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Luto e melancolia:
uma leitura sobre o problema da alteridade
Nas reflexões sobre o trabalho do luto e so- relações intersubjetivas são atravessadas
bre a saída melancólica parece-nos decisiva por diferentes figuras de alteridade. Não
a discussão sobre o encontro com a proble- existe apenas uma relação com o outro, mas
mática da alteridade. Acreditamos que as diferentes possibilidades de encontros e de-
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sencontros com a alteridade. Parece-nos objeto” enquanto dispositivo propulsor do
possível pensar a categoria de alteridade desejo.
como um complexo sêmico de múltiplas de- Pretendemos, pois, refletir sobre a presen-
rivações semânticas e com diferentes graus ça de algumas dessas diferentes figuras de
de comparecimento do outro, sendo que es- alteridade na cena amorosa, revelando a
sas diversas figuras de alteridade podem escala de afirmação ou negação da presen-
ser pensadas como causas do sujeito, ou ça do outro, não esquecendo que, em última
seja, o sujeito emerge a partir da incidência instância, a alteridade não pode ser negada,
do outro. Construímos uma escala de mani- pois apresenta-se como um limite intranspo-
festação da alteridade composta por seis nível, para usar a expressão freudiana,
figuras (cf. Moreira, 2002) que podem, evi- como um rochedo da castração. A dimensão
dentemente, se multiplicar. Denominamos a de alteridade expressa na figura do “outro-
figura com máxima presença da alteridade abstrato” é recusada na psicose e renegada
de “outro-abstrato”, traduzida pela verdade na perversão, mas a Lei, o limite, reaparece
da castração. A segunda forma refere-se ao e se impõe no sintoma, introduzindo uma
“outro-pessoa”, importante elemento nas perspectiva mortífera para o sujeito. O me-
discussões éticas. O “outro-alteritário” repre- canismo de recusa e/ou renegação do outro-
senta a terceira manifestação da alteridade; abstrato traz diversas conseqüências para a
trata-se de uma modalidade que combina di- relação entre o eu e as figuras de alterida-
mensões abstratas ou simbólicas com a de. Porém, esse tema transcende os objeti-
experiência do sujeito, que pode ser encon- vos desse artigo, pois pretendemos pensar
trada nas noções de Inconscientes, as vicissitudes dessas figuras de alteridade
Superego e Id. O “outro-transferencial” apa- na trama amorosa.
rece como quarta forma de alteridade, que A problemática da escolha amorosa coloca
também combina dimensões concretas e em cena diversas figuras de alteridade, como
simbólicas, pois depende da presença de as de outro-pessoa, outro-objeto e outro-
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uma outra pessoa para desencadear o pro- narcísico, mas também o término da relação
cesso de transferência. Na quinta figura, amorosa reedita os dilemas presentes no
teremos o “outro-narcísico”, que aparece encontro entre o eu e o outro. Supomos que
como uma exigência interna da teoria psica- a perda do objeto amado evidencia que este
nalítica, mais precisamente da teoria sobre se constitui primordialmente como um ou-
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rior do próprio eu mediante uma experiên- intencional, não nos interessam aqui as
cia de dor, sendo que nessa dimensão assis- suas causas sociais, mas o seu impacto no in-
tiremos a um desdobramento da problemá- terior do eu e suas conseqüências, tanto na
tica. dimensão identitária quanto na problemáti-
A experiência de dor, quando elaborada, ca da alteridade.
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conseqüência é que o ser conhecido sofre Quebra-se, portanto, a imobilidade do Ser par-
esta ação, pois enquanto é conhecido será menidiano. Entretanto, a filosofia platônica
movido logicamente. Ora, negar que o co- promove uma aliança indissolúvel entre a
nhecimento seja uma ação é cair num dile- alteridade, o tempo e o movimento, de um
ma: se tudo for imóvel, ninguém poderá sa- lado, e associa, por outro lado, o mesmo, a
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ber nada. Como poderemos dizer que o ab- identidade, e o espaço. Assim, podemos con-
soluto possui inteligência, mas não possui cluir que a identidade é uma relação de con-
vida, ou é imóvel? O movimento é indispen- tinuidade que só pode ser percebida pelo
sável para o conhecimento. Mas, por outro fundo da variação e, portanto, o mesmo evo-
lado, se admitirmos que tudo se movimenta ca o outro, e a identidade, a diferença.
e se altera incessantemente, que não há Parece-nos, apesar de tudo, que a tradição
qualquer estabilidade, então, pela força des- platônica reconhece o outro por meio da re-
te mesmo argumento, teremos que privar o dução ao mesmo, ou evoca o tempo median-
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te a espacialização. Haveria uma enorme di- outro-alteritário que habita em nosso ser: o
ficuldade de trabalhar com a ruptura, com o nosso inconsciente. No outro-alteritário en-
devir, com o imprevisível. E é essa a denún- contramos diferentes caminhos na forma
cia que faz Bergson em ”O pensamento e o das marcas de nossa história. A dor abre
movente”: passagem para percorrer esses “sulcos”, re-
A inteligência retém apenas uma série de po- velando, pois, verdades veladas pelo tempo.
