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O profissional da odontologia pós-

reestruturação produtiva: ética, mercado de


trabalho e saúde bucal coletiva1
The dental professional after the productive restructuring:
ethics, job market and dental public health

Doris Gomes Resumo


Associação Educativa do Brasil, Faculdades Unidas do Norte de
Minas (Soebras/Funorte). Florianópolis, SC, Brasil. O objetivo deste artigo é desvelar os problemas éticos
E-mail: dorisgomes@bol.com.br. na nova realidade de trabalho dos profissionais da
Flávia Regina Souza Ramos odontologia, pós-reestruturação produtiva. Pesquisa
Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. qualitativa do tipo exploratório descritivo realizada
E-mail: flaviar@ccs.ufsc.br por meio de entrevista individual semiestruturada
com dez profissionais da odontologia num universo
total de 30 entrevistados, utilizando o método de
análise textual discursiva. O mercado de trabalho
da odontologia pós-reestruturação produtiva apre-
senta uma nova realidade de planos, convênios e
clínicas populares que não atende às necessidades
dos profissionais em vários quesitos, mas, sim, às
suas próprias necessidades comerciais, ocasionan-
do diversificados problemas éticos. Um crescente
ressentimento interpares parece ter relação direta
com a crise neste mercado de trabalho e com a trans-
formação da velha concorrência liberal em competi-
tividade. Diferenciada da lógica de mercado, as trans-
formações na saúde bucal coletiva direcionam a um
importante e contemporâneo debate: a necessidade
social de construção da excelência para a odontologia
pública como problema ético. Conclui-se que uma
crise profissional na odontologia aponta diferentes
problemas éticos, uma vez que as transformações no
mercado de trabalho reforçam um sentido comercial
na profissão, construindo configurações empresa-
riais com ampliação de acumulação de capital em
realidades de precarização no trabalho; e que a ação
exclusiva do profissional na saúde bucal coletiva es-
Correspondência timula o seu papel protagonista nas transformações
Doris Gomes rumo a uma nova excelência profissional pública.
Rodovia Rafael da Rocha Pires, 3913. Palavras-chave: Ética; Profissional da Saúde; Saúde
CEP 88051001. Florianópolis, SC, Brasil. Bucal; Odontologia.

1 Publicação inédita baseada em tese de doutorado intitulada “A subjetividade do profissional da saúde pós-reestruturação produtiva”.
Apresentada na Universidade Federal de Santa Catarina, Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

DOI 10.1590/S0104-12902015000100022 Saúde Soc. São Paulo, v.24, n.1, p.285-297, 2015 285
Abstract - SUBSTITUIR Introdução
Objective: to unveil ethical problems in the dental A odontologia é uma profissão historicamente for-
professionals’ new labor reality after the producti- jada na junção de uma intelectualização própria
ve restructuring. Methods: qualitative research of da medicina, a partir de um ramo especializado
the exploratory and descriptive type, carried out denominado estomatologia, com uma arte dentária
through an individual, semi-structured interview prática. Segundo Botazzo (2000), a estomatologia
with 10 dental professionals within a universe of não nasceu verdadeiramente senão a partir do mo-
30 interviewees. The analysis method was Textual mento em que a anatomia foi cultivada na Europa
Discourse Analysis. Results: 1. Ethical problems e quando a organização da boca foi conhecida nos
in the dental job market after the productive res- seus detalhes íntimos. Entretanto, a marca arte/
tructuring: the new reality of health plans, private comércio/ofício vai acompanhar e diferenciar essa
health insurance and popular clinics does not seem profissão circunscrita à boca: hegemonia do ideal
to meet the professionals’ needs; rather, it seems to liberal-privatista, forte componente artesanal e
meet the needs of the market, entailing diversified relações de trabalho construídas no mercado – que
ethical problems. A growing inter-peer resentment classicamente rivaliza o bom serviço com o desejo de
seems to have a direct relation to the crisis in the job lucro. Constrói-se uma intersubjetividade imbricada
market and to the transformation of the old concur- à ontogênese da profissão: um ethos acadêmico e um
rence into competitiveness; and 2. Transformations ideal de profissional bem-sucedido que perpassa,
in dental public health: it debates the social need of de forma natural e invisível, diferentes alteridades.
excellence construction for public health dentistry Para Cristina Carvalho (2006), a conquista do
as an ethical problem, different from the logic of the reconhecimento público da profissão passou pela
market. Conclusion: a professional crisis points at superação da visão de comércio artesanal voltado ao
different ethical problems: transformations in the lucro e com baixa autoestima social, por um serviço
job market strengthen a commercial sense in the normatizado e indispensável de saúde bucal em ba-
profession, building business configurations with ses científicas. Uma identidade profissional que se
increased capital accumulation in realities of preca- constrói sob forte resistência corporativa na disputa
rious labor; the exclusive action of the dental public com diferenciados grupos de prestadores informais
health professional stimulates his leading role in até a criação dos conselhos, que estabelecem o
the transformations towards a new professional monopólio da prestação dos serviços bucais a essa
excellence: that of the public service. categoria específica. Uma realidade percebida, ainda
Keywords: Ethics; Healthcare Professional; Dental hoje, como objeção defensiva à formação e atuação
Health; Dentistry. de técnicos em saúde bucal e ao trabalho em equipe.
Um constructo de prática individualizada, volta-
da à alta tecnologia e especialização, que não aconte-
ce sob uma visão mais complexificada do ser huma-
no e da dimensão social do processo saúde-doença,
mas apoiada na biomedicina. A sua base científica
moderna é edificada nas descobertas bacteriológicas
de Miller, em 1890: responde aos anseios científicos
da nova profissão, origina um estilo de pensamento
científico pautado na doença cárie e consolida um
coletivo de pensamento odontológico sobre uma
sólida base de fatos “multicausais-biologicistas”
(Gomes; Da Rós, 2008, p. 1083).
O componente “prática” como alicerce da for-
mação no Brasil, especialmente cirurgia e prótese,

