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Incompletude

e
Tematizações do Real

Cé{io (jarcia
A psicanálise mas,igualmente, dado que a ciência mesma se repensa
a teoria do conhecimento,estão espe­ como projeto formalizante (com Fre-­
cialmente implicadas nesta coletânea ge-- Russell, Gõdel, Lukasiewicz e ou­
de Célio Garcia. Toma- se bastante tros), serve a uma discussão incisiva
delicado o problema de saber que di­ sobre o ser de saber que a experiência
reção,que horizonte estes ensaios nos de Freud inaugura.
apontam,tal sua incandescência. Es­ Também o ensino de Lacan é
critos para diferentes compromissos considerado em sua vertente mais
de exposição,têm no entanto um con­ crucial neste momento. Ensino noto­
torno comum embora não linear ou, riamente radical, que fez avançar a
se quisermos usar um termo do pró­ psicanálise até ao "escândalo semân­
prio texto, digamos que os ensaios tico" de que nos fala Andréa Loparic,
guardam entre si uma identidade in­ e que hoje se mostra impactado pelo
comensurável. axioma lacaniano de que o analista
É na circulação de conceitos autoriza-se a si mesmo.
como a equivocidade, a incompletu­ Lanço esta consideração apenas
de, o impossível e o real, tendo por como indicativo de um tratamento
contraponto o estilo cortante de escri­ lógico para o problema. .
tura que é a marca do autor, estilo a E finalmente, ao endereçar os
um só tempo cuidado e imprevisto, modelos de saúde pública a urna con­
que nos livra da sonolenta ascese aca­ frontação com a "democracia radi­
dêmica aí reconhecemos temas fun­ cal", esta que se apóia em sua radical
damentais para qualquer debate que impossibilidade, mais se anima de
se trava hoje no campo desse "saber uma vitalidade explosiva o texto de
que a modernidade se permitiu", a Célio Garcia. É quase uma teoria da
psicanálise, e também naquele de cultura que aí se consigna. Do passo
uma filosofia da ciência. elementar que consiste em questio­
A lógica,clássica e não-clássica, nar o modelo assistencial na sua faná­
comparece a cada termo da argumen­ tica inapetência pela questão do
tação,legitimando em seus impasses sujeito, até ao ponto de vislumbrar
uma mutação na qualidade do saber, uma política pensável não- unificada,
experimentando o impossível numa entre o estranho e o acontecimento,
dimensão que hoje toma insuficiente percebemos um trajeto que convida a
mesmo uma reflexão anteriormente uma interrogação da própria idéia de
robusta como a do chamado "corte uma cidadania brasileira, na sua ina­
nição quanto à estratégia ruidosa dos
·

epistemológico".
Os resultados desse trabalho, técnicos no comércio dos bens de saú­
com relação à psicanálise, não são de.
menos instigantes. A heterogeneida­ Não se trata apenas de leitura
de entre os discursos da lógica e da interpretativa. Esses ensaios mere-­
psicanálise,a partir do que o materna cem sensível aproximação.
não é mais o porto seguro das aspira­
�Oes de cientificidade freudiana, Amancio Borges de Medeiros
Incompletude
e
Tematizações do Real

Cé{io Çjarcia

Editora
Tahl

T@íbhoteta jf reullíana
Edição em colaboração com o
Simpósio do Campo Freudiano

Editora Tahl
Rua Pouso Alto 252 A
30 240 Belo Horizonte Minas Gerais
APRESENTAÇÃO

Apresento a seguir uma série de textos, recentemente


escritos. Ao reuni-los para dar a público, já que o Simpósio
me oferecia essa oportunidade, percebi uma certa unidade
entre eles. Cada um detinha um pedaço de algo em tomo de
que eu tinha caminhado nesses últimos seis meses. Tinha eu
trabalhado sobre a incompletude e uma certa tematização
do real. Assim pude dar título ao conjunto. Em seguida
organizei cada parte; a cada uma dei um subtítulo, o que
contribuiu para estruturar o que até então eram partes
distintas, resultados obtidos ao atender solicitações e con­
vites.
Para a primeira parte, fixei-me num capítulo que estava
bem andiantado na minha mesa; trata-se de um trabalho
mais longo que vai de Descartes a Frege, em seguida Hilbert
e Goedel, para chegar a Freud e Lacan. Um dia, quem sabe,
dou uma versão mais longa incluindo os autores que hoje
deixo de fora. Mas, este capítulo nos introduz no âmago da
questão, pelo menos na vertente da Lógica e da Filosofia.
Ainda nesse capítulo, para fazer menc;ão de uma outra linha
de pesquisa e reflexão, como não poderia deixar de ser,
trabalho com a Psicanálise própriamente dita. Desta vez,
retomo ó viés do discurso e do fantasma para acompanhar
Lacan no seu esforço de formalização (numa época precoce
da sua longa trajetória); vou ao seminário "Lógica do fantas­
ma". Não quero resumir aqui as citações e elaborações a que
cheguei, mas a harmonia das proporções tão apreciada
pelos gregos, o "numero de ouro", a "sec;ão dourada", a
"divina proporção" (Tudo isso fartamente documentado no
livro de Matila Ghyka "Le nombre d'or") parecia sugerir a
completude, enquanto o Dr. Lacan procurava dar conta de

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ano Garcia

algo que não se prestava à completude, nem à sutura, a saber


o objeto (a).
Numa segunda parte voltei às razões da Razão. Com
isso registrei o que parece ter sido a conquista da Filosofia
durante os últimos dois séculos. Não me demorei (deixei de
fora uma extraordinária aventura documentada por Moni­
que David-Ménard em se tratando de Kant, ou seja, seu
"encontro infeliz" com Swedenborg, um visionário objeto de
comentários no período anterior à Crítica) para logo aportar
na retomada da questão por Freud, por Lacan.. e por Serge
.

Leclaire.
Ainda nessa ll Parte intitulada ''Razão e possibilidade",
inclui um comentário que havia preparado para o livro de
Antonio Quinet, "As 4 mais uma condições da Análise". Até
dei título ao capítulo. Também, vejam só, o viés que tomei
na resenha do livro servia maravilhosamente para dar corpo
à discussão qu.e eu esboçava.
Ou seja, comentando as passagens de Quinet, eu havia
tratado de cotejá-las com o problema da possibilidade, pro­
blema clássico da Filosofia. Quais são as possibilidades das
condições? havia eu indagado.
Para a terceira parte, cheguei mais perto. Tratei de
tematizar o real: o real ao nível do mal estar, o mal estar entre
nós, o real em se tratando de um problema específico sobre
o qual eu havia sido chamado a intervir, precisamente,
''Psicanálise e Instituição Pública de Saúde". Não posso
deixar de dizer uma palavrinha sobre esse ultimo tópico.
Em primeiro lugar, considero-o de grande relevância para
nossa pratica ao nível da política. Inicialmente havia sido
convidado por Raquel, uma colega sensacional de Vitória,
para levar conferência e curso por ocasião do ll Congresso
de Psicologia de Vitória. Falei durante quinze horas em dois
dias. Tive uma afonia cruel,mas valeu.
Esse relatório já mereceu um comentário de Amancio
Borges; darei a público esse comentário. Três ou quatro

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Incompletude e Tematizac,;ões do Real

leitoras já se pronunciaram pela importância pratica da


proposta. Quero crer que o discurso sustentado pelo tera­
peuta psicanalista ou não, teria que se renovar, encontrando
inserções cruciais na pratica política próxima e vizinha de
cada posto avançado em cada bairro de periferia. Vamos à
leitura, e trabalho!

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Nota sobre a Incompletude

A ciência sempre esteve comprometida com a possibi­


lidade de previsão. Uma lei científica nos permite prever. A
rigor, poderíamos dizer que não havia lugar para a decisão,
pois que tudo estava previsto. Os sistemas a que se refere
esta abordagem científica evoluem segundo uma trajetória
a qual podemos traçar.
Em nossa contemporaneidade a ciência se ocupa de
sistemas que não apresentam tal comportamento. Aqui não
é possível previsão, tal como nos casos anteriores. A esses
sistemas damos o nome de sistemas caóticos.
Por outro lado, sistemas formais ao serem examinados
pelos lógicos também se revelaram incompletos. Foi possí­
vel definir formalmente a noção de indecidibilidade e in­
completude. Certas teorias em campo onde o rigor é de
norma, apresentam características, melhor dizendo, sen­
tenças corretamente formadas, porém indecidíveis.
Sentenças indecidíveis são pois, encontradas em teo­
rias incompletas.
Esses resultados promoveram um grande numero de
pesquisas; a variedade dos sistemas examinados cresceu.
A idéia de incompletude veio a se impor em numerosos
campos e discursos científicos. Há mesmo um caso a ser
assinalado quando o sistema apresenta duas alças, poden­
do se dirigir tanto para uma como para outra. Estaríamos
aqui retomando a noção de decisão? Seria o caso de dizer­
mos que o sistema escolheu, se decidiu por um dos ramos
da alternativa? Não respondo pela afirmativa; porem é
augestlvo que a idéia de decisão reapareça. Lembro o caso


Incompletude e Tematizaçlies do Real

da bifurcação para deixar claro que o sistema permanece


caótico, se ele for, mesmo havendo realizado uma decisão
em determinado momento de sua evolução. Não pensem
vocês que o sistema deixou de apresentar incompletude,
uma vez ultrapassado aquele momento de decisão. Lá na
frente haverá outras bifurcações.
A incompletude foi assim, nesses últimos anos,objeto
de pesquisa; há um verdadeiro saber sobre a incompletude.
Não pensem que a ciência ficou paralisada diante dos im­
passes da incompletude.
Ora, a Psicanálise conhece a incompletude; foi precisa­
mente jacques Lacan quem trabalhou com essa idéia duran­
te trinta anos de sua pesquisa. Sendo dadas as
características de seu objeto de estudo, ele formulou os
resultados que ele encontrou em termos que ele mesmo
forjou. Acresce que a Psicanálise produz um saber sobre a
incompletude tal como ela a encontra. Vamos ver como tudo
isso ficou nos textos que se seguem.

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P9UM�I1(fll P�PE
I9{ÇOMP.L�Pl1'1YE
1 - Incompletude do Simbólico

Seria um sistema simbólico, estritamente unívoco, ca­


paz de dar conta da diversidade do sensível, sem apelo a
elementos exteriores? A resposta a essa pergunta nos levará
de Descartes a Frege; atendendo a uma outra linha em
convergência com esta primeira, examinaremos a fratura
introduzida por Freud com o inconsciente, na medida em
que a descoberta freudiana está inscrita na ordem racional,
ordem esta fraturada de maneira intrínseca e constitutiva.
Assim a tradição filosófica, a lógica tanto quanto a Psicaná­
lise produzem um saber em tomo desta incompletude que
lhes é comum.

1.1 Da equivocidade à univocidade; a analogia.

Enquanto havia uma doutrina da analogia, havia uma


ponte entre a criatura finita e o deus infinito. Graças a
aproximação, já por meio da participação, criador e criatura
podiam estar entendidos sob uma denominação comum. A
analogia a quem cabia o encargo da equivocidade preenchia
assim sua função, sabendo-se que a racionalidade estava do
lado dos atributos divinos; a racionalidade que governa o
discurso dos homens sendo um reflexo, uma sombra da
primeira, contava ela com inegável comunidade formal com
esta primeira. Deus nesta ordem analógica havia feito o
homem à sua imagem. Este continuum foi quebrado por
Descartes.
. Jean-Luc Marion retomando Suarez em "Sur la théolo­
gie blanche de Descartes" 1988, adianta que em vez da
equivocidade divina passamos a ter a univocidade.
Univocidade do saber- conseqüência imediata da ma­
tematização - produz univocidade do ser.

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Incompletude e Tematizações do Real

Dois fatores, 1. revisão do pensamento tomista sobre a


analogia, o que resultou em abandono da equivocidade, 2.
primado da matematização, marcam o saber em vias de
elaboração no final do Sec. XVI/ inicio do Sec. XVII.
A distancia entre saber e compreender estabelecido por
Descartes já em "Regles pour la direction de 1' esprit" permite
abordar a relação com Deus de maneira onde não se faz
necessário equilíbrio assegurado pela analogia; já não é mais
a natureza da relação com Deus que se faz importante, mas
a capacidade do espírito.
Enquanto Santo Anselmo tentava a todo custo pensar
o impensável, Descartes se contentava em saber que ele não
compreendia. O tempo de "eu não compreendo" vale como
certeza para o primeiro tempo quando "eu sei".
Se queremos que o saber seja outra coisa além de um
aglomerado de opiniões, necessário se faz um principio a
ler encontrado não no ser indefinidamente diversificado
das coisas, mas na unidade do sujeito. Essa invenção do
uber parte de uma dissemelhança radical entre o que o
•pírito concebe e a coisa. Por seu turno,
a linguagem implica que o caráter arbitrário do signo é
fundador de sentido.
Nem Descartes, nem Leibniz teriam conseguido verifi­
car a cada passo o programa por eles delineado; uma vez
deslanchado o programa, o sucesso do saber cientüico não
permitiu que se pusesse em dúvida este maravilhoso instru­
mento. Somente quando esta cientificidade triunfante mos­
trou-se incapaz de responder às suas próprias exigências,
veio a ser colocada a questão da consistência deste saber;
mais uma vez o que movia a nova tentativa era a paixão de
se chegar a uma perfeita univocidade.

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Célio Garcia

Analogia
A modernidade que separa a teologia radonal (metafí­
sica) da teologia revelada, de Descartes a Kant, permanecerá
determinada por uma questão - a analogia- própria à Teo­
logia cristã. Assim a questão da analogia sobrevive às dou­
trinas da analogia. Quanto a Mersenne, Kepler e Galileu, a
necessidade de uma leitura matemática do mundo físico,
lhes levava a falar de um "Deus matemático", portanto
admitir univoddade das verdades matemáticas.
Quanto a Descartes, sua recusa da univocidade o lev�
a reformular a questão da analogia a partir de um novo
léxico, o seu, dominado pelos pares finito/infinito, cria­
do/increado. Se a questão da analogia é o inicio de uma
primeira investigação, ocasião em que Descartes critica a
univocidade, necessário se faz uma segunda etapa em que
ele tenta sem ajuda da univocidade nem da analogia, asse­
gurar-se de um certo saber, necessário se faz dar margem à
questão do fundamento. A passagem se faz da analogia ao
fundamento.
A passagem caracteriza sem dúvida o nascimento da
modernidade: encerra-se a questão da analogia como me­
diação do saber e do absoluto , abre-se a investigação sobre
o fundamento, em termos de relação sem mediação nem
continuidade do saber frente ao absoluto.
No entanto, temos que anotar : as Meditações admitem
somente em parte a suficiência do Ego como fundamento;
ainda é a essência de Deus em ultima análise o fundamento.
A tendência à univocidade que caracteriza, ainda que em
sentidos düerentes, Spinoza, Leibniz, os opõe à tensão car­
tesiana tendente à eqú.ivocidade.

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Incompletude e TematizaçOes do Real

De fini ç õe s
Definição cartesiana de não-univocidade - "nulla ejus
nominus significatio potest distincte intelligi, quae Deo et
criaturis sit comrnunis" o que reproduz a definição escolás­
tica.
Finalmente São Tomás - "nihil univoce de Deo dici
possit et de creatura"; uma outra hipótese seria : os nomes
se dizem de Deus e das criaturas segundo a analogia, isto é,
a "proportio". Nada se pode dizer de forma unívoca, de
Deus e da criatura.

