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TEMAS LIVRES FREE THEMES


“Perdeu a veia” – significados da prática da terapia intravenosa
na unidade de terapia intensiva neonatal

“The vein is missed” - meanings of intravenous therapy practice


in Neonatal Intensive Care Unit

Elisa da Conceição Rodrigues 1


Sueli Rezende Cunha 2
Romeu Gomes 3

Abstract Intravenous Therapy (IVT) is an im- Resumo A terapia intravenosa (TIV) destaca-se
portant item among the necessary technologies for entre as tecnologias imprescindíveis para garantir
the survival of high-risk new-born babies. How- a sobrevivência dos recém-nascidos de risco. Con-
ever, it is also a source of pain, stress and risk of tudo, é fonte de dor, estresse e complicações graves.
serious complications. This article aims to assess O objeto de estudo foram os significados da prática
the meanings of IVT as ascribed by care teams and da terapia intravenosa na unidade de terapia in-
to discuss the reflection of such meanings on the tensiva neonatal (UTIN), mais especificamente:
attention to new-born babies. The article, with a analisar os significados atribuídos à prática da TIV
theoretical referential in Cultural Anthropology, pela equipe e discutir como esses significados refle-
presents an ethnographic case study carried out in tem no cuidado do recém-nascido. Trata-se de um
a Neonatal Intensive Care Unit of municipal ad- estudo de caso etnográfico com referencial teórico
ministration in Rio de Janeiro. Subjects were nine da antropologia cultural, realizado em uma UTIN
nurses, four doctors, and three nurse assistants. pública do município do Rio de Janeiro. Os sujei-
Data collection was carried out with a semi-struc- tos foram nove enfermeiros, quatro médicos, três
tured interview and participative observation. técnicos e quatro auxiliares de enfermagem. Os
The qualitative analysis was performed using dados foram coletados através de entrevista semi-
the method of interpretation of the senses. Mean- estruturada e observação participante. A análise
1
Departamento de ings, interweaved with the cultural network, qualitativa das entrevistas foi realizada utilizan-
Enfermagem showed that IVT practice is often reduced to pe- do-se o método da interpretação dos sentidos. Os
Materno-Infantil, Escola de
Enfermagem Anna Nery, ripheral puncture techniques, bringing on a series significados, quando entrelaçados na “teia cultu-
Universidade Federal do of complications for high risk new-born babies ral”, revelaram que a prática da TIV é reduzida a
Rio de Janeiro. Rua Afonso and intense emotional waste for the professional técnicas de punção venosa periférica, acarretando
Cavalcanti 275, Cidade
Nova. 20211-110 Rio de team and the family. Re-signification of IVT prac- sérios agravos para os recém-nascidos e desgaste
Janeiro RJ. tice will only be possible with a critical analysis of emocional para a equipe e a família. A ressignifi-
elisaelisa@terra.com.br the cultural patterns it is now based on. cação da prática da terapia intravenosa será pos-
2
Núcleo de Pesquisa em
Ciência, Tecnologia e Key Words New born babies, Infusion therapy, sível a partir da reflexão crítica dos padrões cultu-
Inovação em Saúde, Nursing, Anthropology rais nos quais ela se estrutura.
Fundação Oswaldo Cruz. Palavras-chave Recém-nascido, Terapia infusio-
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Departamento de Ensino,
Instituto Fernandes nal, Enfermagem, Antropologia
Figueira, Fundação Oswaldo
Cruz.
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Rodrigues EC et al.

