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Manuel Silveira Falleiros – Publicado em: Cadernos de pós-graduação / Instituto de

Artes/Unicamp - Ano 9 – n.2 – 2007 ISSN 1516-0793

“A improvisação e o Choro na música Na sua carreira e estudos,


de Nailor Azevedo ‘Proveta’” passou por diversões gêneros musicais,
absorvendo suas particularidades e
Autor: Manuel Silveira Falleiros aplicando a sua arte.
Mestre em Música – UNICAMP
Rua Cardeal Arcoverde, 816/31, São Nasce o Choro como gênero
Paulo, SP. musical
mfalleiros@hotmail.com
Co-autor: Ricardo Goldemberg, Doutor Grande parte dos historiadores
em Educação – UNICAMP concorda que o choro teve início por
volta de 1870. Mas, nesta época, uma
Resumo: vez que se tratava de um estilo
incipiente, ainda não consolidado, as
O artigo discute e natureza da composições não se apresentavam da
improvisação e sua participação no maneira como as conhecemos hoje. Na
choro através de sua contextualização realidade, o termo choro referia-se então
história e os significados da a um modo particular de o músico
improvisação para o gênero. Tem como brasileiro interpretar o repertório europeu
base a dissertação realizada sobre o da época. Um repertório que consistia
processo criativo na improvisação em músicas de estilos como valsa,
musical de Nailor Azevedo “Proveta”. schottisch, mazurca, tango, habaneira e
São tratados aspectos principalmente a polca. A maneira
particulares e gerais no intuito de “abrasileirada” de se tocar este repertório
contribuir para um questionamento sobre nada mais era do que a aplicação,
os limites criativos neste gênero de primeiramente ao acompanhamento, de
música brasileira, assim como serão acentuações características daquelas
apresentadas as contribuições de Nailor manifestações musicais trazidas por
Azevedo ‘Proveta’. negros escravos que tomaram forma
_____________________ própria no Brasil, como o lundu, ou
samba. Por conta deste fato é provável
Nailor Azevedo ‘Proveta’ é que a melodia, pela necessidade de
considerado um dos maiores compartilhar e dialogar com a
representantes do saxofone no país. acentuação característica do
Suas produções musicais têm relevância acompanhamento, também sofresse a
no cenário internacional devido, aplicação destas acentuações em seu
principalmente, à sua originalidade como ritmo. Com a maior ênfase nestas
improvisador. Filho e neto de músicos, acentuações, o ritmo aos poucos vai se
absorveu o estilo do choro plenamente, e deslocando também, as figuras rítmicas
têm criado recursos originais expandindo sendo “atraídas” pelas acentuações. O
suas possibilidades interpretativas. que fez com que o desenvolvimento do

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estilo fosse exponencializado foi o fato melódicas. Os dois casos, na execução


de que este repertório era muitas vezes improvisada do acompanhamento e nos
transmitido oralmente; quer dizer, uma ornamentos da linha melódica, são
melodia que recebesse uma representantes do uso de uma astúcia,
interpretação pessoal de acentuações “à na demonstração de superioridade
brasileira” se estabeleceria como regra técnico-musical, entre os músicos, e isto
para aquele que a aprendia recebia o nome de improvisação.
posteriormente, e o que era uma A linha melódica do baixo,
variação, virava a forma cristalizada. posteriormente chamada de “baixaria”,
se vale primordialmente da harmonia
“A tradição oral é um componente para a sua criação, mas, por vezes, ela a
importante dentro de numerosos gêneros transgride. Esta linha que o baixo
de música no mundo. Suas estruturas descreve, seja ela executada pelo violão
musicais complexas, incluindo sistemas de sete cordas, pelo oficleide, pelo sax
altamente desenvolvidos de afinação e tenor, ou ainda pelo trombone, sempre
ritmo e brilhantes técnicas de teve um papel de destaque na
interpretação que a definem, são caracterização do estilo. No
aprendidas freqüentemente de maneira procedimento de sua execução é muito
auditiva (inteira ou parcialmente) e em comum que ocorram inversões nos
seguida improvisadas. [...] Seu repertório acordes a fim de tornar as melodias mais
é parcialmente preservado em partitura, lineares, quer dizer, as linhas são
mas a essência da música está trancada conduzidas mais por graus conjuntos do
na tradição oral e intimamente ligada à que pelos saltos quartais inerentes à
habilidade criativa do intérprete”.1 cadência harmônica. Esta linha que
contracenava com a melodia geralmente
Natureza da improvisação no não era escrita, e sua qualidade
choro dependia da competência do
instrumentista que a executava. Esta
A improvisação no choro nunca prática de acompanhamento é um dos
esteve dissociada da vontade do elementos mais característicos do estilo.
intérprete em mostrar suas habilidades A melodia improvisada pode
instrumentais através do virtuosismo, em desenvolver-se em um alto grau de
uma espécie de competição entre os complexidade, mas, mesmo assim,
músicos. Esta prática é uma forma de geralmente guarda algum elemento para
demonstração de poder num jogo de que se possa identificar o material inicial,
prestígio entre os próprios músicos. E como a repetição de um estribilho, de
isto é o que, no choro, acaba por uma figura rítmica característica, ou de
determinar o tipo de ornamento, um contorno melódico.
geralmente “pirotécnico”, deslumbrante e Os grupos de choro, ou rodas
arrojado; que é aplicado a estas linhas de choro, sempre estiveram abertos à