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marcou as primeiras faculdades brasileiras, que só do todos os meandros das relações humanas.
incorporaram tardiamente a “clínica” (Warmling; A ética é constantemente confrontada aos inte-
Marzola; Botazzo, 2012). O modelo flexneriano de resses comerciais e “[...] a desumanização das rela-
ensino, introduzido na década de 1960, acompanhou ções entre os profissionais de saúde e os pacientes
a industrialização do capitalismo tardio brasileiro e tem sido uma das principais causas apontadas para
aprofundou o caráter técnico-científico-especializa- o aumento de denúncias e processos de promoção
do da formação odontológica. Um saber-fazer/poder de responsabilidade jurídica” (Fortes, 2011, p. 15).
consolidado numa clínica hermética em consultório, Algumas transformações importantes na odontolo-
que permanece como desafio à saúde bucal coletiva, gia, tanto no mercado de trabalho quanto na saúde
por sua “des-reconstrução”. Um estilo de pensamen- bucal coletiva, parecem pautar a busca por novas
to e um perfil profissional tradicional que entram alternativas. Por um lado, a moral deontológica é
em crise com a transição epidemiológica da doença construída num modelo de cura aliado à estética,
cárie associada a uma saturação do mercado de tra- agora acrescido do consumo estético/especializado
balho, não mais realizador do status profissional. com ampliação da capitalização sobre o trabalho –
Uma transição profissional que acontece con- assalariado precarizado e/ou sob organizações de
comitante à reestruturação produtiva na saúde: a grupo/empresariais. Por outro lado, a incorporação
construção do Sistema Único de Saúde (SUS) dá-se das equipes de saúde bucal na Estratégia de Saúde
num ambiente neoliberal de forte conflito com os da Família (ESF) conforma um corpo de profissio-
princípios constitucionais de unicidade e universali- nais ligado exclusivamente à saúde bucal coletiva,
dade, estabelecido no mix público-privado. O direito portanto, fora do ideal de mercado e voltado a uma
de cidadania, ligado ao estatuto do pleno emprego e nova perspectiva sociocoletiva. Origina-se uma
seu poder protetor, é abalado pelas transformações crise paradigmática com “[...] diluição das matrizes
do mundo do trabalho – desagregação profunda do identitárias dos cirurgiões-dentistas” (Emmerich;
trabalho e contestação das proteções sociais. As Castiel 2009, p. 341), abrindo espaço a possíveis
necessidades em saúde que já adquiriram conotação transformações epistemológica e ético-políticas.
de bens de consumo na “era dourada” (Hobsbawn, Este artigo objetiva, então, desvelar problemas
2002), começam a fazer parte de uma abordagem éticos nessas novas realidades de trabalho do pro-
lucrativa com potencial ainda superior de acumu- fissional da odontologia.
lação de capital. Novas questões entram em pauta,
não só no âmbito da compreensão dos processos
materiais da produção da vida, como, também, de
Metodologia
uma transformação subjetiva relacionada. Pesquisa qualitativa do tipo exploratório descritivo,
Agora o consumo de bens e serviços passa não utilizou entrevista individual semiestruturada. Esse
mais à realização de necessidades, mas à sua própria recorte foi baseado na análise dos dados obtidos
produção, o que, segundo Mészarós (2002), obedece junto a dez odontólogos do total de 30 entrevistados
ao imperativo abstrato da lucratividade. O consumo (médicos, enfermeiros e odontólogos) com experiên-
estético é massificado como fetiche de felicidade cia de trabalho no mix público-privado. Foram feitos
aparente, uma ideologia necessária à dissimulação contatos prévios com os profissionais solicitando
dos riscos sociais do desenvolvimento (des)contro- autorização para início das entrevistas, primeira-
lado pelo mercado, especialmente financeiro. Para mente com os que atuavam no serviço público de
Harvey (2011), a busca da autoexpressão como uma uma Secretaria Municipal de Saúde da Região Me-
marca de identidade individual dentro de um coleti- tropolitana de Florianópolis. A seleção da amostra
vo acaba plasmada por modelos de consumo e estilo foi definida pelo método bola de neve, no qual um
de vida. A necessidade de disciplinação, normaliza- entrevistado inicial recomenda outro, repetindo-se
ção e controle dos corpos e, em especial, da força de o processo com os novos incluídos até que se atinja
trabalho parece misturar normatização, repressão, o critério de saturação de informações. Não foram
familiarização, cooptação e cooperação, perpassan- estabelecidos limites institucionais ou formas de

