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Mesmo sob ataques revisionistas de outras doutrinas, Lenin (1908) afirma que
“o marxismo triunfa já, incondicionalmente, sobre todas as outras ideologias do
movimento operário”. Primeiro foram os jovens radicais hegelianos, depois o
Proudhonismo1, o positivista Düring2, entre outros, porém, a influência que o marxismo
exerce sobre o proletariado e as formas de elevar essa categoria a um patamar social
superior na luta de classes, tornam essa corrente teórica difícil de ser suplantada.
No entanto, após a morte de Engels, um ex marxista dá início a uma intensa
revisão das obras de Marx e de seus conceitos. E. Bernstein 3, considerado como um
1
Doutrina retirada das ideias do filósofo político e econômico do francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-
1865) sendo a base teórica do movimento social conhecido como anarquismo. O proudhonismo diverge
do comunismo por pregar a propriedade coletiva para grupos de trabalhadores e não o monopólio estatal e
a nacionalização.
2
Karl Eugen Düring, filósofo e economista alemão. Adversário do socialismo marxista, esforçou-se
sempre por fazer sobressair a importância dos fatores morais e pessoais na economia.
3
Eduardo Bernstein foi um político e teórico político alemão. Foi o primeiro grande revisionista da teoria
marxista e um dos principais teóricos da social-democracia.
oportunista hostil, virou sinônimo de revisionismo ao atacar todas as premissas e
conceitos da obra marxiana, mesmo que sem a mesma importância e solidez da doutrina
marxista. Muitos o seguiram, mas a história já havia reservado um lugar para o pensador
alemão e sua grande obra.
Sobre esta prática hostil ao marxismo, capitaneada pela classe burguesa, Lenin
declara que o oportunismo e o imediatismo se transformam no bem comum desses
revisionistas, posto que
A política revisionista consiste em determinar o seu comportamento
em função das circunstâncias, em adaptar-se aos acontecimentos do
dia, às viragens dos pequenos factos políticos, em esquecer os
interesses fundamentais do proletariado e os traços essenciais de todo
o regime capitalista, de toda a evolução do capitalismo, em sacrificar
estes interesses fundamentais em favor das vantagens reais ou
supostas do momento. (Lenin, 1977, p. 43).
5
O Capital (em alemão Das Kapital) é um conjunto de livros (sendo o primeiro de 1867) de Karl Marx
que constituem uma análise do capitalismo (crítica da economia política). Muitos consideram esta obra o
marco do pensamento socialista marxista. Nela existem muitos conceitos económicos complexos, como
mais-valia, capital constante e capital variável, uma análise sobre o salário ou sobre a acumulação
primitiva. Estes são alguns dos aspectos do modo de produção capitalista, incluindo também uma crítica
sobre a teoria do valor-trabalho de Adam Smith e de outros assuntos dos economistas clássicos.
coerência de princípios sobre a essência do trabalho para todos e da emancipação da
classe proletária em torno de um bem maior. Eis o trecho retirado do texto “Reflexão de
um jovem em face da escolha de uma profissão”:
“Se o [homem] trabalha apenas para si mesmo, poderá talvez tornar-se
um célebre erudito, um grande sábio ou um excelente poeta, mas
nunca será um homem completo, verdadeiramente grande [...]. Se
escolhermos uma profissão em que possamos trabalhar ao máximo
pela humanidade [...] não fruiremos uma alegria pobre, limitada,
egoísta, mas a nossa felicidade pertencerá a milhões [de pessoas].”
( Marx, 1935 apud José Paulo Neto,2012)
6
Revisionismo é o ato de se reanalisar algo (por exemplo, um fato, doutrina, valor, livro etc.), gerando
modificações em relação à interpretação original que se tinha do objeto analisado.[1]
7
O muro de Berlim foi durante a sua existência um símbolo por excelência de todo o contexto mundial
vivido na Guerra Fria. Assim simbolizou o antagonismo político ideológico entre EUA e URSS. Em 9 de
novembro de 1989, com a crise do sistema socialista no leste da Europa e o fim deste sistema na
Alemanha Oriental, ocorreu a “queda” do muro. O ato simbólico representou também o fim da Guerra
Fria e o primeiro passo no processo de reintegração da Alemanha.
8
O negacionismo é definido como a rejeição de conceitos básicos, incontestáveis e apoiados por consenso
científico em favor de ideias tanto radicais quanto controversas.
“guerra cultural”. Os “adeptos” entendem que tudo faz parte dessa “conspiração
comunista”, “do marxismo cultural”, “da revolução gramsciana”.
Na década de 90 no Brasil, foi comum o revisionismo alegar que a esquerda
também foi responsável pela ditadura, que a esquerda também queria uma ditadura. Ou
seja, um discurso muito adequado ao contexto pós-redemocratização do Brasil e
também ao momento histórico mundial com a queda do Muro de Berlim e o colapso
soviético.