1.2 Frege: unicidade do domínio referente a uma


função. Equinumericidade.
O conteúdo(Frege); Boole e a forma na Lógica
Clássica.
Russel e os paradoxos

Em "Ideografia, uma língua formal para o pensamento


puro, a partir do modelo da aritmética", ao fazer sua pro­
posta Frege considera o signo um instrumento que aumenta
nossa capacidade de ação; graças a ele, fazemos uso do
sensível para escapar de suas limitações. "Os signos tem,
para o pensamento, a mesma importância que teve para a
navegação a idéia de se utilizar o vento para se ir contra o
vento".
Mas, se sabemos que os signos se organizam entre si,
a linguagem por seu lado, se revela insuficiente quando se
trata de corrigir, evitar as falhas de pensamento. A condição
primordial, a exigência aqui buscada, não serão satisfeitas:
vale dizer, a univocidade não será inteiramente satisfeita.
Notemos de passagem, a virada quanto a este termo - Des­
cartes também se batia por ela, mas por razões tanto meta­
físicas quanto técnicas; Frege, para quem univocidade
remete a bi-univocidade, pretende recusar o equivoco na

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Célio Garcia

ordem da significação. (Deus podia gozar de equivocidade,


pois graças à analogia, o criador tinha vários nomes)
Frege pretendia articular expressão e conteúdo, assim
ao defender seu sistema, fazia questão de se distinguir de
Boole, pois via neste ultimo ainda uma parte dé intuição; as
propriedades dos objetos intuitivos poderiam a qualquer
momento introduzir distorções no rigor das demonstrações
formais. Veja-se de Frege "Ecrits logiques et philosophi­
"
ques p. 73- "a lógica de Boole consiste em revestir a lógica
abstrata com roupagens dos signos algébricos... esta lógica
não é aprópriada à expressão de um conteúdo... " Frege
pretende associar alguns signos por ele introduzidos a ou­
tros signos matemáticos numa única linguagem formal.
<Formelsprache)
Enquanto que para Descartes, cabia ao sujeito único
chegar à univocidade do saber, para Frege será a univocida­
de do Formelsprache que deve assegurar a univocidade da
ideografia.
Não se trata mais da questão da equivocidade de Deus
(problema que ocupou nossos teólogos durante todo perío­
do da Idade Média quando discutiam a questão da Alteri­
dade); agora será o intuitivo que vai ser expurgado em se
tratando do formal.
A Ideografia não será uma simples linguagem formal,
tal como a escrita de Boole ; aqui, os símbolos empregados
não serão nem vazios nem arbitrários, cada combinação
entre eles enviando a operações sobre o conteúdo. Já que há
isomorfismo entre o nível formal e o nível do conteúdo, o
formal pode ser tratado sem apelo ao conteúdo durante a
demonstração.
Graças aos textos "Sentido e denotação" e "Função e
conceito" Frege pôde estender os resultados obtidos em se
tratado da Aritmética para análise lógica da linguagem.
Assim a expressão "A capital do império alemão..." se d�
compõe em: A capital do..."- função sem menção de qual-
"

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Inoompletude e Tematizações do Real

quer valor intuitivo, acrescida de um argumento "império


alemão"; o todo fornece um valor de conteúdo: Berlim.
(Estamos em 1891!)
Não será mais o sujeito que deverá conter predicados
tal como na Lógica escolástica; agora o predicado, entendi­
do no sentido formal, estrito, de função, em outras palavras,
formula incompleta, não saturada, sai à procura de algo que
complete esta carência, algo capaz de satisfazê-lo. Ao final
teremos um valor de verdade. De um lado, teremos funções
(também chamados conceitos), do outro, objetos; o conteú­
do é dado por uma operação que associa a uma função um
argumento determinado.
O corte entre função e objeto assegura a homogeneida­
de e a univocidade da classe das funções; em Descartes, as
verdades eternas e a figuração permitem eliminar da Mat­
hesis a equivocidade transcendental e sua ambigüidade
mimetica com relação ao sensível.
No entanto, sabemos que a Linguagem Natural não
trabalha unicamente com seqüências não-saturadas, isto é,
funções como tal; nosso pensamento tem tendência a traba­
lhar com indivíduos, assim ele vai considerar como indiví­
duos o que Frege chamou objetos, vendo em cada um, uma
unidade de significação.

Emergência dos paradoxos


Em 1902 Bertrand Russell escreve a Frege para dizer
quanto ele apreciava o livro "Grundgesetze der Arithmetik"
(Leis fundamentais da Aritmética, vol.l, publicado em 1893)
especialmente quando todo e qualquer elemento psicológi­
co era rejeitado do campo lógico. Mas, (havia um
"mas")"there is no class (as a totality) of those class which,
each taken as a totality, do not belong to themselves."
Russell adverte Frege dizendo que ele já pensou assim,
mas que atualmente não considera correta esta formulação.

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Célio Garcia

Assim Russell dirá - "Let w be the predicate: to be a


predicate that caiUlot be the predicate of itself. Can w be
predicated of itself? From each the opposite follow." Trata­
se da famosa auto- referência, desde o cretense Epimenides
conhecida.

A Argumentação de Frege
Seja uma função F possuindo um domínio u que com­
preende x objetos para os quais a função F toma valor de
verdade; por outro lado, uma função G possui um domínio
v que compreende igualmente x objetos que verificam a
função G. Podem F e G ser totalmente diferentes, os objetos
de u e v podem ser totalmente diferentes, porém a "exten­
são" de ambos os domínios é numericamente a mesma. Não
precisamos conhecer o numero x para F e G; basta afirmar
a equinumericidade da extensão de F e G. Este ponto é
capital, pois foi a partir daí que Frege fundou sua definição
de numero cardinal. Para isso ele tem necessidade do con­
ceito "equinumericidade ao conceito F' (ou G); em outras
palavras, ele considera que o donúnio u, enquanto proprie­
dade intrínseca do conceito F, possui existência indepen­
d e n t e d o s objetos q u e ele s u b s u me. E l e é u m a
quase-entidade, não por razões metafísicas, mas porque ele
entra como um termo na igualdade que o liga a v, o que
permite a Frege fundar o conceito de numero x sem ter que
enumerar os x do domínio u.
Aqui entra o famoso predicado de Russell "que não
pode ser predicado de si mesmo". Frege insiste dizendo que
"urna noção é predicada por sua própria extensão" e susten­
ta que a "extensão" de um conceito pode se apresentar como
argumento, portanto vale como objeto, portanto é urna en­
tidade.
Vamos dar um outro exemplo - a função F "... é um
numero par". É evidente que a extensão desta função sendo

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Incompletude e Tematizações do Real

infinita não cabe perglllltar se ela é par ou impar. Por


conseguinte, ela não pertence enquanto objeto a ela mesma.
Por outro lado, a função G ".é um numero par compreendi­
do entre 2 e 12" é uma função cuja extensão (6) pertence a ela
mesma. Existe assim um numero considerável de predica­
dos que não podem ser predicados de si mesmo. Estes
predicados nos mostram que nestes casos a extensão, o
contra-dominio, o Wertverlauf não sendo um objeto do
domínio em questão, não vem a ser UM objeto constituído
por este predicado; assim ele não é tão UM como ironizou
Russell ao comentar Frege.
Conclusão - ficou arruinada a certeza de Frege quanto
à unicidade do domínio correspondendo a uma função.
Ora, para que um domínio possa ser dito equinumerico a
um outro (u=v), necessário se faz que cada um possa ser
considerado como uma entidade. Ficava arruinada a defini­
ção de numero cardinal; com ela contava Frege para livrar
a Aritmética da imprecisão em que ela se encontrava quanto
aos seus fundamentos. O sistema foi considerado não con­
sistente.
Russell vence a dificuldade, ao fazer uso de um concei­
to (predicado) tal que a extensão deste conceito, enquanto
objeto, não pertence a ela extensão.
1.3- O que aproxima Psicanálise e Lógica não será uma
suposta genealogia; podemos pretender uma convergência
de trabalhos e pesquisas. Ambas se inscrevem em ordens
heterogêneas de discurso.
Recentes contatos entre psicanalistas e lógicos, por oca­
sião de um seminário ou mesa redonda, revelam expectati­
vas logo frustradas, amuos que poderiam ser evitados.
Com Freud, o que entra em cena será a linguagem
natural; esta havia sido recusada por Descartes, Frege e
Leibnitz em função da equivocidade. Com Freud, o elemen­
to dinâmico da linguagem natural passa a ser assumido,

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Célio Garcia

pois só assim abordamos a montagem das manifestações do


inconsciente.

Lógica do fantasma
O lacanismo consiste em : de um paradoxo tirar um
axioma, pôde dizer Jacques-Alain Miller.
Da incomensurabilidade e do tratamento dado a ela
pelos gregos, Lacan tirou uma técnica de definição rigorosa
para o objeto "a ". Ver "Lógica do Fantasma" 26/ Abril
O modelo adotado foi a média e extrema razão ou
proporção. Justamente em se tratando de relação sexual, ele
vai provar que não tem jeito. Só se for na base da Lógica...
Termina seminário dia 1 2 de Abril dizendo- "La prochaine
fois que r irai foutre, il ne faudra pas que j'oublie ma regle à
calcul".
O conceito geral de relação entre dois objetos ou duas
:
grandezas pode ser representado por . Nesse caso, dire­
mos relação elementar. Por outro lado, podemos pensar:
quantas vezes temos a, se tomarmos como base b.
Se as grandezas são homogêneas, teremos uma relação
qualitativa. A proporção ("analogia" para os gregos) é o
resultado dessa equivalência entre relações. � � =

Traduzindo em Algebra, temos a equação geral da


proporção geométrica entre quatro grandezas : �.
=

Essa relaçã � , comparação de duas grandezas ou números


concretos que as medem, é a projeção no plano matemático
da operação elementar do julgamento: percepção exata da
relação entre as coisa e as idéias. A comparação entre duas
ou mais relações, e a percepção de uma eventual equivalên­
cia, de um acordo, de uma "analogia", (o que já é uma

18
Incompletude e TematizaçOes do Real

operação sintética da inteligência ao articular vários julga­


mentos de percepções elementares), tem igualmente como
projeção no plano dos números a equação de propor-
a c
çã'l> = d .
Quando as duas grandezas intermediárias b e c são
iguais, obtemos a proporção continua. Podemos obter uma
proporção continua a partir de duas grandezas a e b; a soma
. a+ b a
a+b fornece a tercerra grandeza, e a equação-a= b
fornece a proporção continua baseada na proporção encon­
trada na "seção dourada", ou "divina proporção", tal a per­
feição de que se revestia essa medida para os matemáticos
medievais.
No caso de comprimentos, ao dividirmos um segmento
AC em dois segmentos AB e BC graças a escolha de um
AC AB
pontoB tal que = temos o que os gregos chamavam
AB BC
divisão de um comprimento em média e extrema razão. Esse
proporção foi batizada "divina proporção" no século XVI.
Por outro lado o ponto que determina a proporção
pode estar no interior ou no exterior do segmento maior.
Para o caso onde o ponto se encontra no interior, já disse­
mos, a proporção vem a ser:

maior soma a+b a


a,---1 b­
menor maior -a-=b
-- -

a+b

Qual a ordem de medida e de harmonia que daria conta


do ato sexual?
Para tratar do assunto, Lacan introduz o "número de
A A+ a
ouro". Este número é dado pela relação = dita har-
a a
mônica, essa relação pode-se obter a partir do comprimento

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Célio Garcia

e da largura de um retângulo, dito, retângulo perfeito:

I.____ ______,

Essa relação tem como valor: 1,618 (expressão aritmé­


tica do número de ouro na seção dourada) e 0,618 (obtido
ainda a partir do número de ouro).
O valor de cada um dos segmentos vem a ser: a=0,618,
1=1, e A=1 escolha assumida por Lacan, pois trata-se da
repetição de 1 em A. De acordo com a teoria lacaniana, esta
é a única maneira para que esse UM venha a ser "um que
une", isto é, na sua repetição sobre A.
A s é r i e de F ib o n a c i : d e uma maneira geral
Fn Fn 1 + F n-2 Todo o termo é a soma dos precedentes, o
= -

que vem dar a fórmula da série de Fibonaci.


A série de Fibonaci é aqui constituída por potências
sucessivas do número de ouro:R2=1-a,a3:a-a2,a4=a2-a3...,an=a(n-
2)- R(n-1) Essas potências convergem (no gráfico de Lacan)
para um ponto de hiância, ou seja, o ato (sexual) nunca será
bem sucedido! Esse ato, na tentativa de instaurar um sujeito,
deve ser considerado ato falhado: (a) e 1 nunca acertam o
passo!
Se Lacan escolhe o número de ouro para falar do ato
sexual, é unicamente para marcar que (a) é incomensurável
com relação a /1. Trata-se para ele, de apresentar o objeto
(a) como inintegrável em termos de gozo que reune, que faz
só um, "unha e carne".
Se a=1, (ver gráfico seguinte) encontramos as seguintes
1 1 1
f'
ormu 1 as: a = -- , a+ 1 = - 1 ou - - a = a2 c ontrana-.
a+ 1 a a

mente ao que acontecia no caso da relação � �= , onde

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Incompletude e Tematizações do Real

graças a uma indeterminação havia perfeita liberdade na


escolha do ponto b, aqui obtemos uma relação determinada
dada pela equação a que chegamos:
a2+a- 1 =O I a= 1 + ou -..JSh"
Igualmente encontramos aqui uma problemática mui­
to distinta da medida das formas que pemútia medir o
incomensurável ao repetirmos ao infinito a operação. Lacan
no dia 1 de março (ver pag23, edição Nasio) refaz a demons­
tração onde os gregos admitiam como suporte intuitivo um
retângulo tendo um lado incomensurável a e um lado igual
à unidade. Mas esse pequeno "a" não era qualquer um, pois

estava determinado pela relação a= _1_ Trata-se de cons-


a+1
truir, operação análoga a uma outra bem conhecida para a
duplicação do quadrado, um retângulo proporcional a par­
tir dos lados de um retângulo desta vez, depois um outro,
depois mais um até o infinito. A operação era possível
a 1 a+ 1 0 . da opera.,...
graças à regra: - = -- ob',ehvo ,.. � o
1 a+ 1 = --2-.
a+
vem a ser que a diferença (1 -a) torne-se tão pequena quanto
possível, para isso...
Lacan no Seminário de 26 de abril, conclui dizendo:
"entre as duas séries de potências pares e ímpares do
mágico "a", deve haver alguma coisa como uma hiância, um
intervalo que é preenchido na cadeia significante através da
passagem de "a" sob a forma de um efeito metonímico (a2,
a3, a4 ...), isso mostra que não há congruência entre o 1 da
medida 1 e o um da identidade. Para confrontar o "a" com
a unidade, temos que saber escrevê-la Introduzi essa função
essa função sob o nome de traço unário"
E Lacan retoma à sua maneira o esquema dos gregos:

-- a-1 -- um - 1--- Outro ---

21
Célio Garcia

Nesse esquema, o Um é o um do gozo que reune, que


faz um só, gozo que existiria para cada um dos parceiros
que se encontram e que pretendem fazer uma "só carne".
Nas ele é igualmente o UM unário, o um do traço. "A" é um
lugar de inscrição do traço unário: o corpo, o "A" o qual
Lacan sempre mencionou como sendo um lugar de exterio­
ridade ao sujeito.

