecimentos comerciais mais quase sempre excluíam as periferias onde prolife-
prósperos, inovação tornada possível graças à ravam os casebres de palha e os flutuantes às mar-
Manaos Wright Company que trazia testemu- gens do rio Negro, reatualizados pelas ocupações
nho da modernidade da cidade - a luz elétrica. urbanas às margens dos igarapés, produzindo uma
Num tom de ‘a nossa cidade tem de tudo o que há verdadeira alienação do morador pobre em rela-
de mais moderno’, o Hotel-Restaurant Fran- ção à cidade. A cidade das obras suntuosas do iní-
çaise fazia alarde do fato de ser ‘iluminado à cio do século XX e dos altos índices de produção
eletricidade’. Multidões superlotavam as mesas do início do século XXI só foi possível numa soci-
do salão de jantar e das calçadas ao som de uma edade marcada por um processo de construção do
pequena orquestra. (Burns, 1966, p.13) espaço cuja principal característica foi a destrui-

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ção da natureza e da cultura local. Por isso, no funções e de festas que se realizam no meio, ou
período áureo da borracha e quase um século de- seja, nos rios e igarapés da cidade. É isso que va-
pois no da Zona Franca houve a expansão da ma- mos discutir a seguir.
lha urbana, a construção de novos equipamentos,
articulando a cidade ao mundo e desprezando a A CULTURA E O LUGAR _______________________
história e a cultura do lugar. Paul Claval (1999) sustenta que a extensão pela
Embora a cidade mantenha a ostentação dos qual se interessam os geógrafos não é abstrata, mas
magníficos casarões resultantes do fastídio da bor- é feita de meios de vida com a qual o grupo social
racha, os condomínios fechados e as fábricas lim- estabelece as relações no espaço. Por isso, parte-
pas do Parque Industrial que se superpõem à po- se do entendimento de que a relação da popula-
breza evidente da maioria sempre crescente, a ção com o ambiente, no caso da cidade de Ma-
cultura local vem à tona e vem pela mão dos ven- naus com os igarapés e os rios, “transforma-se em
cidos, das contradições e dos conflitos. Surge pe- ‘questão cultural’, carregada que está de simbolis-
las mãos dos moradores das margens dos igarapés mos na construção de uma identidade (...) local”
e do outro lado dos rios e emerge das águas como (Haesbaert, 1999, p.181). Quanto a isso, ressalte-
local do vivido. se que a geomorfologia da cidade de Manaus, en-
No período áureo da borracha e no período trecortada de igarapés, fazia com que os catraiei-
mais recente da Zona Franca, as vozes dos simples ros se espalhassem por vários pontos da cidade. A
e os conflitos são abafados. Todavia, as especifici- primeira referência aos catraieiros aparece no fi-
dades dos lugares da cidade determinam contradi- nal do século XIX, quando predominavam os por-
ções e modos diferenciados de relacionamento dos tugueses que dominavam o embarque e desembar-
novos sujeitos com o seu espaço. Neste sentido, a que de passageiros e cargas dos grandes navios para
espacialização que se vai construindo num período a terra antes da construção do porto (Andrade,
e noutro corresponde também às reações coletivas 1985). Com a construção do porto flutuante de
e aos conflitos que passam pela cultura e pela me- Manaus, em 1902, a estrutura de embarque e de-
mória, ou seja, por ações concretas dos vários sujei- sembarque foi modificada e a atividade dos catrai-
tos sociais que constituem a resistência coletiva à eiros no porto tornou-se rarefeita, e somente al-
tendência homogeneizante que se lhes impõe. guns continuaram prestando serviços a empresas
Ao mesmo tempo em que ocorrem as mudan- comerciais importadoras.
ças com a construção de novos equipamentos ur- Não foram localizados ainda documentos, tam-
banos e redes, possibilitando a circulação de pes- pouco relatos, que permitissem sustentar ou não
soas e objetos, há a desarticulação de fluxos preté- que os portugueses tivessem se transferido para o
ritos. Como esta desarticulação de fluxos não é transporte nas áreas dos igarapés.
circunscrita a si mesma, não apenas os eixos desa- Até os anos setenta, os pontos de maior con-
parecem, mas desarticulam--se algumas atividades. centração dos catraieiros eram os bairros de São
É o caso dos catraieiros, de modos de vidas, de Raimundo e Educandos. Isso ocorria porque as