Este revisionismo apega-se ao discurso conciliador e amenizador ocorridos após
a anistia. A impunidade foi um “prêmio” aos torturadores e seus cúmplices durante a
ditadura empresarial-civil-militar. Empresários9, jornais10 de grande circulação e civis
foram “anistiados” e seus crimes perderam-se no limbo da história recente do nosso
país.
É a moda dos “guias politicamente incorretos” 11que surgiram há poucos anos e
que tem prestado um desserviço à academia e ao público, principalmente de História.
Importante salientar que o mercado editorial tem enorme interesse em publicar essas
aberrações históricas por ser de leitura rápida e sem muitas referências para não
“cansar” o leitor. Estratégia de mercado.
Numa sociedade marcada por “preguiça intelectual” e pelo imediatismo, que não
consome livros regularmente, esse campo usado por jornalistas que ocupam o espaço de
historiadores, cresceu bastante e ganhou até uma série em programa de canal
internacional fechado - History Chanel - o que atesta esse “sucesso”. Mas, num país
dependente do sistema capitalista como o Brasil, torna-se até compreensível essa jogada
editorial, afinal é o mercado quem comanda através dessas empresas multinacionais....
No entanto, o que dizer de historiadores “consagrados” que revisam a história
política recente do Brasil e mesmo assim cometem deslizes historiográficos?
Historiadores reconhecidos pela academia e até um ex guerrilheiro, também historiador,
testemunha viva da história, se prestam a esse exercício de negar o óbvio, calcados no
achismo e numa opinião ancorada numa suposta convicção ou em parcas fontes que
merecem maior análise.
O golpe militar de 1964, que desaguou numa ditadura de 21 anos, é tema
constante de revisionismos por parte de historiadores que apelam para o sentido
“conciliador”, do discurso amenizador proclamado pela direita e pelos golpistas. Negam
o sentido de golpe classista e chegam a afirmar que existia uma “dificuldade
democrática” no Governo Goulart e que a luta armada foi um erro, não reconhecendo
que a resistência da esquerda não tinha alternativa em virtude da grande perseguição
desencadeada pela ditadura.
9
Henning Albert Boilesen (Copenhaguen, 14 de fevereiro de 1916 — São Paulo, 15 de abril de 1971) foi
um executivo dinamarquês radicado no Brasil que presidiu a Ultragaz e atuou como fundador do Centro
de Integração Empresa Escola (CIEE). Proeminente apoiador da repressão estatal às organizações
clandestinas de esquerda durante a ditadura militar brasileira.
10
A Folha apoiou o golpe militar de 1964, como praticamente toda a grande imprensa brasileira. Chegou
a emprestar veículos para a repressão.
11
Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil é um livro de 2009 escrito por Leandro Narloch, ex-
jornalista. Apesar do sucesso de vendas, O livro é considerado como pseudo-histórico e negacionista.
Criticado severamente por historiadores sérios por haver muitas distorções de fatos históricos.
Daniel Aarão Reis12, ex guerrilheiro urbano durante a ditadura, hoje historiador e
autor de alguns livros sobre o regime militar, chega a afirmar que os compromissos da
esquerda com a democracia não era real uma vez que a mesma queria “implantar outra
ditadura”. Reis (2000) repete o mesmo discurso dos golpistas de 64, chega a afirmar que
foi a direita quem ficou ao lado da defesa da Constituição naqueles anos turbulentos
pré-64, pois a esquerda queria as reformas “na lei ou na marra”, 13e esta radicalização
levou ao golpe. A afirmação não encontra consistência em virtude de toda uma
articulação empresarial-político- militar engendrada por esses atores golpistas há vários
anos.
Num artigo publicado em 2014 com o título Golpismo e Democracia: as falácias
do revisionismo, o filósofo Caio Navarro de Toledo destrói toda a construção da
historiografia revisionista sobre o golpe de 1964. A citação é longa, porém vale a
leitura:
A afirmação do golpismo das esquerdas tem efeitos ideológicos precisos; de
imediato, ajuda a reforçar as versões difundidas pelos apologetas do golpe
político-militar de 1964. Mais do que isso: contribui para legitimar a ação
golpista vitoriosa ou, na melhor das hipóteses, atenua as responsabilidades
dos militares e da direita civil pela supressão da democracia política em
1964. A direita golpista não pode senão aplaudir esta “revisão”
historiográfica proposta por alguns intelectuais progressistas e de esquerda.
