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Jacqueline de Oliveira Moreira

Luto e melancolia:
uma leitura sobre o problema da alteridade

O presente artigo visa refletir sobre algumas possibilidades de relação entre eu e


outro no processo da perda amoroso. Buscaremos defender a idéia de que a perda
opera uma fissura na arrogante identidade do eu igual a eu e que essa abertura pode
propiciar um encontro com uma alteridade dentro de si, experiência do luto, ou pode
transformar o eu em um outro estranho, aspecto presente na melancolia. Iremos
pensar como algumas figuras de alteridade comparecem nessa relação entre o eu e
outro atravessada pela perda e dor, fundamentados pela perspectiva freudiana. E,
ainda, refletir sobre a aproximação entre a dimensão de alteridade e a noção de
tempo.
> Palavras-chave: Luto, melancolia, alteridade, dor

The present article discusses possibilities regarding the relationships between

pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 33-42


the self and the other in the process of a loss of love. We defend the idea that
loss brings about a fiction in the arrogant identity of self equal to me, and that
this opening can promote either an encounter with an alterity of oneself – an
experience of mourning – or it can transform the self into another stranger,
which is an aspect of melancholia. We then discuss how certain figures of
alterity emerge in this relationship between the self and the other,
characterized by loss and pain, The author also treats the approximation
between the dimension of alterity and the notion of time.
ano XVII, n. 179, setembro/2004

> Keywords: Mourning, melancholy, alterity, pain

Nas reflexões sobre o trabalho do luto e so- relações intersubjetivas são atravessadas
bre a saída melancólica parece-nos decisiva por diferentes figuras de alteridade. Não
a discussão sobre o encontro com a proble- existe apenas uma relação com o outro, mas
mática da alteridade. Acreditamos que as diferentes possibilidades de encontros e de-
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sencontros com a alteridade. Parece-nos objeto” enquanto dispositivo propulsor do
possível pensar a categoria de alteridade desejo.
como um complexo sêmico de múltiplas de- Pretendemos, pois, refletir sobre a presen-
rivações semânticas e com diferentes graus ça de algumas dessas diferentes figuras de
de comparecimento do outro, sendo que es- alteridade na cena amorosa, revelando a
sas diversas figuras de alteridade podem escala de afirmação ou negação da presen-
ser pensadas como causas do sujeito, ou ça do outro, não esquecendo que, em última
seja, o sujeito emerge a partir da incidência instância, a alteridade não pode ser negada,
do outro. Construímos uma escala de mani- pois apresenta-se como um limite intranspo-
festação da alteridade composta por seis nível, para usar a expressão freudiana,
figuras (cf. Moreira, 2002) que podem, evi- como um rochedo da castração. A dimensão
dentemente, se multiplicar. Denominamos a de alteridade expressa na figura do “outro-
figura com máxima presença da alteridade abstrato” é recusada na psicose e renegada
de “outro-abstrato”, traduzida pela verdade na perversão, mas a Lei, o limite, reaparece
da castração. A segunda forma refere-se ao e se impõe no sintoma, introduzindo uma
“outro-pessoa”, importante elemento nas perspectiva mortífera para o sujeito. O me-
discussões éticas. O “outro-alteritário” repre- canismo de recusa e/ou renegação do outro-
senta a terceira manifestação da alteridade; abstrato traz diversas conseqüências para a
trata-se de uma modalidade que combina di- relação entre o eu e as figuras de alterida-
mensões abstratas ou simbólicas com a de. Porém, esse tema transcende os objeti-
experiência do sujeito, que pode ser encon- vos desse artigo, pois pretendemos pensar
trada nas noções de Inconscientes, as vicissitudes dessas figuras de alteridade
Superego e Id. O “outro-transferencial” apa- na trama amorosa.
rece como quarta forma de alteridade, que A problemática da escolha amorosa coloca
também combina dimensões concretas e em cena diversas figuras de alteridade, como
simbólicas, pois depende da presença de as de outro-pessoa, outro-objeto e outro-
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uma outra pessoa para desencadear o pro- narcísico, mas também o término da relação
cesso de transferência. Na quinta figura, amorosa reedita os dilemas presentes no
teremos o “outro-narcísico”, que aparece encontro entre o eu e o outro. Supomos que
como uma exigência interna da teoria psica- a perda do objeto amado evidencia que este
nalítica, mais precisamente da teoria sobre se constitui primordialmente como um ou-
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a constituição da subjetividade. Se o eu ou tro-pessoa. Entretanto, o melancólico pare-


