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comumcaçao

Foucault/Rouanet/Merquior/Escobar/Lecourt
M ic h e l F O U C A U L T
S e rg io P a u lo R O U A N E T
José G u ilh e rm e M E R Q U IO R
D o m in iq u e L E C O U R T
C arlo s H e n riq u e de E S C O B A R

O HOMEM E O DISCURSO
(A Arqueologia de Michel Foucault)
2a edição

T empo Brasileiro_____
Rio de Janeiro -- RJ - 1996
<'< >Ml I NIC.AÇAí)

Capa:
P edro P a u l o M a c h a d o

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Rio de Janeiro -- RJ -- Brasil
ÍN D IC E GERAL

1. Apresentação ....................................................... 9
2. E N T R E V IS T A COM M IC H E L F O U C A U L T , por
Sergio P. Rouanet e J. G. M e r q u io r ................. 17
3. D O M IN IQ U E L E C O U R T
A Arqueologia e o Saber .................................... 43

4. C A R L O S H E N R IQ U E D E E S C O B A R
Discurso Científico e Discurso Ideológico ........ 67

5. SE R G IO P A U L O R O U A N E T
A Gramática do Homicídio ................................ 91

7
APRESENTAÇÃO

Com êste livro, Tempo Brasileiro apresenta uma das


figuras mais originais do pensamento europeu contempo­
râneo. N ã o queremos dizer com isto que Foucault seja des­
conhecido no Brasil, pois foi professor da Universidade de
São Paulo e um dos seus livros — Maladie Mentale et P sy -
chologie — foi traduzido para o português e publicado exa­
tamente por nossa editora. M as não existe, até agora, um
conjunto sistemático de textos que descreva a sua obra
e procure situá-la nas grandes correntes do pensamento
moderno. Ê êste o objetivo da presente coletânea, que
pretende ao mesmo tempo familiarizar o leitor com as
grandes linhas da obra de Foucault e fornecer os ele­
mentos para uma avaliação crítica.

A obra de Foucault é uma reflexão sôbre o discurso.


Discursos parcelares, como o discurso da loucura e da
medicina; discursos entrecruzados, múltiplos, como o dis­
curso das epistemes; e um discurso sôbre o discurso, ou
a arqueologia.

Os discursos parcelares são descrições especializadas


de certas faixas do saber. N ã o se trata da história da
psiquiatria, mas da descrição diacrônica do espaço epis­
temológico dentro do qual o saber da loucura evoluiu da
fase da indiferenciação, característica da Renascença, pa­
ra a fase da grande reclusão, do período clássico, ou para
a fase asilar, no seculo X V I I I ; nem da história da medi-

s
cina, mas da descrição faseológica de totalidades cultu­
exceção. O homem começou a ser pensado como objeto
rais que se sucedem no tempo, e ao longo de cujo eixo a
para o saber no momento em que o espaço plano do pe­
medicina elassifieatória transita para a medicina clínica ríodo clássico, regido pela categoria da representação,
e esta para a medicina anátomo-patológica. Cada etapa
passou a ser erodido pela historicidade, categoria central
do saber da loucura e do saber médico se inscreve numa
da episteme moderna: o homem surgiu na brecha epis-
configuração epocal, abrangendo um conjunto de siste-
temológica que se form ou com o fim da apresentação e
maticidades discursivas e constelações extradiscursivas,
o advento da história. Em outras palavras: o homem é
que se intercomunicam livremente. 0 discurso é poroso
um acidente na trajetória do Discurso, e poderá desapa­
à praxis, e a praxis é modificada pelo discurso. O saber
recer quando se modificar a disposição epistemológica que
psiquiátrico de Pinei, por exemplo, não pode ser disso­
o engendrou. N ão é outro o sentido da fórmula da mor­
ciado das circunstâncias sociais e políticas do período re ­
te do homem” , pedra de escândalo da consciência antro­
volucionário; e a nova form a de percepção característica
pológica vulgar. Essa fase da obra de Foucault pode ser
da medicina clínica é homóloga do espaço social livre
caracterizada como a da intransitividade consciente.
com que sonhava a Revolução francesa. Podemos carac­
Enfim, o discurso da Arqueologia. Ê uma reflexão
terizar essa fase como a da transitividade discursiva.
metodológica sôbre as práticas descritivas do próprio
Já o discurso epistêmico, sistematizado em Les Mots Foucault — tanto a transitiva, como na história da lou­
et Les Choses, é geralmente intransitivo. De nôvo, F ou­ cura e da medicina, como a intransitiva, característica
cault estuda configurações epocais, mas dessa vez de fo r­ de L es Mots et les Choses. É o momento da codificação.
ma ao mesmo tempo mais pletórica e mais ascética: seu Mas também o da síntese. Nesse livro, Foucault unifica
escopo é mais amplo, porque não se limita a estudar uma num grande Organon programático a metodologia da
modalidade específica de saber, mas uma rêde de discur­ transitividade e a metodologia da análise discursiva pu­
sos interligados; e sua metodologia é mais severa, por­ ra. Num certo sentido, é uma resposta aos críticos, es­
que exclui, deliberadamente, as práticas extradiscursi­ pecialmente marxistas, que o acusavam de praticar uma
vas. Mais uma vez, estamos diante de uma faseologia ter- historiografia fantasmagórica, em que o discurso era su­
nária, em que a Renascença é sucedida pela época clás­ jeito e objeto de si mesmo. Mais profundamente, é um
sica e esta pela modernidade. M as o leitor procuraria em desenvolvimento lógico de sua obra anterior. Reapare­
vão, dentro de cada fase, interações entre o discurso da cem, em sua tranquilizadora materialidade, as classes e
economia política e as novas form as de organização de as instituições, como na fase transitiva, mas “despresen-
trabalho introduzidas pela revolução tecnológica, ou en­ tificados” , reduzidos ao pré-discursivo, e portanto fun­
tre o advento das ciências humanas e o advento do capi­ cionando ainda no nível do discursivo. Estamos num uni­
talismo. Tudo se passa no nível do discurso. Os obje­ verso ao mesmo tempo fam iliar — as coisas existem
tos, conceitos e escolhas temáticas das diversas discipli­ e desconhecido — não são as mesmas coisas de que fala ­
nas são dados no espaço epistêmico formado pela inte­ mos no discurso cotidiano. De qualquer forma, as coisas
ração de sistematicidades discursivas. O entrelaçamento e as palavras estão presentes; com mais propriedade que
de disciplinas como a gramática, a história natural e a no livro anterior, a Archéologie poderia denominar-se Les
teoria das riquezas constitui uma espécie de solo epistê­ M ots et les Choses.
mico no qual podem ou não aflorar determinados temas O discurso é, portanto, a matéria de Foucault. D is­
e objetos. A s possibilidades ou impossibilidades epistê- curso movendo-se livremente numa configuração total,
micas a viabilidade ou não de temas como o evolucio- como na história da loucura e da medicina; discurso im­
nismo ou a lei da renda da terra — são condicionadas perialista e excludente, como em Les Mots et les Chosc-S;
por tendências objetivas no campo do discurso, e não e discurso controlado, co-existindo com o não (pré-dis­
por totalidades sócio-culturais nas quais as práticas dis­ cursivo no interior de um corpus normativo, como na
cursivas alternam com as práticas extradiscursivas, ou Arqueologia.
as práticas investidas em instituições, como na história da Essa presença do discurso no coração da obra <lr
loucura e da clínica. O tema do homem não constitui uma Foucault pode e deve ser interpretada em têrmos da pi o-
10
blomática interna dessa obra. E m têrmos propriamente
científicos. B o que pretendem os textos incluídos nesta
antologia. M as êsse exame interno não é incompatível
com um exame do discurso de Foucault a partir de seus
limites exteriores. Investigando a zona limítrofe em que
o discursivo em Foucault se articula com o não-discursi-
vo. Seguindo, de certa forma, o método do próprio Fou­
cault em suas primeiras reflexões sôbre a medicina e a
loucura, num zigue-zague livre entre as formações dis­
cursivas e as não-discursivas.

Dêsse ponto de vista, podemos dizer que o funciona­


mento do discurso na obra de Foucault é em suas gran­
des linhas homólogo ao seu funcionamento na sociedade
industrial moderna. Êsse funcionamento comporta dois
aspectos, superficialmente contraditórios mas na verdade
solidários: a onipotência do discurso, e a sua fragilidade.

Onipotência do discurso: é talvez a dimensão essen­


cial da modernidade. Todos os críticos de nossa época,
marxistas ou liberais, vêem na onipresença das estruturas
discursivas a característica central do mundo contempo­
râneo. Presença audio-visual do discurso na imprensa fa ­
lada e escrita; presença do discurso na propaganda polí­
tica; presença do discurso nos textos e imagens publici­
tárias. Discurso em vários níveis. N o nível do factual,
ou supostamente factual; no nível da mentira consciente;
no nível da produção mitopaica subliminar. Como o dis­
curso dos rapsodos, o discurso dos mass media é um ir­
resistível veiculador de mitos. Discurso ideológico,'en­
fim, no nível do factual: a verdade funcionando como
ideologia, o discurso verídico que aliena o seu destinatá­
rio na exata medida em que é verídico. A ideologia que
pode dar-se ao luxo de aparecer sob a máscara da ver­
dade: a mentira que não precisa mais mentir. Nesse uni­
verso, o discurso funciona como um sistema abrangente.
U m a espécie de pesadelo saussuriano em que a “língua”
— com suas leis e suas normatividades co ator as — ti­
vesse extravasado de seu domínio específico de validade
para ocupar a totalidade do espaço social É o universo
de Foucault. Nesse sentido, êsse sutil modelador de es­
truturas epistêmicas nada mais faz que descrever reali­
dades cotidianas visíveis a ôlho nu. Foucault descreve
o que vê quando substitui o sujeito por um somatório das
posições gnoseológicas possíveis do sujeito; quando dis­
solve os conceitos nas regras para a formação de concei­

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tos; e quando põe de lado as práticas humanas em sua
descrição do mecanismo de apropriação temática de de­
terminados discursos, enxergando nesse mecanismo um
conjunto de normas inerentes ao próprio discurso. F ou­
cault não inventa um mundo sem sujeitos: descreve, rea-
listicamente, um mundo em que o sujeito já foi, ou está
sendo, submergido pelo discurso. Seria ingênuo ver nessa
expulsão do homem e da vida em benefício de um discur­
so antropofágico uma ideologia idealista, segundo os ca­
coetes mentais de um marxismo preguiçoso. Quando a
ideologia é co-extensa com o real, descrever o real já é
expor a ideologia. O desmascaramento, em Foucault, não
é praticado a partir de um lugar epistemológico privile­
giado, livre do contágio das estruturas discursivas domi­
nantes, mas pela inserção visceral nessas estruturas: des-
crevê-las já é começar a roê-las por dentro. Nesse sen­
tido, a denúncia do antropologismo tradicional é um ges­
to político. Porque êsse antropologismo, fundado direta
ou indiretamente no idealismo transcendental do sujeito,
e confundido ética com ciência, humanismo com saber, é
radicalmente incompetente para pensar a modernidade.
Em Les M ots et les Choses} Foucault diz que só com a
destruição do quadrilátero antropológico o homem pode­
rá liberar um espaço mental em que a reflexão se torne
de nôvo possível. Essa form ulação é talvez extremada;
mas é certo que sem uma distinção nítida entre o huma­
nismo e a ciência do homem, que relegue ao bas-fond
do espírito o antropologismo epigônico de nosso tempo,
não será possível refletir validamente sôbre o mundo nem
fo rja r os instrumentos para sua contestação.
A essa ubiquidade do discurso no mundo contempo­
râneo — e em Foucault — podemos opor uma inexplicá­
vel vulnerabilidade do discurso. O discurso é aquilo que
domina o homem com uma normatividade despótica; mas
é também aquilo que deve ser excluído ou reduzido ao si­
lêncio. Ambivalência análoga em seu mecanismo à am­
bivalência afetiva que Freud identifica na relação com a
autoridade paterna e Frázer na relação do primitivo com
o rei: misto de reverência e antagonismo, de submissão
e revolta, de amor e ódio. O discurso é ao mesmo tem­
po soberano e prisioneiro. Aquilo ao qual o homem cede,
que o conduz em sua superfície translúcida, que age e
pensa por êle, que dita os enunciados necessários e au­
toriza os enunciados possíveis. M as também a exterio-
ridade selvagem que precisa ser dominada por sistema

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(le interditos e domesticada por fórmulas de legitima­
ção, a fim de conjurar sua imprevisibilidade e fixá-la
numa ordem. Êsse segundo aspecto do discurso — sua
vulnerabilidade — é tão característico do mundo moder­
no quanto o primeiro. A modernidade é atravessada de
ponta a ponta por estruturas discursivas — mas não por
qualquer discurso. Nesse universo aparentemente domi­
nado pelo discurso, não é possível fala r de qualquer coi­
sa, nem atribuir a qualquer um o terrível poder de enun­
ciar. É um mundo dominado por um duplo interdito:
quanto ao objeto e quanto ao sujeito do enunciado.
A obra de Foucault reflete êsse sistema de interdi­
ções. A antinomia mais fundamental é a que opõe o dis­
curso da loucura ao discurso da razão. Essa oposição,
relativamente fluída na Renascença, surge com nitidez
no período clássico e adquire contornos definitivos no
século X IX . D e um lado, existe o discurso da Ordem,
definida em têrmos econômicos, sociais, políticos, morais;
do outro, o discurso da Desordem. Desordem que no sé­
culo X V II abrangia não somente a loucura como tôdas
as modalidades de comportamento anti-social. A loucura
era a marginalia da razão clássica. A razão se definindo
no momento em que define os seus limites exteriores.
Com o mesmo gesto de partilha com que separa o dis­
curso normal e o psicopatológico, a razão clássica dese­
nhava o seu próprio perfil, correlativa do perfil do Ou­
tro. Os monstros da Desordem são produzidos não pelo
sono da Razão, como Goya imaginava, mas por sua im­
placável vigilância e sua produtividade metódica. É no
momento em que produz sua teratologia que a razão
produz sua normalidade. O reino da ordem é instaurado
por um gesto ao mesmo tempo inaugural e de degrêdo.
É na descrição dêsse duplo movimento que Foucault
captura a modernidade em uma de suas dimensões mais
trágicas. O gesto instaurador é sempre solidário de um
gesto de segregação. Em têrmos sociais mais amplos,
talvez essa dicotomia sempre tenha existido. Cada dis­
curso tem a sua patologia, que é o discurso periférico,
banido pelo discurso hegemônico. M as é na sociedade
moderna, sobretudo em sua variedade tecnocrática, que o
fenômeno se verifica de forma mais agônica. A razão tec-
noerática só pode funcionar expulsando para os confins
da Ordem os discursos que não podem ser assimilados
pela racionalidade vigente. O paradoxo da dinâmica tec­
nocrática é que ela se define pelos discursos alternativos,

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que, no entanto, precisam ser expulsos. Êsses discursos
vão sendo pouco a pouco silenciados, até que o dis­
curso tecnoerático possa ser enunciado sozinho. Ao
contrário da natureza clássica, a tecnocracia é movida
pela fames vacui. Ê um discurso necrófilo, que só pode
prosperar num universo exangue. Num primeiro momen­
to, a razão tecnocrática limita-se a degredar para o lim­
bo do discurso a sua demonologia: os discursos reivindi-
catórios, que interferem com a racionalidade das deci­
sões econômicas; os discursos civis, que interferem com
a racionalidade das decisões militares; os discursos parti­
dários, que interferem com a racionalidade do modêlo
político. Com o tempo, êsses demônios vão desaparecen­
do: a ratio tecnocrática se implanta sozinha na polis. É
o triunfo do discurso da Razão. E a mudez — quem sabe
provisória — do discurso da loucura.

Ê nesse sentido — enquanto reflexo da supremacia


do discurso, e índice da fragilidade de certos discursos
diante da agressividade das práticas extradiscursivas in­
vestidas em discursos antagônicos — que a obra de Fou­
cault é plenamente moderna. O leitor tirará suas pró­
prias conclusões quanto à novidade da contribuição de
Foucault para a renovação da reflexão sôbre o homem.
O material contido nesta coletânea é suficiente para aju­
dá-lo nessa tarefa. U m a coisa, porém, é certa: essa obra
é plenamente representativa de nosso tempo. O que nos
leva, em última análise, a uma conclusão otimista. Se a
mobilidade é a lei das epistemes, não há configurações
teóricas ou práticas absolutamente petrificadas. A der­
rota da loucura não precisa ser definitiva. A Narren-
shiff — nave dos doidos — está silenciosa, mas continua
navegando. U m dia, talvez os monstros de Bosch ressur-
jam. Os guizos de Yorick ressoarão novamente, para
ensinamento dos reis e dos povos. E a loucura reassu­
mirá o seu papel pedagógico de castigar o desregramen-
to, transformando em animais de um bestiário irônico os
que tentaram perverter a essência do homem.

Êste volume foi preparado por um dos mais compe­


tentes ensaístas do nôvo Brasil: Sérgio Paulo Rouanet.
A êle, Tempo Brasileiro agradece mais esta valiosa cola­
boração.

tb

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Entrevista com Michel Foucault
P o r S er gio P aulo R o u a n e t
e José G u ilh e r m e M e r q u i o r

S.P.R. — Sua obra comporta, essencialmente, dois


momentos: um momento empirico-des-
critivo (Naissance de la Clinique, H is­
toire de la Folie, Les M ots et les Choses)
e um momento de reflcocão metodológica
( L ’Archéologie du Savoir). Depois do
trabalho de codificação e sistematização
da Archéologie, pretende voltar à descri­
ção de zonas especializadas do saber ?

K O U C A U L T — Sim. Pretendo agora alternar as pesqui­


sas descritivas com as análises de tipo
teórico. Podemos dizer que para mim a
Archéologie não era nem completamen­
te uma teoria, nem completamente uma
metodologia. Talvez seja êste o defeito
do livro; mas eu não podia deixar de es­
crevê-lo. N ão é uma teoria na medida,
por exemplo, em que eu não sistemati­
zei as relações entre as formações dis­
cursivas e as formações sociais e eco­
nômicas, cuja importância foi estabele­
cida pelo marxismo de uma form a incon­
testável. Essas relações foram deixadas
na sombra. Seria preciso elaborar tais
relações, para construir uma teoria.
Além disso, deixei de lado, na Archéo­
logie, os problemas puramente metodo­
lógicos. Isto é : como trabalhar com
êsses instrumentos? É possível fazer a
análise dessas formações discursivas? A

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semântica tem alguma utilidade? A s
análises quantitativas, como as pratica­
das pelos historiadores, servem para al­
guma coisa? Podemos então perguntar
o que é a Archéologie, se não é nem uma
teoria nem uma metodologia. Minha
resposta é que é alguma coisa como a
designação de um objeto: uma tentati­
va de identificar o nível no qual pre­
cisava situar-me para fazer surgir êsses
objetos que eu tinha manipulado duran­
te muito tempo sem saber sequer que
êles existiam, e portanto sem poder no-
meá-los. A o escrever a Histoire de la
Folie ou a Naissance de la Clinique, eu
julgava, no fundo, estar fazendo a his­
tória das ciências. Ciências imperfeitas,
como a psicologia, ciências flutuantes,
como as ciências médicas ou químicas,
mas ainda assim história das ciências.
Pensava que as particularidades que en­
contrava estavam no próprio material
estudado, e não na especificidade do meu
ponto de vista. Ora, em L es Mots et les
Choses compreendi que independente­
mente da história tradicional das ciên­
cias, um outro método era possível, que
era uma certa maneira de considerar não
tanto o conteúdo da ciência como a sua
própria existência: uma certa maneira
de interrogar os fatos, que me fêz per­
ceber que numa cultura como a do Oci­
dente a prática científica tem uma
emergência histórica, comporta uma
existência e um desenvolvimento histó­
rico, e seguiu um certo número de
linhas de transformação independente­
mente, até certo ponto, de seu con­
teúdo. E ra preciso, deixando de la-

Q texto foi submetido a Foucault, que não pôde,


entretanto, corrigi-lo. Foucault não tem, por-
tanto> nenhuma responsabilidade por seu con­
teúdo,
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do o problema do conteúdo e da organi­
zação form al da ciência, pesquisar as ra ­
zões pelas quais a ciência existiu ou uma
determinada ciência começou, num mo­
mento dado, a existir e assumir um cer­
to número de funções em nossa socieda­
de. Foi êsse ponto de vista que tentei
definir na Archéologie du Savoir. T ra ­
tava-se, em suma, de definir o nível par­
ticular ao qual o analista deve colocar-
-se para fazer aparecer a existência do
discurso científico e seu funcionamento
na sociedade.

J.G.M. Podemos então dizer que se fruta da


análise de Les M ots et les Choses, mas
a nível reflexivo?
K O U C A U L T — Exatamente. Digamos que na Histoire
de la Folie e na Naissance de la Clinique
eu ainda era cego para o que fazia. Em
Les Mots et les Choses, um ôlho estava
aberto e o outro, fechado: donde o cará­
ter um pouco trôpego do livro, num cer­
to sentido teórico demais, e em outro
sentido insuficientemente teórico. E n ­
fim, na Archéologie, tentei precisar o
lugar exato de onde eu falava.

S.P.R. — - Isto explica sem dúvida algumas das di­


ferenças mais sensíveis entre o método
seguido em La Naissance de la Clinique
e U H istoire de la Folie, por um lado, e
Les M ots et les Choses, por outro lado,
e também algumas particularidades da
Archéologie. N o s dois primeiros livros,
o discurso é bastante permeável às prá­
ticas sociais ( extmdiscursivas) que
ocupam neles um lugar muito importan­
te; em L es M ots et les Choses, essas
práticas desaparecera quase completa­
mente, para renascer na Archéologie,
sob um modo reflexivo, mas redefinidas
como práticas pré-discursivas. podemos
portanto isolarf de sua trajetória até
agora, três vias possíveis: ou uma livre

19
circulação do discurso às práticas so­
ciais, e reciprocamente, sem nenhum a
priori metodológico muito rígido; ou a
colocação entre parênteses dessas práti­
cas, para concentrar a descrição no pl^‘
no exclusivo do discurso; ou enfim a in­
corporação dessas práticas à análise, se­
gundo um método rigoroso, mas udes-
presentificadas” e reduzidas ao pré-dis-
cursivo, e portanto funcionando ainda
no nível do discurso. Seus trabalhos fu~
turos seguirão sem dúvida êsse último
caminho. M as nesse caso, como articu­
lar os dois planos — o discursivo e o ex-
tradiscursivo — mesmo se êste último
é apresentado como pré-discursivo?

F O U C A U L T — Alegro-me com essa pergunta. Ê em tor­


no dela, com efeito, que se cristalizam as
principais críticas e objeções que foram
feitas ao meu trabalho. N a Histoire de
la Folie e em La Naissance de la Clini­
que eu estava diante de um material
muito singular. Tratava-se de discursos
científicos cuja organização, aparelho
teórico, campo conceituai e sistematici-
dade interna eram bastante fracos. M ui­
to fracos mesmo, no caso da psicopatolo-
gia, que nos séculos X V II e X V I I I era
constituída por um certo número de no­
ções pouco elaboradas e que mesmo no
século X IX só foram elaboradas de fo r­
ma indireta e sôbre o modêlo da medicina
propriamente dita. N ã o se pode dizer
que o discurso psicopatológico europeu
até Freud tenha comportado um nível de
cientificidade muito elevado. Em com­
pensação, todos os contextos institucio­
nais, sociais e econômicos dêsse discur­
so eram importantes. Ê evidente que a
maneira de internar os loucos, de diag­
nosticá-los, de medicá-los, de excluí-los
da sociedade ou incluí-los num local de
internamento, era tributário de estrutu­
ras sociais, de condições econômicas,

20
tais como o desemprego, as necessidades
de mão-de-obra, etc. N o fundo, era um
pouco tudo isto que tinha me seduzido
no tema. Os esforços feitos por certos
historiadores da ciência, de inspiração
marxista, para localigar a gênese social
da geometria ou do cálculo das probabi­
lidades no século X V II, tinham me im­
pressionado muito. E ra um trabalho in­
grato; os materiais eram muito difíceis.
É muito difícil empreender a análise das
relações entre o saber e a sociedade a
partir dêsse gênero de problemas. Em
compensação, existe um complexo insti­
tucional considerável, e bem evidente, no
caso de um discurso com pretensões ci­
entíficas, como o da psicopatologia. E ra
tentador analisar êsse discurso, e foi o
que tentei fazer. Prossegui, em seguida,
as minhas pesquisas no campo da me­
dicina em geral, achando que tinha es­
colhido um exemplo fácil demais no
campo da psicopatologia, cujo aparelho
científico era demasiado fraco. Tentei,
a propósito do nascimento da anátomo
e fisiopatologia, que são, afina), ciências
verdadeiras, identificar o sistema insti­
tucional, e o conjunto das práticas eco­
nômicas e sociais, que tornaram possí­
vel, numa sociedade como a nossa, uma
medicina que é, apesar de tudo, e quais­
quer que sejam as ressalvas possíveis,
uma medicina científica. Acrescentarei,
sem qualquer polêmica, que nenhuma
das críticas marxistas feitas a Les Mots
et les Choses por seu caráter pretensa-
mente anti-histórico, mencionaram se­
quer as tentativas que eu havia feito a
propósito da psicopatologia ou da medi­
cina. Les M ots et les Choses responde a
dois problemas particulares que se apre­
sentaram a partir da problemática sus­
citada pela Naissance de la Clinique. O
primeiro é o seguinte: podemos observar,
em práticas científicas perfeitamente

21
estranhas uma à outra, e sem qualquer
comunicação direta, transformações que
se produzem ao mesmo tempo, segundo
a mesma form a geral, no mesmo senti­
do. É um problema muito curioso. Em
seu último livro, consagrado à história
da genética, François Jacob assinalou
um fenômeno dêsse gênero: o apareci­
mento, no meio do século X IX , de duas
teorias, uma biológica e outra física, que
recorrem em geral ao mesmo tipo de or­
ganização e sistematicidade. E ram as
teorias de Darwin e Bolzmann. Darwin
foi o primeiro a tratar os sêres vivos ao
nível da população, e não mais ao nível
da individualidade; o Bolzmann começou
a tratar as partículas físicas não mais
como individualidades, como ao nível do
fenômeno população, isto é, como séries
de eventualidades estatisticamente men­
suráveis. Ora, entre D arw in e Bolz­
mann, é evidente que não havia nenhu­
ma relação direta: os dois ignoravam a
existência um do outro. A liás essa re ­
lação, hoje evidente, e que constitui
uma das grandes encruzilhadas da ciên­
cia do século X IX , não podia realmente
ser percebida pelos contemporâneos.
Como é possível que dois acontecimen­
tos, remotos na ordem da consciência,
tenham podido produzir-se simultanea­
mente e aparecer tão próximos, para
nós, na ordem das configurações episte­
mológicas em geral? Eu já tinha encon­
trado precisamente êsse problema na
medicina clínica. Por exemplo, é quase
no mesmo momento e em condições mui­
to parecidas que aparecem a química,
com Lavoisier, e a anátomo-fisiologia,
e no entanto é somente mais tarde, por
volta de 1820, que as duas ciências se
encontrarão. Ora, elas nasceram mais ou
menos na mesma época e constituíram,
cada uma em seu domínio, revoluções
mais ou menos análogas. Eis aí o pri­
r

meiro problema — o das simultaneida-


des epistemológicas. O segundo proble­
ma foi o seguinte: pareceu-me que as
condições econômicas e sociais que ser­
vem de contexto ao aparecimento de
uma ciência, ao seu desenvolvimento e ao
seu funcionamento, não se traduzem na
própria ciência sob a form a de discurso
científico, como um desejo, uma neces­
sidade ou um impulso podem se tradu­
zir no discurso de um indivíduo ou em
seu comportamento. Os conceitos cien­
tíficos não exprimem as condições eco­
nômicas nos quais surgiram. É eviden­
te, por exemplo, que a noção de tecido
ou a noção de lesão orgânica nada têm
a ver — se o problema se coloca em têr-
mos de expressão — com a situação do
desemprêgo na França em fins do sécu­
lo X V III. E no entanto é igualmente
evidente que foram essas condições eco­
nômicas, como o desemprêgo, que susci­
taram o aparecimento de um certo tipo
de hospitalização, a qual permitiu um
certo número de observações, que a seu
turno provocaram um certo número de
hipóteses, e finalmente surgiu a idéia da
lesão do tecido, fundamental na história
da clínica. P o r conseguinte, o vínculo
entre as formações econômicas e sociais
pré-discursivas e o que aparece no inte­
rior das formações discursivas é muito
mais complexo que o da expressão pura
e simples, em geral o único aceito pela
maioria dos historiadores marxistas.
Em que, por exemplo, a teoria evolucio-
nista exprime êste ou aquêle interêsse da
burguesia, ou esta ou aquela esperança
da Europa? Mas se o vínculo existen­
te entre as formações não-discursivas e
o conteúdo das formações discursivas
não é do tipo “expressivo” , que vínculo
é êsse? O que se passa entre os dois ní­
veis — entre aquilo do que se fala, sua
base, se quiserem — e êsse estado ter­

23
minai que constitui o discurso científico?
Pareceu-me que êsse vínculo deveria ser
procurado ao nível da constituição, para
uma ciência que nasce, os seus objetos
possíveis. O que torna possível uma ci­
ência, nas formações pré-discursivas, é
a emergência de um certo número de ob­
jetos que poderão tom ar-se objetos de
ciência; é a maneira pela qual o sujeito
do discurso científico se situa; é a mo­
dalidade de formação dos conceitos. Em
suma, são tôdas essas regras, definindo
os objetos possíveis, as posições do su­
jeito em relação aos objetos, e a manei­
ra de form ar os conceitos, que nascem
das formações pré-discursivas e são de­
terminadas por elas. Ê somente a partir
dessas regras que se poderá chegar ao
estado terminal do discurso, que não
exprime, portanto, essas condições, ainda
que estas o determinem. Em Les Mots
et les■Choses tentei olhar de mais perto
êsses dois problemas. Em primeiro lu­
gar, o das simultaneidades epistemológi­
cas. Tomei três domínios, muito diferen­
tes, e entre os quais não houve nunca
uma comunicação direta: a gramática,
a história natural e a economia políti­
ca. E tive a impressão de que êsses três
domínios tinham sofrido em dois mo­
mentos precisos -— no meio do século
X V II e no meio do século X V I I I — um
conjunto de transformações semelhantes.
Tentei identificar essas transformações.
A inda não resolvi o problema de locali­
zar exatamente a raiz dessas transfor­
mações. M as estou certo de uma coisa:
essas transformações existem, e a tenta­
tiva de descobrir sua origem não é qui-
mérica. Citei há pouco o livro de Fran-
çois Jacob, que é o livro de um biólogo,
interessado apenas na história da pró­
pria biologia. Ora, tudo o que êle diz sô­
bre a história da biologia nos séculos
X V II, X V III e X IX , coincide exatamen­
te, quanto às datas e os princípios ge­
rais, com o que eu mesmo disse. E êle
não tirava isto do meu livro, pois o dêle
foi escrito antes de ter oportunidade de
ler o meu. Achei interessante que essa
análise comparativa das transformações,
que poderia passar por delirante, na me­
dida em que procurava relacionar disci­
plinas tão estranhas uma à outra, tenha
sido confirmada pela análise interna de
uma história precisa, a da biologia. Eis
o primeiro problema. Quanto ao segun­
do, tentei apreender as transformações
da gramática, da história natural e da
economia política não ao nível das teo­
rias e teses sustentadas, mas ao nível da
maneira pela qual essas ciências consti­
tuíram os seus objetos, da maneira pela
qual se form aram os seus conceitos, da
maneira pela qual o sujeito cognoscente
se situava em relação a êsse domínio de
objetos. É isto que chamo o nível ar­
queológico da ciência, em oposição ao
nível epistemológico. Neste último, tra-
ta-se de descobrir a coerência teórica de
um sistema científico num momento da­
do. A análise arqueológica é a análise
da maneira — antes mesmo da aparição
das estruturas epistemológicas, e por
baixo dessas estruturas — pela qual os
objetos são constituídos, os sujeitos se
colocam, e os objetos se formam. L es
M ots et les Choses é um livro em sus­
penso: em suspenso na medida em que
não faço aparecerem as próprias práti­
cas pré-discursivas. É no interior das
práticas científicas que eu me coloco,
para tentar descrever as regras para a
constituição dos objetos, a formação dos
conceitos, e as posições do sujeito. P o r
outro lado, a comparação que faço não
leva a uma explicação. M as nada disso
me preocupa. N ão escrevo um livro para
que seja o último; escrevo um livro para

25
que outros sejam possíveis — não ne-
cessàriamente escritos por mim.

J. G. M. — É sua intenção ir além dessa análise que


justamente ficou em suspenso em Les
M ots et les Choses, em busca da raiz, ao
nível arqueológico_, das transformações
que se produziram nas três disciplinas?

F O U C A U L T — Nesse ponto o meu embaraço não dimi­


nuiu desde que terminei L es M ots et les
Choses. Alegro-m e de ver que François
Jacob encontrou a mesma dificuldade a
propósito das relações entre D arw in e
Bolzmann, que êle também não consegue
explicar. Êle me fêz a pergunta, e só pu­
de compartilhar o seu embaraço. Fica­
mos os dois surpresos com o fato de que
o historiador da ciência não se interessa
mais por êsse fenômeno. Quando o en­
contram, limitam-se a escamotear à di­
ficuldade invocando o espírito da época,
que quer que um determinado problema
seja abordado num momento preciso, ou
então observam, de passagem, que é um
fenômeno curioso, mas sem importância.
É melhor uma ignorância fran c a ; pre­
firo dizer que não compreendo, mas que
me esforço por compreender, a dar ex­
plicações como as baseadas no espírito
da época. Em suma, dêsse ponto de vis­
ta meus progressos foram nulos. Em
compensação vejo melhor agora, graçns
às análises que empreendi em Les M ots
et les Choses, como reajustar de form a
mais exata a análise das práticas discur­
sivas e das práticas extradiscursivas.
N a Histoire de la Folie, por exemplo,
ainda havia um certo número de temas
“expressionistas”. Deixei-me seduzir
pela idéia de que a maneira de conceber
a loucura exprimia um pouco uma espé­
cie de repulsa social imediata em rela­
ção à loucura. Empreguei freqüente­
mente a palavra ‘ percepção: percebe-se

26
a loucura. Essa percepção era para
mim o vínculo entre uma prática real,
que era essa reação social, e a maneira
pela qual era elaborada a teoria média
e científica. H oje em dia, não creio
mais nesse tipo de continuidade. É pre­
ciso re-examinar as coisas com maior ri­
gor. V o u tentar fazer isto num domínio
de teor científico muito fraco: a crimi-
nologia. Vou tentar ver, a partir da de­
finição jurídica do crime, e da maneira
pela qual o crime foi isolado e sanciona­
do, as práticas penais reais. Vou exami­
nar, igualmente, como se form aram cer­
tos conceitos, uns claramente morais, e
outros com pretensões científicas, como
a noção de degenerescência, e como êsses
conceitos funcionaram e continuam a
funcionar em certos aspectos de nossa
prática penal.

J.G.M. — Essa volta a um domínio em que o saber


é pouco sistematizado ou tem um grau
muito fraco de coerência epistemológica
certamente se beneficiará de uma visão
mais sistemática das relações entre o ní­
vel discursivo e o extradiscursivo.

I«'0U CA U LT — Sem dúvida.

S.P.R. — Acredita o Sr. que com sua obra, e a de


outros filósofos que se situam na mesma
corrente de idéias, a filosofia tenha, por
assim dizer, mudado de discurso, substi­
tuindo aos temas tradicionais da metafí­
sica e da epistemologia temas relacio­
nados com as práticas científicas, prin­
cipalmente no domínio das ciências hu­
manas?

F O U C A U L T — N ão creio que os que se interessam,


como eu, pelos problemas da ciência —
na França e em outros países — tenham
realmente ampliado o tema da reflexão
filosófica. Acredito mesmo o contrário:

27
nós restringimos êsse campo. Creio que
é a Hegel que devemos a maior expan­
são do campo dos objetos filosóficos.
Hegel falou de estátuas góticas, de tem ­
plos gregos, de velhas bandeiras. . . De
tudo, em suma.

