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Rouanet, Sérgio Et Alli - O Homem e o Discurso. A Arqueologia de Michel Foucault PDF
Rouanet, Sérgio Et Alli - O Homem e o Discurso. A Arqueologia de Michel Foucault PDF
Foucault/Rouanet/Merquior/Escobar/Lecourt
M ic h e l F O U C A U L T
S e rg io P a u lo R O U A N E T
José G u ilh e rm e M E R Q U IO R
D o m in iq u e L E C O U R T
C arlo s H e n riq u e de E S C O B A R
O HOMEM E O DISCURSO
(A Arqueologia de Michel Foucault)
2a edição
T empo Brasileiro_____
Rio de Janeiro -- RJ - 1996
<'< >Ml I NIC.AÇAí)
Capa:
P edro P a u l o M a c h a d o
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Caixa Postal 16099 - CEP 22221-070
Rio de Janeiro -- RJ -- Brasil
ÍN D IC E GERAL
1. Apresentação ....................................................... 9
2. E N T R E V IS T A COM M IC H E L F O U C A U L T , por
Sergio P. Rouanet e J. G. M e r q u io r ................. 17
3. D O M IN IQ U E L E C O U R T
A Arqueologia e o Saber .................................... 43
4. C A R L O S H E N R IQ U E D E E S C O B A R
Discurso Científico e Discurso Ideológico ........ 67
5. SE R G IO P A U L O R O U A N E T
A Gramática do Homicídio ................................ 91
7
APRESENTAÇÃO
s
cina, mas da descrição faseológica de totalidades cultu
exceção. O homem começou a ser pensado como objeto
rais que se sucedem no tempo, e ao longo de cujo eixo a
para o saber no momento em que o espaço plano do pe
medicina elassifieatória transita para a medicina clínica ríodo clássico, regido pela categoria da representação,
e esta para a medicina anátomo-patológica. Cada etapa
passou a ser erodido pela historicidade, categoria central
do saber da loucura e do saber médico se inscreve numa
da episteme moderna: o homem surgiu na brecha epis-
configuração epocal, abrangendo um conjunto de siste-
temológica que se form ou com o fim da apresentação e
maticidades discursivas e constelações extradiscursivas,
o advento da história. Em outras palavras: o homem é
que se intercomunicam livremente. 0 discurso é poroso
um acidente na trajetória do Discurso, e poderá desapa
à praxis, e a praxis é modificada pelo discurso. O saber
recer quando se modificar a disposição epistemológica que
psiquiátrico de Pinei, por exemplo, não pode ser disso
o engendrou. N ão é outro o sentido da fórmula da mor
ciado das circunstâncias sociais e políticas do período re
te do homem” , pedra de escândalo da consciência antro
volucionário; e a nova form a de percepção característica
pológica vulgar. Essa fase da obra de Foucault pode ser
da medicina clínica é homóloga do espaço social livre
caracterizada como a da intransitividade consciente.
com que sonhava a Revolução francesa. Podemos carac
Enfim, o discurso da Arqueologia. Ê uma reflexão
terizar essa fase como a da transitividade discursiva.
metodológica sôbre as práticas descritivas do próprio
Já o discurso epistêmico, sistematizado em Les Mots Foucault — tanto a transitiva, como na história da lou
et Les Choses, é geralmente intransitivo. De nôvo, F ou cura e da medicina, como a intransitiva, característica
cault estuda configurações epocais, mas dessa vez de fo r de L es Mots et les Choses. É o momento da codificação.
ma ao mesmo tempo mais pletórica e mais ascética: seu Mas também o da síntese. Nesse livro, Foucault unifica
escopo é mais amplo, porque não se limita a estudar uma num grande Organon programático a metodologia da
modalidade específica de saber, mas uma rêde de discur transitividade e a metodologia da análise discursiva pu
sos interligados; e sua metodologia é mais severa, por ra. Num certo sentido, é uma resposta aos críticos, es
que exclui, deliberadamente, as práticas extradiscursi pecialmente marxistas, que o acusavam de praticar uma
vas. Mais uma vez, estamos diante de uma faseologia ter- historiografia fantasmagórica, em que o discurso era su
nária, em que a Renascença é sucedida pela época clás jeito e objeto de si mesmo. Mais profundamente, é um
sica e esta pela modernidade. M as o leitor procuraria em desenvolvimento lógico de sua obra anterior. Reapare
vão, dentro de cada fase, interações entre o discurso da cem, em sua tranquilizadora materialidade, as classes e
economia política e as novas form as de organização de as instituições, como na fase transitiva, mas “despresen-
trabalho introduzidas pela revolução tecnológica, ou en tificados” , reduzidos ao pré-discursivo, e portanto fun
tre o advento das ciências humanas e o advento do capi cionando ainda no nível do discursivo. Estamos num uni
talismo. Tudo se passa no nível do discurso. Os obje verso ao mesmo tempo fam iliar — as coisas existem
tos, conceitos e escolhas temáticas das diversas discipli e desconhecido — não são as mesmas coisas de que fala
nas são dados no espaço epistêmico formado pela inte mos no discurso cotidiano. De qualquer forma, as coisas
ração de sistematicidades discursivas. O entrelaçamento e as palavras estão presentes; com mais propriedade que
de disciplinas como a gramática, a história natural e a no livro anterior, a Archéologie poderia denominar-se Les
teoria das riquezas constitui uma espécie de solo epistê M ots et les Choses.
mico no qual podem ou não aflorar determinados temas O discurso é, portanto, a matéria de Foucault. D is
e objetos. A s possibilidades ou impossibilidades epistê- curso movendo-se livremente numa configuração total,
micas a viabilidade ou não de temas como o evolucio- como na história da loucura e da medicina; discurso im
nismo ou a lei da renda da terra — são condicionadas perialista e excludente, como em Les Mots et les Chosc-S;
por tendências objetivas no campo do discurso, e não e discurso controlado, co-existindo com o não (pré-dis
por totalidades sócio-culturais nas quais as práticas dis cursivo no interior de um corpus normativo, como na
cursivas alternam com as práticas extradiscursivas, ou Arqueologia.
as práticas investidas em instituições, como na história da Essa presença do discurso no coração da obra <lr
loucura e da clínica. O tema do homem não constitui uma Foucault pode e deve ser interpretada em têrmos da pi o-
10
blomática interna dessa obra. E m têrmos propriamente
científicos. B o que pretendem os textos incluídos nesta
antologia. M as êsse exame interno não é incompatível
com um exame do discurso de Foucault a partir de seus
limites exteriores. Investigando a zona limítrofe em que
o discursivo em Foucault se articula com o não-discursi-
vo. Seguindo, de certa forma, o método do próprio Fou
cault em suas primeiras reflexões sôbre a medicina e a
loucura, num zigue-zague livre entre as formações dis
cursivas e as não-discursivas.
12
tos; e quando põe de lado as práticas humanas em sua
descrição do mecanismo de apropriação temática de de
terminados discursos, enxergando nesse mecanismo um
conjunto de normas inerentes ao próprio discurso. F ou
cault não inventa um mundo sem sujeitos: descreve, rea-
listicamente, um mundo em que o sujeito já foi, ou está
sendo, submergido pelo discurso. Seria ingênuo ver nessa
expulsão do homem e da vida em benefício de um discur
so antropofágico uma ideologia idealista, segundo os ca
coetes mentais de um marxismo preguiçoso. Quando a
ideologia é co-extensa com o real, descrever o real já é
expor a ideologia. O desmascaramento, em Foucault, não
é praticado a partir de um lugar epistemológico privile
giado, livre do contágio das estruturas discursivas domi
nantes, mas pela inserção visceral nessas estruturas: des-
crevê-las já é começar a roê-las por dentro. Nesse sen
tido, a denúncia do antropologismo tradicional é um ges
to político. Porque êsse antropologismo, fundado direta
ou indiretamente no idealismo transcendental do sujeito,
e confundido ética com ciência, humanismo com saber, é
radicalmente incompetente para pensar a modernidade.
Em Les M ots et les Choses} Foucault diz que só com a
destruição do quadrilátero antropológico o homem pode
rá liberar um espaço mental em que a reflexão se torne
de nôvo possível. Essa form ulação é talvez extremada;
mas é certo que sem uma distinção nítida entre o huma
nismo e a ciência do homem, que relegue ao bas-fond
do espírito o antropologismo epigônico de nosso tempo,
não será possível refletir validamente sôbre o mundo nem
fo rja r os instrumentos para sua contestação.
A essa ubiquidade do discurso no mundo contempo
râneo — e em Foucault — podemos opor uma inexplicá
vel vulnerabilidade do discurso. O discurso é aquilo que
domina o homem com uma normatividade despótica; mas
é também aquilo que deve ser excluído ou reduzido ao si
lêncio. Ambivalência análoga em seu mecanismo à am
bivalência afetiva que Freud identifica na relação com a
autoridade paterna e Frázer na relação do primitivo com
o rei: misto de reverência e antagonismo, de submissão
e revolta, de amor e ódio. O discurso é ao mesmo tem
po soberano e prisioneiro. Aquilo ao qual o homem cede,
que o conduz em sua superfície translúcida, que age e
pensa por êle, que dita os enunciados necessários e au
toriza os enunciados possíveis. M as também a exterio-
ridade selvagem que precisa ser dominada por sistema
13
(le interditos e domesticada por fórmulas de legitima
ção, a fim de conjurar sua imprevisibilidade e fixá-la
numa ordem. Êsse segundo aspecto do discurso — sua
vulnerabilidade — é tão característico do mundo moder
no quanto o primeiro. A modernidade é atravessada de
ponta a ponta por estruturas discursivas — mas não por
qualquer discurso. Nesse universo aparentemente domi
nado pelo discurso, não é possível fala r de qualquer coi
sa, nem atribuir a qualquer um o terrível poder de enun
ciar. É um mundo dominado por um duplo interdito:
quanto ao objeto e quanto ao sujeito do enunciado.
A obra de Foucault reflete êsse sistema de interdi
ções. A antinomia mais fundamental é a que opõe o dis
curso da loucura ao discurso da razão. Essa oposição,
relativamente fluída na Renascença, surge com nitidez
no período clássico e adquire contornos definitivos no
século X IX . D e um lado, existe o discurso da Ordem,
definida em têrmos econômicos, sociais, políticos, morais;
do outro, o discurso da Desordem. Desordem que no sé
culo X V II abrangia não somente a loucura como tôdas
as modalidades de comportamento anti-social. A loucura
era a marginalia da razão clássica. A razão se definindo
no momento em que define os seus limites exteriores.
Com o mesmo gesto de partilha com que separa o dis
curso normal e o psicopatológico, a razão clássica dese
nhava o seu próprio perfil, correlativa do perfil do Ou
tro. Os monstros da Desordem são produzidos não pelo
sono da Razão, como Goya imaginava, mas por sua im
placável vigilância e sua produtividade metódica. É no
momento em que produz sua teratologia que a razão
produz sua normalidade. O reino da ordem é instaurado
por um gesto ao mesmo tempo inaugural e de degrêdo.
É na descrição dêsse duplo movimento que Foucault
captura a modernidade em uma de suas dimensões mais
trágicas. O gesto instaurador é sempre solidário de um
gesto de segregação. Em têrmos sociais mais amplos,
talvez essa dicotomia sempre tenha existido. Cada dis
curso tem a sua patologia, que é o discurso periférico,
banido pelo discurso hegemônico. M as é na sociedade
moderna, sobretudo em sua variedade tecnocrática, que o
fenômeno se verifica de forma mais agônica. A razão tec-
noerática só pode funcionar expulsando para os confins
da Ordem os discursos que não podem ser assimilados
pela racionalidade vigente. O paradoxo da dinâmica tec
nocrática é que ela se define pelos discursos alternativos,
11
que, no entanto, precisam ser expulsos. Êsses discursos
vão sendo pouco a pouco silenciados, até que o dis
curso tecnoerático possa ser enunciado sozinho. Ao
contrário da natureza clássica, a tecnocracia é movida
pela fames vacui. Ê um discurso necrófilo, que só pode
prosperar num universo exangue. Num primeiro momen
to, a razão tecnocrática limita-se a degredar para o lim
bo do discurso a sua demonologia: os discursos reivindi-
catórios, que interferem com a racionalidade das deci
sões econômicas; os discursos civis, que interferem com
a racionalidade das decisões militares; os discursos parti
dários, que interferem com a racionalidade do modêlo
político. Com o tempo, êsses demônios vão desaparecen
do: a ratio tecnocrática se implanta sozinha na polis. É
o triunfo do discurso da Razão. E a mudez — quem sabe
provisória — do discurso da loucura.
tb
15
Entrevista com Michel Foucault
P o r S er gio P aulo R o u a n e t
e José G u ilh e r m e M e r q u i o r
17
semântica tem alguma utilidade? A s
análises quantitativas, como as pratica
das pelos historiadores, servem para al
guma coisa? Podemos então perguntar
o que é a Archéologie, se não é nem uma
teoria nem uma metodologia. Minha
resposta é que é alguma coisa como a
designação de um objeto: uma tentati
va de identificar o nível no qual pre
cisava situar-me para fazer surgir êsses
objetos que eu tinha manipulado duran
te muito tempo sem saber sequer que
êles existiam, e portanto sem poder no-
meá-los. A o escrever a Histoire de la
Folie ou a Naissance de la Clinique, eu
julgava, no fundo, estar fazendo a his
tória das ciências. Ciências imperfeitas,
como a psicologia, ciências flutuantes,
como as ciências médicas ou químicas,
mas ainda assim história das ciências.
Pensava que as particularidades que en
contrava estavam no próprio material
estudado, e não na especificidade do meu
ponto de vista. Ora, em L es Mots et les
Choses compreendi que independente
mente da história tradicional das ciên
cias, um outro método era possível, que
era uma certa maneira de considerar não
tanto o conteúdo da ciência como a sua
própria existência: uma certa maneira
de interrogar os fatos, que me fêz per
ceber que numa cultura como a do Oci
dente a prática científica tem uma
emergência histórica, comporta uma
existência e um desenvolvimento histó
rico, e seguiu um certo número de
linhas de transformação independente
mente, até certo ponto, de seu con
teúdo. E ra preciso, deixando de la-
19
circulação do discurso às práticas so
ciais, e reciprocamente, sem nenhum a
priori metodológico muito rígido; ou a
colocação entre parênteses dessas práti
cas, para concentrar a descrição no pl^‘
no exclusivo do discurso; ou enfim a in
corporação dessas práticas à análise, se
gundo um método rigoroso, mas udes-
presentificadas” e reduzidas ao pré-dis-
cursivo, e portanto funcionando ainda
no nível do discurso. Seus trabalhos fu~
turos seguirão sem dúvida êsse último
caminho. M as nesse caso, como articu
lar os dois planos — o discursivo e o ex-
tradiscursivo — mesmo se êste último
é apresentado como pré-discursivo?
20
tais como o desemprego, as necessidades
de mão-de-obra, etc. N o fundo, era um
pouco tudo isto que tinha me seduzido
no tema. Os esforços feitos por certos
historiadores da ciência, de inspiração
marxista, para localigar a gênese social
da geometria ou do cálculo das probabi
lidades no século X V II, tinham me im
pressionado muito. E ra um trabalho in
grato; os materiais eram muito difíceis.
É muito difícil empreender a análise das
relações entre o saber e a sociedade a
partir dêsse gênero de problemas. Em
compensação, existe um complexo insti
tucional considerável, e bem evidente, no
caso de um discurso com pretensões ci
entíficas, como o da psicopatologia. E ra
tentador analisar êsse discurso, e foi o
que tentei fazer. Prossegui, em seguida,
as minhas pesquisas no campo da me
dicina em geral, achando que tinha es
colhido um exemplo fácil demais no
campo da psicopatologia, cujo aparelho
científico era demasiado fraco. Tentei,
a propósito do nascimento da anátomo
e fisiopatologia, que são, afina), ciências
verdadeiras, identificar o sistema insti
tucional, e o conjunto das práticas eco
nômicas e sociais, que tornaram possí
vel, numa sociedade como a nossa, uma
medicina que é, apesar de tudo, e quais
quer que sejam as ressalvas possíveis,
uma medicina científica. Acrescentarei,
sem qualquer polêmica, que nenhuma
das críticas marxistas feitas a Les Mots
et les Choses por seu caráter pretensa-
mente anti-histórico, mencionaram se
quer as tentativas que eu havia feito a
propósito da psicopatologia ou da medi
cina. Les M ots et les Choses responde a
dois problemas particulares que se apre
sentaram a partir da problemática sus
citada pela Naissance de la Clinique. O
primeiro é o seguinte: podemos observar,
em práticas científicas perfeitamente
21
estranhas uma à outra, e sem qualquer
comunicação direta, transformações que
se produzem ao mesmo tempo, segundo
a mesma form a geral, no mesmo senti
do. É um problema muito curioso. Em
seu último livro, consagrado à história
da genética, François Jacob assinalou
um fenômeno dêsse gênero: o apareci
mento, no meio do século X IX , de duas
teorias, uma biológica e outra física, que
recorrem em geral ao mesmo tipo de or
ganização e sistematicidade. E ram as
teorias de Darwin e Bolzmann. Darwin
foi o primeiro a tratar os sêres vivos ao
nível da população, e não mais ao nível
da individualidade; o Bolzmann começou
a tratar as partículas físicas não mais
como individualidades, como ao nível do
fenômeno população, isto é, como séries
de eventualidades estatisticamente men
suráveis. Ora, entre D arw in e Bolz
mann, é evidente que não havia nenhu
ma relação direta: os dois ignoravam a
existência um do outro. A liás essa re
lação, hoje evidente, e que constitui
uma das grandes encruzilhadas da ciên
cia do século X IX , não podia realmente
ser percebida pelos contemporâneos.
Como é possível que dois acontecimen
tos, remotos na ordem da consciência,
tenham podido produzir-se simultanea
mente e aparecer tão próximos, para
nós, na ordem das configurações episte
mológicas em geral? Eu já tinha encon
trado precisamente êsse problema na
medicina clínica. Por exemplo, é quase
no mesmo momento e em condições mui
to parecidas que aparecem a química,
com Lavoisier, e a anátomo-fisiologia,
e no entanto é somente mais tarde, por
volta de 1820, que as duas ciências se
encontrarão. Ora, elas nasceram mais ou
menos na mesma época e constituíram,
cada uma em seu domínio, revoluções
mais ou menos análogas. Eis aí o pri
r
23
minai que constitui o discurso científico?
Pareceu-me que êsse vínculo deveria ser
procurado ao nível da constituição, para
uma ciência que nasce, os seus objetos
possíveis. O que torna possível uma ci
ência, nas formações pré-discursivas, é
a emergência de um certo número de ob
jetos que poderão tom ar-se objetos de
ciência; é a maneira pela qual o sujeito
do discurso científico se situa; é a mo
dalidade de formação dos conceitos. Em
suma, são tôdas essas regras, definindo
os objetos possíveis, as posições do su
jeito em relação aos objetos, e a manei
ra de form ar os conceitos, que nascem
das formações pré-discursivas e são de
terminadas por elas. Ê somente a partir
dessas regras que se poderá chegar ao
estado terminal do discurso, que não
exprime, portanto, essas condições, ainda
que estas o determinem. Em Les Mots
et les■Choses tentei olhar de mais perto
êsses dois problemas. Em primeiro lu
gar, o das simultaneidades epistemológi
cas. Tomei três domínios, muito diferen
tes, e entre os quais não houve nunca
uma comunicação direta: a gramática,
a história natural e a economia políti
ca. E tive a impressão de que êsses três
domínios tinham sofrido em dois mo
mentos precisos -— no meio do século
X V II e no meio do século X V I I I — um
conjunto de transformações semelhantes.
Tentei identificar essas transformações.
A inda não resolvi o problema de locali
zar exatamente a raiz dessas transfor
mações. M as estou certo de uma coisa:
essas transformações existem, e a tenta
tiva de descobrir sua origem não é qui-
mérica. Citei há pouco o livro de Fran-
çois Jacob, que é o livro de um biólogo,
interessado apenas na história da pró
pria biologia. Ora, tudo o que êle diz sô
bre a história da biologia nos séculos
X V II, X V III e X IX , coincide exatamen
te, quanto às datas e os princípios ge
rais, com o que eu mesmo disse. E êle
não tirava isto do meu livro, pois o dêle
foi escrito antes de ter oportunidade de
ler o meu. Achei interessante que essa
análise comparativa das transformações,
que poderia passar por delirante, na me
dida em que procurava relacionar disci
plinas tão estranhas uma à outra, tenha
sido confirmada pela análise interna de
uma história precisa, a da biologia. Eis
o primeiro problema. Quanto ao segun
do, tentei apreender as transformações
da gramática, da história natural e da
economia política não ao nível das teo
rias e teses sustentadas, mas ao nível da
maneira pela qual essas ciências consti
tuíram os seus objetos, da maneira pela
qual se form aram os seus conceitos, da
maneira pela qual o sujeito cognoscente
se situava em relação a êsse domínio de
objetos. É isto que chamo o nível ar
queológico da ciência, em oposição ao
nível epistemológico. Neste último, tra-
ta-se de descobrir a coerência teórica de
um sistema científico num momento da
do. A análise arqueológica é a análise
da maneira — antes mesmo da aparição
das estruturas epistemológicas, e por
baixo dessas estruturas — pela qual os
objetos são constituídos, os sujeitos se
colocam, e os objetos se formam. L es
M ots et les Choses é um livro em sus
penso: em suspenso na medida em que
não faço aparecerem as próprias práti
cas pré-discursivas. É no interior das
práticas científicas que eu me coloco,
para tentar descrever as regras para a
constituição dos objetos, a formação dos
conceitos, e as posições do sujeito. P o r
outro lado, a comparação que faço não
leva a uma explicação. M as nada disso
me preocupa. N ão escrevo um livro para
que seja o último; escrevo um livro para
25
que outros sejam possíveis — não ne-
cessàriamente escritos por mim.
26
a loucura. Essa percepção era para
mim o vínculo entre uma prática real,
que era essa reação social, e a maneira
pela qual era elaborada a teoria média
e científica. H oje em dia, não creio
mais nesse tipo de continuidade. É pre
ciso re-examinar as coisas com maior ri
gor. V o u tentar fazer isto num domínio
de teor científico muito fraco: a crimi-
nologia. Vou tentar ver, a partir da de
finição jurídica do crime, e da maneira
pela qual o crime foi isolado e sanciona
do, as práticas penais reais. Vou exami
nar, igualmente, como se form aram cer
tos conceitos, uns claramente morais, e
outros com pretensões científicas, como
a noção de degenerescência, e como êsses
conceitos funcionaram e continuam a
funcionar em certos aspectos de nossa
prática penal.
27
nós restringimos êsse campo. Creio que
é a Hegel que devemos a maior expan
são do campo dos objetos filosóficos.
Hegel falou de estátuas góticas, de tem
plos gregos, de velhas bandeiras. . . De
tudo, em suma.
28
problemática do sujeito. O problema,
para êle, era saber como é possível en
raizar efetivamente, ao nível da evidên
cia, da intuição pura e apodítica de um
sujeito, uma ciência que se desenvolve
segundo um certo número de princípios
formais e até certo ponto vazios. Como
a geometria, por exemplo, pôde prosse
guir durante séculos essa corrida da f o r
malização pura, e ser, ao mesmo tempo,
uma ciência pensável em cada um de
seus pontos por um indivíduo susceptível
de ter dessa ciência uma intuição apo
dítica? Como é possível que alguém, no
grande elenco das proposições geométri
cas, possa isolar uma dessas proposições,
percebê-la como verdadeira, e construir
sôbre ela uma demonstração apodítica?