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acesso exclusivo por essa via. do mix público-privado da saúde no Brasil” (Bahia;
Em caso de concordância dos sujeitos, foram for- Scheffer, 2010, p. 27). Uma modalidade comercial
necidas informações mais detalhadas e acordadas as regida inicialmente pelas leis do livre-mercado, que,
condições da entrevista. Os sujeitos passaram a ser devido à crescente insatisfação dos profissionais e
reconhecidos pela letra “P”, seguido de numeração, usuários, passa a ser regulamentada pela Agência
mantendo-se o anonimato. Para análise dos resulta- Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
dos utilizou-se a análise textual discursiva (Moraes; Fica estabelecida uma intermediação entre pro-
Galiazzi, 2011), que se organiza em torno da desmon- fissional e paciente que modifica substancialmente
tagem dos textos em unidades-base e formação de a prática liberal, quando parte da responsabilidade
categorias (com auxílio do software ATLAS.ti) e na administrativa e da remuneração dos serviços é
captação do novo emergente pela nova combinação assumida por terceiros. A ausência do vínculo de
de sentidos expressados num metatexto, seguido de trabalho num mix com a prática liberal propriamen-
um ciclo de análise a partir da crítica e validação. te dita, mesmo com a detenção dos instrumentos
O projeto foi aprovado previamente pelo Comitê de de trabalho ou parte deles, confere uma nova mo-
Ética – CEPSH/UFSC/2461. A participação ocorreu dalidade de precarização. Uma realidade pautada
de forma voluntária, utilizando-se um Termo de no livre exercício profissional atestado como ideal,
Consentimento Livre e Esclarecido e observando as que acaba estimulando serviços desnecessários
condições de plena autonomia contidas na Resolu- e impedindo um potente controle social externo
ção CNS 196/96. (Vianna; Pinto, 2013). Mesmo em franca expansão,
essa “terceirização” não se volta ao atendimento das
Resultados e discussão necessidades profissionais em vários quesitos, mas
às necessidades de mercado das empresas.
Problemas éticos no mercado de trabalho pós-
-reestruturação produtiva “[...] acho que os convênios estão querendo sacanear
Relativos aos Convênios e planos odontológicos os dentistas, que é uma classe já desunida, que não
“[...] a minha clientela era mais convênio e chegou luta pelos seus direitos” (P10).
uma fase que não valia mais a pena, porque os
convênios estão com um preço do repasse para os A adesão dos profissionais aos planos privados
profissionais mínimo” (P8). sem grande conhecimento de suas limitações e
inferências na autonomia provém das crescentes
“[...] sempre vão dando um jeito para driblar a lei, dificuldades em manter o status através da prática
são muito criativos, e a gente só trancado entre liberal em consultório: o convênio seria uma opção
quatro paredes não pensa o todo e embarca de atraente para consultórios vazios (Bragança et al.,
gaiato... a remuneração deles é muito baixa... tá 2011). O desconhecimento dos conceitos de gestão
pagando para trabalhar... estão marginalizando a e a ignorância da relação custo/receita/lucro pelos
profissão” (P10). profissionais resulta numa nova forma de con-
trole e precarização do trabalho liberal, gerando
Acompanhando a lógica de outras áreas da saúde, insatisfação majoritária (Saliba et al., 2011). Uma
os planos e convênios na odontologia tiveram um realidade perversa, que constrói uma relação de
crescimento importante nas últimas décadas no Bra- indispensabilidade ao profissional na tentativa de
sil. O aumento da demanda por esse tipo de serviço sua manutenção num mercado de trabalho de alta
tem sido estimulado e sustentado pela sua compra competitividade. Em lugar de um questionamento
direta pelo Estado, que transfere à iniciativa privada sobre sua assertividade, se constrói uma disposição
parte importante da sua função provedora: “[...] a para aprender a lidar com seus benefícios e mazelas.
escassez da oferta e a baixa qualidade dos serviços Ficam estabelecidos como problemas éticos: 1) o
públicos de saúde, ambas resultantes da progressi- controle do trabalho profissional para comprovação
va falta de financiamento, favoreceram a dinâmica de procedimentos realizados ocasiona um ambien-