J . G . M . — Se o Sr. me permite um parênteses, não


estamos dizendo que a filosofia atual te­
nha ampliado o domínio da reflexão filo­
sófica; tem-se a impressão} pelo contrá­
rio, de uma orientação mais sóbria, mais
modesta, por parte da filosofia.

F O U C A U L T — Certo. De Hegel a Sartre, o campo dos


objetos filosóficos foi proliferante. H e­
gel, Schopenhauer e Sartre falaram , por
exemplo, da sexualidade. A g o ra se ve­
rifica um estreitamento do campo filo­
sófico. U m a espécie de deslocamento. O
que havia de comum entre a filosofia de
Hegel e de Sartre, e entre tôdas as ten­
tativas de pensar a totalidade do con­
creto, é que todo êsse pensamento se
articulava em tôrno do problem a: “Co­
mo é possível que tudo isso aconteça a
uma consciência, a um ego, a uma liber­
dade, a uma existência?” Ou, inversa­
mente: “ Como é possível que o ego, a
consciência, o sujeito ou a liberdade te­
nham emergido no mundo da história,
da biologia, da sexualidade, do desejo?”

J.G.M. — E m todo caso, os dois caminhos do idea­


lismo.

F O U C A U L T — N ã o diria o idealismo. D iria os dois ca­


minhos da problemática do sujeito. A
filosofia era a maneira de pensar as re­
lações entre o mundo, a história, a biolo­
gia, por um lado, e os sujeitos, a exis­
tência, a liberdade, por outro lado. Hus-
serl, que também falava sôbre tudo, e
principalmente sôbre o problema da ciên­
cia, tentava igualmente responder a essa

28
problemática do sujeito. O problema,
para êle, era saber como é possível en­
raizar efetivamente, ao nível da evidên­
cia, da intuição pura e apodítica de um
sujeito, uma ciência que se desenvolve
segundo um certo número de princípios
formais e até certo ponto vazios. Como
a geometria, por exemplo, pôde prosse­
guir durante séculos essa corrida da f o r ­
malização pura, e ser, ao mesmo tempo,
uma ciência pensável em cada um de
seus pontos por um indivíduo susceptível
de ter dessa ciência uma intuição apo­
dítica? Como é possível que alguém, no
grande elenco das proposições geométri­
cas, possa isolar uma dessas proposições,
percebê-la como verdadeira, e construir
sôbre ela uma demonstração apodítica?
Sôbre que intuição repousa êsse proces­
so? É possível haver uma intuição pura­
mente local e regional no interior de
uma geometria propriamente formal, ou
é preciso uma espécie de intuição que re-
-efetua em sua totalidade o projeto da
geometria, para que a certeza de uma
verdade geométrica possa surgir em um
ponto preciso do corpo das proposições
e do tempo histórico dos geômetras que
se sucedem uns aos outros? E ra êsse o
problema de Husserl: sempre, por con­
seguinte, o problema do sujeito e de suas
conexões. Parece-me que o que caracte­
riza agora, mais que os chamados filó­
sofos, um certo número de romancistas,
pensadores, etc., é o fato de que para
êles o problema do sujeito não se coloca
mais, ou somente se coloca de uma fo r­
ma extremamente derivada. A interro­
gação do filósofo não é mais saber como
tudo isto é pensável, nem como o mun­
do pode ser vivido, experimentado, atra­
vessado pelo sujeito. O problema é ago­
ra saber quais as condições impostas a
um sujeito qualquer para que êle possa
se introduzir, funcionar, servir de nó na

29
rede sistemática do que nos rodeia. À
partir daí, a descrição e a análise não
mais terão como objeto o sujeito e suas
relações com a humanidade e a forma,
mas o modo de existência de certos ob­
jetos, como a ciência, que funcionam, se
desenvolvem, se transformam, sem qual­
quer referência a algo como o funda­
mento intuitivo num sujeito. Os sujei­
tos sucessivos se limitam a entrar, por
portas por assim dizer laterais, no inte­
rior de um sistema, que não somente se
conserva desde um certo tempo, com sua
sistematicidade própria e num certo sen­
tido independente da consciência dos ho­
mens, mas tem uma existência igualmen­
te própria, e independente da existência
dêsse ou daquele sujeito. Desde o fira
do século X IX , já se sabe que a matemá­
tica tem em si própria uma estrutura
que não é simplesmente a reprodução ou
sedimentação dos processos psicológicos
re ais: dir-se-ia, no tempo de Husserl,
que se trata de uma transcendência da
idealidade matemática em relação ao vi­
vido da consciência. M as a existência
mesma da matemática — ou, de form a
mais geral, a existência mesma das ciên­
cias — é a existência da linguagem, do
discurso. Essa existência — hoje já se
começa a perceber isto — não necessita
de uma série de fundadores, que teriam
produzido um certo número de transfor­
mações em virtude de suas descobertas,
de seu gênio, de sua maneira de conce­
ber as coisas. Ocorrem, simplesmente,
transformações, que se passam aqui e
ali, simultaneamente ou sucessivamente,
transformações enigmaticamente homó­
logas e das quais ninguém é de fato o
titular. É preciso portanto desapropriar
a consciência humana não somente das
formas de objetividade que garantem a
verdade, mas das form as de historici­
dade nas quais o nosso devenir está apri-
sionado. E is a pequena defasagem que
nos separa da filosofia tradicional. E u
lhes dizia há pouco que essa maneira de
ver não era exclusiva dos filósofos da
ciência ou dos filósofos em geral. T o­
mem o exemplo de Blanchot, cuja obra
consistiu em meditar sôbre a existência
da literatura, da linguagem literária, do
discurso literário, independentemente
dos sujeitos nos quais êsse discurso se
acha investido. Tôda a crítica de Blan­
chot consiste no fundo em mostrar como
cada autor se coloca no interior de sua
própria obra, e isto de uma form a tão
radical que a obra tem que destruí-lo.
É nela que o autor tem seu refúgio e
seu lugar; é nela que êle habita; é ela
que constitui sua pátria, e sem ela não
teria, literalmente, existência. M as essa
existência que o artista tem em sua obra
é tal que ela o leva, fatalmente, a pere­
cer.

J . G . M . — O direito à m orte. . .

F O U C A U L T — Sim. É tôda essa rêde de pensamento


que se pode encontrar em Bataille, em
Blanchot, em obras propriamente literá­
rias, na arte. Tudo isto anuncia atual­
mente uma espécie de pensamento em
que o grande primado do sujeito, afir­
mado pela cultura Ocidental desde a Re­
nascença, se vê contestado.

S . P . R . — Gostaria de fazer uma pergunta de outra


ordem. Sabe-se que a teoria política tra­
dicional sempre estêve centralizado no
homem e na consciência. Com o desapa­
recimento da problemática do sujeito,
estaria o pensamento político condenado
a tornar-se uma reflexão acadêmica, e a
prática política a converter-se numa
empiria destituída de fundamentos teó­
ricos? Se, por outra parte, o Sr. admite
que a ação política é necessária, sôbre

31
que deve fundar-se o engajamento polí­
tico, se abandonarmos a concepção mi-
lenarista — escatológica, se quiserem —
do marxismo, tal como o descreve Les
M ots et les Choses? Deveríamos renun­
ciar a enraizar a política numa ciência?
Enfim , na Archéologie, o Sr. diz que a
algumas dessas perguntas “ não há outra
resposta que uma resposta política. Tal­
vez seja preciso retomá-las, e de outro
modo.” Isto significa que êsses proble­
mas são insolúveis no contexto de uma
reflexão puramente teórica? Ou uma
teoria política “pós-arqueológica” é pos­
sível?
F O U C A U L T — É uma pergunta difícil. Tenho a impres­
são, aliás, que são várias perguntas que
se cruzam. Minhas formulações sôbre
M arx suscitaram, com efeito, um certo
número de reações, e não hesito em pre­
cisar o meu pensamento sôbre êsse te­
ma. Talvez eu tenha querido dizer coisas
demais nas poucas frases em que falei
do marxismo. Em todo caso, há certas
coisas que eu deveria ter dito mais cla­
ramente. Em minha opinião, M arx pro­
cedeu como muitos fundadores de ciên­
cias ou tipos de discurso: utilizou um
conceito existente no interior de um dis­
curso já constituído. A partir dêsse con­
ceito, formou regras para êsse discurso
já constituído, e o deslocou, transforman­
do-o no fundamento de uma análise e
de um tipo de discurso totalmente ou­
tro. Extraiu a noção de mais-valia di­
retamente das análises de Ricardo, onde
ela era quase uma filigrana — nesse sen­
tido M arx é um ricardiano — e baseou
nesse conceito uma análise social e his­
tórica que lhe permitiu definir os funda­
mentos, ou em todo caso as form as mais
gerais da história da sociedade Ociden­
tal e das sociedades industriais do sé­
culo X IX . E que lhe permitiu, também,
fundar um movimento revolucionário

32
que continua vivo. N ão creio que sacra-
lizar a formação do marxismo ao ponto
de querer salvar tudo da economia ricar-
diana, a pretexto de que M arx dela se
serviu p ara form ular a noção de mais-
-valia, seja uma boa maneira de home­
nagear Marx. Creio que a economia ri-
cardiana pode ser criticada a partir do
próprio Marx, em todo caso ao nível da
economia política tal como ela funcio­
nou desde o início do século X IX : a êsse
nível, as análises de Ricardo podem ser
retomadas e revistas, e a noção de mais-
-valia não é necessàriamente um dos
conceitos mais intocáveis. Se nos colo­
camos exclusivamente ao nível da eco­
nomia política e de suas transformações,
essa revisão não é um delito muito gra ­
ve. Darwin, por exemplo, tirou certos
conceitos — chave da teoria evolucionis-
ta, que em suas principais articulações
foi inteiramente confirmada pela genéti­
ca, de domínios científicos hoje critica­
dos ou abandonados. E não há nisso na­
da de grave. E ra isso o que eu queria
dizer quando afirmei que M arx se acha­
va no século X IX como um peixe na
água. N ã o vejo porque sacralizar M arx
numa espécie de intemporalidade que lhe
permitisse descolar-se de sua época e
fundar uma ciência da história ela pró­
pria meta-histórica. Se é preciso falar
do gênio de M arx — e acho que essa
palavra não deve ser empregada na his­
tória da ciência — êsse gênio consistiu
precisamente em comportar-se como um
peixe na água no interior do século X I X :
manipulando a economia política tal
como havia sido efetivamente fundada,
e tal como existia a partir de vários
anos, M arx chegou a propor uma análi­
se histórica das sociedades capitalistas
que pode ainda ter sua validade, e a fun­
dar um movimento revolucionário que é
ainda o mais vivo hoje em dia.

33
J . G . M . — Quanto às 'possibilidades de fundar uma
ação política segura, na base de uma
concepção teórica que explique cientifi­
camente a realidade, é preciso, sem dú­
vida, levar M arx em consideração, mas
também as análises ulteriores que ultra­
passaram, de certa forma, a análise mar­
xista do conhecimento.

F O U C A U L T — Certamente. Isto me parece evidente. E


agora vou parecer muito reacionário:
para que chamar de científica a prática
marxista? Existem hoje na França al­
gumas pessoas que consideram como in­
contestáveis duas proposições, ligadas
entre si por um nexo um pouco obscuro:
(1 ) o marxismo é uma ciência, e (2 ) a
psicanálise é uma ciência. Essas duas
proposições me deixam pensativo. Prin­
cipalmente porque não consigo ter da
ciência uma idéia tão elevada assim.
Acho — e muitos cientistas concorda­
riam comigo — que não se deve fazer
da ciência uma idéia tão elevada a pon­
to de rotular como ciência algo de tão
importante como o marxismo, ou tão in­
teressante como a pisicanálise. N o fun­
do, não existe uma ciência em si. N ão
existe uma idéia geral ou uma ordem ge­
ral que se possa intitular ciência, e que
possa autenticar qualquer form a de dis­
curso, desde que aceda à norma assim
definida. A ciência não é um ideal que
atravesse tôda a história, e que seria
incamado sucessivamente, primeiro pela
matemática, depois pela biologia, depois
pelo marxismo e pela psicanálise. P re­
cisamos livrar-nos de tôdas essas noções.
A ciência não tem normatividade nem
funciona efetivamente como ciência nu­
ma época dada, segundo um certo núme­
ro de esquemas, modelos, valorizações e
códigos, é um conjunto de discursos e
práticas discursivas muito modestas,
perfeitamente enfadonhas e cotidianas,

34
que se repetem incessantemente. Existe
um código dêsses discursos, existem nor­
mas p ara essas práticas, aos quais de­
vem obedecer êsses discursos e práticas.
N ão há razão para se orgulhar disso; e
os cientistas — eu lhes asseguro — não
têm nenhum orgulho particular em saber
que o que fazem é ciência. Êles o sa­
bem, é tudo; e isto por uma espécie de
comum acôrdo, que é a comunidade do
código, e a partir do qual podem dizer:
“Isso está provado, e aquilo não está.”
E existem, lado a lado, outros tipos de
discursos e práticas, cuja importância
para nossa sociedade e para nossa his­
tória independe do estatuto de ciência
que possam vir a receber.

J.G.M. — Mas em Les M ots et les Choses, o Sr.


atribui, de qualquer forma, a algumas
dessas práticas não-científicas um esta­
tuto particular: o de contra-ciências.

K O U C A U LT — Sim, contra-ciências humanas.

J.G.M. — Poderíamos atribuir ao marxismo essa


mesma função?

K O U C A U L T — Sim, não estou longe de concordar com


isso. Acho que o marxismo, à psicaná­
lise e a etnologia têm uma função críti­
ca em relação ao que se convencionou
chamar de ciências humanas, e nesse sen­
tido são contra-ciências. M as repito: são
contra-ciências humanas. N ã o há nada
no marxismo ou na psicanálise que nos
autorize a chamá-los contra-ciências, se
entendemos por ciências a matemática
ou a física. Não, não vejo porque deva­
mos chamar de ciências o marxismo e a
psicanálise. Isto significaria impor a
essas disciplinas condições tão duras e
e tão exigentes que para u seu pró­
prio bem seria preferível não chamá-las
de ciências. E eis o paradoxo: os que

35
reclamam o estatuto de ciências para a
psicanálise e o marxismo manifestam
ruidosamente o seu desprêzo pelas ciên­
cias positivas, como a química, a anato­
mia patológica ou a física teórica. Só
escondem um pouco o seu desprezo em
relação à matemática. Ora, de fato a
sua atitude mostra que têm pela ciência
um respeito e uma reverência de gina-
sianos. Têm a impressão que se o m ar­
xismo fôsse uma ciência — e aqui êles
pensam em algo tangível, como uma de­
monstração matemática — poderiam
ter certeza de sua validade. E u acuso
essa gente de ter da ciência uma idéia
mais alta do que ela merece, e de ter um
secreto desprêzo pela psicanálise e pelo
marxismo. Eu os acuso de insegurança.
Ê por isso que reivindicam um estatuto
que não é tão importante assim para
aquelas disciplinas.

S.P.R. — Sempre em relação ao marxismo, gosta­


ria de fazer outra pergunta. Quando o
Sr. fala, em Les M ots et les Choses, no
“ binômio empírico-transccndental”, afir­
ma que a fenomenologia e o marxismo
são meras variantes dêsse movimento de
pêndulo que leva necessariamente, seja
ao positivismo, seja à escatologia. Por
outra parte, o pensamento de Althusser
é geralmente incluído entre os estrutur
ralismos, muitas vêzes ao lado de sua
própria obra. Considera o Sr. o marxis­
mo althusseriano como uma superação
da configuração cujos limites são o po­
sitivismo e a escatologia, ou acredita que
êsse pensamento se situa no interior da­
quela configuração?

F O U C A U L T — Inclino-me pelo primeiro têrmo da alter­


nativa. A êsse respeito, devo fazer uma
autocrítica. Quando falei do marxismo
em Les M ots et les Choses, não precisei
suficientemente o que queria dizer. N e s­
se livro, julguei ter deixado claro que

36
estava fazendo uma análise histórica de
um certo período, cujos limites eram
aproximadamente 1650 e 1850, com pe­
quenos prolongamentos que não iam
além do fim do século X IX , e no domí­
nio igualmente preciso constituído pelas
ciências da linguagem, da vida e do tra­
balho. Quando falei do marxismo nesse
livro, deveria ter dito, sabendo como êsse
tema é super-valorizado, que se tratava
do marxismo tal como funcionou na E u ­
ropa até, no máximo, o início do século
X X . Deveria também ter precisado —
e reconheço que falhei nesse ponto —
que se tratava da espécie de marxismo
que se encontra num certo número de
comentadores de M arx, como Engels. E
que aliás também não está ausente em
M arx. Quero referir-me a uma espécie
de filosofia marxista que é, a meu ver,
um acompanhamento ideológico das aná­
lises históricas e sociais de Marx, assim
como de sua prática revolucionária, e
que não constitui o cerne do marxismo,
entendido como a análise da sociedade
capitalista e o esquema de uma ação re­
volucionária nessa sociedade, Se é êste
o núcleo do marxismo, então não foi do
marxismo que falei, mas de um a espécie
de humanismo m arxista — um acompa­
nhamento ideológico, uma música-de-
-fundo filosófica.

J.G.M. — Empregando a expressão “Humanismo


marxista”, sua crítica se inscreve auto­
maticamente num domínio teórico que
exclui Althusser.

F O U C A U L T — Sim. Suponho que essa crítica pode v a ­


ler ainda para autores como Garaudy,
mas que não se aplica a intelectuais
como Althusser.

J.G.M. — Queria agora fazer uma pergunta acer­


ca da literatura, isto é, do estatuto da
literatura cm Les Mots et les Choses.

37
Seja a propósito de Cervantesf seja a
propósito de Holderlin ou Mallarmé, o
Sr. dá a entender que a literatura desem­
penha muitas vêzes um papel pioneiro na
emergência das epistemes. E seu belo
texto sôbre Blanchot desenvolve essa
mesma idéia■ Está de acôrdo com essa
interpretação?

F O U C A U L T — N o tocante a literatura, creio que em Les


M ots et les Choses não é da mesma fo r­
ma e no mesmo nível que falei de M al­
larmé, por exemplo, e de D. Quixote.
Quando falei de Mallarmé, quis assina­
lar êsse fenômeno de coincidência que já
me interessara a propósito do século
X V II e X V III, e segundo o qual, na mes­
ma época, domínios perfeitamente inde­
pendentes e sem comunicação direta se
transformam, e se transformam da mes­
ma maneira. Mallarmé é contemporâneo
de Saussure; fiquei impressionado pelo
fato de que a problemática da linguagem,
independentemente de seus significados,
e considerada do ponto de vista exclu­
sivo de suas estruturas internas, tenha
aparecido em Saussure no fim do século
X IX , mais ou menos no mesmo momen­
to em que Mallarmé fundava uma lite­
ratura da pura linguagem, que domina
ainda a nossa época. Quanto ao Quixo­
te, é um pouco diferente. Devo confes­
sar, de uma form a um pouco covarde,
que não conheço muito bem o D. Qui­
xote, ou pelo menos não conheço o pa-
no-de-fundo da civilização hispânica sô­
bre o qual se funda o Quixote. N o fun ­
do, meus comentários sôbre D. Quixote
são uma espécie de pequeno teatro em
que eu queria encenar primeiro o que
narraria depois: um pouco como nessas
representações teatrais em que se apre­
senta, antes da peça principal, uma pe­
quena peça que guarda, com a peça prin­
cipal, uma relação um pouco enigmática
e um pouco lúdica de analogia, de repe-

38
¥

tição, de sarcasmo ou de contestação.


Quis divertir-me em mostrar no Quixo-
te essa espécie de decomposição do sis­
tema de signos que se verifica na ciên­
cia em tôrno dos anos 1620 a 1650. N ão
tenho nenhuma convicção de que isto re­
presente o fundo e a verdade do Qui-
xote. M as achei que se deixasse o per­
sonagem e o próprio texto falarem por
si mesmos, poderia representar num cer­
to sentido a pequena comédia dos signos
e das coisas, que eu queria narrar, e
que se desenrolou nos séculos X V II e
X V III. P o r conseqüência, concedo sem
dificuldade que haja erros em minha in­
terpretação do Quixote. Ou antes, não
concedo coisa alguma, porque não se
trata de uma interpretação: é uni tea­
tro lúdico, é o próprio D. Quixote que
conta, no palco, a história que eu mes­
mo contarei depois. A única coisa que
me justificaria é que o tema do livro me
parece importante em D. Quixote. Ora,
o tema do livro é o tema de L es M ots et
les Choses■ O próprio título é a tradu­
ção de Words and Things, que foi o
grande slogan moral, político, científico,
e até religioso, da Inglaterra no início
do século X V II. Foi também o grande
slogan, não religioso, mas em todo caso
científico, na França, Alemanha, Itália,
na mesma época. Acredito que Words
and Things é um dos grandes proble­
mas do Quixote. É por isso que fiz D.
Quixote representar, em Les Mots et les
Choses, a sua pequena comédia.

J.G.M. — Podemos dizer, de qualquer maneira, que


sua leitura do Quixote, haja ou não in­
terpretação, está de acôrdo com certas
pesquisas da estilística contemporânea,
sobretudo no que se refere ao papel do
cômico e à presença do livro no interior
da obra. Mas vou agora fazer uma per­
gunta que nada tem a ver com a estética,
e que se refere aos contextos institucio-

39
nais de que se falou há pouco, isto é,
êsse conjunto de práticas tanto mais im­
portantes quanto os saberes a elas liga­
dos eram mais fracamente articulados
do ponto de vista de sua sistematicidade
científica. Quero perguntar-lhe se pre­
tende ocupar-se ainda de certos fenôme­
nos mentais que não são habitualmente
considerados como saberes, na perspec­
tiva, por exemplo, de suas pesquisas sô­
bre a loucura. Mais precisamente: pensa
o sr. estudar, sempre em relação às epis­
temes, que permanecem a sua preocupa­
ção principal, o domínio da experiência
religiosa? Quero dizer com isso não a
ideologia religiosa no sentido estrito,
mas as experiências religiosas no senti­
do amplo. Estou pensando, por exemplo,
no gênero de análises, muito empíricas
mas muito interessantes, de um autor
como Bakhtine, em sua obra como R&-
belais ou Dostoievski, quando diz que 0
carnaval era uma forma de experiência
religiosa, uma festa religiosa que foi v i­
sivelmente reduzida e “ domesticada" na
época do nascimento da episteme clássi­
ca, isto é, na época dominada pela re­
presentação.

F O U C A U L T — N o fundo, sempre me interessei muito


por êsse domínio que não pertence bem
ao que se chama habitualmente de ciên­
cia, e se emprego o conceito de saber é
para apreender êsses fenômenos que se
articulam entre o que os historiadores
chamam a mentalidade de uma época e a
ciência propriamente dita. H á um fenô­
meno dêsse gênero pelo qual me interes­
sei, e ao qual pretendo voltar um dia: a
feitiçaria. Trata-se, em suma, de enten­
der a maneira pela qual a feitiçaria —
que afinal era um saber, com suas re­
ceitas, suas técnicas, sua form a de en­
sino e de transmissão — foi incorpora­
da ao saber médico. E isto não como
se diz em geral, qiíando se afirm a que os

40
médicos, por sua racionalidade e seu li­
beralismo, arrancaram os feiticeiros às
garras dos inquisidores. A s coisas são
muito mais complexas. Foi num certo
sentido em conseqüência de uma neces­
sidade, de uma certa cumplicidade, que
a Igreja, o poder real, a magistratura,
os próprios médicos, fizeram emergir a
feitiçaria como domínio possível da ci­
ência, isto é, fizeram do feiticeiro um
doente mental. N ão era uma libertação;
era outra form a de captura. Onde antes
havia simplesmente exclusão, processo,
etc., o fenômeno foi inscrito no interior
da episteme e tornou-se um campo de
objetos possíveis. H á pouco nos pergun­
távamos como alguma coisa pode se tor­
nar um objeto possível para a ciência. Eis
um belo exemplo. A idéia de uma ciên­
cia da feitiçaria, de um conhecimento
racional, positivo, da feitiçaria, era algo
de rigorosamente impossível na Idade
Média. E isto não porque se desprezas­
se a feitiçaria, ou em conseqüência do
preconceito religioso. E ra todo o siste­
ma cultural do saber que excluía que a
feitiçaria se tornasse um objeto para o
saber. E eis que a partir dos séculos
X V I e X V II, com a anuência da Igreja
e mesmo a seu pedido, o feiticeiro se
torna um objeto de conhecimento pos­
sível entre os médicos: pergunta-se ao
médico se o feiticeiro é ou não doente.
Tudo isso é muito interessante, e no qua­
dro do que me proponho fazer.

J.G.M. — Para terminar: qual será o assunto


principal de sua aula inaugural no Col-
lège de France?

F O U C A U L T — E ssa pergunta me embaraça um pouco.


Digam os que o ensino que pretendo dar
êste ano é a elaboração teórica das no­
ções que lancei na Archéologie du Savoir.
E u lhes dizia há pouco que tinha tenta­
do determinar um nível de análises, um

41
campo de objetos possíveis, mas que ain­
da não pude elaborar a teoria dessas
análises. Ê justamente essa teoria que
pretendo iniciar agora. Quanto à aula
de abertura, repito que me sinto muito
embaraçado, talvez por ser infenso a
qualquer instituição. N ão encontrei ain­
da, como objeto de meu discurso, senão
o paradoxo de uma aula inaugural. A
expressão é com efeito surpreendente.
Pede-se a alguém que comece. Começar
absolutamente, é algo que podemos fa ­
zer se nos colocamos, pelo menos miti­
camente, na posição do aluno. M as a
inauguração, no estrito sentido do têr­
mo, só ocorre sôbre um fundo de igno­
rância, de inocência, de ingenuidade ab­
solutamente primeira: podemos falar de
inauguração se estamos diante de al­
guém que ainda não sabe nada, ou que
não começou ainda nem a falar, nem a
pensar, nem a saber. E no entanto, essa
inauguração é uma aula. Ora, uma aula
implica que se tenha atrás de si todo um
conjunto de saberes, de discursos já
constituídos. Creio que falarei sôbre
êsse paradoxo.

(1) O texto definitivo da aula inaugurai, profe­


rida semanas depois, se afasta bastante dêsse
esquema. Já apareceu em livro, sob o título
'L’Ordre du Discours" (Paris — Gallimard,
1 9 7 1 ).

42
A Arqueologia e o Saber
P o r D o m in i q u e L e c o u rt

Muito se tem escrito sôbre L es M ots et les Choses;


o último livro de Foucault, U Archéologie du Savoirf não
suscitou, porém, o mesmo zêlo entre os críticos.

E ssa discreção deve sem dúvida ser atribuída à es­


tranheza de uma obra que tem tudo para dar ao leitor
uma impressão de mal-estar. Alguns chegarão frustrados
à última página, com a sensação íntima de terem sido ví­
timas de um lôgro. “Sempre a mesma coisa, apesar das
inovações verbais” , diriam êsses leitores; “não valia a pe­
na, para uma simples mudança de vocabulário, escrever
todo um volume.” Reação legítima, numa primeira leitu­
ra, porque depois da perplexidade provocada pela prolife­
ração de novas palavras, o leitor se reencontra, graças
aos infatigáveis ataques, cem vêzes repetidos, contra o
“sujeito” e seus equivalentes, em terreno fam iliar: o uni­
verso de Foucault. Outros, terminada a leitura, suspen­
derão o julgamento e aguardarão o re3to: “Tudo é nôvo
— não reconhecemos mais nada; mas nada ainda foi fei­
to; vejamos como vai funcionar essa bateria de conceitos
novos, e então nos pronunciaremos.” Êsse segundo grupo
de leitores terá igualmente razão, pois o autor nos adverte
várias vêzes de que a elaboração de novas categorias põe
em risco o antigo edifício, e que retificações profundas
devem ser feitas: a categoria de “ experiência”, utilizada
na Histoire de la Folie, é posta em xeque, por implicar na
restauração sub-reptícia de um “sujeito anônimo e geral
da História” (pp. 27, 74) ; a noção decisiva de “olhar mé­
dico”, em tôrno da qual se articulava La Naissance de to
Clinique, é repudiada. Se nos limitamos portanto ao mais
óbvio, e mesmo ao explícito, não podemos deixar de pres­
sentir uma real novidade dos conceitos através da luxu-

43
riância do estilo, não obstante a dificuldade de confirmar
êsse pressentimento, pois as novas análises ainda não apa­
receram e as antigas são evocadas de form a apenas alu­
siva.

Como se verifica, essas duas reações contraditórias co­


locam a mesma pergunta: “por que êsse livro?” Ê dessa
pergunta que precisamos partir. É certo que o próprio
Foucault fornece os elementos para uma resposta. O li­
vro seria, segundo êle, a reflexão metódica e controlada
sôbre o que tinha anteriormente sido feito às cegas. De
fato, as referências, como vimos, não saem do círculo
das obras precedentes. Além disso, o livro contém uma
multiplicidade de normas metodológicas, e capítulos in­
teiros se apresentam como uma tentativa de codificar
certas regras que, segundo o autor, teriam sido, no p as­
sado, tàcitamente aceitas e praticadas de form a caótica.

M as essa explicação, obstinadamente sugerida pelo


autor, nos parece insuficiente: a Archéologie tem outro
alcance, e a problemática que suscita é de uma novidade
genuina e radical. Como indício dessa novidade, basta
lembrar uma ausência importante: a da noção de episte­
me, pedra angular do trabalho anterior, e eixo de tôdas
as interpretações “estruturalistas” de Foucault. É óbvio
que tal ausência não pode ser acidental. Pretendemos,
portanto, levar a sério o paradoxo de um livro que se
apresenta como uma reflexão metódica sôbre livros an­
teriores, ao mesmo tempo que omite a espinha dorsal
dêsses livros. Ê nesse paradoxo que reside todo o inte-
rêsse do trabalho; dêle derivam duas perguntas: que sig­
nifica essa insistência em acentuar uma continuidade que,
manifestamente, não é perfeita? e que novidade se in­
troduz, que força ao abandono da noção central de epis­
teme f
E ssas duas perguntas comportam uma resposta úni­
ca: é o abandono que explica a insistência. Em outras
p alavras: Foucault sente a necessidade de abdicar de uma
categoria essencial de sua filosofia, mas tal abandono
não deve ser interpretado como uma passagem para o
campo dos adversários; a categoria de episteme tinha
uma grande validade polêmica contra tôdas as teorias
“ humanistas” e “antropologistas” do conhecimento e da
história, e Foucault hesita em abrir mão dessa arma. E
no entanto a noção de episteme, que descrevia as “con­
figurações do saber” como grandes superfícies obedecen­

44
do a leis estruturais específicas, levava, inexoràvelmente,
a pensar a história das formações ideológicas como “mu­
tações” bruscas, “rupturas” enigmáticas, “fraturas” sú­
bitas. Ê com êsse tipo de história — por razões que exa­
minaremos mais tarde — que Foucault pretende agora
romper. A Archéologie exprime êsse divórcio. Foucault
deseja libertar-se dos aspectos “ estruturalistas” da epis­
teme, sem por isso aceitar os pressupostos humanistas
que sempre combateu. A operação é perigosa, e exigia um
livro; sua complexidade explica o mal-estar dos leitores
c a discreção dos críticos: não encontram mais, na A r ­
chéologie, o seu Foucault, como desbravador bem com­
portado de estruturas epistêmicas. Pior ainda: vêem a
História renascer; não a sua história, mas uma história
insólita, que recusa tanto a continuidade do sujeito quan­
to a ãescontinuiãade estrutural das rupturas.
A nosso ver, os críticos têm razão. Seu receio é jus­
tificado, pois o conceito de história que funciona na A r ­
chéologie tem consonâncias comuns com outro conceito de
história que têm excelentes motivos para detestar: o con­
ceito científico de história, tal como aparece no materia-
lismo histórico. O conceito de uma história que também
se apresenta como um processo sem sujeito, estruturado
por um sistema de leis. Conceito, por isso mesmo, radi­
calmente anti-antropologista, anti-humanista e anti-estru-
turalista.
A Archéologie du Savoir representaria, portanto, uma
reviravolta decisiva na obra de Foucault. Pretendemos
mostrar que sua nova posição o conduz a realizar um cer­
to número de análises de grande riqueza do ponto de vis­
ta do materialismo histórico; que reproduz, transpostos
em sua própria linguagem, conceitos que funcionam na
ciência marxista da história; e enfim que as dificuldades
que encontra, assim como o fracasso relativo a que é
levado, somente podem encontrar solução no campo do
materialismo histórico.

D A A R Q U E O L O G IA A O S A B E R

Contra o Sujeito

Podemos dizer que tôda a parte “crítica” da Archéo­


logie du Savoir se inscreve na continuidade do trabalho
precedente. Se não tem mais os mesmos aliados, Fou­
cault tem ainda os mesmos adversários. M as as polêmi­

45
cas se enriquecem, se aprofundam, e fazem brotar solida-
riedades conceituais que até êsse momento não se tinham
manifestado. Ê assim que seus ataques contra a catego­
ria de sujeito estão agora associados a investidas contra
o continuismo em história.
Eis sua resposta aos seus críticos humanistas neo-
-hegelianos a propósito de Les M ots et les Choses: “O
que se deplora tanto, não é o desaparecimento da histó­
ria, e sim o desaparecimento dessa form a de história
referida secreta mas inequivocamente à atividade sinté­
tica do sujeito” . L u g a r de eleição, e álibi perfeito do an-
tropologism o: não há melhor maneira de combater a his­
tória que desfraldar a bandeira da história.
Exem plo: a Archéologie contém uma polêmica im­
placável contra uma disciplina atualmente em voga: a
“história das idéias” . Foucault mostra que essa disci­
plina repousa sôbre um postulado antropolcgista que a
obriga a ser ostensiva ou disfarçadamente eontinuista. A
“história das idéias” , segundo êle, desempenha dois pa­
péis: por uma parte, “ contra a história do marginal e do
colateral. N ã o a história das ciências, mas a dos conhe­
cimentos imperfeitos,.mal fundados, que não conseguiram
nunca, no curso de uma vida obstinada, atingir a form a
da cientificidade.” Seguem-se os exemplos: alquimia, fre-
nologia, teorias atomísticas. . . Em suma, é a disciplina
das linguagens flutuantes, das obras informes, dos te­
mas soltos.” Por outro lado, entretanto, a história das
idéias pretende atravessar as disciplinas existentes, pro­
cessá-las e reinterpretá-las. Descreve a difusão de um
saber científico da ciência para a filosofia, e para a pró­
pria literatura. Nesse sentido, seus postulados são: “a
gênese, a continuidade, a totalização.” (p. 181). Gênese:
tôdas as “regiões” do saber são referidas, como sua ori­
gem, à unidade de um sujeito individual ou coletivo. Con­
tinuidade: a unidade da origem tem como correlato ne­
cessário a homogeneidade do desenvolvimento. Totali­
zação: a unidade da origem tem como correlato necessá­
rio a homogeneidade das partes. Tudo é coerente, mas
não pode, segundo Foucault, produzir uma história ver­
dadeira.
N o va frente de ataque: qualquer teoria do reflexo, na
medida em que enxerga no “discurso” a superfície de pro­
jeção simbólica de acontecimentos ou processos situados
no exterior, na medida em que procura “descobrir um

46
encadeamento causai descritível ponto por ponto, permi­
tindo correlacionar uma descoberta e um acontecimento,
ou um conceito e uma estrutura social” , na medida, em
suma, em que repousa sôbre um fundamento “ empirista”
nu “sensualista” , qualquer teoria do reflexo, assim defi­
nida, pressupõe como “ponto fixo ” a categoria do sujeito,
e é suspeita, desde o início, de antropologismo (p. 215).
Mais surpreendente ainda: a categoria de autor, que no
entanto parece bastante concreta e evidente, é rejeitada.
O autor é simplesmente a qualificação literária, científi­
ca ou filosófica de um “sujeito” definido como “criador.”
O “ livro” , portanto, é uma unidade construída ingênua
c arbitràriamente, que nos é imposta, de form a imediata
e irreflexiva, pelas ilusões da geometria, pelas regras da
impressão e por uma tradição literária suspeita. O “livro”
deve, pois, ser considerado não como a projeção literal
e mais ou menos racionalizada de um sujeito portador e
instaurador de sentido, mas como um “ nó numa rêde” , (p.
34). Sua existência real — não sua aparência imediata
—- depende do “sistema de interações” que nêle se cris­
talizam. “E êsse jôgo de interações não é homólogo, mas
varia conforme se trate de uma obra de matemática, de
um comentário de textos, de uma narrativa histórica, ou
do episódio de um ciclo romanesco” .