Sôbre que intuição repousa êsse proces
so? É possível haver uma intuição pura
mente local e regional no interior de
uma geometria propriamente formal, ou
é preciso uma espécie de intuição que re-
-efetua em sua totalidade o projeto da
geometria, para que a certeza de uma
verdade geométrica possa surgir em um
ponto preciso do corpo das proposições
e do tempo histórico dos geômetras que
se sucedem uns aos outros? E ra êsse o
problema de Husserl: sempre, por con
seguinte, o problema do sujeito e de suas
conexões. Parece-me que o que caracte
riza agora, mais que os chamados filó
sofos, um certo número de romancistas,
pensadores, etc., é o fato de que para
êles o problema do sujeito não se coloca
mais, ou somente se coloca de uma fo r
ma extremamente derivada. A interro
gação do filósofo não é mais saber como
tudo isto é pensável, nem como o mun
do pode ser vivido, experimentado, atra
vessado pelo sujeito. O problema é ago
ra saber quais as condições impostas a
um sujeito qualquer para que êle possa
se introduzir, funcionar, servir de nó na
29
rede sistemática do que nos rodeia. À
partir daí, a descrição e a análise não
mais terão como objeto o sujeito e suas
relações com a humanidade e a forma,
mas o modo de existência de certos ob
jetos, como a ciência, que funcionam, se
desenvolvem, se transformam, sem qual
quer referência a algo como o funda
mento intuitivo num sujeito. Os sujei
tos sucessivos se limitam a entrar, por
portas por assim dizer laterais, no inte
rior de um sistema, que não somente se
conserva desde um certo tempo, com sua
sistematicidade própria e num certo sen
tido independente da consciência dos ho
mens, mas tem uma existência igualmen
te própria, e independente da existência
dêsse ou daquele sujeito. Desde o fira
do século X IX , já se sabe que a matemá
tica tem em si própria uma estrutura
que não é simplesmente a reprodução ou
sedimentação dos processos psicológicos
re ais: dir-se-ia, no tempo de Husserl,
que se trata de uma transcendência da
idealidade matemática em relação ao vi
vido da consciência. M as a existência
mesma da matemática — ou, de form a
mais geral, a existência mesma das ciên
cias — é a existência da linguagem, do
discurso. Essa existência — hoje já se
começa a perceber isto — não necessita
de uma série de fundadores, que teriam
produzido um certo número de transfor
mações em virtude de suas descobertas,
de seu gênio, de sua maneira de conce
ber as coisas. Ocorrem, simplesmente,
transformações, que se passam aqui e
ali, simultaneamente ou sucessivamente,
transformações enigmaticamente homó
logas e das quais ninguém é de fato o
titular. É preciso portanto desapropriar
a consciência humana não somente das
formas de objetividade que garantem a
verdade, mas das form as de historici
dade nas quais o nosso devenir está apri-
sionado. E is a pequena defasagem que
nos separa da filosofia tradicional. E u
lhes dizia há pouco que essa maneira de
ver não era exclusiva dos filósofos da
ciência ou dos filósofos em geral. T o
mem o exemplo de Blanchot, cuja obra
consistiu em meditar sôbre a existência
da literatura, da linguagem literária, do
discurso literário, independentemente
dos sujeitos nos quais êsse discurso se
acha investido. Tôda a crítica de Blan
chot consiste no fundo em mostrar como
cada autor se coloca no interior de sua
própria obra, e isto de uma form a tão
radical que a obra tem que destruí-lo.
É nela que o autor tem seu refúgio e
seu lugar; é nela que êle habita; é ela
que constitui sua pátria, e sem ela não
teria, literalmente, existência. M as essa
existência que o artista tem em sua obra
é tal que ela o leva, fatalmente, a pere
cer.
J . G . M . — O direito à m orte. . .
31
que deve fundar-se o engajamento polí
tico, se abandonarmos a concepção mi-
lenarista — escatológica, se quiserem —
do marxismo, tal como o descreve Les
M ots et les Choses? Deveríamos renun
ciar a enraizar a política numa ciência?
Enfim , na Archéologie, o Sr. diz que a
algumas dessas perguntas “ não há outra
resposta que uma resposta política. Tal
vez seja preciso retomá-las, e de outro
modo.” Isto significa que êsses proble
mas são insolúveis no contexto de uma
reflexão puramente teórica? Ou uma
teoria política “pós-arqueológica” é pos
sível?
F O U C A U L T — É uma pergunta difícil. Tenho a impres
são, aliás, que são várias perguntas que
se cruzam. Minhas formulações sôbre
M arx suscitaram, com efeito, um certo
número de reações, e não hesito em pre
cisar o meu pensamento sôbre êsse te
ma. Talvez eu tenha querido dizer coisas
demais nas poucas frases em que falei
do marxismo. Em todo caso, há certas
coisas que eu deveria ter dito mais cla
ramente. Em minha opinião, M arx pro
cedeu como muitos fundadores de ciên
cias ou tipos de discurso: utilizou um
conceito existente no interior de um dis
curso já constituído. A partir dêsse con
ceito, formou regras para êsse discurso
já constituído, e o deslocou, transforman
do-o no fundamento de uma análise e
de um tipo de discurso totalmente ou
tro. Extraiu a noção de mais-valia di
retamente das análises de Ricardo, onde
ela era quase uma filigrana — nesse sen
tido M arx é um ricardiano — e baseou
nesse conceito uma análise social e his
tórica que lhe permitiu definir os funda
mentos, ou em todo caso as form as mais
gerais da história da sociedade Ociden
tal e das sociedades industriais do sé
culo X IX . E que lhe permitiu, também,
fundar um movimento revolucionário
32
que continua vivo. N ão creio que sacra-
lizar a formação do marxismo ao ponto
de querer salvar tudo da economia ricar-
diana, a pretexto de que M arx dela se
serviu p ara form ular a noção de mais-
-valia, seja uma boa maneira de home
nagear Marx. Creio que a economia ri-
cardiana pode ser criticada a partir do
próprio Marx, em todo caso ao nível da
economia política tal como ela funcio
nou desde o início do século X IX : a êsse
nível, as análises de Ricardo podem ser
retomadas e revistas, e a noção de mais-
-valia não é necessàriamente um dos
conceitos mais intocáveis. Se nos colo
camos exclusivamente ao nível da eco
nomia política e de suas transformações,
essa revisão não é um delito muito gra
ve. Darwin, por exemplo, tirou certos
conceitos — chave da teoria evolucionis-
ta, que em suas principais articulações
foi inteiramente confirmada pela genéti
ca, de domínios científicos hoje critica
dos ou abandonados. E não há nisso na
da de grave. E ra isso o que eu queria
dizer quando afirmei que M arx se acha
va no século X IX como um peixe na
água. N ã o vejo porque sacralizar M arx
numa espécie de intemporalidade que lhe
permitisse descolar-se de sua época e
fundar uma ciência da história ela pró
pria meta-histórica. Se é preciso falar
do gênio de M arx — e acho que essa
palavra não deve ser empregada na his
tória da ciência — êsse gênio consistiu
precisamente em comportar-se como um
peixe na água no interior do século X I X :
manipulando a economia política tal
como havia sido efetivamente fundada,
e tal como existia a partir de vários
anos, M arx chegou a propor uma análi
se histórica das sociedades capitalistas
que pode ainda ter sua validade, e a fun
dar um movimento revolucionário que é
ainda o mais vivo hoje em dia.
33
J . G . M . — Quanto às 'possibilidades de fundar uma
ação política segura, na base de uma
concepção teórica que explique cientifi
camente a realidade, é preciso, sem dú
vida, levar M arx em consideração, mas
também as análises ulteriores que ultra
passaram, de certa forma, a análise mar
xista do conhecimento.
34
que se repetem incessantemente. Existe
um código dêsses discursos, existem nor
mas p ara essas práticas, aos quais de
vem obedecer êsses discursos e práticas.
N ão há razão para se orgulhar disso; e
os cientistas — eu lhes asseguro — não
têm nenhum orgulho particular em saber
que o que fazem é ciência. Êles o sa
bem, é tudo; e isto por uma espécie de
comum acôrdo, que é a comunidade do
código, e a partir do qual podem dizer:
“Isso está provado, e aquilo não está.”
E existem, lado a lado, outros tipos de
discursos e práticas, cuja importância
para nossa sociedade e para nossa his
tória independe do estatuto de ciência
que possam vir a receber.
35
reclamam o estatuto de ciências para a
psicanálise e o marxismo manifestam
ruidosamente o seu desprêzo pelas ciên
cias positivas, como a química, a anato
mia patológica ou a física teórica. Só
escondem um pouco o seu desprezo em
relação à matemática. Ora, de fato a
sua atitude mostra que têm pela ciência
um respeito e uma reverência de gina-
sianos. Têm a impressão que se o m ar
xismo fôsse uma ciência — e aqui êles
pensam em algo tangível, como uma de
monstração matemática — poderiam
ter certeza de sua validade. E u acuso
essa gente de ter da ciência uma idéia
mais alta do que ela merece, e de ter um
secreto desprêzo pela psicanálise e pelo
marxismo. Eu os acuso de insegurança.
Ê por isso que reivindicam um estatuto
que não é tão importante assim para
aquelas disciplinas.
36
estava fazendo uma análise histórica de
um certo período, cujos limites eram
aproximadamente 1650 e 1850, com pe
quenos prolongamentos que não iam
além do fim do século X IX , e no domí
nio igualmente preciso constituído pelas
ciências da linguagem, da vida e do tra
balho. Quando falei do marxismo nesse
livro, deveria ter dito, sabendo como êsse
tema é super-valorizado, que se tratava
do marxismo tal como funcionou na E u
ropa até, no máximo, o início do século
X X . Deveria também ter precisado —
e reconheço que falhei nesse ponto —
que se tratava da espécie de marxismo
que se encontra num certo número de
comentadores de M arx, como Engels. E
que aliás também não está ausente em
M arx. Quero referir-me a uma espécie
de filosofia marxista que é, a meu ver,
um acompanhamento ideológico das aná
lises históricas e sociais de Marx, assim
como de sua prática revolucionária, e
que não constitui o cerne do marxismo,
entendido como a análise da sociedade
capitalista e o esquema de uma ação re
volucionária nessa sociedade, Se é êste
o núcleo do marxismo, então não foi do
marxismo que falei, mas de um a espécie
de humanismo m arxista — um acompa
nhamento ideológico, uma música-de-
-fundo filosófica.
37
Seja a propósito de Cervantesf seja a
propósito de Holderlin ou Mallarmé, o
Sr. dá a entender que a literatura desem
penha muitas vêzes um papel pioneiro na
emergência das epistemes. E seu belo
texto sôbre Blanchot desenvolve essa
mesma idéia■ Está de acôrdo com essa
interpretação?
38
¥
39
nais de que se falou há pouco, isto é,
êsse conjunto de práticas tanto mais im
portantes quanto os saberes a elas liga
dos eram mais fracamente articulados
do ponto de vista de sua sistematicidade
científica. Quero perguntar-lhe se pre
tende ocupar-se ainda de certos fenôme
nos mentais que não são habitualmente
considerados como saberes, na perspec
tiva, por exemplo, de suas pesquisas sô
bre a loucura. Mais precisamente: pensa
o sr. estudar, sempre em relação às epis
temes, que permanecem a sua preocupa
ção principal, o domínio da experiência
religiosa? Quero dizer com isso não a
ideologia religiosa no sentido estrito,
mas as experiências religiosas no senti
do amplo. Estou pensando, por exemplo,
no gênero de análises, muito empíricas
mas muito interessantes, de um autor
como Bakhtine, em sua obra como R&-
belais ou Dostoievski, quando diz que 0
carnaval era uma forma de experiência
religiosa, uma festa religiosa que foi v i
sivelmente reduzida e “ domesticada" na
época do nascimento da episteme clássi
ca, isto é, na época dominada pela re
presentação.
40
médicos, por sua racionalidade e seu li
beralismo, arrancaram os feiticeiros às
garras dos inquisidores. A s coisas são
muito mais complexas. Foi num certo
sentido em conseqüência de uma neces
sidade, de uma certa cumplicidade, que
a Igreja, o poder real, a magistratura,
os próprios médicos, fizeram emergir a
feitiçaria como domínio possível da ci
ência, isto é, fizeram do feiticeiro um
doente mental. N ão era uma libertação;
era outra form a de captura. Onde antes
havia simplesmente exclusão, processo,
etc., o fenômeno foi inscrito no interior
da episteme e tornou-se um campo de
objetos possíveis. H á pouco nos pergun
távamos como alguma coisa pode se tor
nar um objeto possível para a ciência. Eis
um belo exemplo. A idéia de uma ciên
cia da feitiçaria, de um conhecimento
racional, positivo, da feitiçaria, era algo
de rigorosamente impossível na Idade
Média. E isto não porque se desprezas
se a feitiçaria, ou em conseqüência do
preconceito religioso. E ra todo o siste
ma cultural do saber que excluía que a
feitiçaria se tornasse um objeto para o
saber. E eis que a partir dos séculos
X V I e X V II, com a anuência da Igreja
e mesmo a seu pedido, o feiticeiro se
torna um objeto de conhecimento pos
sível entre os médicos: pergunta-se ao
médico se o feiticeiro é ou não doente.
Tudo isso é muito interessante, e no qua
dro do que me proponho fazer.
41
campo de objetos possíveis, mas que ain
da não pude elaborar a teoria dessas
análises. Ê justamente essa teoria que
pretendo iniciar agora. Quanto à aula
de abertura, repito que me sinto muito
embaraçado, talvez por ser infenso a
qualquer instituição. N ão encontrei ain
da, como objeto de meu discurso, senão
o paradoxo de uma aula inaugural. A
expressão é com efeito surpreendente.
Pede-se a alguém que comece. Começar
absolutamente, é algo que podemos fa
zer se nos colocamos, pelo menos miti
camente, na posição do aluno. M as a
inauguração, no estrito sentido do têr
mo, só ocorre sôbre um fundo de igno
rância, de inocência, de ingenuidade ab
solutamente primeira: podemos falar de
inauguração se estamos diante de al
guém que ainda não sabe nada, ou que
não começou ainda nem a falar, nem a
pensar, nem a saber. E no entanto, essa
inauguração é uma aula. Ora, uma aula
implica que se tenha atrás de si todo um
conjunto de saberes, de discursos já
constituídos. Creio que falarei sôbre
êsse paradoxo.
42
A Arqueologia e o Saber
P o r D o m in i q u e L e c o u rt
43
riância do estilo, não obstante a dificuldade de confirmar
êsse pressentimento, pois as novas análises ainda não apa
receram e as antigas são evocadas de form a apenas alu
siva.
44
do a leis estruturais específicas, levava, inexoràvelmente,
a pensar a história das formações ideológicas como “mu
tações” bruscas, “rupturas” enigmáticas, “fraturas” sú
bitas. Ê com êsse tipo de história — por razões que exa
minaremos mais tarde — que Foucault pretende agora
romper. A Archéologie exprime êsse divórcio. Foucault
deseja libertar-se dos aspectos “ estruturalistas” da epis
teme, sem por isso aceitar os pressupostos humanistas
que sempre combateu. A operação é perigosa, e exigia um
livro; sua complexidade explica o mal-estar dos leitores
c a discreção dos críticos: não encontram mais, na A r
chéologie, o seu Foucault, como desbravador bem com
portado de estruturas epistêmicas. Pior ainda: vêem a
História renascer; não a sua história, mas uma história
insólita, que recusa tanto a continuidade do sujeito quan
to a ãescontinuiãade estrutural das rupturas.
A nosso ver, os críticos têm razão. Seu receio é jus
tificado, pois o conceito de história que funciona na A r
chéologie tem consonâncias comuns com outro conceito de
história que têm excelentes motivos para detestar: o con
ceito científico de história, tal como aparece no materia-
lismo histórico. O conceito de uma história que também
se apresenta como um processo sem sujeito, estruturado
por um sistema de leis. Conceito, por isso mesmo, radi
calmente anti-antropologista, anti-humanista e anti-estru-
turalista.
A Archéologie du Savoir representaria, portanto, uma
reviravolta decisiva na obra de Foucault. Pretendemos
mostrar que sua nova posição o conduz a realizar um cer
to número de análises de grande riqueza do ponto de vis
ta do materialismo histórico; que reproduz, transpostos
em sua própria linguagem, conceitos que funcionam na
ciência marxista da história; e enfim que as dificuldades
que encontra, assim como o fracasso relativo a que é
levado, somente podem encontrar solução no campo do
materialismo histórico.
D A A R Q U E O L O G IA A O S A B E R
Contra o Sujeito
45
cas se enriquecem, se aprofundam, e fazem brotar solida-
riedades conceituais que até êsse momento não se tinham
manifestado. Ê assim que seus ataques contra a catego
ria de sujeito estão agora associados a investidas contra
o continuismo em história.
Eis sua resposta aos seus críticos humanistas neo-
-hegelianos a propósito de Les M ots et les Choses: “O
que se deplora tanto, não é o desaparecimento da histó
ria, e sim o desaparecimento dessa form a de história
referida secreta mas inequivocamente à atividade sinté
tica do sujeito” . L u g a r de eleição, e álibi perfeito do an-
tropologism o: não há melhor maneira de combater a his
tória que desfraldar a bandeira da história.
Exem plo: a Archéologie contém uma polêmica im
placável contra uma disciplina atualmente em voga: a
“história das idéias” . Foucault mostra que essa disci
plina repousa sôbre um postulado antropolcgista que a
obriga a ser ostensiva ou disfarçadamente eontinuista. A
“história das idéias” , segundo êle, desempenha dois pa
péis: por uma parte, “ contra a história do marginal e do
colateral. N ã o a história das ciências, mas a dos conhe
cimentos imperfeitos,.mal fundados, que não conseguiram
nunca, no curso de uma vida obstinada, atingir a form a
da cientificidade.” Seguem-se os exemplos: alquimia, fre-
nologia, teorias atomísticas. . . Em suma, é a disciplina
das linguagens flutuantes, das obras informes, dos te
mas soltos.” Por outro lado, entretanto, a história das
idéias pretende atravessar as disciplinas existentes, pro
cessá-las e reinterpretá-las. Descreve a difusão de um
saber científico da ciência para a filosofia, e para a pró
pria literatura. Nesse sentido, seus postulados são: “a
gênese, a continuidade, a totalização.” (p. 181). Gênese:
tôdas as “regiões” do saber são referidas, como sua ori
gem, à unidade de um sujeito individual ou coletivo. Con
tinuidade: a unidade da origem tem como correlato ne
cessário a homogeneidade do desenvolvimento. Totali
zação: a unidade da origem tem como correlato necessá
rio a homogeneidade das partes. Tudo é coerente, mas
não pode, segundo Foucault, produzir uma história ver
dadeira.
N o va frente de ataque: qualquer teoria do reflexo, na
medida em que enxerga no “discurso” a superfície de pro
jeção simbólica de acontecimentos ou processos situados
no exterior, na medida em que procura “descobrir um
46
encadeamento causai descritível ponto por ponto, permi
tindo correlacionar uma descoberta e um acontecimento,
ou um conceito e uma estrutura social” , na medida, em
suma, em que repousa sôbre um fundamento “ empirista”
nu “sensualista” , qualquer teoria do reflexo, assim defi
nida, pressupõe como “ponto fixo ” a categoria do sujeito,
e é suspeita, desde o início, de antropologismo (p. 215).
Mais surpreendente ainda: a categoria de autor, que no
entanto parece bastante concreta e evidente, é rejeitada.
O autor é simplesmente a qualificação literária, científi
ca ou filosófica de um “sujeito” definido como “criador.”
O “ livro” , portanto, é uma unidade construída ingênua
c arbitràriamente, que nos é imposta, de form a imediata
e irreflexiva, pelas ilusões da geometria, pelas regras da
impressão e por uma tradição literária suspeita. O “livro”
deve, pois, ser considerado não como a projeção literal
e mais ou menos racionalizada de um sujeito portador e
instaurador de sentido, mas como um “ nó numa rêde” , (p.
34). Sua existência real — não sua aparência imediata
—- depende do “sistema de interações” que nêle se cris
talizam. “E êsse jôgo de interações não é homólogo, mas
varia conforme se trate de uma obra de matemática, de
um comentário de textos, de uma narrativa histórica, ou
do episódio de um ciclo romanesco” .
Contra o Objeto
47
qual se rompe seja pensado como um “obstáculo” episte
mológico. M as de que form a Bachelard propõe pensar os
obstáculos? Como a intervenção de imagens na prática
científica. Foucault pode portanto afirm ar que o par ob-
jeto-ruptura não é senão a figu ra invertida, mas idêntica
no fundo, do binômio sujeito-continuidade; a epistemo-
logia de Bachelard é, portanto, uma antropologia camu
flada. A “psicanálise do conhecimento objetivo” marca
os limites dessa epistemologia, seu ponto de inconsequên-
cia; o ponto em que outros princípios são necessários
para explicar o que ela descreve: sem dúvida, e nisto re
side o grande mérito de Bachelard, uma ciência só pode
se form ar em ruptura com “ um tecido de erros tenazes” ,
que a precede e obstaculiza, mas referir-se à “libido” do
cientista para explicar a formação dêsse tecido, significa
aderir ainda à noção do sujeito, e mesmo, no limite, ad
mitir que a cientificidade pode ser estabelecida por de
cisão voluntária do (o u dos) cientistas. P a ra Foucault,
é preciso partir do que foi descrito por Bachelard, aban
donar o ponto de vista do objeto, e colocar sôbre novas
bases o problema da ruptura. Impõe-se, mais exatamen
te, examinar êsse tecido que Bachelard não conseguiu
“pensar”, e em particular essas “falsas ciências” que pre
cedem a ciência, essas “positividades” que as ciências,
uma vez constituídas, permitem caracterizar como “ideo
lógicas” . Sôbre êsse ponto, como veremos, a contribuição
da Archéologie é muito importante.
A IN S T Â N C IA D O S A B E R
A Materialidade Institucional
48
cada um dêles. Antes de encontrarmos, com tôda a cer
teza, uma ciência, romances, ou discursos políticos, o
material que deve ser tratado, em sua neutralidade pri
mitiva, é uma população de acontecimentos no espaço do
discurso em geral.” (p. 38). A qui as perguntas come
çam a se multiplicar: o que é êsse “espaço do discurso” ?
Seria o objeto da lingüística? N ão, porque o “campo dos
acontecimentos discursivos é o conjunto sempre finito e
atualmente limitado unicamente das seqüências lingüísti
cas que foram formuladas.” Seria simplesmente o “pen
samento” que é desigando por essas palavras esotéricas?
Não, porque não se trata de referir o que foi dito a uma
intenção, a um discurso silencioso que o ordenaria do
interior; a pergunta que se coloca é somente essa: “qual
é essa existência singular que vem à luz do dia no que se
diz e em nada mais?” Continuemos a seguir Foucault a
fim de descobrir a especificidade dessa categoria por êle
construída, e à qual nos permitiremos mais tarde dar um
outro nome. N a realidade, é pelas vantagens que atribui
a êsse conceito que Foucault especifica o estatuto do que
chama de “ acontecimento discursivo”. Esta noção per
mitirá determinar “as relações dos enunciados entre si —
sem qualquer referência à consciência de um ou vários
autores; relações entre enunciados ou grupos de enun
ciados, e acontecimentos de outra ordem (técnica, econô
mica, social, política.)”
49
E essa a tríplice tarefa que se propõe a Archéologie; e é
nessa tentativa que reside, como veremos, o seu insuces
so relativo.
50
superpor, como numa simples superfície de inscrição, ob
jetos instaurados de antemão.” (p. 58). Com efeito, se o
que foi dito do “ regime material do enunciado” é exato,
o discurso não é definível independentemente das relações
que o constiuem; é assim que se falará de “relações dis
cursivas” , ou “regularidades discursivas”, de preferência
a “discurso”. É que o discurso, em última análise, é uma
prática. A categoria de “prática discursiva” , proposta por
Foucault, é o indício dessa inovação teórica, no fundo ma
terialista, que consiste em não aceitar nenhum “ discurso”
fora do sistema de relações materiais que o estruturam
e constituem. Essa nova categoria estabelece uma linha
divisória entre a Archéologie du Savoir e L e s M ots et les
Choses. M as é preciso evitar mal-entendidos: por “prá
tica” não se entende a atividade de um sujeito, e sim a
existência objetiva e material de certas regras às quais
o sujeito tem que obedecer quando participa do “discur
so”. Os efeitos dessa disciplina do sujeito são analisados
no exame das “posições do sujeito” : voltaremos ao as
sunto. N o momento, é a seguinte a definição positiva do
discurso segundo a Archéologie-. as relações discursivas
não são internas ao discurso, não são os nexos que exis
tem entre conceitos ou palavras, frases ou proposições;
mas não são externas tampouco, não são “circunstâncias”
exteriores susceptíveis de coagir o discurso; ao contrário,
‘tais relações “ determinam o feixe de relações que o dis
curso deve manter para ter condições de tratar de tais ou
lais objetos, e processá-los, nomeá-los, analisá-los, classi
ficá-los, explicá-los, etc. E Foucault conclui: “essas re
lações caracterizam não a língua que o discurso utiliza,
não as circunstâncias nas quais êle ocorre, mas o próprio
discurso enquanto prática.” (p. 63). D aí a noção de re
gra ou regularidade discursiva para designar as normas
dessa prática. D aí a definição, já mencionada, dos “ob
jetos” dessa prática como “efeitos” das regras, ou “ feixe
de relações” : é preciso, com efeito, definir os objetos sem
referência ao fundo das coisas, e referi-los ao conjunto
das regras que permitem form á-los como objetos de um
discurso e que constituem as suas condições de apareci
mento histórico” , (p. 65).