Ou ainda, o seguinte gráfico:

A - I - ato sexual (suj ei to)-- 1 -- <p-


mãe

Entre o sujeito ou seu ato sexual e a sua mãe há um


terceiro que vem a ser o - q�, a castração. Ou ainda, para o
primeiro exemplo, o um do outro não é o mesmo que o um
(unário)do sujeito. (ver Seminário 10de maio, edição Násio,
pag. 66 e 68).
Tudo isso graças à incomensurabilidade como está
assinalado no dia 19 de abril, "B ien sür, ce nombre d' or
n'est-illà que comme un suport choisi a'avoir ceei de privi­
legié que nous le fait retenir, mas simplement comme fonc­
tion symbolique, d' être si puis dire,
l'INCOMMENSURAB LE..."

O materna da incompletude
Da incomensurabilidade declarada pelos gregos (ver
parágrafo anterior), Lacan tira um axioma cuja adoção en­
caminha o tratamento a ser dado ao objeto (a). Porém o
materna da incompletude vem a ser S(,N). Encontramos
esse materna à página 821 de "Ecrits", ou mesmo antes à
página 818 quando ele é dito: significante de uma falta no
Outro. Jacques-Alain Miller teve ocasião de se referir mais
de uma vez ao materna em questão, dizendo-o enigmático,

22
lncompletude e Temati.zações do Real

certa vez; a rigor, esta seria o equivalente de uma escrita que.


pretendesse registrar o significante a mais do universo do
discurso o qual, justamente, por definição não existe. Esta
operação S(N), continua J.A. Miller, se produziria cada vez
que em sentido analítico, houver interpretação; porem,
acrescenta, é ilusório, só existe de maneira transitória. (Ver
J.A. Miller Maternas 11, página 20) Trata-se por conseguinte,
de lidar com a incompletude afastando a ilusão de que
haveria uma chave, uma última palavra. Tampouco esta­
mos desarmados, ou incapacitados de levar adiante um
trabalho; já os lógicos se mostram ciosos ao afirmar que o
teorema da incompletude não invalida o pensamento mate­
mático, nem estabelece para sempre limitações que viessem
diminuir o interesse pela questão.
Assim trataremos a incompletude, apontando para os
resultados obtidos pela Lógica, pela Psicanálise já que dis­
ciplinas formadas nesse rigor moderno.
Quando o referido materna é citado à página 821 de
"Ecrits", Lacan trata de distingui-lo de um outro caso, pre­
cisamente, encontrado em Levi-Strauss quando este autor
se refere ao Mana. Com efeito L. Strauss (Ver "Les organisa­
tions dualistes existent-elles?") sugere a existência de formas
institucionais tipo zero, sem propriedade intrínseca que
justificasse sua adoção pelo sistema, a não ser permitir a
existência do próprio sistema social. Desprovidas de signi­
ficação, elas permitem ao sistema se apresentar como tota­
lidade. Com isso, Lacan se separa de L. Strauss e do
estruturalismo de Jakobson "cuja concepção geral do mun­
do supõe um envolvimento ao infinito de totalidades" (Ver
J. A . M iller - Maternas I, pag. 70). Em outras palavras, para
esse estruturalismo a falta é assimilada ao símbolo zero, o
que permitiria ao sistema seu funcionamento. Não há dúvi­
da de que a solução de Lévi-Strauss não está longe de outras
soluções adotadas por Lacan, em diferentes momentos de
sua pesquisa; aqui, no entanto, fica claro que a incompletude

23
Célio Garcia

encontrada em S(J\:') assinala a falta do próprio símbolo


zero. Não há recuperação da falta, fosse através de um
significante desprovido de significações. Podemos pensar
que a completude foi durante algum tempo a base para se
pensar o sistema, fossem eles, sistemas, pensados graças ao
estruturalismo.
De fato, sucessivas descobertas entre 1920 e 1930 em se
tratando da Lógica e da Matemática, faziam crer que o
método formal dedutivo forneceria uma base formal para
as teorias matemáticas, garantindo a completude. A partir
de 1931, os resultados alcançados por K. Goedel trouxeram
mudança fundamental na atitude como se via o método
formal dedutivo. (Ver Leon Henkin capítulo sobre a com­
pletude em "Philosophy of science" organizado por S. Mor­
genbesser).
Deixo de trazer mais elementos para documentar essa
fase que se inicia em 1930; porém é certo que a Psicanálise
com Lacan esteve atenta aos efeitos do discurso da ciência.
Não podemos tomar o texto de Lacan sem as referências que
foram as suas e as da ciência da sua época.
Nem por isso, Lacan deixou de lado o objeto especifico
da Psicanálise; à página 818 , ele conclui o parágrafo já
citado: o Outro terá que responder, sabendo-se de seu valor
de tesouro (de significantes), igualmente terá que respon­
der a um outro nível, (refere-se ao grafo da "Subversão do
sujeito") em outras palavras, em termos de pulsão. Encon­
traremos nos capítulos seguintes, ao examinar novas tema­
tizações em tomo do real, menção da incompletude ou
dificuldades no trato com a totalidade; a cada passo, assi­
nalaremos os resultados obtidos, assim como os tropeços,
se houver, nessa caminhada sem trégua. Já no capítulo que
vem logo após este que aqui se termina, encontramos uma
notação em Lacan que se presta a reflexões. Esta notação
vem a ser

24
Incompletude e Temati.zações do Real

5--> A=A.

2. - Laço social, discuiSo e fantasma.


2.1. Na teoria lacaniana o discurso faz laço social.
2.2. O psicótico não estando incluído na ordem do
discurso não faz laço social.
2.3. No regime totalitário (psicótico?), o laço social faz
ligação direta com o fantasma; o regime promete o gozo.
"Após o dia de trabalho, vá para casa e goze". Trata-se de
verdadeiro toque de recolher, o aparelho repressivo se en­
carregando de eliminar os dissidentes.
2.4. No regime capitalista (sociedades de consumo), o
sujeito está supostamente em ligação quase direta com o
objeto "a". São os tais gadgets de que fala Lacan, encontrados
nos hipermercado, super-shoppings e que tais.
Há uma crise do discurso capitalista, discurso este,
como sabemos, variante do discurso do mestre, dixit Lacan.
Vide "Lacan in Itália". No dito discurso capitalista o sujeito
se arrisca, pois passa do andar de baixo para o andar de cima
lt<em vez �, tal como está grafado no discurso do mestre).
Com isso ele se arrisca, e mais, se posiciona em frente (de
viés) do objeto (a). Pensa com isso poder consumir o obje­
to(a). A chance seria não ir com tanta sede ao pote; a saída
seria não o primeiro mundo, mas uma alternativa que nos
desse o manejo de 5--> A.
2.5. A (grande Outro) não comparece na quadra dos
quatro discursos. Alteridade radical, ele assegura uma Ética
que se dimensiona na verticalidade (Lévinas). A questão do
laço permanece de pé! melhor assim, pois a horizontalidade
(tal como em Habermas) reassegura o interessado que seu
par está ao seu alcance.

25
Célio Garcia

2.6. Os quatro discursos em conjunto perfazem o con­


junto dos quatro discursos? Não. Não há universo do dis­
curso. A questão se colocou para Lacan.
A questão se colocou quando no seminário "D'un Au­
tre à l'autre", (27.Nov.1968), Lacan introduz a notação 51-­
A em vez de passar pela cadeia habitual 51->52 onde um
significante representa o sujeito diante de um outro signifi­
cante. Possivelmente é este outro que faz problema para
Lacan. ( ... l'essai que nous faisons de serrer ce dont il s'agit
quant à l'autre de ces signifiants... "). Lacan elabora esta
notação, levando-a mais longe:
se (51-·>A)=A, posso , substituindo A pelo valor en­
contrado na igualdade, chegar a 51->(51->(51->-A))
2.8. Por outro lado, o significante é tido como não
idêntico a si mesmo; ora a definição do conjunto vazio faz
apelo a esta noção "não idêntico a si mesmo". Se considera­
mos A (grande Outro) como conjunto de um só elemento
(este "um outro" da definição), surge então o conjunto vazio:
o o cem
O sujeito aqui representado por este 1 , o A vai se
eliminando e surge "1'enforme de A" (14.Maio.1969 no mes­
mo seminário "D'un Autre à l'autre"), ou seja, o (a) que
Lacan põe no lugar do conjunto vazio. ( "C'est par là qu'il
aborde ce qu'il en est de l'autre qui a laissé la trace.") Eis
pois o par que o laço enlaça graças ao discurso do histérico,
do universitário, do senhor, do analista: uma vez no lugar
da verdade (para o histérico), uma vez no lugar do signifi­
cante mestre (para o universitário), uma vez no lugar da
produção (para o senhor e amo), uma vez no lugar do agente
(para o analista).
2.9. Paradoxo de A.
A expressão 51->A=A repete o paradoxo denunciado
por Russell, ou seja, a função não pode se predicar a ela
mesma. Assim a notação f(fx) teve que ser retirada de circu­
lação. No caso em pauta, A aparece uma primeira vez como

26
Incompletude e Tematizações do Real

significante e uma segunda vez como termo geral. Jacques­


Alain Miller já havia anotado para o esquema de Lacan -
veja-se Maternas li, página 19- encontrado por ele em
"Instância da letra ... " . Não existe S como universo total do
significante; de fato, a notação nos daria Sl->52.
Vejamos a resposta de Lacan ao responder uma inda­
gação por escrito que se referia exatamente a esta notação
51-> A= A. Na semana seguinte a 27.Nov.l968., ele retoma
a questão explicitando a notação a partir da teoria dos
conjuntos{{ SI} ,{51,52}}.
Em vez da solução de Russell ao propor uma teoria dos
tipos, Lacan vai lançar seguidamente uma série de enuncia­
dos existenciais negativos, contribuição original, muitas ve­
zes em contraponto da lógica. Esses enunciados serão
destinados a dar conta da recente (na época) notação objeto
(a). ("C'est un nom nouveau..." 14.Maio.l969, D'un Autre à
l'autre).

27
ST,(jV.'J\L'lJ.9l P�PE

!1(.9LZ.f.iO T, POSSI$ILI'lJ.9l'lYE
3.As razões da Razão.

A Razão
Para pensar o problema da loucura dispúnhamos de
uma Episteme que se irúciava com a pergunta: que posso
saber? Para responder a essa pergunta dispomos de: 1.
Razão regida por uma Dialética Transcendental que se per­
guntava sobre suas condições de possibilidades; 2. Entendi­
mento regido por uma Analítica Transcendental que
estabelece princípios e conceitos.
Por Realidade de uma coisa entendia-se nada além de
sua possibilidade; com efeito, a coisa não poderia conter na
realidade mais que ela continha na sua possibilidade com­
pleta. Mas, como a possibilidade era tão somente uma posi­
ção da coisa com relação ao Entendimento (seu uso
empírico), a Realidade é ao mesmo tempo uma ligação desta
coisa com a percepção.
A Percepção é um ato elementar. "Wahrnehmung" per­
cepção etimologicamente quer dizer em alemão "tomar
como verdade". A Razão tem limites, o Entendimento pode
se enganar; para isso existem a Dialética Transcendental
onde a razão se procura a si mesmo e a Analítica Transcen­
dental onde se faz o inventário dos conceitos e dos princí­
pios no seu uso legítimo. A natureza da loucura (alienação
mental) teria que ser pensada em termos de seu caráter
fudamentalmente intelectual. Em se tratando de loucura,
teríamos que nos referir tão somente às "faculdades de
entendimento e de julgamento". Pinel e Esquirrol (1838) vão
tentar romper com esta tradição epistemologica. A loucura
podia ser objeto específico de observação. As classificações
e maneira de observar antiga foram criticadas. O psiquiatra
dessa época é um alienista tão isolado quanto o louco, objeto

30
Incompletude e Tematizações do Real

de observação, nesse lugar especial que foi o asilo corno


lugar de experiência Com o desenvolvimento do cientificis­
rno medico (neurologia) logo vai aparecer o neuro-psiquia­
tra que divide com o psiquiatra alienista a própria
Psiquiatria entre "epistemologia e experiência". O neuro­
psiquiatra representa urna objetificação do psiquismo, sem
interrogação especial sobre a loucura. A partir de então
estará a Psiquiatria ora inclinada para o lado da episterne,
ora para o lado da experimentação.
A Física de Newton enunciava leis universais; a E pis­
teme que mencionamos acima igualmente. O que é objetivo
designa não mais a exterioridade confrontado à representa­
ção, mas o caráter universalmente válido de certas represen­
tações (leis científicas). Corno operava a Física? Desde
Descartes e Galileu, os físicos definiam a queda dos corpos
corno se tudo acontecesse no vácuo. Sabiam que era impos­
sível o vácuo na natureza, mas a Física explicava a realidade
valendo-se do impossível. A Física e a Filosofia tinham
alcançado grande sofisticação para dar conta da Realidade,
já que o problema da adequação era delicado, exigia certos
artifícios. Porem, não se pode dispensar urna referência à
Realidade, assim também ao sujeito que percebe e suas
condições transcendentais (Razão e Entendimento) que tor­
nam o conhecimento possível.
Ninguém estava disposto em sã consciência a abando­
nar estas conquistas. Nem o psiquiatra alienista nem o
neuro-psiquiatra! Tinha sido um passo considerável buscar
a garantia de algum conhecimento no próprio homem fini­
to; ao Absoluto chegaríamos depois, mas ele já não era a
garantia de nossas verdades, de nossas certezas.Havia, é
bem verdade, já mencionado por essa Episterne, o mundo
da vesânia, porem tanto Descartes (Sec. XVII), quanto Kant
(Século XVIII) recusaram discutir esse mundo, já que total­
mente separado do mundo da razão. E assim chegamos ao
final do século XIX.