o “outro-pessoa” é o palco de manifestação ce representar uma recusa patológica de
de todas as dimensões de “alteridade”, o aceitação dessa dimensão de outro-pessoa,
“outro-narcísico”, por sua vez, atravessa to- e o seu sofrimento orienta-se de acordo
das as relações, na medida em que ele é com as figuras do outro-objeto e do outro-
condição de possibilidade do eu, do “outro- narcísico, na medida em que essas duas úl-
pessoa”, do sujeito. Enfim, descrevemos uma timas figuras representam manifestações
sexta modalidade de alteridade: o “outro- com pouca densidade de alteridade. Pode-
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ríamos perguntar se ocorre também, na me- A presença do outro, como agente produtor
lancolia, uma renegação ou recusa da dor, coloca em cena a questão da violên-
(Verleugnung) do horizonte da alteridade, cia, que pode ser compreendida no campo da
uma recusa da Lei ou do outro-abstrato, en- intencionalidade consciente, ou seja, como
quanto limite ou referencial norteador das um movimento efetivo, a ação cruel de ou-
relações humanas. Parece-nos que no pro- trem, que visa intencionalmente o mal. Esse
cesso do melancólico, a dor gerada pela per- tipo de violência não pode ser desconside-
da enlouquece o circuito pulsional, produzin- rado, pois é uma variável importante, mas
do uma forma de recusa da castração pela demanda, para sua compreensão, o desen-
incorporação do objeto ao eu. A dor repre- volvimento de uma complexa reflexão acer-
senta um elemento comum entre o luto e a ca da cultura. No entanto, apesar de ser um
melancolia. Assim, pretendemos refletir so- fenômeno difícil de analisar e resultado de
bre os destinos das figuras de alteridade, uma intrincada sobredeterminação, aqui
após a perda do objeto, recorrendo ao cam- queremos ressaltar apenas a sua dimensão
po fenomênico da dor. fantasmática, na medida em que a violência
A dor representa uma das modalidades de coloca em xeque a sustentação do outro
relação com o outro. As dimensões de alte- como uma alteridade, como uma diferença;
ridade se fazem presentes na experiência porque nela o que se busca é a radical su-
de dor em diferentes níveis. No texto que se pressão do outro. Podemos afirmar que o
segue explicitaremos três tipos, a saber: em outro, agente do ato violento, se afirma por
primeiro lugar, podemos pensar no outro meio do completo desrespeito à dimensão da
como aquele que introduz a dimensão da alteridade, pois ele visa reduzir o outro ao
dor, o outro como agente da dor, em segui- mesmo de si. No ato violento, o outro com-
da, pensamos no outro que atende ao grito parece através da figura do outro-objeto,
de socorro, o outro como suporte para a dor; mas é o horizonte mesmo da alteridade que
e, finalmente, o outro que emerge no inte- é negado. Contudo, em relação à violência
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rior do próprio eu mediante uma experiên- intencional, não nos interessam aqui as
cia de dor, sendo que nessa dimensão assis- suas causas sociais, mas o seu impacto no in-
tiremos a um desdobramento da problemá- terior do eu e suas conseqüências, tanto na
tica. dimensão identitária quanto na problemáti-
A experiência de dor, quando elaborada, ca da alteridade.
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possibilita uma alteração do sujeito e reve- A frustração expressa a experiência subje-