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te de desconfiança nos procedimentos glosados, gador, os próprios atos do trabalho no setor privado
no lugar de um ambiente de respeito no trabalho transformam-se em mercadoria – produtora de lucro.
em saúde; 2) o excesso de exames comprobatórios Marx já acentuava que a relação mercadológica
acaba submetendo o paciente a procedimentos des- de compra e venda é fruto de uma relação social,
necessários sem conhecimento ou anuência prévia, portanto, “[...] a atividade de serviço nas relações
construindo um conflito ético – uma realidade que capitalistas pode ser produtiva se ela resulta na
impulsionou mudanças no código de ética deontoló- agregação de valor ao capital, ou seja, transforma-se
gico; 3) um sentimento de desamparo e insegurança em mercadoria capaz de produzir mais-valia” (Pena;
pela falta da ação/proteção coletiva parece facilitar Minayo-Gomez, 2010, p. 374).
espaços de ascendência dos convênios sobre os di- O pensamento hegemônico de que o mercado
reitos do profissional e do consumidor. regularia o acesso democrático a todos esbarra num
tipo de clínica construída numa visão concorrencial
Na realidade das clínicas “populares”
tipo empresarial/comercial. Uma realidade vista
“[...] uma ex-aluna minha falou que ganhava três pelos profissionais como eticamente imprópria ao
reais por profilaxia e flúor e fazia uma a cada 10 serviço privado.
minutos... essas clínicas populares são para la-
vagem de dinheiro... é aviltante, é degradante um “[...] o mercado regula, todos podem ganhar dinheiro
profissional se submeter a isto” (P6). sendo honestos. Eu só vejo que as clínicas populares,
as maiores, os donos estão visando o lucro, é uma
“[...] minha colega falou que tinha 15 minutos para empresa, o meio caminho não sei como está” (P10).
cada paciente, independente do que fosse fazer... ela
falou que tinha uma lâmpada que quando dava o Essa nova formatação de clínica vende o sonho
tempo, eles ficavam acendendo... o próprio profis- de consumo de uma odontologia estética especiali-
sional se corrompe” (P10). zada que supriria as necessidades em saúde bucal
de uma população de baixa renda. Entretanto, não
Uma realidade de assalariamento nas clínicas oferecem, boa parte das vezes, a resolução técnica
“populares”, confeccionadas sob o signo da profis- e humana adequada ou em condições próprias de
sionalização empresarial, busca acumulação de trabalho: “[...] muitas vezes a queda dos preços vem
capital na odontologia sobre relações precarizadas também com a queda da qualidade” (CFO, 2013, p. 3).
de trabalho: a exigência de alta produtividade em Alguns pressupostos baseiam esse tipo de investi-
cenários que desconsideram a autonomia profis- mento na odontologia: 1) necessidade real de uma
sional e preceitos éticos deontológicos é geradora população de baixa renda que ascende a um mercado
de insegurança. Problemas éticos podem ser evi- consumidor em saúde (classes c ou d) (CFO, 2013);
denciados em relação às cargas de trabalho e na 2) propaganda massiva pautada na excelência da
relação profissional-paciente: submissão a tempos saúde privada; 3) pouca autonomia dos indivíduos
pré-determinados de atendimento; aprovação de associada à ignorância de conhecimentos especiali-
pré-plano de tratamento delineado por outro profis- zados e vulnerabilidades sociais (Gonçalves; Verdi,
sional; valores cobrados abaixo das tabelas do Con- 2007); e 4) acesso à cobrança de direitos restrita
selho Federal de Odontologia (CFO); proprietários e/ nessa parcela-alvo da população.
ou administradores sem formação na área da saúde
ou odontologia impulsionados por interesses comer- “[...] veio uma paciente do setor privado para ser
ciais; contratação de mão de obra recém-formada atendida; nós condenamos um dente, o profissional
configurando quadro de exploração no trabalho. foi – a gente não pode julgar, mas aparentemente
Como no campo da saúde a produção e o consu- e pela história –um pouco desleixado, tanto que
mo são simultâneos, ou seja, os próprios efeitos do ela vai perder o dente. Antes tinha aquela história
trabalho transformam-se em mercadoria, tangível, de que no setor público o profissional empurrava
vendável e produtora de lucro para o capital empre- com a barriga, fazia de qualquer jeito, mas eu vejo

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agora (está muito igual). Não sei se porque aumen- A odontologia, como um serviço de saúde di-
tou muito o número de profissionais e essas redes ferenciado de mera atividade comercial, mediado
populares de odontologia e eles trabalham muito pela ética na relação profissional-paciente-sistema
por produção, tem muito profissional que faz um de saúde, tem sido destaque no debate coletivo em
trabalho de não muito boa qualidade, eu vejo que torno do código de ética deontológico. Mudanças
há semelhanças hoje no privado e no público” (P10). significativas no novo código de ética, promovidas
ao final de 2012, voltam-se também às entidades com
O padrão produtivo das clínicas “populares” atividade no âmbito da odontologia – ficando proibi-
parece estimular uma qualidade duvidosa que, do, inclusive, o uso da palavra “popular” associado
associado à rapidez no atendimento, se assemelha às atividades clínicas. Entretanto, e apesar disso,
ao praticado por boa parte dos profissionais do essas ações não parecem suficientes em função de:
serviço público ao longo da história da odontologia uma mão de obra excedente e de um forte potencial
brasileira – questionado na atualidade por sua re- de mais-valia sobre a mercadoria trabalho; grandes
-construção nos parâmetros da saúde bucal coletiva. desigualdades sociais, que dificultam o acesso a
Uma realidade de trabalho assalariado precarizado uma odontologia ainda cara e restritiva; um sistema
que, apesar disso, ainda vive a utopia de uma prática público com alta demanda; e falta de um espaço de
liberal, dissociada de uma visão clínica ampliada e debate ético/bioético amplificado, com abordagem
um saber-fazer reflexivo e crítico – com participação dos problemas contemporâneos de forma inter e
ativa do profissional no seu contexto social (Santos transdisicplinar (Garrafa, 2006) na saúde, tais como
et al., 2008). as novas realidades de trabalho precarizado e o papel
Segundo Cavalcanti et al. (2011), a odontologia da ideologia do mercado nas relações intersubjetivas
brasileira privada passa por um momento de tran- em saúde.
sição: de uma prestação de serviços baseada no Algumas questões permanecem como desafio: 1)
vínculo de confiança profissional-paciente para o papel protagonista que os conselhos profissionais
uma massificação dos serviços, especialmente devem exercer na fiscalização da ética sob os marcos
pós-década de 1980, indutora de uma prática sub- do novo código deontológico e no debate coletivo
sumida aos interesses de consumo. Instaura-se um sobre ética/bioética frente às novas relações de
perfil profissional que fere a ética deontológica, trabalho que subsumem a ética aos interesses de
evidenciado no número elevado de processos junto mercado; 2) a ação dos sindicatos na defesa dos
aos Procons e conselhos profissionais, baseados na direitos trabalhistas nessa nova configuração de as-
violação dos direitos do consumidor. salariamento na odontologia; e 2) o papel regulador
A incorporação de um sentido molar – univer- da ANS e vigilância sanitária sobre o funcionamento
salizante e transformador – nas mediações éticas das clínicas “populares”.
profissional-paciente parece central para que essas
Na relação interpares
singularidades não sejam apenas receptáculos de
uma ideologia da ética hedonista ou da ética res- Talvez o retrato mais fiel e, ao mesmo tempo, mais
trita às responsabilidades em uma empresa/insti- impactante de décadas de hegemonia da odontologia
tuição: um código de ações predefinidas de acordo liberal no Brasil seja a relação interpares. A cons-
com objetivos funcionais ao qual o profissional se trução de uma intersubjetividade concorrencial na
submete. Mas que reproduza nos microespaços de formação da identidade profissional, agora ampli-
poder as contradições e as pluralidades sociais, ficada pela complexa competitividade resultante do
sem prescindir de um agente ético como sujeito dos processo de reestruturação, persegue três caminhos
processos, “[...] como um ser racional e consciente entrelaçados:
que sabe o que faz, como um ser livre que decide e 1) Forte subjetividade concorrencial construída
escolhe, como um ser responsável que responde pelo num mercado de trabalho com saturação profis-
que faz” (Chauí, 2011, p. 379). sional e numa formação voltada à sobrevivência
clínico-liberal-individualizada nessa realidade:

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“[...] têm muitos colegas que criticam o trabalho do -reestruturação produtiva sob a égide do mercado
outro, pra ganhar dinheiro, para pegar o paciente, e da insegurança como produto da precarização no
isto acontece muito” (P4). trabalho, associado à forte relação entre poder e
conhecimento subsumidos aos mesmos interesses,
Uma autonomia com sentido moral relacionada a acaba por fornecer um solo fértil à configuração de
valores éticos perde espaço a uma autonomia baseada um crescente ressentimento interpares.
numa visão tecnicista da profissão (Freitas, 2007). Segundo Ceccim et al. (2009), o sentido de pro-
2) Subsunção da ética ao imperativo da lucratividade: fissão é forjado no imaginário liberal-privatista
e ancorado no ensino da saúde numa concepção
marcada pelo atendimento individual em consul-
“[...] tenho exemplo de colegas que botaram trabalho
tório e embasado na díade diagnóstico-prescrição,
de acrílico dizendo para o paciente que foi porcela-
em que a doença é a referência e a cura-biologicista,
na... o paciente ficou muito chateado com o dentista
o paradigma. Um profissional bem-sucedido está
por estar sendo enganado” (P6).
configurado dentro de um saber-fazer tecnicista e/ou
especializado; de um poder autônomo e hermético
Parece haver a utilização de um saber-fazer
do consultório; com tecnologia de ponta; pragma-
especializado na relação singular profissional-pa-
tismo para sobrevivência no mercado; e status de
ciente para manipulação do paciente, em situações
classe. Um subjetivo profissional que rejeita a priori
nas quais os interesses particulares substituem o
qualquer chancela de regulação pública, e vê esta re-
comprometimento ético necessário às construções
gulação como função do próprio mercado, centrada
dialógicas. Um constructo que mina a confiança e
na figura da competência e da competição e com a
o comprometimento interpares: na construção da
excelência produtiva como diferencial.
identidade profissional e do próprio self.
Para Milton Santos (2011), na contemporaneida-
3) Ressentimento interpares: ao outro enquanto de a velha concorrência é substituída por um tipo
igual e ao outro enquanto coletividade: de competitividade que chega eliminando qualquer
forma de compaixão na luta para vencer o outro
“[...] o dentista vê o outro como inimigo, parece que e ocupar o seu lugar. O amor, a solidariedade e o
está tirando o teu espaço profissional... tenho cole- comprometimento perdem espaço para a valorização
gas que quando sabem que você é dentista, ficam do eu socialmente descompromissado. O problema
estranhos. No prédio que eu moro acontece isso, no ético da relação interpares na formação das iden-
prédio onde eu trabalho acontece isso; eu acho que tidades profissionais é desvelado como um marco
o dentista não é amigo de outro dentista, ele pode significativo na construção de uma individualidade
conversar contigo e ser simpático, mas acho que isolada dos contextos e realidades sociais e em rela-
tem outro sentimento aí” (P3). ções regidas de forma mercadológica.
Ao mesmo tempo em que um indivíduo mais
O profissional da odontologia não foi, ao longo de reflexivo é solicitado pela exigência de habilidades
sua história como categoria profissional, estimulado ético-cognitivas na tomada de decisões e escolhas,
a desenvolver o sentimento de fazer parte de um todo, a apropriação da subjetividade humana nos moldes
de um coletivo, de uma realidade social; ao contrário, organizacionais da reestruturação – individualiza-
foi formado dentro de estratégias concorrenciais ção para aumento da competitividade/produtividade
num modelo curativo-individual. O profissional se e insegurança pela precariedade nas relações de
constrói narcízico, percebendo o outro como ameaça trabalho – solicita a adesão atomizada de um novo
ao seu próprio desempenho. A falta de atuação como tipo de trabalhador, a partir de uma tempestade
coletivo não potencializa um ambiente de solidarie- ideológica de valores, expectativas e utopias de
dade e comprometimento com o outro: galgar postos, mercado (Alves, 2011).
aumentar status, passar por cima, são discursos O desafio ético entre singular e universal, para
que se constroem como ideologia. Um mundo pós- o qual todos os seres humanos estão expostos pela