Contra o Objeto

Atenção: aqui aparece, ao sabor de um exemplo, o


mais nôvo na Archéologie du Savoir: a poiêmica antiga,
voltada contra o sujeito, assume uma nova forma, vol­
tando-se contra a categoria correlativa do objeto.
Ê assim que tomam corpo as retificações críticas —
várias vêzes retomadas — contra certos temas da epis-
temologia de Bachelard. Tudo se concentra em tôrno
das noções de “ ruptura” , “obstáculo”, “ato epistemoló-
gico” . Foucault descobre a solidariedade entre a cate­
goria filosófica de “objeto” e o ponto de vista descritivo
da "ruptura” em história: é porque se compara uma ideo­
logia a uma ciência do ponto de vista de seus objetos que
se observa entre elas uma ruptura (ou corte), mas êsse
ponto de vista é estreitamente descritivo, e não explica
nada. P io r: como era de prever, a categoria de objeto
traz consigo o seu correlato: o sujeito. A epistemologia
bachelardiana é um bom exemplo dêsse processo: a no­
ção de ruptura epistemológica exige que aquilo com o

47
qual se rompe seja pensado como um “obstáculo” episte­
mológico. M as de que form a Bachelard propõe pensar os
obstáculos? Como a intervenção de imagens na prática
científica. Foucault pode portanto afirm ar que o par ob-
jeto-ruptura não é senão a figu ra invertida, mas idêntica
no fundo, do binômio sujeito-continuidade; a epistemo-
logia de Bachelard é, portanto, uma antropologia camu­
flada. A “psicanálise do conhecimento objetivo” marca
os limites dessa epistemologia, seu ponto de inconsequên-
cia; o ponto em que outros princípios são necessários
para explicar o que ela descreve: sem dúvida, e nisto re­
side o grande mérito de Bachelard, uma ciência só pode
se form ar em ruptura com “ um tecido de erros tenazes” ,
que a precede e obstaculiza, mas referir-se à “libido” do
cientista para explicar a formação dêsse tecido, significa
aderir ainda à noção do sujeito, e mesmo, no limite, ad­
mitir que a cientificidade pode ser estabelecida por de­
cisão voluntária do (o u dos) cientistas. P a ra Foucault,
é preciso partir do que foi descrito por Bachelard, aban­
donar o ponto de vista do objeto, e colocar sôbre novas
bases o problema da ruptura. Impõe-se, mais exatamen­
te, examinar êsse tecido que Bachelard não conseguiu
“pensar”, e em particular essas “falsas ciências” que pre­
cedem a ciência, essas “positividades” que as ciências,
uma vez constituídas, permitem caracterizar como “ideo­
lógicas” . Sôbre êsse ponto, como veremos, a contribuição
da Archéologie é muito importante.

A IN S T Â N C IA D O S A B E R

A Materialidade Institucional

Sabemos agora a que exigências respondem as cate­


gorias fundamentais da Archéologie: trata-se de pensar
as leis que regem a história diferencial das ciências e
das não-ciências sem referência nem a um “sujeito” nem
a um “objeto” , ultrapassando a falsa alternativa “conti-
nuidade-descontinuidade.”

A primeira noção que corresponde a tais exigências


é a de “acontecimento discursivo”. Escreve Foucault:
“ U m a vez suspensas tôdas as formas imediatas de conti­
nuidade, todo um domínio se vê liberado. U m domínio
imenso, mas definível: é constituído pelo conjunto de to­
dos os enunciados efetivos (falad os ou escritos), em sua
dispersão de acontecimentos e na instância apropriada a

48
cada um dêles. Antes de encontrarmos, com tôda a cer­
teza, uma ciência, romances, ou discursos políticos, o
material que deve ser tratado, em sua neutralidade pri­
mitiva, é uma população de acontecimentos no espaço do
discurso em geral.” (p. 38). A qui as perguntas come­
çam a se multiplicar: o que é êsse “espaço do discurso” ?
Seria o objeto da lingüística? N ão, porque o “campo dos
acontecimentos discursivos é o conjunto sempre finito e
atualmente limitado unicamente das seqüências lingüísti­
cas que foram formuladas.” Seria simplesmente o “pen­
samento” que é desigando por essas palavras esotéricas?
Não, porque não se trata de referir o que foi dito a uma
intenção, a um discurso silencioso que o ordenaria do
interior; a pergunta que se coloca é somente essa: “qual
é essa existência singular que vem à luz do dia no que se
diz e em nada mais?” Continuemos a seguir Foucault a
fim de descobrir a especificidade dessa categoria por êle
construída, e à qual nos permitiremos mais tarde dar um
outro nome. N a realidade, é pelas vantagens que atribui
a êsse conceito que Foucault especifica o estatuto do que
chama de “ acontecimento discursivo”. Esta noção per­
mitirá determinar “as relações dos enunciados entre si —
sem qualquer referência à consciência de um ou vários
autores; relações entre enunciados ou grupos de enun­
ciados, e acontecimentos de outra ordem (técnica, econô­
mica, social, política.)”

Como se vê, o essencial aqui é a noção de relação.


Foucault entende por relação um conjunto de nexos de
“coexistência, sucessão, funcionamento mútuo, determina­
ção recíproca, transformação independente ou correlati-
va”. (Cf. especialmente a p. 53). Mas Foucault sente
que a determinação de tais relações ainda é insuficiente
para designar a instância dos “acontecimentos discursi­
vos” : se, por uma tal combinatória, é possível, num certo
sentido, explicar o “discursivo” , ficamos sem compreen­
der o acontecimento discursivo: permanecemos no nível
da episteme. N um a palavra: tal análise não pode expli­
car a existência “ material” e “histórica” do acontecimen­
to discursivo. U m a questão decisiva está implícita em
tôdas essas páginas, que poderiam parecer longas e re­
dundantes: a necessidade, reconhecida por Foucault, de
definir o “regime de materialidade” do que denomina 0
discurso, a necessidade correlativa de elaborar uma nova
categoria — materialista — de “discurso” , e enfim de
pensar a história dêsse “discurso” em sua materialidade.

49
E essa a tríplice tarefa que se propõe a Archéologie; e é
nessa tentativa que reside, como veremos, o seu insuces­
so relativo.

A prova: referindo-se aos “objetos” da psicopatolo­


gia, Foucault coloca perguntas do tipo: “ Podemos saber
segundo que sistema não-dedutivo aqueles objetos logra­
ram justapor-se e suceder-se para form ar o campo — la-
cunar ou pletório conforme o caso — da psicopatologia?
Qual fo i seu regime de existência enquanto objetos do
discurso?” (p. 56). Ou ainda, com maior nitidez: a ten­
tativa de caracterizar a unidade elementar do aconteci­
mento discursivo — o acontecimento-unidade, por assim
dizer — leva Foucault a propor a noção de “enunciado” .
Ora, qual a condição do enunciado? “P a ra que uma se­
qüência de elementos lingüísticos possa ser considerada
e analisada como um enunciado, deve ser dotada de uma
existência material” , (p. 131). A materialidade não é
apenas uma condição entre outras, mas é constitutiva:
“não é simplesmente princípio de variação, modificação
dos critérios de reconhecimento, ou determinação de sub-
-conjuntos lingüísticos. Ê constitutiva do próprio enun­
ciado: é preciso que o enunciado tenha uma substância,
um suporte, um lugar e uma data.” (p. 133). Sem ante­
cipar demais, podemos dizer que a procura do “regime de
materialidade” do enunciado se orientará mais para a
substância e o suporte que para o lugar e a data: “ o r e ­
gime de materialidade ao qual obedecem necessária mente
os enunciados é da ordem da instituição mais que da lo­
calização espaço-temporal.” (p. 136) O que Foucault des­
cobre é que a localização espaço-temporal pode ser
deduzida das “relações” , ou “nexos” , entre enunciados ou
grupos de enunciados, depois que se reconhecer a êsses
nexos uma existência material, e quando se compreender
que tais nexos não existem fora de certos suportes ma­
teriais em que se incarnam, se produzem e se reprodu­
zem. Podemos, a esta altura, resumir a situação: torna-
-se necessário pensar a história dos acontecimentos dis­
cursivos como estruturada por relações materiais que se
incarnam em instituições.

0 Discurso como Prática

Compreendemos agora porque Foucault é levado a


definir o “discurso” de uma form a tão singular: “o dis­
curso é outra coisa que o lugar em que vêm se depor e

50
superpor, como numa simples superfície de inscrição, ob­
jetos instaurados de antemão.” (p. 58). Com efeito, se o
que foi dito do “ regime material do enunciado” é exato,
o discurso não é definível independentemente das relações
que o constiuem; é assim que se falará de “relações dis­
cursivas” , ou “regularidades discursivas”, de preferência
a “discurso”. É que o discurso, em última análise, é uma
prática. A categoria de “prática discursiva” , proposta por
Foucault, é o indício dessa inovação teórica, no fundo ma­
terialista, que consiste em não aceitar nenhum “ discurso”
fora do sistema de relações materiais que o estruturam
e constituem. Essa nova categoria estabelece uma linha
divisória entre a Archéologie du Savoir e L e s M ots et les
Choses. M as é preciso evitar mal-entendidos: por “prá­
tica” não se entende a atividade de um sujeito, e sim a
existência objetiva e material de certas regras às quais
o sujeito tem que obedecer quando participa do “discur­
so”. Os efeitos dessa disciplina do sujeito são analisados
no exame das “posições do sujeito” : voltaremos ao as­
sunto. N o momento, é a seguinte a definição positiva do
discurso segundo a Archéologie-. as relações discursivas
não são internas ao discurso, não são os nexos que exis­
tem entre conceitos ou palavras, frases ou proposições;
mas não são externas tampouco, não são “circunstâncias”
exteriores susceptíveis de coagir o discurso; ao contrário,
‘tais relações “ determinam o feixe de relações que o dis­
curso deve manter para ter condições de tratar de tais ou
lais objetos, e processá-los, nomeá-los, analisá-los, classi­
ficá-los, explicá-los, etc. E Foucault conclui: “essas re­
lações caracterizam não a língua que o discurso utiliza,
não as circunstâncias nas quais êle ocorre, mas o próprio
discurso enquanto prática.” (p. 63). D aí a noção de re­
gra ou regularidade discursiva para designar as normas
dessa prática. D aí a definição, já mencionada, dos “ob­
jetos” dessa prática como “efeitos” das regras, ou “ feixe
de relações” : é preciso, com efeito, definir os objetos sem
referência ao fundo das coisas, e referi-los ao conjunto
das regras que permitem form á-los como objetos de um
discurso e que constituem as suas condições de apareci­
mento histórico” , (p. 65).

A Instância do Saber

Foi assim que se construiu a noção de “saber”, ob­


jeto próprio da arqueologia. O que é saber? É precisa­
mente “aquilo de que se pode fa la r numa prática discur­

51
siva, que se vê assim especificada: o domínio constituído
pelos diferentes objetos que adquirirão ou não estatuto
científico.” (p. 238). “Um saber é também o campo de
coordenação e subordinação dos enunciados em que os
conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transfor­
mam.” (ibid .) Eis como, ao contrário da epistemologia,
a arqueologia percorre “ o eixo prática discursiva-saber-
-ciência” . (p. 239). A noção de ruptura epistemológica
é assim revista em seu estatuto. O próprio da epistemo­
logia, segundo Foucault, é ignorar a instância do “saber” ,
a instância dessas relações ordenadas, cuja existência ma­
terial constitui a base sôbre a qual se instaura o conheci­
mento científico. O que se trata de mostrar é como “uma
ciência se inscreve e funciona no elemento do saber.”
Haveria um “espaço” no qual, por um jôgo interno como
as relações que o constituem, uma ciência determinada
form aria o seu objeto: “ A ciência, sem se identificar
com o saber, mas sem o obliterar ou excluir, se localiza
nêle, estrutura alguns dos seus objetos, sistematiza al­
gumas de suas enunciações, formaliza alguns dos seus
conceitos e estratégias” , (pp. 241-242).
Voltaremos oportunamente a êsse “jôgo” imaginado
por Foucault, sobretudo no contexto de um exemplo pre­
ciso, que é a relação entre M arx e Ricardo. Basta, por
enquanto, ter mostrado os princípios da análise e seus
efeitos sôbre as “disciplinas” existentes.

O Ponto de Fuga da Arqueologia

Retomemos o percurso de Foucault em seu princípio:


êsse percurso parece m arcar com muita propriedade os
limites da epistemologia, e demonstra a necessidade de
elaborar uma teoria do que denomina as “ relações dis­
cursivas” ; uma teoria das leis de tôda “formação discur­
siva” . Ora, é aqui que se delineiam os limites da própria
“arqueologia”. Se nossa interpretação é correta, a tare­
fa da arqueologia é constituir a teoria da instância “dis­
cursiva” , na medida em que tal instância é estruturada
por relações incarnadas em instituições e regulamenta­
ções historicamente determinadas. Essa tarefa é efetua­
da por Foucault sob a form a da descrição; “não chegou
ainda o tempo da teoria” como êle próprio diz, no capítu­
lo intitulado “Descrição dos Enunciados” . Ora, em nossa
opinião, êsse tempo já chegou, mas a teoria não virá de
Foucault, a menos que reconheça os princípios necessá­

52
rios para a formulação de tal teoria. Êsses princípios são
os da ciência da história. Pois o que existe de mais posi­
tivo na Archéologie é a tentativa de instaurar, sob o no­
me de “form ação discursiva”, uma teoria materialista e
histórica das relações ideológicas e da formação dos ob­
jetos ideológicos. M as em última análise, em que se ba­
seia êsse esboço de teoria? E m uma distinção tàcítamen-
te aceita, sempre presente mas nunca teorizada, entre
“ práticas discursivas” e “práticas não-discursivas” . Tôdas
as suas análises conduzem a essa distinção; mas é uma
distinção feita às cegas, enquanto que o que se impõe é
pensá-la explicitamente sob a form a de uma teoria. Cons­
truída essa teoria, Foucault se encontraria num terreno
distinto, como aliás êle próprio prevê.

Essa distinção está sempre presente: produzida a ca­


tegoria de “prática discursiva” , Foucault tem que reco­
nhecer que essa prática não é autônoma; que a transfor­
mação e a renovação das relações que a constituem não
resulta do jôgo de uma simples combinatória, e que sua
compreensão exige a referência a práticas de outra na­
tureza. Desde o início, como vimos, Foucault se propõe
determinar as relações entre enunciados; mas pretende,
igualmente, estudar as relações “ entre enunciados ou gru­
pos de enunciados e acontecimentos de outra ordem (téc­
nica, econômica, social, política.” (p. 41). Além disso,
para seguir a ordem do livro, uma estranha distinção apa­
rece na definição do discurso como prática. A s relações
“discursivas” são ditas secundárias, por oposição a outras
relações ditas primárias, que, “independentemente de
qualquer discurso ou objeto de discurso, podem ser des­
critas entre as instituições, técnicas, formas sociais, etc.”
(p. 68). E mais adiante: “A determinação das escolhas
teóricas efetivamente efetuadas depende também de ou­
tra instância. Essa instância se caracteriza antes de mais
nada pela função que deve exercer o discurso estudado
num campo de práticas não discursivas.” (p. 90).

Poderíamos citar outros exemplos que provam que


Michel Foucault tem necessidade dessa distinção, mas a
pratica sob a form a da justaposição. É ela, em particular,
que funciona a propósito da análise das relações entre
Ricardo e Marx. Ê nesse ponto que o “sistema de refe­
rências recíprocas” de Foucault revela a sua inconse-
quência. Mudemos de terreno.

53
S A B E R E ID E O L O G IA

O terceiro p arágrafo do capítulo “ Ciência e Saber”


se intitula “saber e ideologia” . O confronto dos dois tí­
tulos indica do que se trata: do exame crítico das teses
propostas por Althusser, em livros já antigos, sôbre as
relações entre ciência e ideologia. Essas teses, que tive­
ram, em seu tempo, sem qualquer dúvida, um valor teó­
rico e um alcance político revolucionário, utilizam, para
seus próprios fins, uma noção de “corte” ou “ruptura”
essencialmente bachelardiana. Já vimos que Foucault
propõe na Archéologie um sistema de categorias para re­
pensar — e retificar — esta concepção do corte ou da
ruptura, que segundo êle tem pouco valor descritivo e
está associada a conotações antropologistas. Compreen­
demos assim porque a distinção ciência-ideologia tem que
ser modificada; é o que procura fazer quando analisa as
relações entre a ciência e o “sa b e r”. O que o leva a
pensar a diferença entre o que chama “ saber” e o que
Althusser chamava a “ideologia” . Ê precisamente com
essa última análise que termina a Archéologie. Foucault
utiliza três argumentos, correlativos das determinações do
nôvo conceito de “saber” :

(a ) se o saber é constituído por um conjunto de prá


ticas — discursivas e não-discursivas — a definição de
ideologia utilizada por Althusser é excessivamente es­
treita. “A s contradições” , escreve Foucault, “as lacunas,
os defeitos teóricos, podem denunciar o funcionamento
ideológico de uma ciência (o u discurso com pretensões
cien tíficas); podem permitir determinar em que ponto do
edifício êsse funcionamento começa a se manifestar. M as
a análise dêsse funcionamento deve ser feita ao nível da
positividade e das relações entre as regras de formação
e as estruturas da cientificidade.” Em suma, é tôda uma
concepção da ideologia como não-ciência pura e simples
que é visada. P ara Foucault, essa concepção da ideologia
é infiel aos seus próprios objetivos: num certo sentido,
é ela própria ideológica. Limita-se a notar de uma forma
mecanicista e em última análise antidialética os efeitos
da inserção da ciência no saber. Ora, é preciso deslocar
a análise, e não se contentar, com os olhos fixos na ciên­
cia, em fazer da ideologia o simples reverso da ciência,
sua insuficiência ou desfalecimento, como algumas análi­
ses unilaterais de Althusser deram a entender. Ê preciso,
para apreender a chamada “ ruptura”, analisar a rêde de

54
relações que constituem o saber, e sôbre as quais emerge
a ciência.

(b ) Se o saber é investido em certas práticas — dis­


cursivas e não-discursivas — o aparecimento de uma ci­
ência não elimina, num passe de mágica, essas práticas.
Ao contrário, elas subsistem, e coexistem — mais ou me­
nos pacificamente — com a ciência. Consequentemente:
“a ideologia não é exclusiva da cientificidade. ( . . . ) A o
•se corrigir, retificar seus erros, e aperfeiçoar suas form a­
lizações, um discurso não se emancipa necessàriamente
da ideologia. O papel da ideologia não diminui à medida
que aumenta o rigor e se dissipa o êrro.” Em outros têr-
mos, se o que se visa com a palavra “ideologia é o “sa­
ber”, cumpre reconhecer que sua realidade, a materiali­
dade de sua existência numa formação social dada é tal
que não pode se dissipar como uma ilusão, da noite para
o dia; ao contrário, o saber continua a funcionar e lite­
ralmente a assediar a ciência ao longo de todo o processo
dc sua constituição.

(c ) A história de uma ciência não pode portanto ser


concebida senão em sua ligação com a história do “sa­
ber”, isto é, a história das práticas — discursivas e não-
-discursivas — em que êsse saber consiste; trata-se de
pensar as transformações dessas práticas: cada transfor­
mação modificará a form a de inserção da cientificidade
no saber, e estabelecerá um nôvo tipo de relação ciência-
-saber. “ É por isso que a questão do nexo entre a ideo­
logia e a ciência não é a questão das situações ou práti­
cas que a ciência reflete de form a mais ou menos cons­
ciente; nem a questão de sua utilização eventual ou do
mau uso que se pode fazer da ciência; é a questão de sua
existência como prática discursiva e de seu funcionamen­
to entre outras práticas.”

Surge agora à luz do dia êsse “sistema de referên­


cias recíprocas” implícito, mas determinante, mascarado
pela auto-referência constante, e aqui paradoxal, do au­
tor à sua obra. Tínhamos, assim, razão de suspeitar que
o procedimento pelo qual Foucault apresentava como
constitutivo do seu trabalho um sistema de referências
recíprocas cujos elementos êle próprio invalida constituía
uma peça que Foucault pregava a êle mesmo e ao leitor.
Com efeito, o que se evidencia no fim dessas análises
(exatamente no fim, como se observou) é que o sistema

55
da “arqueologia” foi inteiramente construído para com­
pensar a inadequação da antinomia ciência-ideologia para
explicar essas “falsas ciências” ou “positividades” que
são o objeto próprio de Foucault. A Archéologie du Sa­
voir nasce de um impasse. Para resolver êsse impasse,
dois caminhos — e somente dois — se ofereciam a Fou­
cault: tentar solucionar a dificuldade por seus próprios
meios, ou recorrer ao materialismo histórico, à ciência
da história, e verificar se a oposição ciência-ideologia se
reduzia à que tinha sido enunciada por Althusser, provi­
soriamente, e por necessidade. M ais precisamente: veri­
ficar se os conceitos fundamentais do materialismo his­
tórico não permitiam form ular uma teoria da ideologia
susceptível de resolver a dificuldade encontrada. Michel
Foucault escolheu — corajosamente, diriam alguns — o
primeiro caminho. Tentaremos, para terminar, propor
uma razão, não-psicologista, para essa escolha. N o mo­
mento, precisamos ver suas conseqüências. P a ra jo g ar
com as cartas na mesa, e antecipar um pouco os nossos
resultados, podemos dizer de saída que a natureza da
ideologia é tal que não é possível imaginar, em relação
a uma ciência constituída e viva, um discurso continua­
mente paralelo. Chega um momento em que a contradi­
ção reaparece, em que o “ deslocamento” se faz sentir
pelos seus efeitos, em que a escolha, a princípio escamo­
teada, se impõe novamente, com maior urgência. É o
que vamos mostrar.
O discurso paralelo: tendo reconhecido uma dificul­
dade real, cujos têrmos e cuja solução pertencem, de di­
reito e de fato, ao materialismo histórico, Foucault pro­
põe um certo número de conceitos homólogos, ainda que
deslocados. A simple3 formulação dêsses conceitos, para
quem sabe entendê-los, encerra as condições de sua reti­
ficação.
Tudo depende, como se viu, do uso do conceito de
“prática.” É nesse ponto que a distância entre o materia­
lismo histórico e a “arqueologia” é mínima; o exame
mostrará, sem paradoxo, que é nêle também que a dis­
tância é máxima. Com efeito, é a categoria da prática —
tão estranha às obras precedentes de Foucault — que
define o campo da “ arqueologia” : nem língua, nem pen­
samento, como vimos, mas o chamado “ pré-conceitual”
(p. 82). O nível pré-conceitual, assim liberado, escreve
êle, não está ligado nem a um horizonte de idealidade
nem a uma gênese empírica das abstrações. De fato, o

56
que se busca não são as estruturas ideais do conceito,
mas o “ lugar de emergência dos conceitos” ; não se pre­
tende, tampouco, explicar estruturas ideais pela série das
operações empíricas que as teriam engendrado; o que se
descreve é um conjunto de regras anônimas historica­
mente determinadas que se impõem a qualquer sujeito
que fala, regras não universalmente válidas, mas que têm
sempre um domínio de validade bem especificado. A de­
terminação principal da categoria arqueológica da “prá­
tica” é a “re gra ” , a “regularidade” . É a regularidade que
estrutura a prática discursiva, é a regra que ordena tôda
formação discursiva; (p. 63). A função da “re gra ” pode
ser facilmente explicitada: através dela, Foucault pro­
cura pensar ao mesmo tempo — em sua unidade — as
relações que estruturam a prática discursiva, seu efeito
coercitivo sôbre os “ sujeitos” que falam, e o que chama,
enigmaticamente, de embreagem de um tipo de prática
sôbre outro.
O primeiro ponto já foi analisado; acrescentaremos
apenas que a “regularidade” não se opõe à “irregulari­
dade” : se a regularidade é a determinação essencial da
prática, a oposição regular-irregular não é pertinente.
Não se pode dizer, por exemplo, que numa formação dis­
cursiva uma “invenção” ou “descoberta” escape à regula­
ridade: “uma descoberta não é menos regular, do ponto
de vista enunciativo, que o texto que a repete e difunde;
a regularidade não é menos operante, menos eficaz ou
ativa numa banalidade que numa formulação insólita.”
(p. 189). A irregularidade é uma simples aparência, ex­
plorada por êsses historiadores do genial, que, como bons
adoradores do “ sujeito” (ou pelo menos de alguns sujei­
tos brilhantes) são fundamentalmente continuistas. Essa
aparência se produz quando uma modificação se opera
num ponto determinado da formação discursiva, e por­
tanto na e sob a regularidade existente num momento
histórico dado. Segundo o ponto em que ocorre, essa
mutação será mais ou menos sensível, terá mais ou me­
nos efeitos (outros diriam: será mais ou menos “genial” ).
Surge assim uma nova determinação da formação dis­
cursiva: é estruturada hieràrquicamente. Existem, com
efeito, “enunciados retores” , que delimitam o campo dos
objetos possíveis e traçam a linha divisória entre o “vi­
sível” e o “invisível”, entre o “ pensável” e o “impensá­
vel” , ou melhor (em têrmos “arqueológicos” ) : entre o
enunciável e o não-enunciável; que designam o que é in­

57
cluído numa formação discursiva pelo que ela exclui. A
aparência de irregularidade é portanto um simples efeito
da modificação do “reitorato”. Seria necessário aqui co­
mentar por extenso a análise contida nas páginas 192-
193, baseada no exemplo da História Natural.
Segundo ponto: essa regularidade hierárquica se im­
põe a qualquer “ sujeito” . E is o que escreve Foucault a
propósito da medicina clínica: “A s posições do sujeito
se definem em relação aos diversos objetos ou grupos de
objetos: é sujeito questionante segundo uma certa grade
de interrogações, explicitas ou não, e sujeito que escuta,
segundo um certo program a de informação; é sujeito que
olha, segundo uma tábua de traços característicos, e su­
jeito que anota, segundo um tipo descritivo. . . (p. 71).
E mais adiante: “as diversas situações que pode ocupar
o sujeito do discurso médico foram redefinidas no início
do século X IX , com a organização de um campo percep-
tivo distinto, (ib id .)”
O terceiro ponto é fundamental: é nêle que se acumu­
lam tôdas as contradições do projeto “ arqueológico” ; é
aqui que a categoria prática, segundo Foucault, revela a
sua inadequação: pois só permite pensar a unidade do
que ela designa através de uma justaposição. M ostrare­
mos que isto ocorre devido à ausência de um princípio
de determinação. Ora, se o que dissemos é exato, essa au­
sência é o efeito do caminho escolhido por Foucault; e
assinala o ponto em que a necessidade do outro caminho
se impõe, em que a retificação pode começar.
Foucault se vê forçado a pensar c que constitui à re­
gularidade da regra, o que ordena a sua estrutura hie­
rárquica, o que produz as suas mutações, o que lhe con­
fere o caráter imperativo para todo sujeito. Ora, em
cada um dêsses pontos, esbarra na mesma dificuldade. Ê
importante que essa dificuldade seja a mesma: isto sig­
nifica que Foucault concebe a necessidade de referir o
conjunto dêsse processo complexo a um mesmo princípio.
M as êsse mesmo princípio, se está presente em tôda par­
te, não é pensado nunca. E isto porque excede os limi­
tes da categoria da prática tal como funciona na Archéo­
logie. Já descobrimos êsse princípio: é a articulação das
práticas discursivas sôbre práticas não-discursivas.
Pode-se objetar: tudo isso para chegar ao mesmo
ponto enigmático contra o qual colidia o capítulo prece-
rente. Certamente, e é natural, porque, passado êsse
ponto, estamos fo ra de Foucault; mas atenção: conse­

58
guimos progredir em nosso percurso aparentemente cir­
cular, pois já determinamos os meios para escapar ao
círculo “arqueológico”. A o pensar como tal o ponto de
fuga, encontramos o caminho para dêle sair. Com efei­
to, podemos dizer agora para que serve a distinção p rá­
tica discursiva/prática não-discursiva: é uma tentativa
para repensar a distinção ciência/ideologia. Melhor: uma
tentativa para pensar em sua unidade diferencial duas
histórias: a das ciências e a da (ou das) id e o lo g ia (s ).
N ão mais enfatizar unilateralmente a autonomia da his­
tória das ciências, mas acentuar ao mesmo tempo a re­
latividade dessa autonomia. Ora, percorrendo êsse cami­
nho, Foucault deve reconhecer (e é êsse o seu mais alto
mérito) que a ideologia (pensada sob a categoria do
“ saber” como sistema de relações estruturado hieràrqui-
camente, e investido em práticas) não é, por sua vez, au­
tônoma. Sua autonomia é portanto ainda relativa. M as
Foucault está consciente do perigo que o ameaça: pen­
sar o “saber” como efeito puro e simples — ou reflexo
— de uma estrutura social. Em suma, para escapar ao
idealismo transcendental, cair num mecanicismo empiris-
ta que nada mais é que uma form a invertida do primeiro.
Donde seu extremo embaraço, e a fluidez metafórica das
categorias que propõe.
Ê preciso ver nesse desenvolvimento o que êle de
fato é: o “reconhecimento” de uma falha teórica no edi­
fício arqueológico. Primeiro reconhecimento: o papel das
instituições na “embreagem” . Retomando algumas aná­
lises da Naissance de la Clinique, Foucault escreve duas
páginas notáveis sôbre êsse assunto (pp. 6S-69) : limito-
-me a citar alguns trechos, sublinhando certas palavras
que ilustram a análise que proponho:
“Primeira pergunta: quem fala? Quem, dentre to­
dos os indivíduos falantes, tem o direito de usar êsse tipo
de linguagem? Quem é seu titular? Quem recebe dessa
linguagem a sua singularidade, e seu prestígio, e de
quem, por sua vez, a linguagem recebe senão a sua g a ­
rantia, pelo menos a sua presunção de verdade? Qual o
estatuto dos indivíduos que têm — e somente êles — o
direito regularmentar ou tradicional, juridicamente defi­
nido ou espontaneamente aceito, de proferir semelhante
discurso? O estatuto do médico comporta critérios de
competência e de saber; instituições, sistemas, normas
pedagógicas; condições legais que dão direito — fixando
os seus limites — à prática e ao exercício do saber. “ E

59
mais adiante: “a existência da palavra médica não é dis-
sociável do personagem estatutàriamente definido que
tem o direito de articulá-la, reivindicando para ela o po­
der de conjurar o sofrimento e a morte. M as sabe-se
também que êsse estatuto na civilização ocidental foi pro­
fundamente modificado no fim do século X V I I I e início
do século X IX , quando a saúde das populações tornou-se
uma das normas exigidas pelas sociedades industriais.”
“Sabe-se ta m b é m ...” Confessemos que Foucault
não nos fornece os meios para passar dêsse conhecimen­
to de oitiva a um conhecimento racional do processo de
modificação. Sempre o mesmo enigma: o da “embrea-
gem ”. M as êsse texto é excepcional, pois permite preci­
sar, em tôda a sua riqueza, o funcionamento da categoria
de “regra” em Foucault. Categoria solidária das noções
de estatuto, normas e poder. M ais exatamente: o esta­
tuto é definido por uma instância não-discursiva: é atra­
vés de uma parte do aparelho do estado que nós podemos
enunciar; o estado incarna, realiza um certo número de
normas definidas em função de imperativos econômicos.
Êsse estatuto, literalmente, dá corpo à profissão, e êsse
corpo investe o discurso que nêle se articula — e portan­
to os indivíduos que o enunciam — de um poder. Êsse
poder, cuja única existência está na prática discursiva dos
médicos, tem evidentemente uma relação, não precisada
por Foucault, com o poder do estado. Deixemos essa aná­
lise de lado; encontraremos em outros lugares o mesmo
problema.
O embaraço é idêntico em outros trechos. Assim (p.
61) descrevendo a form ação de um objeto do saber como
um “ feixe complexo de relações”, procede a um am álga­
ma indiscriminado: “essas relações são estabelecidas en­
tre instituições, processos econômicos e sociais, formas
de comportamento, sistemas de normas, técnicas, tipos
de classificação, modos de caracterização; essas relações
não estão presentes no objeto” .
Poderíamos citar outras passagens igualmente rap-
sódicas (principalmente à página 98).
Ê tempo de chamar as coisas pelo seu nome, e ver
por que, tendo tomado um caminho errôneo, Foucault ti­
nha necessariamente que chegar a um impasse. Coletan­
do os elementos colhidos durante o percurso, podemos
propor a análise seguinte: partindo da crítica da antiga
noção althusseriana de ideologia — estreita demais —

60
Foucault elabora a sua própria categoria de “saber” , fun­
dando-a num conceito mal construído de “prática” . M al
construído, porque tem que cindi-lo para que possa pre­
encher a sua função, e Foucault não pode explicar essa
cisão. M as como sua crítica é essencialmente correta,
consegue reproduzir, deslocando-as, as determinações do
conceito científico de ideologia, tal como êle funciona no
materialismo histórico. M as como se privou, de início,
dêsse conceito, quando surge a dificuldade essencial do
“vínculo” entre ideologia e relações de produção, perma­
nece sem voz, condenado a designar de maneira “ misti-
ficada” o lugar de um problema.

Explicitemos.