Introdução A prática da TIV é rotineira e familiar, contu-


do, o conhecimento produzido sobre o tema ain-
Entre as diretrizes do Programa de Atenção Hu- da é fragmentado e privilegia técnicas e procedi-
manizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso, a mentos isolados a despeito de toda complexida-
prevenção da dor e do estresse é um dos maiores de inerente a esse campo de saber. O conheci-
desafios a serem vencidos para a implementação mento acerca de novos fármacos e de dispositi-
do paradigma de cuidado humanizado e voltado vos intravasculares vem avançando mais rapi-
para o desenvolvimento. A ideia central dos pro- damente que as pesquisas voltadas para o cuida-
gramas de humanização do parto e do nasci- do das pessoas que os utilizam6.
mento é prestar cuidados de saúde de alta quali- Diante do que foi exposto, este artigo tem
dade de forma integral, com vistas a promover o como objetivos analisar os significados atribuí-
desenvolvimento dos recém-nascidos e conforto dos à prática da TIV pela equipe de uma UTIN e
e apoio para suas famílias1. discutir como esses significados refletem no cui-
Nesse contexto, os conhecimentos sobre os dado do recém-nascido. Conhecer os significa-
efeitos da dor no recém-nascido e os determi- dos atribuídos pela equipe à prática da TIV po-
nantes biológicos e socioculturais para a sua pre- derá fornecer subsídios no avanço das discus-
venção, avaliação e tratamento já fazem parte da sões sobre uma das práticas mais rotineiras e
produção científica do campo da saúde. A difu- indispensáveis à sobrevivência dos recém-nasci-
são desses conhecimentos tem contribuído para dos de alto-risco.
modificar a crença de que recém-nascidos não
sentem dor além de sugerir a incorporação de Abordagem teórico-metodológica
várias medidas para seu controle no ambiente de
cuidados intensivos neonatais. O presente trata-se de um estudo de caso com
A terapia intravenosa (TIV) ocupa de desta- abordagem etnográfica, desenvolvido na UTIN
que entre o conjunto de tecnologias que são im- de uma maternidade pública, de referência no
prescindíveis para a sobrevivência dos recém- Método-Canguru, situada no município do Rio
nascidos, contudo representam fonte importan- de Janeiro.
te de dor, estresse e risco para complicações po- A etnografia é um método de pesquisa an-
tencialmente graves2. tropológica, no qual a interpretação das práticas
A via intravenosa é o principal acesso para a culturais de determinado grupo é construída atra-
administração de fármacos em recém-nascidos vés de um trabalho de campo extensivo feito pelo
internados em UTIN, sendo vital para sua sobrevi- etnógrafo. Um dos seus pressupostos é que cada
vência. Porém existem poucos estudos nacionais grupo humano desenvolve sua própria cultura,
que forneçam subsídios para avaliação e melho- que orienta a visão de mundo de seus membros
ria dessa prática, a despeito de dois terços do tem- e a forma como eles estruturam suas experiênci-
po da equipe de enfermagem, destinados à crian- as7,8. A antropologia aplicada à área da saúde
ça hospitalizada, serem consumidos pela TIV3. tem papel fundamental nos estudos em que o
Um estudo realizado em cinco unidades neo- ato interpretativo possibilita o reconhecimento
natais do município do Rio de Janeiro concluiu dos aspectos culturais relacionados ao processo
que 99,6% dos recém-nascidos abaixo de 1500 saúde-doença, bem como a escolha, a promoção
gramas utilizaram fármacos e soluções intrave- e a avaliação de ações terapêuticas9.
nosas através de vários tipos de dispositivos in- A abordagem etnográfica associada ao estu-
travasculares, sendo que 49,2% dos neonatos do de caso pode contribuir para mudanças de
utilizaram somente dispositivo periférico, 45,2% práticas nos diversos tipos de serviços, pois, ao
dispositivo periférico e central e apenas 5,6% uti- incidir sobre representações e interpretações de
lizaram dispositivo central, apesar de o protoco- ações de cuidado e ações organizacionais, favo-
lo das unidades recomendar o acesso venoso cen- rece a apropriação de sentidos subjacentes a es-
tral para recém-nascidos que necessitem de TIV sas práticas, permitindo formas de intervenção
por mais de sete dias e/ou com o uso de soluções mais reflexivas e críticas10. Além disso, os estu-
irritantes ao endotélio venoso4. Outro estudo re- dos de caso etnográficos vêm sendo valorizados
alizado no município do Rio de Janeiro demons- por seu potencial heurístico, levando o pesquisa-
trou que a punção venosa periférica foi o proce- dor a descobrir novos significados e a estabelecer
dimento mais realizado em bebês participantes novas relações11.
da primeira etapa do Método-Canguru de uma As representações culturais sobre a prática
maternidade pública federal5. da TIV são desconhecidas nos serviços de saúde.
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Deste modo, as peculiaridades inerentes ao estu- rências de vários significados, os quais, junta-
do de caso associado à abordagem etnográfica mente com as anotações do diário de campo,
possibilitaram desvendar o saber tácito, inscrito deram origem às categorias empíricas. A pesqui-
nos significados atribuídos a essa prática profis- sa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesqui-
sional em uma unidade de referência na Atenção sa da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro.
Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso – Neste estudo, buscou-se captar as estruturas
Método-Canguru. de significação cultural que refletem os significa-
A partir do estudo de um caso representativo dos da prática da TIV pela equipe de saúde. A
do município do Rio de Janeiro, vislumbra-se a fala cultural dos sujeitos e as anotações do diário
possibilidade de aproximação com modelos que de campo foram traduzidas num corpus textual
estruturam a prática da TIV em outras unidades onde o conhecimento produzido foi fruto do
de referência do Método-Canguru, uma vez que, encontro entre o pesquisador e os sujeitos no
enquanto política nacional de saúde, a mesma contexto histórico e intersubjetivo de ambos.
fundamenta-se na perspectiva de minimizar os Os dados foram organizados e analisados
efeitos negativos da internação neonatal sobre através do método da interpretação dos senti-
os bebês e suas famílias12. dos (MIS), buscando-se a construção e a inter-
Ao perceber as instituições hospitalares como pretação das estruturas de significação. As estru-
um complexo emaranhado de padrões simbóli- turas de significação representam a dupla her-
cos produzidos nas interações sociais e que preci- menêutica do objeto, onde a interpretação é o
sam ser traduzidos para ser entendidos, é possí- ponto de partida, por se iniciar pela interpreta-
vel interpretar a forma como os sujeitos enten- ção do pesquisador, e o ponto de chegada, por-
dem suas experiências na prática e deduzir como que é a interpretação das interpretações dos ato-
essas experiências se relacionam com a prática efe- res sociais sobre o seu cotidiano14.
tivamente realizada. Esse exercício de interpreta- O MIS foi idealizado a partir da perspectiva
ção pode vir a promover reflexões e discussões de correntes compreensivas das ciências sociais
acerca do mundo do trabalho no contexto em que analisa as palavras, as ações, o conjunto de
foco13. inter-relações, os grupos, as instituições, as con-
Para este estudo, as interpretações foram junturas e outros corpos analíticos, numa tenta-
construídas através da lente da antropologia in- tiva de avançar na interpretação, caminhando além
terpretativa, ou hermenêutica, onde o conceito dos conteúdos manifestos nos textos na direção
de cultura é essencialmente semiótico, ou seja, de seus contextos e revelando lógicas e explicações
um conjunto de significados e suas análises que mais abrangentes, presentes numa determinada
se configuram numa teia criada pelo próprio cultura, acerca de um determinado tema14.
homem e na qual ele permanece amarrado. Esta
teia é dinâmica e sempre remodelada pelas cons-
tantes interações humanas, configurando a cul- Resultados e discussão
tura como o produto dessas interações7. Os da-
dos foram coletados no período de agosto de Decifrando os códigos
2007 a março de 2008. Os sujeitos da pesquisa da prática da terapia intravenosa
foram nove enfermeiros e quatro médicos, três
técnicos e quatro auxiliares de enfermagem, to- A decodificação das expressões a seguir pos-
talizando 21 entrevistas. Os sujeitos receberam sibilitou a apreensão de algumas estruturas con-
pseudônimos de cientistas que contribuíram para ceituais que, sem o olhar interpretativo e o movi-
o avanço do conhecimento na área de terapia mento de estranhamento, permaneceriam ocul-
intravenosa. tas, por estarem entrelaçadas umas às outras e
As fontes primárias foram as anotações de serem profundamente familiares, não só para a
campo obtidas através da observação participan- equipe como também para a pesquisadora. Os
te e da entrevista semiestruturada. Compuseram códigos decifrados, além de estarem presentes no
o diário de campo, diálogos informais com os cotidiano da UTIN durante toda a observação
sujeitos, situações emblemáticas do cotidiano dos de campo, foram recorrentes em grande parte
profissionais, informações retiradas de livros de dos depoimentos. Portanto, selecionei alguns
ordem e ocorrências da enfermagem, prontuári- deles por considerá-los símbolos ou códigos que,
os, prescrições médicas e registros de enferma- quando decifrados, permitiram aprofundar a lei-
gem. As entrevistas foram gravadas e a coleta de tura dos significados atribuídos à prática da te-
dados encerrada quando foi observada a recor- rapia intravenosa.
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Rodrigues EC et al.