31
Célio Garcia

O Inconsciente.
Ora, Freud não se prende à nítida separação entre vida
imaginária e vida de vigília. Pelo contrário, ele se interessa
por percepções oníricas, por expressões as mais diversas,
manifestadas em códigos alternativos como atos falhados,
trocadilhos, chistes.O que era percebido pelas histéricas foi
promovido a um estatuto tão fidedigno quanto percepções
em que se fiavam a Filosofia e a Ciência. "Wahn" traduzido
no texto de Kant pudicamente por "erro", vem a ser loucura,
alucinação. Ora Freud deu crédito a esses "erros". O pensa­
mento cognitivo (que conhece) passou então a ser articula­
do, explicado, examinado quanto a questões tais como
prazer, satisfação, desprazer. Parecia que Freud viajava
num país que não era esse já conhecido e mapeado pela
Filosofia e pela Ciência da época. Mas, não se podia dizer
que era um país de ficção; era entre os dois. Com isso a
Psicanálise rompe com um trato que era o da Filosofia e da
Ciência. Os neo- freudianos (na sua maior parte formados
no neo-kantismo) tentaram salvar a situação; tinham eles
aprendido que não era possível outra fonte de dados que
não a realidade.
Freud tentou varias formulações quanto ao estatuto a
ser atribuído às coisas agora já na dependência do pra­
zerI desprazer. De alguma maneira a Psicanálise terá que se
referir à realidade, já dissemos. Não satisfaz à Filosofia, nem
à Ciência a proposta que pretende a substituição da questão
da realidade pela questão da estruturação do desejo ou pela
questão da inscrição no aparelho psíquico ou da ausên­
cia/ presença alucinadas de certos objetos que anteriormen­
te tivessem trazido satisfação ao nível de uma experiência
inicial.
Já no "Projeto..." ao tentar esclarecer certos pontos para
um público de cientistas, Freud agrava a situação, pois
termina por empregar termos como Nebenmensch e Das

32
Inc:ompletude e Tematizac;ões do Real

Ding. Estes termos transferem o problema da realidade para


outro plano: Nebenmensch é o outro mas já alçado a um
plano simbólico; enquanto das Ding é um termo geral para
nomear aquilo que não nos é dado nas coisas. Com ajuda de
Heidegger em 195 1 ficamos sabendo algo mais a respeito de
Das Ding. Decididamente não se trata da coisa no seu aspec­
to imediato, material tão somente, empírico.
Pergunto: Estaria Freud nos advertindo sobre as difi­
culdades de acesso à realidade, estando disposto a criar
mitos que nos facilitassem esse acesso fazendo ponte em
direção á realidade ou teria a Psicanálise pretensão de trazer
uma proposta que viesse reformular a própria noção de
realidade? Seria a Psicanálise uma terapêutica tão somente
ou estaria ela disposta a entrar na discussão que diz respeito
à Epistemologia e a própria questão da Experiência?
Finalmente, Freud se permitiu dizer: "as coisas são
restos que escapam à atividade do julgamento", o que já é
�Uma formulação bem mais comprometedora. Exige esta
formulação elucidação. Pergunto: o termo "julgamento"
estaria se referindo ao que sabemos, ao conhecimento, isto
é, os limites da Realidade ao alcance da Razão? ou o termo
"julgamento" encontra-se incluído na problemática do dese­
jo limitado pelo inassimilável já que marcado pelo traumá­
tico?

A Coisa
Este foi um dos temas abordados por Jacques Lacan
durante os anos de sua pesquisa e ensino. De fato, Lacan se
vale da formulação de Freud para dizer em sua terminolo­
gia: "o real é um resíduo de uma operação efetuada pelo
Simbólico". Até aqui parecia tão somente uma reformulação
do que já havia dito Freud. Foi necessário levar mais longe
a proposição e dizer: a organização significante do desejo
que tenta dar conta do objeto e as formulas matemáticas, ou
Célio Garcia

as escritas formais são semelhantes, ambas deixam escapar


. 1 o real. Em outras palavras, o Real é o mesmo na Ciência e
na Psicanálise. Participa assim a Psicanálise de uma opera­
ção de redefinição da Realidade; de agora em diante men­
cionaremos o Real. Não se trata simplesmente de uma
terapêutica, mas de um tipo de saber sobre o real, sobre a
estrutura. Assim o texto "Direção da cura" de 1958 se refere
a uma fase anterior; já o texto "Proposição de Outubro de
1967" avança bem mais ao mencionar claramente o "ser do
desejo e o ser do saber". O "ser mantido no esquecimento"
de Heidegger é aqui destrinchado. Desejo e saber por um
lado, desejo e conhecimento por outro são como "les pales
d'un écran" e devem se conjugar. Agora a cura vem a ser
ter acesso a essa nova episteme. Episteme que não recusa a
vesânia tal como o haviam feito Descartes e Kant.
Sem dúvida a clínica foi uma referência para as pesqui­
sas do Dr. Lacan. Vale assinalar que ele passou da psicose
para a'ciência quando diz: o que foi rejeitado no simbólico
retoma no real.
Assim a referência à realidade foi mantida, porem re­
formulada, deslocada. A Episteme inaugurada por Freud e
formulada por Lacan produz um discurso onde o termo
"entre ficção e realidade" não se. faz necessário. É certo que
há inadequação entre a organização significante do desejo e
o objeto; assim também ao nível da Física, já vimos como
Galileu e Descartes abordaram a questão da queda dos
corpos apelando para um tratamento onde o real se explica
graças ao impossível do vácuo. Já que reconhecemos a
inadequação:"O Real é o impossível do discurso", para lem­
brar uma outra formulação de Lacan. Agora temos: impos­
sí vel ao nível do desejo e seu resto objetai que é deixado pela
inadequação, impossível ao nível do discurso da ciência e o
real objetivo igualmente deixado de lado. O Real resiste à
teoria que comparece para dar conta daquilo que é justo e

34
Incompletude e Temati.zações do Real

verdadeiro tal como queria Sócrates "logon didonai" verda­


deiro lema da Filosofia.
A Psicanálise se articula à Filosofia sem discontinuida­
de pois ambas colocam a questão da Verdade; a Ciência e a
Psicanálise por outro lado visam um Real. Lacan tentou
produzir uma Teoria do Desejo que fosse ao mesmo tempo
uma Teoria do Conhecimento graças à problemática da
Coisa.

O Mito

No entanto aquilo que parecia ser uma contribuição


inspirada por uma outra Lógica que não a Lógica de Kant
(Veja-se Seminário sobre a Identificação) por conseguinte,
uma Lógica que tivesse condições de dar conta da vesânia,
mesmo esta contribuição agora já apresentada em forma de
conceitos bem estruturados veio a ser envolvida pelo cien­
tificismo. Este aliás foi o destino geral do que resultou da
prática do chamado "corte epistemológico", inaugurado por
Bachelard para as ciências físicas e Althusser para as ciên­
cias do social. Bachelard nos tinha ensinado que houve um
corte entre a Alquimia e a Química. O próprio objeto de
estudo já não é mais o mesmo. O mesmo fez Althusser, com
relação às ciências do social e com relação a Marx. Althusser
lendo o próprio texto de Marx pôde estabelecer a partir de
que momento Marx passou a usar conceitos muito mais que
termos tirados do acervo do ideário comprometido com
valores da época. Com relação à Alquimia, já podemos
contar com a reavaliação feita por Isabelle Stengers, aliás
uma química de formação, quando ela se pergunta se Lavoi­
sier teria razão de afirmar tão categoricamente que antes
dele não havia Química. Com relação a Marx, um autor
como Ranciere já nos lembra os valores dos trabalhadores
como referência segura para entendermos o que se passa ao
nível desse social a que se referia Marx. ( No caso de traba-

35
Célio Garcia

lhadores aqui no Brasil, estes valores bem que poderiam ser


religião e justiça a ser feita aos que atentam contra os po­
bres). Se assim é, ainda que nos tenha levado a um reexame
das relações entre o objeto empírico (Gegenstand), o objeto
transcendental (Objekt), e a Coisa em si (das Ding am sich),
Lacan não teria apagado a descontinuidade entre Teoria do
Conhecimento e Teoria do desejo. Resta pois um "entre os
dois" a explorar.
Neste caso, teríamos o mito como abordagem do cam­
po do .Outro, do país do outro (De agora em diante para todo
este parágrafo estarei resumindo Serge Leclaire no livro "Le
pays de l'autre") A Psicanálise seria a arte de liberar tudo
que força o sujeito a estar assujeitado a uma certa confor­
midade, a qualquer episteme. Já as düerentes casas onde
procuram se abrigar aqueles que vêm da diáspora freudiana
foram construidas com material o mais heteróclito: as fun­
dações são construidas com materiais trágico-míticos, bíbli­
cos por um lado, evangélicos por outro; as paredes foram
levantadas com tijolos cientificistas, escoradas num certo
agnosticismo gnóstico, o todo envolvido num linguajar bas­
tante fora da norma. Os agenciamentos e instalações concei­
tuais e teórieos justapõem tomismo e fenomenologia,
pos-estruturalismo e pre-socratismo, cabalismo e lingüísti­
ca. No interior dessas casas efigies, palavras e escritos se
transmitem num clima de respeito suspeitoso, mais ou me­
nos escrupuloso por força de ensino sofisticado, onde en­
contram-se ritos, usos e costumes. Até que o chamado do
mar ou do deserto que dorme em cada um de nós, traz de
volta a paixão do exílio e o gosto da separação. As palavras,
somente as palavras na dupla legitimidade que as marca,
são os companheiros privilegiados nesta caminhada pelo
país do outro. Desta insubstituível qualidade da palavra e
da linguagem, o psicanalista deve dar testemunho. Sabemos
que a doutrina tanto quanto a teoria podem ter efeitos
paradoxais de acordo com a relação mantida com o chama-

36
Inrompletude e Tematizações do Real

do corpus da doutrina ou da teoria. O cuidado se desloca


então do objeto que era o seu, a saber o entendimento da
palavra do outro, para a preocupação com a doutrina e com
a interpretação. Trata-se então de manter esta doutrina fora
de toda corrupção. Considera Leclaire a estrutura do mito
como uma arquitetura que vai bem em se tratando das casas
da diaspora freudiana; essa mitologia dispõe atualmente,
alem do inconsciente e da teoria das pulsões, dispõe da
trilogia real, imaginário e simbólico, d a tetralogia dos dis­
cursos, até de uma cosmogonia topologica. Dar uma forma
mítica às idéias da Psicanálise e aos conceitos da teoria
ajudaria a ultrapassar a antiga divisão entre idéia e imagem,
episteme e doxa (experiência) j3 que ela se apoiaria �
essência bastarda e luôrida das palavras do pensamento; a
cena do mito convem bastante bem para caracterizar os
demônios cujo poder a Psicanálise costuma evocar e exor­
cizar.

Para Serge Leclaire


Também nós tivemos que romper o charme, preferindo
a dura realidade do materna.
Sabemos que o mito ordena o tempo. Assim vamos
contar o que aconteceu.
Era uma vez... Tempo mítico. Assim c o meçamos a con­
tar nossas histórias. A partir de certo momento, passamos a
contar: "uma vez". O tempo mítico parece ser a resolução do
problema das origens. Nem Big Bang, nem Nome do Pai,
simplesmente "era uma vez..." ; sabemos que em criança nos
perguntávamos "de quem éramos filho?"
Pois bem, "era uma vez". Assim está respondido. Po- ·

der-se-ia completar: "Era uma vez Papai e Mamãe... " Nem


isso! Quem conta a história faz de tal sorte que a menção ao
tempo mítico já por si é bastante. Era uma vez... e já a criança
adormece. De repente, meio acordada, pede que se repita e

37
Célio Garcia

a voz recomeça - "era uma vez..." . E assim vai. Não tem


importância que seja a mesma história, basta que ela comece
por "era uma vez... e que o filho do homem não tenha que
se perguntar pelo tempo em que ele não era. Do Big Bang
para cá, até que é fácil imaginar. (Veja-se Prigogine "Entre
le temps et 1'etemité"). De tal sorte que o tempo de antes é
um tempo que não conta.
É um tempo onde e\l;entualmente localizamos nossas
desconfianças: sei lá o que aconteceu antes que eu a conhe­
cesse! pensa cismado o namorado num momento de des­
confiança. Por vezes, são momentos terríveis. Ciúmes,
dizemos, com isso nos acalmamos. Como enfrentar o bura­
co, a lacuna deixada pelo tempo de antes? Uma solução
parece ser acreditar no tempo que virá: tempo promissor!
"Les lendemains chantants!" se disse em francês para falar
da revolução. Enquanto isso a multidão cantava entusias­
mada nas ruas esquecida do que lhe aguardava. Como
poderia ela esquecer se nada ainda tinha acontecido? Assim
o dia de amanhã será "un lendemain chantant". Como po­
der-se-ia romper o charme?

Freud, o -descobridor.
Sabemos que Freud foi um descobridor; ele anotou
grande quantidade de observações. Discutiu cada uma des­
sas observações ao tentar articulá-las umas às outras. Quan­
do uma provável articulação não era vislumbrada, ele se
pernútiu "especular", como ele mesmo dizia. "Especular"
quer dizer dar conta da descoberta ou da anotação em
termos de mito. Mitema era, pois, a unidade de escrita
freudiana; dois tipos de nútos são encontrados : ou Freud
lançava mão de um relato mítico por ele encontrado na
nútologia conhecida, ou ele mesmo criava um novo núto,
preferindo por vezes transformar mitos já existentes.

38
Incompletude e TematizaçOes do Real

Sabemos que o trabalho de Lacan consisUu em voltar a


Freud, encontrar uma escrita que ele mesmo chamou mate­
ma e que desse conta da descoberta freudiana. Com isso, a
Psicanálise tinha uma chance de ser matemizada; é certo que
um maior rigor foi possível quando passamos do mitema ao
materna.
Nossa pergunta será: estando a Psicanálise matemiza­
da, teríamos assegurado a existência do analista? A mesma
indagação vale para outras perguntas assemelhadas, pondo
em jogo a prática clínica e a prática institucional. Cremos
que todos aqueles implicados pelo discurso analítico têm
enfrentado o problema, dando ao mesmo uma resposta.
Vamos lembrar a questão do ponto de vista de uma insti­
tuição de orientação lacaniana, ou seja, uma "escola".
Esta teoria está claramente exposta quando dispomos
de uma apresentação de uma "teoria da instituição". Na
Proposição de Outubro de 1967, encontramos esta teoria.
Trata-se da construção a que chega Lacan a propósito do
"não-saber" e do lugar central ocupado por este termo na
referida construção. Como poderíamos esperar, o não- sa­
ber não equivale à modéstia, mas está na base da produção
da estrutura do "único saber oportuno". Tampouco se trata
de um não-saber como se fosse um déficit a ser completado.
Lacan trata de explicitar cada uma dessas leituras, pois,
como lembra, as instituições costumam fazer confusões e
simplificações sobre o assunto. Uma confusão vem a ser
passar do não-saber para o saber nada, em outras palavras,
confundir o vazio com o nada. O vazio deve ser definido
como o elemento neutro da operação lógica, não marcado
pela diferença significante; ora, esta definição convém bas­
tante bem para a questão do não- saber, tal como a entende
Lacan nessa teoria mínima da instituição psicanalítica. Já o
nada vem a ser a nulidade da incompetência. Temos que
concluir com Lacan: a teoria exige que a instituição analítica
inclua num lugar central a figura da destituição, apresen-

39
Célio Garcia

tando em seu centro um vazio, um lugar de não-saber, o


qual coincide com o real da experiência analítica. Uma outra
posição que merece destaque se funda numa volta à clínica.
Assim, dir-se-á que a pulsão chega até nós como uma mon­
tagem, montagem vivida por ocasião da operação de trans­
ferência, transferências eventualmente sucessivas, o que
implica em objetos variados--e igualmente sucessivos na
constituição da dita montagem. Ou seja, a cada passo temos
que ir à clínica, sem o que teremos deixado para trás a causa
do desejo. Ora, sem levar em conta a causa do desejo,
também não cabe falar em entusiasmo, nem tampouco esta
causa de desejo se dá em nós sem um certo horror. Cremos
que este grupo de autores, apresentando cada um dos
subgrupos matizes distintos, no final de contas apelam para
a apresentação de argtimento em forma de paradoxo, dei­
xando o ônus da prova para mais tarde. A apresentação em
forma de paradoxo vai bastante bem com ou tra tese da
orientação lacaniana, porém, ela teria que ser usada com
parcimônia. Esta tese diz respeito ao que entendemos por
aposta, gesto constitu.tivo do sujeito. Porém, se usamos e
abusamos do argumento em forma de paradoxo, não so­
mente impedimos em alguns casos a pesquisa, como nos
arriscamos a práticas autoritárias. A imposição da aposta
pode sugerir fortemente uma vontade decidida, mas não
um desejo e sua causa.
De fato, podemos nos perguntar, pelo menos em al­
guns casos, se haveria uma matemização que fosse além do
paradoxo. Neste caso, teremos que o indecidível se subtrai
à verdade; o indiscemível se subtrai à diferença permutati­
va. Curioso constatar que estas teses que acabamos de enun­
ciar (indecidibilidade e indiscernibilidade) terão sido
respeitadas por Lacan; assim, deverão fazer parte do que ele
mesmo tinha em mente quando mencionou o não-saber
como elemento e fundamento da instituição analítica. As­
sim, estaria definida uma Ética para esta prática institucio-

40
Incompletude e TematizaçOes do Real

nal, onde a singularidade de cada um não fosse negada,


onde fosse permitido ao nome de cada um sair do anonima­
to ou das classificações. Haveria, neste caso, urna chance
para a existência de analista nesta instituição?

