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Texto de Apoio ao Seminário Freud

2019-2020

Hélder Chambel

Freud Inicial: Da Hipnose à Teoria e Técnica Psicanalítica

A psicanálise desenvolve-se a partir das investigações clinicas e das teorias de


funcionamento psíquicos propostas por Sigmund Freud. Neste texto evidencia-se a
origem da teoria e da técnica psicanalítica dividindo os trabalhos iniciais de Freud em
cinco pontos fundamentais:

1. Entre a Histeria e a Hipnose em Busca de um Sentido (1892/95)

2. A Teoria da Sedução (1895/97)

3. Da Teoria da Sedução à Interpretação dos Sonhos (1900)

4. A Teoria da Sexualidade (1905)

5. A Técnica Psicanalítica (a partir de 1911)

Com início na hipnose, como forma de tratamento da histeria, Freud avança


progressivamente, entre 1885 e 1915, para a estruturação de uma teoria do funcionamento
psíquico e de uma técnica de tratamento derivada dessa teoria. Em termos teóricos, Freud
viria a introduzir transformações significativas nos anos seguintes, o mesmo não
aconteceu com a técnica terapêutica que estabilizou com a publicação dos textos sobre

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técnica entre 1910 e 1915. Dentro do movimento psicanalítico oficial, com excepção de
Sandor Ferenczi, a técnica definida por Freud não foi questionada até 1950.

1. Entre a Histeria e a Hipnose em Busca de um Sentido (1892/95)

“O histérico entra em hipnose profunda e, neste estado, pode recordar aquilo que está
fora da sua consciência, ou seja, a circunstância onde pela primeira vez apareceu o
sintoma. Esta única recordação cura o sintoma”

Freud (1889)

Podemos dizer que a hipnose é mãe da psicanálise na medida em que é partindo da


hipnose que Freud desenvolve as primeiras teorias psicanalíticas.

A ciência positivista era a escola do ateu Freud, curiosamente é da articulação entre duas
áreas rejeitadas pelo positivismo da época, a histeria e a hipnose, que Freud, um
reconhecido neurologista, desenvolve as ideias que o ajudam a tratar os seus pacientes.
Desde o início a psicanálise pouco ou nada deve à medicina, a não ser talvez o espírito
científico que Freud sempre lhe quis imprimir, herança do tempo que passou nos
laboratórios de Brücke e das teorias de Helmholtz que o influenciaram, por exemplo na
ideia de um equilíbrio energético do aparelho psíquico.

No seu espírito científico, em nome da racionalidade positivista, numa inalienável


vontade de fazer da psicanálise uma ciência ao estilo da época, Freud está disposto a
sacrificar por exemplo a influência de Nietzsche que estava ali ao lado, no espaço e no
pensamento. A psicanálise não surgiu da tentativa de objetividade racional positivista.
Embora Freud diga que preferia encontrar outra coisa, o que encontrava eram histórias,
como nos diz nos Estudos Sobre a Histeria, só nesses “contos de fadas científicos”
encontrava um sentido para os sintomas das pacientes. A psicanálise parte da hipnose (de
Charcot, Bernheim e Liébeault) para dar inteligibilidade ao funcionamento psíquico.
Freud perante o objectivismo do positivismo deriva para a subjectividade humana, só aí
encontra um sentido, e é ai que vai trabalhar e fundar a Psicanálise.

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A partir de 1892 incentivado por Breuer, seu colega e amigo, Freud passa a interessar-se
pelo tratamento da histeria através do método hipnótico, mais precisamente pelo método
catarquico sob hipnose. A histeria era uma doença muito frequente no final do século
XIX, aparentemente relacionada com um contexto cultural de repressão da sexualidade.

A descrição sintomatológica feita por Freud tinha uma grande variabilidade de sintomas,
desde os característicos ataques histéricos às paralisias, cegueiras, estados de ausência de
consciência e alucinações. Da parte médica havia uma completa ignorância sobre esta
doença que não tinha nenhuma lesão anatómica associada e cujos sintomas apareciam e
desapareciam de forma aleatória e sem sentido aparente. A medicina considerava a
histeria exclusivamente feminina e estas mulheres eram acusadas de simularem os
sintomas. Entre os tratamentos estavam as idas a banhos, massagens, a estimulação
eléctrica, intervenções cujos resultados não satisfaziam Freud.

Freud vai trabalhar duas temáticas rejeitadas pela medicina da altura, a histeria e o
hipnotismo, para na articulação entre as duas encontrar um sentido e um tratamento para
os sintomas histéricos. Freud e Breuer observam no caso Anna O., descrito nos Estudos
sobre Histeria (1885), que os sintomas desapareciam à medida que a paciente, sob
hipnose, conseguia recordar a sua origem e revivia com uma intensidade apropriada
a emoção originária a eles associada. Era o método catárquico sob hipnose.

É nesta altura que Freud conhece Charcot em Paris. Charcot considerava a histeria como
uma entidade nosológica definida e afirmava que os sintomas eram de origem psíquica.
Utilizava a hipnose para fazer aparecer e desaparecer os sintomas e assim demonstrar a
sua origem psíquica. Charcot utilizava a hipnose como demonstração clínica e não como
método de tratamento. É com a sugestão sob hipnose de Bernheim, em que se ordenava
aos pacientes o fim dos sintomas e com o método catárquico sob hipnose usado com Anna
O. por Breuer, que Freud vai começar a utilizar a hipnose como psicoterapia da histeria
de forma sistemática.

Em termos teóricos Freud e Breuer avançam que há um incidente, uma causa, que
provocou pela primeira vez o sintoma histérico, trata-se de um traumatismo psíquico na
origem da histeria. Esse traumatismo age como um corpo estranho ao paciente na

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medida em que não tem lembrança dele, no entanto mesmo esquecido o traumatismo
tem um papel activo no paciente.