Uma “veinha” A “veia difícil”

Uma interpretação possível para o significa- Durante a internação na UTIN, os bebês são
do de “veinha” no contexto da prática de terapia classificados como portadores de veia fácil ou di-
intravenosa é de que o termo seria utilizado pe- fícil. Nos depoimentos, os bebês que mais se des-
los profissionais como referência à dimensão tacaram foram os classificados como portadores
corporal diminuta dos recém-nascidos prema- de “veias difíceis”, que provocam reclamação, des-
turos. Contudo, a interpretação dada ao termo gaste e desânimo na equipe: Há aquela preocupa-
pelos sujeitos traz a crítica ao significado atribu- ção se é uma criança difícil ou fácil de veia. (Har-
ído a este código: Muita gente encara assim, é só vey, enfermeiro) Eu não punciono mais. Quem
uma veinha. Não é só uma veinha não. As pessoas quiser ir vai, tipo aquele bebê lá, filho de ML, 27
acham normal, tão comum, que não param para dias de Cipro (Dudrick, auxiliar de enfermagem).
se preocupar no que tem por trás disso... talvez O bebê de “veia difícil” é aquele que já sofreu
porque tenha sido tomado como algo corriqueiro múltiplas punções venosas, tem a cabeça raspa-
(...) é normal e comum ver um bebê com veia (Sei- da, usou mais de um esquema de antibiótico,
bert, enfermeira). hidratações venosas e nutrição parenteral atra-
A familiaridade da equipe com recém-nasci- vés das veias periféricas, o que levou ao esgota-
dos portadores de acessos venosos dificulta a mento da rede venosa superficial. É nesses casos,
reflexão e a crítica sobre as implicações que esse que após algumas tentativas, o profissional pede
dispositivo tem para o cuidado do recém-nasci- ajuda: Geralmente quando o bebê já está muito
do. Nesse sentido, o termo “veinha” pode ser in- furado, cortou o cabelo, está muito difícil de acesso
terpretado como a redução do cuidado do re- eles chamam a gente. Até tentam, mas depois cha-
cém-nascido ao dispositivo intravenoso perifé- mam a gente (Gautier, enfermeira). Paradoxal-
rico em si, ficando invisível o impacto que a indi- mente, a terapêutica intravenosa necessária para
cação, a instalação, a manutenção e a perda da- que os recém-nascidos sobrevivam causa a des-
quele acesso têm para o paciente ao longo de sua truição da sua rede venosa periférica, sendo esse
permanência na UTIN. o contexto no qual emerge o bebê com a “veia
Na unidade estudada, a despeito de o plano difícil”. Ao longo da internação, as “veinhas” tor-
terapêutico de grande parte dos recém-nascidos nam-se “veias difíceis”, em consequência de múl-
indicar a necessidade do uso de cateteres venosos tiplas punções e da infusão de vários tipos de
centrais, a implementação da terapêutica intra- fármaco e diferentes soluções: Ah. meu Deus, vem
venosa ainda é predominantemente realizada o bebê que não tem veia, não tem nada, aí tem que
através de veias periféricas, caracterizando a ina- puncionar, daí é complicado (Lister, auxiliar de
dequação do tipo de acesso às necessidades dos enfermagem).
recém-nascidos. Alguns estudos recentemente A “veia difícil” é consequência das dificulda-
realizados em unidades neonatais do município des encontradas pelos profissionais, para man-
do Rio de Janeiro têm evidenciado essa mesma ter os recém-nascidos em terapia intravenosa
tendência4,5. durante a internação e deve ser considerada uma
Atualmente, para minimizar os problemas de complicação do uso frequente de acessos veno-
múltiplas punções venosas, lesões por infiltra- sos periféricos que levam ao esgotamento da rede
ção, extravasamento e complicações infecciosas venosa e às múltiplas punções.
relacionadas à corrente sanguínea no recém-nas-
cido pré-termo, a conduta mais aceita é a utiliza- A “veia cansada”
ção precoce de acesso venoso central por catete-
res centrais de inserção periférica2. Os fármacos e as soluções administrados por
À medida que avançamos na decodificação veias periféricas, em contato com o endotélio,
dos símbolos que permitem a leitura do saber causam lesões de diferentes graus devido à varia-
local, percebemos que a banalização do uso de ção de pH e à osmolaridade, diminuindo a vida
acessos venosos periféricos orienta a prática da útil do acesso venoso e aumentando o risco de
terapia intravenosa na UTIN e coloca o profissi- lesões graves como a necrose tecidual15. A expres-
onal diante de recém-nascidos com esgotamento são “veia cansada” é a denominação dada pelos
da rede venosa periférica, o que podemos cons- técnicos de enfermagem ao acesso vascular que
tatar através de uma das expressões mais utiliza- começa a apresentar sinais de flebite pelo uso
das pela equipe no dia-a-dia da UTIN: “a veia contínuo de fármacos irritantes ao endotélio ve-
difícil”. noso. Esse é um sinal de que em breve aquela veia
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não estará mais adequada para a terapêutica e o senso comum e ritos da enfermagem – ou na
recém-nascido precisará de uma nova punção recomendação do fabricante dos dispositivos6.