la uma imagem escondida de si, pois o sofri- tiva do eu diante do ataque intencional ou
mento revela-nos um ser outro diferente do não-intencional do outro. A noção de frus-
que imaginávamos ser. Por outro lado, a ex- tração não está atrelada necessariamente à
periência de dor pode resvalar em uma pa- questão da crueldade, pois o que nela impor-
tologia e o sujeito se perder, não reconhe- ta é que o outro não respondeu a um inves-
cendo o seu próprio eu, e tornando-se um timento, produzindo desse modo no eu um
estranho para si mesmo. sofrimento. Nesse sentido, a categoria do
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outro como agente do sofrimento, ou seja, dor parece deslizar para o conceito de so-
aquele que produz uma frustração, revela- frimento, que pode ser introduzido a partir
nos duas possibilidades de impacto no eu, a da consideração sobre a angústia.
saber: a separação que pode ser vivenciada É preciso, no entanto, fazer uma considera-
como luto ou como melancolia. Nestes ca- ção preliminar sobre a relação entre alteri-
sos, o outro provoca o sofrimento sem neces- dade e sofrimento para, depois, refletir so-
sariamente ser cruel ou violento. O que nos bre essa problemática no interior do texto
interessa é a alteração que o sofrimento freudiano. O psicanalista francês Denis
produz no eu. Assim, no trabalho do luto, a Vasse afirma que:
ilusão da identidade do eu é quebrada e a O sofrimento se inscreve nas nossas histórias
imagem que o eu tinha de si mesmo é mo- como uma ruptura no tempo. E, nessa escan-
dificada, abrindo espaço para a alteridade são da duração, a queixa ou o espanto invoca
dentro do eu. Enquanto que na melancolia um tempo original e um primeiro grito...
a alteração produz uma cisão patológica em (Vasse, 1983, p. 4)
que o eu não mais se reconhece, ao ser in- A vivência de sofrimento deixa traços, cor-
vadido pelo outro. tes, possibilitando a ritmização do tempo e
Por fim, temos a presença do outro como o recorte no espaço. Seria, pois, interessan-
aquele que responde ao desamparo, que so- te refletir sobre as possíveis relações entre
corre mediante o grito, tema que foi tratado alteridade e tempo. Sabemos que a grande
no texto do Projeto de 1895. A experiência tradição da filosofia platônica realiza uma
da dor é definida, no “Projeto para uma psi- certa aproximação entre o tempo e a dimen-
cologia científica”, como uma irrupção de são do outro, enquanto que o espaço é vin-
grandes quantidades de energia como con- culado à categoria do mesmo.
seqüência do fracasso do sistema protetor, Platão, partindo do pensamento de Herácli-
e os “neurônios”, os elementos que suposta- to, aproxima o tempo da dimensão alteritá-
mente constituem o “aparelho psíquico”, ria e, por outro lado, vincula o espaço ao ser,
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serão os alvos desse ataque avassalador. à dimensão da identidade, aproximando-se


Parece que essa irrupção produz uma fenda, da herança de Parmênides. Platão revela
um buraco no psiquismo, que possibilita que a filosofia nasce do tháuma, que tradu-
uma grande perda da quantidade de excita- zimos correntemente por espantoso, mas
ção, produzindo um empobrecimento, uma que também poderia ser traduzido como o
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ferida ou trauma psíquico. Podemos pensar horrendo ou o monstruoso. A filosofia seria,