sições: um ponto primeiramente atingido, de- O outro-alteritário sempre se fez presente
pois outro, depois outro. [...] Nossa ação ape- nas nossas relações e escolhas, mas muitas
nas se exerce comodamente sobre pontos fi- vezes somos arrastados e conduzidos de
xos; é, então, a fixidez que nossa inteligência uma forma em que não nos reconhecemos.
busca; ela se pergunta onde o móvel está, onde O sofrimento pode nos revelar a face fami-
o móvel estará, onde passa. [...] Abandonemos liar do estranho em nós. O encontro com
esta representação intelectual do movimento, nosso outro-alteritário desvela as relações e
que o desenha como uma série de posições. as expectativas construídas pelo outro-nar-
(Bergson, 1934, p. 103)
císico e que muitas vezes irão nos conduzir
Acreditamos que é a experiência do sofri- inevitavelmente para a frustração. Por ve-
mento que quebra a estabilidade do espaço zes buscamos nas relações algo impossível,
e a tranqüilidade do mesmo por meio da in- construído a partir da lógica do outro-narcí-
trodução do outro, da diferença, e do tempo. sico, uma esperança de completude. É nes-
O sofrimento seria uma ruptura no tempo, se sentido que a experiência da perda pode
um recorte no espaço que, ao produzir a rit- abrir espaços para a construção de uma
mização, introduz uma discussão sobre a pre- nova figura de alteridade, para além do des-
sença do tempo e do outro no seio do Ser. O velamento do outro-alteritário e dos desejos
sofrimento seria uma experiência de ruptu- narcísicos de completude, pode revelar um
ra no mesmo, uma fenda no tempo, uma cri- outro de nós mesmos, não apenas como ou-
se no interior da identidade, que inscreve tro-alteritário e muito menos como percep-
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escolha amorosa, o outro comparece porque hemorragia interna que promove um escoa-
é só por meio da sua mediação e presença mento de energia, fragilizando o próprio eu,
que o objeto entra no circuito das relações o sofrimento não possibilitará a emergência
humanas. Mas a perda desse outro-objeto da imagem escondida, e não teremos a vi-
revela a presença do outro-narcísico e do vência do devir-outro. De acordo com
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O sujeito que nega a experiência de alteri- alteridade, recusa o horizonte/limite e se
dade introduzida pelo sofrimento não exis- perde nessa atitude defensiva, tornando-se,
te, ou seja, não sai de si para tornar-se pois, um estranho para si mesmo. A rejeição
quem é, não vivencia o devir-outro, a sua da dimensão da alteridade, ou melhor, da fi-
“existência” está comprometida com o que gura do outro-abstrato, via recusa da perda,
seria a “morte da mesmidade”. Na melanco- conduz o melancólico à vivência patológica
lia, os desligamentos necessários após uma de ser habitado por um outro completamen-
perda são vivenciados como uma hemorra- te estranho, devorador e incontrolável. Não
gia que não se estanca, e com a qual o eu queremos nos comprometer na afirmação de
se empobrece num sangramento contínuo. que a melancolia representaria uma forma
“No luto, é o mundo que se torna pobre e de psicose, mas apreciamos a saída freudia-
vazio; na melancolia, é o próprio ego” na que pensa a melancolia como uma neu-
(Freud, 1917[1915], p. 278). O sujeito com po- rose narcísica, diferente das psicoses e das
tencialidade melancólica identifica-se com o neuroses de transferência. Segundo Freud
outro-objeto perdido, no afã imaginário de (1924[1923]), as neuroses apresentam um
evitar a perda, tornando-se, pois, um estra- conflito entre ego e o id, as psicoses do ego
nho para si mesmo. Observamos a substitui- com o mundo externo e as neuroses narcí-
ção de um investimento objetal por uma sicas do ego com o superego.
identificação oral, “... a sombra do objeto cai Podemos presumir que tem de haver também
sobre o ego”. O empobrecimento egóico do doenças que se baseiam em um conflito entre
melancólico, as suas auto-recriminações, a o ego e o superego. A análise nos dá o direito
diminuição da auto-estima e a insatisfação de supor que a melancolia é um exemplo típi-
consigo mesmo podem ser compreendidos co desse grupo, e reservaríamos o nome de
como uma atitude de agressão contra o ob- psiconeuroses narcísicas para distúrbios des-
jeto perdido, mas a incorporação deste, por se tipo. (Freud, 1924[1923], p. 192)
meio da identificação, de certa forma preser- As figuras do outro-objeto e do outro-narcí-
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