Consideram que os fenómenos histéricos estão relacionados com uma dissociação do


consciente ou com uma dupla consciência constituída por afectos penosos não aceites
pela consciência. É necessária a hipnose para permitir ao paciente recordar a primeira
vez que teve o sintoma. O desaparecimento dos sintomas que se segue confirma a
hipótese de que o histérico sofre de reminiscências. A palavra anula o efeito traumático,
a linguagem desempenha um efeito catártico na medida em que a lembrança patogénica
tem associada uma carga emocional que precisa de ser ab-reagida.

Este mecanismo supõe a existência de um sistema do tipo hidráulico em que as energias


psíquicas e corporais procuram uma homeostasia, o trauma contém em si uma energia
que precisa de ser descarregada de forma a repor esses equilíbrios. A emoção associada
à representação do trauma é mais do que o sistema do paciente pode tolerar, dá-se uma
conversão somática, a energia psíquica, no caso da histeria, é transposta para o corpo, o
que justifica os ataques histéricos e as paralisias.

Freud progressivamente abandona o método hipnótico e procura a origem do sintoma sob


uma hipnose ligeira ou colocando a mão na testa dos pacientes, método de pressão
frontal, pedindo-lhes que se concentrem e recordem da origem do sintoma. Foi assim que
foi construindo a ideia de resistência e de defesa. Seriam estes mecanismos psíquicos
que impediam a chegada da recordação à consciência, protegiam a consciência de ideias
inconciliáveis com outras ideias da consciência, morais principalmente, uma espécie de
censura, a este mecanismo Freud chamou recalcamento.

Num processo gradual Freud vem a perceber que se pedisse aos pacientes para dizerem
tudo o que lhes vem à mente, em associação livre de ideias, conseguia não só chegar às
lembranças patogénicas recalcadas como também conseguia perceber as resistências que
se oponham a que essas lembranças se tornassem conscientes. A associação livre de ideias
viria a ser uma regra fundamental em psicanálise, a exigência de que o paciente
verbalize tudo o que lhe ocorre mesmo que lhe pareça sem sentido ou desapropriado.

Este método, e a teoria subjacente, tinha um factor explicativo da psicopatologia que a


hipnose não tinha. Na abordagem a que Freud viria a chamar de psicanálise o paciente

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estava consciente, entendendo Freud como uma vantagem que os pacientes estivessem
acordados pois assim apercebiam-se dos mecanismos que utilizavam,
consciencializavam-nos e desta forma eles modificavam-se. No caso do método hipnótico
com sugestão, Freud considera que as sugestões dadas aos pacientes, sob hipnose,
tendiam a perder o efeito com o tempo.

A associação de ideias permite deduzir sobre o trauma recalcado, mais à frente chegaria
a interpretação como forma de consciencializar o inconsciente obtendo assim o mesmo
resultado que no método catárquico sob hipnose. O psicanalista deduz do discurso do
paciente o trauma originário e usa a interpretação como forma de o trazer para a
consciência.

Freud, em ruptura com a escola positivista a que pertencia, não chegou às teorias
psicanalíticas pela análise neuropatológica de cérebros de crianças, coisa que inicialmente
foi fazer a França, chegou pelo hipnotismo de Charcot. É com Breuer e com a experiência
de Anna O., com a ab-reacção, as reminiscências e a catharsis sob hipnose que se inicia
a psicanálise. A descarga emocional sob hipnose de um afecto ligado a um evento
traumático expurga o seu efeito patogénico. Era o princípio da psicanálise. Freud segue
para a sua primeira teoria neurótica na ideia de que os eventos traumáticos recalcados
são sempre de carácter sexual, Breuer não o acompanha nesta ideia, teria em Fliess um
correspondente disponível para o ouvir.

Sobre a passagem da hipnose para a psicanálise diz Freud em 1905: “Observo que o
método psicanalítico é confundido com o tratamento hipnótico por sugestão. (...) Ocorre
que há seis anos que não uso a hipnose (...). Na verdade, há entre a técnica sugestiva e a
psicanalítica a maior antítese possível, aquela que o grande Leonardo da Vinci resumiu,
em relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare. A pintura, diz
Leonardo, trabalha per via di porre, pois deposita sobre a tela incolor partículas
coloridas que antes não estavam lá; já a escultura, pelo contrário, funciona per via di
levare, retira da pedra tudo o que encobre a superfície da estátua nela contida. De
maneira muito semelhante, a técnica de sugestão opera per via di porre; não se importa
com a origem, a força e o sentido dos sintomas, deposita algo - a sugestão - que espera
ser forte o bastante para impedir a expressão da ideia patogênica. A terapia psicanalítica
não pretende introduzir nada de novo, mas antes tirar, trazer algo para fora, e por isso

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preocupa-se com a gênese dos sintomas, cuja eliminação é o seu objectivo. Em todos os
casos graves, vi a sugestão introduzida desmoronar, e reaparece a doença. Além disso,
critico essa técnica por ocultar o entendimento do jogo de forças psíquicas; não nos
permite, por exemplo, identificar a resistência com que os doentes se agarram à sua
doença, chegando em função disso a lutar contra a sua própria recuperação; é a
resistência que nos permite compreender o comportamento.”

Conceitos-chave: Método hipnótico, ab-reacção, catharse, sugestão hipnótica, Anna O.,


evento traumático recalcado, origem do sintoma, defesa da consciência, dissociação do
consciente, dupla consciência, afectos penosos, conversão somática.

Obras de Freud:

Breuer e Freud - Estudos Sobre a Histeria (1885)

Freud - Prefácio à Tradução de “De La Suggestion” de Bernheim (1888)

Freud - Resenha de “Hipnotism”, de Auqust Forel (1889)

Freud - Hipnose (1891).

Freud - Um Caso de Cura pelo Hipnotismo (1892)

2. A Teoria da Sedução (1895/97)

Conceitos-chave: Teoria da sedução, Cena de sedução, Equilíbrio homeostático,


Psiconeuroses de defesa, Histeria, Fobia, Obsessão, Neuroses actuais, Neurastenia,
Neurose de angústia, Determinismo psíquico, Normalidade da loucura, Sentido do
sintoma.

