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Poder Judiciário

Justiça Federal de Primeira Instância da 5ª Região


Seção Judiciária de Sergipe
2a Vara
PROCESSO Nº: 0800477-19.2023.4.05.8500 - MANDADO DE SEGURANÇA CÍVEL
IMPETRANTE: TEÓFILO BARBOSA DOS SANTOS
ADVOGADO: Fagner Nascimento Soares
IMPETRADO: FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
AUTORIDADE COATORA: REITOR DA UFS E PRESIDENTE DO CONSELHO UNIVERSITÁRIO
- VALTER JOVINIANO DE SANTANA FILHO e outro
2ª VARA FEDERAL - SE (JUIZ FEDERAL TITULAR)
DECISÃO
1. Relatório.
Trata-se de mandado de segurança impetrado por Teófilo Barbosa dos Santos
contra ato supostamente ilegal praticado pelo Reitor e pelo Pró-Reitor de
Graduação da Fundação Universidade Federal de Sergipe (UFS), objetivando
a concessão de liminar para determinar:
1. A suspensão do ato de convocação realizado através do edital
n.º 04/2023/PROGRAD, abstendo-se a Universidade Federal de
Sergipe em convocar a Impetrante à novas aferições de
heteroidentificação;

2. Que a Universidade Federal de Sergipe abstenha-se de


realizar a providência contida no item 6.2 do Edital de
convocação supracitado no caso de não comparecimento da
discente (inquérito do Ministério Público para adoção das
providências cabíveis);

