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A CATEGORIZAÇÃO DO MASCULINO E DO FEMININO E A IDEIA DE

DETERMINISMO CULTURAL: UMA CRÍTICA EPISTEMOLÓGICA AOS


USOS NORMATIVOS DO GÊNERO

Rafaela Cyrino/a1

Resumo: A partir de uma breve reconstituição histórica da origem do conceito de gênero, propõe-se
discutir como este conceito pode ser utilizado tanto para desnaturalizar as relações entre os sexos,
quanto para reforçar a manutenção de uma ordem sexual simbólica. Para conduzir a discussão
acerca dos usos normativos do gênero, abordaram-se duas ideias centrais: a ideia de determinismo
cultural e a categorização do masculino e feminino. No caso do determinismo cultural, este aparece
como um substituto do determinismo biológico veiculando a ideia que não é mais a biologia que
determina nosso comportamento sexual, mas a sociedade ou a cultura. De maneira complementar, a
categorização do masculino e do feminino conduz à utilizaçãodestes vocábulos de maneira
indiferenciada como se estes fizessem referência a atributos biológicos, psicológicos e sociais
substanciais, universais e auto-evidentes. Se o gênero atravessou fronteiras disciplinares e tornou-se
um conceito chave na luta pela igualdade entre os sexos, porque não discutir certos usos normativos
presentes em estudos utilizando o gênero enquanto categoria analítica?
Palavras-chave: categorização, masculino, feminino, determinismo cultural, gênero.

O conceito de gênero, utilizado de forma crescente à partir dos anos 70 para desnaturalizar e
desconstruir as relações assimétricas e desiguais entre homens e mulheres, não é uma criação do
movimento feminista(FASSIN, 2008; DORLIN, 2005).De fato, o conceito de gênero, surgiu nos
Estados Unidos, nos anos 1950, no meio médico.Autores atestam que o criador ou o primeiro autor
a utilizar este conceito foi John Money, psicólogo que não tinha nenhuma vinculação com a crítica
feminista e que fazia parte de equipes médicas responsáveis pelo diagnóstico e tratamento de
indivíduos ditos hermafroditas.

John Money utiliza pela primeira vez o vocábulo gender/gender rôle(gênero/papel de gênero) em
um artigo datado de 1955, para designar um atributo psicológico dos individuos diferente do sexo
biológico. O autor define da seguinte forma o novo conceito: “By the term gender role, we mean all
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Professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil.

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those things that a person says or does to disclose himself or herself as having the status of boy or man, girl
or woman, respectively (MONEY, 1995, a).2”

A partir desta conceituação supõe-se que todos os seres humanos possuem, além do seu sexo
(biológico), um gênero (psicológico), masculino, feminino ou neutro. O gênero, definido como um
atributo individual de natureza psicológica, permitiu a John Money classificarseus pacientes como
pertencendo: ao gênero feminino (se apresenta e se comporta como mulher), ao gênero masculino
(se apresenta e se comporta como homem) ou ao gênero neutro (se apresenta e se comporta tanto
como homem quanto como mulher ou não se apresenta e não se comporta nem como homem nem
como mulher). Esta classificação dos pacientes segundo um gênero, de natureza psicológica, serviu
de base para elaboração de protocolos e categorizações diagnósticas as quais passaram a orientar a
prática médica no que se refere aos indivíduos hermafroditas e transsexuais.

Por intermédio da dupla categorização do “masculino/feminino”,o sexo, pensado antes como uma
entidade estritamente biológica, determinando nosso comportamento sexual, através de uma
clivagem conceitual, é percebido como uma adição (biologia + psicologia): nós nascemos homens
ou mulheres (biologicamente falando) e nós nos tornamos homens ou mulheres (psicologicamente
falando). Dois momentos de sexuaçao do individuo, antes vistos de maneira conjunta, foram,
através da teoria do gênero de John Money e Robert Stoller, cortados em dois. Mudança no conceito
de sexo, mudança na representação do processo de tornar-se homem ou mulher.

Pode-se afirmar que o conceito de gênero criado por John Money contribuiu fortemente para
enfraquecer a importância do sexo biológico na determinação do comportamento sexual dos
individuos, ao mesmo tempo em que reforçou a importância dos fatores ditos psicológicos. Nessa
mudança de perspectiva, enquanto o sexo biológico foi sendo teorizado como mais e mais maleável
e plástico, possível de ser modificado atraves de procedimentos cirúrgicos e da administraçao de
hormônios, o gênero, foi sendo teorizado como progressivamente imutável e irreversível.