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participação da mais variada sorte de significado de improvisação era diverso


instrumentos. A função deste dentro do do de hoje, principalmente pelo paralelo,
grupo se baseava não apenas com a sua quase imediato, que atualmente se
função mais tradicional, mas na verdade estabeleceu deste termo com a
o instrumentista se adequava ao grupo improvisação jazzística. Na verdade,
tocando conforme o que suas improvisação se referia à própria
habilidades permitiam. maneira como geralmente ocorria a
Este ajuntamento desordenado música, à maneira como a música era
de músicos traz a necessidade de feita assim sem partitura, sem cerimônia,
códigos comuns e de um repertório alterada ao gosto do intérprete (no intuito
conhecido, e, além disso, exige do de demonstrar sua expressão), sem
instrumentista uma flexibilidade de se ensaio, sem muito arranjo, sem
adaptar à situação: tanto da programação prévia, isto é, feita ali, no
interpretação adequada ao local e às momento e com o que se tinha em mãos.
pessoas com quem se toca, quanto Portanto, devemos salientar
sobre sua função em relação à que, pela própria prática deste estilo
instrumentação encontrada. A isto musical, temos como resultante uma
também podemos chamar de linha melódica que se relaciona com a
improvisação, no contexto do choro. trama harmônica de uma forma muito
distinta dos exemplos comparativos que
O Significado da apresentamos anteriormente até agora.
improvisação no choro Na prática do choro, a harmonia deve, de
certa forma, “permear” a melodia, e não
O choro como gênero musical são raros os exemplos que ilustram este
em sua forma é constituída de três fato. Vemos isso na prática do estilo, em
partes distintas, cada uma em uma que os responsáveis por harmonizar, não
tonalidade, que geralmente se articulam conhecendo formalmente a harmonia,
por meio de tons relativos ou vizinhos. tampouco podendo se valer da partitura,
Era comum que a terceira parte da eram constantemente “testados” em sua
música fosse criada pelos músicos, capacidade de conduzir a harmonia
improvisada, e se isso não ocorria ficava apenas pela experiência e guiados pela
a cargo dos representantes da harmonia intuição. E nisto, também como
(violões, por exemplo) que mantivessem comportamento típico do estilo, os
apenas a condução harmônica. Disto solistas aplicavam modulações
nasceu a prática de se improvisar “a” inesperadas entre outros artifícios
terceira parte (e não de se improvisar capciosos. Exemplos até aparecem em
“na” terceira parte, em se tratando deste título de composição, como em
contexto). “Apanhei-te Cavaquinho”, de Ernesto
Na época em que o choro se Nazareth, que faz alusão à possível falha
difundia como maneira de tocar, o que cometera o cavaquinista na sua

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intenção de conduzir a harmonia sem uma maneira de vasculhar sua mente em