3. A manutenção de seu vínculo junto à Universidade Federal de


Sergipe, sob a matrícula n.º 201700003068, com fundamento no
art. 7.º, III, da Lei 12.016/09;
Como suporte fático do seu pleito, alega o seguinte:
O impetrante prestou o exame nacional do ensino médio (ENEM) em
2016, inscrevendo-se no processo seletivo do SISU 2017.1,
conseguindo, com sua nota, ingressar no curso de Medicina da
Universidade Federal de Sergipe (Campus de Lagarto), por meio
do Edital n.º 32/2016/PROGRAD, compondo o grupo D3 (PPI, renda
> 1,5) - Candidatos que tenham cursado integralmente o ensino
médio em escolas públicas; autodeclarados pretos, pardos ou
indígenas; e com renda familiar bruta superior a 1,5 (um
vírgula cinco) salário-mínimo per capta.
Ato contínuo, devidamente cumpridos todos os requisitos
previstos Edital n.º 32/2016/PROGRAD - processo seletivo, a
parte autora realizou sua pré-matrícula e matrícula
institucionais no curso, dando início à graduação no período
letivo 2017.2, e cursando o componente desde então sob o n.º de
matrícula 201700003068.
Ocorre que em 24 de janeiro de 2023, a Fundação Universidade
Federal de Sergipe (UFS), por ato dos impetrados, através do
Edital n.º 04/2023/PROGRAD, convocou o impetrante e vários
outros discentes para uma apuração extraordinária de denúncias
relativas a supostas irregularidades na autodeclaração racial
no âmbito do sistema de cotas. A referida aferição ocorrerá no
próximo dia 15 de fevereiro, ficando o procedimento a cargo de
uma Comissão de Heteroidentificação instituída pela UFS.
No entanto, tal convocação reveste-se de ilegalidade na medida
em que o edital de ingresso do impetrante na Universidade não
previu a realização de procedimentos complementares à
autodeclaração, sendo esta, à época, única e exclusivamente
suficiente ao cumprimento dos requisitos para integração dos
grupos de estudantes que ingressaram no ensino superior
mediante o sistema de cotas raciais.
O edital de seleção n.º 32/2016/PROGRAD, ao qual se submeteu o
impetrante ao se inscrever no processo seletivo para ingresso
no curso de medicina da UFS, expressamente previu que a
autodeclaração racial exigida no ato de inscrição tinha como
norte o critério do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística. Destaca-se seu item 3.2:
3.2 O candidato que optar em sua inscrição no SISU 2017.1 por
concorrer pela Reserva de Vagas/Cotas da população de Pretos,
Pardos e Indígenas (PPI) estará automaticamente declarando-se
preto, pardo ou índio, conforme a metodologia adotada pelo
IBGE, nas pesquisas do censo populacional (Grifou-se).
Neste sentido, por sempre ter se reconhecido como pardo, tanto
por suas características físicas, quanto por sua origem
genealógica (critério da ancestralidade), na oportunidade do
processo seletivo de ingresso à Universidade não foi diferente
a declaração da parte impetrante, que ratificou sua convicção a
respeito de sua composição étnico-racial.
No entanto, surpreendeu-se com a convocação da Universidade,
que busca, quase seis anos após o ingresso da impetrante no
curso, lhe impor um requisito que não constava previsto no
edital do processo seletivo de origem, qual seja: a aferição
complementar da sua autodeclaração racial, exclusivamente pelo
critério fenótipo, através de uma banca de heteroidentificação.
Para esclarecimento, a origem desta banca adveio da celebração,
entre o Ministério Público Federal (MPF) e a UFS, do Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC) n.º 001/2020 (segue em anexo), em
que a Fundação se comprometeu em instalar a comissão para
regularizar o ingresso dos estudantes mediante o sistema de
cotas e, dentre outras coisas, estabeleceu, em sua cláusula
terceira, a utilização do critério exclusivamente fenotípico
para apuração étnica.
Entretanto, no próprio TAC, firmado em 20 de janeiro de 2020,
há a delimitação, em duas de suas cláusulas, de que os
procedimentos de heteroidentificação se dariam a partir da data
de sua assinatura, sem menção expressa, em qualquer passagem do
termo, à retroação da atividade da comissão. Destaca-se:
(...)
Observa-se o cuidado do termo em amparar devidamente as
comissões de heteroidentificação para os processos seletivos
cujos editais fossem publicados a partir daquela data, não
havendo, repita-se, menção alguma à aplicação do procedimento
de heteroidentificação à processos seletivos anteriores.
Além disso, consta do referido TAC que a instalação da comissão
de heteroidentificação deve atender, como um de seus requisitos
mínimos à sua aplicação, a sua regular previsão nos editais dos
processos seletivos e concursos públicos realizados pela UFS,
como mecanismo de controle e fiscalização do sistema de cotas.
Veja-se de maneira destacada:
(...)
Como se vê, o próprio Termo de Ajustamento firmado, que
consignou a obrigação da UFS em instituir as comissões de