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pontes que ligavam os dois bairros estavam locali- soas que pagavam uma espécie de pedágio pela
zadas em pontos afastados da área central. Se de utilização desse “transporte”. Essa prática ocorria
um lado essas pontes possibilitavam a circulação no igarapé de Educandos, enquanto que em São
de veículos motorizados ou por tração animal, de Raimundo o igarapé não secava completamente o
outro dificultavam o deslocamento de pedestres e que possibilitava a continuidade da prestação de
aí aparece a função dos catraieiros, enquanto su- serviço.
jeitos da circulação, atuando em pontos que dimi-
nuíam distâncias. Catraias, tantas, pássaros bailando serenos nas
As catraias eram pequenas embarcações cober- pétalas da água. Atravessavam os igarapés da
tas com toldo de lona, tocadas manualmente por cidade, avançavam pelo rio Negro, tripuladas
um homem que manejava habilmente duas faias. por um só homem, o catraieiro, que remava em
As pequenas embarcações conduziam entre 15 e pé, o dorso arqueado sobre a dança das faias
20 passageiros sentados. Funcionavam a partir de compridas. O toldo de lona muito branca bri-
certa ordem, com horário para saída. O transporte lhando como um cântico de luz. Catraias de
funcionava normalmente até às 19 horas. A partir São Raimundo. O porto das catraias dos Edu-
desse horário e durante toda a noite, havia os plan- candos. Os operários da serraria chegavam de
tonistas que também permaneciam nos domingos manhãzinha nas catraias que encostavam na
e feriados. beirada da Quintino Bocaiúva. (Thiago de
O porto das catraias de Educandos ficava na Mello, 1984)
rua Manuel Urbano que ligava a área central à rua
dos Andradas. No bairro de São Raimundo havia As catraias confundiam-se com os igarapés en-
dois portos: o da serraria Mathias, de onde saíam quanto desfrute da abundância da natureza. Os
as catraias que se dirigiam ao Matadouro, no bair- catraieiros eram conhecidos pelo nome no igara-
ro da Glória; e o da serraria Hore, que se dirigia pé de São Raimundo: Bacurau, Capitão, Zé Pon-
ao bairro de São Raimundo, ancorando na rua 5 taria, Josias, Tip-Top, Chegadinha, Duro, Mandu-
de Setembro. ca, Torquato, Braz, Elias, Cururu, João Baú, Prá-que-
As catraias constituíam-se no único meio de vê, Samuel, Boca de Jóia, Flandeiro, Mário Taco e
transporte coletivo para os bairros de Educandos Camilo. Algumas catraias: Estrela da Manhã, Ser-
e de São Raimundo até os anos quarenta. Nos anos taneja, Cisne Negro, Sergipana, Tip-Top, Nina e
cinqüenta, as catraias apareciam como transporte Souza (Áureo Nonato, 1997; Alencar, 1985).
alternativo por praticarem preço, em média 50% À medida que as pontes eram construídas para
mais barato do que o praticado no ônibus. atender a circulação de automóveis, a de Educan-
No período da seca, os catraieiros faziam reve- dos na década de setenta e a de São Raimundo
zamento e permaneciam no seu local de trabalho, nos anos oitenta, os catraieiros que tinham sua área
colocando as catraias ligadas umas nas outras, for- de atuação restrita foram desaparecendo. A cons-
mando uma ponte que servia de passagem às pes- trução de uma ponte ligando o bairro da Cacho-

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eirinha ao Morro da Liberdade determinou o en- que eram utilizados para piqueniques aos domin-
cerramento da atividade e o desaparecimento de gos por toda a família e todos os dias pelas crian-
um meio de transporte público bem como um ças no período da cheia. Na seca a beira do rio se
modo de vida ligado à água. No período da cheia transformava em praias e os igarapés em campos
em Manaus, entre os meses de abril a julho, ainda de várzea.
havia alguns catraieiros que faziam a ligação do Até os anos quarenta, no igarapé de Educan-
Boulervard Álvaro Maia à Feira de São Jorge na dos ou no rio Negro, realizava-se a regata de ca-
travessia do Igarapé da Cachoeira Grande, mas se noas. Havia várias agremiações ligadas ao remo,
tratava de uma ação isolada que já desapareceu. tais como o Clube do Remo, com sede no igarapé
Ainda existem as catraias que são utilizadas pe- de Manaus; o Grêmio Náutico Português, com
los “garapeiros”, pessoas que vendem lanche no sede na avenida 7 de Setembro; Clube Amazo-
rio Negro, especialmente na área portuária e no nense de Regatas, na Garagem Rio Negro e o
terminal pesqueiro. Mas não há na cidade os ca- Manaus Ruder Club. As regatas realizadas no rio
traieiros como transporte coletivo. Negro e no igarapé de Educandos eram assistidas
Os igarapés eram também lugares da festa e dos por grande número de pessoas que se colocavam
aconteceres, significando feixes de possibilidades na primeira ponte da avenida 7 de Setembro, pró-
que ensejavam o controle e a apropriação do espa- xima ao igarapé de Manaus.
ço e o domínio do tempo pelos segmentos popula- Os igarapés eram lugares da festa, da afirmação
res, em parte porque esses espaços escapavam ao do cotidiano e do reforço de um modo de vida. A
controle das estruturas de poder, uma vez que não festa fazia parte de um tempo, de um olhar de for-
faziam necessariamente parte do lazer da elite. ma genérica, como se todos fossem iguais. Clara-
Na Manaus dos igarapés limpos, de águas cris- mente se interpõe a vivência diferenciada no/do
talinas, do “banho” na cachoeira foram gradativa- espaço. A festa era a possibilidade de apropriação
mente extintos com o crescimento da cidade. Até da cidade por parte das populações locais. Eram
a instalação da Zona Franca de Manaus havia abun- tempos e espaços mais livres, mais facilmente rom-
dância de natureza, mas havia também abundância pidos e retomados. Era nesse espaço que se dava a
de tempo para o desfrute das condições de huma- invenção do ser e onde o acontecimento se tor-
nização do homem, visto que as necessidades de nou fato histórico.
tempo de trabalho eram menores. Havia o tempo
da festa para preparar as concretizações do ser e CONSIDERAÇÕES FINAIS _______________________
para a renovação da vida. As cidades amazônicas não são apenas produ-
Nas entrevistas com moradores da cidade, é tos do nosso tempo, mas de tempos pretéritos cris-
possível identificar que a cidade de Manaus, até a talizados na paisagem. Por seu turno, a paisagem
década de sessenta, era uma cidade balneária. Além das cidades não se resume ao conjunto de obje-
do Parque 10, da Ponta Negra, do Amarelinho e tos, pois contém modos de vida os quais, como os
do Tarumã, havia os igarapés e a orla do rio Negro primeiros, são resultantes de ações culturais con-