que a ferida interna permite o livre escoa- então, uma tentativa de explicar o imprevi-
mento de energia, uma descarga pulsional sível, pois nada mais aterrorizante do que a
intensa que se associa à idéia de uma imprevisibilidade da vida. Explicando o de-
pulsão sem representação. Esse movimento vir, controlando o tempo, fixando o movi-
de raciocínio coloca-nos na direção da an- mento, a filosofia cria uma verdade estável
gústia e do conceito de pulsão de morte. e, assim, um remédio contra o terror da
Assim, a reflexão sobre a experiência da vida. Todo o projeto filosófico fundacionista
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expressará a história dessa recusa do devir, ser da inteligibilidade. Logo, seremos obriga-
recusa que se fará, muitas vezes, através de dos a recusar, por um lado, a tese imobilista
uma estratégia sutil: espacialização do tem- parmenídea do Ser/Uno, bem como o
po. Mas não podemos deixar de pensar que mobilismo universal heracliteano. O Ser de-
o remédio foi, num certo sentido, pior que o verá incluir tanto o repouso, o mesmo quan-
mal, uma vez que ”prevendo e antecipando to o movimento, o outro, sem se reduzir ou
o devir, acabam por anular e por anular jun- se identificar exclusivamente com nenhum
tamente com ele a própria vida do homem” destes estados.
(Severino, 1986, p. 15). O filósofo deve abraçar a totalidade do Ser,
Foi Platão que, a partir das críticas ao modo tanto no seu aspecto estático quanto dinâ-
sofista de conceber o conhecimento, inaugu- mico; tanto na identidade quanto na alteri-
rou essa respeitável tradição filosófica, que dade. Desta forma, Parmênides e Heráclito
aqui definimos como fundacionista. O pro- estão superados. A definição do Ser com-
blema do diálogo ”Sofista” será justamente preende o movimento e o repouso e, por-
o da constituição de uma ciência absoluta. tanto, o mesmo e o outro estão implicados
Será necessário superar as posições antité- na própria possibilidade do conhecimento e
ticas dos dois grandes filósofos pré- da constituição do objeto. Se o Ser não inclu-
socráticos, Parmênides e Heráclito, para co- ísse o movimento, se a alteridade fosse re-
locar a possibilidade da ciência, escapando, cusada como constitutiva do Ser, a inteligên-
desse modo, quer do relativismo total, quer cia não existiria. Por outro lado, se o Ser não
do completo imobilismo. Platão terá que incluísse a estabilidade, se a identidade não
desbancar o pretenso absoluto do Ser/Uno habitasse o seu cerne, o inteligível dissol-
parmenidiano e, assim, demonstrar que o ver-se-ia numa pluralidade infinita. Platão
Ser inclui o movimento como possibilidade busca o Ser não no termo estático da elabo-
de sua relação com a inteligibilidade. Se o ração conceptual, mas no movimento com
conhecimento é de algum modo uma ação, a que a alma conhece, isto é, no ato de julgar.
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conseqüência é que o ser conhecido sofre Quebra-se, portanto, a imobilidade do Ser par-
esta ação, pois enquanto é conhecido será menidiano. Entretanto, a filosofia platônica
movido logicamente. Ora, negar que o co- promove uma aliança indissolúvel entre a
nhecimento seja uma ação é cair num dile- alteridade, o tempo e o movimento, de um
ma: se tudo for imóvel, ninguém poderá sa- lado, e associa, por outro lado, o mesmo, a
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ber nada. Como poderemos dizer que o ab- identidade, e o espaço. Assim, podemos con-
soluto possui inteligência, mas não possui cluir que a identidade é uma relação de con-
vida, ou é imóvel? O movimento é indispen- tinuidade que só pode ser percebida pelo
sável para o conhecimento. Mas, por outro fundo da variação e, portanto, o mesmo evo-
lado, se admitirmos que tudo se movimenta ca o outro, e a identidade, a diferença.
e se altera incessantemente, que não há Parece-nos, apesar de tudo, que a tradição
qualquer estabilidade, então, pela força des- platônica reconhece o outro por meio da re-
te mesmo argumento, teremos que privar o dução ao mesmo, ou evoca o tempo median-
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te a espacialização. Haveria uma enorme di- outro-alteritário que habita em nosso ser: o
ficuldade de trabalhar com a ruptura, com o nosso inconsciente. No outro-alteritário en-
devir, com o imprevisível. E é essa a denún- contramos diferentes caminhos na forma
cia que faz Bergson em ”O pensamento e o das marcas de nossa história. A dor abre
movente”: passagem para percorrer esses “sulcos”, re-
A inteligência retém apenas uma série de po- velando, pois, verdades veladas pelo tempo.
sições: um ponto primeiramente atingido, de- O outro-alteritário sempre se fez presente
pois outro, depois outro. [...] Nossa ação ape- nas nossas relações e escolhas, mas muitas
nas se exerce comodamente sobre pontos fi- vezes somos arrastados e conduzidos de
xos; é, então, a fixidez que nossa inteligência uma forma em que não nos reconhecemos.
busca; ela se pergunta onde o móvel está, onde O sofrimento pode nos revelar a face fami-
o móvel estará, onde passa. [...] Abandonemos liar do estranho em nós. O encontro com
esta representação intelectual do movimento, nosso outro-alteritário desvela as relações e
que o desenha como uma série de posições. as expectativas construídas pelo outro-nar-
(Bergson, 1934, p. 103)
císico e que muitas vezes irão nos conduzir
Acreditamos que é a experiência do sofri- inevitavelmente para a frustração. Por ve-
mento que quebra a estabilidade do espaço zes buscamos nas relações algo impossível,
e a tranqüilidade do mesmo por meio da in- construído a partir da lógica do outro-narcí-
trodução do outro, da diferença, e do tempo. sico, uma esperança de completude. É nes-
O sofrimento seria uma ruptura no tempo, se sentido que a experiência da perda pode
um recorte no espaço que, ao produzir a rit- abrir espaços para a construção de uma
mização, introduz uma discussão sobre a pre- nova figura de alteridade, para além do des-
sença do tempo e do outro no seio do Ser. O velamento do outro-alteritário e dos desejos
sofrimento seria uma experiência de ruptu- narcísicos de completude, pode revelar um
ra no mesmo, uma fenda no tempo, uma cri- outro de nós mesmos, não apenas como ou-
se no interior da identidade, que inscreve tro-alteritário e muito menos como percep-
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no corpo e no psiquismo a dimensão da al- ção das buscas incessantes do outro-narcí-