partitura, guiado pela intuição. busca de idéias, temas,
Em alguns casos, a própria desenvolvimentos, enfim: de
interpretação melódica no contexto do possibilidades. Utilizam, dessa forma, a
choro, sendo ela mais ousada ou improvisação como uma ferramenta para
rebuscada, em suas alterações de outras poéticas musicais.
tempo, notas e ornamentações, é
igualmente chamada de improvisação. “Quase toda a tradição da
Improvisar significa, portanto, música ocidental encontra na prática
adaptar ferramentas para outros usos improvisatória uma fonte de criação
pela força das circunstâncias. Sendo o musical. J. S. Bach criou boa parte de
choro o gênero de música brasileira que suas obras a partir de improvisações ao
se destaca pela sua força instrumental e órgão e ao cravo (como as Variações
improvisação, podemos verificar a Goldberg, por exemplo). Mozart, como
influência mais ou menos direta de seus inúmeros compositores do classicismo,
conceitos sobre o instrumentista também praticava a improvisação,
brasileiro. chegando mesmo a utilizá-la como parte
integrante da forma musical, como, por
exemplo, nas cadências dos concertos
Improvisação e para piano. O músico improvisava sob os
espontaneidade parâmetros da harmonia, do contraponto
e da forma musical. Dessa maneira, era
É senso-comum acreditarmos possível obter um resultado espontâneo,
que a improvisação musical nasce das mas também coerente e organizado”.2
entranhas criativas do improvisador e Podemos, portanto, fazer uma
que seja uma atividade determinada pelo distinção sobre duas formas pelas quais
estado emocional e imprevisível. a improvisação se apresenta. Primeira:
Contudo para se chegar a uma que ela pode servir de ferramenta para o
improvisação coerente, o improvisador fazer musical, assim como um caderno
lança mão de muitos recursos de esboço de desenhos, cheio de
anteriormente estudados. Para tanto, croquis inacabados que, futuramente,
não vamos nos render a uma definição podem ser transportados à grande tela e
que deixa a cargo do acaso a explicação ganharem cores e fundo adequados; e
de um fenômeno. de uma segunda forma: a improvisação
A improvisação é uma atividade pode ser entendida como a própria
musical que carrega consigo o fato de representação do ato artístico imerso
ser comumente caracterizada como um num presente contínuo, fluído. É
fazer espontâneo. Contudo, muitos provável que este caráter de
compositores, de diversos gêneros, espontaneidade associado à
utilizam a prática da improvisação como improvisação esteja relacionado com a

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segunda definição que apresentamos porque sabe claramente o que vai tocar
acima. quando está improvisando.
O sentido de espontâneo Se a improvisação está
presente na improvisação musical não propensa a um certo preparo anterior,
deve ser lido literalmente como um fazer concluímos que o “talento natural” de
musical que acontece puramente ao Nailor é, também, constituído pelo
sabor do acaso. Na verdade, está longe resultado de um trabalho extenso no
disso. Apesar de a indeterminação, em desenvolvimento de suas habilidades
níveis distintos, ser aquilo que une os musicais. Portanto, devemos verificar se
diversos conceitos sobre improvisação, é possível determinar a que nível de
nas mais distintas épocas e culturas, desenvolvimento a improvisação para
neste caso, ela não se trata de uma Nailor se encontra, a fim de descobrir a
indeterminação qualquer ou total, mas que ponto chega o seu refinamento
sim apenas da indeterminação de nesta habilidade. A improvisação tem um
parâmetros específicos em detrimento a papel de destaque, tendo em vista que
outros que se mantêm estáveis. E que, ela participa de seu desenvolvimento
todavia, não se trata de uma combinação musical não apenas como a expressão
de sons aleatórios e ao acaso, mas de em si, mas também como ferramenta de
uma escolha das combinações entre as aquisição de conhecimentos e geradora
notas em busca de coerência musical. O de idéias musicais para outras poéticas.
resultado da qualidade da improvisação
é algo que depende, em primeiro plano, O Pacto
de determinadas habilidades musicais,
desenvolvidas e aprimoradas através da A função da improvisação é
prática, e em seguida de experiência na maravilhar. Vimos que na improvisação o
interpretação de um determinado estilo. improvisador lida com o imprevisível. Na
Portanto, apesar de que seja, a realidade, o que vemos é que há uma
improvisação, considerada, por vezes, articulação entre o ouvinte e o solista.
um fazer espontâneo, ela pode ter o Neste jogo, Nailor lida com o pacto que o
papel de organizar, segundo as regras ouvinte estabelece no momento da
do próprio discurso musical, o material atuação do artista. Este pacto se forma
da memória em uma única direção. pela necessidade que o ouvinte tem em
John Kratus, em seu estudo ser surpreendido, e por este motivo o
sobre o ensino da improvisação, afirma ouvinte faz certas concessões para que
que “[...] todas improvisações são o pacto se efetive. É neste campo que o
resultado de uma vontade decidida, e solista atua e seu solo pode ser
não ao acaso, de criar sons musicais”3. concebido, e Nailor soube muito bem
E, portanto, pode-se concluir que o captar a necessidade do ouvinte e
improvisador está consciente do satisfazê-la. A mais importante
resultado final de suas improvisações concessão que o ouvinte deve fazer para