heteroidentificação, foi bastante claro ao vincular sua
utilização para processos seletivos cujos editais fossem
publicados a partir daquela data, de sorte a igualmente ser
requisito de sua aplicação a correlata previsão nos editais
vindouros.
No entanto, a Fundação, através das autoridades coatoras,
ignorou tal delimitação e convocou inúmeros discentes que
ingressaram em seus cursos em datas anteriores a 20 de janeiro
de 2020 (assinatura do TAC), dentre eles a parte autora.
Destarte, não resta alternativa ao impetrante senão se socorrer
da presente ação para afastar o ato coator e não ser indevida e
ilegalmente submetido ao procedimento de heteroidentificação
cuja previsão não constou do edital de seleção ao qual se
submeteu. (grifos no original)
A título de fundamento jurídico, invoca o controle judicial da legalidade
dos atos administrativos do poder executivo e a violação dos princípios
da segurança jurídica e da razoabilidade, colacionando julgados que
entende favoráveis à sua tese.
Ao final, formula seus pleitos, nos seguintes termos:
h) Que ao final seja julgado procedente o pedido, com a
confirmação da concessão da ordem, atribuindo-se caráter
definitivo à tutela liminar vindicada, para que seja declarada
a ilegalidade ato convocatório materializado pelo Edital de
Convocação Edital nº 04/2023/PROGRAD, bem como determinado que
a impetrada se abstenha de realizar novas convocações ao
impetrante, bem ainda que se abstenha de cancelar sua
matrícula, de forma definitiva. (grifos no original)
Com a inicial junta procuração e documentos.
Gratuidade judiciária deferida, id. 4058500.6658024.
Determinada a emenda da inicial, tal providência é atendida, id.
4058500.6659196.
O impetrante peticiona, juntando documentos, ids. 4058500.6674199,
4058500.6674200 e 4058500.6674201.
2. Fundamentação.
2.1. Considerações iniciais.
As leis que estabelecem reserva de vagas (cotas) para ingresso de negros
e pardos no serviço público federal (Lei n. 12.990/2014) e nas
Universidades de ensino superior federais (Lei n. 12.711/2012) almejam
promover o princípio da igualdade, em sua dimensão material, reparando
efeitos da discriminação racial.
A constitucionalidade de tais medidas é reconhecida pelo Supremo Tribunal
Federal na ADPF n. 186/DF e na ADC n. 41/DF, tendo sido assentada,
também, a legitimidade do procedimento de heteroidentificação, fundado no
exame do fenótipo, para distinguir os beneficiados pela política pública:
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ATOS QUE
INSTITUÍRAM SISTEMA DE RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO
ÉTNICO-RACIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRESSO EM
INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR. ALEGADA OFENSA AOS
ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII, 5º, I, II XXXIII, XLI,
LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207, CAPUT, E 208, V, TODOS
DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I - Não
contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade
material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a
possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho
universalista, que abrangem um número indeterminados de
indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de
ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de
maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um
tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de
desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
II - O modelo constitucional brasileiro incorporou diversos
mecanismos institucionais para corrigir as distorções
resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da
igualdade. III - Esta Corte, em diversos precedentes, assentou
a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa. IV -
Medidas que buscam reverter, no âmbito universitário, o quadro
histórico de desigualdade que caracteriza as relações étnico-
raciais e sociais em nosso País, não podem ser examinadas
apenas sob a ótica de sua compatibilidade com determinados
preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a
partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros,
devendo, ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço
principiológico sobre o qual se assenta o próprio Estado
brasileiro. V - Metodologia de seleção diferenciada pode
perfeitamente levar em consideração critérios étnico-raciais ou
socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade acadêmica
e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de
ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro,
conforme dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça
social, hoje, mais do que simplesmente redistribuir riquezas
criadas pelo esforço coletivo, significa distinguir, reconhecer
e incorporar à sociedade mais ampla valores culturais