teridade. A experiência de dor rompe com a sico, mas revelando um outro-pessoa em
tranqüilidade espacializada do mesmo e in- nós.
troduz o ritmo do devir-outro, a escansão no O trabalho de luto constitui uma relação pos-
tempo. O sofrimento promove uma abertu- sível com a experiência de perda, de dor. A
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ra no eu e revela a face da alteridade en- vivência da perda exige um trabalho de ela-


quanto horizonte/limite constitutivo do boração porque é sempre doloroso se desfa-
mundo humano; rompe com a ilusão da zer dos antigos investimentos libidinais. O
equação identitária do eu igual ao eu, e in- trabalho do luto inicia-se no momento em
troduz a dimensão da morte, revelando o que o teste da realidade evidencia a ausên-
outro em nós e lançando-nos, assim, verda- cia do outro-objeto de investimento, tor-
deiramente para a vida. A experiência do nando-se necessária a retirada das ligações
sofrimento abre-nos para o encontro com o libidinais. O desligamento da libido realiza-
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se em relação a cada lembrança, o ego se dade imaginária e se posicionar como um
movimenta retomando os traços e marcas outro.
da história com o objeto e opera uma ação O sofrimento introduz a idéia do devir-outro
de desinvestimento, fazendo retornar, tem- porque, segundo José Gil, ”tornar-se radical-
porariamente, a libido para si. Essa retirada mente outro significa sentir as sensações de
da libido do mundo externo promove o seu um outro, viver as sensações de um outro,
empobrecimento. O sofrimento produz uma viver as sensações-outras, fazer suas manei-
alteração no eu, mas a elaboração pelo luto ras estranhas de sentir” (apud Falcão Neto,
proporciona o devir-outro, ou seja, a elabo- 1998, p. 43), mas o interessante é que tudo
ração revela a alteridade em mim. Segundo isso se passa no interior de um eu. Porém
Denis Vasse, “... a alteridade do sujeito se re- não é necessário a experiência do sofrimen-
vela através da ferida que altera nossa ima- to para viver as sensações de um outro, por-
gem” (1983, p. 30). A vivência do sofrimen- que o outro-alteritário é constitutivo do su-
to pode modificar nossas vidas, desvelando jeito. A psicanálise apresenta o conceito de
uma imagem de nós mesmos que não conhe- sujeito cindido; desta forma, o princípio da
cíamos. Assim, uma vida sem sofrimentos se alteridade se concretiza na experiência ana-
perderia na condição mortífera da lítica por meio da idéia dos dois grandes sis-
mesmidade, pois dela estaria ausente a pos- temas psíquicos, o Inconsciente e o Pré-
sibilidade de construir devires-outros a par- consciente/Consciência.
tir da dor. A garantia de nossa identidade Assim, o trabalho de luto possibilita a expe-
está na alteridade externa e interna, pois riência da alteração que anuncia a possibi-
nossa identidade se mantém, paradoxal- lidade do devir-outro, ou seja, da alteridade
mente, na possibilidade de tornarmo-nos como uma saída de vida, um lançar-se para
outro. O humano é marcado inevitavelmente uma imagem escondida de nós mesmos.
pela desproporção. Entretanto, quando o desfazer das associa-
Na relação com o objeto do desejo e/ou da ções instala um empobrecimento no eu, uma
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escolha amorosa, o outro comparece porque hemorragia interna que promove um escoa-
é só por meio da sua mediação e presença mento de energia, fragilizando o próprio eu,