A Instância do Saber
51
siva, que se vê assim especificada: o domínio constituído
pelos diferentes objetos que adquirirão ou não estatuto
científico.” (p. 238). “Um saber é também o campo de
coordenação e subordinação dos enunciados em que os
conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transfor
mam.” (ibid .) Eis como, ao contrário da epistemologia,
a arqueologia percorre “ o eixo prática discursiva-saber-
-ciência” . (p. 239). A noção de ruptura epistemológica
é assim revista em seu estatuto. O próprio da epistemo
logia, segundo Foucault, é ignorar a instância do “saber” ,
a instância dessas relações ordenadas, cuja existência ma
terial constitui a base sôbre a qual se instaura o conheci
mento científico. O que se trata de mostrar é como “uma
ciência se inscreve e funciona no elemento do saber.”
Haveria um “espaço” no qual, por um jôgo interno como
as relações que o constituem, uma ciência determinada
form aria o seu objeto: “ A ciência, sem se identificar
com o saber, mas sem o obliterar ou excluir, se localiza
nêle, estrutura alguns dos seus objetos, sistematiza al
gumas de suas enunciações, formaliza alguns dos seus
conceitos e estratégias” , (pp. 241-242).
Voltaremos oportunamente a êsse “jôgo” imaginado
por Foucault, sobretudo no contexto de um exemplo pre
ciso, que é a relação entre M arx e Ricardo. Basta, por
enquanto, ter mostrado os princípios da análise e seus
efeitos sôbre as “disciplinas” existentes.
52
rios para a formulação de tal teoria. Êsses princípios são
os da ciência da história. Pois o que existe de mais posi
tivo na Archéologie é a tentativa de instaurar, sob o no
me de “form ação discursiva”, uma teoria materialista e
histórica das relações ideológicas e da formação dos ob
jetos ideológicos. M as em última análise, em que se ba
seia êsse esboço de teoria? E m uma distinção tàcítamen-
te aceita, sempre presente mas nunca teorizada, entre
“ práticas discursivas” e “práticas não-discursivas” . Tôdas
as suas análises conduzem a essa distinção; mas é uma
distinção feita às cegas, enquanto que o que se impõe é
pensá-la explicitamente sob a form a de uma teoria. Cons
truída essa teoria, Foucault se encontraria num terreno
distinto, como aliás êle próprio prevê.
53
S A B E R E ID E O L O G IA
54
relações que constituem o saber, e sôbre as quais emerge
a ciência.
55
da “arqueologia” foi inteiramente construído para com
pensar a inadequação da antinomia ciência-ideologia para
explicar essas “falsas ciências” ou “positividades” que
são o objeto próprio de Foucault. A Archéologie du Sa
voir nasce de um impasse. Para resolver êsse impasse,
dois caminhos — e somente dois — se ofereciam a Fou
cault: tentar solucionar a dificuldade por seus próprios
meios, ou recorrer ao materialismo histórico, à ciência
da história, e verificar se a oposição ciência-ideologia se
reduzia à que tinha sido enunciada por Althusser, provi
soriamente, e por necessidade. M ais precisamente: veri
ficar se os conceitos fundamentais do materialismo his
tórico não permitiam form ular uma teoria da ideologia
susceptível de resolver a dificuldade encontrada. Michel
Foucault escolheu — corajosamente, diriam alguns — o
primeiro caminho. Tentaremos, para terminar, propor
uma razão, não-psicologista, para essa escolha. N o mo
mento, precisamos ver suas conseqüências. P a ra jo g ar
com as cartas na mesa, e antecipar um pouco os nossos
resultados, podemos dizer de saída que a natureza da
ideologia é tal que não é possível imaginar, em relação
a uma ciência constituída e viva, um discurso continua
mente paralelo. Chega um momento em que a contradi
ção reaparece, em que o “ deslocamento” se faz sentir
pelos seus efeitos, em que a escolha, a princípio escamo
teada, se impõe novamente, com maior urgência. É o
que vamos mostrar.
O discurso paralelo: tendo reconhecido uma dificul
dade real, cujos têrmos e cuja solução pertencem, de di
reito e de fato, ao materialismo histórico, Foucault pro
põe um certo número de conceitos homólogos, ainda que
deslocados. A simple3 formulação dêsses conceitos, para
quem sabe entendê-los, encerra as condições de sua reti
ficação.
Tudo depende, como se viu, do uso do conceito de
“prática.” É nesse ponto que a distância entre o materia
lismo histórico e a “arqueologia” é mínima; o exame
mostrará, sem paradoxo, que é nêle também que a dis
tância é máxima. Com efeito, é a categoria da prática —
tão estranha às obras precedentes de Foucault — que
define o campo da “ arqueologia” : nem língua, nem pen
samento, como vimos, mas o chamado “ pré-conceitual”
(p. 82). O nível pré-conceitual, assim liberado, escreve
êle, não está ligado nem a um horizonte de idealidade
nem a uma gênese empírica das abstrações. De fato, o
56
que se busca não são as estruturas ideais do conceito,
mas o “ lugar de emergência dos conceitos” ; não se pre
tende, tampouco, explicar estruturas ideais pela série das
operações empíricas que as teriam engendrado; o que se
descreve é um conjunto de regras anônimas historica
mente determinadas que se impõem a qualquer sujeito
que fala, regras não universalmente válidas, mas que têm
sempre um domínio de validade bem especificado. A de
terminação principal da categoria arqueológica da “prá
tica” é a “re gra ” , a “regularidade” . É a regularidade que
estrutura a prática discursiva, é a regra que ordena tôda
formação discursiva; (p. 63). A função da “re gra ” pode
ser facilmente explicitada: através dela, Foucault pro
cura pensar ao mesmo tempo — em sua unidade — as
relações que estruturam a prática discursiva, seu efeito
coercitivo sôbre os “ sujeitos” que falam, e o que chama,
enigmaticamente, de embreagem de um tipo de prática
sôbre outro.
O primeiro ponto já foi analisado; acrescentaremos
apenas que a “regularidade” não se opõe à “irregulari
dade” : se a regularidade é a determinação essencial da
prática, a oposição regular-irregular não é pertinente.
Não se pode dizer, por exemplo, que numa formação dis
cursiva uma “invenção” ou “descoberta” escape à regula
ridade: “uma descoberta não é menos regular, do ponto
de vista enunciativo, que o texto que a repete e difunde;
a regularidade não é menos operante, menos eficaz ou
ativa numa banalidade que numa formulação insólita.”
(p. 189). A irregularidade é uma simples aparência, ex
plorada por êsses historiadores do genial, que, como bons
adoradores do “ sujeito” (ou pelo menos de alguns sujei
tos brilhantes) são fundamentalmente continuistas. Essa
aparência se produz quando uma modificação se opera
num ponto determinado da formação discursiva, e por
tanto na e sob a regularidade existente num momento
histórico dado. Segundo o ponto em que ocorre, essa
mutação será mais ou menos sensível, terá mais ou me
nos efeitos (outros diriam: será mais ou menos “genial” ).
Surge assim uma nova determinação da formação dis
cursiva: é estruturada hieràrquicamente. Existem, com
efeito, “enunciados retores” , que delimitam o campo dos
objetos possíveis e traçam a linha divisória entre o “vi
sível” e o “invisível”, entre o “ pensável” e o “impensá
vel” , ou melhor (em têrmos “arqueológicos” ) : entre o
enunciável e o não-enunciável; que designam o que é in
57
cluído numa formação discursiva pelo que ela exclui. A
aparência de irregularidade é portanto um simples efeito
da modificação do “reitorato”. Seria necessário aqui co
mentar por extenso a análise contida nas páginas 192-
193, baseada no exemplo da História Natural.
Segundo ponto: essa regularidade hierárquica se im
põe a qualquer “ sujeito” . E is o que escreve Foucault a
propósito da medicina clínica: “A s posições do sujeito
se definem em relação aos diversos objetos ou grupos de
objetos: é sujeito questionante segundo uma certa grade
de interrogações, explicitas ou não, e sujeito que escuta,
segundo um certo program a de informação; é sujeito que
olha, segundo uma tábua de traços característicos, e su
jeito que anota, segundo um tipo descritivo. . . (p. 71).
E mais adiante: “as diversas situações que pode ocupar
o sujeito do discurso médico foram redefinidas no início
do século X IX , com a organização de um campo percep-
tivo distinto, (ib id .)”
O terceiro ponto é fundamental: é nêle que se acumu
lam tôdas as contradições do projeto “ arqueológico” ; é
aqui que a categoria prática, segundo Foucault, revela a
sua inadequação: pois só permite pensar a unidade do
que ela designa através de uma justaposição. M ostrare
mos que isto ocorre devido à ausência de um princípio
de determinação. Ora, se o que dissemos é exato, essa au
sência é o efeito do caminho escolhido por Foucault; e
assinala o ponto em que a necessidade do outro caminho
se impõe, em que a retificação pode começar.
Foucault se vê forçado a pensar c que constitui à re
gularidade da regra, o que ordena a sua estrutura hie
rárquica, o que produz as suas mutações, o que lhe con
fere o caráter imperativo para todo sujeito. Ora, em
cada um dêsses pontos, esbarra na mesma dificuldade. Ê
importante que essa dificuldade seja a mesma: isto sig
nifica que Foucault concebe a necessidade de referir o
conjunto dêsse processo complexo a um mesmo princípio.
M as êsse mesmo princípio, se está presente em tôda par
te, não é pensado nunca. E isto porque excede os limi
tes da categoria da prática tal como funciona na Archéo
logie. Já descobrimos êsse princípio: é a articulação das
práticas discursivas sôbre práticas não-discursivas.
Pode-se objetar: tudo isso para chegar ao mesmo
ponto enigmático contra o qual colidia o capítulo prece-
rente. Certamente, e é natural, porque, passado êsse
ponto, estamos fo ra de Foucault; mas atenção: conse
58
guimos progredir em nosso percurso aparentemente cir
cular, pois já determinamos os meios para escapar ao
círculo “arqueológico”. A o pensar como tal o ponto de
fuga, encontramos o caminho para dêle sair. Com efei
to, podemos dizer agora para que serve a distinção p rá
tica discursiva/prática não-discursiva: é uma tentativa
para repensar a distinção ciência/ideologia. Melhor: uma
tentativa para pensar em sua unidade diferencial duas
histórias: a das ciências e a da (ou das) id e o lo g ia (s ).
N ão mais enfatizar unilateralmente a autonomia da his
tória das ciências, mas acentuar ao mesmo tempo a re
latividade dessa autonomia. Ora, percorrendo êsse cami
nho, Foucault deve reconhecer (e é êsse o seu mais alto
mérito) que a ideologia (pensada sob a categoria do
“ saber” como sistema de relações estruturado hieràrqui-
camente, e investido em práticas) não é, por sua vez, au
tônoma. Sua autonomia é portanto ainda relativa. M as
Foucault está consciente do perigo que o ameaça: pen
sar o “saber” como efeito puro e simples — ou reflexo
— de uma estrutura social. Em suma, para escapar ao
idealismo transcendental, cair num mecanicismo empiris-
ta que nada mais é que uma form a invertida do primeiro.
Donde seu extremo embaraço, e a fluidez metafórica das
categorias que propõe.
Ê preciso ver nesse desenvolvimento o que êle de
fato é: o “reconhecimento” de uma falha teórica no edi
fício arqueológico. Primeiro reconhecimento: o papel das
instituições na “embreagem” . Retomando algumas aná
lises da Naissance de la Clinique, Foucault escreve duas
páginas notáveis sôbre êsse assunto (pp. 6S-69) : limito-
-me a citar alguns trechos, sublinhando certas palavras
que ilustram a análise que proponho:
“Primeira pergunta: quem fala? Quem, dentre to
dos os indivíduos falantes, tem o direito de usar êsse tipo
de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dessa
linguagem a sua singularidade, e seu prestígio, e de
quem, por sua vez, a linguagem recebe senão a sua g a
rantia, pelo menos a sua presunção de verdade? Qual o
estatuto dos indivíduos que têm — e somente êles — o
direito regularmentar ou tradicional, juridicamente defi
nido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante
discurso? O estatuto do médico comporta critérios de
competência e de saber; instituições, sistemas, normas
pedagógicas; condições legais que dão direito — fixando
os seus limites — à prática e ao exercício do saber. “ E
59
mais adiante: “a existência da palavra médica não é dis-
sociável do personagem estatutàriamente definido que
tem o direito de articulá-la, reivindicando para ela o po
der de conjurar o sofrimento e a morte. M as sabe-se
também que êsse estatuto na civilização ocidental foi pro
fundamente modificado no fim do século X V I I I e início
do século X IX , quando a saúde das populações tornou-se
uma das normas exigidas pelas sociedades industriais.”
“Sabe-se ta m b é m ...” Confessemos que Foucault
não nos fornece os meios para passar dêsse conhecimen
to de oitiva a um conhecimento racional do processo de
modificação. Sempre o mesmo enigma: o da “embrea-
gem ”. M as êsse texto é excepcional, pois permite preci
sar, em tôda a sua riqueza, o funcionamento da categoria
de “regra” em Foucault. Categoria solidária das noções
de estatuto, normas e poder. M ais exatamente: o esta
tuto é definido por uma instância não-discursiva: é atra
vés de uma parte do aparelho do estado que nós podemos
enunciar; o estado incarna, realiza um certo número de
normas definidas em função de imperativos econômicos.
Êsse estatuto, literalmente, dá corpo à profissão, e êsse
corpo investe o discurso que nêle se articula — e portan
to os indivíduos que o enunciam — de um poder. Êsse
poder, cuja única existência está na prática discursiva dos
médicos, tem evidentemente uma relação, não precisada
por Foucault, com o poder do estado. Deixemos essa aná
lise de lado; encontraremos em outros lugares o mesmo
problema.
O embaraço é idêntico em outros trechos. Assim (p.
61) descrevendo a form ação de um objeto do saber como
um “ feixe complexo de relações”, procede a um am álga
ma indiscriminado: “essas relações são estabelecidas en
tre instituições, processos econômicos e sociais, formas
de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos
de classificação, modos de caracterização; essas relações
não estão presentes no objeto” .
Poderíamos citar outras passagens igualmente rap-
sódicas (principalmente à página 98).
Ê tempo de chamar as coisas pelo seu nome, e ver
por que, tendo tomado um caminho errôneo, Foucault ti
nha necessariamente que chegar a um impasse. Coletan
do os elementos colhidos durante o percurso, podemos
propor a análise seguinte: partindo da crítica da antiga
noção althusseriana de ideologia — estreita demais —
60
Foucault elabora a sua própria categoria de “saber” , fun
dando-a num conceito mal construído de “prática” . M al
construído, porque tem que cindi-lo para que possa pre
encher a sua função, e Foucault não pode explicar essa
cisão. M as como sua crítica é essencialmente correta,
consegue reproduzir, deslocando-as, as determinações do
conceito científico de ideologia, tal como êle funciona no
materialismo histórico. M as como se privou, de início,
dêsse conceito, quando surge a dificuldade essencial do
“vínculo” entre ideologia e relações de produção, perma
nece sem voz, condenado a designar de maneira “ misti-
ficada” o lugar de um problema.
Explicitemos.
61
uma existência patológica — mas é pensá-la em sua cons com a noção de “embreagem” , designa o lugar de um
tituição e funcionamento enquanto instância material problema teórico urgente: passar da teoria descritiva à
historicamente determinada, num todo social complexo teoria, simplesmente, das relações entre a ideologia e a
também determinado historicamente. O valor exemplar infra-estrutura. Sabemos que somente o materialismo
da Archéologie reside na tentativa de repensar nesses histórico pode resolver êsse problema. Sem poder solu
têrmos a ideologia. cioná-lo aqui, podemos pelo menos precisar os têrmos do
2. N ã o obstante, essa tentativa culmina num fr a problema: se é certo, como indica o esquema clássico,
casso: as análises “esbarram ” contra a distinção cega que a infra-estrutura é determinante, temos que pergun
entre práticas discursivas e práticas não-discursivas. Se tar : no mecanismo que regula as relações entre êsses dois
o que dissemos é exato, nada disso é surpreendente. Pois sistemas que são as fôrças produtivas e as relações de
com essa única distinção, Foucault queria resolver três produção, o que produz a necessidade de um sistema de
problemas distintos. Três problemas que não podem ser sujeição ideológica? Será preciso um dia responder a essa
formulados senão nos conceitos do materialismo histó pergunta: o mérito de Foucault está em ter “ reencon
rico. Três problemas que lançam Foucault no embaraço, trado” essa questão, ainda que de uma form a desfocada,
e em mostrar-nos a urgência de uma solução.
por não poder sequer colocá-los.
Problema n° 1: refere-se à relação entre uma “fo r Problema n- 2: refere-se ao estatuto dessas “falsas
mação ideológica” e o que Foucault chama “as relações ciências” que são o objeto próprio do trabalho anterior
sociais”, as “flutuações econômicas” , etc. Em suma, o de Foucault. Insiste: a Gramática Geral, a História N a
que designamos várias vêzes como o problema da “ em- tural, etc., podem certamente, em retrospecto, aos olhos
breagem ”. E m outros têrmos: numa formação social da da ciência constituída, ser ditas “ideológicas” ; sem dú
da, que tipo de relações a ideologia mantém com a in vida seria possível inclusive mostrar que existe entre
fra-estrutura econômica? Pergunta ingênua, dir-se-á, à essas disciplinas “ideológicas” e o sistema das relações
qual um m arxista responderá fàcilmente com o esquema ideológicas existentes numa sociedade dada, num momen
clássico da infra-estrutura e da super estrutura. M as essa to dado de sua história, uma estreita vinculação. Tôda a
resposta, por ser fácil e, no fundamental, exata, não é Archéologie tende a prová-lo. N ã o obstante, a Gram áti
sem dúvida suficiente. É que ela é ainda descritiva; em ca G eral ou a História N atural não têm o mesmo esta
bora tenha a vantagem inestimável de “m ostrar” a ordem tuto que a ideologia religiosa, moral e política que fun
de determinação materialista, embora tenha um valor po ciona na formação social considerada. índice dessa dife
lêmico incontestável contra tôdas as concepções idealis rença: essas disciplinas se atribuem — quer o queiramos
tas da história para as quais são as idéias que conduzem ou não — o título de “ciências.” Em suma, Foucault
o mundo, e embora, por essas razões decisivas, deva ser quer evitar uma redução, que chamaríamos de “ ideolo-
firmemente defendida como uma definitiva aquisição teó gista” , e no fundo tem caráter mecanicista. Propõe, de
rica do marxismo, que permite traçar uma linha de de fato, uma distinção entre duas “form as” de ideologia;
marcação entre os dois “campos” da filosofia, entre os distinção que seria, não formal, (umas seriam sistemati
nossos adversários e nós, essa resposta puramente des zadas, e outras, n ão) mas fundada numa “diferença de
critiva não proporciona os instrumentos para pensar o nível.” E ssa distinção pode ser formulada nos conceitos
mecanismo que liga a ideologia enquanto sistema de re do materialismo histórico como uma distinção entre
lações' hierarquizadas que produzem um efeito de domi “ideologias práticas” e “ideologias teóricas.” Althusser
nação sôbre os “sujeitos” , e o modo de produção (no sen dá a seguinte definição das ideologias práticas: “ enten
tido estrito), isto é, o sistema constituído pelas relações demos por ideologias práticas formações complexas de
de produção e pelas fôrças produtivas.1 É justamente montagens de noções-representações-imagens, de uma
êsse mecanismo que Foucault tenta pensar teoricamente; parte, e de montagens de comportamentos-condutas-ati-
tudes-gestos, de outra parte. Êsse conjunto funciona
(1) Cf. sôbre êsse tema o artigo de Althusser em La Pensée, n* como uma série de normas práticas que governam a ati
151, junho, 1970. tude e a posição concreta dos homens em relação aos ob-
62 63
jetos reais e aos problemas reais de sua existência social
e individual, e em relação à sua história.” Como pensar
a “articulação” dessas ideologias práticas com as “ideo
logias teóricas” ? O que é uma “ideologia teórica” ? São
essas as questões — formuladas em têrmos materialistas
— que Foucault se coloca. Ê aqui que a noção canônica
de arquivo assume todo o seu relêvo. Seria preciso, para
mostrá-lo, examinar linha a linha o capítulo intitulado
“O a priori histórico e o arquivo” (pp. 166-173). Justi
ficando o emprêgo da primeira locução, diz Foucault:
“ Justapostas, essas duas palavras são um pouco chocan
tes; quero designar com isso um a priori que seria, não
uma condição de validade para julgamentos, para uma
condição de realidade para enunciados”. Donde se se
gue que o arquivo — tomado num sentido radicalmen
te nôvo — é “em primeiro lugar, a lei do que pode ser
dito, o sistema que rege a aparição dos enunciados como
acontecimentos singulares.” E mais genericamente: “é o
sistema geral da form ação e transformação dos enuncia
dos” .
M as já vimos que êsse sistema geral não é autôno
mo; a lei de seu funcionamento é sujeita a outro tipo de
“regularidade” , a das práticas não-discursivas. Diremos
que a formação dos objetos das ideologias teóricas sofre
a influência das ideologias práticas. M ais precisamente:
as ideologias práticas conferem suas formas e seus limi
tes às ideologias teóricas. Trabalhando ao nível do ar
quivo, Foucault nos convida a pensar o mecanismo que
regulamenta êsses efeitos; coloca-nos o problem a: se
gundo que processo específico as ideologias práticas in
tervém na constituição e funcionamento das ideologias
teóricas? Ou ainda: como as ideologias práticas se “re
presentam” nas ideologias teóricas? Mais uma vez, Fou
cault suscita um problema real — e urgente. A resposta
de Foucault na Archéologie é um esbôço a re-trabalhar
sôbre o terreno sólido do materialismo histórico.
Problema n" 3: refere-se ao tipo de relação que exis
te entre uma ideologia teórica e uma ciência. A qui a
contribuição de Foucault é importante: mostra-nos que o
problema não pode ser resolvido em têrmos de objetos.
Comparar os objetos de uma ideologia teórica aos de uma
ciência é condenar-se à descrição de uma ruptura que
não explica nada. Provando a necessidade de “ passar”
pela categoria do “saber” — tal como a elaborou —
Foucault coloca o problema com exatidão. Êsse proble
64
ma não é o das relações de uma ciência determinada à
ideologia teórica que parece lhe “corresponder”, mas o
de uma ciência ao sistema constituído pelas ideologias
teóricas e pelas ideologias práticas. Ora, se, como vimos,
as ideologias práticas se “representam” nas ideologias
teóricas, impondo-lhes suas formas e limites, é preciso
admitir que uma ciência só pode aparecer graças a um
jôgo nesse processo de limitação; eis porque Foucault
propõe substituir ao têrmo de ruptura o têrmo em nossa
opinião mais feliz de irrupção. Essa irrupção se faz no
saber, isto é, no espaço material em que funciona o sis
tema das ideologias práticas e teóricas. É dessa forma,
segundo Foucault, que se deve pensar a inserção de uma
ciência em uma form ação social; é dessa form a que se
evita ao mesmo tempo o idealismo, para o qual a ciência
cai do céu, e o mecanicismo-economicista, para o qual a
ciência é um simples reflexo da produção.
É tempo de mostrar por um exemplo como pode
funcionar êsse tipo de análise. Tomemos o problema das
relações entre M arx e Ricardo. Foucault escreve êsse
texto importante: “ Conceitos como os de mais-valia ou
da baixa tendencial da taxa de lucros, encontrados em
M arx, podem ser descritos a partir do sistema de positi
vidade que já existe em Ricardo; ora, êsses conceitos
(que são novos, mas cujas regras de formação não o são)
aparecem em M arx como tributários de uma prática dis
cursiva completamente diferente: formados segundo leis
específicas, ocupam nessa prática uma outra posição, não
figuram nos mesmos encadeamentos. E ssa positividade
nova não é uma transformação das análises de Ricardo;
não é uma nova economia política; é um discurso cuja
instauração teve lugar pela derivação de certos conceitos
econômicos mas que por sua vez define as condições den
tro das quais se exerce o discurso dos economistas, e
portanto pode valer como teoria e crítica da economia
política.” (p. 230).