1. O conceito de ideologia que funciona no m ateria­


lismo histórico — em M arx e seus sucessores — não é
efetivamente o puro reverso da ciência. Foucault tem
absolutamente razão; a questão que êle suscita sôbre o
“regime de materialidade” da ideologia é uma questão
real (m a te ria lista ), de uma urgente necessidade teórica
para o materialismo dialético. Sabe-se que a ideologia
tem uma consistência, uma existência material — sobre­
tudo institucional — e uma função real dentro de uma
formação social. Ninguém ignora que no esquema, ainda
descritivo, proposto por M arx para a estrutura de uma
formação social, a ideologia (o u as ideologias) figu ra
na “superestrutura” . A superestrutura, determinada,
“em última instância” , pela infra-estrutura econômica,
teria um efeito de retorno sôbre a infra-estrutura. Dessa
forma, a ideologia não pode desaparecer pelo simples
fato do aparecimento da ciência. Compreendemos assim
porque Michel Foucault tem razão quando pretende tra ­
balhar “em outro nível” que o da epistemologia da “ rup­
tura” :
“A ruptura não é para a arqueologia o objetivo de
suas análises, o limite que ela assinala de longe sem po­
der determiná-lo nem lhe d ar sua especificidade: a rv/p-
tura é o nome dado às transfomações que incidem sôbre
o regime geral de uma ou várias formações discursivas” ,
(p. 231). Determinar a ideologia como “instância” de
toda formação social é com efeito pensar a ideologia não
mais em têrmos estritamente bachelardianos, como “um
tecido tenaz de erros” , urdido no segredo da imaginação,
como o “magma informe” dêsses “ monstros teóricos” que
precedem a ciência — e às vêzes lhe sobrevivem, com

61
uma existência patológica — mas é pensá-la em sua cons­ com a noção de “embreagem” , designa o lugar de um
tituição e funcionamento enquanto instância material problema teórico urgente: passar da teoria descritiva à
historicamente determinada, num todo social complexo teoria, simplesmente, das relações entre a ideologia e a
também determinado historicamente. O valor exemplar infra-estrutura. Sabemos que somente o materialismo
da Archéologie reside na tentativa de repensar nesses histórico pode resolver êsse problema. Sem poder solu­
têrmos a ideologia. cioná-lo aqui, podemos pelo menos precisar os têrmos do
2. N ã o obstante, essa tentativa culmina num fr a ­ problema: se é certo, como indica o esquema clássico,
casso: as análises “esbarram ” contra a distinção cega que a infra-estrutura é determinante, temos que pergun­
entre práticas discursivas e práticas não-discursivas. Se tar : no mecanismo que regula as relações entre êsses dois
o que dissemos é exato, nada disso é surpreendente. Pois sistemas que são as fôrças produtivas e as relações de
com essa única distinção, Foucault queria resolver três produção, o que produz a necessidade de um sistema de
problemas distintos. Três problemas que não podem ser sujeição ideológica? Será preciso um dia responder a essa
formulados senão nos conceitos do materialismo histó­ pergunta: o mérito de Foucault está em ter “ reencon­
rico. Três problemas que lançam Foucault no embaraço, trado” essa questão, ainda que de uma form a desfocada,
e em mostrar-nos a urgência de uma solução.
por não poder sequer colocá-los.
Problema n° 1: refere-se à relação entre uma “fo r­ Problema n- 2: refere-se ao estatuto dessas “falsas
mação ideológica” e o que Foucault chama “as relações ciências” que são o objeto próprio do trabalho anterior
sociais”, as “flutuações econômicas” , etc. Em suma, o de Foucault. Insiste: a Gramática Geral, a História N a ­
que designamos várias vêzes como o problema da “ em- tural, etc., podem certamente, em retrospecto, aos olhos
breagem ”. E m outros têrmos: numa formação social da­ da ciência constituída, ser ditas “ideológicas” ; sem dú­
da, que tipo de relações a ideologia mantém com a in­ vida seria possível inclusive mostrar que existe entre
fra-estrutura econômica? Pergunta ingênua, dir-se-á, à essas disciplinas “ideológicas” e o sistema das relações
qual um m arxista responderá fàcilmente com o esquema ideológicas existentes numa sociedade dada, num momen­
clássico da infra-estrutura e da super estrutura. M as essa to dado de sua história, uma estreita vinculação. Tôda a
resposta, por ser fácil e, no fundamental, exata, não é Archéologie tende a prová-lo. N ã o obstante, a Gram áti­
sem dúvida suficiente. É que ela é ainda descritiva; em­ ca G eral ou a História N atural não têm o mesmo esta­
bora tenha a vantagem inestimável de “m ostrar” a ordem tuto que a ideologia religiosa, moral e política que fun­
de determinação materialista, embora tenha um valor po­ ciona na formação social considerada. índice dessa dife­
lêmico incontestável contra tôdas as concepções idealis­ rença: essas disciplinas se atribuem — quer o queiramos
tas da história para as quais são as idéias que conduzem ou não — o título de “ciências.” Em suma, Foucault
o mundo, e embora, por essas razões decisivas, deva ser quer evitar uma redução, que chamaríamos de “ ideolo-
firmemente defendida como uma definitiva aquisição teó­ gista” , e no fundo tem caráter mecanicista. Propõe, de
rica do marxismo, que permite traçar uma linha de de­ fato, uma distinção entre duas “form as” de ideologia;
marcação entre os dois “campos” da filosofia, entre os distinção que seria, não formal, (umas seriam sistemati­
nossos adversários e nós, essa resposta puramente des­ zadas, e outras, n ão) mas fundada numa “diferença de
critiva não proporciona os instrumentos para pensar o nível.” E ssa distinção pode ser formulada nos conceitos
mecanismo que liga a ideologia enquanto sistema de re­ do materialismo histórico como uma distinção entre
lações' hierarquizadas que produzem um efeito de domi­ “ideologias práticas” e “ideologias teóricas.” Althusser
nação sôbre os “sujeitos” , e o modo de produção (no sen­ dá a seguinte definição das ideologias práticas: “ enten­
tido estrito), isto é, o sistema constituído pelas relações demos por ideologias práticas formações complexas de
de produção e pelas fôrças produtivas.1 É justamente montagens de noções-representações-imagens, de uma
êsse mecanismo que Foucault tenta pensar teoricamente; parte, e de montagens de comportamentos-condutas-ati-
tudes-gestos, de outra parte. Êsse conjunto funciona
(1) Cf. sôbre êsse tema o artigo de Althusser em La Pensée, n* como uma série de normas práticas que governam a ati­
151, junho, 1970. tude e a posição concreta dos homens em relação aos ob-

62 63
jetos reais e aos problemas reais de sua existência social
e individual, e em relação à sua história.” Como pensar
a “articulação” dessas ideologias práticas com as “ideo­
logias teóricas” ? O que é uma “ideologia teórica” ? São
essas as questões — formuladas em têrmos materialistas
— que Foucault se coloca. Ê aqui que a noção canônica
de arquivo assume todo o seu relêvo. Seria preciso, para
mostrá-lo, examinar linha a linha o capítulo intitulado
“O a priori histórico e o arquivo” (pp. 166-173). Justi­
ficando o emprêgo da primeira locução, diz Foucault:
“ Justapostas, essas duas palavras são um pouco chocan­
tes; quero designar com isso um a priori que seria, não
uma condição de validade para julgamentos, para uma
condição de realidade para enunciados”. Donde se se­
gue que o arquivo — tomado num sentido radicalmen­
te nôvo — é “em primeiro lugar, a lei do que pode ser
dito, o sistema que rege a aparição dos enunciados como
acontecimentos singulares.” E mais genericamente: “é o
sistema geral da form ação e transformação dos enuncia­
dos” .
M as já vimos que êsse sistema geral não é autôno­
mo; a lei de seu funcionamento é sujeita a outro tipo de
“regularidade” , a das práticas não-discursivas. Diremos
que a formação dos objetos das ideologias teóricas sofre
a influência das ideologias práticas. M ais precisamente:
as ideologias práticas conferem suas formas e seus limi­
tes às ideologias teóricas. Trabalhando ao nível do ar­
quivo, Foucault nos convida a pensar o mecanismo que
regulamenta êsses efeitos; coloca-nos o problem a: se­
gundo que processo específico as ideologias práticas in­
tervém na constituição e funcionamento das ideologias
teóricas? Ou ainda: como as ideologias práticas se “re ­
presentam” nas ideologias teóricas? Mais uma vez, Fou­
cault suscita um problema real — e urgente. A resposta
de Foucault na Archéologie é um esbôço a re-trabalhar
sôbre o terreno sólido do materialismo histórico.
Problema n" 3: refere-se ao tipo de relação que exis­
te entre uma ideologia teórica e uma ciência. A qui a
contribuição de Foucault é importante: mostra-nos que o
problema não pode ser resolvido em têrmos de objetos.
Comparar os objetos de uma ideologia teórica aos de uma
ciência é condenar-se à descrição de uma ruptura que
não explica nada. Provando a necessidade de “ passar”
pela categoria do “saber” — tal como a elaborou —
Foucault coloca o problema com exatidão. Êsse proble­

64
ma não é o das relações de uma ciência determinada à
ideologia teórica que parece lhe “corresponder”, mas o
de uma ciência ao sistema constituído pelas ideologias
teóricas e pelas ideologias práticas. Ora, se, como vimos,
as ideologias práticas se “representam” nas ideologias
teóricas, impondo-lhes suas formas e limites, é preciso
admitir que uma ciência só pode aparecer graças a um
jôgo nesse processo de limitação; eis porque Foucault
propõe substituir ao têrmo de ruptura o têrmo em nossa
opinião mais feliz de irrupção. Essa irrupção se faz no
saber, isto é, no espaço material em que funciona o sis­
tema das ideologias práticas e teóricas. É dessa forma,
segundo Foucault, que se deve pensar a inserção de uma
ciência em uma form ação social; é dessa form a que se
evita ao mesmo tempo o idealismo, para o qual a ciência
cai do céu, e o mecanicismo-economicista, para o qual a
ciência é um simples reflexo da produção.
É tempo de mostrar por um exemplo como pode
funcionar êsse tipo de análise. Tomemos o problema das
relações entre M arx e Ricardo. Foucault escreve êsse
texto importante: “ Conceitos como os de mais-valia ou
da baixa tendencial da taxa de lucros, encontrados em
M arx, podem ser descritos a partir do sistema de positi­
vidade que já existe em Ricardo; ora, êsses conceitos
(que são novos, mas cujas regras de formação não o são)
aparecem em M arx como tributários de uma prática dis­
cursiva completamente diferente: formados segundo leis
específicas, ocupam nessa prática uma outra posição, não
figuram nos mesmos encadeamentos. E ssa positividade
nova não é uma transformação das análises de Ricardo;
não é uma nova economia política; é um discurso cuja
instauração teve lugar pela derivação de certos conceitos
econômicos mas que por sua vez define as condições den­
tro das quais se exerce o discurso dos economistas, e
portanto pode valer como teoria e crítica da economia
política.” (p. 230).
O melhor comentário que se possa fazer dessa aná­
lise consiste em confrontá-la com uma passagem do Pos-
fácio da segunda edição alemã do Capital (E S pp. 24-25) :
“ . .. enquanto disciplina burguesa, isto é, na medida em
que vê na ordem capitalista não uma fase transitória do
progresso histórico, mas a form a definitiva e absoluta
da produção social, a economia política só pode ser uma
ciência se a luta de classes permanecer latente ou se ma­
nifestar apenas por fenômenos isolados. Tomemos a In­

65
glaterra. O período em que a luta de classes ainda não
está desenvolvida é também o período clássico da econo­
mia política. Seu último grande representante, Ricardo,
é o primeiro economista que transform a o antagonismo
dos interêsses de classe, a oposição entre salário e lucro,
lucro e renda, no ponto de partida de suas pesquisas. R i­
cardo form ula ingenuamente êsse antagonismo, com efei­
to inseparável da própria existência das classes que com­
põem a sociedade burguesa, como a lei natural, imutável,
da natureza humana. Êsse é um limite que a ciência bur­
guesa não poderá ultrapassar.” A qui aparece o interêsse
excepcional do texto de Foucault: compreendemos como
os objetos de Ricardo e M arx pertencem à mesma “fo r­
mação discursiva” , como essa ideologia teórica que é a
economia política clássica é determinada em sua consti­
tuição por um sistema de limites produzidos pela fôrça
coatora das ideologias práticas; compreendemos também
a insuficiência do ponto de vista epistemológico da rup­
tura (ou corte). Mas compreendemos também o que
falta à Archéologie: um ponto de vista de classe. Ê por­
que M arx se situa na perspectiva do proletariado que
inaugura uma “nova prática discursiva” . Em outros têr­
mos: as ideologias práticas são atravessadas por contra­
dições de classes; o mesmo ocorre com seus efeitos nas
ideologias teóricas. Somente uma modificação no siste­
ma de contradições assim constituído permite passar da
ideologia à ciência. E ssas reflexões, que nos foram suge­
ridas pela Archéologie_, ainda que rudimentares, ultrapas­
sam o quadro do trabalho de Foucault. E o ultrapassam
necessariamente: e sua ausência explica o deslocamento
de todos os conceitos foucaultianos. P o r isso, a Archéo­
logie permanece ela própria uma ideologia teórica. Ora,
segundo o que dissemos, é preciso situar-se numa posição
de classe p ara poder compreendê-lo. Vemos agora o sen­
tido da escolha de Foucault entre o materialismo histó­
rico e suas próprias construções: essa escolha teórica,
em última análise, é política. Vim os quais os efeitos dessa
escolha: ela fix a à Archéologie limites que não poderão
ser ultrapassados. A o contrário, se o “arqueólogo” mu­
dar de terreno, descobrirá muitas outras riquezas. Ülti-
mo detalhe: terá deixado, então, de ser “ arqueólogo” .

66
Discurso Científico e Discurso Ideológico
Por Carlos Henrique de Escobar

Nosso enfoque de Michel Foucault é crítico. Suas


posições não coincidem com as nossas posições visto que
temos por adquirido, na reflexão dos discursos, as ques­
tões mesmas da história, da diferença entre os discursos
ideológicos e os discursos científicos, senão também, so­
bretudo, as articulações que estas questões passam, a ter
numa ciência dos discursos ideológicos.
Ora, se nos dedicamos aqui a criticar suas posições
— sem muita sistematização — isto não quer significar
que desconheçamos sua importância e a m arcada origi­
nalidade de todos os seus trabalhos. Dito isso previnimos
igualmente o leitor de que êste artigo se constitui de um
texto extraído do segundo capítulo de um livro (a ser
editado) que se dirige a pensar o estatuto dos discursos
ideológicos na história.
Caso os trabalhos de Foucault ( Doença mental e psi­
cologia, História da loucura na idade clássica, 0 Nasci­
mento da clínica, A s palavras e as coisas e a Arqueologia
do saber) sejam o esforço de pensar os discursos “espon­
tâneos” em têrmos radicalmente novos, será necessário
que, mais tarde ou mais cedo, êles se definam por respei­
to à história, aos discursos ideológicos, ao corte epistemo­
lógico, e por aí se decidam a pensar uma teoria da ciên­
cia e uma teoria da história da ciência.
Pois em que medida, as delimitações e descrições
dos discursos, tanto quanto a crítica em detalhes da “his­
tória das idéias “ {Arqueologia do saber) podem signifi­
car qualquer coisa teoricamente válida sem estas defini­
ções? Definições estas que afinal enraizariam as “ posi­
ções” de Foucault e impediriam que seus livros ganhas­

67
sem sempre o estatuto de aproximações na ausência de
qualquer coisa, ademais, fundamental para a clareza e a
cientificidade de uma reflexão sôbre os “discursos” .
Se Foucault tem o mérito de nos conceder através
de suas análises (d a clínica, da loucura, das epistemes,
etc) uma história cujo objeto é complexo e fecundo (1 ),
por outro lado esta história termina por comprometer-se
com um acabamento form al bastante suspeito. Isto é, a
história foucaultiana — por insólita que pareça — oscila
entre os extremos idealistas do tudo e do nada; dos dis­
cursos complexificados e da rigidez das epistemes. E se,
por um outro lado, por exemplo, êle restitui ao discurso
da “loucura” , criticamente, um interesse particular, êle
não consegue efetivamente conceder-lhe um estatuto. O
que, ademais, somente seria possível numa ciência dos
discursos ideológicos, onde os discursos então se m ostra­
riam em suas “propriedades” na história.
E sta oscilação idealista do acabamento form al ab­
soluto e da pluralidade dos materiais disponíveis, por
onde se organiza uma “história”, é uma atitude comum
dos estruturalistas. E ela o é na medida mesma em que
se constitui no mecanismo empirista das filosofias da
história. Objetivamente ela se inspira na leitura equívo­
ca que os estruturalistas fizeram de Saussure, ou, mais
precisamente, ela é uma leitura equívoca daquela questão
que em Saussure diria respeito a uma crítica às posições
em lingüística que procuravam pensar esta ciência nos
“ fatos heteróclitos da linguagem” sem ascenderem, por
uma abstração, à “langue”, etc. Pelo menos foi o que se
pensou estar escrito no Cours de linguistique générale.
Ora, Saussure (in "Introduction ”, “Objet de la linguisti­
que” , ibid.) não está fazendo uma leitura empírica dos
fundamentos possíveis de uma lingüística, mas procuran ­
do pensar a sua epistemologia, que em sendo científica
se ocupa em distinguir seu objeto (objeto de conheci­
mento) das lingüísticas ideológicas que trabalham com
os fatos da língua. É porque então esta “langue” saus-
surianà não é uma abstração idealista dos “fatos heteró­
clitos de linguagem” (como são, ademais, as arquitetu­
ras “ históricas” das análises foucaultian as), mas sim
uma teoria, um discurso científico.

(1) "A descrição da ep istem e apresenta diversos aspectos essen­


ciais: ela abre um campo inesgotável e não pode jamais ser fecha­
do". pág. 250, in L ’A rch é o lo g ie du Savoir. Gallimard, 1969.
68
E sta estratégia (o u “método” ) de procurar pensar
( “descrever” ) os fatos heteróclitos trocando-os por fo r­
mas ( “ modelos” ) subscreve os equívocos dessa “leitura”
infeliz de uma lingüística que na verdade é bem outra
coisa. Estratégia esta cujo fundamento continua sendo
o da distinção entre o visível e o invisível, o aparente e o
subjacente, o que aparece e é múltiplo e as epistemes,
etc.
Pois bem, nosso objetivo com estas considerações
críticas a Foucault pretende ilustrar a necessidade tanto
de uma ciência dos discursos ideológicos quanto (e po-
risso mesmo) de uma teoria da ciência que em seu esta­
tuto epistemológico é incompatível com as soluções até
então apresentadas por Foucault. Por exemplo, procure­
mos pensar inicialmente estas “ausências” (ausência
destas questões) nas posições mesmas que Foucault ado­
ta por respeito à “loucura”. De que vale sustentar que
a “loucura” é falada numa linguagem que não lhe per­
tence se as linguagens mesmas (o s discursos) não pos­
suem ainda um estatuto conhecido? Estamos de acôrdo
que uma linguagem “normal” falou arbitrariamente da
“ loucura” , mas não sabemos como nem por que esta lin­
guagem pode fa la r de uma outra e em que têrmos (na
estrutura e na história dos discursos) se dá esta subor­
dinação. E isto porque estas linguagens são considera­
das e analisadas em nível especulativo, isto é, fora de
uma ciência (dos discursos) capaz de pensar o estatuto
dos discursos ideológicos e científicos e de sua articula­
ção com a história.
Michel Serres (2 ) no entanto se delicia com estas
reflexões de Foucault, e nos diz mesmo que êste autor
abre caminho para a total inteligibilidade da linguagem
da loucura na medida em que se decide (n a História da
loucura na idade clássica) a deixar “ a loucura fa la r” .
Diz Serres: “ . . . é necessário ademais dar a palavra
àquele que jamais fo i escutado, mesmo se a coerência do
seu verbo é louca”, ou “ . . . durante três séculos de mi­
sérias se falou de um mudo; e eis que êle reedbra sua
linguagem abolida, eis que êle se põe a fa la r dêle mesmo
c sôbre êle mesmo” (3 ). Esta “imensa contribuição”
atribuída às teses de Foucault nos parece exagerada, já

12 ) H e rm e s ou la com m unicationJ cap. “D’Erehwona 1'antre du


Cyclope”, Minuit| 1968.
Cí) Pág. 169.
69
que o essencial continua faltando, isto é, em que medida
abandonou-se uma problemática especulativa por uma
problemática científica para se tratar destas questões?
Encaremos um aspecto, apenas um, dêsse corpo de
considerações de Serres; aquêle que aproxim a Foucault
(deixar “ a loucura fa la r” ) de Freud. E sta aproximação
nos parece basicamente equívoca, e ela o é porque Freud
pensa e produz a “grande re g ra ” (o discurso livre) pen­
sando nos discursos psicopatológicos e não propriamente
nos discursos da “loucura”. Freud deixou de tal maneira
os elementos de uma ciência dos discursos ideológicos a
mão, de todos aquêles que o quiserem ler na pureza dos
seus enunciados, que é impossível se referir a êle sem
pensar o estatuto diferencial dos discursos “normal” , da
“ loucura” e dos discursos, enfim, psicopatológicos. D aí
porque o “discurso livre” de Freud tem um lugar preciso
em sua ciência, e se refere a um tipo de discurso, com a
condição de precisarmos suas funções terapêuticas e teóri­
cas, que não se confunde com os discursos ideológicos po­
lares propriamente. Ora, nós não confundimos o discurso
da “loucura” (4 ) com os discursos “perturbados” , sejam
êstes últimos discursos psicopatológicos do ângulo (con­
flitante) dos discursos “normais” ou do ângulo (confli­
tante) dos discursos da “ loucura” . Se fôsse o caso de
pensar uma relação qualquer dos discursos da “loucura”
com a ciência (contudo nós sabemos que não é a ciência
que corta epistemològicamente com a “ loucura” ) (5 ) se­
ria o caso então de se pensar numa psicanálise do ângulo
da “loucura” , capaz de fa la r dos desvios discursivos dêste
tipo de discurso.
Como aproxim ar o “deixar fa la r” do discurso livre
da técnica analítica de Freud — quando debruçado sôbre
as questões concernentes aos discursos psicopatológicos
— com o “ deixar fa la r a loucura” de Foucault, se êste
último não se ocupa de um discurso psicopatológico mas
de um discurso em si mesmo específico e histórico? O
"deixar fa la r a loucura” é uma questão no interior da

(4) Não podemos nos deter aqui em exaustivas exposições destas


nossas posições. Trabalho que realizamos em nosso livro.
(5) Ver In tro d u çã o do nosso trabalho: "Ciência dos discursos ideo­
lógicos”. A relação de corte do discurso da arte — na direção daquilo
que chamamos a segunda ve rte n te — é com o discurso da loucura.
Paralelamente então com o corte epistem ológico que distingue os
discursos científicos dos discursos ideológicos “razoáveis".
70
subordinação histórico-estrutural do discurso da “loucu­
ra ” ao discurso “normal” e se destaca do universo assis­
tido (fa la r e ouvir) dos discursos “perturbados” tanto
do ângulo dos discursos “ normais” quanto dos discursos
da “loucura”.
N ã o escondemos o fato de estarmos aqui tocando
aspectos, e até mesmo teses, em grande parte desconhe­
cidas do público, e que certamente mereceriam explicação
detida já que elas suportam todas as nossas críticas. Seja
como fôr procuraremos não ir neste artigo além de um
questionamento de Foucault em tôrno das questões mais
gerais, que desde o comêço lembramos, tais como a au­
sência de uma ciência dos discursos ideológicos, impossi­
bilidade de refletir a ciência da história, indiferença à
distinção dos discursos ideológicos frente aos discursos
científicos, etc.
Esta unidade de questões serve tanto mais a uma
avaliação da obra de Foucault na medida em que elas
estão presentes desde o comêço, isto é, na medida em que o
empreendimento teórico de Foucault permanece do co­
mêço ao fim o mesmo empreendimento original.

Por exemplo, da afirmação do Maladie Mentale et


Psychologie: “Gostaríamos de mostrar que a raiz da p a­
tologia mental não deve ser procurada em uma “metapa-
tologia” qualquer, mas numa certa relação, historicamen­
te situada, entre o homem e o homem louco e o homem
verdadeiro” (5 ), ou: “ A s dimensões psicológicas da lou­
cura ( . . . ) devem situar-se no interior desta relação ge­
ral que o homem ocidental estabeleceu há praticamente
dois séculos consigo mesmo” (6 ), ou: “O reconhecimen­
to que permite dizer: êste é um louco, não é um ato sim­
ples nem imediato. Êle repousa, na verdade, em um certo
número de operações prévias e sobretudo nesta delimita­
ção do espaço social segundo as linhas da valorização e da
exclusão” . Ou então no Naissance de la clinique: “Aqui,
como em outras partes, trata-se de um estudo estrutural
que procura decifrar na espessura do histórico as condi­
ções da história mesma” ; e logo em seguida: “O que con-
la nos pensamentos dos homens não é tanto o que êles
pensaram, senão o não-pensado, que desde o comêço do
jôgo os sistematiza, fazendo-os para o resto do tempo

(5) Ibid. in "Introduction".


d!) Ibid. in “Conclusion”.
71
indefinidamente accessíveis à linguagem e abertos à ta­
refa de pensá-los de nôvo” (7 ). Quanto ao Les M ots et
les Choses e as questões em tôrno das epistemes só nos
cabe reafirm ar que elas culminam o projeto filosófico de
Foucault, êste mesmo projeto que L ’Archéologie du Sa­
voir irá procurar discutir e de certa form a retomar ao
defendê-lo das questões levantadas pela equipe do Cahiers
pour VAnalyse (8 ). Ora, êste último livro nos diz: “Por
aí se determina um empreendimento do qual a História
da loucura, o Nascimento da Clínica, A s palavras e as
Coisas fixaram imperfeitamente o desenho. Empreendi­
mento pelo qual se esforça por apreender a medida das
mudanças que se operam em geral no domínio da histó­
ria.” (9 ).
Êste mesmo projeto não foi senão sempre o das “ des­
continuidades verticais” que G. Canguilhem (10) denun­
ciaria como uma espécie de filosofia da história. Ora,
todo êste seu último livro é um levantamento sôbre a no­
ção mesmo de história, condição para Foucault se referir
criticamente à “história das idéias” , e por aí refletir a
problemática das “descontinuidades verticais” . Estas
epistemes duram a eficacidade dos discursos, tal como na
análise da “loucura” e conforme um princípio lingüístico
de determinação da estrutura nos espaços discursivos
oposicionais (a s estruturas binárias: os discursos da “ra ­
zão” e os discursos da “ loucura” ) e por aí nós os vemos
desfrutar uma certa segurança formal.
É em razão pois de tudo isso que Foucault no lugar
de encarar as “propriedades” discursivas diferenciais (o
corte entre os discursos ideológicos e os discursos cien­
tíficos) se basta em trabalhar o espaço unificador subja­
cente — e indiferenciado — nas suas relações superficiais.
E isto quer m ostrar que as distinções, de fato, na histó­
ria, entre loucos ( “internamento” ) e não-loucos é surpre­
endida apenas na estrutura formal sem que os discursos
desçam as suas raízes à complexidade dos discursos ideo­
lógicos e suas articulações com as formações sociais. O
discurso da “loucura” , por exemplo, preserva como que
— através das discriminações históricas sublinhadas por
Foucault — uma pureza ideal. E isto quando nós sabe-

(7) Ibid. in "Preface".


(8) Cahiers p our V A n a ly se, n« 9: Généalogie des sciences, 1968.
(9) Ibid. “Introduction”, pág. 25.
(10) C ritique, n' 242, pág. 612-3.
72
mos (mesmo depois de ter diferenciado o discurso da “lou­
cura” dos discursos psicopatológicos) que os discursos di­
tos “normais” e os discursos da “ loucura” (11) são dis­
cursos impuros, seja porque são produzidos como discur­
sos ideológicos, seja porque o discurso da “loucura” en­
contra-se sempre — histórica e estruturalmente — su­
bordinado pelo discurso “normal”. Esta subordinação
que nos obrigaria a trabalhar “em campo” para se dar
conta do tipo de presença (e de subordinação) que con-
junturalmente um discurso exerce sôbre o outro só po­
deria na verdade se mostrar numa ciência dos discursos
ideológicos capaz de pensar a articulação com a história
e a especificidade estrutural de cada um.

Se Bachelard, por exemplo, referiu-se a uma “psica­


nálise do conhecimento objetivo” foi no sentido de envol­
ver criticamente os discursos em suas implicações histó-
rico-ideológicas: isto é, o conhecimento arcaico como uma
projeção “ cultural”, etc. O que significa dizer, ademais,
que Bachelard, pensador da ciência, sentiu-se obrigado
a pensar a totalidade dos discursos. Outra, no entanto,
é a direção das geometrizações de Foucault ou de
suas reduções epistêmicas. A “ arqueologia” se produz
como filosofia da história e seu movimento analítico está
repleto de uma filosofia apocalítica (a finitude do homem
e a representação) que acaba por engolir a pertinência
mesma dos levantamentos histórico-discursivos de Fou­
cault. Seja como fôr, seria certamente desgastante pro­
curar delimitar aqui aquêles lugares onde, na obra de
Foucault, a história, as distinções discursivas, a ciência
e a ideologia, etc, são como que recusadas em nome de
uma aspiração filosófico-lingüística, ademais dirigida a
apreender uma estrutura invisível e a fix a r as caracte­
rísticas da “parole” em suas determinações.
Seja como fôr, e por uma comodidade nossa, em meio
às numerosas questões que os trabalhos de Foucault des-

(11) As aspas utilizadas aqui têm a mesma pertinência que aque­


las aplicadas à denominação de "primitivo" em etnologia— pelo
menos em princípio. Isto é, um discurso é "normal" ou “louco" na
medida em que pudermos, mais tarde ou mais cedo, produzir uma
ciência dos discursos ideológicos^ e por aí explicá-los. As acepções
"normal" e a de "loucura" são certamente arbitrárias, mas enquan­
to não fôr possível pensar a totalidade das questões que cercam as
"propriedades” dêstes discursos e suas diferenças com os discursos
do “corte" todo trabalho aqui será relativamente “filosófico".
73
pertam, escolheremos a sua recusa do corte epistemoló­
gico (bachelardiano-m arxista) e a form a pela qual esta
recusa se acha presente em sua obra. Foucault recusa
esta distinção, isto é, a distinção entre ideologia e ciência
nos têrmos em que a problemática do corte epistemoló­
gico se coloca, e para se certificar disso basta citar alguns
dos seus textos. P o r exemplo, em Maladie mentale et
psychologie (12) êle diz, a respeito da psicanálise: “ a par­
tir dos meados do século X IX o limiar de sensibilidade à
loucura baixou consideràvelmente na nossa sociedade; a
existência da psicanálise é o testemunho dêste rebaixa­
mento na medida em que ela é tanto o efeito quanto a
causa do fato ” — é claro que aqui, para Foucault, o es­
tatuto científico da psicanálise está subsumido entre ou­
tros discursos, todos ideológicos, que testemunham uma
maior ou menor sensibilidade à loucura na “história” . N o
Naissance de la Clinique (13) Foucault, em seu laborioso
levantamento “ do desenvolvimento da observação médi­
ca e de seus métodos durante apenas meio século” não se
preocupa em pensar uma clínica — se assim podemos di­
zer — não apenas no interior dos discursos ideológicos
mas também e sobretudo por respeito aos discursos cien­
tíficos. “O que era fundamentalmente invisível se ofe­
rece de repente à clareza do olhar, num movimento em
aparência tão simples, tão imediato que parece ser a re­
compensa natural de uma experiência melhor realizada.
Tem-se a impressão de que, pela primeira vez desde m i­
lênios, os médicos, livres por fim de teorias e de quime­
ras, consentiram cm abordar por si mesmo e na pureza
de um olhar, não prevenido, o objeto de sua experiência.
Mas é mister voltar à análise: são as formas da visibili­
dade que m udaram ; o nôvo espírito médico ( . . . ) não é
outra coisa que uma reorganização sintática da enfermi­
dade na qual os limites do visível e do invisível seguem
um nôvo traço” (1 4 ). Esta delimitação de um espaço
discursivo único nos produtos mais gerais (ideológicos e
não) de um dado momento homogeniza os discursos di­
ferenciais e mistifica sua articulação com as outras ins­
tâncias da história.
M as êste projeto se mantém e Les Mots et les Choses
o realiza amplamente sem destoar em nada de sua tese

(12) Ibid. capítulo, "A loucuraj estrutura global".


(13) Ibid. capítulo, "Conclusão”.
(14) Ibid.
74
fundamental. Por exemplo: “O campo epistemológico que
as ciências humanas percorrem não foi prescrito de an­
temão: nenhuma filosofia, nenhuma opção política ou
moral, nenhuma ciência empírica, qualquer que seja ela,
nenhuma observação do corpo humano, nenhuma análise
da sensação, da imaginação ou das paixões encontrou ja ­
mais, nos séculos X V II e X V III, alguma coisa como o
homem; porque o homem não existia (nem tão pouco a
vida, a linguagem e o trabalh o) ; e as ciências humanas
não apareceram quando, sob o efeito de algum raciona-
lismo premente, de algum problema científico não resol­
vido, de algum interêsse prático, se decidiu fazer passar
o homem (bem ou mal, e com mais ou menos êxito) para
o campo dos objetos científicos. . . A s ciências humanas
apareceram no dia em que o homem se constituiu na cul­
tura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário
pensar e o que há a saber” (1 5 ). Ora, Foucault se omi­
te de explicar a produção mesma dos discursos (já não
digo dos discursos das ciências humanas enquanto dis­
cursos pseudo-científicos, como mostra Thomas Herbert
(1 6 ), êle os tomará como discursos paralelos cuja dife­
rença são variações de algumas regras finitas e cuja dis­
tinção em última instância deve ser interrogada fora
dêles, isto é, numa episteme. A s epistemes formam um
todo, uma “alma cultural” spengleriana que Foucault
opera na form a de regras (ta l como se fôsse um objeto
lingüístico), mas que se desprendem múltiplas — descon­
tínuas e múltiplas se revelam em seus diferentes discur­
sos, isto é ,nos diferentes discursos que constituem “um
acontecimento da ordem do saber” (1 7 ). E é o próprio
Foucault quem diz que êste acontecimento “produziu-se,
por uma vez, numa redistribuição geral da episteme” (1 8 ).
N ão fôsse êste fundo obrigatório (filosófico) que
reabsorve as análises críticas de Foucault, nós podería­
mos, em certa medida, admitir que as proposições mes­
mas, aqui ou ali, presentes em sua obra, o conduziriam
ao questionamento dos fundamentos que denunciamos
como ausentes em sua obra. Isto é, os problemas todos
que envolvem a produção de uma ciência dos discursos

(15) Ibid. Capítulo X.


(16) "Reflexions sur la situation tlieorique des sciences sociales..
in Cahiers p our L ’A n a ly se n* 1 e 2.
(17) e (18) L e s M o ts et les Choses. Cap. X.
75
ideológicos. Por exemplo, suas críticas dirigidas às ciên­
cias humanas, ainda que distantes da precisão e da fun­
damentação das críticas de Thomas Herbert (1 9 ), se mos­
tram de maneira geral corretas. ( “ O que explica a difi­
culdade das “ciências humanas”, a sua perigosa fam ilia­
ridade com a filosofia, o seu apoio mal definido em ou­
tros domínios do saber, e o seu caráter sempre secundário
e derivado, mas também a sua pretensão ao universal,
não é, como muitas vêzes se diz, a extrema densidade do
objeto delas; não é o estatuto metafísico ou a indestru­
tível transcendência do homem de que as ciências huma­
nas falam, mas antes a complexidade da configuração
epistemológica em que elas se encontram colocadas.. .” )
(2 0 ). P a ra Foucault as ciências humanas se centram no
“homem” como novidade no coração de uma episteme e
pelas dificuldades de uma troca com as três dimensões
epistemológicas aí circunscritas (a s ciências matemáti­
cas e físicas em sua .dedutividade, as ciências da lingua­
gem, da vida, da produção e da distribuição das riquezas,
e enfim a terceira dimensão como a reflexão filosófica
“que se desenvolve como o pensamento do Mesmo” (2 1 ),
e isto na medida mesma em que se servem das outras
ciências para se formalizarem relativamente. Mas esta
troca das ciências humanas com as outras “ciências” é
compreendida ao nível do jôgo intrínseco às possibilida­
des finitas de uma episteme, isto é, fora das “ proprieda­
des” do seu discurso e no campo das ideologias em geral.

N ão que nos pareça errado situar as ciências huma­


nas no rol dos discursos ideológicos, mas porque para
Foucault tanto elas quanto quaisquer outras ciências se
situam em última instância neste motor ideológico único
que move com seu sangue a totalidade dos discursos de
uma “época”. M as Foucault não permanece aí, êle vai
além e procura circunscrever o “comportamento do ho­
mem” (como êle diz) nos têrmos desta episteme, isto é,
nos modelos que a ciência dos homens encontra na
biologia, na economia e no estudo da linguagem. São
suas estas palavras quando êle se refere à economia: “No
plano da projeção da economia, o homem aparece como
tendo necessidades, portanto interêsses, visando obter lu­
cros, opondo-se a outros homens; numa palavra, surge

(19) Ibid.
(20) Ibid.
(21) Ibid.
76
uma irredutível situação de conflito". Ainda que o que
Foucault esteja querendo dizer não seja senão que “no
plano da projeção da biologia o homem aparece como um
ser dotado de funções” e no da linguagem o homem veja
as suas condutas como significações da mesma form a que
na projeção da economia o homem se tem como necessi­
dades, isto é, em conflito; suas apreciações aqui testemu­
nham a ausência da questão fundamental das relações
destas projeções discursivas e a história. Ou ainda, como
pensar a articulação destas determinações projetivas no
discurso das ciências humanas e as relações sociais de
produção, isto é, a história? O estreitamento artificial
do enfoque (tipicamente estruturalista) e seu maneja-
mento lingüístico acaba por oscilar o trabalho da análise
entre a multiplicidade selvagem do material empírico e
a formalização estética de sua solução teórica. Com isto
ficam de fora todos os problemas e as questões se reve­
lam verdadeiramente ausentes. Já não digo — e com isto
volto a me repetir — as distinções entre os discursos ideo­
lógicos e científicos, mas a articulação destes discursos
com a história. Prova disto é que M arx e Freud (e Saus-
sure, subentendidamente) são vistos como atualizações
puras e simples dêstes modelos nas ciências humanas, sem
que Foucault se esforce, nem mesmo um pouco, para dar
conta do absurdo de sua simplificação. Ora, nem Marx,
nem Saussure, nem Freud, têm suas “ ciências” atribuídas
no outro ideológico, nenhum dêstes cientistas do corte
epistemológico trabalhou um discurso Gecundário e ilus­
trador dêstes modelos de que se servem as ciências hu­
manas para se expressarem. O objeto de conhecimento
da ciência da história, da psicanálise e da lingüística
saussuriana — no estatuto teórico de um objeto distinto
de todo e qualquer objeto real — não pretendem esgotar-
-se em têrmos de “norma” , de “re g ra ” e de “sistema” ,
mas se apropriarem de uma dada realidade na form a
de conhecimentos. Isto é, mais do que efeitos de um da­
do motor epistêmico constituem discursos específicos que
trocam operacionalmente com a história e que a ela per­
tencem.