A questão do saber e o infinito


Não há momentos privilegiados para a transmissão do
saber - às vezes passa, às vezes não passa. Nem com a
integridade do materna pode contar o psicanalista, por oca­
sião da transmissão. Se por um lado o materna realiza a
integrabilidade do saber, no momento da transmissão toma­
se a palavra. Os maternas de Lacan foram por ele postos em
palavra.
O engano do cógito cartesiano terá sido afirmar a inte­
grabilidade da experiência, sem separar o que era enuncia­
do (matemizável) do que era enunciação (tomada de
palavra). A transmissão do materna far-se-á pela palavra e
sem garantias. Na teoria, já chegamos à indecidibilidade e
ao transfinito; na prática, regredimos ao cógito quando
algumas frases usadas entre nós como "eu sou psicanalista"
nos dão garantia de autorização.
No entanto, onde vai a palavra buscar tanto saber? Na
revelação, fonte de saber inesgotável, para aqueles que nela
crêem. Para nós, que não cremos, a revelação nos impressio­
na por ser fonte inesgotável; trata-se de meditar sobre este
inesgotável. Se a revelação operasse somente a um nível
restrito, não haveria questão; tratar-se-ia de urna concepção
finita do saber. Vamos terminar este parágrafo lembrando
que o inesgotável, em se tratando de escritura sagrada, serve
para lembrar que Deus é inatingível, inacessível. Desde
Descartes a Pascal, passando por Leibnitz, nos foi dito que
podemos admitir a existência de um ser sem saber sobre a
natureza dele. O esforço de Pascal vai até este ponto, pois
este era seu objetivo ("Or, j'ai déjà montré qu'on peut bien

41
Célio Garcia

connaitre 1'existence d'une chose, sans connaitre sa natu­


re"). Um pouco antes, neste mesmo texto "De la necessité du
pari": "Nous connaissons qu'il y a un infini et ignorons sa
nature". O uso que faz Pascal da idéia de infinito será
limitado ao que dele Pascal pode tirar para marcar a idéia
de inacessível. No entanto, a Matemática cantoriana conhe­
ce um outro tipo de infinito, precisamente aquele que a
tradição teológica sempre afastou - o infinito atual. Cantor
vai pretender que nós podemos não somente admitir a
existência do infinito atual, mas igualmente concebê-lo; sua
presença estará não somente num Deus (não criado), mas
também na sua criação e em "nosso espírito". Quanto à
articulação entre infinito potencial (enumerável, na lingua­
gem de Cantor) e infinito atual (não- enumerável, para
Cantor e aqueles que se referem a Cantor para aceitar ou
recusar esta idéia), Cantor dirá: todo infinito potencial
(fronteira que se desloca) exige um transfinito (claro cami­
nho não enumerável por onde ele se desloca) e sem este não
poderá ser pensado.
Em se tratando da prática analítica, seria a associação
livre da ordem do não-enumerável?, cabendo ao saber in­
consciente uma articulação entre a teoria e a prática?
Em certa ocasião, Lacan nos havia feito meditar sobre
o horror de saber que vinha contrabalançar as ilusões de um
desejo de saber pura e simplesmente. Ou ainda, ele nos
havia levado a meditar sobre nossa posição de debilidade
frente ao saber.
Resta saber se este saber, do qual temos horror, estaria
ao nível de um inacessível ou de um não-enumerável infi­
nito. Sabemos desde Cantor tratar-se de uma multiplicidade
de multiplicidades inconsistentes, se temos em mente o
infinito atual, ou seja, o caso de não enumerabilidade.O
"saber",este transmitido pela palavra, ao mesmo tempo in­
tegralizado pelo materna, estará na dependência de uma
multiplicidade inconsistente, inesgotável. Forçar esta incon-

42
Inwmpletude e Tematizaçl'ies do Real

sistência, trazendo-a a um momento de verdade, é tarefa de


um sujeito definido na sua finitude, porém voltado para a
infinitude. (Todo este parágrafo, escrevi-o,inicialmente, em
colaboração com Thais Gontijo).
4. "As 4+ 1 condições da análise". Em seu livro que leva
esse título, A. Quinet enumera - entrevistas preliminares, o
divã, o tempo na análise, o dinheiro - quatro condições
básicas em se tratando da análise.
4. 1. As quatro mais uma condições, se observadas,
estando a última, o ato analítico, enlaçando as outras quatro,
nos encaminham , muito provavelmente, para um final de
análise.
Porem, podemos nos perguntar quanto a possibilidade
dessas condições! Esta aliás será sempre uma pergunta a ser
feita quando uma proposta se inicia definindo condições. Já
aconteceu na Filosofia!
A menos que a indagação sobre a possibilidade já esteja
respondida quando mencionamos as condições! (A possibi­
lidade da condição seria a própria condição da possibilida­
de) Mas, esta resposta que dispensa mediações será sempre
uma resposta que apesar de critica pode resvalar para o
dogmatismo. Afinal de contas haverá sempre um leitor
menos avisado que poderá tomar este livro como um ma­
nual. E neste caso, não devemos colocar nas mãos de qual­
quer um tal livro.
Mas , há mediações ... Já sabemos não foi possível definir
um calculo para a interpretação. Aliás ela se faz na maioria
dos casos a partir da equivocidade. São vários os nomes que
pode tomar o sujeito, são vários os nomes de Deus. Não que
haja uma equivocidade generalizada, onde qualquer termo
pode servir, onde qualquer termo será o nome de Deus.
(Como o queria Maimônides).
Há mediações...Gostaríamos de saber mais, poder dis­
cutir quais as mediações que a Psicanálise conhece. O mito,
por exemplo. Seria o mito uma mediação aceitável para a

43
Célio Garcia

Psicanálise? O livro de Serge Leclaire "Le pays de l'autre"


editado na coleção Le champ (Jeudien na retomada desta
coleção, chama nossa atenção.
4. 2. Em segundo lugar, há wna questão que nos foi
lançada por Lacan, anotada por Quinet - Como pode al­
guém que chegou ao final de análise querer ainda bancar
o objeto para um outro sujeito? Como pode alguém que
chegou ao final de análise, após constatar a futilidade da
suposição de um saber no Outro, como pode esse alguém
ainda querer reconstituir um Sujeito suposto saber, ocupan­
do o lugar do analista? A resposta a essas duas intrigantes
perguntas, nós a teríamos ao recolher um saber novo sobre
um desejo inédito por ocasião do passe.
Qual seria o desejo inédito? O desejo inédito seria o
desejo do analista, e o desejo do analista, diz Quinet à página
123, é desejo de saber.
Que devemos entender por desejo do analista assimi­
lado ao desejo de saber? Recentemente, Eric Laurent pôde
anotar que para Lacan, a ciência surge no horizonte de um
trabalho ético anterior, ela é produto de uma retificação
ética. A Psicanálise anunciaria wna ciência nova, indaga
Eric Laurent.
A questão da ciência eu a retomaria quando Lacan
pretende aproximar de um lado a organização significante
do desejo frente ao real que escapa , de outro lado a teoria
científica produtora de conhecimento da qual o objeto esca­
pa igualmente. A proposta de Lacan abrange, pois, tanto
uma como outra situações, assegurando a continuidade
entre ambas, criando condições para uma teoria da ciência
que incluísse a Psicanálise. A Psicanálise teria não somente
um papel terapêutico, ela é um tipo de saber que a moder­
nidade se permitiu. Ela redefine o estatuto da realidade não
somente ao nível do Entendimento (acesso à realidade), mas
também ao nível da razão pura (conhecimento). O encontro
de Kant com a loucura por ocasião da leitura que ele fez dos

44
lnrompletude e Tematizações do Real

escritos de Swedenborg, esquecido que foi por ocasião da


"critica", Kant pôde trabalhar com os chamados limites con­
siderando o resto Schwaermerei. Digo o resto para lembrar
o interesse de Lacan pelo que do objeto escapa tanto no
caso da organização significante do desejo como no caso da
teoria produtora de conhecimento.
Para isso, teríamos que elaborar equivalência . entre a
organização significante do desejo e Teoria produtora do
conhecimento. Conseguimos essa elaboração graças à noção
de "metáfora epistemologica" equivalente ela à metáfora
paterna. No entanto, abre-se aqui uma questão: ou a metá­
fora epistemologica é uma suplência tanto quanto a metáfo­
ra paterna sendo dado que "não há relação sexual", neste
caso a metáfora paterna é ela mesmo uma suplência; ou a
suplência representada pela metáfora epistemologica é uma
suplência ao Nome do Pai que não comparece. No segundo
caso, não há equivalência entre organização significante do
desejo e Teoria produtora do conhecimento já que inexistem
organização significante do desejo e teoria produtora de
conhecimento! Há catástrofe, há ponto cego!
Já que Lacan passa da clínica da psicose à questão
epistemológica, pretedendo mesmo que o conhecimento
tem estrutura paranóica, vamos admitir que há um "ponto
de catástrofe" (como disse Paul Henry em se tratando dos
matemáticos Cantor e Gauss} cujo ultrapassamento vem a
ser possível graças ao manejo dessa metáfora epistemologi­
ca.
Faço essas considerações para aceitar o desafio lembra­
do por Quinet ao final do seu livro, digo o desafio deixado
por Lacan.
Desafio que consiste em dizer que a Psicanálise estará
à disposição daqueles que quiserem apropriar-se desse sa­
ber novo. Para isso, os psicanalistas deveriam trabalhar na
dimensão extensiva da Psicanálise, precisamente essa que
diz respeito a um novo tipo de saber. Não basta dirigir o

45
Célio Garcia

tratamento em termos de indagação sobre o ser do saber


articulado ao ser do desejo, indo além de um objetivo me­
ramente terapeutico. Teríamos que estar atentos aos efeitos
do discurso da dência, captando-os cada vez que esse dis­
curso traz inovações. Teríamos que formular nossas propos­
tas em termos não necessariamente codificados pelo jargão
psicanalítico, fosse ele lacaniano. Para isso o livro é instru­
mento fundamental; diferentemente da revista de um gru­
po, o livro se dirige a um público· mais amplo. Editado pela
Zahar, editora de prestígio no cenário nadonal, o livro será
motivo de resenhas no Jornal do Brasil, na Folha de São
Paulo. Cada sábado os cadernos especializados dão conta
dos principais livros publicados no país. Este não fugirá à
regra. Será lido, entendido/mal entendido, criticado, rese­
nhado, elogiado; repudiado talvez cada vez que a inteligent­
zia brasileira não entrar em dialogo com os psicanalistas.
Farei breve comentário assumindo o papel de alguém do
grande público, não psicanalista, que acompanha o movi­
mento de idéias no Brasil.

Sobre a idéia de metamorfose do sujeito


É um tema antigo. Desde a Grecia estamos atentos ao
"conhece-te a ti mesmo"; com o advento do cristianismo
fomos levados a considerar que há lugar para a conversão,
para a reforma espiritual. Também outras tradições adotam
o mesmo ponto de vista: a acese como caminho da perfeição.
Quem sabe caberia nesse livro um pequeno capítulo sobre
nossa pretensão em tornar possível a metamorfose do sujei­
to? Cada vez mais com a desconstrução de nossos ideais
oriundos frequentemente do programa Aufklãrung, nossa
época de pós-tradição estará de preferência disposta a igno­
rar a idéia de metamorfose do sujeito. Assim teríamos que
discutir nossa proposta nos termos mesmos em que o tema
é encontrado na nossa época. Quanto mais esotérico o dis-

46
Incompletude e Tematizações do Real

curso da Psicanálise, mais estaremos longe de aceitar o


desafio lançado por Lacan.

47
O � J!Jv{pOSSio/EL
/
5. Mal estar na Cultura

O termo Cultura se distingue em alemão do termo


civilização, na medida em que este ultimo está associado ao
desenvolvimento técnico, ou menciona simplesmente as­
pectos materiais. Portanto, vamos preferir Cultura para tra­
duzir o termo alemão Kultur. Quanto a Freud ele nos diz ­
"o termo cultura designa a totalidade das obras e institui­
ções (Leistungen und Einrichtungen) que nos afastam do
estado animal em que viviam nossos antepassados e que
servem para dois fins: a) ,a proteção do homem contra a
natureza, b) a regulamentação das relações entre os ho­
mens." Há aqui algo mais que o simples aspecto material.
Ou então, Freud dirá em "Futuro de uma ilusão": Não
cuido de separar Cultura de Civilização.
O termo pôde significar inicialmente aquilo que o ho­
mem tirava da Natureza, resultado de sua ação, de sua
capacidade de agir sobre a Natureza. Esta primeira acep­
ção justificaria o uso do termo em se tratando de resultados
obtidos pela agricultura, criação de animais.
A esta primeira acepção veio se acrescentar uma se­
gunda por volta do século XVII/XVill; esta segunda acep­
ção dava ênfase ao que o homem acrescentava à Natureza,
por ocasião de uma intervenção livre e consciente, resultado
de uma obra, de uma interpretação. Na primeira acepção
Natureza e Cultura se achavam pelo menos num primeiro
momento, confundidas.
Na segunda acepção, uma certa distancia já é marcada
entre Natureza bruta e a Cultura por obra e graça do ho­
mem. Há um hiato entre os dois. Freud teria associado as
duas acepções quando enumerou "para que serviam" as tais
obras e instituições: "a) proteção do homem contra a natu­
reza, b) regulamentação das relações entre os homens".