O melhor comentário que se possa fazer dessa aná
lise consiste em confrontá-la com uma passagem do Pos-
fácio da segunda edição alemã do Capital (E S pp. 24-25) :
“ . .. enquanto disciplina burguesa, isto é, na medida em
que vê na ordem capitalista não uma fase transitória do
progresso histórico, mas a form a definitiva e absoluta
da produção social, a economia política só pode ser uma
ciência se a luta de classes permanecer latente ou se ma
nifestar apenas por fenômenos isolados. Tomemos a In
65
glaterra. O período em que a luta de classes ainda não
está desenvolvida é também o período clássico da econo
mia política. Seu último grande representante, Ricardo,
é o primeiro economista que transform a o antagonismo
dos interêsses de classe, a oposição entre salário e lucro,
lucro e renda, no ponto de partida de suas pesquisas. R i
cardo form ula ingenuamente êsse antagonismo, com efei
to inseparável da própria existência das classes que com
põem a sociedade burguesa, como a lei natural, imutável,
da natureza humana. Êsse é um limite que a ciência bur
guesa não poderá ultrapassar.” A qui aparece o interêsse
excepcional do texto de Foucault: compreendemos como
os objetos de Ricardo e M arx pertencem à mesma “fo r
mação discursiva” , como essa ideologia teórica que é a
economia política clássica é determinada em sua consti
tuição por um sistema de limites produzidos pela fôrça
coatora das ideologias práticas; compreendemos também
a insuficiência do ponto de vista epistemológico da rup
tura (ou corte). Mas compreendemos também o que
falta à Archéologie: um ponto de vista de classe. Ê por
que M arx se situa na perspectiva do proletariado que
inaugura uma “nova prática discursiva” . Em outros têr
mos: as ideologias práticas são atravessadas por contra
dições de classes; o mesmo ocorre com seus efeitos nas
ideologias teóricas. Somente uma modificação no siste
ma de contradições assim constituído permite passar da
ideologia à ciência. E ssas reflexões, que nos foram suge
ridas pela Archéologie_, ainda que rudimentares, ultrapas
sam o quadro do trabalho de Foucault. E o ultrapassam
necessariamente: e sua ausência explica o deslocamento
de todos os conceitos foucaultianos. P o r isso, a Archéo
logie permanece ela própria uma ideologia teórica. Ora,
segundo o que dissemos, é preciso situar-se numa posição
de classe p ara poder compreendê-lo. Vemos agora o sen
tido da escolha de Foucault entre o materialismo histó
rico e suas próprias construções: essa escolha teórica,
em última análise, é política. Vim os quais os efeitos dessa
escolha: ela fix a à Archéologie limites que não poderão
ser ultrapassados. A o contrário, se o “arqueólogo” mu
dar de terreno, descobrirá muitas outras riquezas. Ülti-
mo detalhe: terá deixado, então, de ser “ arqueólogo” .
66
Discurso Científico e Discurso Ideológico
Por Carlos Henrique de Escobar
67
sem sempre o estatuto de aproximações na ausência de
qualquer coisa, ademais, fundamental para a clareza e a
cientificidade de uma reflexão sôbre os “discursos” .
Se Foucault tem o mérito de nos conceder através
de suas análises (d a clínica, da loucura, das epistemes,
etc) uma história cujo objeto é complexo e fecundo (1 ),
por outro lado esta história termina por comprometer-se
com um acabamento form al bastante suspeito. Isto é, a
história foucaultiana — por insólita que pareça — oscila
entre os extremos idealistas do tudo e do nada; dos dis
cursos complexificados e da rigidez das epistemes. E se,
por um outro lado, por exemplo, êle restitui ao discurso
da “loucura” , criticamente, um interesse particular, êle
não consegue efetivamente conceder-lhe um estatuto. O
que, ademais, somente seria possível numa ciência dos
discursos ideológicos, onde os discursos então se m ostra
riam em suas “propriedades” na história.
E sta oscilação idealista do acabamento form al ab
soluto e da pluralidade dos materiais disponíveis, por
onde se organiza uma “história”, é uma atitude comum
dos estruturalistas. E ela o é na medida mesma em que
se constitui no mecanismo empirista das filosofias da
história. Objetivamente ela se inspira na leitura equívo
ca que os estruturalistas fizeram de Saussure, ou, mais
precisamente, ela é uma leitura equívoca daquela questão
que em Saussure diria respeito a uma crítica às posições
em lingüística que procuravam pensar esta ciência nos
“ fatos heteróclitos da linguagem” sem ascenderem, por
uma abstração, à “langue”, etc. Pelo menos foi o que se
pensou estar escrito no Cours de linguistique générale.
Ora, Saussure (in "Introduction ”, “Objet de la linguisti
que” , ibid.) não está fazendo uma leitura empírica dos
fundamentos possíveis de uma lingüística, mas procuran
do pensar a sua epistemologia, que em sendo científica
se ocupa em distinguir seu objeto (objeto de conheci
mento) das lingüísticas ideológicas que trabalham com
os fatos da língua. É porque então esta “langue” saus-
surianà não é uma abstração idealista dos “fatos heteró
clitos de linguagem” (como são, ademais, as arquitetu
ras “ históricas” das análises foucaultian as), mas sim
uma teoria, um discurso científico.
(19) Ibid.
(20) Ibid.
(21) Ibid.
76
uma irredutível situação de conflito". Ainda que o que
Foucault esteja querendo dizer não seja senão que “no
plano da projeção da biologia o homem aparece como um
ser dotado de funções” e no da linguagem o homem veja
as suas condutas como significações da mesma form a que
na projeção da economia o homem se tem como necessi
dades, isto é, em conflito; suas apreciações aqui testemu
nham a ausência da questão fundamental das relações
destas projeções discursivas e a história. Ou ainda, como
pensar a articulação destas determinações projetivas no
discurso das ciências humanas e as relações sociais de
produção, isto é, a história? O estreitamento artificial
do enfoque (tipicamente estruturalista) e seu maneja-
mento lingüístico acaba por oscilar o trabalho da análise
entre a multiplicidade selvagem do material empírico e
a formalização estética de sua solução teórica. Com isto
ficam de fora todos os problemas e as questões se reve
lam verdadeiramente ausentes. Já não digo — e com isto
volto a me repetir — as distinções entre os discursos ideo
lógicos e científicos, mas a articulação destes discursos
com a história. Prova disto é que M arx e Freud (e Saus-
sure, subentendidamente) são vistos como atualizações
puras e simples dêstes modelos nas ciências humanas, sem
que Foucault se esforce, nem mesmo um pouco, para dar
conta do absurdo de sua simplificação. Ora, nem Marx,
nem Saussure, nem Freud, têm suas “ ciências” atribuídas
no outro ideológico, nenhum dêstes cientistas do corte
epistemológico trabalhou um discurso Gecundário e ilus
trador dêstes modelos de que se servem as ciências hu
manas para se expressarem. O objeto de conhecimento
da ciência da história, da psicanálise e da lingüística
saussuriana — no estatuto teórico de um objeto distinto
de todo e qualquer objeto real — não pretendem esgotar-
-se em têrmos de “norma” , de “re g ra ” e de “sistema” ,
mas se apropriarem de uma dada realidade na form a
de conhecimentos. Isto é, mais do que efeitos de um da
do motor epistêmico constituem discursos específicos que
trocam operacionalmente com a história e que a ela per
tencem.
77
fazem parte do campo epistemológico significa apenas
que nêle enraizam a sua positividade, que nêle encontram
a sua condição de existência, que não são portanto ape
nas ilusões, quimeras pseudo-científicas, motivadas ao ní
vel das opiniões, dos interêsses, das crenças, que elas não
são o que outros denominam pelo nome bizarro de “ideo
logias” . Todavia, isto não significa que elas sejam ciên
cias.” (22)
U m discurso é um discurso porque desce raízes às
epistemes estanques e porisso mesmo parece ser para
Foucault algo mais que “ideologia” e algo menos que
“ciência”. Ora, o que são afinal êstes discursos senão
algo tão misterioso quanto estas palavras de Les M ots et
les Choses a respeito das condições dos discursos, isto é,
das epistemes como “ disposições que desapareceriam tal
como apareceram ” e “por algum acontecimento que pode
mos, quando muito, pressentir a possibilidade. . .” Os dis
cursos , enfim, se identificam nas regras finitas das epis
temes, e ficam abandonadas ao vazio as distinções entre
os discursos ideológicos e científicos, na mesma medida
em que por um outro lado Foucault se desgasta em distin
ções relativas incapazes por si mesmas de fundarem uma
teoria dos discursos diferenciais.
E é êle quem. diz literalmente que qualquer ciência
interrogada “arqueològicamente” revela sempre “ a confi
guração epistemológica” que a tornou possível, daí que
mesmo procuran-do distinguir a ciência como “outras
configurações do saber” , as subordina a êste solo tirâni
co e geométrico. A história, por exemplo, e seu estatuto
teórico na ciência da história, fica relegada às disposi
ções misteriosas de uma episteme que nos impõe a con
vicção nova “ de que atividades tão particularmente hu
manas como o trabalho ou a linguagem possuíam, em si
mesmas, uma historicidade que não podia encontrar-se na
grande narrativa comum às coisas e aos homens” . E s
quece a problemática da produtividade conceituai, sua
sistemática própria, sua articulação e sua autonomia com
a história — reduz-se esta história, produzida pela ciên
cia da história, a uma sucessão de epistemes fechadas em
si mesmas, nos têrmos de “história geral” (2 3 ). Acredi-
ta-se que a distinção de uma história ademais indistinta
da natureza e do homem de uma história que se tra-
(22) Ibid.
(2 3 ) L ’A r c h é o lo g ie du Savoir.
78
balha nas distintas histórias de suas instâncias é puro
reflexo (mesmo se “lingüístico” ) de uma episteme irrom
pida do nada. A ciência da história e a psicanálise são
para Foucault as tais “ciências humanas” que êle subli
nha em seu estatuto não plenamente científico, ou não-
-científico mesmo, em vista de trazerem em seu bôjo esta
carga complexa e ilimitada que é o “homem” .
M as se por um lado êle é radicalmente indiferente à
ciência da história — posição que a partir de Archéologie
ãu Savoir começa a se corrigir em parte — já por respei
to à psicanálise Foucault é cheio de mesuras: “ A psica
nálise e a etnologia ocupam no nosso saber um lugar pri
vilegiado”. M as que lugar privilegiado? E as esperanças
se desvanecem, diz o autor: “N ão decerto porque teriam,
melhor do que qualquer outra ciência humana, assente
sua positividade e realizado, enfim, o velho projeto de
serem verdadeiramente científicas” , mas sim porque no
conhecimento do homem “form am por certo um perpétuo
princípio de inquietude. . . ” M as isto só pode ser pensado
e compreendido, diz Foucault, se analisarmos a posição
e a função que preenchem “ no espaço geral da episteme” .
N ão nos cabe aqui criticar a fundo (2 4) aquilo que
Foucault pensa ser a psicanálise, mas tão-sòmente mos
trar a subordinação à episteme que êle também impõe a
esta ciência. Sua análise em têrmos da “representação”
e da “ finitude do homem” , como conteúdo e objeto da
psicanálise, ou da psicanálise como uma ciência do ho
mem que, à diferença de suas vizinhas, dirige-se na mes
ma direção ( “mas com o olhar voltado em sentido con
t r á r i o . .. ” ), constitui para nós outras tantas especula
ções que nada acrescentam ou tiram desta ciência. Da
mesma form a se tomarmos esta pergunta de Foucault —
ainda no corpo de suas especulações sôbre a psicanálise
— , isto é, de que “não é por acaso o “desejo” o que per
manece sempre impensado no âmago do pensamento?”
(2 5 ), e se considerarmos também sua resposta explici
tamente afirmativa, isto é, de que é êle mesmo (o desejo)
que permanece impensado, damos-nos conta então de que,
por um outro lado, Foucault procura sepultar na psica
nálise aquilo que ela tem de não-especulativo e portanto
de científico.
(26) Ibid.
(27) Foucault pretende não ser um "estruturalista”, mas esta re
cusa se encontra sob diversas formas em cada um dos estrutura-
listas.
80
tificidade” de outras prováveis ciências (2 8 ), ou que ã
matemática seja uma ciência de reserva das outras ciên
cias, e com isto se procura ignorar sua estrutura de pro
dução e de reprodução de um objeto de conhecimento.
Quanto à lingüística, esta posição só tem a garantir o
estatuto ideológico de uma ciência “neutra” , sem com
prometimentos históricos — o que ademais rejeitamos
em nossa leitura da lingüística do corte em F. de Saus-
sure.
M as até mesmo esta questão em Foucault é ambígua,
pois de um lado a lingüística (e a temática do signifi-
cante) dirige todo o seu trabalho, mas de outro lado a
lingüística, como tal, aparece para Foucault como indício
do desaparecimento do “homem” . E tudo isso, a sua vez,
casa mal com o estatuto de uma lingüística em si desta
cada dos conteúdos históricos. A lingüística subjacente
no estruturalismo foucaultiano, a lingüística como sinal
de uma crise epistêmica e a lingüística como matemática
moderna se entrecruzam em seus sentidos e acepções di
ferenciais.
Seja como fôr, o que perdura é sua filosofia da his
tória, suas unidades epistêmicas estanques como objeto
subjacente de uma “arqueologia do saber”. N o seu penúl
timo livro (29) Foucault acaba por subordinar, uma outra
vez, a análise dos discursos em geral e do discurso cien
tífico em particular a uma história arqueológica: “A êste
nível a cientificidade não serve de norm a: o que se esforça
por colocar a nu, nesta história arqueológica, são as prá
ticas discursivas na medida em que elas dão lugar a um
saber, e em que êste saber ganha o estatuto e o papel de
ciência” (3 0 ). E logo depois: “A análise das formações
discursivas, das positividades e do saber em suas relações
com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se
denominou, para a distinguir das outras form as possíveis
de uma história das ciências, a análise da episteme” (3 1 ).
Koucault se reafirm a e distancia por respeito — não
.-tpenas a um tipo de solução — às questões da prioridade
(32) Ibid.
(33) Ibid., págs. 250 etc.
(34) Ibid.
(35) E por que também Bachelard? Na medida em que êste pen
sador é um pensador da totalidade dos discursos e que seu trabalho
— ainda que de forma insuficiente — pressupõe de todos nós um
trabalho de articulação de suas determinações e especificações dos
discursos com a história.
82
um a sua maneira, testemunharam para nós a importân
cia de uma clara visão da especificidade do discurso cien
tífico e de sua diferença por respeito aos discursos ideo
lógicos. De outro lado, no entanto, suas análises (36)
não se detiveram em precisar e aprofundar uma episte-
mologia que, à maneira de uma “exposição” definitiva,
fôsse o acabamento teórico das ciências novas que pro
duziram.
A s questões do corte, do objeto de conhecimento, da
apropriação do real pelo conhecimento, da teoria da ciên
cia e da teoria da história da ciência, e enfim, de uma
ciência dos discursos ideológicos continua mais ou menos
presente, como uma questão aberta, nos trabalhos dos
mais significativos epistemólogos da nossa época.
Parece-nos que estas reflexões sôbre a teoria da
ciência e a situação de um dos ramos da ciência da his
tória — aquêle que se detém nos estudos das diferenças
entre os discursos ideológicos e os científicos — e de
como um projeto somente realizado na teoria da história
da ciência — que para nós, em virtude da produção teó
rica do conceito de “história da ciência” e do conceito
mesmo de ciência, constitui a verdadeira teoria da ciên
cia — , parece-nos enfim que estas reflexões permitem-
-nos pensar melhor as questões geralmente levantadas
pelas posições adotadas por Foucault.
N ão distinguindo êle o discurso científico, pelo me
nos ao nível do corte epistemológico, dos discursos ideo
lógicos e circunscrevendo para êstes discursos em comum
estruturas epistêmicas descontínuas, Foucault faz das
ciências práticas que desconhecem o fundo sôbre o qual
se fazem. Isto é, as reduz às condições dos discursos ideo
lógicos, enquanto discursos que desconhecem-reconhecem
e que são contínuos com as formações sociais. Ora, a ver
dade porém é que uma teoria da ciência não constitui uma
reflexão “arqueológica” da ciência, pois a ciência não tem
senão a si mesma como estrutura, e esta reflexão perfaz
aqui como que uma análise que se dirige a esta ausência
de solo ou então a uma estrutura autônoma da ciência
comparativamente com a prática ideológica e sua conti
nuidade.
84
ciência da história na form a agora de uma ciência dos
discursos ideológicos enquanto ciência de uma de suas
regiões.
Ê necessário ainda que se previna que se Foucault
trabalha com uma grande parte dos conceitos estrutura-
listas (37) — significante, descontinuidade, língua, ní
veis, unidades e regras — êle também faz uso de outras
tantas noções, mas que nem as primeiras nem as últimas
podem nos levar à ilusão de um parentesco entre os têr-
mos da “arqueologia” foucaultiana e os conceitos utili
zados pela ciência da história. Aproxim ação que se tor
nou costume entre os marxistas “festivos” , preocupados
que estão em acoplar a ciência da história com tôda e
qualquer filosofia esterilizante.
Estas aproximações não devem ser despreendidas do
fato de que tôda e qualquer abordagem dos discursos p a
receria levar, como que fatalmente, êste ou aquêle pen
sador às questões que a ciência da história encara. N ão
se vai espontaneamente à ciência da história, se vai a ela
por um trabalho que subverte os têrmos mesmos da “es
pontaneidade” filosófica. Seria ademais ingênuo supor que
Foucault estivesse a caminho de uma reformulação de
suas posições, pois a análise de sua problemática — no
U Arch éologie du Savoir — prova o contrário. E sta mes
ma problemática que já tratamos e que é absolutamente
incompatível com o corte epistemológico, com as questões
da articulação dos discursos com a história (como con
ceito produzido pela ciência da história), com as distin
ções dos discursos “norm al” e da “loucura” (e com os
discursos psicopatológicos) no interior de uma ciência
dos discursos ideológicos. E sta última ciência (que uni
da à psicanálise) se debruçaria sôbre os discursos e pro
duziria a teoria de suas estruturas de produção. Possi
bilitando-nos compreender as diferenças dos discursos
em sua dinâmica própria e suas articulações com as so
ciedades de classe e com as sociedades sem classe.
P o r exemplo, consideremos agora os têrmos da res
posta (3 8) de Foucault a 11* questão apresentada a êle
pela equipe da revista U E sprit. A questão é: “U m pen-
88
cursos ideológicos, mergulha numa filosofia dos discur
sos em geral, que se prende à coleta — arbitrária — de
traços ou enunciados estruturalmente confeccionados no
sentido de produzirem “configurações epistêmicas”. O
“ impensado” funciona como um princípio de seleção, ra
dicalmente arbitrário, e é aqui, mais do que em qualquer
outro lugar, que se sente o pêso da ausência de uma
ciência da história e de uma ciência de uma de suas re
giões: a ciência dos discursos ideológicos.
Como se dirigir (45) das configurações epistêmicas
ao conflito de opiniões, ou, mais precisamente, como pro
mover as análises das “formações ideológicas” senão
através de uma ciência dos discursos ideológicos aplica
da a “conjunturas ideológicas” ? A s questões, enfim, do
tipo de articulação dos discursos com a história, não é
algo que se possa deixar em lugar secundário na análise
de suas “propriedades” . Que tipo de articulação se en
contra num discurso ideológico ou num discurso cientí
fico, e como problematizar as articulações, aliás diferen
tes, entre os discursos ideológicos do enfoque psicanalí-
tico (d a “estrutura de instauração” ) e dos discursos
ideológicos de classe social, no enfoque propriamente da
ciência dos discursos ideológicos (d a “ estrutura elabo
ra d a ” ) ?
D a mesma forma, as questões das “sobrevivências”
discursivas (entre as epistemes para Foucault, ou entre
as “formações discursivas” p ara nós) que, em sua com
plexidade, nos levariam à refletir aqui os temas — só
recentemente lembrados — da transição e da revolução
nas estruturas discursivas. Temas êstes que nos possi
bilitariam compreender as estruturas discursivas (ideo
lógicas) circunstancialmente determinadas com uma es
trutura complexa de “economia de modo” discursivo com
a dominância de um dêles. M as para isto seria preciso
que tivéssemos relido tôda a problemática dos discursos
ideológicos na ciência da história.
Enfim, caso não distingamos entre ciência e ideolo
gia — para voltar aqui ao tema dominante dêste nosso
trabalho — nós ficaremos como que situados num histo-
ricismo radical. Isto é, prisioneiros de discursos absolu-
89
tamente figurados numa episteme única e indivisível. O
“impensado” se deixa manipular em suas “ regras”, se
deixa “fa la r ” em suas descontinuidades radicais, tem a
form a de qualquer coisa que a ciência recusa, e à qual
ela é indiferente, mas que a filosofia recebe e habita
como se fôsse a sua casa.
Seja como fôr, Foucault parece se aproximar, no fim
do seu penúltimo livro (4 6 ), e numa de suas últimas refle
xões dentro dêste trabalho (se aproxim ar daquilo que o
n e g a ), daquilo que enfim move grande parte de nossas
críticas as suas posições. Êle se pergunta pelos limites
que estão presentes em sua “arqueologia” ao se interro
g a r somente pelos discursos “científicos”. N ã o será im
prescindível, pensa Foucault, se perguntar também —
até mesmo para se ter clareza a respeito dos discursos
científicos — pela totalidade das representações discur
sivas? Certamente que sim, e ainda que êle não o
diga é necessário produzir uma ciência dos discursos
ideológicos, e dar a esta ciência a amplitude de uma abor
dagem que reúne em si os temas da produção em geral
no hemisfério discursivo. E Foucault aqui, aparente
mente, vai muito mais longe quando se refere à extensão
dêsse objeto que uma “ arqueologia” (m elhor seria dizer
uma “ciência dos discursos ideológicos” ) abrangeria, e à
extensão dêsse objeto se refere na verdade a sua inci
dência com as questões da história e suas manifestações
sobredeterminadas nas superestruturas.
M as a tudo isso Foucault responde (47) na form a de
uma incapacidade provisória (expressão sua) para resol
ver de form a segura tais questões.
Êle recusa ser chamado de “filósofo” ( “Se a filoso
fia é memória ou retorno da origem, o que eu faço não
pode, em nenhum caso, ser considerado como filo so fia ”
(48) ), da mesma form a como êle recusa para a sua “ ar
queologia” o estatuto de ciência: “ É exato que eu não
tenha jamais apresentado a arqueologia como uma ciên
cia, nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma
ciência futura” (4 9 ). Ciência a que êle se recusa e que
nós recusamos às suas “especulações” .
91
pensamento de Foucault. A ciência (o u arte?) é uma
nova disciplina chamada a “Arqueologia do saber”. E
a palavra homicídio deve ser entendida no sentido mais
literal: a morte (violenta) do homem. O conceito de ho
micídio é uma simples categoria operatória, escolhida por
seu poder explicativo e não por sua dramaticidade. O en
saio em si não é nem pretende ser neutro; mas o título,
pelo menos, é axiològicamente inocente.
Talvez a melhor maneira de entrar em matéria seja
partir da pergunta que ocorreria imediatamente a qual
quer leitor ingênuo: por que a morte do homem?