Com o enfraquecimento do biológico, as teorias elaboradas deslocam o centro de interesse para os


determinantes sociais advindos do processo de socialização da crianças, pois entende-se que o
comportamento de gênero dos individuos é determinado fundamentalmente pela socializaçao e pela
aprendizagem em familia, sobretudo na primeira infância.John Moneyet al (1955, b)

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“Através do termo, papel de gênero, quero significar todas as coisas que uma pessoa diz ou faz para mostrar aos outros
que ele ou ela possui o status de garoto ou homem, garota ou mulher, respectivamente.”

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eRobertStoller(1963,1968) chegam a afirmar que o gênero psicológico3 se estabelece uma vez por
todas na personalidade do indivíduo em torno da idade de 4 anos de vida, tornando-se, à partir daí,
um atributo do indivíduo imutável e irreversível. Assim, se agimos e nos sentimos homens e
mulheres é devido à força de um condicionamento social que recebemos desde pequenos.

Ora, não há dúvida de que esta ruptura com o biológico atraiu a atenção da crítica feminista
nascente, nos anos 1970. As primeiras autoras4 que fizeram uso do gênero dentro do quadro de uma
crítica feminista, não só fazem referência a John Money e Robert Stoler como utilizam o argumento
da ruptura com a biologia para firmar seus propósitos políticos.Em duas obras de referência, no
domínio da antropologia dita feminista, “Woman, culture and society (1974)” e “Toward na
anthropology of women (1975)”, John Money é expressamente citado para referenciar a afirmação
de que a biologia não determina o comportamento dos sexos.

Na introdução de “Woman, culture and society (1974)”, as autoras Michelle Rosaldo e Louise
Lampera, após afirmarem que as diferenças biológicas entre os sexos não possuem implicações
comportamentais e sociais, fazem referência a autores como John Money, que, através de seus
estudos chegaram a esta mesma conclusão (ROSALDO; LAMPERA, 1974, p.5). Da mesma forma,
no livro “Toward and anthropology of women (REITER, 1975, p.14)”, John Money é citado para
corroborar a afirmação de que a biologia não é um destino.Além disto, a análise realizada atesta que
os textos “inaugurais” que fazem recorrência ao “gênero” à partir de uma perspectiva feminista,
também fazem referência mais ou menos direta a autores como John Money e Robert Stoller
(OAKLEY, 1972; CHODOROW, 1974), criadores do conceito de gênero psicológico.

Entretanto, embora o conceito de gênero psicológico, ao romper com o determinismo biológico,


permita,por consequência,diminuir o peso da biologia enquanto fator determinante na explicação do
comportamento sexual dos indívíduos, é importante ficar atento aos diferentes usos que este

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Levando em conta uma proliferação do uso da palavra “gênero” no meio acadêmico à partir de 1970, estarei
utilizando, à partir deste momento, a expressão “gênero psicológico” para fazer referência ao conceito de gênero
elaborado originalmente por John Money (1955) como um atributo, de natureza psicológica, referente à sexualidade
dos indivíduos, no sentido de diferenciá-lo do conceito de gênero que chamarei de “social”, utilizado pela crítica
feminista para fazer fazer referência à construção social e às normas sociais que a sociedade constrói em torno do
“ser homem” e ser “mulher”.
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Neste trabalho realizei a análise da critica feminista nascente dos anos 1970 tendo por base algumas autoras, que
são referenciadas de maneira recorrente como as primeiras a fazer uso do conceito de gênro sob uma perspectiva
feminista: Ann Oakley (1972), no domínio da sociologia; Gayle Rubin (1975), no domínio da antropologia; Nancy
Chodorow (1974), no domínio da psicanálise. Fizeram parte também desta análise os livros: “Woman, culture and
society (1974)” e “Toward na anthropology of women (1975)”, pioneiros na inauguração da chamada “antropologia
feminista”.