Se não deixa de ser auspicioso perceber sinais de autocrítica procedentes das
Forças Armadas, ironicamente, a propalada tese do golpismo das esquerdas
caminha na (exata) direção oposta: contribui para municiar as falácias
reacionárias.(TOLEDO, 2014)
Reis (2000) chega a declarar que o regime de exceção tem seu final em 1979,
logo após a vigência do AI-5 e da anistia “aos exilados políticos”. Esquece ele que ainda
tivemos 5 anos de governo autoritário, de censura, de prisões políticas e atentados
perpetrados por uma ala dura dos militares ao pressentir que o período nefasto imposto à
sociedade brasileira aproximava-se do fim.
Noutro trecho, Toledo (2014), arremata sobre progressistas e intelectuais ao
afirmar que “Inaceitável é que intelectuais progressistas ou de esquerda deem seu aval a
evidentes falsificações da história”. (TOLEDO, 2014). Inaceitável que historiadores
12
Daniel Aarão Reis Filho (Rio de Janeiro, 1946) é um historiador brasileiro e professor titular de
História Contemporânea na Universidade Federal Fluminense (UFF). No final da década de 1960, Daniel
Aarão participou da luta armada contra a ditadura militar, tendo integrado a direção do grupo que decidiu
o sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick, em troca da libertação
de 15 presos políticos. Publicou diversos livros e artigos sobre a história da esquerda no Brasil, entre eles
A revolução faltou ao encontro - Os comunistas no Brasil (1990) e Ditadura Militar, Esquerdas e
Sociedade. 2000.
13
Palavra de ordem usada pelas Ligas Camponesas: “Reforma Agrária- na lei ou na marra”
como Marco Antonio Villa14, Jorge Ferreira15, Argelina Figueiredo16, entre outros não
façam uma reflexão ou autocrítica sobre seus escritos e repousem na concepção
apologética do golpe de 1964. Concluindo seu questionamento sobre os revisionistas em
questão, Toledo afirma ainda que
Na visão destes acadêmicos, na conjuntura de 1964, todos os agentes
relevantes do processo político estavam comprometidos com o
golpismo: militares, setores da direita, das esquerdas e Goulart – por
“não morrerem de amor pela democracia” – estavam prontos para
desfechar um golpe de Estado. (TOLEDO, 2014)
Ou seja, mais uma vez a visão dos historiadores citados, além de outros,
reforçam o discurso da classe dominante que, para “limparem” o nome inserido na
história golpista da ditadura, afirmam que o radicalismo das esquerdas, a
“incompetência” do presidente Goulart e outros motivos foram fatores preponderantes
para desencadear a derrubada do período democrático, mesmo que turbulento e com
muitos problemas estruturais sócio econômicos.
Enfim, é fundamental que fiquemos alertas a riscos de interpretações dirigidas
por setores ligados a classe dominante, para que não nos percamos nas falácias
revisionistas difundidas até por historiadores conceituados dentro da academia. É
preciso muita leitura e reflexão para que a manipulação histórica não se acerque da
academia e consiga dominar o ambiente democrático e necessário das universidades.
Rever posições consagradas e observar a interpretação de eventos importantes,
faz parte do ofício do historiador, do seu campo de estudos, porém escudado em
processos metodológicos, análises críticas e procedimentos científicos confiáveis e
dentro dos parâmetros acadêmicos. Mas, os objetivos que não são inerentes a uma boa
pesquisa, com distorções, negações, omissões e achismos, são indicativos de que tais
revisões servem a objetivos particulares, a grupos interessados em tirar proveito do
fazer histórico.
“Um espectro ronda 17a historiografia brasileira – o espectro do revisionismo”.
Todas as potências historiográficas devem unir-se para conjurá-lo: os historiadores, os
marxistas, as universidades, todos os setores progressistas da sociedade, no afã de
interromper essa distopia presente no cenário brasileiro atual.
14
Marco Antonio Villa (São José do Rio Preto, 1955) [ é um historiador brasileiro,[2] mestre em
sociologia e doutor em história social pela Universidade de São Paulo. Publicou livros sobre a ditadura:
Ditadura à brasileira (1964-1985). A democracia golpeada à direita e à esquerda(2014); Jango: um perfil
(1945-1964) 2003
15
Nascido no Rio de Janeiro, Jorge Ferreira graduou-se em história pela Universidade Federal
Fluminense e na mesma instituição fez o mestrado na Universidade de São Paulo, obteve o título de
doutor em História Social, foi admitido como professor em 1985 na Universidade Federal Fluminense. É
autor dos livros: 1964: um golpe que derrubou um presidente, 2008; João Goulart, uma biografia, 2011.
16
Doutora em Ciência Política pela Universidade de Chicago, publicou o livro Autora do livro
Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política, 1993
17
Frase de Marx e Engels presente no Manifesto Comunista (1848), e que foi adaptada ao texto.