E ssa pergunta poderia ser respondida escamoteando
a análise interna da obra de Foucault. B astaria recorrer
à solução mágica de um certo marxismo, e dizer que a
morte do homem corresponde à ideologia da classe tecno-
crática que está assumindo o poder nas sociedades in
dustriais. Ê a solução mais confortável; tem a vantagem
de desacreditar ab initio a doutrina que está sendo exa
minada, com um mínimo de esforço intelectual, e ainda
por cima o crítico ganha títulos de defensor dos valores
humanísticos. A receita para êsse tipo de análise é conhe
cida. P o r exemplo, o tecnocrata acredita no primado da
organização, considera os homens como simples cartões
perfurados num circuito cibernético, e domestica a his
tória pondo-a a serviço do sistema, isto é, transformando-
-a no repertório de memórias embutidas num computa
dor. Por outro lado, o estruturalista afirm a a hegemo
nia das estruturas, anula o homem, e privilegia a sincro
nia sôbre a diacronia. Basta agora derivar uma série da
outra, através de um raciocínio analógico-metafórico, e
concluir que o estruturalismo é a ideologia da sociedade
tecnocrática. É fácil. M as não é sério.2 O que êsse tipo
de análise deixa de lado é que o estruturalismo não é uma
doutrina desarmada, que possa ser “demistificada” sem
oferecer resistências. A filosofia da morte do homem
tem certas defesas automáticas, que precisam em primei
ro lugar ser desmontadas pela crítica. A principal é que
ela própria se apresenta como uma doutrina demistifica-
dora: seu objetivo central é refutar a abordagem antro
pológica, e a crítica baseada no conceito de ideologia é
uma das armas clássicas do arsenal da antropologia. A o
crítico que diz: “A filosofia da morte do homem é uma
ideologia da sociedade tecnocrática” , um partidário de
Foucault poderia responder: “ M as o conceito de ideolo
gia não é um instrumento interpretativo válido, porque
92
se funda numa confusão, típica da mentalidade antropo
lógica, entre o plano da praxis e o plano do discurso” .3
O que é preciso, antes de mais nada, é fazer um exame
interno da obra de Foucault. A dimensão social brotaria
como uma exigência espontânea dessa análise, e não como
uma violência voluntarista imposta de fo ra para dentro.
Um sociologismo ingênuo exporia o demistificador a ser
demistificado, e o debate se perderia num jôgo insolúvel
de circularidades.
Dessa forma, a pergunta: “Por que a morte do ho
mem?” só pode ser respondida legitimamente a partir da
própria obra de Foucault. Ê possível que a análise com
prove a relevância teórica do conceito da morte do ho
mem, e nesse caso não haverá remédio senão absolver os
homicidas. A conclusão oposta levaria a uma reavalia
ção do pensamento de Foucault. M as essa contestação
resultaria da própria análise, e não de um dogma.
1. O itinerário do Homicídio
93
A primeira fase corresponde à visão renascentista
da loucura. N a renascença o louco não é, como na Idade
Média, o homem decaído a uma condição bestial pelo ví
cio e pelo desregramento: é o homem essencial, que em
sua natureza secreta é furor e desrazão. Os loucos são
como os animais do bestiário renascentista, em oposição
ao da Idade M éd ia; não são mais as advertências pedagó
gicas contra a animalização do homem, mas a própria
verdade do homem. A loucura mostra ao homem da R e
nascença a antevisão de um Apocalipse demente, um Jar
dim das Delícias que está nos Antípodas do Jardim do
Paraíso. Bosch não oferece ao seu público a imagem da
inocência recuperada, mas o impossível desejo de uma
inocência utópica. A ênfase, na literatura, é um pouco
distinta. A loucura não é mais verdade do mundo e a
essência do homem, e sim o castigo da presunção. A tra
gédia é substituída pela sátira; a experiência da loucura
é confiscada pela consciência moral. É essa segunda vi
são que vai pouco a pouco triunfar da visão plástica, em
que a loucura é risco e ameaça, espelho e derrisão, ima
gem e aniquilamento do homem. N o s dois casos, entre
tanto, a loucura é imanente ao mundo. N ão é Alteridade
radical, que se defronta ao homem como o que é alheio
à sua natureza, comò o que o nega e anula. A loucura
adere à razão, na pintura ou na sátira, em Brueghel ou
Erasm o, na consciência trágica e na consciência moral.
Como ameaça ou como ensinamento, a loucura está ins
talada na vida quotidiana. “A loucura está ali, no cora
ção das coisas e dos homens, signo irônico que dissolve
as fronteiras da verdade e da quimera, guardando apenas
a memória das grandes ameaças trágicas — vida mais
inquieta que inquietante, agitação frívola, mobilidade da
razão” 5
94
partilha, a razão simultâneamente desenha o perfil do
Outro e o próprio perfil. A grande reclusão do período
clássico teve causas sociais bastante precisas. Pode ser
vista como uma resposta dada pelo Estado ao desemprê-
go gerado por uma crise econômica de excepcional gra
vidade. O Hospital Geral abrigava tôdas as vítimas do
desemprego, mas também os ociosos em geral, os liberti
nos, os pródigios, os loucos. D ava trabalho aos que não
trabalhavam : era uma instância da Ordem contra os que
se colocavam fo ra da Ordem clássica, definida em termos
de utilidade social. A loucura se inscrevia no espaço mo
ral da ociosidade. O louco não era essencialmente um
enfêrmo, mas um transgressor da ética mercantilista. A
loucura não tinha, portanto, qualquer especificidade e po
dia ser assimilada às outras form as de comportamento
anti-social. A sensibilidade clássica à loucura é assim a
antítese da visão renascentista. A loucura não é mais o
desvendamento da essência secreta do homem, mas a per
versão dessa essência, definida sôbre um fundo de m ora
lidade social. N ão é mais um mundo paralelo, co-existin-
do com o mundo da razão, mas o anti-Mundo, um mundo
radicalmente outro, constituído negativamente por um
gesto de exclusão e degrêdo.
95
0 Nascimento da clínica é a próxima etapa da traje
tória de Foucault . 6 M ais uma vez, não se trata de estu
dar a evolução da medicina, mas de mergulhar no solo
mais arcaico que tornou possível essa evolução. Foucault
distingue, como na análise anterior, três fases distintas:
a medicina classificatória, a medicina clínica, e a medicina
anátomo-patológica.
96
N o s primeiros anos do século X IX , a clínica transita
naturalmente para uma nova form a de sensibilidade. E n
tra em cena a medicina anátomo-patológica. A clínica
era bi-dimensional, e se esgotava inteira na superfície do
corpo. A nova medicina abre a dimensão da verticalidade.
É uma medicina do volume, e não exclusivamente do p la
no. A nova form a de percepção se instaura com a intro
dução da autópsia na experiência médica. É a autópsia
que deverá revelar a verdade da doença, chegada pela
morte ao seu têrmo natural. A morte adquire assim um
poder pedagógico de elucidação retrospectiva. A morte diz
retroativamente a verdade da vida. O método anátomo-pa-
tológico substitui a visibilidade em superfície da clíni
ca por uma experiência mais complexa, em que a verdade
somente se manifesta pela transição para o inerte. “Co
nhecer a vida só é dado a êsse saber derrisório. . . que a
deseja ünicamente m orta. . . A morte deixa o seu velho
céu trágico. Transform a-se no núcleo lírico do homem:
sua invisível verdade, seu segrêdo visível.” 8 O olhar ver
tical do método anátomo-patológico descobre o indivíduo,
com a verdade infungível de suas lesões e do seu orga
nismo. O corpo inerte que se desvenda pela autópsia per
tence a um indivíduo particular, cuja doença seguiu um
itinerário sui generis, e chegou a um fim singular. Pela
primeira vez o saber do individual se to m a possível, des
truindo o grande interdito aristotélico, que limitava ao
universal o campo do saber possível. B a medicina que
libera para a ciência o indivíduo, sôbre a tela de fundo da
finitude e da morte.
Enfim, último segmento do projeto descritivo de Fou
cault: palavras e. as Coisas, ou a história das episte-
mes. 9 A história da loucura e da medicina incidiam sô
bre zonas especializadas da percepção Ocidental. Nessa
nova etapa, Foucault tenta algo como a descrição de to-
talidades culturais. Seu método não é, entretanto, o da
história das idéias, mas o da história das condições de
possibilidade dessas idéias. A unidade de tal estudo é a
episteme, isto é, o solo originário a partir de que o conhe
cimento se tornou possível, o a priori histórico que per
mite ou veda determinadas configurações do saber. A
cultura européia passou por três epistemes: a renascen
tista, a clássica e a moderna.
A episteme da Renascença é dominada pelo conceito
de similitude. A ciência consiste em procurar semelhan
ças entre ordens aparentemente distintas do real. A na
97
tureza é um livro a decifrar, e o trabalho de decifração
se reduz a encontrar semelhanças entre os fenômenos, o
que é facilitado pelas assinaturas, isto é, marcas impres
sas nas coisas que indicam as analogias entre os diversos
niveis da natureza.
98
isto ê de representar riqueza. A moeda recebe assim séil
valor de pura função de signo. A gramática geral, a his
tória natural e a análise das riquezas manifestam assim
à capacidade do real de ser exaustivamente representado.
Tôda linguagem é nomeável, todo ser é classificável e tô
da riqueza é monetizável: três manifestações convergen
tes da visão clássica, baseada na certeza de que todo o
real pode ser representado, e de que tôda representação,
expressa pelo Discurso, pode ser inscrita num quadro,
instância suprema da Ordem.
100
dos sêres vivos as condições de possibilidade de uma his
tória, constituindo a biologia. N o período clássico, não
existia a vida, mas apenas o ser vivo. Os sêres vivos
se concatenavam entre si e com os outros sêres numa ca
deia ininterrupta de continuidades, no interior de um qua
dro. A episteme moderna dissolve o quadro, liberta os
sêres vivos, e os emancipa do mundo inorgânico. A s iden
tidades e oposições dêsses sêres vivos, finalmente autô
nomos, não se manifestam mais por Relações de vizinhan
ça ou subordinação* no espaço do quadro, mas se orde
nam em função de um foco unitário — a vida — exte
rior às representações. É da vida e suas exigências que
derivam as funções, como a respiração, digestão, repro
dução, que existem em quase todos os sêres vivos como
condições necessárias à manutenção da vida; e para que
às funções sejam atendidas, existem os órgãos, por sua
vez divididos em superficiais e profundos. Assim o ser
vivo é definido por um princípio interno de organização,
por uma rêde de articulações específicas, cujo fundamen
to último é a vida, e não por sua posição na superfície
lisa de uma cadeia de relações espaciais. Além disso, des
de o início do século X IX se esboça uma análise das re
lações entre o ser vivo e suas condições exteriores de
existência. Ê assim que Cuvier já notava que a dentição
e o aparelho digestivo de certos mamíferos guardavam
uma relação definida com o tipo de alimentação de cada
animal. A o definir o ser vivo por sua estrutura interna,
e não por sua localização numa taxinomia, e ao postular
uma interação entre a estrutura anátomo-fisiológica do
animal e suas condições externas de existência, a episte
me moderna permite a introdução da historicidade na
vida. O evolucionismo só se tornou arqueològicamente
possível com a ruptura da taxinomia clássica, que per
mitiu ao ser vivo, em sua estrutura interna e em suas
relações com o ambiente, ser pensado como sujeito de
uma história.
101
sura própria, que independe de sua capacidade de expri
m ir representações. A linguagem se transforma em
objeto para o saber; é liberta do continuum do quadro, e
essa libertação desvenda a sua estrutura. Estrutura fun
damentalmente diacrônica: só se torna transparente
quando confrontada com seus estados anteriores, e com
o conjunto de suas transformações virtuais. A lingua
gem é tôda inteira atravessada pela história. M as essa
historicidade só se revela depois que a linguagem conse
gue evadir-se do espaço quadriculado do saber clássico:
depois que deixa de ser a matéria neutra pela qual a re
presentação se representa a si mesma e se transforma em
objeto dotado de densidade específica. A filologia é êsse
salto mortal da linguagem fo ra do mundo da represen
tação.
Tanto no caso da economia política como no da bio
logia e no da filologia o fenômeno é portanto o mesmo:
o saber abandonando o espaço da representação. N a epis
teme clássica, as coisas e as representações eram indisso
ciáveis — tôdas as coisas eram representáveis, e tôdas as
representações, articuladas pelo Discurso, correspondiam
a coisas. A modernidade rompeu essa antiga aliança.
De um lado estão às coisas, em seus nexos, suas nervuras,
sua organização própria; do outro lado, as representa
ções, sempre mais ou menos imprecisas, de uma realidade
mais ou menos secreta. A trás da economia política exis
te o trabalho, atrás da biologia existe a vida, atrás da
linguagem existe a história. A s coisas só se dão através
de uma subjetividade, de uma consciência individual.
A través do homem — figura nova, que serve de eixo para
as representações, e de filtro pelo qual o ser acede ao sa
ber, quando as coisas se descolam das representações.
Personagem essencial, mas precário, gerado pela histó
ria, e sujeito a tôdas as vicissitudes da historicidade, in
clusive ao envelhecimento e à morte.
N o s três segmentos da etapa descritiva existe uma
unidade fácil de identificar. Assim, a história da lou
cura, da clínica e das epistemes seguem tôdas o mesmo
plano formal. A sucessão é delimitada em fases, segundo
um esquema ternário. A historia da loucura abrange a
fase da indiferenciação, da segregação e do asilo; a his
tória da clínica passa pela medicina nosológica, clínica e
anátomo-patológica; a história das epistemes inclui a
episteme renascentista, a clássica e a moderna. Além
disso, um confronto dos três discursos permite estabele
102
cer uma correspondência geral entre as diversas fases.
Êsse confronto não foi feito pelo próprio Foucault, mas
a superposição das etapas é incontestável. Assim, a epis
teme moderna introduz nas coisas uma dimensão de infe
rioridade, e o homem aparece sôbre o fundo de sua pró
pria finitude; a medicina anátomo-patológica substitui o
espaço bi-dimensional da nosologia pelo espaço profundo,
vertical, do volume, e o indivíduo surge sôbre a tela de
fundo da morte; e a fase asilar permite o aparecimento
do louco, definido em têrmos de sua própria patologia, e
não em têrmos de utilidade social, como no tempo da
grande reclusão.
Esgotado o momento descritivo, trata-se agora para
Foucault de dar estatuto teórico aos princípios postos em
prática na composição dos livros anteriores. Êsse traba
lho de sistematização e codificação é o objetivo da A r
queologia do Saber. 11
Em sua definição mais geral, a arqueologia é a ciên
cia das formações discursivas. A s formações discursivas
são conjuntos de enunciados, isto é, segmentos de dis
cursos, definidos não em sua materialidade de átomos
mas por sua form a de existência — uma form a de exis
tência que exclui qualquer referência a realidades trans-
-discursivas. A tarefa da arqueologia é descrever essas
formações discursivas. Tal descrição fôra feita antes no
nível empírico e quase intuitivo — assim foi descrita a
form ação psicopatológica, a formação médica, as várias
epistemes, definidas como uma rêde de coerências, numa
época,dada, entre as distintas formações discursivas. A
arqueologia é uma reflexão crítica e normativa sôbre tais
descrições.
A s formações discursivas são constituídas por prá
ticas discursivas que determinam: ( a ) os objetos, ( b )
as modalidades de enunciação dos sujeitos, (c ) os con
ceitos, e (d ) as escolhas temáticas.
Cada formação discursiva comporta um certo núme
ro de objetos, que variam historicamente. Assim os ob
jetos da psiquiatria do século X IX (agitações motrizes,
aberrações sexuais, lesões do sistema nervoso central)
são distintos dos objetos sôbre os quais falava a psico-
-patologia do século X V III (monomania, imbecilidade).
Tôda formação discursiva é um caleidoscópio de objetos
que surgem e de objetos que desaparecem. N ã o é possí
vel, numa form ação discursiva, fa la r de qualquer coisa,
mas apenas do que é permitido pelas regras de formação
103
dos objetos. Segundo Foucault, os objetos se formam
pela ação recíproca de superfícies de emergência, de ins
tâncias de delimitações e de critérios de especificação.
Superfícies de emergência: as esferas em que afloram os
objetos. Tais superfícies variam segundo a formação dis
cursiva e a época. N o caso da psicopatologia do século
X IX , eram a família, a comunidade religiosa, o meio pro
fissional, cada um com sua normatividade própria, com
seus valores, com sua margem de tolerância em relação
aos desvios. Instâncias de delimitação: as instituições
que definem o objeto e o separam de objetos afins. Essas
instâncias foram, p ara retomar o mesmo exemplo, a me
dicina, como corpo institucionalizado, que separava a
loucura da sanidade segundo critérios considerados cien
tíficos; a justiça, que separava o delito praticado por um
criminoso penalmente irresponsável de um delito prati
cado por uma pessoa mentalmente sadia; a autoridade
religiosa, que separava o comportamento místico-extáti-
co do comportamento simplesmente patológico; a crítica
literária, que separava a literatura não-convencional mas
dotada de valor artístico de uma literatura não conven
cional sem valor artístico. Enfim, critérios de especifica
ção: os sistemas de categorias, pelos quais as definições
podem ser form uladas — o corpo, a alma, o jôgo das in-
terrelações neuro-psicológicas. A unidade de uma form a
ção discursiva é dada portanto não pelos objetos, que se
transform am continuamente, mas por um conjunto de re
lações que permitem ou excluem certos objetos. E como
essas relações são externas ao discurso, mas aderem a
êste, como sua condição de possibilidade, podemos dizer
que os objetos do discurso são constituídos pelo próprio
discurso.
Em seguida é preciso determinar as modalidades de
env/ncWção dos sujeitos no interior de uma formação dis
cursiva. Ê necessário conhecer o estatuto do sujeito: sa
ber, numa formação discursiva, quem fala, com que tí
tulos, sob que condições, com que autoridade, segundo
que sistema de legitimação institucional. Assim, o su
jeito do discurso médico é o médico, cujo estatuto numa
sociedade dada tem que ser especificado exaustivamente.
Além disso, é preciso determinar o espaço institucional
de onde o discurso é proferido: o hospital, o laboratório,
a universidade, a prática privada, no caso do discurso
médico. Finalmente, é importante definir a postura per-
ceptiva do sujeito: ôlho desarmado, como na medicina clí
104
nica, ou munido de microscópio, como o histologista; in
serido na cadeia informativa como receptor ou transmis
sor; autor de artigos, professor na universidade, ou orien
tador de médicos principiantes, na pedagogia hospitalar.
Os conceitos utilizados em cada form ação discursiva
também não surgem arbitràriamente. São constituídos
segundo regras precisas, dadas pelas form as de sucessão,
pelas form as de coexistência e pelas form as de interven
ção. Formas de sucessão: a organização hierárquica do
campo enunciativo, segundo uma seriação determinada.
Cada época e cada formação discursiva têm modalidades
próprias de viver essas seriações, tais como a série lei
geral/aplicação particular; premissas/inferências; hipó
tese/verificação; fato observado/ teoria explicativa. A
história das idéias, por exemplo, verifica que a história
natural do século X V III deu conteúdos diversos a concei
tos antigos, como o de gênero e espécie, e criou novos con
ceitos, como o da estrutura. A arqueologia vai mais além,
e verifica que essa renovação conceituai não teria sido
possível sem uma metamorfose mais profunda, que inci
da sôbre a form a de ordenar as séries enunci ativas. O
que mudou, fundamentalmente, foi a maneira de ordenar
os enunciados: a maneira de relacionar a descrição com a
classificação, as observações particulares com os princí
pios gerais, o que é certo com o que é provável. É a ma
neira de viver e aplicar essas relações de subordinação e
dependência que autoriza ou exclui determinados concei
tos. Além disso, os conceitos estão ligados às form as de
coexistência entre enunciados, ou os da mesma discipli
na ou de disciplinas afins. Assim a história natural do
século X V III recolhe, reformula, autentica experimental
mente ou refuta os enunciados já formulados nesse cam
po ; e estabelece determinadas relações com a cosmologia,
a geologia, a filosofia, a teologia, a exegese bíblica, a
matemática. Êsse campo de coexistência entre enuncia
dos varia segundo a form ação discursiva e segundo a
época. Finalmente, as form as de intervenção são os pro
cedimentos pelos quais cada formação discursiva trabalha
os seus enunciados: a utilização de uma linguagem na
tural ou formalizada, as form as de sistematização de pro
posições pré-existentes, as técnicas de conversão de enun
ciados qualitativos em enunciados quantitativos, etc. O
sistema de formação dos conceitos é constituído pelo fei
xe de relações que se estabelecem entre as form as de su
cessão, de coexistência e de intervenção: os únicos con
105
ceitos possíveis numa formação discursiva são os auto
rizados pelo rigoroso determinismo dessas interações.
Todo êsse jôgo de relações entre as regras de form a
ção de objetos, de modalidades de enunciação e de con
ceitos leva à cristalização de determinados temas ou teo
rias. Assim, o tema da filiação entre as línguas indo-eu-
ropéias, na filologia do século X IX ; ou o tema fisiocráti-
co da circulação de riquezas a partir da produção agríco
la. A combinatória das regras de formação de objetos,
conceitos e modalidades enunciativas autorizaria, em
princípio, um número extremamente elevado de temas:
mas apenas algumas dessas possibilidades são efetiva
mente realizadas. Os temas efetivos são apenas uma fr a
ção dos temas virtuais. Qual o princípio dessa escolha?
Por que alguns dos temas possíveis se realizam e outros
permanecem simples virtualidades ? A resposta é que a
escolha dos temas obedece a um duplo determinismo:
o da constelação discursiva em que se insere o discurso,
e o das práticas não-discursivas que definem sua função.
Tôda formação discusiva está enquadrada, com efeito,
num campo discursivo mais extenso ou de tipo superior.
Assim, a gramática geral é um modêlo particular da teo
ria geral dos signos e da representação; e está ligada,
por relações de analogia, oposição e complementariedade
a outras formações discursivas, como a análise das ri
quezas e a história natural. A s escolhas estratégicas es
tão limitadas por essa constelação discursiva; os temas
efetivamente realizados na gramática geral são apenas
os que são autorizados por suas relações com o discurso
de tipo superior — a teoria geral dos signos — e com os
discursos adjacentes — a análise das riquezas e a his
tória natural. São excluídos os temas teoricamente pos
síveis à luz de suas regras de form ação de objetos e con
ceitos e enunciação, mas que não são autorizados pela
constelação discursiva. O outro fator limitativo é dado
pela função do discurso em relação a práticas não-dis
cursivas. Assim, por exemplo, a função do discurso eco
nômico na prática do capitalismo nascente, ou da gra
mática geral na prática pedagógica, ou do discurso lite
rário ou artístico como instrumento de gratificação psi
cológica. Essas necessidades nãò-discursivas podem ter
manipulado as regras de formação de objetos, de form a
ção de conceitos e de formação de modalidades de enun
ciação de modo a g era r certos temas e a excluir outros,
que em teoria seriam possíveis.
106
E is a formação discursiva — algo mais que um sis
tema de objetos, conceitos e temas: um feixe dinâmico
de interações, acionadas por uma prática discursiva. E
eis a arqueologia: a ciência das formações discursivas.
Qual o objetivo dêsse aparelho tão complexo? O ri
gor científico. Substituir a imprecisão da história das
idéias por um exigente positivismo do discurso, que ex
clua qualquer referência a configurações extradiscursi-
vas, já que tais configurações pertencem à esfera da do-
xologia, e não à esfera da ciência.
Êsse longo exame da obra de Foucault permite vol
tar, com conhecimento de causa, à pergunta inicial: “Por
que a morte do homem”
Foucault responde a essa pergunta em dois planos.
Em primeiro lugar, no plano metodológico: “A morte do
homem é uma exigência científica.” Em segundo lugar,
no plano ontológico: “A morte do homem é uma proba
bilidade objetiva, que já se desenha no espaço do saber
contemporâneo.” A morte do homem como form a de or
ganizar o pensamento; e a morte do homem como fim
de um percurso. O homicídio como técnica; e o homicídio
como um acidente na bio grafia do Discurso.
2. O Homicídio Metodológico
107
veraz que o de W illy, da fase da segregação; a biologia
de Cuvier não é melhor nem pior que a filosofia natural
de Paracelso. A s fases são radicalmente descontínuas.
C ada fase é uma nova partida, um recomeço absoluto
a partir de zero. O que êsse tipo de história exclui é a
existência de uma escatologia, ou de uma teleologia: a
existência de um nomos_, imanente ou transcendente, or
denando a história segundo uma consciência e em função
de um fim. Mas não exclui as práticas não-discursivas.
Donde a transitividade dessas análises, isto é, sua poro-
sidade às configurações sociais. Quase tôdas as descri
ções do discurso da loucura e da medicina estão explici
tamente enraizadas na vida social. Já vimos alguns
exemplos. Assim, na Histoire de la Folie, a segregação
surgiu como uma resposta dada pelo mercantilismo a uma
grave crise econômica. Todos os que não eram nem pro
dutores nem consumidores eram socialmente inúteis: daí
a reclusão de todos os anti-sociais, entre os quais os lou
cos, com o objetivo de integrá-los no circuito produtivo.