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própria presença dos outros, estaria sendo desman- a humilhação do outro que não apresenta o mesmo
telado e as pessoas estariam buscando cada vez mais poder de compra. Se o outro não implementa essa
se libertar de condutas humanas previamente pa- busca consumista como padrão de normalidade, é
dronizadas pelo social (socializadas), transferindo- reconhecido como estranho. A ética perde espaço
-as para a esfera das políticas de vida individuais. para relações dificilmente preenchidas por laços
Uma grande contradição que acaba por assumir fraternos ou comprometidos. Especialmente num
uma relativização da ética em cada momento dado, momento de crise profissional, em que a lógica
refugiando-se na ética restrita a interesses particu- liberal-privatista não consegue mais sustentar o
lares de um grupo ou empresa ou na ética hedonista status idealizado, a condição de ser respeitado pe-
que foge do “dever ser” social e historicamente los pares, que deriva da conclusão de que o que faço
construído (Cortina, 2009). ou penso faz a diferença não apenas para “mim”, é
Uma individualização que acaba por constituir o desestimulada. Se não há mobilização de vontades
outro como coisa, consequência direta da competi- na construção de projetos coletivos, prevalecem os
tividade e da ascensão social a qualquer preço, que processos ainda hegemônicos de individualização
transforma as relações afetivas e éticas em relações e conformismo.
subjugadas ao ter. Seguir o princípio do máximo pra- Um novo ethos profissional crítico e reflexivo,
zer significa uma postura sustentada na promessa como resultado das novas configurações de traba-
de consumo infinito. Um processo que torna cada um lho e formação em saúde bucal, precisa quebrar o
responsável por fixar seus próprios limites, como distanciamento ainda existente entre humanização
por instinto reflexivo: o privado se sobrepondo ao e técnica/especialização, tanto no setor privado
público num eterno movimento de anexação. A ética, quanto no público, forjando uma reflexividade dife-
bem como a percepção do humano nas relações em renciada de padrões percebidos como: 1) protecionis-
saúde, fica ainda mais subsumida aos interesses mo ético: muros de silêncio construídos como uma
imediatistas de mercado/produção/consumo. Junto falsa “lealdade comercial” entre pares, contrária aos
com a necessidade do ser humano se referenciar preceitos do código de ética profissional e forjado
em um coletivo para se abrigar das incertezas da no receio de “[...] informar ao usuário que o trata-
vida, os laços inter-humanos tradicionais perdem mento realizado pelo colega” não obedece às “[...]
sua proteção institucional e se transformam em adequadas normas técnicas” (Amorim; Souza, 2010,
obstáculo a ser superado. p. 875); e 2) precariedade subjetiva: uma marcante
Para Bauman (2011), o ressentimento surge não individualização profissional nos marcos privado/
somente como “aquilo que é abatido” do indivíduo liberal – absolutizada na excelência técnica voltada
numa relação hierárquica que não pode ser reco- ao mercado – constrói uma incapacidade de o indiví-
nhecida como tal – porque, a partir deste reconhe- duo se perceber como sujeito coletivo, em relações
cimento, se aceitaria a própria inferioridade –, mas precarizadas de trabalho socialmente construídas
também como um sentimento entre iguais. Para se (assalariadas ou não) e como potencial catalisador
autoafirmarem e autodefinirem numa relação de de mudanças nesse processo.
posição social com semelhante atribuição, os su- Segundo Zizek (2011, p. 93), a construção do
jeitos são levados a uma árdua luta para chegar ao self só é possível em uma relação de pertencimento
topo atirando os outros para baixo. O ressentimento a uma comunidade; só se consegue ser verdadei-
resulta em competição, em luta pela redistribuição ramente universal “[...] quando se é radicalmente
de poder e prestígio, e pode ser sentido “[...] pelos singular, nos interstícios das identidades comunitá-
membros das classes médias entre si e incitando-os rias”, pois a participação na dimensão universal da
a competir febrilmente por conquistas similares, esfera pública se dá “[...] exatamente como indivídu-
a promover a si mesmos, ao mesmo tempo em que os singulares extraídos da identificação comunitária
degradam os outros como eles” (Bauman, 2011, p. 43). substancial, ou até opostos a ela”. Nesse sentido, há
Um tipo de comportamento no qual a riqueza e a necessidade individual e coletiva de reflexão sobre
opulência baseadas num consumo ostensivo forçam os atos no trabalho em saúde, com valorização de um