Entre 1883 e 1887 Freud desenvolve a Teoria da Sedução para explicar as


Psiconeuroses. Em Psiconeuroses de Defesa (1894) e em Observações Adicionais sobre
as Psiconeuroses de Defesa (1896) demonstra o mecanismo que produz os sintomas
histéricos, as fobias e as obsessões. Em Sobre os Fundamentos para Destacar da
Neurastenia uma Síndrome Especifica denominada Neurose de Angústia (1895)
demonstra as Neuroses Actuais. As psiconeuroses estão relacionadas com um evento

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ocorrido na infância do paciente, as neuroses actuais derivam de comportamentos sexuais
desadequados na vida actual do paciente.

As neuroses actuais são a Neurastenia e Neurose de Angústia, são resultado da ausente


ou inadequada descarga sexual no tempo presente. A Neurose de Angustia está
relacionada com o acumular de excitação sexual sem descarga: abstinência e coito
interrompido. A Neurastenia, termo bastante abrangente sintomatologicamente, está
relacionada com a descarga inadequada da sexualidade, a masturbação.

As psiconeuroses de defesa são a histeria de conversão, as fobias e as obsessões, e aqui


a origem do sintoma está na infância.

Freud considera que o motivo da defesa da consciência estaria no conteúdo das ideias
recalcadas, era esse conteúdo que gerava angústia e despoletava o mecanismo de
recalcamento. Essas ideias seriam traumas derivados de uma cena sexual infantil. Uma
sedução do adulto à criança, normalmente o pai da criança. Este evento na infância não é
patológico nem é recalcado, mas na adolescência, com a resignificação da sexualidade,
torna-se inaceitável para a consciência e é recalcado, excluído da consciência, mas não
podendo ser totalmente expulso da mente resultará num retorno do recalcado sob a
forma de sintoma. São definidos dois tempos do processo traumático: a criança exposta
sexualmente, visualmente, verbalmente ou mesmo abusada não fica traumatizada na
infância, é a resignificação desse acontecimento na adolescência que traumatiza, à
posteriori, com o entendimento da sexualidade.

O quantum de afecto, de energia, associado ao trauma, não sendo adequadamente ab-


reagido torna-se patológico através da conversão para o corpo, no caso da histeria, e
através de falsas ligações associativas no caso das fobias e das obsessões. Aqui a
representação é separada do afecto, a representação fica recalcada, mas a energia do
afecto não sendo vertida para o corpo vai-se ligar a outras representações com alguma
relação com a representação inicial, daí as fobias e as obsessões, imagens, representações
mentais carregadas com um afecto que não lhes pertence e por isso sempre presentes
na consciência.

É necessário trazer para a consciência o acontecimento inconsciente, através da palavra


consciencializar o inconsciente, desta forma retira-se o efeito patogénico inserindo esse

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pensamento noutras cadeias de pensamento, integrando e diluindo o seu potencial
energético. É nisto que Freud acredita enquanto abandona a hipnose, que sendo um facto
que até pode facilitar a recordação, não deixa que fique evidente e trabalhável a defesa da
consciência em relação às imagens não aceites na consciência. Nesta elaboração Freud
encontra um sentido para o sintoma e uma forma de tratamento.

Freud, como se percebe na aproximação à histeria e ao hipnotismo arriscava uma posição


de abertura que teve um papel importante na sua disponibilidade para ouvir os pacientes.
Foi esta abertura que conduziu à construção de um setting terapêutico, grande parte do
setting psicanalítico é construído com sugestões dos pacientes. Freud parte também das
descrições dos pacientes para apresentar a cena sexual traumática na etiologia das
neuroses. A psicanálise é inicialmente construída numa constante dialética entre os
pacientes e Freud.

Antes de entrar na primeira tópica, primeira versão de um aparelho psíquico, Freud altera
de forma radical a sua teoria das neuroses. Já não acredita na sua neurótica, confessa
numa carta a Fliess em 1897. Não lhe serve mais a ideia de meio mundo com pais
perversos e abusadores sexuais, incluindo o seu próprio pai, constatação decorrente do
que conclui sobre si na sua auto análise. Na ocasião da morte do pai, Freud vem
teoricamente a desculpabilizá-lo e a culpabilizar-se a si próprio, não é possível que o pai
seja perverso, é a criança que imagina, nasce a ideia de fantasma psíquico, de
realidade psíquica e surge o inconsciente que não distingue a realidade da ficção.

Obras

Psiconeuroses de Defesa (1894)

Sobre os Fundamentos para Destacar da Neurastenia uma Síndrome Especifica


denominada Neurose de Angústia (1895)

Obsessões e Fobias, Mecanismo Psíquico e Etiologia (1895)

Resposta a Críticas ao Artigo Neurose Angústia (1895)

A Etiologia da Histeria (1896)

Observações Adicionais sobre as Psiconeuroses de Defesa (1896)

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A Hereditariedade e a Etiologia das Neuroses (1896)

A Sexualidade na Etiologia das Neuroses (1898)

3. Da Teoria da Sedução à Interpretação dos Sonhos (1900).

Conceitos-chave: 1ª tópica, Inconsciente, Pré-consciente, Consciente, Processo


Primário e Processo Secundário, Censura, Trabalho do sonho, Deslocamento,
Condensação, Figurabilidade, Elaboração Secundária, Simbolismo, Complexo de Édipo,
Sonhos de Angústia.

“Sofri uma espécie de neurose. Estranhos estados que o consciente não pode
compreender: pensamentos nebulosos, dúvidas, e só de tempos a tempos um raio de luz.
(…) Parece que estou metido num casulo. Só Deus sabe que bicho dele sairá.”