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conceito pode adquirir no interior mesmo da crítica feminista. John Scott e Judith Butlersalientam,
em uma mesa redonda intitulada “Porquoi finir avec le genre (2007)”5, que o gênero, em si mesmo,
não contesta a lógica binária, porque ele pode ser utilizado tanto para colocar em questão ideias
sobre identidades sexuais quanto para reforçar uma abordagem normativa e binária. Me inspirando
nas pistas reflexivas propostas por John Scott (2007), utilizarei, à partir deste momento, a expressão
“usos normativos do gênero” para fazer referência às abordagens que, de alguma forma, contribuem
para naturalizar a maneira como a diferença sexual é concebida, em vez de problematizá-la.

Para investigar estas possiblidades normativas nos “usos do gênero”, discutirei, do ponto de vista
teórico, quais são os problemas, do ponto de vista de uma crítica feminista, do processo de
categorização do masculino e do feminino e da veiculação da ideia do determinsimo social, para,
em seguida analisar, na crítica feminista nascente dos anos 70 e em algumas abordagens
organizacionais, como certas ideias conservadoras podem se apresentar e como podem ser
perpetuadas sob o signo do discurso políticamente correto da “igualdade de gênero”.

O processo de categorização do masculino e do feminino e a ideia dedeterminismo social: uma


crítica epistemológica

Para investigar a ampliação do processo de categorização do masculino e do feminino de um ponto


de vista epistemológico, é importante considerar que a classificação de indivíduos em um gênero
psicológico masculino, feminino ou neutro, tal como foi preconizada por autores como John Money
e Robert Stoller, não pode ser ancrada em nenhum substrato substancial ou irredutível presente na
realidade. Não existem características irredutíveis ou “quase irredutíveis” que permitam uma
categorização dos individuos em um gênero determinado, tal como ocorre, em geral6, no caso do
pertencimento sexual (presença de pênis- sexo masculino; presença de vagina- sexo feminino).

Se para ser classificado em um gênero feminino eu tenho que me sentir e me comportar como
mulher, como definir, de maneira objetiva, o que significa se sentir e se comportar como homem ou
como mulher? Trata-se, evidentemente, de algo extremamente fluido e subjetivo, que não encontra
apoio em nenhuma realidade objetiva, visto que se referem à realidades com uma âncragem
notadamente social (normas sociais, valores culturais, etc). Entretanto, mesmo se inexiste um

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“Porque acabar com o gênero?”
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As alterações sofridas no próprio conceito de sexo não nos permite mais afirmar que a presença de um órgão sexual
determinado (pênis ou vagina) define, de maneira incontestável, o pertencimento sexual dos indivíduos a uma dada
categoria sexual. Daí a justificativa para o fato de termos acrescentado a expressão “em geral” a esta frase.

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substrato material que dê apoio à categorização dos individuos segundo um gênero determinado, é
importante salientar que, para que o processo de categorizaçãofosse colocado em marcha, seria
necessário a criação de recursos simbólicos que criassem a aparência de estabilidade e coerência.

Ora, o que serviu de substrato para dar a aparência de coerência e estabilidade à recém categoría
criada, o gênero psicológico, foi justamente o processo de categorização social, pois a refêrencia
que permite aos individuos serem classificados em um ou outro gênero é de natureza social. Com
isto cria-se um processo de normalização perversa, contrário aos propósitos de uma crítica
feminista, porque opera naturalizando, legitimando e perpetuando crenças, valores e
comportamentos atribuidos aos sexos.

Considera-se aqui que este mesmo processo de essencialização e naturalização pode ser reativado
toda vez que se recorre a tais categorias para fazer referência seja ao mundo psíquico, seja social,
seja cultural, pois, ao fazê-lo, cria-se uma ilusão de que as características que permitem a inclusão
de individuos em determinada categoria são uma realidade auto-evidente, possuem um substrato
concreto, são homogêneas e estáveis, o que só contribuia para a sua perpetuação e legitimação.

Outra questão importante investigada neste artigo refere-se à compreensão das maneiras pelas
quais, no quadro de uma crítica feminista, pode-se veicular, em certos usos normativos do conceito,
uma ideia de determinismo sociocultural, privilegiando-se, de maneira excessiva, o
condicionamento social. Neste caso será que não estaríamos veiculando um discurso que apresenta
o “tornar-se mulher” ou “tornar-se homem” como um destino (social) do qual ninguém pode
escapar?Até que ponto este pressuposto não nos conduz a prestarmos pouca atenção às clivagens, às
dissonâncias, às incoerências, às subversões e ao próprio processo de mudança?