M as Foucault não pensa assim e sua posição pode


ser auferida, sem lugar a dúvidas, dêste seu outro texto:
“ A s “ciências do homem” fazem parte da episteme mo­
derna como a química ou a medicina ou qualquer outra
ciência ou, ainda, como a gramática e a história natural
faziam parte da episteme clássica. Mas dizer que elas

77
fazem parte do campo epistemológico significa apenas
que nêle enraizam a sua positividade, que nêle encontram
a sua condição de existência, que não são portanto ape­
nas ilusões, quimeras pseudo-científicas, motivadas ao ní­
vel das opiniões, dos interêsses, das crenças, que elas não
são o que outros denominam pelo nome bizarro de “ideo­
logias” . Todavia, isto não significa que elas sejam ciên­
cias.” (22)
U m discurso é um discurso porque desce raízes às
epistemes estanques e porisso mesmo parece ser para
Foucault algo mais que “ideologia” e algo menos que
“ciência”. Ora, o que são afinal êstes discursos senão
algo tão misterioso quanto estas palavras de Les M ots et
les Choses a respeito das condições dos discursos, isto é,
das epistemes como “ disposições que desapareceriam tal
como apareceram ” e “por algum acontecimento que pode­
mos, quando muito, pressentir a possibilidade. . .” Os dis­
cursos , enfim, se identificam nas regras finitas das epis­
temes, e ficam abandonadas ao vazio as distinções entre
os discursos ideológicos e científicos, na mesma medida
em que por um outro lado Foucault se desgasta em distin­
ções relativas incapazes por si mesmas de fundarem uma
teoria dos discursos diferenciais.
E é êle quem. diz literalmente que qualquer ciência
interrogada “arqueològicamente” revela sempre “ a confi­
guração epistemológica” que a tornou possível, daí que
mesmo procuran-do distinguir a ciência como “outras
configurações do saber” , as subordina a êste solo tirâni­
co e geométrico. A história, por exemplo, e seu estatuto
teórico na ciência da história, fica relegada às disposi­
ções misteriosas de uma episteme que nos impõe a con­
vicção nova “ de que atividades tão particularmente hu­
manas como o trabalho ou a linguagem possuíam, em si
mesmas, uma historicidade que não podia encontrar-se na
grande narrativa comum às coisas e aos homens” . E s ­
quece a problemática da produtividade conceituai, sua
sistemática própria, sua articulação e sua autonomia com
a história — reduz-se esta história, produzida pela ciên­
cia da história, a uma sucessão de epistemes fechadas em
si mesmas, nos têrmos de “história geral” (2 3 ). Acredi-
ta-se que a distinção de uma história ademais indistinta
da natureza e do homem de uma história que se tra-

(22) Ibid.
(2 3 ) L ’A r c h é o lo g ie du Savoir.

78
balha nas distintas histórias de suas instâncias é puro
reflexo (mesmo se “lingüístico” ) de uma episteme irrom­
pida do nada. A ciência da história e a psicanálise são
para Foucault as tais “ciências humanas” que êle subli­
nha em seu estatuto não plenamente científico, ou não-
-científico mesmo, em vista de trazerem em seu bôjo esta
carga complexa e ilimitada que é o “homem” .
M as se por um lado êle é radicalmente indiferente à
ciência da história — posição que a partir de Archéologie
ãu Savoir começa a se corrigir em parte — já por respei­
to à psicanálise Foucault é cheio de mesuras: “ A psica­
nálise e a etnologia ocupam no nosso saber um lugar pri­
vilegiado”. M as que lugar privilegiado? E as esperanças
se desvanecem, diz o autor: “N ão decerto porque teriam,
melhor do que qualquer outra ciência humana, assente
sua positividade e realizado, enfim, o velho projeto de
serem verdadeiramente científicas” , mas sim porque no
conhecimento do homem “form am por certo um perpétuo
princípio de inquietude. . . ” M as isto só pode ser pensado
e compreendido, diz Foucault, se analisarmos a posição
e a função que preenchem “ no espaço geral da episteme” .
N ão nos cabe aqui criticar a fundo (2 4) aquilo que
Foucault pensa ser a psicanálise, mas tão-sòmente mos­
trar a subordinação à episteme que êle também impõe a
esta ciência. Sua análise em têrmos da “representação”
e da “ finitude do homem” , como conteúdo e objeto da
psicanálise, ou da psicanálise como uma ciência do ho­
mem que, à diferença de suas vizinhas, dirige-se na mes­
ma direção ( “mas com o olhar voltado em sentido con­
t r á r i o . .. ” ), constitui para nós outras tantas especula­
ções que nada acrescentam ou tiram desta ciência. Da
mesma form a se tomarmos esta pergunta de Foucault —
ainda no corpo de suas especulações sôbre a psicanálise
— , isto é, de que “não é por acaso o “desejo” o que per­
manece sempre impensado no âmago do pensamento?”
(2 5 ), e se considerarmos também sua resposta explici­
tamente afirmativa, isto é, de que é êle mesmo (o desejo)
que permanece impensado, damos-nos conta então de que,
por um outro lado, Foucault procura sepultar na psica­
nálise aquilo que ela tem de não-especulativo e portanto
de científico.

(24) As questões que neste artigo ficam por aberto se encontram


analisadas no livro de onde foram extraídas estas páginas.
(25) L e s M o ts et les C h o s e s capítulo X.
79
Freud comenta o “desejo” como aquilo que “ é o mais
agradável” , na medida em que o encara como um dos pólos
do conflito defensivo, e êste têrmo passa então a ter um
lugar preciso na economia de suas explicações dos apa­
relhos psíquicos. Por um outro lado — conforme a nossa
leitura de Freud — o “desejo” traz em seu bôjo a ques­
tão do engajamento da criança (fôrça de trabalh o) no
trabalho psíquico como processos de trabalho específicos
que Freud analisa.

Ora, o abandono dêstes conceitos, precisos e sistema­


tizados, do pensamento freudiano, pelas acepções filo­
sóficas, muito gerais, do “impensado” , da “finitude do
homem”, etc, significa, uma dissolução do discurso psica-
nalítico com a qual não estamos em nada de acôrdo. E
nos parece o mesmo êrro situar a psicanálise (a etnolo­
g ia ) e a lingüística nos limites dêsse “ homem” descober­
to e dêsse “homem” que “se começa a m atar” . ( “Mas,
já que a lingüística não fala do homem, tal como a psica­
nálise ou a etnologia, não é isso uma maneira de o con­
duzir ao seu fim ?” (2 6 ). Estas ciências ficam então su­
jeitadas a êste postulado em-si de uma episteme nova: o
homem descoberto, etc. E dêsse comprometimento das
ciências (d a história, da psicanálise e da lingüística) com
uma “arqueologia” se desprende também um enfoque
equívoco da estrutura própria de cada uma delas em par*
ticular — as regras que os discursos paralelamente com­
binam de form a diferente e que são, a meu ver, insufi­
cientes para produzirem o estatuto teórico dêstes discur­
sos.

P a ra Foucault, por exemplo, como ademais para os


estruturalistas (2 7 ), a lingüística ganha a importância de
instrumento cientifizador de tôda e qualquer outra ciên­
cia humana. Foucault chega a chamá-la de uma espécie
de matemática de nossos tempos, o que eqüivale a trans­
portar para a lingüística um grande número de preconcei­
tos que cercam o estatuto e o uso que se faz da mate­
mática. Isto é, que o uso da matemática produz a “ cien-

(26) Ibid.
(27) Foucault pretende não ser um "estruturalista”, mas esta re­
cusa se encontra sob diversas formas em cada um dos estrutura-
listas.
80
tificidade” de outras prováveis ciências (2 8 ), ou que ã
matemática seja uma ciência de reserva das outras ciên­
cias, e com isto se procura ignorar sua estrutura de pro­
dução e de reprodução de um objeto de conhecimento.
Quanto à lingüística, esta posição só tem a garantir o
estatuto ideológico de uma ciência “neutra” , sem com­
prometimentos históricos — o que ademais rejeitamos
em nossa leitura da lingüística do corte em F. de Saus-
sure.
M as até mesmo esta questão em Foucault é ambígua,
pois de um lado a lingüística (e a temática do signifi-
cante) dirige todo o seu trabalho, mas de outro lado a
lingüística, como tal, aparece para Foucault como indício
do desaparecimento do “homem” . E tudo isso, a sua vez,
casa mal com o estatuto de uma lingüística em si desta­
cada dos conteúdos históricos. A lingüística subjacente
no estruturalismo foucaultiano, a lingüística como sinal
de uma crise epistêmica e a lingüística como matemática
moderna se entrecruzam em seus sentidos e acepções di­
ferenciais.
Seja como fôr, o que perdura é sua filosofia da his­
tória, suas unidades epistêmicas estanques como objeto
subjacente de uma “arqueologia do saber”. N o seu penúl­
timo livro (29) Foucault acaba por subordinar, uma outra
vez, a análise dos discursos em geral e do discurso cien­
tífico em particular a uma história arqueológica: “A êste
nível a cientificidade não serve de norm a: o que se esforça
por colocar a nu, nesta história arqueológica, são as prá­
ticas discursivas na medida em que elas dão lugar a um
saber, e em que êste saber ganha o estatuto e o papel de
ciência” (3 0 ). E logo depois: “A análise das formações
discursivas, das positividades e do saber em suas relações
com as figuras epistemológicas e as ciências é o que se
denominou, para a distinguir das outras form as possíveis
de uma história das ciências, a análise da episteme” (3 1 ).
Koucault se reafirm a e distancia por respeito — não
.-tpenas a um tipo de solução — às questões da prioridade

(28) Vide nosso trabalho “Teoria das leituras”. Texto de autores


lunsileiros dedicado à problemática da Ciência. Ed. Vozes.
(29) L ’A rch éo lo g ie du S avoir, capítulo "Science et Savoir" pága
/■I8-9.
(.10) Ibid
i :u) Ibid.
81
teórica da ciência da história, da ciência dos discursos
ideológicos, do corte, da teoria da ciência e da teoria da
história da ciência reaparece e se consolida.
Pouco importa que êle se defenda, e que êle nos diga
que podemos suspeitar que esta episteme “ . .. seja qual­
quer coisa como uma visão do mundo, um segmento de
história comum a todos os conhecimentos, e que imporia
a cada um as mesmas normas e os mesmos postulados,
um estágio geral da razão, uma certa estrutura de pen­
samento. . . ” (3 2) etc, etc. .. Pois bem, se episteme não
é tudo isso, o que é enfim? E Foucault mesmo responde:
“P o r episteme, se entende, de fato, o conjunto das rela­
ções podendo unir, numa mesma época dada, as práticas
discursivas que dão lugar a figu ras epistemológicas, a
ciências, eventualmente a sistemas form alizados: ( . . . )
é o conjunto das relações que se pode descobrir, para
uma época dada, entre as ciências, quando se analisa ao
nível das regularidades discursivas” (3 3 ).
Ora, se não se trata de uma “alma cultural” spengle-
riana, de um espírito, de uma natureza, de uma “estru­
tura profunda lingüística e inata (C h o m sk y ), se trata ou
se poderia tratar destas mesmas coisas à maneira de um
enfoque estruturalista-lingüístico. A substância conver­
tida ao claro-escuro das relações lingüísticas, da agili­
dade e da abstração dos significantes por si mesmos, en­
fim a episteme, como diz Foucault, como aquilo “ . . . que
to m a possível a existência de figu ras epistemológicas e
das ciências.” (3 4 ).
Com tudo isso não podemos estar de acôrdo e nos
situamos, criticamente, tal como já permitimos entrever,
nas teses mesmas que a recente escola francesa de epis-
temologia, que tem em Althusser a sua liderança, mos­
trou-nos e desenvolveu através de livros e ensaios nestes
últimos anos. M as muito mais que êstes epistemólogos,
os grandes cientistas da história que são M arx, Freud
e Saussure — tanto quanto Bachelard (35) — , e cada

(32) Ibid.
(33) Ibid., págs. 250 etc.
(34) Ibid.
(35) E por que também Bachelard? Na medida em que êste pen­
sador é um pensador da totalidade dos discursos e que seu trabalho
— ainda que de forma insuficiente — pressupõe de todos nós um
trabalho de articulação de suas determinações e especificações dos
discursos com a história.
82
um a sua maneira, testemunharam para nós a importân­
cia de uma clara visão da especificidade do discurso cien­
tífico e de sua diferença por respeito aos discursos ideo­
lógicos. De outro lado, no entanto, suas análises (36)
não se detiveram em precisar e aprofundar uma episte-
mologia que, à maneira de uma “exposição” definitiva,
fôsse o acabamento teórico das ciências novas que pro­
duziram.
A s questões do corte, do objeto de conhecimento, da
apropriação do real pelo conhecimento, da teoria da ciên­
cia e da teoria da história da ciência, e enfim, de uma
ciência dos discursos ideológicos continua mais ou menos
presente, como uma questão aberta, nos trabalhos dos
mais significativos epistemólogos da nossa época.
Parece-nos que estas reflexões sôbre a teoria da
ciência e a situação de um dos ramos da ciência da his­
tória — aquêle que se detém nos estudos das diferenças
entre os discursos ideológicos e os científicos — e de
como um projeto somente realizado na teoria da história
da ciência — que para nós, em virtude da produção teó­
rica do conceito de “história da ciência” e do conceito
mesmo de ciência, constitui a verdadeira teoria da ciên­
cia — , parece-nos enfim que estas reflexões permitem-
-nos pensar melhor as questões geralmente levantadas
pelas posições adotadas por Foucault.
N ão distinguindo êle o discurso científico, pelo me­
nos ao nível do corte epistemológico, dos discursos ideo­
lógicos e circunscrevendo para êstes discursos em comum
estruturas epistêmicas descontínuas, Foucault faz das
ciências práticas que desconhecem o fundo sôbre o qual
se fazem. Isto é, as reduz às condições dos discursos ideo­
lógicos, enquanto discursos que desconhecem-reconhecem
e que são contínuos com as formações sociais. Ora, a ver­
dade porém é que uma teoria da ciência não constitui uma
reflexão “arqueológica” da ciência, pois a ciência não tem
senão a si mesma como estrutura, e esta reflexão perfaz
aqui como que uma análise que se dirige a esta ausência
de solo ou então a uma estrutura autônoma da ciência
comparativamente com a prática ideológica e sua conti­
nuidade.

(36) Quanto a Bachelard nós podemos inverter os têrmos desta


expressão: Bachelard aprofundou suas teses epistemológicas sem
trabalhar a fundo a problemática da articulação dos discursos com
uma história científica.
83
A reflexão do corte epistemológico, como já dissemos,
vai além de uma caracterização da estrutura do discurso
científico para ser uma análise cujo sujeito é m ais a
ciência da história que a filosofia da ciência. O que im­
pede que ela tome a form a de uma “arqueologia” das
ciências senão quando esta arqueologia deixe de ser uma
especulação sôbre as ciências e se converta com a ciência
da história em teoria da ciência. E se converta, enfim,
às questões que envolvem efetivamente esta teoria tais
como a necessidade, intrínseca a ela, de ser pensada e
elaborada numa teoria da história da ciência. E isto por­
que ela — entre outras coisas — ao procurar pensar a
transição de “ modos teóricos” numa ciência estabelecida
vê-se obrigada à elaboração de uma “teoria da constitui­
ção” de tal ou qual discurso científico (sua genealogia),
o que significa distingui-la das questões em tôrno do
corte epistemológico — que ademais ela pressupõe de m a­
neira fundamental — visto que estas questões pertencem
à “teoria da ciência já clássica” , se assim podemos dizer,
e portanto sediadas na ciência da história. Isto é, mais
precisamente, a problemática do corte encara discursos
diferentes (ideológico e científico) e só pode encará-los
na ciência da história, enquanto uma teoria da ciência
verdadeira (arm ada na problemática do conceito de his­
tória da ciência, ou ainda na teoria da história da ciência)
encara um mesmo discurso e as questões que cercam a
sua história específica. D aí que as questões da verda­
deira história da ciência sejam, tanto quanto a estrutura
do seu discurso específico, os problemas da transição, da
constituição de um nôvo “modo teórico” , etc. O que sig­
nifica, no caso, produzir teoricamente os invariantes e as
combinações dos discursos (científicos), isto é, conhecer
a estrutura de produção dêstes discursos.
Enfim, não se pode fala r de “arqueologia” das ciên­
cias, e a problemática que envolve e fundamenta a teoria
da ciência — no seu sentido mais geral — não tem nada
a ver como uma tal “ arqueologia”, pelo contrário, ela re­
conhece pensando a especificidade e as diferenças do dis­
curso científico sua autonomia relativa, seu estatuto re­
lativamente desenraizado. E até mesmo tudo aquilo que
poderia ser uma episteme circunscrita e descontínua (con­
form e a “arqueologia” ) dos discursos ideológicos, cons­
titui, para nós, na verdade, tôda uma outra coisa. Isto
é, os discursos ideológicos numa estrutura social expli­
cam-se nos conceitos já produzidos e se produzindo da

84
ciência da história na form a agora de uma ciência dos
discursos ideológicos enquanto ciência de uma de suas
regiões.
Ê necessário ainda que se previna que se Foucault
trabalha com uma grande parte dos conceitos estrutura-
listas (37) — significante, descontinuidade, língua, ní­
veis, unidades e regras — êle também faz uso de outras
tantas noções, mas que nem as primeiras nem as últimas
podem nos levar à ilusão de um parentesco entre os têr-
mos da “arqueologia” foucaultiana e os conceitos utili­
zados pela ciência da história. Aproxim ação que se tor­
nou costume entre os marxistas “festivos” , preocupados
que estão em acoplar a ciência da história com tôda e
qualquer filosofia esterilizante.
Estas aproximações não devem ser despreendidas do
fato de que tôda e qualquer abordagem dos discursos p a­
receria levar, como que fatalmente, êste ou aquêle pen­
sador às questões que a ciência da história encara. N ão
se vai espontaneamente à ciência da história, se vai a ela
por um trabalho que subverte os têrmos mesmos da “es­
pontaneidade” filosófica. Seria ademais ingênuo supor que
Foucault estivesse a caminho de uma reformulação de
suas posições, pois a análise de sua problemática — no
U Arch éologie du Savoir — prova o contrário. E sta mes­
ma problemática que já tratamos e que é absolutamente
incompatível com o corte epistemológico, com as questões
da articulação dos discursos com a história (como con­
ceito produzido pela ciência da história), com as distin­
ções dos discursos “norm al” e da “loucura” (e com os
discursos psicopatológicos) no interior de uma ciência
dos discursos ideológicos. E sta última ciência (que uni­
da à psicanálise) se debruçaria sôbre os discursos e pro­
duziria a teoria de suas estruturas de produção. Possi­
bilitando-nos compreender as diferenças dos discursos
em sua dinâmica própria e suas articulações com as so­
ciedades de classe e com as sociedades sem classe.
P o r exemplo, consideremos agora os têrmos da res­
posta (3 8) de Foucault a 11* questão apresentada a êle
pela equipe da revista U E sprit. A questão é: “U m pen-

(37) Mesmo quando êstes conceitos se revestem de outras roupa­


gens, tais como os de e p istem e , discursos, positividades, saber, ar­
quivo, etc.
(38) JRéponse à une question, M. Foucault: L 'E sp rit, maio de 1968.
85
sarnento que introduz o constrangimento do sistema e a
descontinuidade na história do espírito não retira todo
fundamento a uma intervenção política progressista?
N ã o acaba êle no dilema seguinte: — ou na aceitação do
sistema, — ou no apêlo ao acontecimento selvagem, à
irrupção de uma violência exterior, a única capaz de de­
sarranjar o sistema?”

De início Foucault considera correta a questão e re­


conhece a verdade das acusações que a êle se dirigem.
Isto é, reconhece êle que em seu pensamento está forte­
mente sublinhada a importância dos “sistemas” e das
“descontinuidades” . M as êle se defende. Desde logo previ­
ne que no seu pensamento não se trata de “sistema” no
singular ou de “ descontinuidade” no singular, mas de
“sistema” e de “descontinuidade” no plural, já que êle,
Foucault, é “pluralista” (3 9 ). Ê pluralista, confessa Fou­
cault, porque seu objeto sempre foi o da individualização
dos discursos, para o qual produziu algumas regras de
identificação: critérios de formação, critérios de trans­
formação, e critérios de correlação (4 0 ). Critérios êstes
que, segundo Foucault, “permitem subsistir os têrmos da
história totalizante ( . . . ) e permitem descrever, como
episteme de uma época, não a soma de seus conhecimen­
tos, ou o estilo geral de suas pesquisas, mas a separação,
as distâncias, as oposições, as diferenças, as relações de
seus múltiplos discursos científicos” . Ou melhor, êstes
critérios permitem operar distinções relativas entre os
discursos que, em última instância, se prescrevem de
um a epistem e: “ a episteme não é uma espécie de grande
teoria subjacente, é um espaço de dispersão, é um campo
aberto e sem dúvida indefinidamente descritível de rela­
ções” (4 1 ), é um objeto real de uma “ lingüística” empí­
rica, agora convertida na filosofia de todos os discursos.

São parecidos os argumentos que Foucault utiliza


p ara justificar seu uso radical das “descontinuidades” , e
como que não se dando conta que é falsa (e ideológica)
a oposição em si do “contínuo” e do “descontínuo” êle
procura alimentar suas razões no fracasso das posições
“continuistas” em história. Fazendo desta última uma
análise descritiva das descontinuidades em suas trans-

(39) Ibid. pág. 851.


(40) Ibid. págs. 852-3.
(41) Ibid. pág. 853.
86
formações (4 2 ). M as o autor da Réponse a une ques-
tion mergulha ainda mais na fragilidade de suas po­
sições ao se defender dos argumentos da equipe do
U E s p rit (cu ja filosofia “ humanista” nós conhecemos e
deploramos) que procura criticar o aspecto lingüístico-
-form al-abstrato das análises de Foucault. M as para is­
to as “sentinelas” do nôvo (velho) humanismo do U E s ­
prit se referem ao conteúdo semântico, humano e histó­
rico dos discursos — a intenção dos homeris. Foucault
se deixa aprisionar na armadilha — onde ademais sem­
pre estêve — e responde afirmando que êstes senhores
“têm razão” : “Vocês têm razão: o que eu analiso nos
discursos não é o sistema de sua língua, nem de uma
maneira geral as regras formais de sua construção ( . . . )
A questão que eu coloco é aquela, não dos códigos, mas
dos acontecimentos. . .” (4 3 ). Ora, Foucault é um empi-
rista, é um hermeneuta das ocorrências, um esquadrinha-
dor dos discursos, na medida em que por aí êle produz
uma “arqueologia” de suas razões estruturais subjacen­
tes : “ . . . o que eu faço . . . é uma arqueologia: isto é,
como seu nome indica, de uma maneira aliás evidente, a
descrição do arquivo” (4 4 ).
Êle descreve as regras empíricas de um objeto empí­
rico, “ . .. a massa dos textos que puderam ser recolhidos
numa época dada” , e desta esquemática etnografia F ou­
cault salta para a etnologia fantástica das epistemes es­
tanques.
Ê então, somente depois de se empenhar em justifi­
car a validade “teórica” do seu empreendimento, que êle
resolve responder, afinal, à questão que lhe foi form ula­
da: isto é, as relações entre seu pensamento e uma certa
prática política. Foucault divide a questão em duas res­
postas, a primeira concerne a validade ou não de suas
análises e críticas no campo específico dos seus trabalhos:
a história das idéias, das ciências, etc. E a outra respos­
ta procura encarar a relação entre tudo isso e uma polí­
tica progressista. N ão queremos negar — como já disse­
mos no início dêste trabalho — o papel de Foucault numa
certa crítica ao historicismo, mas por outro lado esta
“crítica” , de cunho estruturalista, terminou por se dissol­
ver na pobreza mesma dos seus fundamentos. A s episte-

(42) Ibid. pág. 858.


(43) Ibid. pág. 858.
(44) Ibid. pág. 859.
87
mes foucaultianas e o “inconsciente vazio” de Lévi-Strauss
se eqüivalem. Ademais nenhuma crítica é válida ou du­
rável se não fôr exercida no lugar — na problemática
científica — de onde ela se justifica e se sustenta teori­
camente. A única crítica efetiva e cientificamente indis­
cutível ao historicismo foi e é exercida na ciência da his­
tória.
M as isto ainda não é tudo, e, como devemos concluir
nossas críticas, perguntamos como pôde Foucault pensar
que poderia fa la r em política à margem de uma ciência da
história? Como pode êle — ao aceitar a questão — par­
tilhar da idéia de uma “política progressista” ? Ê radi­
calmente impossível conhecer ou partilhar — prática e
teoricamente — uma posição política senão pela ciência
da história e, nesta ciência, pelo estudo da instância do
político que nela constitui uma das regiões irredutíveis.
Pois bem, na ausência de tudo isso Foucault justifi­
ca seu “progressismo” político no vigor crítico ao “ con-
tinuismo” ao “historicismo” e na importância (verdadeira
ou não) de suas reflexões sôbre as descontinuidades
epistêmicas. Isto é, num mesmo plano que os “espiritua­
listas” da revista U E s p rit justificam — pela pergunta —
uma adesão à “política progressista” dos derradeiros libe­
rais do pensamento francês. Uns e outros — Foucault e
Domenach — são “espontaneamente” o ser-de-classe a
que pertencem, isto é, nas suas fantasias da origem e da
ordem êles não são senão a filosofia de suas classes de
origem.
E se assim é, e se assim nos parece ser, de nada
valem as justificativas de Foucault a respeito das neces­
sidades de uma “política progressista” do saber das práti­
cas discursivas, de estar a par de tôdas estas informações
teóricas que êle, em sua filosofia, produz.
Enfim, a relação da política — já não digo “progres­
sista” , mas de classe — com a ciência, e a ciência da his­
tória, é como tal uma questão ausente na problemática
foucaultiana, e o é na medida em que êle se nega a pen­
sar esta ciência e o corolário de questões que a cercam.

Se a descontinuidade horizontal nos permite pensar


as articulações dos discursos, e suas diferenças, com a
história, a descontinuidade vertical em sua profundidade
abismai quer engolir e subsumir estas articulações.
Foucault ao não emprestar uma especificidade epis-
temológica, marcada, aos discursos científicos, e aos dis­

88
cursos ideológicos, mergulha numa filosofia dos discur­
sos em geral, que se prende à coleta — arbitrária — de
traços ou enunciados estruturalmente confeccionados no
sentido de produzirem “configurações epistêmicas”. O
“ impensado” funciona como um princípio de seleção, ra ­
dicalmente arbitrário, e é aqui, mais do que em qualquer
outro lugar, que se sente o pêso da ausência de uma
ciência da história e de uma ciência de uma de suas re­
giões: a ciência dos discursos ideológicos.
Como se dirigir (45) das configurações epistêmicas
ao conflito de opiniões, ou, mais precisamente, como pro­
mover as análises das “formações ideológicas” senão
através de uma ciência dos discursos ideológicos aplica­
da a “conjunturas ideológicas” ? A s questões, enfim, do
tipo de articulação dos discursos com a história, não é
algo que se possa deixar em lugar secundário na análise
de suas “propriedades” . Que tipo de articulação se en­
contra num discurso ideológico ou num discurso cientí­
fico, e como problematizar as articulações, aliás diferen­
tes, entre os discursos ideológicos do enfoque psicanalí-
tico (d a “estrutura de instauração” ) e dos discursos
ideológicos de classe social, no enfoque propriamente da
ciência dos discursos ideológicos (d a “ estrutura elabo­
ra d a ” ) ?
D a mesma forma, as questões das “sobrevivências”
discursivas (entre as epistemes para Foucault, ou entre
as “formações discursivas” p ara nós) que, em sua com­
plexidade, nos levariam à refletir aqui os temas — só
recentemente lembrados — da transição e da revolução
nas estruturas discursivas. Temas êstes que nos possi­
bilitariam compreender as estruturas discursivas (ideo­
lógicas) circunstancialmente determinadas com uma es­
trutura complexa de “economia de modo” discursivo com
a dominância de um dêles. M as para isto seria preciso
que tivéssemos relido tôda a problemática dos discursos
ideológicos na ciência da história.
Enfim, caso não distingamos entre ciência e ideolo­
gia — para voltar aqui ao tema dominante dêste nosso
trabalho — nós ficaremos como que situados num histo-
ricismo radical. Isto é, prisioneiros de discursos absolu-

(45) Conforme as questões colocadas pelo corpo diretor da revista


Cahiers p o u r L ’A n a ly s e a Foucault: in Cahiers p our L ’A n a lyse,
n* 9, 1968.

89
tamente figurados numa episteme única e indivisível. O
“impensado” se deixa manipular em suas “ regras”, se
deixa “fa la r ” em suas descontinuidades radicais, tem a
form a de qualquer coisa que a ciência recusa, e à qual
ela é indiferente, mas que a filosofia recebe e habita
como se fôsse a sua casa.
Seja como fôr, Foucault parece se aproximar, no fim
do seu penúltimo livro (4 6 ), e numa de suas últimas refle­
xões dentro dêste trabalho (se aproxim ar daquilo que o
n e g a ), daquilo que enfim move grande parte de nossas
críticas as suas posições. Êle se pergunta pelos limites
que estão presentes em sua “arqueologia” ao se interro­
g a r somente pelos discursos “científicos”. N ã o será im­
prescindível, pensa Foucault, se perguntar também —
até mesmo para se ter clareza a respeito dos discursos
científicos — pela totalidade das representações discur­
sivas? Certamente que sim, e ainda que êle não o
diga é necessário produzir uma ciência dos discursos
ideológicos, e dar a esta ciência a amplitude de uma abor­
dagem que reúne em si os temas da produção em geral
no hemisfério discursivo. E Foucault aqui, aparente­
mente, vai muito mais longe quando se refere à extensão
dêsse objeto que uma “ arqueologia” (m elhor seria dizer
uma “ciência dos discursos ideológicos” ) abrangeria, e à
extensão dêsse objeto se refere na verdade a sua inci­
dência com as questões da história e suas manifestações
sobredeterminadas nas superestruturas.
M as a tudo isso Foucault responde (47) na form a de
uma incapacidade provisória (expressão sua) para resol­
ver de form a segura tais questões.
Êle recusa ser chamado de “filósofo” ( “Se a filoso­
fia é memória ou retorno da origem, o que eu faço não
pode, em nenhum caso, ser considerado como filo so fia ”
(48) ), da mesma form a como êle recusa para a sua “ ar­
queologia” o estatuto de ciência: “ É exato que eu não
tenha jamais apresentado a arqueologia como uma ciên­
cia, nem mesmo como os primeiros fundamentos de uma
ciência futura” (4 9 ). Ciência a que êle se recusa e que
nós recusamos às suas “especulações” .

(46) L ’A rch é o lo g ie du Savoir.


(47) Ibid. pág. 270.
(48) Ibid. pág. 268.
(49) Ibid. pág. 269.
90
A GRAMÁTICA DO HOMICÍDIO
Por S ergio P a u lo R ouanet

N o fim do século passado, Nietzsche inaugurava o


duro evangelho da Idade N o v a ao proclamar a morte de
Deus. O grito deicida de Zaratustra era o clímax de um
processo de dessacralização iniciado com o advento do
capitalismo, e o sintoma de uma nova form a de organi­
zar o saber.
A cultura contemporânea está no limiar de um se­
gundo escândalo, tão grave quanto o prim eiro: a morte
do homem. A burguesia européia tinha enterrado Deus
em nome do homem; e o estruturalismo está liquidando
o homem em nome do sistema.
A idéia da morte do homem, com efeito, é o tema
central da nova cultura. N a lingüística como na etnolo­
gia; e na psicanálise como na filosofia política.1
É nessa corrente que deve ser situado o pensamento
de Michel Foucault. Mais que qualquer outro escritor,
Foucault tem se consagrado à construção de um saber
inteiramente despojado de conotações antropocêntricas.
D aí êste ensaio: uma tentativa de estudar um pensa-
dor-tipo, que encarna com grande coerência uma das ca­
tegorias mais significativas do pensamento contemporâ­
neo.
O título do ensaio não traduz nenhuma intenção po­
lêmica, mas uma opção teórica. Os dois elementos dêsse
título são estritamente descritivos. Gram ática: conjun­
to de regras de uma arte ou ciência. Homicídio: liqui­
dação física de alguém. A justaposição dêsses dois ver­
betes de dicionário descreve de form a bastante precisa o

91
pensamento de Foucault. A ciência (o u arte?) é uma
nova disciplina chamada a “Arqueologia do saber”. E
a palavra homicídio deve ser entendida no sentido mais
literal: a morte (violenta) do homem. O conceito de ho­
micídio é uma simples categoria operatória, escolhida por
seu poder explicativo e não por sua dramaticidade. O en­
saio em si não é nem pretende ser neutro; mas o título,
pelo menos, é axiològicamente inocente.
Talvez a melhor maneira de entrar em matéria seja
partir da pergunta que ocorreria imediatamente a qual­
quer leitor ingênuo: por que a morte do homem?
E ssa pergunta poderia ser respondida escamoteando
a análise interna da obra de Foucault. B astaria recorrer
à solução mágica de um certo marxismo, e dizer que a
morte do homem corresponde à ideologia da classe tecno-
crática que está assumindo o poder nas sociedades in­
dustriais. Ê a solução mais confortável; tem a vantagem
de desacreditar ab initio a doutrina que está sendo exa­
minada, com um mínimo de esforço intelectual, e ainda
por cima o crítico ganha títulos de defensor dos valores
humanísticos. A receita para êsse tipo de análise é conhe­
cida. P o r exemplo, o tecnocrata acredita no primado da
organização, considera os homens como simples cartões
perfurados num circuito cibernético, e domestica a his­
tória pondo-a a serviço do sistema, isto é, transformando-
-a no repertório de memórias embutidas num computa­
dor. Por outro lado, o estruturalista afirm a a hegemo­
nia das estruturas, anula o homem, e privilegia a sincro­
nia sôbre a diacronia. Basta agora derivar uma série da
outra, através de um raciocínio analógico-metafórico, e
concluir que o estruturalismo é a ideologia da sociedade
tecnocrática. É fácil. M as não é sério.2 O que êsse tipo
de análise deixa de lado é que o estruturalismo não é uma
doutrina desarmada, que possa ser “demistificada” sem
oferecer resistências. A filosofia da morte do homem
tem certas defesas automáticas, que precisam em primei­
ro lugar ser desmontadas pela crítica. A principal é que
ela própria se apresenta como uma doutrina demistifica-
dora: seu objetivo central é refutar a abordagem antro­
pológica, e a crítica baseada no conceito de ideologia é
uma das armas clássicas do arsenal da antropologia. A o
crítico que diz: “A filosofia da morte do homem é uma
ideologia da sociedade tecnocrática” , um partidário de
Foucault poderia responder: “ M as o conceito de ideolo­
gia não é um instrumento interpretativo válido, porque

92
se funda numa confusão, típica da mentalidade antropo­
lógica, entre o plano da praxis e o plano do discurso” .3
O que é preciso, antes de mais nada, é fazer um exame
interno da obra de Foucault. A dimensão social brotaria
como uma exigência espontânea dessa análise, e não como
uma violência voluntarista imposta de fo ra para dentro.
Um sociologismo ingênuo exporia o demistificador a ser
demistificado, e o debate se perderia num jôgo insolúvel
de circularidades.
Dessa forma, a pergunta: “Por que a morte do ho­
mem?” só pode ser respondida legitimamente a partir da
própria obra de Foucault. Ê possível que a análise com­
prove a relevância teórica do conceito da morte do ho­
mem, e nesse caso não haverá remédio senão absolver os
homicidas. A conclusão oposta levaria a uma reavalia­
ção do pensamento de Foucault. M as essa contestação
resultaria da própria análise, e não de um dogma.