Freud (carta a Fliess de 22 de Junho de 1897)

A teoria da sedução cai por terra em 1897, a partir daqui Freud inicia uma viagem para
dentro de si próprio, para o interno, e também a psicanálise, num movimento “de não foi
um acontecimento, foi a fantasia desse acontecimento” passa para o campo da realidade
psíquica, ficando a realidade externa, o trauma, para segundo plano. A ideia de Freud
em 1900 é que o trauma sexual não aconteceu, a criança fantasiou e, em adulto, o paciente
tomou a fantasia infantil por realidade, no entanto só a teoria da sexualidade viria a
concretizar a forma, o conteúdo e a dinâmica da fantasia infantil.

Freud conclui em 1899 uma obra decisiva para a Psicanálise: A Interpretação dos Sonhos.
É no campo da fantasia e do desejo inconsciente que Freud vai chegar à sua terra
prometida: a explicação dos sonhos.

Diz-nos Freud que os sonhos são uma atividade psíquica com sentido, como todas as
outras atividades psíquicas. Num primeiro plano corta com a ideia de os sonhos serem
mensagens de alguma entidade externa, relativiza e enquadra a sobrevalorização daquilo

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a que chama de restos diurnos, que apareceriam nos sonhos apenas porque tinham algum
tipo de associação com algo mais importante, minimiza a importância do que acontece ao
redor da pessoa que dorme e dos estímulos somáticos como a sede ou a fome.

Diz Freud que o sonho pertence a quem o sonha, e só a ele diz respeito, e diz respeito a
assuntos de importância maior, vai mais longe e generaliza a função do sonho: os sonhos
são a concretização de um desejo inconsciente do sonhador.

Mas como passar do absurdo, do non sense dos sonhos para a ideia da concretização de
um desejo? Torna-se chave a ideia de conteúdo manifesto do sonho, o que sonhamos,
ou pelo menos o que recordamos ter sonhado, e a sua relação com o conteúdo latente,
oculto e inconsciente para o sonhador mas que é o propulsor do sonho.

O latente, processo primário inconsciente tem por característica não ter a realidade em
consideração, não tolerar contradições, não conhecer a temporalidade e acima de tudo
procurar a todo o custo a realização dos seus desejos, o desejo do processo primário quer
irromper para a consciência para se tornar acção. Sucede a linguagem do processo
primário não poder ser aceite pela consciência, o confronto com outras partes da
consciência, com as ideias morais, gera uma angústia insustentável. É aqui que surge a
ideia de censura, um operador psíquico de dupla face entre a pré-consciência e o
inconsciente que bloqueia o advir do desejo à consciência e obriga a uma transformação
do processo primário em processo secundário.

Só uma deformação dos conteúdos do processo primário permitirá ao desejo passar pela
censura e entrar na consciência, trata-se de um compromisso entre instâncias psíquicas.
A censura só autoriza a passagem do desejo numa forma que não incomode a consciência
e a sua moralidade. E assim a consciência torna-se uma espécie de baile de máscaras, de
desejos mascarados para que o porteiro, a censura, os deixe entrar na sala da consciência
sem a perturbar. Se a censura não faz bem o seu trabalho o sonhador acorda
imediatamente, a angústia que gera o desejo pouco disfarçado na consciência não o
deixará dormir, daqui a função do sonho enquanto guardião do sono. Esta seria a
explicação de Freud para os sonhos de angústia, onde seria mais difícil perceber a ideia
da concretização de um desejo.

Estamos na primeira tópica Freudiana, a primeira hipótese de um aparelho psíquico,

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Inconsciente, Pré-consciente e Consciente, instâncias psíquicas numa dialética
constante mediadas pelo processo de Censura. O inconsciente viria a andar para o desejo
psicobiológico, pulsional, somatopsíquico e até filogenético, as ideias morais estão na
origem do superego. A estrutura base do aparelho psíquico proposto por Freud fica
definida no Cap. VII da Interpretação dos Sonhos.

A questão seguinte é: qual será a natureza do trabalho do sonho que transforma o


conteúdo latente em conteúdo manifesto. Diz-nos Freud que teremos de analisar e
compreender os mecanismos de formação dos sonhos, os mecanismos do aparelho
psíquico na transformação do desejo inconsciente em imagem aceitável para a censura e
para a consciência. Freud descreve vários destes mecanismos.

A condensação é uma imagem que tem a particularidade de reunir num só elemento


vários elementos pertencentes a diferentes cadeias de pensamento. Funciona também por
omissão, ou seja, o sonho não traduz de forma literal os pensamentos latentes mas sim de
forma incompleta e fragmentária.

O deslocamento substitui pensamentos por outros onde o conteúdo é desfocado e muitas


vezes transformado no seu inverso, consiste numa substituição dos pensamentos mais
significativos de um sonho em pensamentos acessórios, este disfarce permita a realização
do desejo.

A figurabilidade é o mecanismo que transforma os pensamentos em imagens, nos sonhos


todos os pensamentos são transformados em imagens, facto que permite as mais diversas
deslocações e simbolismos.

A elaboração secundária procura dar alguma harmonia às imagens fragmentárias das


cadeias de pensamento, durante o sonho e depois de acordarmos, dá-se um sentido,
enquadra-se com a coerência possível o conjunto de fragmentos sonhados.

Acresce a importante ideia de simbolismo, que tanto podem ser símbolos individuais
como universais, sendo que Freud fecha a porta a interpretações tipo dicionário de sonhos,
o sonho, como o seu simbolismo tem de ser visto no contexto e na associação livre de
quem o sonha. Só aí o símbolo ganha significado para quem o sonhou.

A interpretação dos sonhos, o desvendamento do desejo inaceitável pode ser alcançado


pela associação livre de quem sonhou. Essa é a técnica de interpretação dos sonhos,

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divide-se o sonho nos seus diversos fragmentos e pede-se ao sonhador que para cada um
deles diga o que lhe vem à cabeça, se assim o fizer, de representação em representação,
com mais ou menos defesas da consciência, Freud acredita poder chegar à fonte dos
sonhos, o desejo inconsciente.