diversificados, muitas vezes considerados inferiores àqueles
reputados dominantes. VII - No entanto, as políticas de ação
afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são
legítimas se a sua manutenção estiver condicionada à
persistência, no tempo, do quadro de exclusão social que lhes
deu origem. Caso contrário, tais políticas poderiam converter-
se benesses permanentes, instituídas em prol de determinado
grupo social, mas em detrimento da coletividade como um todo,
situação - é escusado dizer - incompatível com o espírito de
qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo,
outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios
empregados e os fins perseguidos. VIII - Arguição de
descumprimento de preceito fundamental julgada improcedente.
(STF, ADPF nº 186/DF, Relator Ricardo Lewandowski, Plenário,
25/04/2012)
Direito Constitucional. Ação Direta de Constitucionalidade.
Reserva de vagas para negros em concursos públicos.
Constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Procedência do
pedido. 1. É constitucional a Lei n° 12.990/2014, que reserva a
pessoas negras 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos
para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no
âmbito da administração pública federal direta e indireta, por
três fundamentos. 1.1. Em primeiro lugar, a desequiparação
promovida pela política de ação afirmativa em questão está em
consonância com o princípio da isonomia. Ela se funda na
necessidade de superar o racismo estrutural e institucional
ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade
material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais
equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da
população afrodescendente. 1.2. Em segundo lugar, não há
violação aos princípios do concurso público e da eficiência. A
reserva de vagas para negros não os isenta da aprovação no
concurso público. Como qualquer outro candidato, o beneficiário
da política deve alcançar a nota necessária para que seja
considerado apto a exercer, de forma adequada e eficiente, o
cargo em questão. Além disso, a incorporação do fator "raça"
como critério de seleção, ao invés de afetar o princípio da
eficiência, contribui para sua realização em maior extensão,
criando uma "burocracia representativa", capaz de garantir que
os pontos de vista e interesses de toda a população sejam
considerados na tomada de decisões estatais. 1.3. Em terceiro
lugar, a medida observa o princípio da proporcionalidade em sua
tríplice dimensão. A existência de uma política de cotas para o
acesso de negros à educação superior não torna a reserva de
vagas nos quadros da administração pública desnecessária ou
desproporcional em sentido estrito. Isso porque: (i) nem todos
os cargos e empregos públicos exigem curso superior; (ii) ainda
quando haja essa exigência, os beneficiários da ação afirmativa
no serviço público podem não ter sido beneficiários das cotas
nas universidades públicas; e (iii) mesmo que o concorrente
tenha ingressado em curso de ensino superior por meio de cotas,
há outros fatores que impedem os negros de competir em pé de
igualdade nos concursos públicos, justificando a política de
ação afirmativa instituída pela Lei n° 12.990/2014. 2. Ademais,
a fim de garantir a efetividade da política em questão, também
é constitucional a instituição de mecanismos para evitar
fraudes pelos candidatos. É legítima a utilização, além da
autodeclaração, de critérios subsidiários de
heteroidentificação (e.g., a exigência de autodeclaração
presencial perante a comissão do concurso), desde que
respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o
contraditório e a ampla defesa. 3. Por fim, a administração
pública deve atentar para os seguintes parâmetros: (i) os
percentuais de reserva de vaga devem valer para todas as fases
dos concursos; (ii) a reserva deve ser aplicada em todas as
vagas oferecidas no concurso público (não apenas no edital de
abertura); (iii) os concursos não podem fracionar as vagas de
acordo com a especialização exigida para burlar a política de
ação afirmativa, que só se aplica em concursos com mais de duas
vagas; e (iv) a ordem classificatória obtida a partir da
aplicação dos critérios de alternância e proporcionalidade na
nomeação dos candidatos aprovados deve produzir efeitos durante
toda a carreira funcional do beneficiário da reserva de vagas.
4. Procedência do pedido, para fins de declarar a integral
constitucionalidade da Lei n° 12.990/2014. Tese de julgamento:
"É constitucional a reserva de 20% das vagas oferecidas nos
concursos públicos para provimento de cargos efetivos e
empregos públicos no âmbito da administração pública direta e
indireta. É legítima a utilização, além da autodeclaração, de
critérios subsidiários de heteroidentificação, desde que
respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o