Ao se definir gênero como uma construção social, relacionada com valores, normas sociais e
crenças que são associadas a homens e mulheres, mister se faz acrescentar que esta construção
social temum caráter situado, heterogêneo e dinâmico, salvo se a considerarmos um atributo
essencial universal. Do ponto de vista analítico isto significa, a meu ver, a recusa tanto da
categorização do masculino e feminino para fazer referência a realidades psíquicas, sociais e
culturais estáveis, coerentes e com ares de essência, quanto de um suposto sistema social de gênero
determinando de maneira automática o que somos enquanto homens e mulheres, já que isto pode
conduzir a uma espécie de naturalização em que os aspectos fluidos e a incoerência de certos
atributos sejam negligenciados em favor de uma suposta realidade homogênea auto-evidente.

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A crítica feminista dos anos 70: entre rupturas e normatizações

A crítica feminista dos anos 70 evidenciou tanto a existência de relações assimétricas e desiguais
entre os sexos quanto colocou em questão fundamentos biológicos e naturais que foram
historicamente construídos para legitimar e perpetuar tais relações. Neste contexto, a ruptura com
fundamentos biológicos foi bastante importante, visto que, para avançar em suas proposições,
considerou-se necessário desvelar discursos que naturalizavam os sexos e que supunham uma
inferioridade da mulher associada a atributos biológicos.

Uma análise de conteúdo dos artigos fundadores do conceito de gênero social7evidenciou que a
criticafeminista nascente, ao mesmo tempo em que utilizou a ideia de ruptura com o biológico
contida no conceito de gêneropsicológico, substituiu, à partir do conceito de gênero social, o
determinismo biológico por uma espécie de determinismo social. Assim, no quadro dos estudos
nascentes de gênero, afirmar-se-à de maneira recorrente: “nao é a biologia que determina o nosso
tornar-se mulher ou homem, é bem a sociedade ou a cultura”.

No que se refere ao uso do conceito de gênero, cumpre ressaltar que, apesar de certa imprecisão
conceitual, o vocábulo “gênero” bem como expressões derivadas, podem ser encontradas, entre
elas: gênero (OAKLEY, 1972; CHODOROW, 1974; RUBIN, 1975), papéis de gênero (OAKLEY,
1972; RUBIN, 1975), identidade de gênero (OAKLEY, 1972; RUBIN, 1975; CHODOROW, 1974),
sistemas de sexo/gênero (RUBIN, 1975).Ao observarmos de que maneira as diversas derivações do
vocábulo gênero se articulam nos artigos, contatou-se que, de maneira recorrente, as autoras
estabelecem uma relação causal entre determinada ordem social opressora (identificada como
gênero/sistema de gênero) e determinados produtos desta ordem, a saber: identidades de gêneros e
papéis de gênero masculinos e femininos.

Tal nexo causal fortalece a ideia de determinismo sociocultural, atribuindo um grande poder às
supostas normas de gênero, assim como pressupondo um processo de submissão mais ou menos
automático a estas normas, dando pouco espaço, portanto, para a análise de clivagens e
incoerências. De acordo com estes artigos, na base deste processo de opressão, encontra-se o
processo de socialização (CHODOROW, 1974; RUBIN, 1975), a aprendizagem cultural
(OAKLEY, 1972), o condicionamento social (CHODOROW, 1974).

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Os seguintes artigos e livros fizeram parte desta analise: (RUBIN, 1975; OAKLY, 1972; CHODOROW, 1974). As
referências completas encontram-se no final do artigo.

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Ora, uma cultura puissante conduz a uma concepção do indivíduo submisso, vitima do sistema.
Poderiamos pensar, então, em uma reificacão do gênero social na critica feminista nascente? Se
esta reificação ocorreu de alguma forma, é possível que ela ainda sirva de suporte téorico em certos
usos do gênero? É possivel que a cultura seja apresentada em certas análises como o vetor
explicativo único do nosso “tornar-se homem ou mulher”. Como achar um espaço para pensar o
duplo processo de constituiçao do individuo, entre “ser sujeito” e “ser submisso”?