Os loucos e todos os outros anti-sociais eram vistos sôbre
um fundo de reprovação ética: eram transgressores do
Código mercantilista, e portanto tinham se colocado na
posição de réprobos da Razão clássica. Com o início do
capitalismo liberal, surge a necessidade de mão-de-obra
para a indústria, e todos os anti-sociais, com exceção doB
loucos, vão sendo libertados. Simultaneamente com as
necessidades econômicas, a prática política vai exercer
uma grande influência; o liberalismo político vai esva
ziar as prisões de todos os que tinham sido presos arbi-
tràriamente, sem julgamento regular e sem plena sal
vaguarda dos direitos individuais. Restam os loucos. A
loucura é isolada, e pela primeira vez é vista em sua sin
gularidade. A loucura se torna pensável: o discurso psi
quiátrico pode se instaurar. N a história da medicina, a
mesma influência dos fatores sociais e políticos. A me
dicina classificatória era fechada em si mesma. O caso
particular se tom ava inteligível quando inserido em gêne
ros e espécies, no espaço do quadro, e êste se atualizav»
no caso concreto. A circularidade era completa. Ehhb,
form a de percepção médica muda no fim do século X V III.
Surge a idéia de uma medicalização generalizada, com o
objetivo de extinguir inteiramente a doença. P a ra «tin
gir êsse objetivo, é preciso que os médicos se multipli
quem, no campo como nas cidades, que haja uma vigilân
cia contra a doença, que cada cidadão tenha uma conn»
108
ciência médica, como deve ter uma consciência cívica.
O olhar médico deixa de estar circunscrito por um quadro
fechado, e abre-se num campo livre e socialmente difuso.
“À estrutura plana da medicina classificatória sucede
esta grande figu ra esférica. Nela, o espaço médico pode
coincidir com o espaço social, ou antes, atravessá-lo e pe
netrá-lo inteiramente . 12 A medicina clínica, com suas
estruturas perceptivas inéditas, surge nesse espaço livre
aberto pela Revolução francesa. “ Êsse campo médico,
restituído à sua verdade de origem, e percorrido inteira
mente pelo olhar, sem obstáculo, sem alteração, é estra
nhamente semelhante, em sua geometria implícita, ao es
paço social com que sonhava a Revolução, pelo menos
em suas primeiras form ulações.. . U m espaço de livre
circulação em que a relação das partes ao todo fôsse sem
pre transponível e reversível. Existe pois uma conver
gência espontânea, e profundamente arraigada, entre as
exigências da ideologia política e as da tecnologia médi
ca.” 13
Les M ots et les Choses é o momento da intransitivi-
dade. Foucault deixa de lado o problema da imbricação
das práticas não-discursivas nas práticas discursivas, e
examina as regularidades discursivas em si mesmas: as
regras segundo as quais, num determinado espaço cultu
ral, certos objetos, temas e conceitos podem aflorar, à
exclusão de outros, vedados pela configuração vigente.
O discurso só se relaciona com o próprio discurso. A s
formações discursivas surgem, aparentemente, por gera
ção espontânea. A s grandes constelações epistemológi-
cas nascem e se transform am sob a ação de leis que não
chegam a ser explicitadas. Como surge a episteme clás
sica? E a moderna? P o r que no século X V I U a lingua
gem tinha o privilégio de representar tôdas as represen
tações, e as coisas o de ser exaustivamente representadas
pela linguagem? Por que no século X IX as coisas e as
representações se descolam? Mistério. A mudança das
epistemes é vista como uma resposta a novos aconteci
mentos ocorridos no plano do próprio discurso. A s posi-
tividades e ciências são deduzidas por um encadeamento
puramente interno, segundo a lógica imanente do discur
so. O discurso é dotado de uma mobilidade própria, que é
de fato uma sucessão de imobilidades. É por isso que a
Arqueologia foi descrita por seus detratores como uma
Keologia. N ã o se trataria de história, e sim de análise
c.stratigráfica. A sucessão é dividida em segmentos fe
109
chados, em “flashes” de eternidade. 0 cinema ê substi
tuído pela lanterna mágica. A diacronia aparece como
uma sucessão de sincronias superpostas. Ê — aparente
mente — a expulsão definitiva do homem. O triunfo do
homicídio metodológico em sua versão mais radical. A
história humana — a história do homem, enquanto su
jeito de seu discurso, e agente de sua gênese, de sua
transfomação, de sua dissolução — é substituída por uma
história do discurso — em que a gênese, a transformação
e a dissolução aparecem como acidentes enigmàticamente
ocorridos na superfície do próprio discurso. U m a análise
mais cerrada mostra que essas críticas não são total
mente justificadas. Em nenhum momento, Foucault nega
a influência decisiva das práticas não-discursivas na for
mação do discurso e em suas vicissitudes. Apenas, o exa
me da interação entre as estruturas discursivas e as não-
-discursivas não entra no quadro de suas análises. Em
L es M ots et les Choses. Foucault está interessado em
outra coisa: no exame das regularidades discursivas que
presidem, num período histórico definido, à formação e
à transformação de positividades como a gramática, a
economia, e história natural, e determinam, p ara cada
uma, o repertório de objetos, conceitos e temas possí
veis. Foucault acreditava que essas regras poderiam ser
descritas no plano exclusivo do discurso — pelo menos
provisoriamente. Ora, é certo que o que pode ser enun
ciado e a form a de enunciar dependem fundamentalmen
te da constelação discursiva vigente, e das relações que
se estabelecem entre estruturas discursivas; mas é igual
mente certo que são as práticas não-discursivas que vão
impor seus limites e sua form a a essas relações. É por
isso que as análises extraordinàriamente finas de Les
M ots et les Choses permanecem abstratas e, em definiti
vo, inconclusivas — ficamos sem saber como surgem as
epistemes, qual a lei de sua transformação, e de que fo r
ma a episteme como um todo ou cada uma das positivida
des que a integram se articulam com o não-discursivo.
É um livro que exigia um segundo volume; ou outro li
vro.
110
projeto anti-antropológico da Arqueologia, antes de pas
sar adiante em nossa análise.
Ésse projeto comporta dois elementos principais: a
instauração de uma história descontínua, e a dissolução
das unidades que tradicionalmente funcionam como ob
jeto da descrição histórica.
A especificidade de Foucault em relação aos outros
teóricos da morte do homem está em sua escolha da di
mensão diacrônica para articular sua obra. D esafia o
adversário em seu próprio terreno: nega o homem no
eixo da história, até êsse momento considerado o refúgio
da consciência antropológica. O estruturalismo “vulgar”
podia dar-se ao luxo de expulsar o homem porque opera
na linha da sincronia; é fácil, então, privilegiar o siste
ma, pois na ordem das simultaneidades o sujeito não pre
cisa desempenhar um papel muito dinâmico. A audácia
de Foucault consiste em aceitar a provocação da diacro-
nia, e instalar a morte do homem no cerne da história.
Mas Foucault não corre nenhum risco. Sua história é
muito diferente da história humanista tradicional. E isto
porque, como vimos no discurso da loucura, da medicina
e das epistemes, para Foucault a história é essencial
mente descontínua. Ê uma história cataclísmica, feita de
rupturas e descontinuidades. N ã o é o desenrolar previsí
vel do Mesmo, e sim uma série de mutações inaugurais.
É fácil entender as implicações dessa visão da história.
A história contínua é o abrigo privilegiado da consciên
cia. “Fazer da análise histórica o discurso do contínuo é
fazer da consciência humana o sujeito original de todo
fiori e de tôda prática: são faces do mesmo sistema de
pensamento.” 14 Um a história descontínua, por outro la
do, exclui qualquer antropocentrismo. A sucessão das
fases obedece a uma legalidade puramente discursiva,
sem qualquer referência a uma teleologia ou a uma sub
jetividade fundadora. A história descontínua nega todo
projeto, divino ou humano: não pode ser nem a manifes
tação da Providência, nem o desdobramento do Espírito,
nem o campo da ação da praxis, individual ou coletiva.
O tempo da descontinuidade é, no sentido mais literal, o
tempo do desaparecimento do sujeito.
O segundo elemento é a dissolução das unidades sig
nificativas da descrição histórica. Tradicionalmente, a
história das idéias descrevia teorias, ideologias, dscipli-
nas, sistemas filosóficos. A Arqueologia “despresentifi-
ca” essas unidades. Em sua existência imediata, tais uni
111
dades, como se oferecem ao olhar do historiador, estão
corrompidas até a medula pelo veneno antropológico. D aí
sua substituição pelas formações discursivas, entidades
depuradas que funcionam exclusivamente no nível do dis
curso. Movem-se num ar rarefeito, mortal ao homem, mas
hospitaleiro às estruturas. M as a Arqueologia não é uma
proposição anti-antropológica apenas em seus princípios
gerais: todo o complexo arsenal de novas categorias in
troduzidas por Foucault parece ter como função princi
pal evitar a contaminação do antropologismo. Vale à
pena, nessa perspectiva, lançar um segundo olhar às re
gras da formação de objetos, conceitos, modalidades
enunciativas e estratégias temáticas.
Qualquer descrição ortodoxa dos objetos de uma dis
ciplina tem que postular um vínculo entre as coisas e um
sujeito. U m objeto, enquanto entidade material, é objeto
para uma consciência. É o que se trata de evitar. Para
a arqueologia, o objeto não está ligado nem às coisas
nem ao sujeito: é um feixe de relações, e não uma enti
dade material que possa ser referida a uma subjetivida
de. O objeto é inteiramente constituído por relações dis
cursivas. O sujeito, na época clássica, não podia fa la r de
qualquer coisa nem constituir qualquer objeto ligado ao
saber da loucura, más apenas das coisas e objetos autori
zados pela interação das superfícies de emergência, das
instâncias de delimitação e dos critérios de especificação.
A substituição dos objetos materiais por objetos relacio
nais tem a vantagem de dissolver o real: de despresenti-
ficar às coisas. Ê preciso “ conjurar sua rica, pesada e
imediata plenitude, que habitualmente era considerada a
lei primitiva de um discurso que dela se afastaria unica
mente por êrro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inér
cia das crenças e tradições, ou ainda pelo desejo, talvez
inconsciente, de não ver e não dizer. Substituir o tesouro
enigmático das coisas anteriores ao discurso pela form a
ção regular de objetos que somente se desenham nêle.
D efinir êsses objetos sem referência ao fundo das coisas,
e em função do conjunto de regras que permitem form á-
-los como objetos de um discurso e constituem as condi
ções de seu aparecimento histórico. Fazer uma história
dos objetos discursivos que não os m ergulharia nos sub
terrâneos comuns de um solo originário, e que se limi
taria a desdobrar o nexo das regularidades que regem a
sua dispersão.” 15 Dissolver as coisas não significa apenas
nem principalmente eliminar um referente externo ao dis
112
curso: significa eliminar o sujeito como fonte geradora
de significações. O discurso não é um conjunto de signos
produzidos por alguns homens e significando determina
das coisas: é um discurso autoproduzido e auto-referen-
te. A s coisas não se dão a uma consciência através de um
discurso; é o discurso que constitui seus próprios refe
rentes, sem necessidade de uma consciência ligada ao real
por uma relação perceptiva.
A análise das modalidades de enunciação, ao contrá
rio, parece supor inevitavelmente a intervenção do sujei
to. É a questão fundamental entre tôdas, contida na per
gunta: “Quem fala ? ” M as ainda aqui Foucault formula
a sua resposta em têrmos não-antropológicos. N ã o se
trata, na análise arqueológica, de identificar sujeitos
reais, com uma existência histórica definida, mas de de
terminar a série das posições possíveis do sujeito que fa
la. A medicina clínica não se define, por exemplo, a par
tir da introdução do conceito de tecido por Bichat, e sim
como o relacionamento, no discurso médico, de um certo
número de elementos distintos, como a localização insti
tucional de onde os médicos falavam , seu estatuto ju rí
dico e social e sua posição como sujeitos que percebem,
observam, descrevem, ensinam, etc. Tais relações são
instauradas pelo próprio discurso clínico, e não pela
consciência dos médicos. O olhar clínico tem um papel
constitutivo no exame e caracterização da doença: mas
é por sua vez constituído por um conjunto de interações
que independem do sujeito que olha, fala e escuta. O dis
curso clínico não é assim formado pela unidade do su
jeito, e sim por sua dispersão; o médico tem que operar
no quadro de relações impostas, pré-existentes ao olhar
clínico. “N a análise proposta, as diversas modalidades de
cnunciação, em vez de remeterem à síntese ou à função
unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão. Aos
diversos estatutos, às diversas localizações, às diversas
posições que êsse sujeito pode ocupar ou receber quando
profere um discurso. E se êsses planos são ligados por
um sistema de relações, tal sistema não é estabelecido
pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si
mesma, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela
especificidade de uma prática discursiva. . . O discurso,
assim concebido, não é a manifestação, solenemente des
dobrada, de um sujeito que pensa, conhece e diz: é, pelo
contrário, um conjunto em que se determinam a disper
são do sujeito e sua discontinuidade com êle p ró p rio .. .
113
N ã o é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem
a uma subjetividade psicológica que se deve definir o
regime das enunciações próprias a uma formação discur
siva. 18
A s regras de formação dos conceitos se fundam,
igualmente, na exclusão de todo sujeito. O s conceitos são
dados sobre um fundo pré-conceitual, constituído não por
consciências mas por interações imanentes ao próprio
discurso. Os sujeitos não são livres de constituir quaiquer
conceito: só podem ser formados os conceitos autoriza
dos pelo sistema das relações que se articulam entre as
form as de sucessão, de coexistência e de intervenção: é o
determinismo do discurso que permite ou veda a produ
ção dos conceitos, independentemente da vontade dos in
divíduos. “N a análise proposta, as regras de formação
se enraízam não na mentalidade ou consciência dos indi
víduos, m as no próprio discurso; impõe-se, portanto, se
gundo uma espécie de anonimato uniforme, a todos os
indivíduos que se propõem a fala r nesse campo discursi
v o . . . A s regras de form ação dos conceitos não são o
resultado, depositado na história e sedimentado na es
pessura dos hábitos coletivos, de operações efetuadas por
indivíduos; não constituem o esquema descarnado de to
do um trabalho obscuro, no curso do qual os conceitos
teriam emergido, através das ilusões, preconceitos, erros,
tradições. O campo pré-conceitual deixa aparecer as re-
gularidades e coações discursivas que tom aram possível
a multiplicidade heterogênea dos conceitos.” 17
Enfim o campo das escolhas temáticas: aqui é quase
inelutável a introdução do sujeito. Afinal, alguém pre
cisa constituir certos objetos, atualizar certos conceitos,
efetuar certas opções temáticas, excluir opções alternati
vas, também possíveis dentro do sistema. N o magno in
terstício de liberdade que se abre entre duas estratégias
possíveis, deveria em princípio haver lugar para a sobe
rania de um sujeito. Engano: segundo Foucault, a apro
priação do discurso por práticas não-discursivas (confis
co do discurso econômico pela burguesia, por exemplo)
não é extrínseca ao discurso, mas resulta das leis do pró
prio discurso. A s opções não se exercem no vazio, e sim
no campo das necessidades discursivas. Sc duas escolhas
são possíveis, essas duas possibilidades são dadas no pró
prio discurso. “Convém notar que as estratégias não se
enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de
uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamen
114
tal. . . N em a análise das riquezas nem a história natu
ral, se interrogadas ao nível de sua existência, de sua
unidade, de sua permanência e de suas transformações,
podem ser consideradas como a soma dessas opções di
versas. Estas, pelo contrário, é que devem ser conside
radas como form as sistemàticamente distintas de tratar
objetos do discurso. . . de dispor formas de enuncia-
ção. . . de manipular conceitos. . . Essas opções não são
germes de discurso. . . e sim formas ordenadas e descri-
tíveis como tais de atualizar as possibilidades do discur
so. 18 Em suma, é o discurso que é livre, e o homem que
é determinado: a suposta liberdade temática do sujeito
é uma liberdade segunda e fantasmagórica, outorgada
pelo próprio discurso. A o atualizar determinadas estra
tégias, o homem é agente do sistema — funcionário do
discurso.
E is — aparentemente — a Arqueologia. U m a ten
tativa polêmica de ordenar e codificar a metodologia da
morte do homem. Ora, êsse julgamento seria superficial.
Entre Les M ots et les Choses e a Archéologie existe uma
verdadeira diferença de nível. N ão somente no sentido
de que no primeiro Foucault f a z um trabalho descritivo
e no segundo uma análise metodológica. M as no sentido,
mais radical, de que a Archéologie representa um esforço
de síntese entre os dois momentos de sua prática descri
tiva — o da transitividade e o da intransitividade. Como
na fase transitiva — da história da loucura e da clínica
— Foucault trabalha de nôvo com as práticas extradis-
cursivas. A s classes, as técnicas, os complexos institucio
nais reaparecem. M as — e aí intervém a metodologia da
intransitividade — não reaparecem da mesma forma. N a
Archéologie, as práticas sociais são “ despresentifiçadas”,
reduzidas ao pré-discursivo, e portanto, num certo sen
tido, ainda ao discursivo. Assim, nas regras de form a
ção de objetos, as coisas são dissolvidas, e o discurso
passa a ser referente de si mesmo; nas regras de enun-
ciação dos sujeitos, o sujeito material é abolido, e subs
tituído pelo somatório das posições possíveis do sujeito
que fa la ; nas regras de formação dos conceitos, as pos
sibilidades de conceptualização são imanentes ao próprio
campo discursivo, num momento dado; e nas regras para
a formação de temas, a apropriação do discurso por prá
ticas não-discursivas resulta da legalidade do próprio dis
curso. A conclusão dessa análise parece ser a de que
115
quem fala no discurso e aquilo sôbre o que se fala é o
próprio discurso.
A Archéólogie tem assim elementos para desconten
tar a todos, imparcialmente. A os humanistas nostálgicos,
por sua implacável guerra contra o sujeito; aos admira
dores do virtuosismo intransitivo de Les M ots et les
Choses, por sua preocupação com o nível extradiscursi-
vo; e aos marxistas dogmáticos, pela sem-cerimônia com
que “desmaterializa” as práticas sociais. E no entanto
não podemos evitar a sensação de que com a Archéologie
Foucault entra num terreno nôvo, em que tem, até certo
ponto, razão contra os três grupos de críticos.
A guerra contra o sujeito, em primeiro lugar. A in
dignação com que foi recebida essa tese básica de Fou
cault é em certos casos explicável, e em outros resulta
de um mal-entendido. É claro que os historiadores da
consciência e os cronistas do gênio individual teriam que
se rebelar contra uma historiografia em que justamente
a biografia da consciência não é pertinente. Ê uma posi
ção inaceitável, em geral, para todos os que direta ou in
diretamente advogam o idealismo transcendental do su
jeito. M as é menos claro por que os partidários de uma
historiografia “científica” se escandalizariam com a ex
clusão do sujeito, em seu nível metodológico, que é o que
nos interessa neste capítulo. N um certo sentido, com
efeito, não pode haver ciência sem uma expulsão corre-
lativa do sujeito. Tôda a marcha da Razão ocidental se
caracteriza sempre por uma série de descentramentos
sucessivos do sujeito. O primeiro, como lembra Freud,
ocorreu quando Copérnico descobriu que a terra não
ocupava o centro do universo; o segundo, quando D arw in
descobriu que o homem não ocupava um lugar privilegia
do no mundo animal; o terceiro, quando a psicanálise
descobriu que a vida consciente do homem constituía ape
nas uma fração de sua vida psíquica total . 19 O progres
so da ciência, nesses exemplos, está em razão direta da
colocação entre parênteses do homem. N a s ciências exa
tas, o critério da cientificidade de um enunciado é sua
capacidade de ser controlado em bases inter-subjetivas,
o que é uma form a de eliminar tôdàs as interferências do
sujeito: a proposição é válida quando o sujeito (o obser
vador) pode ser neutralizado. N a lingüística e em al
guns domínios das ciências humanas, a utilização do con
ceito de estrutura, correlativo de uma visão na qual o
sujeito individual é regido por um sistema cuja lei não
116
está presente à consciência, tem funcionado como um ele
mento cientificamente renovador. A filosofia contempo
rânea que quis fundar de form a mais radical a cientifici-
dade do saber, a fim de chegar a enunciados apodíticos
— a fenomenologia — procedia por uma série de epoches,
uma das quais foi a epoche do sujeito psicológico. M as
— diria o m arxista — trata-se de uma ciência positivista,
e no caso da fenomenologia, de uma filosofia abertamen
te idealista. Ora, é precisamente no marxismo que o su
jeito desaparece da form a mais radical. P a ra o marxis
mo, os sêres humanos só existem encarnados em estru
turas, cujo sistema permanece inacessível à consciência
individual, até o seu desvendamento pela ciência da his
tória. A história não é o palco em que gesticulam gran
des homens — reis, generais, benfeitores da humanidade,
mas a sucessão de etapas marcadas pela formação e dis
solução de estruturas. Nesse nível, portanto, a polêmica
foucaultiana contra o sujeito se inscreve numa tradição
científica que já deveria estar consolidada. A tacar o su
jeito tem assim algo não de escandaloso mas de ingênuo:
parece uma agressão inútil contra um inimigo um pouco
ridículo. O vigor da reação contra Foucault, entretanto,
mostra que essa polêmica era oportuna, e que os parti
dários da soberania do sujeito não depuseram as armas.
Em segundo lugar: com a Archéologie, dizem outros
críticos, Foucault teria desertado a pureza da descrição
discursiva, onde justamente residia a sua riqueza e sua
originalidade. Sua abertura às práticas sociais represen
ta um retrocesso para posições antropologistas, apesar de
tôda a veemência de suas investidas anti-antropológicas.
E ssa crítica é, na verdade, uma homenagem implícita a
Foucault. É evidente que o brilhante exercício descritivo
de Les M ots et les Choses tinha culminado num impasse.
Impossível, sem multiplicar as aporias, continuar traba
lhando num universo em que o discurso é seccionado de
suas articulações com a vida. L es M ots et les Choses
marca um limite que não pode ser transposto. Continuar
no nível discursivo puro, depois dêsse esforço extremo de
abstração, seria condenar-se a não poder pensar em sua
verdade o próprio discurso. P a ra poder pensar o discur
so, é necessário, num certo sentido, sair dêle. Donde o es
forço de clarificação metodológica da Archéologie.
Terceiro: a Archéologie, segundo outros, procuraria
m ascarar a importância das práticas extradiscursivas na
formação e transformação do discurso. A críLica não é
117
válida, mas é compreensível. A s invectivas contra o su
jeito são tão violentas e freqüentes que o leitor menos
atento pode pensar que o foco principal do livro é a des
truição do sujeito, e como a problemática do homicídio
é o grande tema de Les M ots et les Choses somos leva
dos, insensivelmente, a pensar a Archéologie em sua con
tinuidade com Les M ots et les Choses, esquecendo a no
vidade radical do primeiro em relação ao segundo. Essa
novidade consiste na tentativa sistemática de descrever
as práticas discursivas em sua articulação com as não-
-discursivas. Se depurarmos a Arqueologia de sua apolo-
gética anti-antropológica, veremos que atrás dêsse asce
tismo do discurso existe uma constante preocupação com
a “embreagem” do discursivo no não-discursivo.
Veja-se, por exemplo, o que Foucault diz sôbre o
“acontecimento” na dinâmica do discurso. A Arqueolo
gia, segundo êle, analisa a form a e o grau de permeabi
lidade do discurso, define o princípio de sua articulação
sôbre uma cadeia de acontecimentos sucessivos, e identi
fica os operadores pelos quais os acontecimentos se ins
crevem nos enunciados. Assim, as crises monetárias nos
séculos X V I I e X V III influenciaram conceitos e objetos
do discurso econômico, e a epidemia de cólera em 1832
permitiu, no discurso médico, o desaparecimento de ve
lhos objetos e conceitos, e o aparecimento de novos. A
Arqueologia admite explicitamente a possibilidade de no
vos enunciados em correlação com acontecimentos exte
riores. Além disso, para explicar o desaparecimento e o
advento de formações discursivas tem que especificar um
sistema de transformações em vários níveis, que incluem
não somente as transformações entre relações propria
mente discursivas, como transformações de fatores nor
malmente classificados como externos ao discurso, tais
como o nível de desemprego, as decisões políticas sôbre
as corporações e a Universidade e as novas possibili
dades de assistência no fim do século X V III, fatores li
gados ao aparecimento da medicina clínica.