venosa: As pessoas precisam ficar olhando, porque
a veia cansa né? Eu acho que cansa, quando você O “bom de veia”
está com uma medicação... Já vai ficando verme-
lhinho (Bernard, técnica de enfermagem). Num cenário onde há o desgaste da rede ve-
Para lidar com o problema da “veia cansada” nosa dos recém-nascidos e o consequente apare-
a equipe lança mão de uma estratégia chamada cimento de veias “cansadas” e “difíceis”, a valori-
“rodízio de veias”, o que acarreta a necessidade de zação da técnica de punção venosa determina
manter o recém-nascido com mais de uma veia uma hierarquização na equipe de enfermagem,
periférica puncionada para que seja possível a re- em que o profissional “bom de veia”, com maior
alização do rodízio enquanto uma delas descan- habilidade para realizar as punções, assume uma
sa: Por exemplo, o gluconato de cálcio, quando está posição de destaque. “Bom de veia” (BDV) é a
sendo infundido, a criança tem que ter mais de um expressão usada pela equipe para nomear o pro-
acesso para que a gente possa ficar trocando, porque fissional que é chamado para realizar a punção
fatalmente vai ter flebite. (Harvey, enfermeiro). venosa do bebê com “veia difícil” após várias ten-
O rodízio de veias é uma prática que, até o tativas feitas por outro colega. Essa solicitação é
momento, não tem respaldo na literatura cientí- feita quando o recém-nascido foi submetido a
fica, pelo contrário, quando o recém-nascido pelo menos quatro mal-sucedidas tentativas de
apresenta sinais de flebite, por exemplo, ou hipe- punção venosa. Os profissionais chamados “bons
remia no trajeto do vaso, há indicação para re- de veia” são os que levam menos tempo para
moção imediata do dispositivo intravenoso15. realizar as punções venosas de recém-nascidos
Contudo, essa estratégia é usada pela enferma- com dificuldade de acesso venoso.
gem na tentativa de “economizar veias”, devido Uma das depoentes descreve o ritual de pun-
às dificuldades encontradas na manutenção do ção no qual é possível visualizar o estereótipo do
acesso venoso periférico durante a infusão de profissional BDV: (...) tem gente que fala: chama
soluções irritantes para o endotélio. Na concep- fulano. E como ele consegue? Ele não é mágico, não
ção da equipe, a suspensão temporária da infu- trouxe a veia no bolso. E por que ele não foi chama-
são venosa, considerada um agente agressor do do primeiro? É pessoal, eu vou puncionar porque
endotélio, pode prolongar a vida útil do vaso estou com esta criança, aí, punciona uma, duas,
puncionado, tornando-o apto ao retorno da in- três, quatro, e aí chama o colega do mesmo núcleo,
fusão após o “descanso”. o “bom de veia”, aí ele, coitado, já pega poucas coi-
Um estudo que avaliou fatores que afetam a sas, ele, por sua vez é o bom. A vaidade já sobe, que
vida útil de acessos periféricos em unidades pediá- o ser humano tem o orgulho e a vaidade cami-
tricas e neonatais do Texas evidenciou que em nhando junto, ele tenta, puncionou mais três, pun-
35% dos casos de descontinuidade do uso do cionou sete, aí ele chama a enfermeira. Aí ela tem
acesso vascular houve a heparinização para uso que fazer milagre? Não dá. É cultural, independe de
posterior, pois esperava-se que o “descanso” da rede privada ou rede pública, o bom de veia é uma
veia viesse possibilitar sua reutilização. Os resul- coisa tão inserida no cotidiano, que você nem per-
tados desse estudo mostram que o “descanso da cebe, você fala, fulano já tentou? (Wren, médica)
veia” é uma prática cultural, utilizada também Na divisão hierárquica do trabalho da equipe
em unidades americanas, porém sem evidência de enfermagem, a enfermeira é solicitada para re-
científica que a embase16. Por isso, até o presente alizar a punção venosa do bebê quando os técni-
momento, o rodízio de veias pode ser considera- cos e auxiliares não o conseguiram após várias
do um mito da terapia intravenosa e, apesar de tentativas. A falta de êxito numa punção venosa
não ser reconhecido em estudos científicos, faz pode comprometer a imagem do profissional tec-
sentido no sistema que organiza a cultura local, nicamente competente e faz com que o “BDV”
já que está diretamente relacionado à escassez de tenha um status diferenciado dentro da equipe.
acessos venosos em recém-nascidos bem como Isso explica o fato de, só após inúmeras tentati-
às suas consequentes complicações. vas, os técnicos e auxiliares solicitam à enfermeira
A falta de evidências científicas sobre alguns que obtenha o acesso venoso: Hoje em dia, graças
aspectos da prática da terapia intravenosa faz a Deus, eu estou bem de veia, só quando o bebê está
com que ela seja, por vezes, embasada em fontes muito difícil, muito debilitado é que a gente não
altamente subjetivas – como, por exemplo, opi- consegue, mas aí a gente passa pra enfermeira e ela
niões do profissional, tradições institucionais, consegue (Forssman, técnica de enfermagem).
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Na hierarquia dos “bons de veia”, à enfermei- “As marcas da terapia intravenosa”