No estudo dos sonhos típicos Freud fala-nos daquilo que tornaria um tema central em
psicanálise: o Complexo de Édipo. Diz: “Se alguém sonhar que o pai ou a mãe (...)
morreu. (...) Diria que o sonhador desejou essa morte na infância.” Freud considera que
temos sentimentos amorosos e hostis para com os nossos pais, esses sentimentos
desempenham um importante papel na psicosexualidade infantil e nas psiconeuroses. Vai
encontrar na antiguidade clássica, o Rei Édipo, que assassinou o pai e casou com a mãe,
esta tragédia grega seria é a realização do desejo de infância dos meninos. A mitologia ao
mesmo tempo que explica o nosso mundo interno é explicada, porque se construída por
homens em algum lado eles se inspiraram, neles próprios, diz Freud.

É na procura de compromissos entre instâncias psíquicas que Freud vai colocar sintomas,
actos falhados, o humor e a generalidade do comportamento humano. A partir de 1900
aprofunda a ideia de continuidade entre o normal e patológico, parece que tinha mesmo
esse objectivo em três obras desse tempo: A Interpretação dos Sonhos, Sobre a
Psicopatologia da Vida Quotidiana e em o Dito Espirituoso e o Inconsciente. O
mecanismo de formação do sonho, do humor e dos lapsos são equivalentes ao da
formação de sintomas, todos, mais ou menos loucos, temos os mesmos mecanismos de
funcionamento. Em 1905 chegaria a Teoria Sexual, Freud traz as perversões sexuais para
esta linha de ideias, dizendo que em crianças todos temos o potencial perverso.

Obras

A Interpretação dos Sonhos (1900)

Sobre os Sonhos (1901)

4. A Teoria da Sexualidade (1905).

Conceitos-Chave: Auto-erotismo, Édipo, Pulsão, Bissexualidade, Apoio, Zona erógena,


Desenvolvimento psicossexual, Pulsão unificada e Pulsão parcial, Origem infantil das

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perversões, Predisposição perversa polimorfa, Fases oral, anal e fálica, Fase da
latência, Fase genital, Teorias sexuais infantis, Perversão adulta, Homossexualidade,
Bissexualidade originária.

Freud em 1905 apresenta os Três Ensaios da Teoria Sexual. Esta obra complementa e
concretizara a ideia de desejo infantil inconsciente deixada em aberto em A Interpretação
dos Sonhos. Uma das dimensões do inconsciente freudiano ganha uma face que permite
concretizar o que Freud tinha dito antes. Esta obra carimba Freud, a partir daqui será quem
tudo explica com sexo. Neste trabalho Freud estende a ideia de sexualidade para além do
que é normalmente entendido como sexual e desmonta a ideia da origem da sexualidade
na puberdade, quando não no próprio dia do casamento, e escândalo dos escândalos,
coloca a origem da sexualidade na primeira infância. Apresentou um desenvolvimento
psicossexual da infância até à idade adulta. Para explicar esse desenvolvimento estabelece
conexões entre o considerado normal e anormal na sexualidade. Freud procura perceber,
com o desassombro que a situação exige, a sexualidade humana no conjunto das suas
manifestações. Sem fazer juízos de valor sobre os comportamentos sexuais.

Considera que a criança tem um potencial perverso polimorfo, ou seja, todas as partes
do seu corpo podem ser utilizadas como fontes de prazer, considera também que na
infância não é certa uma escolha de objecto sexual do sexo oposto. O desenvolvimento
psicossexual tenderá a conduzir a criança para centrar a sexualidade nos órgãos genitais
e a procurar uma pessoa do sexo oposto, mas nem sempre assim acontece.

Freud considera as perversões como um inadequado desenvolvimento psicossexual e


uma fixação em determinada fase desse desenvolvimento. Para chegar a estas conclusões
define o objecto, que é a pessoa a quem é dirigido o impulso sexual e a meta que é a
acção sexual concreta no objecto. Diz-nos que tanto quanto ao objecto quanto à meta a
sexualidade humana é muito variada, a sexualidade não se resume ao acto sexual entre
um homem e uma mulher com o objectivo de procriar. O facto de nas perversões serem
usadas outras partes do corpo como fontes de prazer alarga a ideia de sexualidade, mas
também toda a sexualidade dita normal evidência isso, por exemplo o beijo e os
preliminares do acto sexual não tem função reprodutiva.

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Freud propõe o termo pulsão para exprimir uma pressão, uma força, interna, que
impulsiona a pessoa para a acção. A sua natureza é somatopsiquica, a libido é a energia
móvel resultante desta pressão constante. O objectivo da pulsão é a descarga energética.

A pulsão sexual é composta por diferentes pulsões parciais relacionadas com as zonas
erógenas. As zonas erógenas são partes do corpo associadas ao prazer, embora Freud
venha a dizer que todo o corpo tem propriedades erógenas, há zonas que pelas suas
características estão predestinadas a essa função.

A zona oral, anal e genital, numa relação entre a sua função regular e o prazer levam a
que a pulsão se apoie, se ligue, a essa zonas. Por exemplo: na passagem do mamilo da
mãe para a chucha e para o sugar do polegar no caso da zona oral, isto é, a boca é
originalmente fonte de alimentação, mas vem seguidamente a ser fonte de prazer sem ter
valor nutricional, a chuchar e o sugar o dedo. Segue-se a mesma situação de ligamento
por apoio para a zona anal, onde de uma necessidade biológica, pulsão de
autoconservação, se pode passar ao prazer, pulsão sexual.