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novo espaço coletivo na construção do “indivíduo si”, do serviço privado-liberal como status e ganho
comprometido com o outro e com as transformações financeiro e do serviço público como garantia de
sociais exigidas a partir desse comprometimento: estabilidade e vantagens trabalhistas. O saber uni-
“gentificado” (Freire, 2008). versitário aparece como prática de classe social, e há
uma identificação no exercício da profissão com o
capital ao invés do trabalho (Ceccim et al., 2009). Va-
Transformações ligadas à saúde lores que constroem uma intersubjetividade na qual
bucal coletiva: a construção da o setor público estaria voltado às pessoas que não
excelência para a odontologia podem pagar direta ou indiretamente o atendimento
nos marcos do contrato liberal (pobres) e, portanto,
pública como problema ético sem poder de reivindicação de bom serviço. Um pro-
“[...] eu não acredito naquele profissional que traba- cesso construtor de sentimento de desvalorização
lha no público de uma maneira e no privado de ou- profissional em relação à odontologia coletiva que
tra. Capricham mais no privado e no público... Não, abre espaço a uma qualidade de ação questionável,
eu acho que a gente tem que ter os mesmos cuida- mas muito pouco ou quase nunca (auto)questionada.
dos, porque, senão, você pode ir pegando vícios que Constrói-se uma evasão de responsabilidade natu-
vai acabar levando para o privado também” (P4). ralizada no público que atinge o comprometimento
com o outro e, portanto, a mediação ética pautada
Variados problemas éticos são percebidos na in- no “dever ser”.
corporação automática da tradicional lógica liberal
e de mercado como um ideário hegemônico também “[...] no serviço público tem muito empurra, empur-
no serviço público. Apesar da crise, a odontologia ra. Eu noto profissionais que não querem fazer o
privada ainda é referência de boa prática, satisfa- trabalho, daí encaminham para outro. Eu acho uma
ção e sucesso profissional. Segundo Narvai (2006), falta de ética não com o outro profissional, mas com
o fracasso histórico na tentativa de construção de o paciente” (P4).
um serviço bucal forjado na odontologia sanitária
do método incremental, utilizado para eliminar as Entretanto, a consolidação de um coletivo exclu-
necessidades acumuladas e voltada aos escolares, sivo de profissionais da saúde bucal coletiva, ainda
não fez a odontologia pública avançar. Ao contrário, que minoritário frente ao hegemônico mercado de
“[...] a odontologia sanitária teve a tarefa histórica trabalho odontológico no Brasil, promove um espaço
de produzir uma prática odontológica que rompesse de saber-fazer que pode ser ética e politicamente re-
com a odontologia de mercado – e fracassou” (p.143). construído como espaço de reflexividade. Vai sendo
edificado um sentimento de inadequação profissio-
“[...] se eu não estivesse aqui hoje fazendo o que eu nal que questiona a introspecção da lógica privada
faço, eu não tenho certeza que teria alguém com pelo profissional da saúde coletiva, contrapondo
uma qualificação semelhante ou tão boa quanto a pulsão de desejo por status e ascensão social do
para fazer o tipo de serviço que eu faço. Isso assusta ideário liberal, em uma nova formatação identitá-
um pouco; normalmente no serviço público a ideia ria coletiva. Uma excelência profissional voltada
dos dentistas é um trampolim ou um suporte tempo- ao direito à saúde como conquista de cidadania e
rário para você, depois, ter um consultório particu- em bases distintas dos constructos exclusivos do
lar e ter a sua vida resolvida financeiramente” (P1). mercado assume um sentido de transformação
profissional, sob novos paradigmas de trabalho:
A democratização no acesso à saúde bucal e o em equipe, interdisciplinar, não biologicista, não
comprometimento com o outro – desconhecido – ain- mercadológico, inclusivo e participativo.
da pode ser evidenciado como importante problema
ético contemporâneo na saúde bucal. A dualidade “[...] acredito que a tendência é melhorar, e aí cabe
de interesses no mix público-privado reforça a ideia aos dentistas também exigir isto” (P9).

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“[...] o trabalho no setor público, pra mim, é muito seada na atenção, na confiança, no respeito e no
mais interessante, mais gratificante por causa do cuidado” (Costa; Araújo, 2011, p. 524). Entretanto,
maior número de contato com pessoas, do maior nú- ainda revelam um comprometimento e uma valori-
mero de pacientes, maior número de profissionais zação docente aquém dos objetivos e possibilidades
envolvidos, porque a equipe é grande... o contato da formação humanística, cultural e política, orien-
com o ser humano na saúde pública evidentemente tação didática, cenários de ensino-aprendizagem,
é maior” (P2). bem como “[...] em relação às disciplinas éticas e
formação docente, pela incipiente presença da bio-
A ética do “é o que há” passa por uma transpo- ética” como disciplina e tema transversal (Finkler;
sição à ética do “dever ser” – profissional histori- Caetano; Ramos, 2011, p. 25).
camente construído, sem renúncia de horizontes São muitos os avanços já alcançados na saúde
coletivos e transformadores. Uma epistemologia bucal, atestados pelos diversificados dados pós-
com referencial de bucalidade transcendente à boca -implantação das estratégias e equipes de saúde
e aos dentes, a partir da relação do indivíduo si com bucal, como a diminuição da população que nunca
o mundo, é solicitada juntamente com as transfor- foi ao dentista (de 18,7% em 2003 para 11,7% em
mações do já naturalizado estilo de pensamento 2008); a ampliação substancial da cobertura na
multicausal-biologicista, e pode representar uma área das especializações (958 CEO pelo país, com
reconciliação da odontologia com a clínica e depois oferta expandida de 101 mil próteses em 2009);
“[...] com a sociedade e consigo mesma” (Bottazzo, ampliação das ações de prevenção e controle (com
2006, p. 15). priorização de 1.242 municípios com baixo índice de
Uma transição epistemológica que esbarra, ini- desenvolvimento da educação básica, totalizando
cialmente, numa perspectiva humanista reduzida ao 72,6 milhões de kits de material de saúde bucal);
sentido da produtividade/cura também nos marcos salto na cobertura assistencial (de 35,8 para 91,3
da odontologia coletiva – pela defasagem existente milhões de atendimentos); e a implantação de Equi-
entre necessidade social e amplitude de cobertura. pes de saúde bucal (ESB) (em 85,3% dos municípios
Uma nova construção que é dificultada, também, brasileiros), entre outras assertivas protagonistas
por problemas estruturais e de financiamento do de um novo perfil de saúde bucal à América Latina
sistema e baixo comprometimento profissional para (Narvai, 2013). Porém, ainda há grandes dificuldades
além do prescrito, da boca e do consultório. A incor- para o efetivo engajamento do coletivo profissional
poração de ações humanizadoras pelo coletivo não nas ações de planejamento ou gerenciamento, nas
acontece sem uma política de valorização do profis- equipes e atividades interdisciplinares e na ação
sional da saúde – inclusive salarial; de investimento coparticipativa junto às comunidades.
na satisfação no trabalho profissional; do debate O papel dos conselhos de saúde no controle
em torno da ética da responsabilidade a partir da social e na construção de um espaço de debate
necessidade desvelada de um trabalho ético-político ético/bioético contemporâneo deve acontecer não
engajado; e de gestões que compartilhem espaços de somente na perspectiva de uma alocação de recur-
autonomia com o sujeito/profissional na realização sos pautada nos princípios de justiça e proteção
das ações, desvelando-se uma intersubjetividade (Petry et al., 2010), mas também como espaço “des-
sob novas bases: uma lógica coletiva e participati- -reconstrução” da prática profissional. Uma clínica
va, condições favoráveis às mediações éticas entre ampliada e comprometida com as necessidades
profissional-paciente/usuário-sistema de saúde e sociais e desejos do paciente/usuário ainda figura
sujeito-comunidade. como problema ético-político na atualidade. Um
Mudanças solicitadas na formação a partir das comprometimento que deve ser buscado na cons-
competências incorporadas da Lei de Diretrizes e trução do vínculo e da autonomia com o paciente/
Bases da Educação (LDB) e Diretrizes Curriculares usuário, no compartilhamento de saberes e fazeres,
Nacionais ressaltam a importância do aluno “[...] bem como na percepção do alcance das práticas coti-
cultivar uma relação nova com a comunidade, ba- dianas na emancipação e corresponsabilização dos