ra, líder da equipe, cabe a maior responsabilida- e a dinâmica de trabalho da UTIN
de no que se refere a conseguir puncionar “veias
difíceis” e, quando solicitada, ela tem sua compe- As marcas da terapia intravenosa evidencia-
tência técnica colocada à prova pela equipe, pois das pela equipe e observadas durante o trabalho
o recém-nascido já foi sofreu múltiplas punções de campo revelam o outro lado de uma prática
pelos técnicos considerados “bons de veia”. Por- que, apesar de proporcionar a sobrevivência, traz
tanto, ser “boa de veia” é um pré-requisito do inúmeras complicações para os recém-nascidos
enfermeiro competente, como ilustra o depoi- durante sua permanência na UTIN. Múltiplas
mento a seguir: Cada enfermeiro tem um jeito de punções venosas, lesões por infiltração e extra-
administrar sua equipe, graças a Deus, os meus são vasamento, tricotomia do couro cabeludo e in-
bons de puncionar veia. Quando eles não conse- fecções locais e sistêmicas são ocorrências fre-
guiram é porque o negócio tá feio, Quando cha- quentes no cotidiano da UTIN e marcam recém-
mam a gente, meu Deus, já vem barraco! Aí a gente nascidos, seus familiares e os profissionais da
ainda vai e consegue (Blundell, enfermeira). equipe de enfermagem, que diariamente enfren-
O fato de o profissional BDV ter êxito na tam o desgaste físico e emocional frente à neces-
punção venosa periférica no momento em que é sidade de manter recém-nascidos em TIV atra-
solicitado é uma solução momentânea para toda vés de veias periféricas: Olha só, já furei, já furei,
a complexidade inerente à terapêutica intraveno- já furei, não vamos continuar fazendo isso, vamos
sa e às necessidades do recém-nascido, pois, de- tentar um cateterismo umbilical. (Seibert, enfer-
vido às características dos fármacos utilizados meira). (...) fura muito, não porque a gente quei-
na UTIN, em pouco tempo essa veia periférica ra, mas porque a necessidade obriga, às vezes você
estará lesada, imprópria para uso e precisará ser passa horas, vem um, vem outro, tentando até con-
substituída. Por outro lado, num cenário onde seguir (...) (Rose, auxiliar de enfermagem). Uma
há escassez de veias, dor, sofrimento e outras criança que me marcou muito foi filho de MA, que
consequências da perda do acesso vascular, o infiltrou nutrição parenteral. Foi a lesão mais feia
BDV também é responsável por oferecer um alí- que eu já vi numa criança, foi na cabecinha
vio, ainda que temporário, para os problemas (...)muito feia a lesão.(Nightingale, enfermeira).
advindos das perdas do acesso venoso. A prática da terapia intravenosa é emblemáti-
No entanto, a representação cultural de que ca do automatismo e do mecanicismo inerentes à
os bons profissionais são aqueles que puncio- dinâmica de trabalho da UTIN. O trabalho roti-
nam mais veias paradoxalmente dificulta a rup- neiro e mecânico não deixa espaço para a reflexão
tura dos profissionais com o padrão do uso da crítica e reduz o cuidado ao recém-nascido à téc-
veia periférica e a banalização das múltiplas pun- nica de punção venosa. Nesse contexto o cuidado
ções venosas, pois à medida que os membros da esvazia-se de sentido para a auxiliar de enferma-
equipe só lançam mão do técnico BDV ou da gem, que não consegue estabelecer uma relação
enfermeira, quando já realizaram várias tentati- com o recém-nascido que necessita de terapia in-
vas de punção nos bebês, esse padrão cultural travenosa. Você vira uma máquina... Eu tenho que
mascara e, por conseguinte, agrava o problema puncionar. Eu tenho que administrar. Tem uma
das numerosas punções. hora que você não pensa nem na dor que ele está
Uma vez que a hierarquia organiza as rela- sentindo. Você tem que fazer. Porque alguém diz
ções sociais, fazendo com que cada categoria te- que é muito importante para ele que faça assim (...)
nha seu lugar a partir de estereótipos em que a (Dudrick, auxiliar de enfermagem).
dimensão do poder é fundamental para cons- A equipe demonstrou ter consciência de mar-
trução hierárquica17, a técnica de punção venosa cas e repercussões da prática da terapia intrave-
legitima a identidade do profissional de enfer- nosa para a saúde do recém-nascido, porém, o
magem e lhe confere poder diante das relações fato de estarem imersos na engrenagem da UTIN,
que estruturam a prática da TIV no cotidiano da numa dinâmica de trabalho mecanizada, produ-
UTIN. O estereótipo do “bom ou ruim de veia” to de uma cultura ainda arraigada no modelo
demarca o lugar que o profissional ocupa na tecnicista de cuidar, mantém os profissionais iner-
equipe. tes no emaranhado de significados: É do próprio
sistema da UTI, porque você vê, hoje lá está super
calmo, as luzes estão apagadas. Você às vezes está
no automático e não se toca que agora dá pra eu
fazer isso, dá pra eu enrolar ele, dá tempo, enten-
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deu? Então as pessoas às vezes ligam o automático utilização de glicose por via oral ou a contenção e