que o objeto entra no circuito das relações o sofrimento não possibilitará a emergência
humanas. Mas a perda desse outro-objeto da imagem escondida, e não teremos a vi-
revela a presença do outro-narcísico e do vência do devir-outro. De acordo com
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outro-alteritário no cerne dessa relação. A Vasse:


escolha do objeto é atravessada pelas vicis- Se o inevitável sofrimento deixa de ser o lugar
situdes históricas do outro-alteritário e pelas da abertura do sujeito para o Outro, ele encer-
buscas narcísicas representadas pela figura ra esse sujeito na nostalgia do objeto perdido:
do outro-narcísico. No luto, acreditamos que o sofrer se confunde, então, com o sentimen-
ocorra um reconhecimento desse horizonte to que é mantido de perda, no lamento estéril
e, por isso, realizado o trabalho de desliga- de um passado que deve ser recuperado para
mento, o sujeito pode quebrar a sua identi- satisfazer o sentimento de existir. (1983, p. 31)

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O sujeito que nega a experiência de alteri- alteridade, recusa o horizonte/limite e se
dade introduzida pelo sofrimento não exis- perde nessa atitude defensiva, tornando-se,
te, ou seja, não sai de si para tornar-se pois, um estranho para si mesmo. A rejeição
quem é, não vivencia o devir-outro, a sua da dimensão da alteridade, ou melhor, da fi-
“existência” está comprometida com o que gura do outro-abstrato, via recusa da perda,
seria a “morte da mesmidade”. Na melanco- conduz o melancólico à vivência patológica
lia, os desligamentos necessários após uma de ser habitado por um outro completamen-
perda são vivenciados como uma hemorra- te estranho, devorador e incontrolável. Não
gia que não se estanca, e com a qual o eu queremos nos comprometer na afirmação de
se empobrece num sangramento contínuo. que a melancolia representaria uma forma
“No luto, é o mundo que se torna pobre e de psicose, mas apreciamos a saída freudia-
vazio; na melancolia, é o próprio ego” na que pensa a melancolia como uma neu-
(Freud, 1917[1915], p. 278). O sujeito com po- rose narcísica, diferente das psicoses e das
tencialidade melancólica identifica-se com o neuroses de transferência. Segundo Freud
outro-objeto perdido, no afã imaginário de (1924[1923]), as neuroses apresentam um
evitar a perda, tornando-se, pois, um estra- conflito entre ego e o id, as psicoses do ego
nho para si mesmo. Observamos a substitui- com o mundo externo e as neuroses narcí-
ção de um investimento objetal por uma sicas do ego com o superego.
identificação oral, “... a sombra do objeto cai Podemos presumir que tem de haver também
sobre o ego”. O empobrecimento egóico do doenças que se baseiam em um conflito entre
melancólico, as suas auto-recriminações, a o ego e o superego. A análise nos dá o direito
diminuição da auto-estima e a insatisfação de supor que a melancolia é um exemplo típi-
consigo mesmo podem ser compreendidos co desse grupo, e reservaríamos o nome de
como uma atitude de agressão contra o ob- psiconeuroses narcísicas para distúrbios des-
jeto perdido, mas a incorporação deste, por se tipo. (Freud, 1924[1923], p. 192)
meio da identificação, de certa forma preser- As figuras do outro-objeto e do outro-narcí-
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va o objeto externo, mas também concentra sico aparecem na melancolia superpostas


