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E xperimentando a dor de existir

M ariângela Alves de Lima

A
o introduzir a belíssima adaptação que fez de nossas forças. Não é o que acontecerá no es-
de O livro de Jó, Luís Alberto de Abreu faz petáculo. No teatro, os atores nos conduzem
questão de enfatizar o caráter profano do pelo espaço dilatando o tempo, fazendo sentir
teatro. E tem razão. Para a experiência mís- que o drama da existência humana não resume
tica ou para a especulação teológica inven- a ignorância do desígnio divino, mas inclui tam-
tamos o templo, o claustro ou um canto qual- bém a espera. A impaciência soma-se ao desejo
quer, íntimo e propício ao sagrado. Mesmo de contemplar a face benigna de Deus.
assim, ao sair do espetáculo sentimos a tentação Tudo é muito simples neste trabalho. O
de contradizer Abreu. hospital onde se instala o espetáculo e a carac-
Parece como inscrever essa experiência no terização dos atores são de um simbolismo ób-
rol de nossas distrações noturnas. O que acaba- vio. Em um lugar como este, concentra-se todo
mos de experimentar é diferente do que encon- o sofrimento, físico e moral. Sempre um sofri-
tramos habitualmente nas casas de espetáculos. mento inevitável, estúpido, recaindo equani-
Vimos que o teatro pode ser uma forma de ex- mente sobre o justo e o pecador. Não há por-
pressão reduzida a uma polaridade essencial. tanto o que decifrar no tipo de tratamento dado
Assistimos a um diálogo em estado puro. Jó à história de Jó. Resta-nos seguir. Sem interpre-
questiona o criador e as perguntas ecoam pelo tar as perguntas e reiterações do protagonista.
espaço entre os atores e o público. O teatro, es- Com sinceridade, clareza e uma evidente ade-
sencialmente, vive nesse intervalo entre a per- são emocional ao texto, os intérpretes não pre-
gunta e a resposta. Nenhuma circunstância ate- cisam recorrer a nenhuma analogia. Cada espec-
nua o fato de que temos de seguir Jó, pergun- tador saberá o que lhe dói mais.
tando e aguardando. Este é apenas o segundo espetáculo do
Se o leitor percorrer o texto do Antigo Teatro da Vertigem. É cedo para inferir uma
Testamento reconhecerá a diferença entre a ex- vocação para a metafísica. De qualquer forma,
periência literária e a teatral. Podemos imprimir ao lidar com a temática religiosa, o grupo não
à leitura desse doloroso poema o rimo da nossa reproduz as ingênuas configurações dos anos
ansiedade, atravessando o confronto na medida 70, quando tudo terminava na harmoniosa ali-

Mariângela Alves de Lima é crítica do jornal O Estado de S. Paulo e pesquisadora.

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sala preta

ança de todos com tudo. Por isso mesmo as so- dente. No mundo judaico-cristão, ao que pare-
luções cênicas que encontra são rigorosamente ce, fazemos questão de saber por quê.
limpas, acéticas, coladas a um significado evi- (O Estado de S. Paulo, 09/03/1995)

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