(Denis, técnica de enfermagem). o enrolamento do bebê durante o procedimento
O enfermeiro, responsável legal pela admi- de punção venosa.
nistração da TIV, e sua equipe enfrentam elevado Os depoentes percebem que as mudanças de
índice de estresse advindo das falhas do processo atitude no que diz respeito à prevenção da dor
de trabalho na UTIN18. Isso reflete diretamente relacionada às punções venosas é umas das condi-
no planejamento dos cuidados e na administra- ções para tornar o cuidado mais humano, nos
ção do plano terapêutico dos recém-nascidos. termos que preconiza a política de atenção huma-
Esse contexto dificulta as reflexões e o desenvol- nizada ao recém-nascido de baixo peso. Embora
vimento das potencialidades dos profissionais venha sendo gradativamente adotada pelas equi-
para a re-significação da prática da terapia intra- pes, essa prática ainda não é instituída na maioria
venosa, absolutamente necessária na implemen- dos plantões: Na questão da humanização que tan-
tação de mudanças que promovam um cuidado to se preconiza hoje em dia, as pessoas também es-
seguro no contexto da unidade: Quando você está tão bastante envolvidas (...) não sei se isso é uma
fazendo uma medicação venosa, uma bomba alar- visão minha ou não. Ainda há pouco, tivemos que
ma, você fica desesperado pra saber o que está acon- puncionar outro acesso, aí a auxiliar ficou do meu
tecendo. O funcionário está estressado, você preci- lado, utilizamos todo o protocolo de humanização,
sa de alguém para te auxiliar numa punção veno- enrolamento, sucção não nutritiva, e punciona-
sa, é uma dificuldade, a medicação tende a atrasar mos, enfim a gente vê que tem uma mudança, mas,
os horários, se for uma criança difícil de veia a acho que isso é uma questão de reflexão pessoal e
gente já tem uma previsão de que, o antibiótico vai mudança de comportamento, nem todos os funcio-
atrasar. Isso tudo fica na nossa cabeça, pontuando nários agem dessa forma (Latta, Enfermeiro).
o tempo todo na nossa consciência, tem que entrar A incorporação parcial das medidas preconi-
o soro, tem que entrar o antibiótico, tem que en- zadas pela política institucional parece estar as-
trar, tem que entrar! (Harvey, enfermeiro) sociada ao choque à transição entre modelos as-
A escassez de acessos venosos agrava o pro- sistenciais vivenciados na unidade. Ficou claro,
blema que a equipe enfrenta para infundir múlti- nas falas, que existe um conflito entre o paradig-
plos fármacos num curto período de tempo. A ma tecnicista (dominante na UTIN), representa-
infusão dos antimicrobianos sofre atrasos im- do pelo “cuidado mecânico”, invasivo, imediatis-
portantes e o plano terapêutico não é possível de ta e impessoal, e o cuidado com o recém-nascido
ser cumprido levando aos erros de medicação. de modo individualizado, pois o percebe como
Além disso, a perda frequente dos acessos veno- ser único19. A gente tenta manter as regras de hu-
sos e as múltiplas punções são grandes obstácu- manização, do enrolamento, do aconchego e tudo
los na implementação do cuidado humanizado e mais, mas às vezes, não dá. Nem sempre você con-
voltado para o desenvolvimento, pois interferem segue, mas se tivéssemos esses processos em congru-
diretamente na aplicação dos princípios nortea- ência, com a humanização, você teria a análise do
dores desse modelo de cuidar, principalmente a momento de cada bebê mais ativa, mais viva, mais
diminuição do manuseio, garantia de períodos forte nas pessoas. Eu acho que é uma coisa que
de sono e repouso para os recém-nascidos e a pode acontecer, mas as pessoas ainda não acorda-
diminuição dos estímulos dolorosos. ram para este detalhe. Eu acho que as coisas ainda
não foram conectadas (Seibert, enfermeira).
Humanização - “As coisas Por outro lado, ainda que conflituosa, a con-
ainda não foram conectadas” vivência entre os dois modelos promove, mesmo
timidamente, a construção de novas teias de sig-
Uma vez que a unidade estudada é referência nificado (ou a ressignificação) do cuidar do re-
para a política de humanização da assistência aos cém-nascido na UTIN, permitindo a emergência
recém-nascidos de baixo-peso, a equipe destacou de um novo modelo de atenção, em que o cuida-
as interfaces do paradigma do cuidado humaniza- do e a tecnologia não se opõem, mas se comple-
do com a prática da terapia intravenosa, deslocan- mentam. Uma simples gota de glicose, alivia a ex-
do o recém-nascido para o centro da teia e anun- pressão de dor da criança de tal maneira. Eu pro-
ciando alguns caminhos, ainda que incipientes, curo sempre dentro do possível puncionar acom-
em direção ao movimento de resignificação. panhado de outra pessoa. Tem que ter uma pessoa
Essas interfaces estão presentes na aplicação do meu lado, com o dedo na boca, dando gotinhas
de medidas não farmacológicas de prevenção da de açúcar. Eu fico revoltado de ver uma pessoa pun-
dor relacionada às punções venosas, tais como a cionando sozinha. (Harvey, enfermeiro)
996
Rodrigues EC et al.