toda a raiva e agressividade no objeto inter- em um só objeto, a saber, o eu. O sofrimen-
nalizado e identificado com o próprio ego. to que faz vacilar nossas referências, no
Segundo Freud: melancólico torna-o prisioneiro de sua pró-
pria dor. O melancólico se aliena e se perde
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Se o amor pelo objeto – um amor que não


pode ser renunciado, embora o próprio obje- na identificação, na incorporação do objeto
to o seja – se refugiar na identificação narci- pelo eu. Não teremos, pois, a vivência de
sista, então o ódio entra em ação nesse obje- uma dimensão maior de alteridade, pois, na
to substitutivo, dele abusando, degradando-o, melancolia, o outro é especular, o duplo de
fazendo-o sofrer e tirando satisfação sádica de si mesmo, expressa uma modalidade de figu-
seu sofrimento. (1917[1915], p. 284) ra de outro-narcísico que não reconhece o
A experiência de sofrimento do melancóli- horizonte da castração. O melancólico se
co sutura a abertura para uma dimensão de perde, não reconhece a si mesmo, sente-se
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como um estranho para si mesmo. A idéia de de passam a ser estranhos a ele, já que o so-
uma identificação narcísica na melancolia é frimento não quer dizer nada além da sua al-
perfeita, pois remete-nos ao mito de Narci- teração. (1983, p. 33)
so que é aquele que já está morto antes O outro-alteritário do melancólico expressa
mesmo de se precipitar nas águas. Narciso uma estrangeiridade mortífera para o sujei-
não vivencia a experiência da alteridade, to. Com a introdução do conceito de pulsão
salvo a experiência de ser um duplo de si ou de morte e o domínio da perspectiva da re-
um outro que visa como objeto o próprio eu. petição, Freud (1924) anunciará a hipótese
Narciso é prisioneiro da mesmidade de que o ego tem uma intrigante inclinação
alienante de sua própria imagem, mas a pri- para o masoquismo. No sofrimento do me-
são na mesmidade não aponta para uma lancólico, parece-nos que estão presentes
compreensão de si, nem é uma forte expe- tanto uma dor masoquista quanto um prazer
riência de identidade. Narciso vive a cisão sádico, dor e prazer alcançados por meio da
de ser outro, um outro especular que é o auto-recriminação e da exposição perante os
prenúncio da morte, pois nele não há a se- outros. O outro comparece nas amarguras
paração do “mesmo”. Na melancolia, o da vivência melancólica, mas a recusa ao ho-
sujeito é invadido pelo outro, atravessado rizonte da alteridade revela a face terrível e
pela dor, e perde-se sem a possibilidade de estranha desse outro.
transformar essa dor em uma experiência Na melancolia, o outro-narcísico remete à
de encontro com a alteridade interna e questão da escolha narcísica como aquela
externa. Acreditamos que o melancólico que desconhece a dimensão do outro-abs-
realiza escolhas narcísicas que rejeitam trato, como aquela que, na melancolia, co-
os limites impostos pela castração. O ou- loca-se sob a insígnia da negação da alteri-
tro-narcísico que comparece na melancolia dade. Enquanto que no luto o outro-narcísi-
está ligado à busca do eu ideal, por isso visa co comparece como a busca do “ideal do eu”
um objeto que pode ser assimilável a si (Ichideal) e submetido, portanto, ao reco-
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mesmo. A perda do objeto, na realidade, pro- nhecimento da figura do outro-abstrato. Po-