1. O itinerário do Homicídio

O percurso intelectual de Foucault é composto de dois


momentos. O primeiro momento é o da descrição empí­
rica de determinados segmentos históricos. O segundo
é o da reflexão crítica. N a prim eira fase, Foucault des­
creve, sucessivamente, o discurso da loucura, o discurso
da medicina, e o discurso das epistemes. N a segunda, os
princípios teóricos postos em prática intuitivamente nes­
ses trabalhos empíricos são isolados e codificados. É o
momento da Arqueologia. Convém, antes de passar adi­
ante, refazer metodicamente os dois momentos dessa tra ­
jetória.
A História da Loucura na Idade Clássica é o primeiro
grande esforço descritivo de Foucault.4 Como o título
indica, não se trata de uma história da psiquiatria, mas,
literalmente, de uma história da loucura. Ou melhor, das
atitudes em relação à loucura. M ais importante que o
discurso psiquiátrico é o gesto que instaura a loucura, e
a torna pensável para o conhecimento. O saber da loucura
é derivado em relação ao gesto original de partilha, à
cesura que cinde o mundo da razão e o mundo da desra-
zão. A história da loucura não é portanto a história
dêsse saber, mas da sensibilidade à loucura no espaço
Ocidental. N essa perspectiva, a história da loucura per­
corre as seguintes etapas: a indiferenciação, a segregação
e o asilo.

93
A primeira fase corresponde à visão renascentista
da loucura. N a renascença o louco não é, como na Idade
Média, o homem decaído a uma condição bestial pelo ví­
cio e pelo desregramento: é o homem essencial, que em
sua natureza secreta é furor e desrazão. Os loucos são
como os animais do bestiário renascentista, em oposição
ao da Idade M éd ia; não são mais as advertências pedagó­
gicas contra a animalização do homem, mas a própria
verdade do homem. A loucura mostra ao homem da R e­
nascença a antevisão de um Apocalipse demente, um Jar­
dim das Delícias que está nos Antípodas do Jardim do
Paraíso. Bosch não oferece ao seu público a imagem da
inocência recuperada, mas o impossível desejo de uma
inocência utópica. A ênfase, na literatura, é um pouco
distinta. A loucura não é mais verdade do mundo e a
essência do homem, e sim o castigo da presunção. A tra ­
gédia é substituída pela sátira; a experiência da loucura
é confiscada pela consciência moral. É essa segunda vi­
são que vai pouco a pouco triunfar da visão plástica, em
que a loucura é risco e ameaça, espelho e derrisão, ima­
gem e aniquilamento do homem. N o s dois casos, entre­
tanto, a loucura é imanente ao mundo. N ão é Alteridade
radical, que se defronta ao homem como o que é alheio
à sua natureza, comò o que o nega e anula. A loucura
adere à razão, na pintura ou na sátira, em Brueghel ou
Erasm o, na consciência trágica e na consciência moral.
Como ameaça ou como ensinamento, a loucura está ins­
talada na vida quotidiana. “A loucura está ali, no cora­
ção das coisas e dos homens, signo irônico que dissolve
as fronteiras da verdade e da quimera, guardando apenas
a memória das grandes ameaças trágicas — vida mais
inquieta que inquietante, agitação frívola, mobilidade da
razão” 5

Segundo ato: a grande partilha da razão e da des­


razão. O período clássico rompe com a hospitalidade uni­
versal da Renascença. Começam a surgir, em tôda a E u ­
ropa, casas de reclusão destinadas a abrigar os anti-so­
ciais de tôda espécie, inclusive os loucos. O classicismo
é a época da grande reclusão. A razão clássica se define
negativamente, como tudo o que não é desrazão, e esta é
segregada nas casas de internamento. O espaço da razão
é demarcado pelo mesmo gesto que demarca o que não é
razão. É um gesto de partilha, que delimita o claro e o
escuro, e degreda para os confins da Ordem tudo aquilo
que escapa aos limites da normalidade clássica. Com essa

94
partilha, a razão simultâneamente desenha o perfil do
Outro e o próprio perfil. A grande reclusão do período
clássico teve causas sociais bastante precisas. Pode ser
vista como uma resposta dada pelo Estado ao desemprê-
go gerado por uma crise econômica de excepcional gra ­
vidade. O Hospital Geral abrigava tôdas as vítimas do
desemprego, mas também os ociosos em geral, os liberti­
nos, os pródigios, os loucos. D ava trabalho aos que não
trabalhavam : era uma instância da Ordem contra os que
se colocavam fo ra da Ordem clássica, definida em termos
de utilidade social. A loucura se inscrevia no espaço mo­
ral da ociosidade. O louco não era essencialmente um
enfêrmo, mas um transgressor da ética mercantilista. A
loucura não tinha, portanto, qualquer especificidade e po­
dia ser assimilada às outras form as de comportamento
anti-social. A sensibilidade clássica à loucura é assim a
antítese da visão renascentista. A loucura não é mais o
desvendamento da essência secreta do homem, mas a per­
versão dessa essência, definida sôbre um fundo de m ora­
lidade social. N ão é mais um mundo paralelo, co-existin-
do com o mundo da razão, mas o anti-Mundo, um mundo
radicalmente outro, constituído negativamente por um
gesto de exclusão e degrêdo.

Terceiro ato: o aparecimento do asilo. Com o início


do capitalismo, e estatuto social do pobre se modifica. N a
economia mercantilista, não era nem produtor nem con­
sumidor, e podia ser segregado. Com o advento da revo­
lução industrial, o pobre torna-se socialmente indispensá­
vel. É a reserva humana que vai operar a grande indús­
tria. A s prisões se esvaziam. H á uma crítica política aos
estabelecimentos de internamento e outras fundações,
acusadas de esterilizar capitais que deveriam ser reinte­
grados no circuito produtivo. Além disso, o liberalismo
político vai libertar os presos internados arbitràriamente,
pela vontade da família ou por lettres de cachet. Todos
os grupos que no período precedente coabitavam com os
loucos vão sendo restituídos à liberdade, com exceção dos
próprios loucos. A loucura é isolada, e passa a ocupar
sozinha o espaço da reclusão. E m outras palavras, o lou­
co se individualiza. O Hospital Geral, reservado aos an­
ti-sociais, é substituído pelo Asilo, destinado exclusiva­
mente aos loucos. O asilo libera a loucura p ara o conhe­
cimento; a loucura se torna pensável, e adquire o estatu­
to de objeto para o saber.

95
0 Nascimento da clínica é a próxima etapa da traje­
tória de Foucault . 6 M ais uma vez, não se trata de estu­
dar a evolução da medicina, mas de mergulhar no solo
mais arcaico que tornou possível essa evolução. Foucault
distingue, como na análise anterior, três fases distintas:
a medicina classificatória, a medicina clínica, e a medicina
anátomo-patológica.

N a medicina classificatória, o importante é situar a


doença num quadro de gêneros e espécies. Identificada
a doença por sua inserção no quadro, o papel do médico
é o de interferir o mínimo possível com a evolução na­
tural da enfermidade, que corresponde ao ordenamento
ideal da nosologia. A doença é mais importante que o
doente e o médico: é uma essência pura, que acede à sua
verdade visível no momento em que se integra no espaço
plano da classificação. O papel da medicina é velar para
“que a configuração ideal da doença. . . se converta em
form a concreta, livre, totalizada enfim num quadro imó­
vel, simultâneo, sem espessura nem desvio, em que o re­
conhecimento se abra por si só sôbre a ordem das essên­
cias.”7

N o fim do século X V III, a clínica começa a desenhar-


-se, substituindo o espaço fechado da medicina nosológi-
ca. A clínica está ligada a uma nova form a de percepção.
N a medicina nosológica, a percepção passava pelo qua­
dro, que servia de mediação entre o olhar do médico e a
essência da doença. N a clínica, tôda mediação entre o
olhar e a doença se dissolve. Abre-se diante do olhar um
espaço livre, que correspondia ao grande projeto liber­
tário da Revolução francesa — a eliminação de entraves
ao comércio de bens e à circulação das pessoas. A doen­
ça se oferece inteira à soberania do olhar. O clínico tem
assim um poder constitutivo, e por assim dizer produz
a doença com seu olhar, ao contrário do médico da f a ­
se anterior, mero expectador passivo. O olhar do clínico
lê a doença exaustivamente, sem obscuridade nem resí­
duo. Os sintomas não são signos que remetem à essência
da doença, pois esta é patenteada inteira nos sintomas.
Além disso, todo o campo da doença é enunciável. A do­
ença pode ser inteiramente vista, e essa visibilidade in­
tegral é correlativa de uma enunciabilidade também in­
tegral. N ã o existe uma natureza secreta da doença, invi­
sível ou inefável: a doença se oferece sem opacidade ao
olhar constitutivo do médico.

96
N o s primeiros anos do século X IX , a clínica transita
naturalmente para uma nova form a de sensibilidade. E n ­
tra em cena a medicina anátomo-patológica. A clínica
era bi-dimensional, e se esgotava inteira na superfície do
corpo. A nova medicina abre a dimensão da verticalidade.
É uma medicina do volume, e não exclusivamente do p la­
no. A nova form a de percepção se instaura com a intro­
dução da autópsia na experiência médica. É a autópsia
que deverá revelar a verdade da doença, chegada pela
morte ao seu têrmo natural. A morte adquire assim um
poder pedagógico de elucidação retrospectiva. A morte diz
retroativamente a verdade da vida. O método anátomo-pa-
tológico substitui a visibilidade em superfície da clíni­
ca por uma experiência mais complexa, em que a verdade
somente se manifesta pela transição para o inerte. “Co­
nhecer a vida só é dado a êsse saber derrisório. . . que a
deseja ünicamente m orta. . . A morte deixa o seu velho
céu trágico. Transform a-se no núcleo lírico do homem:
sua invisível verdade, seu segrêdo visível.” 8 O olhar ver­
tical do método anátomo-patológico descobre o indivíduo,
com a verdade infungível de suas lesões e do seu orga­
nismo. O corpo inerte que se desvenda pela autópsia per­
tence a um indivíduo particular, cuja doença seguiu um
itinerário sui generis, e chegou a um fim singular. Pela
primeira vez o saber do individual se to m a possível, des­
truindo o grande interdito aristotélico, que limitava ao
universal o campo do saber possível. B a medicina que
libera para a ciência o indivíduo, sôbre a tela de fundo da
finitude e da morte.
Enfim, último segmento do projeto descritivo de Fou­
cault: palavras e. as Coisas, ou a história das episte-
mes. 9 A história da loucura e da medicina incidiam sô­
bre zonas especializadas da percepção Ocidental. Nessa
nova etapa, Foucault tenta algo como a descrição de to-
talidades culturais. Seu método não é, entretanto, o da
história das idéias, mas o da história das condições de
possibilidade dessas idéias. A unidade de tal estudo é a
episteme, isto é, o solo originário a partir de que o conhe­
cimento se tornou possível, o a priori histórico que per­
mite ou veda determinadas configurações do saber. A
cultura européia passou por três epistemes: a renascen­
tista, a clássica e a moderna.
A episteme da Renascença é dominada pelo conceito
de similitude. A ciência consiste em procurar semelhan­
ças entre ordens aparentemente distintas do real. A na­

97
tureza é um livro a decifrar, e o trabalho de decifração
se reduz a encontrar semelhanças entre os fenômenos, o
que é facilitado pelas assinaturas, isto é, marcas impres­
sas nas coisas que indicam as analogias entre os diversos
niveis da natureza.

A episteme clássica é regida pela categoria da O r­


dem. O projeto de todo saber é a constituição de uma
ciência geral da ordem, que seria a matesis universal,
para as naturezas simples, e a taxinomia, para as natu­
rezas complexas. E m outras palavras: a matesis abran­
geria as ciências de quantidade, e a taxinomia as da qua­
lidade. Todo o real pode assim ser reduzido a um Quadro,
que é a esquematizaçao da Ordem. A atividade do espí­
rito não consiste mais em aproximar as coisas entre si,
como na Renascença, mas em distinguí-las; não se trata
mais de decifrar o Semelhante, mas de pensar a identida­
de e a diferença, e inseri-las num quadro, com gêneros e
espécies, classes e sub-classes, hierarquias e subordina­
ções. A possibilidade de integrar no quadro a totalidade
do real é dada pelo conceito de representação, que é o
grande instrumento operatório da episteme clássica. N a
Renascença, entre o signo e o significado havia um ter­
ceiro elemento, que era a similitude; para que um signi-
ficante pudesse significar, era necessário que fôsse liga­
do ao significado por um vínculo de semelhança. N a
cultura clássica, o signo torna-se binário; entre o signifi-
cante e o significado não existe nada. A relação entre os
dois têrmos é arbitrária. Segue-se que os sistemas de
signos podem representar tudo; e que tudo pode ser re­
presentado pelos signos. Se todo o real é representável,
sem qualquer resíduo, sem qualquer fa ix a de inefabili-
dade ou mistério, o projeto da ciência geral da ordem
está autenticado, e o quadro geral do saber pode abrigar
a totalidade do ser. A idéia da representabilidade uni­
versal do réal está contida na gramática geral, na histó­
ria natural e na análise das riquezas. A gramática geral
estuda a linguagem, um sistema de signos sui generis que
tem a propriedade de exprimir tôdas as representações. A
história natural reduz todo o campo do visível a um sis­
tema de gêneros e espécies, isto é, constitui como descri-
tível e ordenável numa taxinomia todo o domínio da em-
piricidade. Enfim, a análise das riquezas estuda o fenô­
meno da troca, e a moeda como instrumento da troca. A
moeda, com efeito, importa menos por seu valor intrínse­
co que por sua capacidade de servir de meio de troca,

98
isto ê de representar riqueza. A moeda recebe assim séil
valor de pura função de signo. A gramática geral, a his­
tória natural e a análise das riquezas manifestam assim
à capacidade do real de ser exaustivamente representado.
Tôda linguagem é nomeável, todo ser é classificável e tô­
da riqueza é monetizável: três manifestações convergen­
tes da visão clássica, baseada na certeza de que todo o
real pode ser representado, e de que tôda representação,
expressa pelo Discurso, pode ser inscrita num quadro,
instância suprema da Ordem.

N a episteme moderna, enfim, desaparece o espaço


da representação. O fundamento do saber se encontra
num domínio nôvo de objetividade, além da representa­
ção e fora do quadro. U m a nova disposição epistemoló-
gica se instaura: a Ordem é substituída pela História.
É a história que transform a a ciência das riquezas em
economia política, e a história natural em biologia, e a
gramática geral em filologia.

N a análise das riquezas a tônica era sôbre a circula­


ção, fundada nas necessidades humanas, que eram aten­
didas pela troca, cujo instrumento privilegiado era a
moeda. A través da moeda, os objetos adquiriam a pro­
priedade de se representarem uns aos outros: as riquezas
circulavam no espaço tabular do quadro, num circuito
indefinido de representações recíprocas. A economia po­
lítica fratura o quadro, expulsa os bens do espaço da re­
presentação. A ênfase se desloca da circulação para a
produção, e esta é fundada no trabalho. O trabalho é
externo ao mundo da representação: é um a realidade
irredutível, que funda e condiciona a economia. O tra ­
balho introduz uma historicidade radical no sistema eco­
nômico. N a análise das riquezas, não havia propriamente
tempo, mas no máximo uma temporalidade circular, ba­
seada num jôgo de interações entre a massa monetária e
a quantidade de bens disponível num momento dado.
Quando a quantidade de moeda aumentava, o preço dos
bens se elevava, e sua produção crescia; mas o incremen­
to da produção levava à redução dos preços, à diminuição
da quantidade de moeda, e ao decréscimo da produção.
Com a economia política, surge a temporalidade linear
e irreversível. O trabalho acumulado se converte em ca­
pital; êste, investido, absorve mão-de-obra adicional, a
qual por sua vez, acumulada, se transforma em nôvo ca­
pital. A o tempo circular da teoria quantitativa da moe­
da substitui-se o tempo cumulativo da economia política
clássica. M as a historicidade da economia leva ao fim
da história. A fim de atender ao aumento da população,
novas terras têm que ser postas em cultivo, e como estas
se tornam cada vez mais estéreis, o preço dos víveres
cresce cada vez mais, beneficiando os proprietários de
terras de boa qualidade, que podem vender a preços ele­
vados os gêneros produzidos a baixos custos. Cresce as­
sim a renda agrícola, dos proprietários de te rra s; crescem
também os salários nominais dos operários, a fim de per­
mitir sua subsistência, em face da elevação dos preços
dos víveres. Em conseqüência, há uma tendência à redu­
ção progressiva da renda industrial, ou lucro dos empre­
sários, forçados a pagar um preço cada vez mais alto
pela terra e pelo trabalho. Finalmente, no têrmo do pro­
cesso, vem a estagnação econômica. Pressionados por
uma taxa de lucros sempre decrescente, os empresários
não podem mais empregar mão-de-obra adicional; a po­
pulação cessa de se reproduzir; o cultivo de novas terras
se torna desnecessário; e a renda agrícola se estabiliza,
interrompendo sua marcha ascendente. A história leva à
inércia e à petrificação da história. Nessa perspectiva,
Ricardo e M arx representam apenas duas opções diferen­
tes no interior do mesmo processo. P a ra Ricardo, a his­
tória aparece com seu rosto positivo: graças à dinâmica
da história, a condição humana original de carência, ge­
rad a pela avareza da terra, pode ser parcialmente ven­
cida, pois no fim do processo, suprimido o excesso de po­
pulação pela contração das oportunidades de emprêgo, a
economia, destemporalizada, poderá atender às necessi­
dades humanas. E m M arx, a história se apresenta como
negatividade, anuladora do homem e responsável pela alie­
nação do proletariado. Graças à própria história, em con­
dições determinadas historicamente, a classe operária
conseguirá reapropriar sua essência alienada na história
e pela história, inaugurando uma ordem além do tempo.
Ê por isso que M arx não nega a economia política clássi­
ca, pois tanto o marxismo como a política representam
manifestações de superfície do mesmo fenômeno arqueo­
lógico. “ Suas gesticulações limitam-se a suscitar algu­
mas ondas e desenhar rugas na superfície: são tempesta­
des unicamente na piscina das crianças .” 10

Assim como o trabalho constituiu a economia polí­


tica áo introduzir a história na análise das riquezas, o
aparecimento do conceito de vida introduziu na ciência

100
dos sêres vivos as condições de possibilidade de uma his­
tória, constituindo a biologia. N o período clássico, não
existia a vida, mas apenas o ser vivo. Os sêres vivos
se concatenavam entre si e com os outros sêres numa ca­
deia ininterrupta de continuidades, no interior de um qua­
dro. A episteme moderna dissolve o quadro, liberta os
sêres vivos, e os emancipa do mundo inorgânico. A s iden­
tidades e oposições dêsses sêres vivos, finalmente autô­
nomos, não se manifestam mais por Relações de vizinhan­
ça ou subordinação* no espaço do quadro, mas se orde­
nam em função de um foco unitário — a vida — exte­
rior às representações. É da vida e suas exigências que
derivam as funções, como a respiração, digestão, repro­
dução, que existem em quase todos os sêres vivos como
condições necessárias à manutenção da vida; e para que
às funções sejam atendidas, existem os órgãos, por sua
vez divididos em superficiais e profundos. Assim o ser
vivo é definido por um princípio interno de organização,
por uma rêde de articulações específicas, cujo fundamen­
to último é a vida, e não por sua posição na superfície
lisa de uma cadeia de relações espaciais. Além disso, des­
de o início do século X IX se esboça uma análise das re­
lações entre o ser vivo e suas condições exteriores de
existência. Ê assim que Cuvier já notava que a dentição
e o aparelho digestivo de certos mamíferos guardavam
uma relação definida com o tipo de alimentação de cada
animal. A o definir o ser vivo por sua estrutura interna,
e não por sua localização numa taxinomia, e ao postular
uma interação entre a estrutura anátomo-fisiológica do
animal e suas condições externas de existência, a episte­
me moderna permite a introdução da historicidade na
vida. O evolucionismo só se tornou arqueològicamente
possível com a ruptura da taxinomia clássica, que per­
mitiu ao ser vivo, em sua estrutura interna e em suas
relações com o ambiente, ser pensado como sujeito de
uma história.

N a linguagem, finalmente, ocorre a mesma erosão


da Ordem clássica. N a epistemia clássica, a linguagem
tinha o poder de representar tôdas as representações. N o
período moderno, a linguagem continua a representar,
mas a representação passou a ser secundária. A palavra
não é significativa na medida em que exprime uma re ­
presentação, mas na medida em que faz parte de uma
organização gramatical que assegura de form a autôno­
ma a coerência da linguagem. E sta adquire uma espes­

101
sura própria, que independe de sua capacidade de expri­
m ir representações. A linguagem se transforma em
objeto para o saber; é liberta do continuum do quadro, e
essa libertação desvenda a sua estrutura. Estrutura fun­
damentalmente diacrônica: só se torna transparente
quando confrontada com seus estados anteriores, e com
o conjunto de suas transformações virtuais. A lingua­
gem é tôda inteira atravessada pela história. M as essa
historicidade só se revela depois que a linguagem conse­
gue evadir-se do espaço quadriculado do saber clássico:
depois que deixa de ser a matéria neutra pela qual a re­
presentação se representa a si mesma e se transforma em
objeto dotado de densidade específica. A filologia é êsse
salto mortal da linguagem fo ra do mundo da represen­
tação.
Tanto no caso da economia política como no da bio­
logia e no da filologia o fenômeno é portanto o mesmo:
o saber abandonando o espaço da representação. N a epis­
teme clássica, as coisas e as representações eram indisso­
ciáveis — tôdas as coisas eram representáveis, e tôdas as
representações, articuladas pelo Discurso, correspondiam
a coisas. A modernidade rompeu essa antiga aliança.
De um lado estão às coisas, em seus nexos, suas nervuras,
sua organização própria; do outro lado, as representa­
ções, sempre mais ou menos imprecisas, de uma realidade
mais ou menos secreta. A trás da economia política exis­
te o trabalho, atrás da biologia existe a vida, atrás da
linguagem existe a história. A s coisas só se dão através
de uma subjetividade, de uma consciência individual.
A través do homem — figura nova, que serve de eixo para
as representações, e de filtro pelo qual o ser acede ao sa­
ber, quando as coisas se descolam das representações.
Personagem essencial, mas precário, gerado pela histó­
ria, e sujeito a tôdas as vicissitudes da historicidade, in­
clusive ao envelhecimento e à morte.
N o s três segmentos da etapa descritiva existe uma
unidade fácil de identificar. Assim, a história da lou­
cura, da clínica e das epistemes seguem tôdas o mesmo
plano formal. A sucessão é delimitada em fases, segundo
um esquema ternário. A historia da loucura abrange a
fase da indiferenciação, da segregação e do asilo; a his­
tória da clínica passa pela medicina nosológica, clínica e
anátomo-patológica; a história das epistemes inclui a
episteme renascentista, a clássica e a moderna. Além
disso, um confronto dos três discursos permite estabele­

102
cer uma correspondência geral entre as diversas fases.
Êsse confronto não foi feito pelo próprio Foucault, mas
a superposição das etapas é incontestável. Assim, a epis­
teme moderna introduz nas coisas uma dimensão de infe­
rioridade, e o homem aparece sôbre o fundo de sua pró­
pria finitude; a medicina anátomo-patológica substitui o
espaço bi-dimensional da nosologia pelo espaço profundo,
vertical, do volume, e o indivíduo surge sôbre a tela de
fundo da morte; e a fase asilar permite o aparecimento
do louco, definido em têrmos de sua própria patologia, e
não em têrmos de utilidade social, como no tempo da
grande reclusão.
Esgotado o momento descritivo, trata-se agora para
Foucault de dar estatuto teórico aos princípios postos em
prática na composição dos livros anteriores. Êsse traba­
lho de sistematização e codificação é o objetivo da A r ­
queologia do Saber. 11
Em sua definição mais geral, a arqueologia é a ciên­
cia das formações discursivas. A s formações discursivas
são conjuntos de enunciados, isto é, segmentos de dis­
cursos, definidos não em sua materialidade de átomos
mas por sua form a de existência — uma form a de exis­
tência que exclui qualquer referência a realidades trans-
-discursivas. A tarefa da arqueologia é descrever essas
formações discursivas. Tal descrição fôra feita antes no
nível empírico e quase intuitivo — assim foi descrita a
form ação psicopatológica, a formação médica, as várias
epistemes, definidas como uma rêde de coerências, numa
época,dada, entre as distintas formações discursivas. A
arqueologia é uma reflexão crítica e normativa sôbre tais
descrições.
A s formações discursivas são constituídas por prá­
ticas discursivas que determinam: ( a ) os objetos, ( b )
as modalidades de enunciação dos sujeitos, (c ) os con­
ceitos, e (d ) as escolhas temáticas.
Cada formação discursiva comporta um certo núme­
ro de objetos, que variam historicamente. Assim os ob­
jetos da psiquiatria do século X IX (agitações motrizes,
aberrações sexuais, lesões do sistema nervoso central)
são distintos dos objetos sôbre os quais falava a psico-
-patologia do século X V III (monomania, imbecilidade).
Tôda formação discursiva é um caleidoscópio de objetos
que surgem e de objetos que desaparecem. N ã o é possí­
vel, numa form ação discursiva, fa la r de qualquer coisa,
mas apenas do que é permitido pelas regras de formação

103
dos objetos. Segundo Foucault, os objetos se formam
pela ação recíproca de superfícies de emergência, de ins­
tâncias de delimitações e de critérios de especificação.
Superfícies de emergência: as esferas em que afloram os
objetos. Tais superfícies variam segundo a formação dis­
cursiva e a época. N o caso da psicopatologia do século
X IX , eram a família, a comunidade religiosa, o meio pro­
fissional, cada um com sua normatividade própria, com
seus valores, com sua margem de tolerância em relação
aos desvios. Instâncias de delimitação: as instituições
que definem o objeto e o separam de objetos afins. Essas
instâncias foram, p ara retomar o mesmo exemplo, a me­
dicina, como corpo institucionalizado, que separava a
loucura da sanidade segundo critérios considerados cien­
tíficos; a justiça, que separava o delito praticado por um
criminoso penalmente irresponsável de um delito prati­
cado por uma pessoa mentalmente sadia; a autoridade
religiosa, que separava o comportamento místico-extáti-
co do comportamento simplesmente patológico; a crítica
literária, que separava a literatura não-convencional mas
dotada de valor artístico de uma literatura não conven­
cional sem valor artístico. Enfim, critérios de especifica­
ção: os sistemas de categorias, pelos quais as definições
podem ser form uladas — o corpo, a alma, o jôgo das in-
terrelações neuro-psicológicas. A unidade de uma form a­
ção discursiva é dada portanto não pelos objetos, que se
transform am continuamente, mas por um conjunto de re­
lações que permitem ou excluem certos objetos. E como
essas relações são externas ao discurso, mas aderem a
êste, como sua condição de possibilidade, podemos dizer
que os objetos do discurso são constituídos pelo próprio
discurso.
Em seguida é preciso determinar as modalidades de
env/ncWção dos sujeitos no interior de uma formação dis­
cursiva. Ê necessário conhecer o estatuto do sujeito: sa­
ber, numa formação discursiva, quem fala, com que tí­
tulos, sob que condições, com que autoridade, segundo
que sistema de legitimação institucional. Assim, o su­
jeito do discurso médico é o médico, cujo estatuto numa
sociedade dada tem que ser especificado exaustivamente.
Além disso, é preciso determinar o espaço institucional
de onde o discurso é proferido: o hospital, o laboratório,
a universidade, a prática privada, no caso do discurso
médico. Finalmente, é importante definir a postura per-
ceptiva do sujeito: ôlho desarmado, como na medicina clí­

104
nica, ou munido de microscópio, como o histologista; in­
serido na cadeia informativa como receptor ou transmis­
sor; autor de artigos, professor na universidade, ou orien­
tador de médicos principiantes, na pedagogia hospitalar.
Os conceitos utilizados em cada form ação discursiva
também não surgem arbitràriamente. São constituídos
segundo regras precisas, dadas pelas form as de sucessão,
pelas form as de coexistência e pelas form as de interven­
ção. Formas de sucessão: a organização hierárquica do
campo enunciativo, segundo uma seriação determinada.
Cada época e cada formação discursiva têm modalidades
próprias de viver essas seriações, tais como a série lei
geral/aplicação particular; premissas/inferências; hipó­
tese/verificação; fato observado/ teoria explicativa. A
história das idéias, por exemplo, verifica que a história
natural do século X V III deu conteúdos diversos a concei­
tos antigos, como o de gênero e espécie, e criou novos con­
ceitos, como o da estrutura. A arqueologia vai mais além,
e verifica que essa renovação conceituai não teria sido
possível sem uma metamorfose mais profunda, que inci­
da sôbre a form a de ordenar as séries enunci ativas. O
que mudou, fundamentalmente, foi a maneira de ordenar
os enunciados: a maneira de relacionar a descrição com a
classificação, as observações particulares com os princí­
pios gerais, o que é certo com o que é provável. É a ma­
neira de viver e aplicar essas relações de subordinação e
dependência que autoriza ou exclui determinados concei­
tos. Além disso, os conceitos estão ligados às form as de
coexistência entre enunciados, ou os da mesma discipli­
na ou de disciplinas afins. Assim a história natural do
século X V III recolhe, reformula, autentica experimental­
mente ou refuta os enunciados já formulados nesse cam­
po ; e estabelece determinadas relações com a cosmologia,
a geologia, a filosofia, a teologia, a exegese bíblica, a
matemática. Êsse campo de coexistência entre enuncia­
dos varia segundo a form ação discursiva e segundo a
época. Finalmente, as form as de intervenção são os pro­
cedimentos pelos quais cada formação discursiva trabalha
os seus enunciados: a utilização de uma linguagem na­
tural ou formalizada, as form as de sistematização de pro­
posições pré-existentes, as técnicas de conversão de enun­
ciados qualitativos em enunciados quantitativos, etc. O
sistema de formação dos conceitos é constituído pelo fei­
xe de relações que se estabelecem entre as form as de su­
cessão, de coexistência e de intervenção: os únicos con­

105
ceitos possíveis numa formação discursiva são os auto­
rizados pelo rigoroso determinismo dessas interações.
Todo êsse jôgo de relações entre as regras de form a­
ção de objetos, de modalidades de enunciação e de con­
ceitos leva à cristalização de determinados temas ou teo­
rias. Assim, o tema da filiação entre as línguas indo-eu-
ropéias, na filologia do século X IX ; ou o tema fisiocráti-
co da circulação de riquezas a partir da produção agríco­
la. A combinatória das regras de formação de objetos,
conceitos e modalidades enunciativas autorizaria, em
princípio, um número extremamente elevado de temas:
mas apenas algumas dessas possibilidades são efetiva­
mente realizadas. Os temas efetivos são apenas uma fr a ­
ção dos temas virtuais. Qual o princípio dessa escolha?
Por que alguns dos temas possíveis se realizam e outros
permanecem simples virtualidades ? A resposta é que a
escolha dos temas obedece a um duplo determinismo:
o da constelação discursiva em que se insere o discurso,
e o das práticas não-discursivas que definem sua função.
Tôda formação discusiva está enquadrada, com efeito,
num campo discursivo mais extenso ou de tipo superior.
Assim, a gramática geral é um modêlo particular da teo­
ria geral dos signos e da representação; e está ligada,
por relações de analogia, oposição e complementariedade
a outras formações discursivas, como a análise das ri­
quezas e a história natural. A s escolhas estratégicas es­
tão limitadas por essa constelação discursiva; os temas
efetivamente realizados na gramática geral são apenas
os que são autorizados por suas relações com o discurso
de tipo superior — a teoria geral dos signos — e com os
discursos adjacentes — a análise das riquezas e a his­
tória natural. São excluídos os temas teoricamente pos­
síveis à luz de suas regras de form ação de objetos e con­
ceitos e enunciação, mas que não são autorizados pela
constelação discursiva. O outro fator limitativo é dado
pela função do discurso em relação a práticas não-dis­
cursivas. Assim, por exemplo, a função do discurso eco­
nômico na prática do capitalismo nascente, ou da gra ­
mática geral na prática pedagógica, ou do discurso lite­
rário ou artístico como instrumento de gratificação psi­
cológica. Essas necessidades nãò-discursivas podem ter
manipulado as regras de formação de objetos, de form a­
ção de conceitos e de formação de modalidades de enun­
ciação de modo a g era r certos temas e a excluir outros,
que em teoria seriam possíveis.

106
E is a formação discursiva — algo mais que um sis­
tema de objetos, conceitos e temas: um feixe dinâmico
de interações, acionadas por uma prática discursiva. E
eis a arqueologia: a ciência das formações discursivas.
Qual o objetivo dêsse aparelho tão complexo? O ri­
gor científico. Substituir a imprecisão da história das
idéias por um exigente positivismo do discurso, que ex­
clua qualquer referência a configurações extradiscursi-
vas, já que tais configurações pertencem à esfera da do-
xologia, e não à esfera da ciência.
Êsse longo exame da obra de Foucault permite vol­
tar, com conhecimento de causa, à pergunta inicial: “Por
que a morte do homem”
Foucault responde a essa pergunta em dois planos.
Em primeiro lugar, no plano metodológico: “A morte do
homem é uma exigência científica.” Em segundo lugar,
no plano ontológico: “A morte do homem é uma proba­
bilidade objetiva, que já se desenha no espaço do saber
contemporâneo.” A morte do homem como form a de or­
ganizar o pensamento; e a morte do homem como fim
de um percurso. O homicídio como técnica; e o homicídio
como um acidente na bio grafia do Discurso.