Referindo-se aos desvios em relação ao objecto sexual Freud critica a visão científica da
época sobre aquilo a que chamam de aberrações sexuais, entre elas a homossexualidade,
considerada na altura como uma degenerescência constitutiva. Diz-nos que são
dimensões da sexualidade adquiridas e não inatas. Mas se a homossexualidade é adquirida
como explicá-la? Para responder a esta questão Freud vai recorrer à ideia de
bissexualidade originária. A heterossexualidade é o resultado de uma evolução, onde a
ideia de bissexualidade originária é a regra. A bissexualidade, conceito conhecido da
biologia com raízes mitológicas, o terceiro sexo (andrógeno) na mitologia grega designa
uma disposição inconsciente que é própria de todos os humanos. Realça Freud que o
sujeito faz uma escolha sexual através do recalcamento de uma das duas componentes.
Há situações em que isso não acontece e onde se verifica a aceitação dos dois
componentes. Não nascemos com desejo por homens ou por mulheres, constituímos,
durante o desenvolvimento psicossexual, o objecto destinatário da nossa pulsão.

Em relação à meta sexual Freud considera que o normal seria o acto sexual com objectivo
de procriação. Para explicar os desvios em relação a essa meta diz-nos que a pulsão sexual
não está unificada. A pulsão sexual divide-se em várias componentes, as pulsões
parciais. Estas pulsões tem como fonte de excitação uma zona erógena, que poderá ser

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qualquer parte do corpo. As perversões baseiam-se na predominância de uma pulsão
parcial de origem infantil e utilizam partes do corpo ou objetos fetiches, como substitutos
do acto sexual. Assim as formas de perversão são fixações em metas sexuais preliminares,
a que correspondem pulsões parciais. Nas perversões a pulsão sexual está desintegrada e
fixada numa componente parcial da sexualidade, na sexualidade adulta normal, essas
pulsões serão reunidas na maturidade genital atingida na adolescência. Nesta linha de
ideias Freud diz-nos que a criança contém em si o potencial perverso, mas que o
desenvolvimento psicossexual a encaminha para uma sexualidade genital.

No segundo ensaio Freud lembra o facto de que se lembramos pouco da nossa infância.
A amnésia infantil para a qual não há uma explicação inteligível, para Freud trata-se de
recalcamento, o adulto mantém fora da consciência a vida sexual infantil, esse seria o
motivo da amnésia infantil. As manifestações da pulsão sexual chocam com a educação
e a moral, e são objecto de repulsa e pudor, motivo do recalcamento.

Na sexualidade infantil a criança retira prazer das zonas erógenas. A actividade sexual
infantil apoia-se nas funções de conservação da vida para depois ganhar vida própria.
Freud considerara masturbação as actividades para obtenção de prazer que não estão
relacionadas com a procriação, trata-se de um prazer dirigido ao próprio corpo e sem
objecto: um prazer autoerótico.

Freud apresenta uma organização dos destinos da libido em fases sucessivas, cada fase
corresponde à preponderância de uma zona erógena. Cada uma destas fases sobrepõe-se
à outra sem que a elimine e cada uma delas deixa uma marca permanentemente em
nós. A oralidade é marcada pela dependência do outro e a analidade pelo controlo, seria
a maior ou menor preponderância de cada uma destas fases que constituiria o nosso
carácter. Em situação de perigo regredimos à fase mais predominante e utilizamos a forma
defensiva correspondente. Por exemplo a procura de ajuda, colocarmo-nos numa situação
de dependência no caso da oralidade e a tentativa de controlo da situação no caso da
analidade.

É o papel desempenhado pelas zonas erógenas que leva Freud a dizer que existe na criança
uma predisposição perversa polimorfa, o corpo da criança apresenta desde o início uma
sensibilidade particular para a erotização. O facto de a criança ter prazer nas zonas

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erógenas não faz dela perversa, o termo perverso no caso das crianças é uma fase de
desenvolvimento psicossexual que ainda não chegou à sexualidade genital.

Freud diz-nos que as crianças têm uma curiosidade imensa, e fazem perguntas sobre
sexualidade, de onde vem os bebes, quem tem pilinha quem não tem, essas perguntas
deixam antever um “se não sabe porque pergunta?” ou seja, a colocação da pergunta exige
um pensamento anterior e uma hipótese. São as teorias sexuais infantis, fantasias da
criança sobre a sexualidade do adulto, cujo desfecho, as conclusões a que chega, terá
reflexos da organização inconsciente da sexualidade e na psicopatologia.

A sexualidade humana é plástica e desenvolvimental. A sexualidade adulta genital é uma


diferenciação bem-sucedida no sentido da integração das pulsões parciais e da resolução
do conflito edipiano.

O conflito Edipiano virá a desempenhar um papel fundamental em psicanálise. Freud


chega à ideia de Édipo através da sua auto-análise em 1897. Diz Freud numa carta a
Fliess, em 1897: “Encontrei em mim (…) sentimentos de amor em relação á minha mãe
e de inveja em relação ao meu pai, sentimentos que são comuns, suponho, a todas as
crianças pequenas, sendo assim compreende-se o efeito incrível de Édipo Rei.”

O Complexo de Édipo abre-se caminho para duas outras ideias, o complexo de castração,
onde o menino teme a retaliação pelo ódio ao pai e pelo investimento libidinal na mãe, e
para a ideia de superego que seria a lei do interdito, do proibido e do medo associado à
punição da transgressão, do desejo inconsciente e do auto-erotismo. O Superego é o
herdeiro do Complexo de Édipo. Desta dialéctica relacional com base psicossexual se vai
determinar a constituição psíquica futura de cada um de nós.

Freud aborda também a origem de certas características de personalidade, por exemplo


relacionando o feminino com a inveja do pénis. A ideia de feminino estaria ligada com
as teorias sexuais infantis. Uma dessas teorias, derivadas da observação, seria que existe
um só órgão sexual: o pénis, o acentuaria no rapaz a angústia de castração, medo de perder
o que se tem, e na rapariga desenvolveria a inveja do pénis e um correspondente
sentimento de inferioridade que só encontraria saída na obtenção do pénis no acto sexual
e na ideia de um filho como simbólico do pénis. Esta ideia do feminino encontrou desde
logo opositores dentro da própria psicanálise.