picia o processo de assimilação do objeto e demos pensar em duas modalidades de des-
este pode ser reduzido porque a dimensão dobramento do outro-narcísico: o “ideal do
constitutiva do outro-abstrato foi recusa- eu” (Ichideal) expressa uma busca fundada
da. Existe o outro na melancolia; este outro, no outro-narcísico, mas nele há o reconhe-
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entretanto é especular, ou seja, situa-se na cimento do outro-abstrato e, assim, a alte-


dimensão da mesmidade. Segundo Vasse: ridade é percebida como constitutiva do eu
e irredutível; o da busca pautada pelo “eu
O segredo do homem é o desejo do Outro.
Mas, se ficar preso nas redes de uma estrutu- ideal” (Idealich), em que a alteridade é visa-
ra que pode, imaginariamente, reduzi-lo ao da para a devoração, para a redução do ou-
Mesmo, o homem perde seu segredo; e, numa tro ao mesmo do eu. Desta forma, faz-se
conformidade cada vez mais mortífera, suas necessário sempre perguntar qual é a moda-
imagens, seu próprio nome e até sua identida- lidade de desdobramento do outro-narcísico,
>41
como ele comparece na relação, pois o ou- Obras Psicológicas Completas de Sigmund
tro-narcísico referente ao “ideal do eu” re- Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. v. I.
presenta um grau mais elevado de respeito _____ (1917[1915]). Luto e melancolia. Edição
à alteridade do que aquele que busca orien- Standard Brasileira das Obras Psicológicas
tando-se pelo “eu ideal”. O outro compare- Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
ce, de certa forma, na busca determinada Imago, 1974. v. XIV.
pelo “eu ideal”, mas com pouca densidade de _____ (1924[1923]). Neurose e psicose. Edição
alteridade, pois o que se busca é apenas o Standard Brasileira das Obras Psicológicas
duplo de si mesmo, aquele objeto que pode Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
ser facilmente assimilável. Imago, 1974. v. XIX.
Assim, a dimensão alteritária está intrinse-
GIL, José. Fernando Pessoa ou a metafísica das
camente presente na vivência de perda do sensações. Relógio Dadua, s./d.
objeto na medida em que essa experiência
MOREIRA, J.O. Figuras de alteridade no pensa-
de sofrimento leva o sujeito ao encontro do
mento freudiano. São Paulo: PUC, 2002 (Tese de
outro que habita seu ser. Esse encontro
doutorado).
pode ser produtivo, como no luto, que pos-
sibilita a vivência de devires-outros. Mas PLATÃO. Sofista. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
pode ser mortífero, como na melancolia, que (Os Pensadores).
conduz o sujeito a se perder em um outro REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga:
devorador. Platão e Aristóteles. São Paulo: Paulinas, 1990.
SEVERINO, Emanuele. A Filosofia Moderna. Lisboa:
Referências Edições 70, s./d.
BERGSON, H. O pensamento e o movente. São Vasse, D. O peso do real – o sofrimento. Rio
Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os Pensadores) de Janeiro: Revinter, 1999.
FALCÃO NETO, José Leão Marinho. Transformações
da subjetividade em Castañeda. Psique (revis-
pulsional > revista de psicanálise > artigos

ta do Unicentro Newton Paiva). Belo Horizon-


te, n. 13, nov. 1998, p. 30-46.
FREUD, S. (1950[1895]). Projeto para uma psico- Artigo recebido em outubro de 2003
logia científica. Edição Standard Brasileira das Aprovado para publicação em fevereiro de 2004
ano XVII, n. 179, setembro/2004

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