50
Inoompletude e Tematizações do Real

A tese de Freud se completa quando ele explica as obras


de cultura por força da renuncia às pulsões sexuais. Termos
como "não satisfação", "sacrifícios", "privação sexual" são
invocados por Freud ao longo de seu livro. Há por co�
guinte um mal estar.
Nem tudo são flores nesse jardim! que tem sido tão
decantado.
A vida do homem, a história de suas realizações, seus
feitos não são atestadas por um estado de tranqüilidade.
Haveria um certo mal estar, na origem disso tudo.
Aliás Freud inicia este livro tecendo comentários sobre
a Religião, a que chegaríamos naturalmente pois haveria,
dizia seu amigo (Romain Rolland), um sentimento oceânico
em todos nós, manifestação de religiosidade presente em
cada um. Para Freud, porém a religião seria a prova de que
há um mal estar a ser combatido, a ser encarado de alguma
maneira.
Para resumir : a Guerra vem a ser o mal estar ao nível
do mal dizer, do que não se consegue dizer, do mal dito;

a Religião vem a ser a construção mais bem sucedida, em termos de


discurso da e sobre a Alterldade, ao mesmo tempo que discurso sobre
o Mal;
a doença, a neurose seriam por oposição à saude, o próprio mal estar
em forma de sintoma;
a Psicanálise seria um discurso sobre o mal ser, se me pennltem este
jogo de palavras "mal estar/mal ser" para assinalar a radicalidade da
Psicanálise que não se contenta em tratar do sintoma, nem pode ser
assimilada à Religião, nem aceita a guerra a> mo definitiva, inevita vel

Mal dito para a Guerra, Mal para a Religião, Mal estar


para a neurose, Mal ser para a Psicanálise, eis a questão que
vamos tratar de elaborar .
Antes uma palavrinha sobre a radicalidade de Freud.
Neste livro que ora acompanhamos Freud menciona as
"culturas neuroticas" já ao final do livro, como se quisesse
dar conta de situações que já se anunciavam no horizonte
europeu por volta de 1930. Já sabemos o que veio a aconte-

SI
Célio Garcia

cer. Freud chega a lembrar proposta terapêutica eventual­


mente a ser definida em função do que estabelecemos graças
a pesquisa psicanalítica. Sua ultima frase faz alusão à luta
de Eros com seu não menos imortal adversário Tanatos, a
Pulsão de Morte. Esta luta caracterizaria o processo que dá
origem e sustenta a cultura. Não podemos pensar que o
processo se desenvolve acima da humanidade, ou seja, gra­
ças a ideias imaginárias que nos conduzissem por um passe
de mágica para a compreensão entre os homens. Há um mal
estar a ser levado em conta. Este mal estar eu o resumirei
num termo de Freud - Kulturversagung. "Renuncia cultu­
ral'' dizemos nós em nossas línguas latinas. Mas Freud em
seu alemão dizia Kulturversagung que eu entendo como
sendo o contrário de uma "comunicação competente" (Ver
Habermas) baseada numa boa vontade moral ao compro­
meter os interlocutores com a veracidade dos enunciados;
Kulturversagung reconhece uma Etica possível, porem tri­
butária do desejo que nos faz saber sobre as pulsões, estas
que não renunciariam por nada neste mundo, mesmo que
tivessemos que ir em direção à destruição. Kulturversagung
é o que nos resta diante das tarefas da cultura a que damos
consentimento. As tarefas da Cultura não se identificam,
contudo, com o programa de Aufklãrung, nem com ideais
utopicos. Versagung (do verbo "sagen" dizer em alemão,
precedido do prefixo Ver que tem valor negativo) é o termo
usado por Freud para falar de frustração; aqui eu o entendo
como equivalente a "já não digo mais nada, nem reclamo".
Se o interessado fizer um sintoma, e procurar a Psicanálise,
estará o psicanalista sempre atento aos efeitos da civilização,
sem se deixar levar pelos argumentos, sem desistir nem
desesperar, em suma sem ilusões. Há pois uma Etica do
desejo. Isso é Kulturversagung.
O Iluminismo do século XVIII teria sido uma resposta
ao mal estar encontrado no século XVII por ocasião da
desorientação geral que se seguiu com a adoção do modelo

52
Incompletude e Tematizaçôes do Rea l

cientifico. O modelo cientifico substituía a orientação rei­


nante até então adotada e que assegurava uma certa harmo­
nia numa sociedade teocrá tica. Portanto, o modelo
cientifico não trouxe de imediato solução para a crise que
resultou dessa desarticulação dos espíritos. A Psicanálise ao
final do século XIX é uma resposta em termos de mal estar
a ser assumido, traduzido por Kulturversagung.

53
6.- Mal estar entre nós.

A realidade entre nós revela desordem perversa , efeito


da extensão sem limites, do discurso capitalista e do merca­
do. Acredito que a Psicanálise devesse dizer o que ela pensa
sobre isso. Trata-se da manifestação contemporanea do "mal
estar na cultura". Para nós não é válida a descrição objeti­
vante do mal estar em termos de normal e patológico.
"Mal estar na cultura" é o termo de Freud para dizer
que há algo de insuportável na vida quotidiana. Depois ele
acrescenta: o mal estar está intimamente associado a uma
renuncia às pulsões. Com isso ele quer admitir a incomple­
tude que caracteriza o sujeito: nenhum objeto (disponivelno
mercado, por exemplo), satisfaz plenamente a pulsão. A
Psicanálise faz uso de uma tal noção; ao mesmo tempo, ela
produz um saber sobre a dita incompletude. Tudo isso está
resumido no termo Kulturversagung que é interpretada
como renuncia (pacifica) às pulsões em beneficio da cultu­
ra. Trata-se de uma tradução comprometida com a visão do
neurótico; sabidamente o neurotico diz não, é mesmo a
partir do não, da recusa, do recalque, do desmentido que ele
se constitui como sujeito. Assim também o regime político
que temos! Por um lado, o regime ultrapassa suas próprias
contradições quando ele embute no funcionamento do sis­
tema a própria crise, o excesso, a corrida desesperada ao
desenvolvimento a qualquer custo. Porem o sistema diz
não quando ele desconhece seu fundamento, e nos impõe
a renuncia, ao mesmo tempo que promete o gozo a varejo a
ser encontrado nas prateleiras do hipermercado ou central
shopping. Eis o discurso capitalista em sua extensão sem
limites, eis o mercado!

54
lnrompletude e Tematizac;ões do Rea l

Contrariamente a esta negação, a Psicanálise diz sim!


A renuncia, a recusa não oferecem saída. Vamos ver como
isso funciona.
De imediato posso dizer: não se trata do estado do bem
estar, ou seja "Welfare State". Poderia dizer, se vocês me
permitissem, temos que considerar "o estado do mal estar''
(como disse Andrea Gontijo ao sair de uma mesa redonda ,
promovida pela Associação Mineira de Psiquiatria). Já sa­
bemos o que veio a acontecer. Aqui, vale a pena retomar o
termo Kulturversagung, traduzido como "renuncia cultu­
ral" em nossas línguas latinas. Freud em seu alemão dizia
Kulturversagung que eu entendo como o contrario de uma
comunicação baseada numa boa vontade moral que com­
prometeria os interlocutores com a veracidade dos enuncia­
dos, como quer o pensamento liberal em nossos dias.
Kulturversagung reconhece uma É tica possível, porem so­
lidária do desejo que nos faz saber sobre as pulsões, estas
que não renunciariam por nada neste mundo, mesmo que
tivessem que ir em direção à destruição. Kulturversagung é
o que nos resta diante das tarefas da cultura a que dou
consentimento. As tarefas da cultura não se identificam com
o programa do pensamento liberal, frequentemente de ins­
piração iluminista, nem com ideais utópicos.Agora que co­
nhecemos o mal estar, vamos conhecer o impossível.
Podemos adiantar que a Psicanálise, sem ser partidária,
permite pensar uma "democracia radical". Radical aqui não
quer dizer pura, verdadeira, mas faz alusão a sua radical
impossibilidade. Assim, uma política é pensável desde que
se dispense especial atenção ao acontecimento na medida
em que este não se deixa apreender a partir de esquema e
análise já estabelecidos. Uma politica é pensável, se estamos
dispostos a entender o impossível como o que justamente
nos é vedado perceber num exame habitual da situação. De
repente, o que era impossível já não é mais: aí está a realida­
de, a única que nos interessa. Diremos que o impossível

55
Célio Garcia

toma-se real: o real é o impossível, afinal de contas. (Para


todo este parágrafo, valho-me de Alain Badiou cujo "Mani­
festo para a Filosofia" foi traduzido recentemente entre nós)

A democracia radical, esta que conhece o impossível,


tem como interlocutor a alteridade radical, aqui nomeada
Outro. Esta figura de alteridade nos remete a uma intersu�
jetividade vertical a que se chega quando lidamos com a
linguagem sem tradução. Contrariamente aos especialistas
de Marketing, pensamos que a língua é outra coisa que um
simples instrumento de comunicação. Se assim não for,
teremos uma intersubjetividade horizontal, facilitada na
simetria e na comunicação entre as partes. Conseqüente­
mente, uma Ética consentânea com este tipo de alteridade é
distinta de uma Ética egológico-liberal. Uma Ética vertical
estará fundada na assimetria, por um lado; por outro lado,
esta mesma Ética suscita uma reflexão sobre a questão da
Identidade.
Identidade e liberdade (problemáticas, bem o sabe­
mos) são questões reconhecidas em se tratando de popula­
ções que acabaram de ingressar na modernidade; dou como
exemplo, populações localizadas na periferia das grandes
cidades. A questão da identidade foi confundida com um
ideal; colegas psicanalistas, entre nós,têm promovido pro­
posta onde se reflete sobre a violência urbana. Assim tería­
mos que construir um ideal capaz de congregar populações
abaladas pelo impacto da grande cidade, populações rele­
gadas a segundo plano por parte do governo local e/ ou
federal, injustiçadas por não receberem o que lhes é devido,
levada em consideração a distribuição de renda no país.
Esses problema sabidamente existem; no entanto, vamos
nos permitir reflexão, se possível, retrabalhada em função
de orientação psicanalítica. Antes quero lembrar que o pa­
râmetro dito social não será decisivo para nossa reflexão. O
social em nada nos assegura que possamos a ele recorrer,

56
Incompletude e Tematizações do Real

pois a relação que dele decorre é vazia. A questão da


identidade será por nós encaminhada ao atentarmos para
um paradoxo. O referido paradoxo diz respeito a uma iden­
tidade que tem a ver com uma vida no exílio, longe da terra
natal (quando sabemos que com o exílio a identidade sofre);
tem a ver com algo que se passa em um momento de
pós-tradição (quando sabemos que a tradição é a habitual
garantidora da identidade); tem a ver com "um por um",
sem contar com grupo de pertinência, partido porta-voz das
massas, ou classe social profética. E no entanto, será essa
noção de identidade assim renovada, repensada, que terá
condições de se opor ao desafio que nos é imposto pelo
fundarnentalismo (Igrejas Evangélicas no Brasil, Grupos
Religiosos islâmicos em outros países, orientação política
sectária). Em suma, só uma reformulação do que sabemos
sobre identidade (agora já descomprometida com os enga­
nos do "um", do idêntico) poderá admitir o que são as
minorias em nossos países modernos, atuais. Minorias que
se chamam mulheres, afro- brasileiro, homosexuais, todos
eles situados fora do universal. São minorias que vão além
do que já foi dito, cujo discurso é intraduzível, respeitados
os parâmetros habituais que fundam a questão da identida­
de.

57
7. Psicanálise e Instituição Pública de
Saúde.

(0 texto seguinte serviu para discutir "a Psicanálise e a


Instituição pública de Saúde" tema do ll Congresso de Psi­
cologia em Vitória)
Resumo
A instituição pública de Saúde deverá ser pensada a
partir de prinápios e pratica solidários de uma reflexão
rigorosa que dê conta de:
1. a questão do objetivo na Saúde;
2. uma critica da noção de sistema coletivo;
3. o usuário tal como ele se apresentava;
4. a questão do sujeito e o ideal a ser proposto;
S. a questão do objeto e a contingência;
6. a linguagem, sem tradução;
7. a "democracia radical", a que conhece o impossível.
8. Conclusão

1. Objetivo da Saúde Pública -


Se tivermos em mente o paradigma Pasteur, ou as
idéias que vigoram a partir das descobertas fundamentais
de Pasteur (microorganismos e sua etiopatogenia, profilaxia
com relação aos microrganismos graças a medidas de ação
extensa e indiscriminada), se temos em mente o referido
paradigma, teremos da Saúde Pública e seu objetivo uma
idéia baseada na autoridade pública encarregada de zelar
pelo bem estar da comunidade. Para mencionar a reflexão
tomada possível pela Psicanálise tomo como data o advento
da Psicanálise, pois o homem liberal do final do século XIX
contemporâneo da descoberta freudiana foi exatamente o

58
Incompletude e Tematizações do Real

homem sobre quem incidiu a ação autoritária das primeiras


medidas em massa de Saúde Pública. Foi perfeitamente
pensável em se tratando desse cidadão uma postura de
protesto contra medida de caráter universal de que se reves­
te uma campanha de Saúde Pública. Houve quem preten­
desse não se submeter à vacinação sob pretexto de que cabia
a cada um a escolha do método que deveria ser empregado
no combate a uma doença que acometesse o cidadão.
Tal postura nos parece totalmente descabida, de tal
ordem houve uma mudança em nossa concepção de Saúde
Pública e de cidadania.
Temos que consentir à vacinação, ao posto de saúde no
dia tal somos convocados a comparecer; aqui consentimen­
to não se opõe à liberdade, nem há restrição na liberdade
do cidadão.
Tudo isso parece longiquo, pois a situação no Brasil,
país onde existem precárias condições de saúde, faz crer que
temos que incrementar tratamento em massa para evitar o
mal maior que por vezes se avizinha, como no caso da
cólera.

2. Saúde mental e Abordagem Sistêmica.

Se o objetivo de Saúde Pública se apresenta a nós no


Brasil, em nossos dias como facilmente identificável, o mes­
mo não acontece em se tratando de Saúde Mental. Neste
caso, sempre houve um pressuposto de que a matéria não
se presta a medidas coercitivas, nem tampouco é passível
de tratamento de massa. No entanto , os agentes de Saúde
Mental podem estar igualmente formados na mesma deter­
minação que impulsiona o agente de Saúde Pública. Há
literatura sobre o poder médico e seus exageros. Não vou
repetir o que já foi dito, quando a literatura produzida aqui
mesmo no Brasil foi suficientemente examinada. Roberto
Machado,Joel Birman e Jurandir Freire Costa nos deram

59
Célio Garcia

reflexões indispensáveis para quem se debruça sobre a


questão.
Cabe reflexão na fase atual, sobre exageros do poder do
psicólogo. Tomo como exemplo o psicólogo e/ou psicote­
rapeuta que atende crianças; ele vem a ser mais um na série
de figuras com quem a criança pode ou é chamada a iden­
tificar-se. Estaria este psicólogo simplesmente sendo mais
um na série? Atua ele no sentido de romper com a série
desviando o rumo que a série tomava? Estará ele atento ou
advertido para todas essas perspectivas? Sendo dado o
instrumento de trabalho (teorias psicológicas, psicanalíti­
cas) e sua incidência numa população infantil cada vez mais
numerosa a passar por este tipo de atendimento (Vejam-se
atendimento pela clínicas que mantem convênios com LBA,
postos de Saúde na periferia das grandes cidades), lançamos
aqui o problema tal como ele se apresenta. Não temos
condições nem a pretensão de ir mais longe nessa reflexão.

Acontece que o atendimento baseado em Teorias Sistê­


micas pode por vezes, em função dos postulados teóricos
adotados, pode se aproximar do modelo já apontado, como
este aqui nomeado Saúde Pública na sua modalidade neces­
sariamente autoritária. Pensar a familia como um grupo,
corno um sistema, acarreta atendê-la em suas necessidades
básicas corno se o sistema tivesse que ser examinado quanto
ao seu funcionamento ou não funcionamento. Se não fun­
ciona, então ternos que trocar alguma peça, temos que loca­
lizar o que não funciona. A referência inicial bem que
poderia ser Bateson(l), extraordinário pensador, defensor
do livre arbítrio, inconformado com as situações criadas por
esta patogenia manifestada no que ele chamou "double
bind". Tratar-se-ia de reagir ao sistema produtor de "double
bind", em outras palavras, aprender a caminhar pelo labi­
rinto sem se perder. Para isso teríamos que passar para um
nível superior, fazer uso de uma rnetacomunicação. Em

60
Incompletude e Temati.zações do Real

artigo sobre o alcoolismo demonstra sua capacidade em


pensar até que ponto em seu desfuncionamento pode ir o
sujeito em questão. No entanto, o modelo sistêmico obriga-o
a pensar o mesmo sujeito em termos de parte, totalidade e
pertenecimento. Mas, nem sempre a referência é Bateson.
Lançadas algumas pontes, recentemente, entre a Psica­
nálise e a Biologia, vamos tratar de elucidar alguns pontos.