Outro problema que merece ser investigado refere-se a certo isomorfismo conceitual que consiste
em utilizar os vocábulos “masculino” e “feminino” de maneira intercambiável para se referir, ora a
aspectos biológicos, ora a aspectos psíquicos, ora a aspectos sociais. Na crítica feminista dos anos
70 observa-se claramente este fenômeno de isomorfismo conceitual. As autoras utilizam os termos
“masculino”, “feminino”, “masculinidade”, “feminilidade”, de maneira indiferenciada, sem
nenhuma precisão, o que traz muita dificuldade para a compreensão de certos trechos.

Considera-se que por intermédio deste isomorfismo conceitual informado pela categorizaçao sexual
pode-se lançar mão destes vocábulos como se fossem realidades auto-evidentes e auto-explicativas.
Ora, cumpre aqui ressaltar que o fato de que a categorização atribuída ao sexo permanece
dissimulada pode levar a atalhos simbólicos perigosos do ponto de vista de uma teoria crítica.
Finalmente, pode-se afirmar que este processo de categorizaçao do “masculino” e do “feminino”,
além de evitar a noção de inconstância cultural, pode nos levar a atribuir valor a estas categorias.
Assim, tendo como objetivo a ideia de romper com o principio de superioridade que orienta a
relação entre os sexos, pode-se inverter os termos do debate com o objetivo de mostrar que aquilo
que chamamos “feminino” deve ser valorizado socialmente. Farei uma breve incursão à respeito
desta estratégia analítica ao abordaros usos normativos do gênero nas teorias organizacionais.

Usos normativos de gênero: uma breve análise das teorias organizacionais

Para investigar certos usos normativos do gênero farei uma breve análisesobre a maneira como
determinadas abordagens organizacionais, centradas em um discurso de busca de uma maior
igualdade entre os sexos, fazem uso da categorização do masculino e do feminino e de certo
determinismo social para fundar seus propósitos argumentativos. Embora não haja nenhuma
pretensão de realizar uma análise exaustiva a este respeito, apresentarei alguns pontos de partida
que podem contribuir para a construção de um quadro epistemológicode referência nos permitindo
uma leitura crítica daquilo que é produzido no vasto dominio dos estudos de gênero.

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Para exemplificar a generalização dos vocábulos masculino e feminino, reproduzo, abaixo, certos
usos das palavras masculino e feminino encontrados nas teorias organizacionais ditas de gênero:
normas masculinas, mundo masculino da empresa, estratégias masculinas, profissões à dominância
masculina, valores masculinos, poder feminino, atitude masculina, cultura masculina, dominação
masculina, tarefas femininas, domínio feminino, competências femininas, estilo de liderança
feminino? Os autores se referem exatamente a que realidade quando utilizam os vocábulos feminino
ou masculino? Ao sexo biológico dos individuos? Ou eles se referem ao gênero psicológico,
também conhecido como a“identidade de genero”? Ou ainda, será que se trata do gênero
social?Porque utilizar o masculino e o feminino como adjetivos qualificativos auto-evidentes?

Ainda no domínio da gestão observa-se que algumas abordagens atribuem determinadas


carcterísticas a homens e mulheres, contribuindo para naturalizá-las. Autores como Pierre Sarda
(2007) buscam justificar a importância da presença das mulheres em postos de direção em razão do
seu suposto senso de justiça, da sua capacidade de trabalhar em equipe, da sua capacidade de
comunicação interpessoal, entre outros.Alguns autores (BLANCHARD;SARGENT, 1984),
defendendo a ideia de complementariedade entre os sexos recorrem à ideia de androgenia para
propor uma sínteseque permita pensar uma organização mais igualitária no que se refere à relação
entre os sexos. Kenneth Blanchard et al (1984) explicam a proposta de uma gestão andrógina: “The
term androgynous manager describes the new management mode encouraging a mix of masculinity and
feminility8 (BLANCHARD; SARGENT, 1984, p. 85)”.
Dando continuidade à esta analise, torna-se interessante analisar também as controvérsias, no
domínio das teorias de gestão, em torno da existência ou não de uma gerência ao feminino. Apesar
da falta de consenso sobre a existência de uma gerência ao masculino/ feminino, alguns autores
atestam, em seus estudos, uma maneira de gerenciar diferente para homens e mulheres (RENAUD-
BOULART, 2005;BETTS, 2000). Entretanto, se no quadro de um estudo qualquer os autores
observam uma diferença no estilo de gestão de homens e mulheres, utilizar generalizacões
expressas na ideia de uma “gestão ao feminino” ou de uma “gestão ao masculino”, é algo que
merece uma maior atenção analitica, pois pode veicular a ideia simplista de que a bicategorizacao
associada ao biológico ou ao social encontra no comportamento dos individuos sexuados uma
correspondência real.