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que se estabeleça este pacto é a de Nailor utiliza a construção desta linha


acreditar que o solista improvisador está espontânea a fim de caracterizar o estilo
lidando com o imprevisível, a todo o musical. Nela, Nailor contorna e
momento. Como vimos, pelo menos no perpassa através da melodia criando um
caso deste trabalho, este “imprevisível” é invólucro fluído que confere ao tema uma
meticulosamente preparado, com horas vivacidade e ambientação harmônica
e anos de estudo. Estando ciente de que adequada. Contudo, a grande novidade
o ouvinte faz esta concessão, cabe ao está no fato de que Nailor realiza este
solista satisfazê-lo e surpreendê-lo “dueto” algumas vezes não com a
usando as melhores estratégias que tem. própria melodia, mas com a memória
Quando maior a capacidade do solista temática do ouvinte, criando o efeito que
em lidar com as expectativas do ouvinte, intitulamos de contraponto mnemônico.
melhor será o êxito de seu solo. Nele, Nailor, cria uma nova linha
Apresentaremos a seguir as principais melódica que se relaciona com a linha
ferramentas desenvolvidas por Nailor original, a qual ele pressupõe já estar
para esse intuito. estagnada na memória do ouvinte.
Assim, Nailor imerge na intimidade do
A construção da originalidade ouvinte lidando com suas memórias e,
conseqüentemente suas lembranças e
Nailor utiliza diversos recursos afetos . Assim, Nailor elevou o conceito
advindos do choro e de outros gêneros de “dueto” a um nível de maior
musicais para conferir originalidade e sofisticação.
consistência aos seus solos Outro procedimento original
improvisados. usado por Nailor em suas construções
Dentre eles, surge uma maneira improvisadas, também é comumente
mais complexa e refinada do efeito de observável na construção melódica do
“dueto”. Este “dueto” no contexto do choro, se trata de uma superposição
choro é constituído por duas linhas rítmica de agrupamento ternário sobre o
melódicas, a do tema e o contracanto, pulso binário, obtido através do contorno
sendo que esta última é a representante melódico e da alteração da acentuação e
de uma das características mais criando um deslocamento rítmico que
marcantes do estilo. Este sugere um novo pulso. Como vimos
acompanhamento característico, em sua essa, talvez fora, a característica
forma mais tradicional, é executado pelo interpretativa distintivas dos primeiros
violão de 7 cordas. Em geral, esta linha interpretes que consolidaram o
se comporta de maneira a interagir com nascimento do estilo.
a melodia ao mesmo tempo em que Apesar de o conteúdo musical
“sugere” a harmonia (construindo-se dos solos de Nailor por si só já trazerem
através de notas característica da trama sua carga de originalidade e expressão;
harmônica). Em suas improvisações, a força expressiva dos solos de Nailor

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também está no fato de que no momento


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de sua construção musical, ele se TRAGTENBERG, Lívio, Contraponto: Uma
conecta com símbolos de sua própria Arte de Compor - São Paulo: Editora da
existência, de sua história. Nos parece Universidade de São Paulo, 1994.
3
que aquilo que Nailor vivenciou em vida KRATUS, John. “A Developmental Approach
acabou-se por reproduzir, sob outras to Teaching Music Improvisation”, International
Journal of Music Education 26, 1996 (p. 27-38).
maneiras, na sua maturidade artística.
Portanto, quando improvisa, Nailor não
está apenas combinando notas para
surtir efeitos, mas está recriando
símbolos relacionados e constitutivos de
sua própria existência.
Nailor têm o êxito em conseguir
uma improvisação tão fluída que nos faz
questionar se temos um solo
improvisado com o uso dos elementos
da melodia original, ou se temos o tema
da música interpretado ao extremo.
Acreditamos que a forma de descrever
sua maneira de solar permanece
constantemente transitando entre estas
duas idéias acima. Para Nailor este é o
ideal de uma boa improvisação no choro.

Conclusão

A improvisação, portanto, no
contexto do choro, tem seu caráter único.
Esta maneira particular de improvisação
compartilha alguns dos conceitos mais
gerais com outras formas de
improvisação na música. Contudo a
improvisação no choro segue o seu
próprio desenvolvimento, com regras
próprias determinadas pelas
características históricas do estilo e por
suas próprias práticas de execução.
1
CAMPBELL, Patrícia Shehan. Lessons from the
word: a cross-cultural guide to music teaching and
learning. New York: Macmillan, 1991.

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