Ou consideremos o que diz Foucault sôbre as rela
ções entre o discurso e a vida: “ A trás do discurso aca
bado, o que descobre a análise das formações não é, fer-
vilhaiite, a própria vida, a vida ainda não capturada; é
uma espessura imensa de sistematicidade, um conjunto
cerrado de relações m últiplas. . . ” 20 Bem analisado, não
há nada de chocante num texto dêsse tipo. Afinal, sabe
mos todos que atrás do discurso da economia política não
118
existe apenas a consciência de Smith ou Ricardo, ou as
aspirações da classe industrial nascente, mas uma rêde
de sistematicidades de caráter institucional, cultural, lin
güístico, em que essas aspirações se refratam, e que exi
gem que certos objetos, conceitos, estratégias temáticas,
sejam atualizadas, de preferência a outras. Reform ula
do nesses têrmos, o texto é não sòmente aceitável como
enriquecedor.
O mesmo se pode dizer de tôdas as categorias da
Arqueologia. A s regras para a formação de objetos, por
exemplo, pressupõem a ação de superfícies de emergên
cia, como a família e a comunidade religiosa, ou de ins
tâncias de delimitação, que são as instituições que defi
nem o objeto e o separam de objetos afins. A s regraa
que definem a posição do sujeito emanam diretamente
de contextos institucionais que autorizam determinado
tido de discurso. A s regras para a formação de temas,
enfim, resultam, em grande parte, da função das práticas
não-discursivas, que se apropriam de determinados dis
cursos: por exemplo a prática do capitalismo nascente
articulando-se no discurso econômico e a prática peda
gógica articulando-se na gramática geral.
Em todos os casos, atrás dos infatigáveis ataques
contra o sujeito e o antropologismo, o mesmo escrúpulo
em encadear o discursivo no não-discursivo. A través de
análises, ao fim e ao cabo, fundamentalmente materialis
tas. Pois é da essência do marxismo afirm ar que a liber
dade dos grupos sociais concretos de form ar suas visões
do mundo não se exerce no vazio, e tem que mergulhar
em tôda a rêde de determinações sócio-culturais que o
sujeito encontra diante de si quando tenta agir e pensar.
Ou afirm ar ( “o homem só se propõe as tarefas que pode
realizar” ) que as relações sociais constituem um solo,
um a priori histórico, no qual podem ou não a flo rar de
terminadas ciências ou teorias, com seus objetos, concei
tos, modalidades enunciativas e escolhas temáticas. A p e
nas um exemplo: segundo M arx, como se sabe, Aristóte
les não pôde analisar até as últimas conseqüências o con
ceito de valor porque tal análise era socialmente impos
sível na cultura grega. A essência do conceito de valor
é o trabalho humano: uma casa pode ser trocada por um
navio na medida em que existe a mesma massa de tra
balho incorporada em ambos, ou seja, na medida em
que têm o mesmo valor. Essa idéia não era pensável na
sociedade grega, baseada na escravidão e portanto na
119
desigualdade dos vários tipos de trabalho humano: im
possível imaginar como unidade de valor um trabalho
humano homogêneo, e que só poderia ser concebido com
o advento do trabalho assalariado. N a linguagem de
Foucault, o solo epistêmico da sociedade grega vedava,
e o da sociedade capitalista autorizava, a formação do
conceito de valor. 21
120
gismo, que vê no conteúdo do discurso a presença das
condições que o produziram.
Foucault não leva mais além a sua teorização sôbre
a problemática da “embreagem”. M as essas indicações
fragm entárias são extraordinàriamente sugestivas, e per-
mitem-nos antecipar, com interêsse, tanto um trabalho
teórico destinado a pensar sistemàticamente a articula
ção do discursivo e do não-discursivo, quanto novos tra
balhos descritivos, como o livro, já anunciado, sôbre a
criminologia, em que as categorias da Archéologie se
jam postas em prática. 22
Resumindo: o homicídio metodológico é uma espécie
de denominador comum a tôdas as obras de Foucault.
M as funciona de uma form a distinta em cada caso, e com
objetivos diferentes. N a fase transitiva, sua função é
permitir uma história não-teleológica, e sem referência a
consciências individuais; na fase intransitiva, destina-se
a pôr de lado, provisoriamente (poderíamos fala r em
epoche arqueológica) todos os elementos que possam in
terferir com uma descrição discursiva pura; e na A rqueo
logia, funciona como instrumento polêmico contra a his
toriografia do sujeito, e contra um marxismo mecanicis-
ta que vê nas formações discursivas um simples reflexo
dag condições econômicas.
3. 0 Homicídio Ontológico
Mas a morte do homem como exigência metodoló
gica é apenas um dos componentes da gramática do ho
micídio. O outro componente é antológico: a morte do
homem já está inscrita no horizonte do saber atual.
Como? Examinemos com mais vagar a resposta de Fou
cault.
N o quadro “L as Meninas” , de Velasquez, estão re
presentados vários personagens: a pequena infanta M ar
garida; ao seu lado, duenas solícitas; um anão de côrte;
um espectador misterioso, que aparece no fundo do qua
dro, atrás de uma porta; e o próprio pintor, empunhando
a palheta. Todos os olhares convergem para um ponto
fixo, que não aparece no quadro. Que ponto é êste? A
resposta está indicada no quadro. N o meio da sala, há
um espelho, e refletidas no espelho, duas silhuetas. São
os modelos do pintor: o rei e a rainha. O quadro existe
em função de um foco: mas êste foco é exterior ao q u a
dro. O rei de Velasquez é espetáculo mais que expecta-
dor; soberano, mas invisível; presente, mas apenas como
121
reflexo num espelho, isto é, como representação entre
outras representações.
N a episteme clássica, o homem era tão ausente como
o rei de Velasquez. Num espaço em que as coisas se ofe
recem inteiramente através das representações, e estas
exprimem exaustivamente as coisas, o homem é supérfluo.
Se a verdade do ser é dada, sem resíduo, por uma série
de representações ordenadas num quadro, não há lugar
para uma entidade encarregada de conjurar, do fundo
secreto do ser, a intimidade das coisas.
A o fraturar o espaço do quadro, a episteme moderna
libera as coisas das representações. A verdade do mun
do econômico e do mundo lingüístico não é mais dada
através das representações, e aloja-se numa esfera mais
profunda, irredutível às representações. A representação
não esgota mais a totalidade do real: êste é muito mais
rico que qualquer representação, e a representação pas
sa a ser um simples epifenômeno de um domínio que se
dá à consciência apenas sob a forma — imprecisa e sem
pre parcial — de um reflexo. Nesse momento, o rei sai
da sombra, e passa a ocupar o centro da composição. A
nova configuração exige um olhar carnal, capaz de de
vassar o mundo secreto das coisas.
O homem surge na brecha ontológica form ada quan
do as coisas se retiram para sua própria inferioridade,
segundo as leis da vida, do trabalho e da linguagem. M as
essa nova figu ra exerce uma soberania ambígua. Ê in
dispensável como instrumento pelo qual as coisas se dão
ao olhar, uma vez rompida a cumplicidade com a repre
sentação. M as ao mesmo tempo, o homem é escravo das
coisas, muito mais arcaicas que sua consciência, e que o
esmagam com o pêso de sua irredutível anterioridade.
É através do homem que a vida, o trabalho e a lingua
gem acedem ao saber; mas sua existência concreta é con
dicionada por essas entidades, já que é somente através
das palavras que profere, dos objetos que fabrica e do
seu organismo que pode ter acesso à sua essência e pen-
sar-se como objeto de conhecimento. Assim, desde seu
nascimento o homem está marcado pelo estigma da fini-
tude. Essa finitude se desvenda por um duplo movimen
to, que vai das coisas ao homem e do homem às coisas.
Pelo primeiro movimento, o saber da vida, do trabalho e
da linguagem remetem inexoravelmente a uma finitude
fundadora. A ciência da vida mostra que o homem está
exposto à erosão da vida, através do envelhecimento e
122
da morte; a ciência do trabalho mostra que o homem
está sujeito às leis de ferro da produção e da carência
original; a ciência da linguagem mostra que o homem
está mergulhado no determinismo de um sistema lingüís
tico incomensuràvelmente anterior à sua consciência. Mas
a experiência da finitude pode ser vivida a p artir do pró
prio homem. Brotando dessa vivência primitiva, o saber
poderia ser constituído, num movimento inverso ao pri
meiro. Assim, o homem toma consciência do seu corpo-
-fragmento de espaço que se articula com o espaço das
coisas e com o tecido dos sêres vivos; apreende-se como
sede de desejos, os mesmos desejos que fundam o valor
de uso dos objetos da economia; e sabe-se dotado de lin
guagem, a partir da qual é possível fundar o discurso
humano. A través de uma experiência original, o homem
sente-se finito no tríplice eixo de sua mortalidade bio
lógica, de sua alienação no sistema produtivo e na sua
inserção num universo lingüístico pré-existente. N a raiz
das três positividades empíricas — a biologia, a economia
política e a filologia — encontra-se a finitude do homem.
Existe assim uma identidade de estrutura entre um saber
empírico, que remete ao homem como ser finito, e as di
versas manifestações da finitude humana, que se abrem
para as positividades empíricas. A morte genérica, que
rói as entranhas de todo ser vivo, é a minha própria
morte; o desejo, que liga e separa os homens no interior
do processo econômico, é o mesmo a partir do qual as
coisas são desejáveis para mim; o tempo da linguagem
humana é o mesmo tempo no qual se desenrola o meu
próprio discurso. A positividade do saber tem como seu
negativo a finitude do homem, que funda essa positivi
dade; e a positividade do homem tem como seu negativo
o caráter finito do saber empírico, através do qual o ho
mem se descobre e se instaura.
O homem é por conseguinte ao mesmo tempo empí
rico e transcendental; objeto de conhecimento e funda
mento de todo saber. Como ser empírico, o homem é
dado através da análise da vida, do trabalho, da lín gu a;
como ser transcendental, é a fonte fundadora da biologia,
da economia, da filologia. O fracasso das várias tenta
tivas feitas, no interior da episteme moderna, para fun
d ar o saber do homem a partir do homem está ligado à
ambivalência dessa situação. O positivismo, o marxismo
e a fenomenologia constituem três soluções dadas à ques
tão do fundamento do saber. P ara o positivismo, o saber
123
se funda na verdade do próprio objeto; para o marxismo,
a objetividade está fundada numa verdade em formação,
que se configurará, escatològicamente, num tempo futu
ro ; para a fenomenologia, a dicotomia reflexão empírica-
-reflexão transcendental se dissolve na análise do vivido,
definido como o espaço em que todos os conteúdos empí
ricos são dados à experiência e como a form a originária
que torna possíveis êsses conteúdos. N a realidade, essas
três tentativas são arqueològicamente equivalentes. C or
respondem tôdas ao mesmo projeto impossível: o de fun
dar o saber empírico através dos próprios conteúdos em
píricos; basear a reflexão transcendental — fundadora
— na análise descritiva dos conteúdo3 que se trata de
fundar. Ora, a episteme moderna não pode proceder de
outro modo, pois seu quadro de referência é o homem,
e êste é precisamente o ponto de cruzamento do empírico
e do transcendental. O projeto fundador poderia ser bem
sucedido unicamente em outra configuração epistemoló-
gica: na perspectiva da morte do homem.
Se a positividade do homem se define sôbre um fun
do de finitude, e se as coisas só se dão parcialmente à
sua consciência, já que a uma essência humana finita só
pode corresponder um saber também finito, segue-se que
existe sempre um resíduo de realidade que não acede à
consciência. A faix a de realidade que pode ser pensada
tem sempre como correlativo uma faixa impensada. O
Cogito cartesiano se baseava numa identidade de natu
reza entre o ser e a representação: o “penso” podia tran
sitar com facilidade para o “ existo” , porque o primeiro
têrmo (a representação) e o segundo (o ser) eram ho
mogêneos e coextensos. O ser se dava inteiramente no
espaço da representação. N a episteme moderna, domi
nada pelo pêso das coisas sôbre o homem, a esfera do
Cogito está longe de ser coextensa com a esfera da rea
lidade. Como posso ser esta vida que ine transborda?
Como posso ser êste trabalho, cujas leis se impõem a
mim com tôda a inércia de uma necessidade natural?
Como posso ser esta linguagem, cujo sistema me escapa
e cujas regras não sou livre de transformar? A reflexão
sôbre o homem tem como tela de fundo uma dialética do
pensado e do impensado, o que penso é apenas uma fr a
ção do que não penso ainda, ou do que não posso pensar
nunca. O saber meridiano está sempre rodeado de uma
zona de sombra. O homem é uma coexistência estrutu
ral do pensado e do impensado. O impensado no homem
124
se dá sob a form a de Outro. Êsse Outro nasceu ao mesmo
tempo que o homem: seu duplo, sua penumbra, sua ver
dade recôndita ou sua maldição. N a fenomenologia he-
geliana, foi o A n sich em face do Fur sich; para Scho-
penhauer, foi o Unbewusste; o homem alienado, para
M arx; o implícito e não-atualizado, para Husserl. A exis
tência do impensado impõe ao homem uma tarefa: a de
absorver, na medida do possível, essa zona de sombra.
Todo pensamento moderno é atravessado por um impera
tivo -— o de pensar o impensado. Ê o fundamento da
ética moderna. A normatividade do Cogito que quer apre
ender o impensado substituiu as antigas normatividades
religiosas. É a palavra que quer fazer falar o silêncio, o
movimento que quer ativar a inércia. A ética moderna
busca refletir na forma do Para-Si os conteúdos do Em -
-Si: á luta pela desalienação do homem deve ser enten
dida sôbre o fundo da tensão entre Cogito e o impen
sado. “O conhecimento do homem, à diferença das ciên
cias da natureza, está sempre ligado, em sua form a su
perficial, a éticas e políticas; mais fundamentalmente, o
pensamento moderno avança na direção em que o Outro
do homem deve converter-se no Mesmo que êle.” 23
Se ó homem é um ser constituído integralmente
pela historicidade das coisas, sua reflexão sôbre sua
própria origem e sôbre sua própria historicidade tem
que se fundar na historicidade da vida, do trabalho
e da linguagem. O homem se desvenda no coração
de uma historicidade já constituída. Como ser vivo, está
ligado a uma vida que começou muito antes dêle; como
ser que trabalha, está prêso a um sistema de relações de
produção muito mais antigo que o seu próprio nascimen
to; como sujeito de um discurso, está inserido num sis
tema lingüístico anterior à sua existência. Sua medita
ção sôbre a origem se processa sempre sôbre o pano de
fundo de uma realidade já em curso. Cada objeto que
manipula, cada necessidade que manifesta, cada palavra
que profere o confrontam com um tempo infinitamente
arcaico, através de uma cadeia de mediações cujo pri
meiro elo se perde no fundo de uma inacessível cronolo
gia. N o momento em que o homem se pensa em suas
relações com as coisas, articula-se com tôdas essas histo-
ricidades externas, e percebe que sua própria origem não
pode ser conhecida. Sua vida, seu trabalho, súa lingua
gem, se cristalizam no já vivido, já produzido, e já dito.
M as essa impossibilidade de aceder à sua própria origem
125
não é apenas uma limitação. Ê também um privilégio:
ser sem origem, é através dêle que as coisas encontram
sua origem. O homem é a abertura a partir da qual o
tempo pode se constituir: a condição para que as coisas
façam sua entrada no domínio do saber, com sua histori
cidade própria, e no momento devido. O homem é o ser
sem origem a partir do qual a reflexão sôbre a origem
se torna possível — fruto do tempo, e condição de tôda
temporalidade. D aí a tentativa positivista de inserir a
cronologia do homem no interior da cronologia das coi
sas, transformando esta última num capítulo da duração
mais geral dos sêres; e à tentativa oposta, mas arqueo-
lògicamente equivalente, de subordinar o tempo das coi
sas ao tempo humano: o desvendamento da verdade das
coisas no momento em que acedem ao saber através do
conhecimento. U m a e outra repousam, como fundamento
de sua possibilidade, no atributo soberano do homem de
refletir sôbre o tempo, de constituí-lo, e de ordená-lo. Daí
também a eterna tentação da filosofia Ocidental de pro
curar a verdade do homem no reencontro com a origem.
De Hegel a M arx e Spengler o pensamento moderno pri
vilegiou o tema de uma consciência que por sua própria
dialética interna chega à sua consumação, e no extremo
da curva, inflete sôbre si mesma, e recaptura a origem,
em todo o seu frescor matinal, mas com todo o pêso das
sedimentações históricas. A origem aparece assim como
o já vivido, mas também como o não-vivido do homem;
m ergulha no passado, mas aparece também como uma
promessa, como um objetivo e como uma tarefa. A ori
gem é o que precisa ser pensado pelo homem, para que
a sua verdade se atualize: e a atualização, sempre adia
da, dessa verdade, é o reencontro impossível com a ori
gem. Simples ruga na duração das coisas, mas fonte de
tôda historicidade, o homem está condenado à repetição
do já vivido, na perspectiva de uma história ainda por
vir.
Tôda a reflexão sôbre o homem se funda nesse "qua
drilátero antropológico”, cujos elementos são uma analí
tica da finitude, um projeto de constituição transcenden
tal d'o saber através dos conteúdos empíricos, uma dialé
tica do Cogito e do impensado e uma meditação sôbre a
origem. É sôbre essa base e dentro dêsses limites que
se instaura a antropologia contemporânea.
A reflexão antropológica, característica da episteme
moderna, não corresponde a nenhuma preocupação radi
126
cai com a constituição de um reino humano — é o simples
subproduto de uma configuração epistemológica que des
cola as coisas das representações, e que exige o advento
de uma nova figura, capaz de pensar as coisas fora do
espaço da representação. E ssa filosofia esbarra numa
dificuldade insolúvel, que é a de fundar o transcendental
no empírico, e de legitimar o saber empírico através dos
próprios conteúdos empíricos. Êsse paradoxo representa
o fim da filosofia — ou o seu sono. N ã o se trata mais,
como no tempo de Kant, de despertar a ciência do seu
sono dogmático, mas de livrar a filosofia do seu sono
antropológico. Somente assim o pensamento poderá li
bertar-se dos seus paralogismos, e reconquistar o direito
à reflexão livre. É preciso destruir até os seus fundamen
tos a idéia do homem, e o quadrilátero antropológico
composto da finitude, do empírico-transcendental, do im
pensado e da origem. H oje em dia o pensamento só é
possível no vazio do homem assassinado. “A todos os
que querem fa la r ainda do homem, do seu reino ou de sua
libertação, a todos os que se interrogam sôbre a essên
cia do homem, a todos os que querem partir dêle para
aceder à verdade. . . a única resposta possível é um riso
filosófico — isto é, parcialmente silencioso.” 24
A s ciências humanas surgiram simultâneamente com
o homem: quando deixando o espaço da representação,
os sêres vivos se alojaram na vida, as riquezas no tra
balho e as palavras na historicidade lingüística. Se o ho
mem se define por suas relações com a vida, o trabalho
e a linguagem, é claro que as ciências do homem têm que
girar em tôrno da biologia, da economia política e da f i
lologia. Nenhuma delas, entretanto, pode ser considera
da como ciência humana. E isto porque o objeto das
ciências humanas não é o homem, tal como é dado nas
positividades empíricas, mas a representação que o ho
mem se forma do mundo que habita. P ara as ciências
humanas, o homem não é o ser vivo com certas caracte
rísticas anátomo-fisiológicas, mas o ser que do fundo da
vida constitui representações graças às quais pode ex
primir sua vida; não é o ser que trabalha e fabrica obje
tos, mas o ente que form a representações sôbre a vida
em sociedade, sôbre os outros protagonistas do sistema
econômico, sôbre as relações de produção, vividas em sua
verdade ou de form a mistificada; não é o ser que fala,
mas o que do interior da linguagem, é capaz de repre
sentar o sentido das palavras que enuncia e o próprio
127
sistema lingüístico. A s ciências humanas não são por
tanto a análise do que é o homem em sua natureza, mas
do homem enquanto fonte das representações. M as se
nem a biologia, nem a economia política nem a filologia
são ciências humanas, constituem em compensação a b a
se que autoriza a formação das ciências humanas. Em
têrmos muito genéricos, poderíamos dizer que a psicolo
gia é a ciência humana que se articula com a biologia; a
sociologia, a que se articula com a economia política, e a
análise das literaturas e dos mitos, a que se articula com
à filologia.
A s ciências humanas são organizadas de acôrdo com
certas categorias analíticas. N a superfície da biologia,
surgiram as categorias da função (capacidade de receber
estímulos externos e de responder a êsses estímulos) e
de norma (que permite ao homem exercer suas fu n ç õ e s);
na superfície da economia, as categorias de conflito (r e
sultante do desejo, da necessidade e do interêsse) e da
regra (m aneira de ordenar o conflito de form a social
mente a c e itá v e l); e na superfície da linguagem, a cate
goria da significação (qualquer conduta humana está
sempre ligada a um sentido, isto é, sempre procura ex
prim ir alguma coisa) e de sistema (conjunto coerente de
significações). Cada um dêsses pares funciona de form a
privilegiada no domínio a que estão ligados, isto é, na
psicologia, na sociologia, na análise dos fenômenos cul
turais, mas podem ser extrapolados para qualquer dos
domínios adjacentes. A s três dicotomias: função/norma,
conflito/regra e significação/sistema — atravessam to
do o campo das ciências humanas. N o início do século
X IX , a ênfase era posta no primeiro têrmo de cada par:
função, conflito e significação. M ais tarde, houve um
deslocamento no interior de cada par, e o acento foi pôs-
to no segundo têrmo: norma, regra, sistema. Com êsse
deslocamento, a dimensão do inconsciente foi integrada
nas ciências humanas. Tanto a norma, como a regra e o
sistema são dados à representação, mas não necessaria
mente à consciência. A consciência ingênua pode perfei
tamente exercer funções vitais sem se dar conta da exis
tência da norm a; entrar em conflitos sociais sem perce
ber explicitamente a regra que permite resolvê-los; ge
ra r significações sem perceber o sistema que as rege.
Com a vitória do ponto de vista da norma, da regra e do
sistema sôbre o ponto de vista da função, do conflito e
da significação, a episteme moderna se aproxima de uma
128
nova configuração, que se desenha de form a ainda inde
cisa no horizonte do saber. M ais uma vez: o próprio das
ciências humanas não é o homem. N ão foi o homem que
as criou, mas a episteme moderna, que as institui, e lhes
dá a possibilidade de tomar o homem como objeto. A
ciência humana existe não onde existe o homem, mas
onde se analisam, na dimensão própria do inconsciente,
as normas, regras e conjuntos significativos que regem
o mundo da vida, do trabalho e da linguagem.
A s ciências humanas não são meros fenômenos de
opinião; não podem ser reduzidas a simples manifesta
ções de superfície ou a formações ideológicas. M as tam
bém não seria possível considerá-las, na exata expressão
do têrmo, como ciências. Existem apenas como configu
rações secundárias, alojadas nos interstícios da econo
mia, da filologia e da biologia: essa vida parasitária as
impede de aceder ao estatuto científico. N ã o são, por
tanto, falsas ciências, como querem os partidários da re
dução ideológica — simplesmente não são ciências. O
mesmo espaço epistemológico que as constitui impediu
as disciplinas do homem de aspirar à cientificidade. A l
go mais que a opinião, algo menos que a ciência, a refle
xão sôbre o homem faz parte do domínio positivo do sa
ber, mas não constitui um corpo de enunciados cientí
ficos.
A História é uma disciplina de excepcional impor
tância para as ciências humanas, porque foi através da
historicidade das coisas que o homem se constituiu em
sua finitude. Se o homem histórico é o homem que vive,
trabalha e fala, todo enunciado da História está ligado
quer à psicologia, quer à sociologia, quer às ciências da
linguagem. Nesse sentido, a análise arqueológica revela
a dispersão e não a unidade da História, cuja especifici
dade é assim discutível. M as ao mesmo tempo, os con
teúdos da psicologia, da sociologia e das ciências da lin
guagem são atravessados de ponta a ponta pela histori
cidade. A História constitui para as ciências do homem
uma moldura ao mesmo tempo acolhedora e arriscada.