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A organização inconsciente da sexualidade infantil em torno do investimento libidinal e
agressivo nos objectos da primeira infância tem um papel decisivo não só na teoria, mas
também na técnica psicanalítica, onde, a ideia de transferência da pulsão dirigida
originalmente aos pais na infância para o analista na situação analítica tem consequências
técnicas imensas.

Obras

Três Ensaios sobre a teoria da Sexualidade (1905)

Teorias Sexuais Infantis (1908)

Moral Sexual e Doença Nervosa Moderna (1908)

5. A Técnica Psicanalítica (a partir de 1911)

Conceitos-Chave: Técnica Psicanalítica, Regras Técnicas, Abstinência, Anonimato,


Neutralidade, Transferência, Transferência amorosa, Transferência negativa, Complexo
de Édipo, Contratransferência, Setting psicanalítico, Criticas de Ferenczi.

Teoria e técnica em psicanálise estão profundamente entrelaçadas, é da observação clínica


que Freud vai construindo o edifício teórico psicanalítico. A teoria decorre da observação
clínica e o método é construído em interacção com os pacientes, muitas vezes por
sugestão deles. É a observação de que a consciencialização da origem do sintoma o faz
desaparecer que permite a Freud concluir sobre uma divisão da consciência e lhe permite
colocar hipóteses sobre o motivo por que tal coisa acontece. As ideias excluídas da
consciência teriam um conteúdo não aceitável a consciência defendia-se esquecendo o
trauma. Progressivamente Freud deixa a hipnose e avança teoricamente para a Teoria da
Sedução, conclui que o trauma é sempre de caracter sexual.

Freud que o paciente se defende, inconscientemente, de ideias que lhe são dolorosas e por
isso o recalcamento aparece e se mantém, derivam daqui as psiconeuroses. É necessário
combater a defesa. Progressivamente, e por sugestão de uma paciente, Freud passa a
deixar de inquirir sobre a origem dos sintomas e a associação livre passa a ser a regra

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fundamental, uma exigência terapêutica, o paciente terá de dizer tudo o que lhe vier à
mente, independentemente de o considerar desapropriado ou de parecer não ter nenhuma
relação com o assunto. Espera com isso Freud, que de associação em associação o
paciente chegue à origem do sintoma.

De forma a ajudar o paciente introduz a ideia de interpretação, isto é, Freud acha do


discurso do paciente se pode saber o que ele não diz, que está no inconsciente, e se o
analista o disser, o interpretar, provoca no paciente a consciencialização do inconsciente
e a consequente cura. Transpõe do conteúdo manifesto para o conteúdo latente, elucida o
processo primário a partir do processo secundário. Verifica que muitas vezes as
interpretações não são aceites pelos pacientes, o que Freud entende como uma resistência
ao trabalho analítico. Do lado do psicanalista a regra torna-se a atenção flutuante, não
dar uma atenção a nenhum aspecto específico do discurso do paciente, e deixar que de
associação em associação se chegue a material suficiente para se fazer uma interpretação.

Na construção do setting mantém-se o divã, com origem no hipnotismo, com uma


diferença, o psicanalista deixa de estar no campo visual do paciente, passa a estar atrás
do divã, diz Freud que introduziu esta alteração porque não aguentava estar muitas horas
com os pacientes a olhar para ele, reparou que a sua saída do campo visual aumentava a
capacidade de associação dos pacientes.

As transformações teóricas feitas a partir de 1900 com a ideia de um aparelho psíquico


dinamizado pela pulsão tem consequências técnicas. Desde o caso de Anna O., que na
sua fantasia “engravida e está prestes a ter um filho de Breuer” havia algo por explicar na
relação médico-paciente. Sucedeu outra paciente tentar beijar Freud, o que ele achou “que
não seria pelos seus lindos olhos”. O que havia a pensar nestes casos ganhou sentido com
a ideia de transferência. Tendo como pano de fundo a teoria pulsional e o complexo de
Édipo, Freud vai dizer que os pacientes repetem o investimento libidinal recalcado,
dirigidos aos pais na infância, no tempo presente com o analista. Tudo o que o
paciente não consegue recordar vai repetir na relação com o analista. Diz Freud:

“O paciente não recorda o que recalcou, mas expressa-o pela acção. Reproduz o passado
não como lembrança, mas como uma acção; repete-o, sem saber que está repetindo.”

“O paciente não recorda ser desafiador e crítico em relação à autoridade dos pais; em

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vez disso, comporta-se dessa maneira com o analista. Não se recorda de ter chegado a
um impasse nas suas pesquisas sexuais infantis; mas (…) queixa-se de não conseguir ter
sucesso em nada.”

A transferência para o analista de sentimentos inconscientes dirigidos para os objectos da


infância torna-se um problema, é um impedimento à associação livre de ideias e à
consciencialização do inconsciente. Os pacientes com as suas transferências amorosas e
agressivas deslocam a atenção da associação livre para a relação com o analista,
principalmente quando se aproximam de algum complexo patogénico inconsciente.
Torna-se necessário outro tipo de interpretação: a interpretação da transferência, de
modo que o paciente perceba o que está a repetir, o possa consciencializar e continuar
com as associações livres. Freud considera a transferência inevitável e só a sua análise
resolve uma psicanálise.

Do conceito de transferência decorrem um conjunto de regras técnicas. A abstinência, o


psicanalista não deve gratificar, de nenhuma forma, os impulsos libidinais do paciente
pois seria abrir espaço para o acentuar a transferência. Não deveriam haver contactos
sociais ou pessoais, o relacionamento entre analista e paciente teria de se restringir
exactamente ao período da análise, de forma que o paciente não investisse num
relacionamento pessoal em vez de um relacionamento com o objectivo de desvendar o
inconsciente. Seria uma saída defensiva do paciente que o analista deveria evitar. A regra
da neutralidade exigia que o analista fosse neutro em relação a opiniões ou juízos,
remetia para a regra do anonimato, o paciente não deve saber nada do analista. O
psicanalista deveria manter fidelidade às regras da abstinência, da neutralidade e do
anonimato, devia manter uma distância asséptica do paciente.