A incorporação de novas práticas que me- do a teia de significados apreendidos, juntamente


lhoram a qualidade da assistência ao recém-nas- com as repercussões desse modelo de cuidar na
cido é potencializada quando os profissionais saúde dos recém-nascidos, e são produtos das in-
refletem sobre sua própria prática e têm a opor- terações que surgem à medida que a equipe viven-
tunidade de experimentar outras formas de cui- cia os desafios da prática da TIV, fundamentando-
dar. Ao constatar que uma simples gota de glico- a nas punções venosas periféricas. Sendo assim,
se alivia a dor do recém-nascido, o enfermeiro amarradas à teia de significados, observamos as
Harvey passa a acreditar que é possível promo- complicações advindas da prática da TIV e as difi-
ver um cuidado com menos dor e sofrimento, culdades que a equipe enfrenta para desenvolvê-la.
não só para o bebê, mas também para ele. A repetição de alguns termos no esquema
Ao relatar como percebe o alívio da dor em procura ilustrar a dinâmica da construção do
um recém-nascido que recebe glicose via oral sistema de códigos pelos sujeitos, pois em qual-
durante a punção venosa, o enfermeiro anuncia quer lugar da teia (cujo centro é a punção venosa
que há a necessidade da ressignificação de alguns periférica), os significados estão entrelaçados in-
sentidos atribuídos à prática da punção venosa. fluenciando e sendo e influenciados uns pelos
Por exemplo, solicitar a presença do colega du- outros, mantendo o padrão cultural que estru-
rante uma punção não significa “não ser bom de tura prática da TIV e repercute de diferentes
veia”, mas centrar o cuidado no recém-nascido, e maneiras no cuidado do recém-nascido. Por
não na técnica, tornando-a menos dolorosa para exemplo: o termo “veinha”, que representa a ba-
o bebê e para quem a realiza. “O agir individual nalização da punção, evolui para “veia difícil”,
também traz a expressão dos aspectos culturais, que precisa do “bom de veia” por causa do esgo-
sociais, afetivos e políticos que estão inter-relaci- tamento da rede venosa.
onados nas relações de cuidado20”. A metáfora da teia, tal qual no pensamento
A crença de que o Homem se completa e se de Geertz, procura mostrar como, a partir do
acaba através da cultura porque cada fio da teia emaranhado de significados, os sujeitos repro-
de significados tem inter-relação com símbolos duzem o padrão cultural que sustenta a prática
que são interpretados a todo o momento, pro- da TIV na unidade e suas repercussões para o
duzindo suas ações7, é fundamental na constru- cuidado do recém-nascido. Desta forma, a leitu-
ção de uma nova cultura de cuidado na unidade, ra etnográfica, ainda que de forma inacabada,
na qual o profissional se sente sujeito ativo e res- possibilitou a apreensão do sistema de codifica-
ponsável pelo processo de mudança tão desacre- ção cultural que norteia essa prática no cenário
ditado no âmbito dos serviços públicos de saúde. de estudo. A análise da prática da TIV, na pers-
pectiva dos significados, possibilitou ultrapassar
os seus limites de função terapêutica e evidenciar
Conclusão as interações que desvelam conflitos, negociações
e dilemas vivenciados pela equipe da UTIN2.
O olhar semiótico e de estranhamento possibili- A centralidade e a banalização da punção ve-
tou a apreensão dos diversos códigos e da ma- nosa periférica, representada pelo código “veinha”,
neira como eles são entrelaçados, formando a leva os recém-nascidos a sofrerem múltiplas pun-
teia de significados que revela os modos como os ções e ao esgotamento da rede venosa, fazendo
atores sociais vivenciam a prática da terapia in- com que a equipe produza outros significados
travenosa no espaço da UTIN. A prática da TIV derivados dessa centralidade, como a “veia difícil”
é estruturada a partir de vários significados cul- e o “bom de veia”. A veia difícil surge a partir do
turais construídos pela equipe. esgotamento da rede venosa do bebê e do signifi-
No centro da teia localiza-se a punção veno- cado atribuído ao profissional “bom de veia”, pois,
sa periférica, principal símbolo da terapia intra- ao mesmo tempo em que traz alívio para a equipe
venosa, pois a partir da valorização da técnica de quando tem êxito na punção venosa, ele retroali-
punção é que se estabelecem as interações que menta o padrão cultural de valorização da pun-
determinam o modelo de cuidado de recém-nas- ção venosa periférica de repetição.
cidos que necessitam de terapia intravenosa. O rodízio de veias, (para poupar a “veia can-
Na Figura 1, encontram-se ilustrados os signi- sada”), conduta considerada um mito da terapia
ficados atribuídos à prática da terapia intravenosa intravenosa, apesar de não ter sustentação em
na UTIN, responsáveis por formar o sistema de bases científicas, adia temporariamente a dor e o
codificação cultural no qual ela se estrutura. Os sofrimento do recém-nascido, da equipe e da fa-
códigos estão amarrados uns aos outros forman- mília causados pelas múltiplas punções.
997