Inicialmente, a noção de divisão do sujeito tão impor­


tante em Psicanálise é encontrada pelo próprio biólogo em
termos de uma "ilusão de uma identidade unitária", já que
a renovação das células a cada instante estaria dando origem
a essa não identidade a si.
O cognitivismo "antiga versão" é aqui visado como
sendo passível de critica, já feita pelos psicanalistas conhe­
cidos pelos ataques a esta ciência ideal e seu sujeito sem
falhas. 'There is no me! No I!" pôde concluir Sherry Turk­
le(2), uma norte-americana que tinha tido noticia de uma
"connection machine",ou seja, um computador capaz de
tratamento de dados em paralelo, dotado de processadores
que distribuem a informação sem privilegio de um centro
único. Em vez do tratamento sequencial ao qual estamos
habituados, esta máquina se aproxima eventualmente do
nosso cérebro, e nos permite concluir que o sujeito ou qual­
quer coisa que pretenda este título não dispõe da unidade
que era o apanagio da Filosofia da consciência. A hipótese
foi formulada nos seguintes termos: habitamos um corpo
resultado de reconstituição continua de suas identidades
emergentes. Este modo do existir nos levaria à idéia de falta,
falha, noção indispensável ao pensamento psicanalítico. Se
a vida consiste nesse fazer frente à falta, ela é também
impulsão, desejo de continuar. O ego-self-corpo é telesco­
pado até a raiz da vida, inseparável do corpo primordial.

61
Célio Garcia

Estas são as teses resultantes da aproximação Psicaná­


lise e Biologia. Vejamos como se comportam as teses quando
defrontadas com algumas questões.
Eis algumas questões formuladas numa entrevista da
qual participavam psicanalistas, biólogos e cibemeticis­
tas(3).
Questão - Poderíamos dizer que a Psicanálise trata de
fenômenos de auto-organização de máquinas para as quais
a partir do momento em que elas estão no mundo elas
podem se dirigir para a própria destruição?
Resposta: Não vejo como podemos explicar a totalida­
de do espírito humano em termos de mecanismos de disso­
lução ou de desorientação.
Questão - O fantasma tal como o define a Psicanálise
não é tudo, mas ele não funciona "para o bem" ou com vistas
à adaptação. Que pensa a Biologia Sistêmica?
Resposta: trata-se de um falso problema este da oposi­
ção organização Idesorganização.
Questão - Viver não é uma prova de que o desejo de
que fala a Psicanálise seja redutível ao desejo de sobreviver.
Vivemos de tal sorte que incluímos a pulsão de morte.
Resposta: Sobre a questão da pulsão de morte parece
haver acordo; na vida da célula encontramos esta dualida­
de. Para existir a célula deve se destruir. O conjunto é um
formidável exemplo de reconciliação entre a vida e a morte.

Questão - Como sabemos não é bem isso que tem em


mente o psicanalista quando ele menciona a pulsão de
morte. A pulsão de morte marca a autonomia do simbólico.
As ciências cognitivas dão conta de uma regularidade numa
escala curta, o que não é bastante em se tratando de uma
vida, de um destino. A Psicanálise pretende abordar o su­
jeito que tenta conduzir-se como um sistema cujos desfun­
cionamentos estão "regulados".

62
Incompletude e Tematizações do Real

3. A Psicanálise e o final do século XIX


A Psicanálise já que contemporânea do homem liberal
do final do século XIX acolheu as queixas deste cidadao e
considerou que ele fazia prova de autonomia quando se
rebelava contra o poder central onde tudo se decide. Vamos
ver que neste setor também fomos levados a pensar düeren­
temente; consentimento, como dizíamos acima, nao inclui
outra coisa senao exercício de uma liberdade por si só
precária. Se aceitamos a causa, nao podemos evitar o con­
sentimento. Foi assim que a Psicanálise se estruturou na sua
pratica pelo menos se temos em mente orientação afastada
de concessões e adaptação grosseiras. Uma vez esclarecido
esta etapa inicial onde se estrutura a Psicanálise e sua ética,
vamos examinar se hoje, nos dias que correm, podemos
distinguir uma situaçao anunciadora de uma nova possibi­
lidade ao definirmos um novo olhar para a questão da
conduta a ser adotada pelo agente de Saúde Mental.
Fala-se frequentemente na "escuta analítica" como sen­
do resultado de uma postura atenta, porem desprovida de
sentimentos de cunho humanitário ou piegas. Sabemos que
a escuta analítica pretende poder detectar sintomas, mesmo
que estes sinais nao estejam evidenciados a primeira vista.
Trata-se de uma escuta atenta, porem ainda comprometida
com esta visão do sintoma. Sintoma aqui será sinônimo de
suspeição. O paciente naturalmente colocado na posição de
trazer queixas, acaba sendo considerado como alguém que
terá que ser interpretado. Não se trata da questao do incons­
ciente, pois a este poderia o paciente atribuir a "fons et origo"
de lapsos, tão bem quanto o agente de Saúde Mental.
Refiro-me a escuta analítica, querendo imputar a esta
uma posição de suspeição, pois assim foi elaborada a noção
de sintoma por Freud, mas também por Marx. Nao havia
outro caminho, pois a causa do sintoma se oferece indire­
tamente, ao observador, caso esteja ele atento a esta "mímica

63
Célio Garcia

muda" (no caso de histéricas escutadas por Freud) ou a


estes acontecimentos que se repetiam na história do movi­
mento operário na primeira metade do século XIX (no caso
de Marx). Ainda em se tratando do homem liberal do final
século XIX, herdamos a idéia de que ele é capaz de formular
questões, levá-las ao pés da esfinge para que ela as resgate.
Devo a márcia Rosa este comentário. Esta foi a definição
que igualmente estruturou a pratica da Psicanálise e do
agente de Saúde Mental. Refiro-me ao melhor dos casos,
pois em outras ocasiões a precariedade da reflexão política
tomava mais fraco o posicionamento do agente de Saúde
Mental. Mas, aqui estamos interessados em avaliar critica­
mente o caso em que este agente apresentava melhores
condições, deixando os casos deploráveis para outra oca­
sião, talvez momento de indignação.
Acontece que em nossos dias já não somos mais capa­
zes de dizer aos que nos procuram - sua verdade foi encon­
trada, só resta a ela consentir. Ou ainda, "enuncie suas
questões, pois é delas que você sofre."É possível que o
homem deste final de século não seja este que era reconhe­
cido pela capacidade em formular questões e levá-las sob
forma de enigma aos pés da esfinge.
Quem será este homem a quem queremos nos referir,
como sendo aquele que atendemos ou com quem estamos
em nossos consultórios? em ambulatórios? em atendimento
considerado como fazendo parte de uma estratégia de Saú­
de Mental? Somente uma reflexão política poderá ser deci­
siva neste momento de nosso trabalho; a ela vamos chegar.

Até agora estamos afastando duas modalidades de


sujeito na tentativa de definição para o homem a quem nos
referimos em nosso atendimento: 1. o sujeito político vincu­
lado ao ideário liberal do final do século XIX ; 2. o sujeito do
ideal (da solidariedade ou da rebeldia). Sobre o primeiro já

64
Incompletude e Tematizações do Real

fizemos comentários na parte introdutória; sobre o segundo


vamos lembrar algumas considerac;ões.

4. A questão do sujeito e o Ideal a ser proposto


A Psicanálise supõe a questão do sujeito; assim vamos
encontrar a questão aqui evocada sem mais demora. É ver­
dade que graças à função Ideal parecem estar resolvidas as
aporias constitutivas do individual e do social, do pulsional
e do cultural-histórico, do fantasmático e do real. Podemos
até nos permitir dizer que assim chegaríamos à socialização
do Inconsciente. No entanto, desde agora vamos assinalar
que esta idealização traz à baila um sujeito que pratica sua
própria divisão já que articulado ao desejo do Outro alteri­
dade que não se reduz ao meu vizinho.
Voltamos então à pergunta - que tipo de sujeito será
postulado por este Ideal? Até que ponto o Ideal permite
desfazer as aporias do inconsciente e do social?
A introdução da noção de ideal só foi possível grac;as à
teoria centrada sobre o narcisismo no momento em que se
substituía a teoria objetai da libido pelo narcisismo. A idea­
lização sabemos, consiste em engrandecer o objeto, em exal­
tá-lo psiquicamente. Será grac;as à idealização que a
antinomia da pulsão e da cultura será relativizada. Será no
terreno da função idealizante do sujeito que será buscada a
dialética da socialização do inconsciente. Grac;as ao Ideal e
à idealização surge uma pretensa "metapsicologia do so­
cial". No entanto, já podemos dizer de antemão, Freud em
"Psicologia das massas e análise do ego" considera o social
como outra coisa que um "fato", ou ainda o social será o
reverso da estrutura idealizante. É verdade, deveríamos
esclarecer, que este caminho vem a ser diferente de um outro
encontrado em ''Totem e tabu" . Em ''Totem e tabu" o mito
foi construido do ponto de vista do pai, do ponto de vista
do recalque objetai do outro.

65
Célio Garcia

Para resumir - Em "Totem e tabu" implanta-se a inter­


dição em detrimento do sujeito, ficando instituído o social;
em "Psicologia das massas e análise do ego" a própria divi­
são do sujeito é levada em conta, na pratica e na teoria. Com
esta abordagem encontrada em "Psicologia das massas"
poderíamos reformular a tese exposta em ''Totem e tabu": à
idealização ainda presente, a ela não vai ser atribuída a
socialização do sujeito inconsciente, pois ela se refere ao
Outro. São duas abordagens a distinguir. O que é notável
será que no esquema da idealização- identificação o objeto
social será designado por uma falta, por um vazio. O laço
social não tem assim objeto próprio. É de sujeito a sujeito
que passa o fluxo social. Já podemos enunciar a tese da
Psicanálise - é da falta de objeto que se alimenta o laço social,
o que o destina a esta forma radical de intersubjetividade.

O sujeito em nossos dias.


Está em vias de elaboração e conseqüente desdobra­
mento uma proposta teórica(4) para a questão do sujeito
cuja origem pode ser atribuída a praticas não-filosoficas. A
teoria de Lacan sobre a cisão do sujeito e eclipse do objeto
pode ser a fonte de uma formulação da teoria sobre o sujeito
político. Um sujeito, portanto, uma política, é algo entre um
acontecimento a elucidar e um acontecimento elucidador.
Um sujeito será o que um acontecimento representa para
outro acontecimento. A verdade é da ordem do aconteci­
mento; jamais ela se deixa inferir a partir de estruturas da
situação. A verdade se infere a partir de um corte na situa­
ção, corte este em correspondência com um significante
excedentário não encontrado na linguagem praticada na
situação. Não há representação do social transposto para o
político. Lacan evita o termo e a noção de representação,
herdada por Freud graças a uma tradição filosófica. Lacan
preferiu falar em significante. A questão vem a ser: é possí-

66
Incompletude e Temati.zações do Real

vel ainda se pensar uma política? ou estamos submetidos à


lei de ferro onde se decide sobre nossa espécie e que diz -

tudo que temos a fazer, será feito. A questão política vem a


ser: nem todos os exercícios de uma mesma liberdade se
equivalem! (Estamos longe do homem do final do século
XIX e seu pensamento liberal; se alguns problemas retor­
nam, eventualmente com mesma roupagem, permanece­
mos aderidos ao projeto Aufklarung. Vamos tratar de
introduzir novos termos para chegar a definir o objeto de
que se trata nesta etapa de nossa reflexão). (Devo a Alain
Badiou este parágrafo.)

5. A questão do objeto e a contingência.


A verdade do sujeito se decide do lado de fora; o sujeito
nele mesmo é um vazio sem consistência. O coletivo (Mas­
sas, Grupo) nada é senão o sujeito do individual, estando
excluída abordagem sociológica. Somente graças ao sonho
nos aproximamos do real, desta coisa traumática que é o
objeto do desejo; será no sonho que estamos prestes a acor­
dar, o núcleo duro do real se anWlcia no sonho. Tentaremos
em vão sair deste sonho se considerarmos que basta abrir
os olhos para a realidade; o olhar objetivo, liberado das
ilusões ideológicas só nos dá a consciência do próprio sonho
ideológico. A única maneira de sair seria confrontarmo-nos
com o real (objeto do desejo)que se anWlcia no sonho.(S.
Zizek)
Marx ao descobrir o sintoma, ao haver desenvolvido a
lógica do sintoma social, desconheceu o peso do fantasma,
causa do desejo no processo histórico, causa da inércia que
não se deixa dissolver graças à dialetização. Donde os com­
portamentos ditos regressivos (repetidos) das massas que
parecem agir contra seus próprios interesses. O caráter enig­
mático deste comportamento será encontrado nas caracte­
rísticas apontadas para a mais valia em termos de gozo

67
Célio Garcia

(encontro com a coisa desejada e sua verdade implicada)


causa do desejo. Este termo gozo tem fundamental impor­
tância em nossa exposição, assim pedimos especial atenção
para o emprego do termo. A teoria social progressista não
conheceu este termo, limitando-se a mencionar o excedente
pulsional (Veja-se Escola de Frankfurt). A teoria social rea­
cionária pretende se desembaraçar deste tipo de comporta­
mento (de gozo) apelando para o delírio das massas, seu
embrutecimento, da "falta de consciência" e assim por dian­
te, jargão bem conhecido na boca de militantes em momen­
tos de auto- critica. Este excesso, este a mais do gozo é resto
que escapa à rede de trocas efetuada ao nível do universal.
Excesso que invalida qualquer tipo de troca equivalente
entre patrão e empregado em torno da mesa de negocia­
ção.Voltando à questão do objeto - a correlação entre mais
valia e o objeto do desejo torna-se clara. O bloqueio funda­
mental que se resolve e se reproduz através de atividade
frenética, coincidência entre limite e excesso, poder excessi­
vo assim como formas de impotência fundamental (tudo
isso presente e atuante nos regimes capitalistas em países
super-desenvolvidos assim como em países em desenvolvi­
mento) eis o objeto causa do desejo, excesso e resto que
traduz falta constitutiva. O exemplo, levado ao seu extremo,
seria fornecido pelos regimes totalitários. Sabemos que estes
regimes pretendem abolir as barreiras entre o fantasma e a
lei universal que regulamenta as trocas sociais; aqui o fan­
tasma seria socializado coincidindo perigosamente com o
imperativo "estar na hora de ir para casa e gozar". Coitado
de quem não obedecer ao toque de recolher. Foi o disposi­
tivo posto em pratica nos anos vividos pelo regime nazista
na Alemanha opulenta e rica graças à guerra. O que aconte­
ceu ao regime hitlerista nos diz bem do caráter mortífero de
tal solução.