contraditório e a ampla defesa".(ADC 41, Relator(a): ROBERTO
BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2017, PROCESSO
ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 16-08-2017 PUBLIC 17-08-2017)
(grifos nossos)
De sua parte, o procedimento de heteroidentificação é legítimo, desde que
previsto e seja respeitada a dignidade da pessoa humana e garantidos o
contraditório e a ampla defesa. Em vez de frustrar a política de reserva
de vagas, tal procedimento se destina justamente a assegurar que a
política pública atinja sua finalidade.
2.2. Do pedido liminar.
Objetiva o autor o deferimento de liminar para determinar: a) A suspensão
do ato de convocação realizado através do edital n. 04/2023/PROGRAD,
abstendo-se a Universidade Federal de Sergipe em convocar a Impetrante à
novas aferições de heteroidentificação; b) Que a Universidade Federal de
Sergipe abstenha-se de realizar a providência contida no item 6.2 do
Edital de convocação supracitado no caso de não comparecimento da
discente (inquérito do Ministério Público para adoção das providências
cabíveis); c) A manutenção de seu vínculo junto à Universidade Federal de
Sergipe, sob a matrícula n.º 201700003068, com fundamento no art. 7.º,
III, da Lei 12.016/09.
Em resumo, alega que sua convocação para realizar processo de
heteroidentificação através do Edital PROGRAD n. 4/2023, publicado em
24/1/2023, id. 4058500.6650865, não pode retroagir para alcançar seu
ingresso na UFS que se deu com base no Edital PROGRAD n. 32/2016.
A concessão de provimentos de urgência, em mandado de segurança, exige a
concomitância de dois requisitos, quais sejam, a relevância do fundamento
(fumus boni iuris) e a possibilidade de a medida se tornar ineficaz se
vier a ser deferida apenas ao final (periculum in mora - art. 7º, inc.
III, Lei n. 12.016/2009).
O ato impugnado - Edital PROGRAD n. 4/2023 - tem em mira o Termo de
Ajustamento de Conduta do MPF n. 1/2020, através do qual UFS assumiu o
compromisso de implementar comissão de heteroidentificação para todos os
processos seletivos de ingresso de discentes cujos editais viessem a ser
publicados a partir da data de celebração do ajuste (Cláusula Segunda),
que se deu em 20/1/2020.
O autor ingressou na Universidade pelo Processo Seletivo SISU/MEC 2017.1,
precedido do Edital PROGRAD n. 32/2016. Não se trata, assim, de processo
seletivo abrangido pelo TAC, eis que é anterior à celebração do ajuste.
Ainda que a situação do impetrante não esteja abrangida pelo TAC firmado
pela UFS junto ao MPF, já consignei em outras demandas similares que a
IES não está impedida de perfazer a verificação da higidez da
autodeclaração firmada pelo discente, quando do seu ingresso, desde que
existam fundados indícios de que tenha sido inverídica.
É que a pessoa branca que se declara negra ou parda para se beneficiar da
reserva de vagas fornece, em tese, informação inverídica e se sujeita às
sanções anunciadas no edital que rege o certame. Assim, o edital respalda
a ação administrativa, desde quando a instituição de ensino decline quais
indícios existem ou lhe foram trazidos para que assim atue, permitindo ao
discente o exercício da ampla defesa.
A Administração Pública, no exercício da autotutela, possui o poder-dever
de zelar pela conformidade dos atos nela praticados com o ordenamento
jurídico, devendo anular aqueles eivados de vícios e podendo revogar os
atos válidos, por conveniência e oportunidade. Cuida-se de entendimento
há muito encampado pelas Súmulas n. 346 e n. 473 do STF:
Súmula 346: A Administração Pública pode declarar a nulidade
dos seus próprios atos.
Súmula 473: A administração pode anular seus próprios atos,
quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque dêles
não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de
conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos
adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação
judicial.
A Administração Pública zela, assim, pelo regular cumprimento da Lei
12.711/2012, que instituiu a política de cotas raciais no âmbito
universitário e, por consequência, pelos princípios da legalidade e da
igualdade.
Como visto, o autor sustenta que a heteroidentificação não pode ser
realizada, por não ter sido prevista no processo seletivo a que ele se
submeteu, isto é, Edital n. PROGRAD n. 32/2016, id. 4058500.6650872.
Primeiramente, deve ser consignado que, aqui, não se cuida da
heteroidentificação como etapa confirmatória da autodeclaração durante o
processo seletivo, mas de medida adotada posteriormente à efetivação da
matrícula para apurar a veracidade da autodeclaração.
Para tanto, deve ser observado o Edital UFS-PROGRAD n. 32/2016, sob o
qual ingressou o discente na instituição de ensino, quando refere
expressamente, no item 8.3, o seguinte:
[...] o candidato que, comprovadamente, apresentar documentos