P ara cada uma dessas ciências, a História proporciona
um conjunto de coordenadas temporais, que lhes ofere
cem um solo e por assim dizer uma pátria; mas ao mes
mo tempo destrói sua pretensão de funcionar no elemen
to da universalidade, porque sua existência é vista como
historicamente condicionada, e surgida num certo mo
mento do tempo.
129
Contrapondo-se às ciências humanas, e impregnan
do-as por inteiro, a psicanálise e a etnologia operam di
retamente no campo do inconsciente. A s ciências huma
nas também avançam para o inconsciente — a descober
ta da norma, da regra e dos sistemas, que não são dados
à consciência ingênua, mas apenas ao pensamento refle
xivo — mas de form a indireta, e num movimento regres
sivo. A psicanálise ataca diretamente o inconsciente, e
ao contrário das ciências humanas, que permanecem
sempre no campo do representável, procura atravessar a
representação, e fazer brotar, não as normas, as regras
e os sistemas, mas as condições de possibilidade das nor
mas, das regras e dos sistemas. Nessa região, se dese
nham as três figuras básicas do freudismo: a MorLe, con
dição de possibilidade da vida, com suas funções e suas
normas; o Desejo, condição de possibilidade do trabalho,
com seus conflitos e suas regras; e a Lei, condição de
possibilidade da linguagem, com suas significações e seus
sistemas. Essas figuras são as próprias form as da fini
tude humana, fundamento de todo saber sôbre o homem.
Ê porque a psicanálise funciona na região, situada nos
confins da representação, em que todo saber encontra seu
fundamento, que não pode ser considerada uma ciência
humana: é antes uma contra-ciência, porque ao mesmo
tempo funda e demistifica as demais, A etnologia é tam
bém uma contra-ciência. Surge na dimensão da história,
como um subproduto da ratio Ocidental, que permitiu às
sociedades européias entrar em contato com as outras
culturas. Como o psicanalista, o etnólogo não interroga
o homem, mas a área que torna possível um saber para
o homem. Assim como o psicanalista usa a relação de
transferência para aceder ao Desejo, à Morte e à Lei, o
etnólogo se instala na relação especial que a cultura eu
ropéia estabelece com as outras culturas para descobrir,
atrás das representações conscientes dos homens, as nor
mas, as regras e os sistemas que regem, de form a ina
cessível à consciência pré-reflexiva, as funções, conflitos
e significações que proliferem, em tôda a sua diversidade,
no mundo empírico. A o desvendar como numa cultura
primitiva se processam a normalização das funções bioló
gicas, a regulamentação dos conflitos e a sistematização
das significações, o etnólogo está reconstituindo o movi
mento que permitiu à episteme moderna criar o saber do
homem a partir de sua finitude. “O que transparece no
discurso do etnólogo e do psicanalista é o a priori histó
130
rico de tôdas as ciências do homem — as grandes cesu-
ras, 03 sulcos, as partilhas que, na episteme Ocidental,
desenharam o perfil do homem e o dispuseram para o
saber possível.” 25 Revelando em tôda a sua clareza os
mecanismos de formação do saber do homem, a psicaná
lise e a etnologia preparam ao mesmo tempo a sua con
testação mais radical: uma e outra prescindem do ho
mem, e mesmo o cancelam, porque o objeto dessas disci
plinas não é o homem, e sim os seus limites exteriores.
N o horizonte do pensamento contemporâneo, surge
uma figu ra nova, mas tão antiga quanto o mundo: a lin
guagem. N a Renascença a linguagem fazia parte da pro
sa do mundo, e precisava ser decifrada como condição
para a compreensão das coisas criadas. N o classicismo,
o discurso era o elemento neutro que tinha o poder de
significar representação segunda, que exprimia tôdas as
outras representações. N a episteme moderna, a lingua
gem transformou-se em objeto para o saber: de instru
mento todo-poderoso que servia de mediação entre a re
presentação e as coisas, a linguagem converteu-se em
simples segmento da realidade, dotado de espessura e his
toricidade própria, mas sem nenhum privilégio de disci
plina retora do conhecimento, como no século X V III. O
que se verifica hoje em dia é o reaparecimento da lin
guagem. Sob. a form a da lingüística, em primeiro lugar.
A lingüística está assumindo uma importância cada vez
m aior nas ciências humanas, e tem mesmo a pretensão
de unificá-las. N ã o se trata, como no século X IX , do im
perialismo de uma ciência particular que quer traduzir
para o seu vocabulário conhecimentos já adquiridos em
outros ramos do saber, como a tentativa de interpretar as
ciências humanas em têrmos de conceitos biológicos ou
econômicos. A lingüística vai além, e pretende estrutu
ra r os próprios conteúdos; não se limita a dar uma lei
tura lingüística dos fatos humanos, mas busca constituir
êsses fatos, pois na perspectiva de um deciframento lin
güístico as coisas só acedem à existência na medida em
que podem form ar os elementos de um sistema signifi-
cante. Graças à lingüística, o projeto de formalização
e matematização das ciências humanas pode ser pensado
de form a mais coerente. N ã o se trata mais de quantifi
car resultados, ou de inserir os comportamentos humanos
em probabilidades mensuráveis: trata-se de desprender
as estruturas próprias a cada domínio empírico, e dar
tratamento matemático a essas estruturas, o que repre
131
sentaria o princípio da unificação das ciências do homem,
numa linguagem form al que exclui o sujeito empírico.
M as a importância da linguagem cresce no outro extremo
da nossa cultura: a literatura. O objeto da literatura
moderna, de A rtaud a Roussel e aos surrealistas, é a
própria linguagem: a exploração até o ponto máximo
de tensão das possibilidades intrínsecas da linguagem,
como se esta constituísse um mundo próprio, sem refe
rentes externos. Com a ressurreição da linguagem, sen
timos que existe algo de nôvo em processo de gestação.
Tôda a episteme moderna surgiu com o desaparecimento
do Discurso, que separou as coisas das representações, e
exigiu o aparecimento do homem como elemento media
dor. Se agora a linguagem ressurge, não seria o sintoma
de uma nova configuração epistemológica, em que o ho
mem se torne desnecessário? N ão é preciso, então, acei
tar que com a presença do Discurso o homem vai regre
dir à inexistência a que o condenava a episteme clássica?
O homem compôs seu rosto com os fragmentos de uma
linguagem estilhaçada. A g o ra que essa linguagem se re
compõe, não podemos supor que êsse rosto tenderá a de
saparecer ?
Com o homicídio ontológico, Foucault conclui sua
gramática. O homicídio não é apenas uma técnica de pen
sar; é parte de uma configuração objetiva. A morte do
homem é o ponto terminal de uma Odisséia do Discurso.
Tudo se passa como se, num momento dado, o Discurso
tivesse secretado o homem, para seus próprios fins, e de
pois tivesse decidido suprimi-lo. A obsessão positivista
de eliminar qualquer teleologia parece levar, afinal, a
sua teleologia do Discurso. L es Mots et les Choses é o
Bildungsroman de um herói trágico, composto para ilus
trar a pedagogia do homicídio: terminada a jornada, o
protagonista encontra ao mesmo tempo a sabedoria e a
morte. Ou ainda (p ara mudar de m etáfora) uma Feno
menologia do Espírito com desfecho pessimista — no
fim do processo, não há a auto-reconciliação do Espírito,
mas a dissolução física do sujeito. Qual a verossimilhança
dessa viagem?
Poderíamos, para esboçar uma resposta, prosseguir
na analogia com Hegel. Como Hegel, diríamos, Foucault
não falsifica a realidade, mas a mistifica. Sua descrição
do nascimento e morte do homem não é falsa. Num certo
sentido é até verdadeira, como um negativo fotográfico
é verdadeiro. Trata-se de recuperar a imagem, que o ne
132
gativo ao mesmo tempo dissimula e desvenda. Foucault
descreveu realidades reflexas e derivadas. Caberia en
tão ao crítico (mantendo ainda o paralelo com H egel)
identificar as realidades primárias. E xtrair da Arqueo
logia o seu “núcleo racional” : não refutar a análise, mas
invertê-la. Deixando de lado, entretanto, essas analogias
suspeitas, poderíamos dizer a mesma coisa de outra for
m a: é preciso aplicar ao mesmo texto um código dife
rente. U s a r uma chave extradiscursiva para decifrar o
texto que Foucault leu em têrmos discursivos.
E ssa nova leitura precisa abranger os dois momen
tos da descrição de Foucault: o momento do aparecimen
to do homem e do quadrilátero antropológico, e o mo
mento da dissolução do homem e do quadrilátero antro
pológico.
A análise do primeiro momento 28 poderia começar
com o principal acontecimento extradiscursivo ocor
rido no início do século X IX , que foi o advento
do capitalismo industrial. A nova form a de produ
ção desarticulou tôdas as antigas relações sociais, e
produziu nos homens, colhidos por uma engrenagem que
parecia ter sua própria dinâmica, uma sensação de im
potência e incompreensão. Fonte real dos bens que cir
culam na economia, das instituições que regem a vida
social, dos sistemas teóricos destinados a pensar a rea
lidade, o homem sente-se, paradoxalmente, prisioneiro
dêsses bens, instituições e sistemas. Seu trabalho pesa sô
bre sua vida, sob a form a incompreensível do capital; as
instituições têm um pêso próprio, e parecem ter existido
desde sempre, com sua misteriosa capacidade coercitiva e
repressora; as criações culturais o confrontam com uma
linguagem reificada, cujo princípio de objetividade lhe
escapa. Em vez de se darem ao homem em sua transpa
rência, os sêres se apresentam como entidades hostis, opa
cas e alheias à atividade produtiva do sujeito. A s coisas
são indecifráveis e estáticas: o homem não pode nem
pensá-las, porque só se dão parcialmente à consciência,
nem modificá-las, porque são intemporais, ou sujeitas
a uma historicidade própria, inacessível à ação humana.
O processo econômico o esmaga, e sua verdade íntima se
esquiva à sua consciência; sua vida está prêsa a deter
minações alheias à sua vontade e impenetráveis a seu
conhecimento; o sistema lingüístico o obriga a pensar de
acôrdo com modelos, valores e estereótipos cuja legali
dade interna não pode nem ser compreendida nem modi
133
ficada. A s representações que o homem utiliza para pen
sar a realidade são sempre inadequadas: as coisas e as
representações se separam. O ser é mais rico que qual
quer representação, porque o sistema de sua inteligibili
dade se situa numa região inacessível à representação.
O discurso perde a propriedade de significar exaustiva
mente o real. Começa a desenhar-se o quadrilátero an
tropológico. Surge a figu ra da finitude: pulverizado por
um sistema econômico que aliena sua fôrça de trabalho,
por uma organização social que faz depender sua própria
existência biológica das leis de ferro do mercado, e por
um corpo de significações lingüísticas que se impõem im
periosamente à sua consciência, o homem é, na verdade,
um ser radicalmente finito. Nasce o jôgo paradoxal do
empírico e do transcendental: a tentativa de fundar um
saber rigoroso no homem empírico leva, de fato, como
diz Foucault, a contradições insolúveis, mas não necessa
riamente devido aos defeitos da metodologia antropoló
gica, e sim porque quase tôdas as tentativas fundadoras
partiram do homem que se oferece em sua form a ime
diata à consciência positivista, isto é, do homem tra b a
lhado por tôdas as alienações da economia, da vida e da
linguagem. A o elevar à categoria de homem em si um
homem que é meramente fruto de uma certa configura
ção histórica, o positivismo em tôdas as suas form as
construiu um saber ideológico, baseado numa noção es
tática da natureza humana, e repousando sôbre um fun
damento frágil. Form a-se a dialética do pensado e do
impensado: o homem alienado quer lutar contra sua alie
nação. Quer reduzir a fa ix a do inumano, quer absorver
a zona de sombra e de mistério. D aí as éticas da auten
ticidade e da desalienação, daí as políticas reformistas ou
revolucionárias. Algum as dessas éticas e políticas surgem
no próprio contexto da reificação e da falsa consciência,
e representam no máximo uma abertura parcial à ver
dade do sistema que aliena o homem. Em outros casos
o sistema é visto, lücidamente, como totalidade e como
história. Enfim, impõe-se uma reflexão sôbre a origem :
o homem alienado tem nostalgia de uma idade de ouro
pré-capitalista, onde o homem não era separado de seu
trabalho, da sociedade e da natureza; e aspira a um
reencontro com a origem, a uma utopia futura, habitada
por um homem finalmente reconciliado com o mundo e
com seus semelhantes. Essas utopias vão desde o pro-
fetismo de algumas filosofias da história até a visão da
134
história futura como uma possibilidade objetiva, de va
lor tendencial e não absoluto. Arm ado o quadrilátero
antropológico, criam-se as condições para o advento das
ciências humanas. Alienado pela necessidade biológica,
pelo determinismo da economia e pela inércia do sistema
cultural, o homem cria uma biologia que ao mesmo tem
po confirma a sua fragilidade e a anula, inserindo-a nu
ma necessidade mais vasta; cria uma ciência econômica
que confirma a sua submissão às leis do mercado e a
anula, transformando essas leis em fôrças naturais; e
cria uma filologia que mostra o homem sob o jugo de
uma legalidade lingüística inacessível à sua vontade, mas
que anula êsse jugo, no exato momento em que desvenda
as leis da historicidade lingüística. Em todos os casos, a
ciência surge como uma tentativa de explicar a alienação
humana, inserindo-a num sistema necessário, e simultâ-
neamente de superar, abstratamente, a alienação, pela
tomada de consciência (ilu sória) dessa necessidade. A s
ciências humanas (psicologia, sociologia, análise da lite
ratura e dos mitos) que se articulam sôbre essas positi
vidades estão marcadas pela mesma configuração episte-
mológica e sociológica, e respondem a motivações idên
ticas. Nessa fase, o pathos existencial da alienação con
tinua agudo, e a condição humana ainda é sentida em
sua precariedade. Ê lógico, portanto, que o saber do ho
mem enfatiza o lado problemático da existência bio-so-
cial: a função, o conflito e a significação são privilegia
dos em relação à norma, à regra e ao sistema.
Assim como o primeiro momento (o da gênese do
homem e do quadrilátero antropológico) pôde ser expli
cado pela categoria da alienação, o segundo momento
(o do desaparecimento do homem e do quadrilátero an
tropológico) pode ser explicado pelo conceito de socie
dade unidimensional, o que não é surpreendente, pois a
unidimensionalidade é a alienação radicalizada . 27
A principal característica do século X IX era a di
mensão da transcendência. E m face da realidade exis
tente, há a imagem de uma realidade possível. O homem
é consciente de sua finitude; sabe que existe uma zona
de sombra que precisa ser absorvida; tem nostalgia de
sua origem. Sua vida é dada sôbre o pano de fundo do
pensado e do imaginário; é preciso dar a palavra ao si
lêncio, ativar o que está inerte, atualizar o que é mera
mente virtual, transformar o mundo na linha de uma ra
cionalidade crescente. Com o desenvolvimento progres
135
sivo da economia, a dimensão da transcendência vai sen
do absorvida. A razão se implanta na cidade. A ordem
existente se identifica com a ordem ideal. A real e o
racional convergem. Desaparece a tensão entre a exis
tência e a essência, entre o empírico e o racional, entre
a verdade e a aparência. A sociedade se torna unidimen-
sional. A alienação muda de sentido: o homem não so
mente não se sabe alienado, como nem sequer se sente
alienado. A s coisas não são mais exteriores ao homem,
nem o ameaçam com uma objetividade que o cancela: o
homem se reconhece em sua T V e em seu automóvel. O
mundo se torna cordial e inteligível. A s coisas podem
abandonar sua interioridade, e reintegrar-se no espaço da
representação: o discurso, significante universal, pode re
presentar todo o real, e êste pode ser inteiramente ex
presso nas representações. O quadrilátero antropológico
vai sendo obliterado. A primeira vítima da sociedade
unidimensional é a noção de finitude: o homem não é
mais limitado pelas coisas, nem ameaçado por transcen-
dências incompreensíveis. Desaparece a contradição en
tre o empírico e o transcendental: o empírico é funda
mento de si mesmo; o próprio projeto de fundar o saber
torna-se inútil; a razão positivista triunfa completamen
te. A dialética do pensado e do impensado é dissolvida.
A razão unidimensional não admite a existência de uma
zona de sombra, já que a sociedade é a Utopia realizada,
em que a dimensão do não-dito ou do indizível é banida.
Enfim, desaparece a obsessão da Origem: o sociedade
unidimensional é a atualização da Origem, o reencontro
do homem com sua Idade de Ouro, que não mais precisa
desenhar-se no horizonte da história futura como uma
promessa inatingível. N um a sociedade sem origem, sem
impensado, autofundadora e liberta das limitações da
carência e da necessidade, a ação humana não é neces
sária. O homem pode recolher-se ao seu split levei e per
der-se na contemplação de sua geladeira. Torna-se su
pérfluo. O homicídio está consumado. N o campo do sa
ber, essa nova configuração se traduz no projeto de
repensar as ciências humanas. Nascidas como uma res
posta teórica ao desafio da alienação, as ciências huma
nas se tornam contestáveis quando desaparece a cons
ciência da alienação. O ponto de vista da norma, da
regra e do sistema passa a prevalecer sôbre o ponto de
vista da função, do conflito e da significação, pois numa
sociedade unidimensional a função só é inteligível na
136
perspectiva da norma que permita exercê-lá, o conflito
não existe enquanto problema teórico, e a significação só
recebe o seu sentido se integrada num sistema que des
vende as significações parciais. Paralelamente com o de
clínio das ciências humanas, ascendem as disciplinas que
pretendem descobrir sistemas e estruturas inteligíveis
atrás das representações conscientes do sujeito: a psica
nálise, a etnologia, a lingüística. A linguagem volta a
funcionar como disciplina retora, em tôrno da qual po
derá se unificar o saber do homem: como na episteme
clássica, o discurso representa exaustivamente as coisas,
e contém sua própria verdade, que é sempre coextensa
com a verdade do Ser. N um mundo sem mistério, não
existe mais resíduo, ou opacidade do real à representa
ção: a sociedade unidimensional está contida inteira no
discurso que a exprime. A linguagem, através dos mass
media, é o grande instrumento de unificação da cultura
unidimensional. N ad a mais natural que a lingüística se
converta no modêlo para a unificação das ciências hu
manas.
Em suma, para Foucault o homem tinha sido gera
do por um acontecimento discursivo — o divórcio entre
as coisas e as representações. A inversão da chave mos
traria que foi o homem, pelo contrário, que gerou êsse
acidente discursivo. D a mesma forma, Foucault afirm a
que um nôvo acontecimento discursivo, que exclui o ho
mem, está iminente; com igual facilidade, a leitura an
tropológica poderia demonstrar que essa nova configu
ração discursiva foi produzida pela praxis social. Num
caso, o homem gera a configuração que permite pensá-lo;
no outro, a configuração que permite excluí-lo. Assim,
é falso (admitindo-se a validade dessa ótica) que a mor
te do homem seja uma tendência objetiva no campo do
discurso. M as é certo que se estaria formando uma con
figuração extradiscursiva (prática) que autoriza uma
reflexão sôbre a morte do homem.
137
M ots et les Choses, e os exageros polêmicos da Archêo-
logie, podemos dizer que a metodologia da morte do ho
mem mostra amplamente a sua fecundidade na prática
descritiva do próprio Foucault.
O homicídio ontológico suscita o problema da vali
dade de uma análise que pretende demonstrar a gênese
e a dissolução do homem e das ciências humanas a partir
de uma descrição que se esgota no plano do discurso.
Seria necessário completar a análise com a introdução do
nível extradiscursivo. Como vimos, o próprio Foucault
esboça a teoria dessa análise em dois níveis. O “ saber”
no qual aflorou o tema do homem, e as formações discur
sivas que têm o homem por objeto, com seus conceitos,
objetos, modalidades enunciativas e estratégias temáti
cas, deveria, no futuro, ser correlacionado com as práti
cas (p ré ) não-discursivas, que determinaram essas regu-
laridades. U m a leitura em dois níveis preservaria, em
grande parte, as interações e sistematicidades discursi
vas isoladas por Foucault, evitando o terrorismo das to-
talizações prematuras, e a preguiça reducionista que se
limita a derivar, em bloco, um sistema teórico de uma
organização da praxis, sem mediações e sem respeitar a
especificidade dêsse sistema e de cada um dos seus com
ponentes. Êsse trabalho está por fazer; é evidente que a
interpretação extradiscursiva esboçada no capítulo an
terior tem um simples valor ilustrativo, e se destina a
propor um entre muitos outros caminhos possíveis.
Resta saber se essa dupla leitura poderia legitimar
o discurso que a funda, isto é, se teria a capacidade de
definir o estatuto epistemológico do discurso que anun
cia a morte do homem. Ciência ou ideologia? N o fim
dêste ensaio, a questão fica em aberto. Válido enquanto
método, útil como instrumento polêmico, o homicídio per
manece duvidoso no plano ontológico. A mortalidade do
homem não é certa; mas o discurso que proclama a sua
extinção, se ideológico, é seguramente mortal. Nesse ca
so, esgotada a sua utilidade, o homicida, e não o homem,
será varrido “como na orla do mar um rosto de areia.” 28
138
R E F E R Ê N C IA S
1 — Vide, por exemplo, na lingüística, além de F. de S uuhhuii',
C o u rs de L in g u istiq u e G énérale (Paris: Payot, 1988), N
Chomsky, S yncta tic S tru ctu res (La Haye: Mouton, 1867) n
E. Benveniste (Paris: Gallimard, 1966); na etnologia, Clamle
Lévi-Strauss, A n th ro p o lo g ie S tructurale (Paris: Plon, 195H),
na filosofia, L , A lth u sse r, Pour Marx (Paris: Maspero, 196(1);
na psicanálise, J. Lacan, E c r its (Paris: Ed. du Seuil, 190(1)
2 — Cf. J. P. Sartre: "11 s’agit de constituer une idéologie nou
velle, le dernier barrage que la bouigeoisie puisse encum
dresser contre Marx", em L ’A r c , n» 30, p. 88; H. Lefebvro,
Claude L é v i-S tr a u s s ou le N o u v e l E lea tism e, em ‘‘L’Honmii'
et la Société", n* 1 e 2; O. R. d’Allones, L e s M o t s contre Um
C hoses, em "Raison Présente", n» 2; e R. Garaudy, L a M o r t
de V H o m m e , em "La Pensée”, n“ 135.
3 — Tese defendida brilhantemente por Lucien Sebag, em M a r -
x ism e et S tructuralism e, (Paris: Payot, 1964).
4 — Michel Foucault, H is to ire de la F o lie d V A g e Classique (Pa
ris: Plon, 1961).
5 — Ibidem, p. 27.
6 — M. Foucault, Na issa n ce de la Clinique (Paris: P .U .F ., 1963).
7 — Ibidem, p. 7.
8 — Ibidem, p. 173-4.
9 — M. Foucault L e s M o t s et les Choses (Paris: Gallimard,
1966).
10 — Ibidem, p. 274.
11 — M. Foucault, L ’A rch é o lo g ie du S avoir (Paris: Gallimard,
1969)
12 — M. Foucault, L a N a issa nce de la C linique, p. 30.
13 — Ibidem, p. 37.
14 — Foucault, L ’A rch é o lo g ie, p. 22.
15 — Ibidem, p. 65.
16 — Ibidem, p. 65.
17 — Ibidem, p. 83-84.
18 — Ibidem, p. 92-93.
19 — Sigmund Freud, In trodu ction â la Psych a na lise (Paris: Pay.it,
1965) trad. francesa de S. Jankelevitch, p. 266.
20 — L ’A rch é o lo g ie, p. 101.
21 — K. Marx, Capital (New York: TheModern Library) trad.
inglesa por S. Moore e E, Avelling, p. 68-69.
22 — Cf. entrevista de M. Foucault (nãocorrigida), noste livro.
23 —. L e s M o t s et les Choses, p. 339.
24 — Ibidem, p. 354.
25 — Ibidem, p. 390.
26 — Cf. G. Lukacs, H isto ire et C onscience de Classe (Paris: Les
Editions de Minuit, 1960) trad. francesa de Kostas Axelos.
27 — Cf. Herbert Marcuse, O n e-D im en sio n a l M a n (Boston: Boa-
con Press, 1968); vide também artigo do autor, D e E ro s "
Sísifo, em "Tempo Brasileiro”, n° 17-18.
28 — M. Foucault, L e s M o t s et les C hoses, p. 398.
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