2. O Homicídio Metodológico

A metodologia da morte do homem está presente


em tôda a obra de Foucault. M as não está presente da
mesma forma, nem funciona sempre no mesmo nível. Se­
gundo a maior ou menor penetração das práticas extra-
-discursivas, e o tipo de funcionamento do homicídio me­
todológico, podemos distinguir em Foucault três fases
distintas: ( 1 ) a fase transitiva, ( b ) a fase intransitiva,
e (c ) a fase da arqueologia.
A fase transitiva é a da Histoire de la Folie e da
Naissance de la Clinique. A opção anti-antropológica se
manifesta apenas na recusa em admitir uma faseologia
evolutiva, como a de Comte ou M arx, Sua faseologia é
não-vetorial. A história não se desenvolve linearmente,
em direção a um telos próximo ou remoto; não é o pro­
gresso de uma consciência, a busca de uma perfeição, o
enriquecimento cumulativo de um saber. A fase poste­
rior não é mais completa que a anterior. A medicina em­
pírica e experimental da fase anátoma-patológica não é
mais próxima da verdade que a Medicina nosológica; o
discurso psiquiátrico de Pinei, da fase asilar, não é mais

107
veraz que o de W illy, da fase da segregação; a biologia
de Cuvier não é melhor nem pior que a filosofia natural
de Paracelso. A s fases são radicalmente descontínuas.
C ada fase é uma nova partida, um recomeço absoluto
a partir de zero. O que êsse tipo de história exclui é a
existência de uma escatologia, ou de uma teleologia: a
existência de um nomos_, imanente ou transcendente, or­
denando a história segundo uma consciência e em função
de um fim. Mas não exclui as práticas não-discursivas.
Donde a transitividade dessas análises, isto é, sua poro-
sidade às configurações sociais. Quase tôdas as descri­
ções do discurso da loucura e da medicina estão explici­
tamente enraizadas na vida social. Já vimos alguns
exemplos. Assim, na Histoire de la Folie, a segregação
surgiu como uma resposta dada pelo mercantilismo a uma
grave crise econômica. Todos os que não eram nem pro­
dutores nem consumidores eram socialmente inúteis: daí
a reclusão de todos os anti-sociais, entre os quais os lou­
cos, com o objetivo de integrá-los no circuito produtivo.
Os loucos e todos os outros anti-sociais eram vistos sôbre
um fundo de reprovação ética: eram transgressores do
Código mercantilista, e portanto tinham se colocado na
posição de réprobos da Razão clássica. Com o início do
capitalismo liberal, surge a necessidade de mão-de-obra
para a indústria, e todos os anti-sociais, com exceção doB
loucos, vão sendo libertados. Simultaneamente com as
necessidades econômicas, a prática política vai exercer
uma grande influência; o liberalismo político vai esva­
ziar as prisões de todos os que tinham sido presos arbi-
tràriamente, sem julgamento regular e sem plena sal­
vaguarda dos direitos individuais. Restam os loucos. A
loucura é isolada, e pela primeira vez é vista em sua sin­
gularidade. A loucura se torna pensável: o discurso psi­
quiátrico pode se instaurar. N a história da medicina, a
mesma influência dos fatores sociais e políticos. A me­
dicina classificatória era fechada em si mesma. O caso
particular se tom ava inteligível quando inserido em gêne­
ros e espécies, no espaço do quadro, e êste se atualizav»
no caso concreto. A circularidade era completa. Ehhb,
form a de percepção médica muda no fim do século X V III.
Surge a idéia de uma medicalização generalizada, com o
objetivo de extinguir inteiramente a doença. P a ra «tin ­
gir êsse objetivo, é preciso que os médicos se multipli­
quem, no campo como nas cidades, que haja uma vigilân­
cia contra a doença, que cada cidadão tenha uma conn»

108
ciência médica, como deve ter uma consciência cívica.
O olhar médico deixa de estar circunscrito por um quadro
fechado, e abre-se num campo livre e socialmente difuso.
“À estrutura plana da medicina classificatória sucede
esta grande figu ra esférica. Nela, o espaço médico pode
coincidir com o espaço social, ou antes, atravessá-lo e pe­
netrá-lo inteiramente . 12 A medicina clínica, com suas
estruturas perceptivas inéditas, surge nesse espaço livre
aberto pela Revolução francesa. “ Êsse campo médico,
restituído à sua verdade de origem, e percorrido inteira­
mente pelo olhar, sem obstáculo, sem alteração, é estra­
nhamente semelhante, em sua geometria implícita, ao es­
paço social com que sonhava a Revolução, pelo menos
em suas primeiras form ulações.. . U m espaço de livre
circulação em que a relação das partes ao todo fôsse sem­
pre transponível e reversível. Existe pois uma conver­
gência espontânea, e profundamente arraigada, entre as
exigências da ideologia política e as da tecnologia médi­
ca.” 13
Les M ots et les Choses é o momento da intransitivi-
dade. Foucault deixa de lado o problema da imbricação
das práticas não-discursivas nas práticas discursivas, e
examina as regularidades discursivas em si mesmas: as
regras segundo as quais, num determinado espaço cultu­
ral, certos objetos, temas e conceitos podem aflorar, à
exclusão de outros, vedados pela configuração vigente.
O discurso só se relaciona com o próprio discurso. A s
formações discursivas surgem, aparentemente, por gera­
ção espontânea. A s grandes constelações epistemológi-
cas nascem e se transform am sob a ação de leis que não
chegam a ser explicitadas. Como surge a episteme clás­
sica? E a moderna? P o r que no século X V I U a lingua­
gem tinha o privilégio de representar tôdas as represen­
tações, e as coisas o de ser exaustivamente representadas
pela linguagem? Por que no século X IX as coisas e as
representações se descolam? Mistério. A mudança das
epistemes é vista como uma resposta a novos aconteci­
mentos ocorridos no plano do próprio discurso. A s posi-
tividades e ciências são deduzidas por um encadeamento
puramente interno, segundo a lógica imanente do discur­
so. O discurso é dotado de uma mobilidade própria, que é
de fato uma sucessão de imobilidades. É por isso que a
Arqueologia foi descrita por seus detratores como uma
Keologia. N ã o se trataria de história, e sim de análise
c.stratigráfica. A sucessão é dividida em segmentos fe ­

109
chados, em “flashes” de eternidade. 0 cinema ê substi­
tuído pela lanterna mágica. A diacronia aparece como
uma sucessão de sincronias superpostas. Ê — aparente­
mente — a expulsão definitiva do homem. O triunfo do
homicídio metodológico em sua versão mais radical. A
história humana — a história do homem, enquanto su­
jeito de seu discurso, e agente de sua gênese, de sua
transfomação, de sua dissolução — é substituída por uma
história do discurso — em que a gênese, a transformação
e a dissolução aparecem como acidentes enigmàticamente
ocorridos na superfície do próprio discurso. U m a análise
mais cerrada mostra que essas críticas não são total­
mente justificadas. Em nenhum momento, Foucault nega
a influência decisiva das práticas não-discursivas na for­
mação do discurso e em suas vicissitudes. Apenas, o exa­
me da interação entre as estruturas discursivas e as não-
-discursivas não entra no quadro de suas análises. Em
L es M ots et les Choses. Foucault está interessado em
outra coisa: no exame das regularidades discursivas que
presidem, num período histórico definido, à formação e
à transformação de positividades como a gramática, a
economia, e história natural, e determinam, p ara cada
uma, o repertório de objetos, conceitos e temas possí­
veis. Foucault acreditava que essas regras poderiam ser
descritas no plano exclusivo do discurso — pelo menos
provisoriamente. Ora, é certo que o que pode ser enun­
ciado e a form a de enunciar dependem fundamentalmen­
te da constelação discursiva vigente, e das relações que
se estabelecem entre estruturas discursivas; mas é igual­
mente certo que são as práticas não-discursivas que vão
impor seus limites e sua form a a essas relações. É por
isso que as análises extraordinàriamente finas de Les
M ots et les Choses permanecem abstratas e, em definiti­
vo, inconclusivas — ficamos sem saber como surgem as
epistemes, qual a lei de sua transformação, e de que fo r­
ma a episteme como um todo ou cada uma das positivida­
des que a integram se articulam com o não-discursivo.
É um livro que exigia um segundo volume; ou outro li­
vro.

E aqui entra em cena o terceiro momento — o da


Arqueologia. Ã primeira vista, a “Archéologie” nada
mais é que uma longa polêmica contra o sujeito. O ho­
micídio metodológico atinge aqui dimensões quase ma­
níacas. Convém, portanto, delimitar com algum rigor o

110
projeto anti-antropológico da Arqueologia, antes de pas­
sar adiante em nossa análise.
Ésse projeto comporta dois elementos principais: a
instauração de uma história descontínua, e a dissolução
das unidades que tradicionalmente funcionam como ob­
jeto da descrição histórica.
A especificidade de Foucault em relação aos outros
teóricos da morte do homem está em sua escolha da di­
mensão diacrônica para articular sua obra. D esafia o
adversário em seu próprio terreno: nega o homem no
eixo da história, até êsse momento considerado o refúgio
da consciência antropológica. O estruturalismo “vulgar”
podia dar-se ao luxo de expulsar o homem porque opera
na linha da sincronia; é fácil, então, privilegiar o siste­
ma, pois na ordem das simultaneidades o sujeito não pre­
cisa desempenhar um papel muito dinâmico. A audácia
de Foucault consiste em aceitar a provocação da diacro-
nia, e instalar a morte do homem no cerne da história.
Mas Foucault não corre nenhum risco. Sua história é
muito diferente da história humanista tradicional. E isto
porque, como vimos no discurso da loucura, da medicina
e das epistemes, para Foucault a história é essencial­
mente descontínua. Ê uma história cataclísmica, feita de
rupturas e descontinuidades. N ã o é o desenrolar previsí­
vel do Mesmo, e sim uma série de mutações inaugurais.
É fácil entender as implicações dessa visão da história.
A história contínua é o abrigo privilegiado da consciên­
cia. “Fazer da análise histórica o discurso do contínuo é
fazer da consciência humana o sujeito original de todo
fiori e de tôda prática: são faces do mesmo sistema de
pensamento.” 14 Um a história descontínua, por outro la­
do, exclui qualquer antropocentrismo. A sucessão das
fases obedece a uma legalidade puramente discursiva,
sem qualquer referência a uma teleologia ou a uma sub­
jetividade fundadora. A história descontínua nega todo
projeto, divino ou humano: não pode ser nem a manifes­
tação da Providência, nem o desdobramento do Espírito,
nem o campo da ação da praxis, individual ou coletiva.
O tempo da descontinuidade é, no sentido mais literal, o
tempo do desaparecimento do sujeito.
O segundo elemento é a dissolução das unidades sig­
nificativas da descrição histórica. Tradicionalmente, a
história das idéias descrevia teorias, ideologias, dscipli-
nas, sistemas filosóficos. A Arqueologia “despresentifi-
ca” essas unidades. Em sua existência imediata, tais uni­

111
dades, como se oferecem ao olhar do historiador, estão
corrompidas até a medula pelo veneno antropológico. D aí
sua substituição pelas formações discursivas, entidades
depuradas que funcionam exclusivamente no nível do dis­
curso. Movem-se num ar rarefeito, mortal ao homem, mas
hospitaleiro às estruturas. M as a Arqueologia não é uma
proposição anti-antropológica apenas em seus princípios
gerais: todo o complexo arsenal de novas categorias in­
troduzidas por Foucault parece ter como função princi­
pal evitar a contaminação do antropologismo. Vale à
pena, nessa perspectiva, lançar um segundo olhar às re­
gras da formação de objetos, conceitos, modalidades
enunciativas e estratégias temáticas.
Qualquer descrição ortodoxa dos objetos de uma dis­
ciplina tem que postular um vínculo entre as coisas e um
sujeito. U m objeto, enquanto entidade material, é objeto
para uma consciência. É o que se trata de evitar. Para
a arqueologia, o objeto não está ligado nem às coisas
nem ao sujeito: é um feixe de relações, e não uma enti­
dade material que possa ser referida a uma subjetivida­
de. O objeto é inteiramente constituído por relações dis­
cursivas. O sujeito, na época clássica, não podia fa la r de
qualquer coisa nem constituir qualquer objeto ligado ao
saber da loucura, más apenas das coisas e objetos autori­
zados pela interação das superfícies de emergência, das
instâncias de delimitação e dos critérios de especificação.
A substituição dos objetos materiais por objetos relacio­
nais tem a vantagem de dissolver o real: de despresenti-
ficar às coisas. Ê preciso “ conjurar sua rica, pesada e
imediata plenitude, que habitualmente era considerada a
lei primitiva de um discurso que dela se afastaria unica­
mente por êrro, esquecimento, ilusão, ignorância ou inér­
cia das crenças e tradições, ou ainda pelo desejo, talvez
inconsciente, de não ver e não dizer. Substituir o tesouro
enigmático das coisas anteriores ao discurso pela form a­
ção regular de objetos que somente se desenham nêle.
D efinir êsses objetos sem referência ao fundo das coisas,
e em função do conjunto de regras que permitem form á-
-los como objetos de um discurso e constituem as condi­
ções de seu aparecimento histórico. Fazer uma história
dos objetos discursivos que não os m ergulharia nos sub­
terrâneos comuns de um solo originário, e que se limi­
taria a desdobrar o nexo das regularidades que regem a
sua dispersão.” 15 Dissolver as coisas não significa apenas
nem principalmente eliminar um referente externo ao dis­

112
curso: significa eliminar o sujeito como fonte geradora
de significações. O discurso não é um conjunto de signos
produzidos por alguns homens e significando determina­
das coisas: é um discurso autoproduzido e auto-referen-
te. A s coisas não se dão a uma consciência através de um
discurso; é o discurso que constitui seus próprios refe­
rentes, sem necessidade de uma consciência ligada ao real
por uma relação perceptiva.
A análise das modalidades de enunciação, ao contrá­
rio, parece supor inevitavelmente a intervenção do sujei­
to. É a questão fundamental entre tôdas, contida na per­
gunta: “Quem fala ? ” M as ainda aqui Foucault formula
a sua resposta em têrmos não-antropológicos. N ã o se
trata, na análise arqueológica, de identificar sujeitos
reais, com uma existência histórica definida, mas de de­
terminar a série das posições possíveis do sujeito que fa ­
la. A medicina clínica não se define, por exemplo, a par­
tir da introdução do conceito de tecido por Bichat, e sim
como o relacionamento, no discurso médico, de um certo
número de elementos distintos, como a localização insti­
tucional de onde os médicos falavam , seu estatuto ju rí­
dico e social e sua posição como sujeitos que percebem,
observam, descrevem, ensinam, etc. Tais relações são
instauradas pelo próprio discurso clínico, e não pela
consciência dos médicos. O olhar clínico tem um papel
constitutivo no exame e caracterização da doença: mas
é por sua vez constituído por um conjunto de interações
que independem do sujeito que olha, fala e escuta. O dis­
curso clínico não é assim formado pela unidade do su­
jeito, e sim por sua dispersão; o médico tem que operar
no quadro de relações impostas, pré-existentes ao olhar
clínico. “N a análise proposta, as diversas modalidades de
cnunciação, em vez de remeterem à síntese ou à função
unificante de um sujeito, manifestam sua dispersão. Aos
diversos estatutos, às diversas localizações, às diversas
posições que êsse sujeito pode ocupar ou receber quando
profere um discurso. E se êsses planos são ligados por
um sistema de relações, tal sistema não é estabelecido
pela atividade sintética de uma consciência idêntica a si
mesma, muda e anterior a qualquer palavra, mas pela
especificidade de uma prática discursiva. . . O discurso,
assim concebido, não é a manifestação, solenemente des­
dobrada, de um sujeito que pensa, conhece e diz: é, pelo
contrário, um conjunto em que se determinam a disper­
são do sujeito e sua discontinuidade com êle p ró p rio .. .

113
N ã o é nem pelo recurso a um sujeito transcendental nem
a uma subjetividade psicológica que se deve definir o
regime das enunciações próprias a uma formação discur­
siva. 18
A s regras de formação dos conceitos se fundam,
igualmente, na exclusão de todo sujeito. O s conceitos são
dados sobre um fundo pré-conceitual, constituído não por
consciências mas por interações imanentes ao próprio
discurso. Os sujeitos não são livres de constituir quaiquer
conceito: só podem ser formados os conceitos autoriza­
dos pelo sistema das relações que se articulam entre as
form as de sucessão, de coexistência e de intervenção: é o
determinismo do discurso que permite ou veda a produ­
ção dos conceitos, independentemente da vontade dos in­
divíduos. “N a análise proposta, as regras de formação
se enraízam não na mentalidade ou consciência dos indi­
víduos, m as no próprio discurso; impõe-se, portanto, se­
gundo uma espécie de anonimato uniforme, a todos os
indivíduos que se propõem a fala r nesse campo discursi­
v o . . . A s regras de form ação dos conceitos não são o
resultado, depositado na história e sedimentado na es­
pessura dos hábitos coletivos, de operações efetuadas por
indivíduos; não constituem o esquema descarnado de to­
do um trabalho obscuro, no curso do qual os conceitos
teriam emergido, através das ilusões, preconceitos, erros,
tradições. O campo pré-conceitual deixa aparecer as re-
gularidades e coações discursivas que tom aram possível
a multiplicidade heterogênea dos conceitos.” 17
Enfim o campo das escolhas temáticas: aqui é quase
inelutável a introdução do sujeito. Afinal, alguém pre­
cisa constituir certos objetos, atualizar certos conceitos,
efetuar certas opções temáticas, excluir opções alternati­
vas, também possíveis dentro do sistema. N o magno in­
terstício de liberdade que se abre entre duas estratégias
possíveis, deveria em princípio haver lugar para a sobe­
rania de um sujeito. Engano: segundo Foucault, a apro­
priação do discurso por práticas não-discursivas (confis­
co do discurso econômico pela burguesia, por exemplo)
não é extrínseca ao discurso, mas resulta das leis do pró­
prio discurso. A s opções não se exercem no vazio, e sim
no campo das necessidades discursivas. Sc duas escolhas
são possíveis, essas duas possibilidades são dadas no pró­
prio discurso. “Convém notar que as estratégias não se
enraízam, aquém do discurso, na profundidade muda de
uma escolha ao mesmo tempo preliminar e fundamen­

114
tal. . . N em a análise das riquezas nem a história natu­
ral, se interrogadas ao nível de sua existência, de sua
unidade, de sua permanência e de suas transformações,
podem ser consideradas como a soma dessas opções di­
versas. Estas, pelo contrário, é que devem ser conside­
radas como form as sistemàticamente distintas de tratar
objetos do discurso. . . de dispor formas de enuncia-
ção. . . de manipular conceitos. . . Essas opções não são
germes de discurso. . . e sim formas ordenadas e descri-
tíveis como tais de atualizar as possibilidades do discur­
so. 18 Em suma, é o discurso que é livre, e o homem que
é determinado: a suposta liberdade temática do sujeito
é uma liberdade segunda e fantasmagórica, outorgada
pelo próprio discurso. A o atualizar determinadas estra­
tégias, o homem é agente do sistema — funcionário do
discurso.
E is — aparentemente — a Arqueologia. U m a ten­
tativa polêmica de ordenar e codificar a metodologia da
morte do homem. Ora, êsse julgamento seria superficial.
Entre Les M ots et les Choses e a Archéologie existe uma
verdadeira diferença de nível. N ão somente no sentido
de que no primeiro Foucault f a z um trabalho descritivo
e no segundo uma análise metodológica. M as no sentido,
mais radical, de que a Archéologie representa um esforço
de síntese entre os dois momentos de sua prática descri­
tiva — o da transitividade e o da intransitividade. Como
na fase transitiva — da história da loucura e da clínica
— Foucault trabalha de nôvo com as práticas extradis-
cursivas. A s classes, as técnicas, os complexos institucio­
nais reaparecem. M as — e aí intervém a metodologia da
intransitividade — não reaparecem da mesma forma. N a
Archéologie, as práticas sociais são “ despresentifiçadas”,
reduzidas ao pré-discursivo, e portanto, num certo sen­
tido, ainda ao discursivo. Assim, nas regras de form a­
ção de objetos, as coisas são dissolvidas, e o discurso
passa a ser referente de si mesmo; nas regras de enun-
ciação dos sujeitos, o sujeito material é abolido, e subs­
tituído pelo somatório das posições possíveis do sujeito
que fa la ; nas regras de formação dos conceitos, as pos­
sibilidades de conceptualização são imanentes ao próprio
campo discursivo, num momento dado; e nas regras para
a formação de temas, a apropriação do discurso por prá­
ticas não-discursivas resulta da legalidade do próprio dis­
curso. A conclusão dessa análise parece ser a de que

115
quem fala no discurso e aquilo sôbre o que se fala é o
próprio discurso.
A Archéólogie tem assim elementos para desconten­
tar a todos, imparcialmente. A os humanistas nostálgicos,
por sua implacável guerra contra o sujeito; aos admira­
dores do virtuosismo intransitivo de Les M ots et les
Choses, por sua preocupação com o nível extradiscursi-
vo; e aos marxistas dogmáticos, pela sem-cerimônia com
que “desmaterializa” as práticas sociais. E no entanto
não podemos evitar a sensação de que com a Archéologie
Foucault entra num terreno nôvo, em que tem, até certo
ponto, razão contra os três grupos de críticos.
A guerra contra o sujeito, em primeiro lugar. A in­
dignação com que foi recebida essa tese básica de Fou­
cault é em certos casos explicável, e em outros resulta
de um mal-entendido. É claro que os historiadores da
consciência e os cronistas do gênio individual teriam que
se rebelar contra uma historiografia em que justamente
a biografia da consciência não é pertinente. Ê uma posi­
ção inaceitável, em geral, para todos os que direta ou in­
diretamente advogam o idealismo transcendental do su­
jeito. M as é menos claro por que os partidários de uma
historiografia “científica” se escandalizariam com a ex­
clusão do sujeito, em seu nível metodológico, que é o que
nos interessa neste capítulo. N um certo sentido, com
efeito, não pode haver ciência sem uma expulsão corre-
lativa do sujeito. Tôda a marcha da Razão ocidental se
caracteriza sempre por uma série de descentramentos
sucessivos do sujeito. O primeiro, como lembra Freud,
ocorreu quando Copérnico descobriu que a terra não
ocupava o centro do universo; o segundo, quando D arw in
descobriu que o homem não ocupava um lugar privilegia­
do no mundo animal; o terceiro, quando a psicanálise
descobriu que a vida consciente do homem constituía ape­
nas uma fração de sua vida psíquica total . 19 O progres­
so da ciência, nesses exemplos, está em razão direta da
colocação entre parênteses do homem. N a s ciências exa­
tas, o critério da cientificidade de um enunciado é sua
capacidade de ser controlado em bases inter-subjetivas,
o que é uma form a de eliminar tôdàs as interferências do
sujeito: a proposição é válida quando o sujeito (o obser­
vador) pode ser neutralizado. N a lingüística e em al­
guns domínios das ciências humanas, a utilização do con­
ceito de estrutura, correlativo de uma visão na qual o
sujeito individual é regido por um sistema cuja lei não

116
está presente à consciência, tem funcionado como um ele­
mento cientificamente renovador. A filosofia contempo­
rânea que quis fundar de form a mais radical a cientifici-
dade do saber, a fim de chegar a enunciados apodíticos
— a fenomenologia — procedia por uma série de epoches,
uma das quais foi a epoche do sujeito psicológico. M as
— diria o m arxista — trata-se de uma ciência positivista,
e no caso da fenomenologia, de uma filosofia abertamen­
te idealista. Ora, é precisamente no marxismo que o su­
jeito desaparece da form a mais radical. P a ra o marxis­
mo, os sêres humanos só existem encarnados em estru­
turas, cujo sistema permanece inacessível à consciência
individual, até o seu desvendamento pela ciência da his­
tória. A história não é o palco em que gesticulam gran ­
des homens — reis, generais, benfeitores da humanidade,
mas a sucessão de etapas marcadas pela formação e dis­
solução de estruturas. Nesse nível, portanto, a polêmica
foucaultiana contra o sujeito se inscreve numa tradição
científica que já deveria estar consolidada. A tacar o su­
jeito tem assim algo não de escandaloso mas de ingênuo:
parece uma agressão inútil contra um inimigo um pouco
ridículo. O vigor da reação contra Foucault, entretanto,
mostra que essa polêmica era oportuna, e que os parti­
dários da soberania do sujeito não depuseram as armas.
Em segundo lugar: com a Archéologie, dizem outros
críticos, Foucault teria desertado a pureza da descrição
discursiva, onde justamente residia a sua riqueza e sua
originalidade. Sua abertura às práticas sociais represen­
ta um retrocesso para posições antropologistas, apesar de
tôda a veemência de suas investidas anti-antropológicas.
E ssa crítica é, na verdade, uma homenagem implícita a
Foucault. É evidente que o brilhante exercício descritivo
de Les M ots et les Choses tinha culminado num impasse.
Impossível, sem multiplicar as aporias, continuar traba­
lhando num universo em que o discurso é seccionado de
suas articulações com a vida. L es M ots et les Choses
marca um limite que não pode ser transposto. Continuar
no nível discursivo puro, depois dêsse esforço extremo de
abstração, seria condenar-se a não poder pensar em sua
verdade o próprio discurso. P a ra poder pensar o discur­
so, é necessário, num certo sentido, sair dêle. Donde o es­
forço de clarificação metodológica da Archéologie.
Terceiro: a Archéologie, segundo outros, procuraria
m ascarar a importância das práticas extradiscursivas na
formação e transformação do discurso. A críLica não é

117
válida, mas é compreensível. A s invectivas contra o su­
jeito são tão violentas e freqüentes que o leitor menos
atento pode pensar que o foco principal do livro é a des­
truição do sujeito, e como a problemática do homicídio
é o grande tema de Les M ots et les Choses somos leva­
dos, insensivelmente, a pensar a Archéologie em sua con­
tinuidade com Les M ots et les Choses, esquecendo a no­
vidade radical do primeiro em relação ao segundo. Essa
novidade consiste na tentativa sistemática de descrever
as práticas discursivas em sua articulação com as não-
-discursivas. Se depurarmos a Arqueologia de sua apolo-
gética anti-antropológica, veremos que atrás dêsse asce­
tismo do discurso existe uma constante preocupação com
a “embreagem” do discursivo no não-discursivo.
Veja-se, por exemplo, o que Foucault diz sôbre o
“acontecimento” na dinâmica do discurso. A Arqueolo­
gia, segundo êle, analisa a form a e o grau de permeabi­
lidade do discurso, define o princípio de sua articulação
sôbre uma cadeia de acontecimentos sucessivos, e identi­
fica os operadores pelos quais os acontecimentos se ins­
crevem nos enunciados. Assim, as crises monetárias nos
séculos X V I I e X V III influenciaram conceitos e objetos
do discurso econômico, e a epidemia de cólera em 1832
permitiu, no discurso médico, o desaparecimento de ve­
lhos objetos e conceitos, e o aparecimento de novos. A
Arqueologia admite explicitamente a possibilidade de no­
vos enunciados em correlação com acontecimentos exte­
riores. Além disso, para explicar o desaparecimento e o
advento de formações discursivas tem que especificar um
sistema de transformações em vários níveis, que incluem
não somente as transformações entre relações propria­
mente discursivas, como transformações de fatores nor­
malmente classificados como externos ao discurso, tais
como o nível de desemprego, as decisões políticas sôbre
as corporações e a Universidade e as novas possibili­
dades de assistência no fim do século X V III, fatores li­
gados ao aparecimento da medicina clínica.
Ou consideremos o que diz Foucault sôbre as rela­
ções entre o discurso e a vida: “ A trás do discurso aca­
bado, o que descobre a análise das formações não é, fer-
vilhaiite, a própria vida, a vida ainda não capturada; é
uma espessura imensa de sistematicidade, um conjunto
cerrado de relações m últiplas. . . ” 20 Bem analisado, não
há nada de chocante num texto dêsse tipo. Afinal, sabe­
mos todos que atrás do discurso da economia política não

118
existe apenas a consciência de Smith ou Ricardo, ou as
aspirações da classe industrial nascente, mas uma rêde
de sistematicidades de caráter institucional, cultural, lin­
güístico, em que essas aspirações se refratam, e que exi­
gem que certos objetos, conceitos, estratégias temáticas,
sejam atualizadas, de preferência a outras. Reform ula­
do nesses têrmos, o texto é não sòmente aceitável como
enriquecedor.
O mesmo se pode dizer de tôdas as categorias da
Arqueologia. A s regras para a formação de objetos, por
exemplo, pressupõem a ação de superfícies de emergên­
cia, como a família e a comunidade religiosa, ou de ins­
tâncias de delimitação, que são as instituições que defi­
nem o objeto e o separam de objetos afins. A s regraa
que definem a posição do sujeito emanam diretamente
de contextos institucionais que autorizam determinado
tido de discurso. A s regras para a formação de temas,
enfim, resultam, em grande parte, da função das práticas
não-discursivas, que se apropriam de determinados dis­
cursos: por exemplo a prática do capitalismo nascente
articulando-se no discurso econômico e a prática peda­
gógica articulando-se na gramática geral.
Em todos os casos, atrás dos infatigáveis ataques
contra o sujeito e o antropologismo, o mesmo escrúpulo
em encadear o discursivo no não-discursivo. A través de
análises, ao fim e ao cabo, fundamentalmente materialis­
tas. Pois é da essência do marxismo afirm ar que a liber­
dade dos grupos sociais concretos de form ar suas visões
do mundo não se exerce no vazio, e tem que mergulhar
em tôda a rêde de determinações sócio-culturais que o
sujeito encontra diante de si quando tenta agir e pensar.
Ou afirm ar ( “o homem só se propõe as tarefas que pode
realizar” ) que as relações sociais constituem um solo,
um a priori histórico, no qual podem ou não a flo rar de­
terminadas ciências ou teorias, com seus objetos, concei­
tos, modalidades enunciativas e escolhas temáticas. A p e­
nas um exemplo: segundo M arx, como se sabe, Aristóte­
les não pôde analisar até as últimas conseqüências o con­
ceito de valor porque tal análise era socialmente impos­
sível na cultura grega. A essência do conceito de valor
é o trabalho humano: uma casa pode ser trocada por um
navio na medida em que existe a mesma massa de tra ­
balho incorporada em ambos, ou seja, na medida em
que têm o mesmo valor. Essa idéia não era pensável na
sociedade grega, baseada na escravidão e portanto na

119
desigualdade dos vários tipos de trabalho humano: im­
possível imaginar como unidade de valor um trabalho
humano homogêneo, e que só poderia ser concebido com
o advento do trabalho assalariado. N a linguagem de
Foucault, o solo epistêmico da sociedade grega vedava,
e o da sociedade capitalista autorizava, a formação do
conceito de valor. 21

Nesse caso, cabe a pergunta: em que consiste a con­


tribuição de Foucault à problemática da “embreagem”,
se todos êsses conceitos são susceptíveis de uma leitura
marxista?
A resposta é que Foucault tenta pensar o problema
em têrmos distintos do marxismo mecanicista que vê no
discurso a emanação pura e simples da infra-estrutura
econômica. Foucault se insurge com razão contra o dog­
ma que se obstina em ver nas formações discursivas o
reflexo das formações sociais em que emergiram. Sem
dúvida, foram as condições econômicas, como o desem-
prêgo, que levaram a um certo tipo de hospitalização, e
portanto de observação médica e de prática hospitalar,
que permitiram a emergência do conceito de tecido; mas
êsse conceito não “exprime” as condições econômicas da
França no século X V III. O vínculo entre as formações
discursivas e as não-discursivas não é portanto de tipo
“expressionista” . M as êsse vínculo existe, e deve ser pro­
curado na superfície do “ saber” . O saber é o domínio
dos objetos que adquirirão ou não estatuto científico, o
espaço no qual os sujeitos assumem determinadas posi­
ções para fa la r dêsses objetos, o campo enunciativo em
que os conceitos aparecem e desaparecem, e o conjunto
das possibilidades de apropriação temática que permitem
a atualização de determinadas estratégias. É, em suma,
um conjunto de regras definindo os objetos possíveis, a
posição dos sujeitos em relação aos objetos, os conceitos
e os temas que podem se constituir. E essas regras ema­
nam diretamente do não-discursivo, ou do pré-discursivo.
Assim, o não-discursivo engendra o campo do saber, no
qual a formação discursiva recortará os seus objetos e
constituirá seus conceitos e temas. O que é determinado
pelas práticas sociais, assim, não é o conteúdo do discur­
so, mas as regularidades discursivas que permitem a
emergência de determinados objetos e conceitos. Através
da mediação do “saber” entre as formações sociais e as
formações discursivas. Foucault tenta evitar o sociolo-

120
gismo, que vê no conteúdo do discurso a presença das
condições que o produziram.
Foucault não leva mais além a sua teorização sôbre
a problemática da “embreagem”. M as essas indicações
fragm entárias são extraordinàriamente sugestivas, e per-
mitem-nos antecipar, com interêsse, tanto um trabalho
teórico destinado a pensar sistemàticamente a articula­
ção do discursivo e do não-discursivo, quanto novos tra ­
balhos descritivos, como o livro, já anunciado, sôbre a
criminologia, em que as categorias da Archéologie se­
jam postas em prática. 22
Resumindo: o homicídio metodológico é uma espécie
de denominador comum a tôdas as obras de Foucault.
M as funciona de uma form a distinta em cada caso, e com
objetivos diferentes. N a fase transitiva, sua função é
permitir uma história não-teleológica, e sem referência a
consciências individuais; na fase intransitiva, destina-se
a pôr de lado, provisoriamente (poderíamos fala r em
epoche arqueológica) todos os elementos que possam in­
terferir com uma descrição discursiva pura; e na A rqueo­
logia, funciona como instrumento polêmico contra a his­
toriografia do sujeito, e contra um marxismo mecanicis-
ta que vê nas formações discursivas um simples reflexo
dag condições econômicas.