Ciência & Saúde Coletiva, 17(4):989-999, 2012


Fantasma da
infecção
Esgotamento da
rede venosa Artrite séptica,
abcessos
Múltiplas punções
Dor e
Ninguém viu? Veia difícil sofrimento

Infiltração e Dor e
Bom de veia
extravasamento Furos sofrimento
Múltiplas
Sem tempo punções
Bom
para o PICC Terapia
Máquinas no de veia
intravenosa Veia
automático difícil

Punção venosa
periférica
“Tem que Uma veinha”
puncionar!”
Veia
Esgotamento
Conflitos e cansada
da rede venosa
negociações
Cabeças raspadas,
Infiltração e “salvadoras da pátria”
Dilemas
extravasamento
Dissecção
Veia difícil
venosa
Tratamento com
glicose e agarol

Uma veinha”

Figura 1. Significados atribuídos à prática da terapia intravenosa

A repetição de alguns termos no esquema procura ilustrar a dinâmica da construção do sistema de códigos pelos sujeitos, pois em
qualquer lugar da teia (cujo centro é a punção venosa periférica), os significados estão entrelaçados influenciando e sendo e
influenciados uns pelos outros, mantendo o padrão cultural que estrutura prática da terapia intravenosa e repercute de diferentes
maneiras no cuidado do recém-nascido.
Por exemplo: o termo “veinha” que representa a banalização da punção, com o tempo passa a se chamar veia difícil, que precisa do
“bom de veia” por causa do esgotamento da rede venosa. A veia cansada, que sofreu infiltração/extravasamento e foi tratada com
agarol e glicose, era só “uma veinha”.

A equipe demonstrou ter conhecimento das Os resultados mostraram que, apesar da in-
medidas não farmacológicas para minimizar a trodução do cateter central de inserção periférica
dor relacionada às punções venosas. Contudo, nas unidades do município com a capacitação dos
tais medidas, ainda não são implantadas em sua enfermeiros e a elaboração de protocolo, as medi-
totalidade, embora a unidade seja de referência das adotadas não foram suficientes para a incor-
para o Método-Canguru. poração dessa tecnologia no cuidado dos recém-
998
Rodrigues EC et al.

nascidos de forma a minimizar os danos causados A ressignificação da prática da TIV, com base
pelo uso frequente dos acessos venosos periféricos. nos achados deste estudo, será possível à medida
A incorporação de novas tecnologias em TIV é que os sujeitos, refletirem sobre a prática e rea-
de vital importância para o cuidado, porém, para valiarem os padrões culturais nos quais ela se
que possam beneficiar os recém-nascidos e a equi- estrutura de modo a que possam ser agentes ati-
pe é preciso que seja acompanhada de uma revisão vos de mudanças.
de práticas no espaço da UTIN. Uma postura críti- A produção e divulgação de conhecimentos
ca e reflexiva deve ser adotada em busca de racio- sobre a prática da TIV é fundamental para a for-
nalização, aquisição e incorporação de novas tec- mulação de políticas públicas de saúde que visem
nologias e ainda de uma avaliação, sob o ponto de à humanização da assistência, redução de agra-
vista ético, dos custos, da qualidade da assistência, vos e à promoção de um crescimento e um de-
dos benefícios, das limitações, dos riscos e da ade- senvolvimento saudáveis para recém-nascidos
quação às necessidades da população21. egressos de unidades neonatais.

Colaboradores

EC Rodrigues participou da concepção, do tra-


balho de campo, do delineamento e da aprova-
ção da versão final do artigo para publicação. SR
Cunha e R Gomes participaram da concepção,
do delineamento, da revisão crítica e da aprova-
ção da versão final do artigo para publicação.

Agradecimento

A Marco Aurélio Pinna de Carvalho (in memo-


riam) pela confecção gráfica da “Teia de Signifi-
cados”.
999

Ciência & Saúde Coletiva, 17(4):989-999, 2012


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