falsos, fornecer informações inverídicas, utilizar quaisquer
meios ilícitos ou descumprir as normas deste Edital será
eliminado do processo seletivo e perderá o direito à vaga, a
qualquer tempo, mesmo depois de matriculado, estando sujeito à
aplicação das penalidades legais.
Dessa forma, o ato praticado pela UFS, de submissão do autor à Comissão
de Heteroidentificação, há de ser baseado em justa motivação (elementos
indiciários sobre a alegada não correspondência à realidade da
autodeclaração firmada pelo requerente quando do seu ingresso), para que
se enquadre no item 8.3 do Edital UFS-PROGRAD n. 32/2016.
A convocação do impetrante se perfaz através do Edital PROGRAD n. 4/2023,
o qual veicula a seguinte motivação, id. 4058500.6650865:
1. A convocação extraordinária decorre do recebimento de
denúncias a discentes desta Instituição de Ensino Superior, que
ingressaram através das cotas destinadas aos candidatos que se
autodeclararam negros (pretos e pardos) e que permanecem com
vínculo ativo nesta data.
Tal motivação é genérica, eis que: a) não individualiza as condutas
atribuídas ao discente convocado; b) não esclarece qual meio foi
utilizado para recebimento de tais "denúncias" e qual o conteúdo delas;
c) não consigna quais os indícios que existem para a configuração da
suposta falsidade.
Dessa forma, a instituição de ensino, por via oblíqua (motivação genérica
contida no Edital PROGRAD n. 4/2023), finda por alterar o ato
administrativo primevo - Edital UFS-PROGRAD n. 32/2016 - eis que, sem
qualquer demonstração indiciária, convoca o discente para submissão à
banca, como se essa fosse etapa corriqueira e cotidiana do procedimento.
Demais disso, submete o discente a uma situação de completa insegurança
jurídica, eis que, sendo a autodeclaração firmada em contexto deveras
subjetivo, e sem que haja um indício concreto de falsidade (como exige o
item 8.3 do Edital UFS-PROGRAD n. 32/2016), passa ele a se submeter a um
procedimento ulterior, baseado em critérios que eram desconhecidos à
época da autodeclaração firmada, com graves riscos à estabilidade do seu
curso e da sua própria esfera de direitos.
Preenchido, assim, o requisito do fumus boni iuris.
No que se refere ao periculum in mora, há de se ter em conta que a
submissão do discente ao procedimento impugnado, sem que esteja
caracterizada a situação prevista no Edital UFS-PROGRAD n. 32/2016, item
8.3, acarreta constrangimento, eis que não é etapa confirmatória
necessária da autodeclaração, mas para apurar situações de possível
falsidade em tal autodeclaração.
De outra parte, inexiste risco de irreversibilidade do provimento ora
deferido. Primeiro, porque basta que a instituição de ensino comprove
nestes autos ter havido a motivação específica relacionada ao
impetrante/Teófilo Barbosa dos Santos para evidenciar a legitimidade de
sua convocação; segundo, porque, em sendo denegada a ordem (por qualquer
motivo posterior), a UFS poderá submeter o impetrante à banca, sem
qualquer empecilho.
3. Dispositivo.
Ante o exposto, defiro a liminar postulada para determinar "a suspensão
do ato de convocação realizado através do edital n.º 04/2023/PROGRAD,
abstendo-se a Universidade Federal de Sergipe em convocar a Impetrante à
novas aferições de heteroidentificação", devendo a instituição se abster
"de realizar a providência contida no item 6.2 do Edital de convocação
supracitado no caso de não comparecimento da discente (inquérito do
Ministério Público para adoção das providências cabíveis)", mantendo o
"vínculo do impetrante "junto à Universidade Federal de Sergipe, sob a
matrícula n.º 201700003068, com fundamento no art. 7.º, III, da Lei
12.016/09".
Oficiem-se para cumprimento e notifiquem-se as apontadas autoridades
coatoras para que apresentem informações, no prazo de 10 (dez) dias.
Intime-se a Procuradoria Federal para que intervenha no feito, querendo,
no prazo de 10 (dez) dias.
Se a manifestação da Procuradoria Federal ou as informações das
autoridades impetradas vierem acompanhadas de documentos novos, intime-se
o impetrante para se manifestar, querendo, no prazo de 5 (cinco) dias.
Cumpridas as determinações supra, vista ao Ministério Público Federal,
pelo prazo legal de 10 (dez) dias.
Após, venham-me os autos conclusos para sentença.
Aracaju/SE, datado eletronicamente conforme rodapé deste documento.
Assinado eletronicamente

Juiz Federal RONIVON DE ARAGÃO,


Titular da 2ª Vara/SJSE.
(Art. 1º, §2º, inc. III, da Lei n. 11.419/2006)

Processo: 0800477-19.2023.4.05.8500
23020610233598400000006684266
Assinado eletronicamente por:
RONIVON DE ARAGÃO - Magistrado
Data e hora da assinatura: 09/02/2023 16:10:48
Identificador: 4058500.6665907

Para conferência da autenticidade do documento:


https://pje.jfse.jus.br/pjeconsulta/Processo/ConsultaDocumento/listView.seam
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