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tinuamente produzidas, reproduzidas, criadas e NOTAS __________________________________
recriadas, contendo as dimensões da sociedade de 1- Professor Titular da UFAM, Bolsista do CNPq.

cada tempo. Essa paisagem urbana também com-


porta as coisas da natureza. A cidade de Manaus REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ____________________
AB’SABER, Aziz. N. A cidade de Manaus. Boletim Paulista de
de hoje é um lugar bem diverso de tempos preté- Geografia. São Paulo: (15) 18-45, 1953.
______ . Os domínios de natureza no Brasil: potencialidades
ritos, não só porque o conjunto arquitetônico e a paisagísticas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.
infra-estrutura foram profundamente modificados, AGASSIZ, Louis. Viagem ao Brasil: 1865-1866. Belo Horizon-
te: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1975.
mas mudaram também a terra, a floresta e os rios. ALENCAR, Amaro. São Raimundo dos meus amores. Manaus:
Sociedade de Televisão Ajuricaba, 1985.
Mas mudou, sobretudo e de modo considerável, a
ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas.
cultura. Para compreender esse processo é preci- Manaus: Humberto Calderado, 1985.

so considerar a paisagem para além do aparente. A ÁUREO NONATO. Os bucheiros: um memorial de infância. 3.
ed. Manaus: Valer, 1997.
complexidade contemporânea não permite com- AVÉ-LALLEMANT, Robert. No Rio Amazonas (1859). Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1980.
preender isso, relacionando-a apenas ao que se
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1920. Manaus: Valer, 1999.
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Manaus: Edição do Autor, 1986.
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RENNER, Cecília H. e PATARRA, Neide L. Migrações. In:
dimensão humana, simbolizada na circulação e na Dinâmica populacional: teoria, método e técnicas de análise. São
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embora quem o fizesse talvez não compreendesse Hucitec, 1997.
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imaginário e à memória. Tal dimensão ocorreu em VALLE, Artemísia Souza do. Os igarapés no contexto do espaço
urbano de Manaus: uma visão ambiental. Manaus: CCA -
Manaus em que a circulação das catraias e as festas Universidade Federal do Amazonas, 1999. (Dissertação de
Mestrado).
nos igarapés já não existem, todavia continuam
como referência na memória coletiva.

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ABSTRACT
AS PART OF THE RESEARCH ABOUT THE URBAN TRANSFORMATIONS ON THE CITY OF MANAUS BETWEEN THE YEARS OF
1920 AND 1967 THE TEXT ARGUES ABOUT THE CONTRADICTIONS OF THE URBAN SPACE PRODUCTION THAT IS DRAINED
OF IGARAPÉS, WHICH ARE USED FOR SEVERAL DOMESTIC ACTIVITIES SUCH AS WASHING CLOTHES, CARRYING WATER,
FISHING, AND ALSO AS A PLACE FOR TRAVELLING AND HAVING FUN. IN THE CASE OF TRAVELING AND CIRCULATION,
THE TEXT DETACHES A SMALL BOAT KNOWN AS CATRAIA AND THE WORK OF ITS CONDUCTOR, CALLED CATRAEIRO, WHO
HANDLES WITH HABILITY TWO FAIAS, CARRYING BETWEEN FIFTEEN TO TWENTY PASSENGERS. BESIDES, THE TEXT TALKS
ABOUT THE POPULAR PARTIES THAT MEANT BEAMS OF POSSIBILITIES AND THE DESIRE FROM THE POPULAR SEGMENTS
TO OWN AND CONTROL THEIR SPACE. THE TEXT CONCLUDES THAT IN THE MANAUS WITH CLEAN IGARAPÉS AND
CRYSTALLINE WATERS THERE WAS ABUNDANCE OF NATURE AND ALSO ABUNDANCE OF TIME TO ENJOY THE HUMAN
CONDITIONS.
KEY-WORDS: CITY OF MANAUS; IGARAPÉS; CIRCULATION AND POPULAR PARTIES.

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