Directamente relacionada com a ideia transferência está a contratransferência que é o


que o analista sente perante o afecto libidinal ou agressivo do paciente. Freud sempre
achou que não era suposto o analista sentir nada pelos pacientes, teria de se ser uma tela
em branco, para onde o paciente projectava o seu mundo interno, utiliza a metáfora do
espelho, o analista deve devolver o que o paciente lhe envia, compara a análise a uma
cirurgia, onde os afectos devem ficar fora da mente do médico.

É da ideia da contratransferência como um obstáculo ao processo de associação livre do


paciente e interpretação do analista, que se avança para a necessidade de uma análise

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didáctica, para que o inconsciente do analista não inviabilize o processo.
Contratransferência, num primeiro momento, é a incapacidade de o analista reconhecer
os seus próprios complexos e por isso não poder compreender e analisar a transferência
do paciente. Posteriormente passa a ser o sentir do analista perante o paciente. Para Freud
o sentir do analista não deve ser tido em conta na equação terapêutica, a análise é do
mundo interno do paciente (pulsionalidade, agressividade, defesas, estrutura da mente) e
não da relação terapêutica. O sentir do analista é uma dificuldade acrescida.

A possibilidade da retirada relacional e emocional da relação terapêutica é muito criticada


actualmente, mas seria necessário passar pelo menos a primeira geração de psicanalistas
para que a subjectividade do analista fosse considerada para na compreensão da relação
terapêutica. Ferenczi a partir de 1920 trabalhou, de forma problemática, estes aspectos.

Ferenczi considerou, por exemplo, que o uso da interpretação que desvenda o


inconsciente remete o psicanalista para o campo da superioridade intelectual, isso tem
consequências clinicas, a acentuação de sentimentos de inferioridade nos pacientes. As
restantes regras técnicas atribuem à partida uma intenção aos pacientes do qual o
psicanalista se deve defender, uma suspeição de base, estes são ingredientes que levam a
tornar o espaço analítico frio e distante, racional, e pouco coincidente com a ideia de
humanismo subjacente à psicanálise.

Durante muito tempo a análise processava-se da seguinte forma, de um lado, deitado no


divã, ficava o paciente a associar livremente, e do outro lado, estava o analista, com o
saber que iluminava o paciente. A questão do saber está relacionada com o conteúdo da
interpretação e na sua verdade inquestionável. Neste esquema Freud pretende que,
independentemente do psicanalista, as conclusões e interpretações em relação a um
paciente seriam sempre as mesmas, uma ciência natural positivista.

Colocado na posição do que sabe, o psicanalista interpreta para o mundo interno do


paciente, para o conflito intrapsíquico, para a pulsionalidade e para a análise da
transferência. A base teórica da interpretação é a teoria sexual e a metapsicologia do
aparelho psíquico. A teoria passa a ser inquestionável na relação com os pacientes.

Ficamos num ponto em que o paciente não tem outra saída senão aceitar à verdade do
psicanalista, terá de se encaixar nas teorias do psicanalista, quando rejeita a interpretação

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do psicanalista isso é interpretado como resistência do paciente. Trata-se de um círculo
fechado. Freud deu importância à subjectividade do Humano, colocou a
subjetividade no centro, mas fechou os pacientes dentro da subjectividade que para
eles criou.

Ferenczi chama a atenção para outros aspectos, por exemplo, quando um paciente relata
um abuso moral, físico ou sexual e isso é interpretado para o campo da fantasia, dá-se
uma retraumatização, desmente-se a vivência e a subjectividade do paciente, para se
manter na análise uma parte do paciente terá de ser enterrada viva. Para Ferenczi,
quando o trauma aconteceu seria necessária uma revivência do trauma para o poder
elaborar. Neste ponto, como diria Freud a Ferenczi, Ferenczi volta para a primeira teoria
de Freud, faz uma mudança paradigmática colocando o trauma e o factor externo como
fundadores do psiquismo humano e da psicopatologia.

Ferenczi refere que o ambiente geral do setting psicanalítico corresponde a um ambiente


traumatizante, persecutório e intrusivo, e pode levar a repetições de processos traumáticos
da infância. A questão do ambiente deriva da seguinte observação teórica de Ferenczi: o
bebé para se desenvolver saudavelmente precisa de um ambiente que o deseje,
quando o ambiente é rejeitante, o bebé pode morrer ou então activa mecanismos psíquicos
psicopatológicos que lhe causam sofrimento.

Ferenczi coloca a questão no ambiente com que se recebem os pacientes e o ambiente


geral em que decorre a análise, tendo como ideia base o dever de bondade,
confiabilidade e autenticidade dos pais e do analista, questiona a frieza, racionalismo
e até a hipocrisia com que decorre o método psicanalítico clássico. Vai estudar, testar,
corrigir e apresentar desenvolvimentos técnicos que serão rejeitados pelos seus colegas e
recuperamos décadas depois, O trauma, o externo e a relação primária, materna, fariam a
história da psicanálise das décadas seguintes. Principalmente pela escola das relações
objectais (Klein, Balint, Fairbain e Winnicott) em Inglaterra, pelas teorias do self (Kohut)
e pelas teorias interpessoais (Sullivan) nos Estados Unidos. A síntese destes movimentos
teóricos resultou no que Stephen Mitchel e Jay Greenberg chamaram de psicanálise
relacional em 1983. Movimento que transformou de forma decisiva a teoria e a técnica
em psicanálise.

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Obras

O Manejo da Interpretação dos Sonhos em Psicanálise (1911)

A Dinâmica da Transferência (1912)

Recomendações aos Médicos que Exercem Psicanálise (1912)

Sobre o Inicio do Tratamento (1913)

Recordar, Repetir e Elaborar (1914)

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