68
Incompletude e Tematiulções do Real

O objeto, a contingência ou o que há de idêntico no


diverso.
A Psicanálise aborda a passagem do instante anterior
em que o ser falante poderia ser infirutamente outro (no seu
corpo e no seu pensamento) para o instante ulterior quando
então o ser falante por força da própria contingência tomou­
se igualzinho a uma necessidade eterna. Tal como a ciência
moderna (esta é sua vocação) a Psicanálise acompanha a
conversão de uma singularidade em uma lei, graças à lite­
ralizac;;ão do que é contingente. O materna identifica o que
há de idêntico no diverso. Uma teoria da letra elaborada por
Lacan nos daria os elementos para o matema(S).
A Psicanálise, como outras disciplinas das chamadas
ciências humanas podem estar no âmbito das ciências da
natureza. Entenda- se natureza como o que está no universo;
a natureza é o objeto da ciência. Nada está fora do universo:
nem o homem, nem a linguagem, nem a consciência. Se
assim é, a Psicanálise faz parte desse movimento instaurado
pela ciência; em outras palavras, o inconsciente é a marca
do universo infinito e contingente sobre o homem. Nossa
pratica será orientada por teses como esta que acabamos de
enunciar. Vamos adiante.

6. A linguagem, sem tradução, ou a diferença entre


os discursos.
A linguagem seria um meio de integração social, de
compreensão, ou através dela trata-se de urna verdadeira
guerra?
Lyotard(6) considera o confronto por ocasião do diálo­
go e mesmo por ocasião da argumentação em termos de
"différend". Vamos estabelecer distinção entre "différend" e
o tradicional conflito jurídico conhecido com o nome de
litígio. Diferentemente do litígio, um "différend" seria um

69
CéUo Garcla

caso de conflito entre duas partes para o qual não haveria


solução eqüitativa já que inexiste regra que se aplique às
argumenta<;ões em jogo. Se aplicássemos às duas partes a
mesma medida como acontece em se tratando de um con­
tendoso jurídico, estaríamos causando um "tort". O termo
empregado "tort" evita as conotações de direito e de moral:
o "différend" produz um "tort". Um "dommage" provem de
infrações às regras de um discurso e pode ser reparado ao
voltarmos às regras do discurso transgredido. O "domma­
ge" pode ser compensado; o "tort" é irreparável. Temos um
"tort" quando as regras do discurso que fundamenta nosso
julgamento não são as mesmas que as regras do discurso em
julgamento� O "tort" pesa mais que o "dommage" , pois que
ele priva, os que por ele afetados, da condição de recorrer
a um meio discursivo para se chegar à prova, graças a regras
intersubjetivamente reconhecidas. Inexiste por conseguinte,
uma regra com validade universal na arbitragem entre os
diferentes discursos.
Uma certa ortodoxia (linha dura intolerante) encontra­
da em partidos progressistas e populares é uma resposta
sem mais delongas a esta assimetria acima identificada.
Aqui vamos tentar destrinchar a situação. Faz-se necessário
um certo conhecimento de alguns aspectos atinentes à lin­
guagem.
Vamos distinguir: 1) regime a que estão submetidas as
frases; 2) gênero de discurso. Como se comporta um regime de
frases? Que determinações advem de um gênero de discur­
so?
Um "différend" pode ter três fontes: 1) heterogeneidade
das frases reunidas por ocasião de um discurso; 2) incompatibili­
dade dos diferentes regimes de frase se admitirmos um único
gênero de discurso o qual aplainaria a pluralidade conflituosa; 3)
heterogeneidade não menos radical entre os diferentes gêneros de
discursos entre si. Estes três aspectos podem ser detectados
no encadeamento de frases registradas numa mesa de nego-

70
lnoompletude e Tematizações do Real

dação. Se não há regras aplicáveis a um discurso de nível


mais elevado que viesse integrar todos os gêneros de dis­
curso na tentativa de chegarmos a um texto coerente, se não
há regime de frases capaz de englobar todas as frases, o
encadeamento de unidades do discurso permanece injusti­
ficado, carente de necessidade intrínseca. O "tort" que reside
na impossibilidade de haver um encadeamento após uma
frase, após um acontecimento que estaria a exigir uma frase
(uma resposta), este "tort" é inevitável, pois que uma só frase
é possível a cada vez, as outras frases estando diferidas e
não atualizadas. Mal grado esta inevitabilidade do "tort",
persiste uma exigência. Ela não sendo propriamente moral,
trata-se de respeitar tanto quanto possível o que é o aconte­
cimento antes mesmo que sua significação, sua conotação
seja determinada ou determinável.
Na busca de uma política de justiça, este interesse pelo
acontecimento demonstrado pelo psicólogo pode ser ava­
liado como de pouco peso ou quase nada. No entanto, é
provável que no período atual, os psicólogos não estejam
em condições de dizer publicamente: "eis o que é necessário
fazer!" Já não podemos falar em nome de uma universali­
dade indiscutível. O intelectual moderno foi até recente­
mente uma figura de Aufklãrung; pertencesse ele a esta ou
aquela orientação, encontravam todos legitimidade no
grande discurso da emancipação. Havia no máximo, desa­
cordo quanto aos meios, mas todos estavam fundamenta­
dos numa idéia geral de uma história que se desenvolvia
direcionada para seu fim natural, isto é a emancipação da
humanidade. Ora, este tipo de discurso se esgotou.
A ultima figura do Aufklãrung parece estar em se
pensar o senso comum garantido pelo julgamento reflexivo
e pela análise do gosto estético, parece estar na crença
encontrada em Habermas de que a humanidade como su­
jeito coletivo (universal) busca sua emancipação comum
graças à regularização das táticas permitidas em todos os

71
Célio Garcia

"jogos de linguagem". A legitimidade de um enunciado


residiria na sua contribuição a esta emancipação.
O efeito contundente de um discurso heterogêneo po­
demos detetar na associação aparentemente natural de
enunciados prescriptivos e enunciados denotativos ou des­
critivos. O que se apresenta como a forma natural, habitual
de se falar o português, de se argumentar, de se conversar,
essa pragmática da língua encerra dispositivos que defi­
nem, sem o percebermos a validade dos julgamentos. As
frases de um tal discurso são incomensuráveis entre si, isto
é, as regras que lhes seriam aplicáveis só tem validade local,
no interesse do senhor que dita este discurso. Dois ou mais
tipos de discursos (político, ideológico, moral, humanista,
democrático liberal), no caso de nossas elites burguesas, são
apresentados numa unidade harmoniosa, quando nenhu­
ma dessas frases pode elucidar o caso encontrado no outro
discurso; estes discursos não tem contato entre si. Por oca­
sião de uma eleição exige-se, espera-se que o povo "saiba"
votar. É impossível para um leigo decodificar o discurso
lançado ao publico por ocasião de uma campanha. Pelé
tinha razão: o povo não sabe votar! Na sua rudeza, este
homem sem instrução lançava o seu protesto, correndo o
risco de ser mal interpretado mais uma vez. Como poderia
o povo saber votar, se as mensagens são feitas para enganá­
lo? A classe média razoavelmente instruída e escolarizada
decodifica quase sempre o discurso a que me refiro ao dar
respostas irônicas, arrevesadas, buscando uma saída para a
inconsistência geral. Assim, não se trata de "geléia geral",
como por vezes dizemos (também para rir! ironicamente),
mas da mais grosseira exploração, deslavada mistificação.
O voto seria a frase que se encadearia, viria na seqüência de
outras frases que constituem o discurso do candidato ou do
partido. O eleitor se vê na situação de votar de uma maneira
coerente, quando isto não é possível. A instituição de um
outro regime (monarquia, por exemplo) reflete a tentativa

n
Incompletude e Tematizações do Real

derradeira de se conseguir uma consistência mínima, fosse


às custas de um anacronismo. O rei ou o monarca sendo um
único, é de se esperar que ele esteja no lugar de onde se
enuncia o discurso definitivo capaz de harmonizar todos os
outros. O abismo entre este discurso monarquico e o discur­
so do povo estará mantido. As tentativas falsamente técni­
cas de um IDOPE que assessora uma emissora de televisão
no sentido de alcançar um público sempre flutuante de­
monstram o arremedo de uma teoria do discurso elaborada
pretensiosamente pela teoria social, ou de marketing. A
tecnologia empregada chama a atenção, mas a pretensão é
descabida, é insustentável. O desenrolar de uma novela, o
desencadeamento de um enredo tomam-se insuportáveis
para os atores na medida em que nada faz sentido; um
amontoado de frases feito e refeito a cada semana pode ser
tudo, menos o resultado do trabalho de um escritor, roman­
cista, repórter, homem de midia, seja que nome tenha. Nos­
sos artistas de teatro se queixam, sem saber exatamente o
que tanto incomoda quando passam a atuar na televisão.
Chegam a dizer que o incomodo está no fato de terem de
decorar muitas páginas em espaço curto de tempo! Já que
está na moda, porque não um "ombudsman" para uma
análise do discurso onde se denunciasse a "geléia geral", esta
a que faríamos alusão.Tomo o exemplo da novela para
mostrar que a imaginação (encontrada na obra de ficção) ela
sozinha não pode ser responsabilizada pelo engodo; no
máximo ela será motivo de suspeição, tal como dissemos
acima em se tratando da escuta analítica. De qualquer for­
ma, aqui faz-se indispensável uma escuta política, esta aten­
ta para o engodo, a mistificação, a heterogeneidade dos
discursos. Assim não vale a pena assimilações apressadas,
como esta que aproxima o policial e o psicólogo e/ ou psi­
quiatra. Os discursos serão heterogêneos e provavelmente
o são, o que não impede de defrontarmo-nos com situações
de abuso onde os personagens em questão se confundem.

73
Célio Garcia

Outros tipos de discurso a serem analisados poderão


ser objeto de nossa atenção. O discurso "iluminista" entre
nós, mereceria especial atenção já que serve de plataforma
para a enunciação de pronunciamentos que sustentam o
regime e sua legitimação.

7. Democracia radical e o impossível


O projeto de Freud terá sido, em algum momento ("Mal
estar na civilização", "Futuro de uma ilusão", "Psicologia de
grupos e análise do ego") terá sido ampliar os efeitos da
Psicanálise a toda comunidade. Na época em que trabalhava
Freud, o pensamento político não dispunha de formulações
onde coubessem as propostas da Psicanálise. Para alcançar­
mos os objetivos colimados em projeto de tal amplitude,
temos que dispor de reflexão política, assim como de meios
que alcancem a dimensão de tal projeto. (Freud foi contem­
porâneo de uma época em que o pensamento político estava
absorvido pelo flagelo que a humanidade conhecia naquele
momento, quero dizer, o regime hitlerista e o regime estali­
nista.)
Podemos adiantar que a Psicanálise, sem ser partidária,
permite pensar uma "democracia radical"(7). Para este tipo
de pensamento em política contamos com as noções que
trouxemos até aqui, nesta exposição. Radical aqui não quer
dizer pura, verdadeira, mas faz alusão à sua radical impos­
sibilidade. Assim uma política é pensável onde se dispense
especial atenção ao acontecimento na medida em que ele
não será jamais apreendido a partir de esquemas e análise
já estabelecidos. Uma política é pensável se estamos dispos­
tos a entender o impossível como o que justamente nos é
vedado perceber num exame habitual da situação.De repen­
te o que era impossível já não é mais: aí está a realidade, a
única que nos interessa. Diremos que o impossível se toma
real; o real é o impossível, afinal de contas.

74
Inoompletude e Tematlzações do Real

Uma política é pensável desde que não se pretenda


amoldar (ou reeducar ou conscientizar ou fazer proselitis­
mo) o público a quem se dirige o militante. Toda atividade
pode e deve ser política desde que ela não vise o político.
Uma política é pensável desde que não haja ilu mina­
dos, nem profetas, nem missão a cumprir. Tanto o programa
iluminista que inspira o pensamento liberal aqui é visado
quanto o programa marxista-leninista. Cada um deles me­
rece tratamento especial; será tarefa para uma próxima vez.

Uma política é pensável desde que não se espere dema­


siado do sujeito político, nem ele veio para atender visioná­
rios ou líderes generosos. Simplesmente não há questões
maiores, enigmáticas, a serem enunciadas em tom apocalip­
tico. O sujeito é pontual, assim como sua ação.
Uma política é pensável desde que à linguagem não
seja atribuída origem divina, nem tampouco capacidade de
fazer reinar a harmonia onde só existe diversidade, contin­
gência.
Uma política é pensável desde que saibamos transar
este impossível real.
Uma política é pensáveI desde que ela não seja unifica­
da, nem pensada uma vez por todas.
(Devo este parágrafo a Alain Badiou)

8. Conclusão
Se assim é, se a proposta a que cheguei, tem um mínimo
de consistência, vou definir o que entendo por Saúde Públi­
ca, Saúde Coletiva, e Saúde a ser inventada.
Saúde Pública - enfatiza a Epidemiologia , patrocina
tratamento em massa, é solidária com o modelo Pasteu r em
termos de Imunologia e conseqüente imunização, adota
medidas impostas a uma coletivizac;ão forçada, resultando
numa pratica mecanizada de atendimento do público. Em

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Célio G.lrciA

uma palavra - a Saúde para a Instituição Pública se resume


em pensar o problema em termos de Massas.
Saúde Coletiva - conclama à participação, proclama
que é preciso "viver bem", adota "conceito ampliado" de
Saúde forjado após a Vill Conferência Nacional sobre Saú­
de, pensa a relação medico- paciente em termos de simetria,
algumas vezes acreditando que "um aprende com o outro"
(o médico aprenderia com o paciente, o que mostra o equi­
voco em que opera esta proposta de inspiração por vezes
populista), baseia-se no social a que reduz a determinação
da saúde em sua instância ultima, espera que os fins dese­
jados sejam alcançáveis graças a mudanças estruturais.
Para esta abordagem, o termo que resume será Social;
a Saúde é pensada pela Instituição Pública em termos de
Social com as aporias que este termo carrega.
Saúde a ser inventada - reconhece a d icotomia
vida/ morte onde se funda qualquer reflexão sobre a vida,
por conseguinte, a suposição será "temos que viver" ( e �o
"temos que viver bem"), diante do binomio necessidade/ de­
manda ou ação inscreve o desejo como resto não-dialetiza­
vel, afirma a assimetria entre medico/ paciente, confirma a
singularidade do sujeito (da saúde), finalmente, propõe que
tratemos a questão em termos de "saúde a ser inventada"
isto é, criada após operação de desalienação seguida de
separação onde se distingam as ilusões anteriores e o des­
pojamento a que se chega sem que haja qualquer diminuição
do desejo e do tesão. Para esta terceira abordagem, o termo
chave vem a ser Sujeito da Saúde, suas singularidades.

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Bibliografia
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René Descartes à Jacques Lacan. E.P.E.L. 1 99 1 .
A. Koyré - Entretlens sur Descartes. Galllmard. Paris 1 962
G. Frege - Ecrlts loglques et phllosophlques. Ed. du Seull.
Paris. 197 1 .
G. Frege - Les fondements de I ' arlthmetlque. Ed. du Seull •.
Paris. 1969.
J. Largeault - Loglque mathématlque. Textes. Armand
Collln. Paris. 1972.
A. Lautman - Essa! sur l' unlté das mathématlques. UGE.
1 977. Paris.
E. Negai e outros - La théorême de Goedel. Ed. Serull.
1 989. (Este volume foi organizado por Jean­
Yves Glrard)
F. de Saussure - Cours de Llngulstlque générale. Ed de
Tullo de Mauro. Payot, 1 986.
J. Lacan - Ecrlts.
J. Lacan - Semlnórlos.
A. Badiou - La nombre et les nombres. Ed. du Seull. 1 990

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