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sujeitos (Santos et al., 2008). Um modelo de saúde direitos de resultado; 2) incorporação incipiente de
bucal que, segundo Gastão Wagner, deve combinar novos paradigmas coletivos no planejamento e ação
“[...] a objetividade da clínica e da epidemiologia em equipe, trans ou interdisciplinares; e 3) passos
com a singularidade da história dos sujeitos, grupos tímidos em direção a novos campos de ação em po-
e coletividades” (Campos, 2013, p. 66), seguindo um sições administrativas e/ou gerenciais.
novo comprometimento humanizado do ser-sujeito- Como resultado, uma clínica ampliada e em con-
-profissional. sonância com as necessidades sociais e desejos do
usuário, num sentido diferenciado da odontologia
de mercado, ainda enfrenta problemas no tocante
Considerações finais à responsabilização, inclusão e participação do
Alguns aspectos da reestruturação produtiva na profissional e do usuário como sujeitos do proces-
odontologia constroem uma realidade de precariza- so. A odontologia coletiva continua se apoiando no
ção no mercado de trabalho profissional: 1) amplia- tradicional saber/fazer-curativo/funcional, agora
ção de um mercado de planos e seguros de saúde também interdisciplinar e preventivo. Entretanto,
privados pautado numa realidade perversa: vendem uma qualidade técnica e estética com participação
a ilusão das vantagens do trabalho liberal, mas coletiva/comunitária como base da própria huma-
funcionam sobre a égide do controle e terceirização nização, deve seguir um caminho diferenciado de
de serviços interpostos na relação profissional- uma odontologia restrita à cura/funcionalidade,
-paciente; 2) formação de uma camada profissional em direção à incorporação do ético e estético não
assalariada, especialmente na nova modalidade de subsumido à ideologia do mercado, mas num espa-
clínicas “populares”; 3) incorporação de uma inter- ço cidadão-profissional-inclusivo no serviço como
subjetividade individual-narcisista e concorrencial/ espaço intersubjetivo de bucalidade.
competitiva na identidade profissional, que desperta Neste sentido, as mudanças na formação e na
ressentimentos interpares. Novas realidades de educação para construção dessa nova excelência
trabalho que conformam diversificados problemas não se mostram suficientes sem uma política de
éticos contemporâneos. valorização do profissional da saúde bucal coletiva,
Mesmo havendo a hegemonia de uma identi- com investimento na satisfação profissional e na
dade liberal-concorrencial, a ampliação do serviço ampliação de espaços de debate ético/bioético, não
odontológico com formação de um coletivo que atua só na mediação singular profissional/paciente, mas
exclusivamente na saúde coletiva potencializa um a partir de uma nova necessidade desvelada de com-
movimento ético-político e epistemológico trans- prometimento com o outro – si, coletivo e histórico:
formador: um espaço profissional da saúde bucal O sentido coletivo na odontologia ainda parece
coletiva como necessidade socialmente construída descaracterizado, desacreditado e invisível nos
que, nesta condição, transforma a realidade profis- ambientes individualizados de consultório, entre-
sional objetivada nas políticas de saúde e educação, tanto, sua ampliação pode quebrar a atomização
e subjetivada numa nova excelência humanizada, profissional-consultório e aproximar o serviço da
em uma nova identidade coletiva. O caminho para realidade social, para construção cidadã do direito à
uma odontologia comprometida com as conquistas saúde e diminuição das distâncias entre as reais ne-
de cidadania se amplia e o profissional parece estar cessidades/desejos dos sujeitos e o sistema de saúde.
assumindo um protagonismo como sujeito desse Um debate articulado em espaços que ultrapas-
processo. sem as imposições consumistas do mundo moderno
Entretanto, alguns mitos importados da lógica de – impregnado de uma ideologia de mercado contami-
mercado ainda impactam a construção dessa nova nadora das construções de necessidades e desejos
intersubjetividade: 1) serviço público como sinôni- – precisa ser forjado na reestruturação da produção
mo de tratamento voltado àqueles que não podem em saúde bucal, para uma nova excelência ética e
pagar (pobres) e que, portanto, não têm os mesmos estética como projeto coletivo/social.

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Contribuição dos autores


Gomes trabalhou na concepção e redação do artigo. Ramos traba-
lhou na revisão crítica do artigo.

Recebido: 19/08/2013
Aprovado: 07/02/2014

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