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“O termo andrógino descreve o novo modo de gestão proposta que encoraja uma mistura de masculinidade e
feminilidade.”

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Por fim, é importante salientar que a utilização destas expressões nem sempre vem acompanhada de
uma reflexão crítica sobre a construção social destas categorías. Nestes casos, pode-se tomar a
existência de uma liderança sexuada como sendo decorrência de uma natureza diferente entre os
sexos, reforçando assim argumentos naturalistas acerca de certas caracteristicas atribuidas aos
sexos. Cabe ainda se perguntar: Até que ponto este processo de categorização reforça a manutenção
de homens e mulheres em relações de binaridade? É este o objetivo de uma crítica feminista?

Conclusões

Este estudo buscou analisar, de um ponto de vista epistemológico, certos usos normativos do gênero
que contribuem para naturalizar a maneira como a diferença sexual é concebida, tendo como
parâmetro duas referências principais: a ideia de determinismo sociocultural e a categorização dos
vocábulos “feminino” e “masculino”. A investigação epistemológica acerca dos usos normativos de
gênero partiu de sua origem no meio médico,analisando-se, em seguida,os primeiros escritos que
supostamente inauguraram oconceito de gênero no quadro de uma crítica feminista, terminando
com uma breve análise de certos usos normativos do gênero em abordagens organizacionais.

No caso do determinismo sócio-cultural postulou-se que este, além de afastardo crivo da análise as
clivagens presentes na realidade, contribui para a manutenção de determinada ordem simbólica,
podendo veicularuma ideia de que “tornar-se homem” ou “mulher” seja um destino implacável do
qual ninguém pode escapar. Neste sentido, considera-se importante, para evitar a sedução de
abordagens fatalistas, investir-se em estudos que resgatem o papel do indivíduo face às normas de
gênero contextuais, situacionais e históricas com as quais nos confrontamos.

Na abordagem do processo de categorização dos vocábulos masculino e feminino, discutiu-se os


mecanismos de essencialização que estes engendram, os quais contrariam frontalmente os
propósitos de uma crítica feminista.Cabe aqui uma reflexão final: o isomorfismo categorial à base
deste poderia permitir que se acione, de maneira simbólica e velada, uma imagem de um
MASCULINO e FEMININO universal, auto-evidente, unificado, coerente, estável, auto-
explicativo, implacável, irresistível? A partir destas reflexões, alerto para o fato de que, com a
generalização do processo de categorização do “masculino” e do “feminino”, osexo biológico, o
gênero psicológico e o gênero social podem se tornar companheiros inseparáveis, apesar de que
seus “encontros secretos”, por situarem-se no plano simbólico, ocorram de maneira dissimulada.

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The categorization of masculine and feminine and the idea of cultural determinism: an
epistemological critique of the normative uses of the gender

Abstract: From a brief historical reconstruction of the origin of the concept of gender, it is
proposed to discuss how this concept can be used for both denature the relations between the sexes,
as to enhance the maintenance of a sexual order symbolic, which, instead of problematize,
naturalizes and takes as evidence the existence of asymmetric and binary relations between the
sexes. To lead the discussion of the normatives uses of the genre, we discuss two central ideas: the
idea of cultural determinism and categorization of masculin and feminin. In the case of cultural

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determinism, this appears as a substitute for biological determinism and conveys the idea that there
is no more the biology that determines our sexual behavior, but society or culture. In a
complementary way, the categorization of masculine and feminine leads to the use of these words
indiscriminately as if they did reference to the attributes biological, psychological and social
substantial, universal and self-evident. If gender crossed disciplinary boundaries and has become a
key concept in the struggle for equality betwen the sexes, why not discuss the normative uses in
studies using gender as an analytical category?
Keywords: categorization, masculine, feminine, cultural determinism, gender.

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