3. 0 Homicídio Ontológico
Mas a morte do homem como exigência metodoló­
gica é apenas um dos componentes da gramática do ho­
micídio. O outro componente é antológico: a morte do
homem já está inscrita no horizonte do saber atual.
Como? Examinemos com mais vagar a resposta de Fou­
cault.
N o quadro “L as Meninas” , de Velasquez, estão re­
presentados vários personagens: a pequena infanta M ar­
garida; ao seu lado, duenas solícitas; um anão de côrte;
um espectador misterioso, que aparece no fundo do qua­
dro, atrás de uma porta; e o próprio pintor, empunhando
a palheta. Todos os olhares convergem para um ponto
fixo, que não aparece no quadro. Que ponto é êste? A
resposta está indicada no quadro. N o meio da sala, há
um espelho, e refletidas no espelho, duas silhuetas. São
os modelos do pintor: o rei e a rainha. O quadro existe
em função de um foco: mas êste foco é exterior ao q u a ­
dro. O rei de Velasquez é espetáculo mais que expecta-
dor; soberano, mas invisível; presente, mas apenas como

121
reflexo num espelho, isto é, como representação entre
outras representações.
N a episteme clássica, o homem era tão ausente como
o rei de Velasquez. Num espaço em que as coisas se ofe­
recem inteiramente através das representações, e estas
exprimem exaustivamente as coisas, o homem é supérfluo.
Se a verdade do ser é dada, sem resíduo, por uma série
de representações ordenadas num quadro, não há lugar
para uma entidade encarregada de conjurar, do fundo
secreto do ser, a intimidade das coisas.
A o fraturar o espaço do quadro, a episteme moderna
libera as coisas das representações. A verdade do mun­
do econômico e do mundo lingüístico não é mais dada
através das representações, e aloja-se numa esfera mais
profunda, irredutível às representações. A representação
não esgota mais a totalidade do real: êste é muito mais
rico que qualquer representação, e a representação pas­
sa a ser um simples epifenômeno de um domínio que se
dá à consciência apenas sob a forma — imprecisa e sem­
pre parcial — de um reflexo. Nesse momento, o rei sai
da sombra, e passa a ocupar o centro da composição. A
nova configuração exige um olhar carnal, capaz de de­
vassar o mundo secreto das coisas.
O homem surge na brecha ontológica form ada quan­
do as coisas se retiram para sua própria inferioridade,
segundo as leis da vida, do trabalho e da linguagem. M as
essa nova figu ra exerce uma soberania ambígua. Ê in­
dispensável como instrumento pelo qual as coisas se dão
ao olhar, uma vez rompida a cumplicidade com a repre­
sentação. M as ao mesmo tempo, o homem é escravo das
coisas, muito mais arcaicas que sua consciência, e que o
esmagam com o pêso de sua irredutível anterioridade.
É através do homem que a vida, o trabalho e a lingua­
gem acedem ao saber; mas sua existência concreta é con­
dicionada por essas entidades, já que é somente através
das palavras que profere, dos objetos que fabrica e do
seu organismo que pode ter acesso à sua essência e pen-
sar-se como objeto de conhecimento. Assim, desde seu
nascimento o homem está marcado pelo estigma da fini-
tude. Essa finitude se desvenda por um duplo movimen­
to, que vai das coisas ao homem e do homem às coisas.
Pelo primeiro movimento, o saber da vida, do trabalho e
da linguagem remetem inexoravelmente a uma finitude
fundadora. A ciência da vida mostra que o homem está
exposto à erosão da vida, através do envelhecimento e

122
da morte; a ciência do trabalho mostra que o homem
está sujeito às leis de ferro da produção e da carência
original; a ciência da linguagem mostra que o homem
está mergulhado no determinismo de um sistema lingüís­
tico incomensuràvelmente anterior à sua consciência. Mas
a experiência da finitude pode ser vivida a p artir do pró­
prio homem. Brotando dessa vivência primitiva, o saber
poderia ser constituído, num movimento inverso ao pri­
meiro. Assim, o homem toma consciência do seu corpo-
-fragmento de espaço que se articula com o espaço das
coisas e com o tecido dos sêres vivos; apreende-se como
sede de desejos, os mesmos desejos que fundam o valor
de uso dos objetos da economia; e sabe-se dotado de lin­
guagem, a partir da qual é possível fundar o discurso
humano. A través de uma experiência original, o homem
sente-se finito no tríplice eixo de sua mortalidade bio­
lógica, de sua alienação no sistema produtivo e na sua
inserção num universo lingüístico pré-existente. N a raiz
das três positividades empíricas — a biologia, a economia
política e a filologia — encontra-se a finitude do homem.
Existe assim uma identidade de estrutura entre um saber
empírico, que remete ao homem como ser finito, e as di­
versas manifestações da finitude humana, que se abrem
para as positividades empíricas. A morte genérica, que
rói as entranhas de todo ser vivo, é a minha própria
morte; o desejo, que liga e separa os homens no interior
do processo econômico, é o mesmo a partir do qual as
coisas são desejáveis para mim; o tempo da linguagem
humana é o mesmo tempo no qual se desenrola o meu
próprio discurso. A positividade do saber tem como seu
negativo a finitude do homem, que funda essa positivi­
dade; e a positividade do homem tem como seu negativo
o caráter finito do saber empírico, através do qual o ho­
mem se descobre e se instaura.
O homem é por conseguinte ao mesmo tempo empí­
rico e transcendental; objeto de conhecimento e funda­
mento de todo saber. Como ser empírico, o homem é
dado através da análise da vida, do trabalho, da lín gu a;
como ser transcendental, é a fonte fundadora da biologia,
da economia, da filologia. O fracasso das várias tenta­
tivas feitas, no interior da episteme moderna, para fun ­
d ar o saber do homem a partir do homem está ligado à
ambivalência dessa situação. O positivismo, o marxismo
e a fenomenologia constituem três soluções dadas à ques­
tão do fundamento do saber. P ara o positivismo, o saber

123
se funda na verdade do próprio objeto; para o marxismo,
a objetividade está fundada numa verdade em formação,
que se configurará, escatològicamente, num tempo futu­
ro ; para a fenomenologia, a dicotomia reflexão empírica-
-reflexão transcendental se dissolve na análise do vivido,
definido como o espaço em que todos os conteúdos empí­
ricos são dados à experiência e como a form a originária
que torna possíveis êsses conteúdos. N a realidade, essas
três tentativas são arqueològicamente equivalentes. C or­
respondem tôdas ao mesmo projeto impossível: o de fun­
dar o saber empírico através dos próprios conteúdos em­
píricos; basear a reflexão transcendental — fundadora
— na análise descritiva dos conteúdo3 que se trata de
fundar. Ora, a episteme moderna não pode proceder de
outro modo, pois seu quadro de referência é o homem,
e êste é precisamente o ponto de cruzamento do empírico
e do transcendental. O projeto fundador poderia ser bem
sucedido unicamente em outra configuração epistemoló-
gica: na perspectiva da morte do homem.
Se a positividade do homem se define sôbre um fun­
do de finitude, e se as coisas só se dão parcialmente à
sua consciência, já que a uma essência humana finita só
pode corresponder um saber também finito, segue-se que
existe sempre um resíduo de realidade que não acede à
consciência. A faix a de realidade que pode ser pensada
tem sempre como correlativo uma faixa impensada. O
Cogito cartesiano se baseava numa identidade de natu­
reza entre o ser e a representação: o “penso” podia tran­
sitar com facilidade para o “ existo” , porque o primeiro
têrmo (a representação) e o segundo (o ser) eram ho­
mogêneos e coextensos. O ser se dava inteiramente no
espaço da representação. N a episteme moderna, domi­
nada pelo pêso das coisas sôbre o homem, a esfera do
Cogito está longe de ser coextensa com a esfera da rea­
lidade. Como posso ser esta vida que ine transborda?
Como posso ser êste trabalho, cujas leis se impõem a
mim com tôda a inércia de uma necessidade natural?
Como posso ser esta linguagem, cujo sistema me escapa
e cujas regras não sou livre de transformar? A reflexão
sôbre o homem tem como tela de fundo uma dialética do
pensado e do impensado, o que penso é apenas uma fr a ­
ção do que não penso ainda, ou do que não posso pensar
nunca. O saber meridiano está sempre rodeado de uma
zona de sombra. O homem é uma coexistência estrutu­
ral do pensado e do impensado. O impensado no homem

124
se dá sob a form a de Outro. Êsse Outro nasceu ao mesmo
tempo que o homem: seu duplo, sua penumbra, sua ver­
dade recôndita ou sua maldição. N a fenomenologia he-
geliana, foi o A n sich em face do Fur sich; para Scho-
penhauer, foi o Unbewusste; o homem alienado, para
M arx; o implícito e não-atualizado, para Husserl. A exis­
tência do impensado impõe ao homem uma tarefa: a de
absorver, na medida do possível, essa zona de sombra.
Todo pensamento moderno é atravessado por um impera­
tivo -— o de pensar o impensado. Ê o fundamento da
ética moderna. A normatividade do Cogito que quer apre­
ender o impensado substituiu as antigas normatividades
religiosas. É a palavra que quer fazer falar o silêncio, o
movimento que quer ativar a inércia. A ética moderna
busca refletir na forma do Para-Si os conteúdos do Em -
-Si: á luta pela desalienação do homem deve ser enten­
dida sôbre o fundo da tensão entre Cogito e o impen­
sado. “O conhecimento do homem, à diferença das ciên­
cias da natureza, está sempre ligado, em sua form a su­
perficial, a éticas e políticas; mais fundamentalmente, o
pensamento moderno avança na direção em que o Outro
do homem deve converter-se no Mesmo que êle.” 23
Se ó homem é um ser constituído integralmente
pela historicidade das coisas, sua reflexão sôbre sua
própria origem e sôbre sua própria historicidade tem
que se fundar na historicidade da vida, do trabalho
e da linguagem. O homem se desvenda no coração
de uma historicidade já constituída. Como ser vivo, está
ligado a uma vida que começou muito antes dêle; como
ser que trabalha, está prêso a um sistema de relações de
produção muito mais antigo que o seu próprio nascimen­
to; como sujeito de um discurso, está inserido num sis­
tema lingüístico anterior à sua existência. Sua medita­
ção sôbre a origem se processa sempre sôbre o pano de
fundo de uma realidade já em curso. Cada objeto que
manipula, cada necessidade que manifesta, cada palavra
que profere o confrontam com um tempo infinitamente
arcaico, através de uma cadeia de mediações cujo pri­
meiro elo se perde no fundo de uma inacessível cronolo­
gia. N o momento em que o homem se pensa em suas
relações com as coisas, articula-se com tôdas essas histo-
ricidades externas, e percebe que sua própria origem não
pode ser conhecida. Sua vida, seu trabalho, súa lingua­
gem, se cristalizam no já vivido, já produzido, e já dito.
M as essa impossibilidade de aceder à sua própria origem

125
não é apenas uma limitação. Ê também um privilégio:
ser sem origem, é através dêle que as coisas encontram
sua origem. O homem é a abertura a partir da qual o
tempo pode se constituir: a condição para que as coisas
façam sua entrada no domínio do saber, com sua histori­
cidade própria, e no momento devido. O homem é o ser
sem origem a partir do qual a reflexão sôbre a origem
se torna possível — fruto do tempo, e condição de tôda
temporalidade. D aí a tentativa positivista de inserir a
cronologia do homem no interior da cronologia das coi­
sas, transformando esta última num capítulo da duração
mais geral dos sêres; e à tentativa oposta, mas arqueo-
lògicamente equivalente, de subordinar o tempo das coi­
sas ao tempo humano: o desvendamento da verdade das
coisas no momento em que acedem ao saber através do
conhecimento. U m a e outra repousam, como fundamento
de sua possibilidade, no atributo soberano do homem de
refletir sôbre o tempo, de constituí-lo, e de ordená-lo. Daí
também a eterna tentação da filosofia Ocidental de pro­
curar a verdade do homem no reencontro com a origem.
De Hegel a M arx e Spengler o pensamento moderno pri­
vilegiou o tema de uma consciência que por sua própria
dialética interna chega à sua consumação, e no extremo
da curva, inflete sôbre si mesma, e recaptura a origem,
em todo o seu frescor matinal, mas com todo o pêso das
sedimentações históricas. A origem aparece assim como
o já vivido, mas também como o não-vivido do homem;
m ergulha no passado, mas aparece também como uma
promessa, como um objetivo e como uma tarefa. A ori­
gem é o que precisa ser pensado pelo homem, para que
a sua verdade se atualize: e a atualização, sempre adia­
da, dessa verdade, é o reencontro impossível com a ori­
gem. Simples ruga na duração das coisas, mas fonte de
tôda historicidade, o homem está condenado à repetição
do já vivido, na perspectiva de uma história ainda por
vir.
Tôda a reflexão sôbre o homem se funda nesse "qua­
drilátero antropológico”, cujos elementos são uma analí­
tica da finitude, um projeto de constituição transcenden­
tal d'o saber através dos conteúdos empíricos, uma dialé­
tica do Cogito e do impensado e uma meditação sôbre a
origem. É sôbre essa base e dentro dêsses limites que
se instaura a antropologia contemporânea.
A reflexão antropológica, característica da episteme
moderna, não corresponde a nenhuma preocupação radi­

126
cai com a constituição de um reino humano — é o simples
subproduto de uma configuração epistemológica que des­
cola as coisas das representações, e que exige o advento
de uma nova figura, capaz de pensar as coisas fora do
espaço da representação. E ssa filosofia esbarra numa
dificuldade insolúvel, que é a de fundar o transcendental
no empírico, e de legitimar o saber empírico através dos
próprios conteúdos empíricos. Êsse paradoxo representa
o fim da filosofia — ou o seu sono. N ã o se trata mais,
como no tempo de Kant, de despertar a ciência do seu
sono dogmático, mas de livrar a filosofia do seu sono
antropológico. Somente assim o pensamento poderá li­
bertar-se dos seus paralogismos, e reconquistar o direito
à reflexão livre. É preciso destruir até os seus fundamen­
tos a idéia do homem, e o quadrilátero antropológico
composto da finitude, do empírico-transcendental, do im­
pensado e da origem. H oje em dia o pensamento só é
possível no vazio do homem assassinado. “A todos os
que querem fa la r ainda do homem, do seu reino ou de sua
libertação, a todos os que se interrogam sôbre a essên­
cia do homem, a todos os que querem partir dêle para
aceder à verdade. . . a única resposta possível é um riso
filosófico — isto é, parcialmente silencioso.” 24
A s ciências humanas surgiram simultâneamente com
o homem: quando deixando o espaço da representação,
os sêres vivos se alojaram na vida, as riquezas no tra­
balho e as palavras na historicidade lingüística. Se o ho­
mem se define por suas relações com a vida, o trabalho
e a linguagem, é claro que as ciências do homem têm que
girar em tôrno da biologia, da economia política e da f i­
lologia. Nenhuma delas, entretanto, pode ser considera­
da como ciência humana. E isto porque o objeto das
ciências humanas não é o homem, tal como é dado nas
positividades empíricas, mas a representação que o ho­
mem se forma do mundo que habita. P ara as ciências
humanas, o homem não é o ser vivo com certas caracte­
rísticas anátomo-fisiológicas, mas o ser que do fundo da
vida constitui representações graças às quais pode ex­
primir sua vida; não é o ser que trabalha e fabrica obje­
tos, mas o ente que form a representações sôbre a vida
em sociedade, sôbre os outros protagonistas do sistema
econômico, sôbre as relações de produção, vividas em sua
verdade ou de form a mistificada; não é o ser que fala,
mas o que do interior da linguagem, é capaz de repre­
sentar o sentido das palavras que enuncia e o próprio

127
sistema lingüístico. A s ciências humanas não são por­
tanto a análise do que é o homem em sua natureza, mas
do homem enquanto fonte das representações. M as se
nem a biologia, nem a economia política nem a filologia
são ciências humanas, constituem em compensação a b a ­
se que autoriza a formação das ciências humanas. Em
têrmos muito genéricos, poderíamos dizer que a psicolo­
gia é a ciência humana que se articula com a biologia; a
sociologia, a que se articula com a economia política, e a
análise das literaturas e dos mitos, a que se articula com
à filologia.
A s ciências humanas são organizadas de acôrdo com
certas categorias analíticas. N a superfície da biologia,
surgiram as categorias da função (capacidade de receber
estímulos externos e de responder a êsses estímulos) e
de norma (que permite ao homem exercer suas fu n ç õ e s);
na superfície da economia, as categorias de conflito (r e ­
sultante do desejo, da necessidade e do interêsse) e da
regra (m aneira de ordenar o conflito de form a social­
mente a c e itá v e l); e na superfície da linguagem, a cate­
goria da significação (qualquer conduta humana está
sempre ligada a um sentido, isto é, sempre procura ex­
prim ir alguma coisa) e de sistema (conjunto coerente de
significações). Cada um dêsses pares funciona de form a
privilegiada no domínio a que estão ligados, isto é, na
psicologia, na sociologia, na análise dos fenômenos cul­
turais, mas podem ser extrapolados para qualquer dos
domínios adjacentes. A s três dicotomias: função/norma,
conflito/regra e significação/sistema — atravessam to­
do o campo das ciências humanas. N o início do século
X IX , a ênfase era posta no primeiro têrmo de cada par:
função, conflito e significação. M ais tarde, houve um
deslocamento no interior de cada par, e o acento foi pôs-
to no segundo têrmo: norma, regra, sistema. Com êsse
deslocamento, a dimensão do inconsciente foi integrada
nas ciências humanas. Tanto a norma, como a regra e o
sistema são dados à representação, mas não necessaria­
mente à consciência. A consciência ingênua pode perfei­
tamente exercer funções vitais sem se dar conta da exis­
tência da norm a; entrar em conflitos sociais sem perce­
ber explicitamente a regra que permite resolvê-los; ge­
ra r significações sem perceber o sistema que as rege.
Com a vitória do ponto de vista da norma, da regra e do
sistema sôbre o ponto de vista da função, do conflito e
da significação, a episteme moderna se aproxima de uma

128
nova configuração, que se desenha de form a ainda inde­
cisa no horizonte do saber. M ais uma vez: o próprio das
ciências humanas não é o homem. N ão foi o homem que
as criou, mas a episteme moderna, que as institui, e lhes
dá a possibilidade de tomar o homem como objeto. A
ciência humana existe não onde existe o homem, mas
onde se analisam, na dimensão própria do inconsciente,
as normas, regras e conjuntos significativos que regem
o mundo da vida, do trabalho e da linguagem.
A s ciências humanas não são meros fenômenos de
opinião; não podem ser reduzidas a simples manifesta­
ções de superfície ou a formações ideológicas. M as tam­
bém não seria possível considerá-las, na exata expressão
do têrmo, como ciências. Existem apenas como configu­
rações secundárias, alojadas nos interstícios da econo­
mia, da filologia e da biologia: essa vida parasitária as
impede de aceder ao estatuto científico. N ã o são, por­
tanto, falsas ciências, como querem os partidários da re­
dução ideológica — simplesmente não são ciências. O
mesmo espaço epistemológico que as constitui impediu
as disciplinas do homem de aspirar à cientificidade. A l­
go mais que a opinião, algo menos que a ciência, a refle­
xão sôbre o homem faz parte do domínio positivo do sa­
ber, mas não constitui um corpo de enunciados cientí­
ficos.
A História é uma disciplina de excepcional impor­
tância para as ciências humanas, porque foi através da
historicidade das coisas que o homem se constituiu em
sua finitude. Se o homem histórico é o homem que vive,
trabalha e fala, todo enunciado da História está ligado
quer à psicologia, quer à sociologia, quer às ciências da
linguagem. Nesse sentido, a análise arqueológica revela
a dispersão e não a unidade da História, cuja especifici­
dade é assim discutível. M as ao mesmo tempo, os con­
teúdos da psicologia, da sociologia e das ciências da lin­
guagem são atravessados de ponta a ponta pela histori­
cidade. A História constitui para as ciências do homem
uma moldura ao mesmo tempo acolhedora e arriscada.
P ara cada uma dessas ciências, a História proporciona
um conjunto de coordenadas temporais, que lhes ofere­
cem um solo e por assim dizer uma pátria; mas ao mes­
mo tempo destrói sua pretensão de funcionar no elemen­
to da universalidade, porque sua existência é vista como
historicamente condicionada, e surgida num certo mo­
mento do tempo.

129
Contrapondo-se às ciências humanas, e impregnan­
do-as por inteiro, a psicanálise e a etnologia operam di­
retamente no campo do inconsciente. A s ciências huma­
nas também avançam para o inconsciente — a descober­
ta da norma, da regra e dos sistemas, que não são dados
à consciência ingênua, mas apenas ao pensamento refle­
xivo — mas de form a indireta, e num movimento regres­
sivo. A psicanálise ataca diretamente o inconsciente, e
ao contrário das ciências humanas, que permanecem
sempre no campo do representável, procura atravessar a
representação, e fazer brotar, não as normas, as regras
e os sistemas, mas as condições de possibilidade das nor­
mas, das regras e dos sistemas. Nessa região, se dese­
nham as três figuras básicas do freudismo: a MorLe, con­
dição de possibilidade da vida, com suas funções e suas
normas; o Desejo, condição de possibilidade do trabalho,
com seus conflitos e suas regras; e a Lei, condição de
possibilidade da linguagem, com suas significações e seus
sistemas. Essas figuras são as próprias form as da fini­
tude humana, fundamento de todo saber sôbre o homem.
Ê porque a psicanálise funciona na região, situada nos
confins da representação, em que todo saber encontra seu
fundamento, que não pode ser considerada uma ciência
humana: é antes uma contra-ciência, porque ao mesmo
tempo funda e demistifica as demais, A etnologia é tam­
bém uma contra-ciência. Surge na dimensão da história,
como um subproduto da ratio Ocidental, que permitiu às
sociedades européias entrar em contato com as outras
culturas. Como o psicanalista, o etnólogo não interroga
o homem, mas a área que torna possível um saber para
o homem. Assim como o psicanalista usa a relação de
transferência para aceder ao Desejo, à Morte e à Lei, o
etnólogo se instala na relação especial que a cultura eu­
ropéia estabelece com as outras culturas para descobrir,
atrás das representações conscientes dos homens, as nor­
mas, as regras e os sistemas que regem, de form a ina­
cessível à consciência pré-reflexiva, as funções, conflitos
e significações que proliferem, em tôda a sua diversidade,
no mundo empírico. A o desvendar como numa cultura
primitiva se processam a normalização das funções bioló­
gicas, a regulamentação dos conflitos e a sistematização
das significações, o etnólogo está reconstituindo o movi­
mento que permitiu à episteme moderna criar o saber do
homem a partir de sua finitude. “O que transparece no
discurso do etnólogo e do psicanalista é o a priori histó­

130
rico de tôdas as ciências do homem — as grandes cesu-
ras, 03 sulcos, as partilhas que, na episteme Ocidental,
desenharam o perfil do homem e o dispuseram para o
saber possível.” 25 Revelando em tôda a sua clareza os
mecanismos de formação do saber do homem, a psicaná­
lise e a etnologia preparam ao mesmo tempo a sua con­
testação mais radical: uma e outra prescindem do ho­
mem, e mesmo o cancelam, porque o objeto dessas disci­
plinas não é o homem, e sim os seus limites exteriores.
N o horizonte do pensamento contemporâneo, surge
uma figu ra nova, mas tão antiga quanto o mundo: a lin­
guagem. N a Renascença a linguagem fazia parte da pro­
sa do mundo, e precisava ser decifrada como condição
para a compreensão das coisas criadas. N o classicismo,
o discurso era o elemento neutro que tinha o poder de
significar representação segunda, que exprimia tôdas as
outras representações. N a episteme moderna, a lingua­
gem transformou-se em objeto para o saber: de instru­
mento todo-poderoso que servia de mediação entre a re­
presentação e as coisas, a linguagem converteu-se em
simples segmento da realidade, dotado de espessura e his­
toricidade própria, mas sem nenhum privilégio de disci­
plina retora do conhecimento, como no século X V III. O
que se verifica hoje em dia é o reaparecimento da lin­
guagem. Sob. a form a da lingüística, em primeiro lugar.
A lingüística está assumindo uma importância cada vez
m aior nas ciências humanas, e tem mesmo a pretensão
de unificá-las. N ã o se trata, como no século X IX , do im­
perialismo de uma ciência particular que quer traduzir
para o seu vocabulário conhecimentos já adquiridos em
outros ramos do saber, como a tentativa de interpretar as
ciências humanas em têrmos de conceitos biológicos ou
econômicos. A lingüística vai além, e pretende estrutu­
ra r os próprios conteúdos; não se limita a dar uma lei­
tura lingüística dos fatos humanos, mas busca constituir
êsses fatos, pois na perspectiva de um deciframento lin­
güístico as coisas só acedem à existência na medida em
que podem form ar os elementos de um sistema signifi-
cante. Graças à lingüística, o projeto de formalização
e matematização das ciências humanas pode ser pensado
de form a mais coerente. N ã o se trata mais de quantifi­
car resultados, ou de inserir os comportamentos humanos
em probabilidades mensuráveis: trata-se de desprender
as estruturas próprias a cada domínio empírico, e dar
tratamento matemático a essas estruturas, o que repre­

131
sentaria o princípio da unificação das ciências do homem,
numa linguagem form al que exclui o sujeito empírico.
M as a importância da linguagem cresce no outro extremo
da nossa cultura: a literatura. O objeto da literatura
moderna, de A rtaud a Roussel e aos surrealistas, é a
própria linguagem: a exploração até o ponto máximo
de tensão das possibilidades intrínsecas da linguagem,
como se esta constituísse um mundo próprio, sem refe­
rentes externos. Com a ressurreição da linguagem, sen­
timos que existe algo de nôvo em processo de gestação.
Tôda a episteme moderna surgiu com o desaparecimento
do Discurso, que separou as coisas das representações, e
exigiu o aparecimento do homem como elemento media­
dor. Se agora a linguagem ressurge, não seria o sintoma
de uma nova configuração epistemológica, em que o ho­
mem se torne desnecessário? N ão é preciso, então, acei­
tar que com a presença do Discurso o homem vai regre­
dir à inexistência a que o condenava a episteme clássica?
O homem compôs seu rosto com os fragmentos de uma
linguagem estilhaçada. A g o ra que essa linguagem se re­
compõe, não podemos supor que êsse rosto tenderá a de­
saparecer ?
Com o homicídio ontológico, Foucault conclui sua
gramática. O homicídio não é apenas uma técnica de pen­
sar; é parte de uma configuração objetiva. A morte do
homem é o ponto terminal de uma Odisséia do Discurso.
Tudo se passa como se, num momento dado, o Discurso
tivesse secretado o homem, para seus próprios fins, e de­
pois tivesse decidido suprimi-lo. A obsessão positivista
de eliminar qualquer teleologia parece levar, afinal, a
sua teleologia do Discurso. L es Mots et les Choses é o
Bildungsroman de um herói trágico, composto para ilus­
trar a pedagogia do homicídio: terminada a jornada, o
protagonista encontra ao mesmo tempo a sabedoria e a
morte. Ou ainda (p ara mudar de m etáfora) uma Feno­
menologia do Espírito com desfecho pessimista — no
fim do processo, não há a auto-reconciliação do Espírito,
mas a dissolução física do sujeito. Qual a verossimilhança
dessa viagem?
Poderíamos, para esboçar uma resposta, prosseguir
na analogia com Hegel. Como Hegel, diríamos, Foucault
não falsifica a realidade, mas a mistifica. Sua descrição
do nascimento e morte do homem não é falsa. Num certo
sentido é até verdadeira, como um negativo fotográfico
é verdadeiro. Trata-se de recuperar a imagem, que o ne­

132
gativo ao mesmo tempo dissimula e desvenda. Foucault
descreveu realidades reflexas e derivadas. Caberia en­
tão ao crítico (mantendo ainda o paralelo com H egel)
identificar as realidades primárias. E xtrair da Arqueo­
logia o seu “núcleo racional” : não refutar a análise, mas
invertê-la. Deixando de lado, entretanto, essas analogias
suspeitas, poderíamos dizer a mesma coisa de outra for­
m a: é preciso aplicar ao mesmo texto um código dife­
rente. U s a r uma chave extradiscursiva para decifrar o
texto que Foucault leu em têrmos discursivos.
E ssa nova leitura precisa abranger os dois momen­
tos da descrição de Foucault: o momento do aparecimen­
to do homem e do quadrilátero antropológico, e o mo­
mento da dissolução do homem e do quadrilátero antro­
pológico.
A análise do primeiro momento 28 poderia começar
com o principal acontecimento extradiscursivo ocor­
rido no início do século X IX , que foi o advento
do capitalismo industrial. A nova form a de produ­
ção desarticulou tôdas as antigas relações sociais, e
produziu nos homens, colhidos por uma engrenagem que
parecia ter sua própria dinâmica, uma sensação de im­
potência e incompreensão. Fonte real dos bens que cir­
culam na economia, das instituições que regem a vida
social, dos sistemas teóricos destinados a pensar a rea­
lidade, o homem sente-se, paradoxalmente, prisioneiro
dêsses bens, instituições e sistemas. Seu trabalho pesa sô­
bre sua vida, sob a form a incompreensível do capital; as
instituições têm um pêso próprio, e parecem ter existido
desde sempre, com sua misteriosa capacidade coercitiva e
repressora; as criações culturais o confrontam com uma
linguagem reificada, cujo princípio de objetividade lhe
escapa. Em vez de se darem ao homem em sua transpa­
rência, os sêres se apresentam como entidades hostis, opa­
cas e alheias à atividade produtiva do sujeito. A s coisas
são indecifráveis e estáticas: o homem não pode nem
pensá-las, porque só se dão parcialmente à consciência,
nem modificá-las, porque são intemporais, ou sujeitas
a uma historicidade própria, inacessível à ação humana.
O processo econômico o esmaga, e sua verdade íntima se
esquiva à sua consciência; sua vida está prêsa a deter­
minações alheias à sua vontade e impenetráveis a seu
conhecimento; o sistema lingüístico o obriga a pensar de
acôrdo com modelos, valores e estereótipos cuja legali­
dade interna não pode nem ser compreendida nem modi­

133
ficada. A s representações que o homem utiliza para pen­
sar a realidade são sempre inadequadas: as coisas e as
representações se separam. O ser é mais rico que qual­
quer representação, porque o sistema de sua inteligibili­
dade se situa numa região inacessível à representação.
O discurso perde a propriedade de significar exaustiva­
mente o real. Começa a desenhar-se o quadrilátero an­
tropológico. Surge a figu ra da finitude: pulverizado por
um sistema econômico que aliena sua fôrça de trabalho,
por uma organização social que faz depender sua própria
existência biológica das leis de ferro do mercado, e por
um corpo de significações lingüísticas que se impõem im­
periosamente à sua consciência, o homem é, na verdade,
um ser radicalmente finito. Nasce o jôgo paradoxal do
empírico e do transcendental: a tentativa de fundar um
saber rigoroso no homem empírico leva, de fato, como
diz Foucault, a contradições insolúveis, mas não necessa­
riamente devido aos defeitos da metodologia antropoló­
gica, e sim porque quase tôdas as tentativas fundadoras
partiram do homem que se oferece em sua form a ime­
diata à consciência positivista, isto é, do homem tra b a ­
lhado por tôdas as alienações da economia, da vida e da
linguagem. A o elevar à categoria de homem em si um
homem que é meramente fruto de uma certa configura­
ção histórica, o positivismo em tôdas as suas form as
construiu um saber ideológico, baseado numa noção es­
tática da natureza humana, e repousando sôbre um fun­
damento frágil. Form a-se a dialética do pensado e do
impensado: o homem alienado quer lutar contra sua alie­
nação. Quer reduzir a fa ix a do inumano, quer absorver
a zona de sombra e de mistério. D aí as éticas da auten­
ticidade e da desalienação, daí as políticas reformistas ou
revolucionárias. Algum as dessas éticas e políticas surgem
no próprio contexto da reificação e da falsa consciência,
e representam no máximo uma abertura parcial à ver­
dade do sistema que aliena o homem. Em outros casos
o sistema é visto, lücidamente, como totalidade e como
história. Enfim, impõe-se uma reflexão sôbre a origem :
o homem alienado tem nostalgia de uma idade de ouro
pré-capitalista, onde o homem não era separado de seu
trabalho, da sociedade e da natureza; e aspira a um
reencontro com a origem, a uma utopia futura, habitada
por um homem finalmente reconciliado com o mundo e
com seus semelhantes. Essas utopias vão desde o pro-
fetismo de algumas filosofias da história até a visão da

134
história futura como uma possibilidade objetiva, de va­
lor tendencial e não absoluto. Arm ado o quadrilátero
antropológico, criam-se as condições para o advento das
ciências humanas. Alienado pela necessidade biológica,
pelo determinismo da economia e pela inércia do sistema
cultural, o homem cria uma biologia que ao mesmo tem­
po confirma a sua fragilidade e a anula, inserindo-a nu­
ma necessidade mais vasta; cria uma ciência econômica
que confirma a sua submissão às leis do mercado e a
anula, transformando essas leis em fôrças naturais; e
cria uma filologia que mostra o homem sob o jugo de
uma legalidade lingüística inacessível à sua vontade, mas
que anula êsse jugo, no exato momento em que desvenda
as leis da historicidade lingüística. Em todos os casos, a
ciência surge como uma tentativa de explicar a alienação
humana, inserindo-a num sistema necessário, e simultâ-
neamente de superar, abstratamente, a alienação, pela
tomada de consciência (ilu sória) dessa necessidade. A s
ciências humanas (psicologia, sociologia, análise da lite­
ratura e dos mitos) que se articulam sôbre essas positi­
vidades estão marcadas pela mesma configuração episte-
mológica e sociológica, e respondem a motivações idên­
ticas. Nessa fase, o pathos existencial da alienação con­
tinua agudo, e a condição humana ainda é sentida em
sua precariedade. Ê lógico, portanto, que o saber do ho­
mem enfatiza o lado problemático da existência bio-so-
cial: a função, o conflito e a significação são privilegia­
dos em relação à norma, à regra e ao sistema.
Assim como o primeiro momento (o da gênese do
homem e do quadrilátero antropológico) pôde ser expli­
cado pela categoria da alienação, o segundo momento
(o do desaparecimento do homem e do quadrilátero an­
tropológico) pode ser explicado pelo conceito de socie­
dade unidimensional, o que não é surpreendente, pois a
unidimensionalidade é a alienação radicalizada . 27
A principal característica do século X IX era a di­
mensão da transcendência. E m face da realidade exis­
tente, há a imagem de uma realidade possível. O homem
é consciente de sua finitude; sabe que existe uma zona
de sombra que precisa ser absorvida; tem nostalgia de
sua origem. Sua vida é dada sôbre o pano de fundo do
pensado e do imaginário; é preciso dar a palavra ao si­
lêncio, ativar o que está inerte, atualizar o que é mera­
mente virtual, transformar o mundo na linha de uma ra ­
cionalidade crescente. Com o desenvolvimento progres­

135
sivo da economia, a dimensão da transcendência vai sen­
do absorvida. A razão se implanta na cidade. A ordem
existente se identifica com a ordem ideal. A real e o
racional convergem. Desaparece a tensão entre a exis­
tência e a essência, entre o empírico e o racional, entre
a verdade e a aparência. A sociedade se torna unidimen-
sional. A alienação muda de sentido: o homem não so­
mente não se sabe alienado, como nem sequer se sente
alienado. A s coisas não são mais exteriores ao homem,
nem o ameaçam com uma objetividade que o cancela: o
homem se reconhece em sua T V e em seu automóvel. O
mundo se torna cordial e inteligível. A s coisas podem
abandonar sua interioridade, e reintegrar-se no espaço da
representação: o discurso, significante universal, pode re­
presentar todo o real, e êste pode ser inteiramente ex­
presso nas representações. O quadrilátero antropológico
vai sendo obliterado. A primeira vítima da sociedade
unidimensional é a noção de finitude: o homem não é
mais limitado pelas coisas, nem ameaçado por transcen-
dências incompreensíveis. Desaparece a contradição en­
tre o empírico e o transcendental: o empírico é funda­
mento de si mesmo; o próprio projeto de fundar o saber
torna-se inútil; a razão positivista triunfa completamen­
te. A dialética do pensado e do impensado é dissolvida.
A razão unidimensional não admite a existência de uma
zona de sombra, já que a sociedade é a Utopia realizada,
em que a dimensão do não-dito ou do indizível é banida.
Enfim, desaparece a obsessão da Origem: o sociedade
unidimensional é a atualização da Origem, o reencontro
do homem com sua Idade de Ouro, que não mais precisa
desenhar-se no horizonte da história futura como uma
promessa inatingível. N um a sociedade sem origem, sem
impensado, autofundadora e liberta das limitações da
carência e da necessidade, a ação humana não é neces­
sária. O homem pode recolher-se ao seu split levei e per­
der-se na contemplação de sua geladeira. Torna-se su­
pérfluo. O homicídio está consumado. N o campo do sa­
ber, essa nova configuração se traduz no projeto de
repensar as ciências humanas. Nascidas como uma res­
posta teórica ao desafio da alienação, as ciências huma­
nas se tornam contestáveis quando desaparece a cons­
ciência da alienação. O ponto de vista da norma, da
regra e do sistema passa a prevalecer sôbre o ponto de
vista da função, do conflito e da significação, pois numa
sociedade unidimensional a função só é inteligível na

136
perspectiva da norma que permita exercê-lá, o conflito
não existe enquanto problema teórico, e a significação só
recebe o seu sentido se integrada num sistema que des­
vende as significações parciais. Paralelamente com o de­
clínio das ciências humanas, ascendem as disciplinas que
pretendem descobrir sistemas e estruturas inteligíveis
atrás das representações conscientes do sujeito: a psica­
nálise, a etnologia, a lingüística. A linguagem volta a
funcionar como disciplina retora, em tôrno da qual po­
derá se unificar o saber do homem: como na episteme
clássica, o discurso representa exaustivamente as coisas,
e contém sua própria verdade, que é sempre coextensa
com a verdade do Ser. N um mundo sem mistério, não
existe mais resíduo, ou opacidade do real à representa­
ção: a sociedade unidimensional está contida inteira no
discurso que a exprime. A linguagem, através dos mass
media, é o grande instrumento de unificação da cultura
unidimensional. N ad a mais natural que a lingüística se
converta no modêlo para a unificação das ciências hu­
manas.
Em suma, para Foucault o homem tinha sido gera­
do por um acontecimento discursivo — o divórcio entre
as coisas e as representações. A inversão da chave mos­
traria que foi o homem, pelo contrário, que gerou êsse
acidente discursivo. D a mesma forma, Foucault afirm a
que um nôvo acontecimento discursivo, que exclui o ho­
mem, está iminente; com igual facilidade, a leitura an­
tropológica poderia demonstrar que essa nova configu­
ração discursiva foi produzida pela praxis social. Num
caso, o homem gera a configuração que permite pensá-lo;
no outro, a configuração que permite excluí-lo. Assim,
é falso (admitindo-se a validade dessa ótica) que a mor­
te do homem seja uma tendência objetiva no campo do
discurso. M as é certo que se estaria formando uma con­
figuração extradiscursiva (prática) que autoriza uma
reflexão sôbre a morte do homem.

4. A Verdade e a Mentira do Homicídio

A distinção entre o homicídio metodológico e o homi­


cídio ontológico permite precisar os limites e a validade
do conceito da morte do homem.
Metodològicamente, a exclusão do sujeito é não so­
mente legítima como sob certos aspectos inevitável. Des­
contando o que existe de abusivo e unilateral em Les

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M ots et les Choses, e os exageros polêmicos da Archêo-
logie, podemos dizer que a metodologia da morte do ho­
mem mostra amplamente a sua fecundidade na prática
descritiva do próprio Foucault.
O homicídio ontológico suscita o problema da vali­
dade de uma análise que pretende demonstrar a gênese
e a dissolução do homem e das ciências humanas a partir
de uma descrição que se esgota no plano do discurso.
Seria necessário completar a análise com a introdução do
nível extradiscursivo. Como vimos, o próprio Foucault
esboça a teoria dessa análise em dois níveis. O “ saber”
no qual aflorou o tema do homem, e as formações discur­
sivas que têm o homem por objeto, com seus conceitos,
objetos, modalidades enunciativas e estratégias temáti­
cas, deveria, no futuro, ser correlacionado com as práti­
cas (p ré ) não-discursivas, que determinaram essas regu-
laridades. U m a leitura em dois níveis preservaria, em
grande parte, as interações e sistematicidades discursi­
vas isoladas por Foucault, evitando o terrorismo das to-
talizações prematuras, e a preguiça reducionista que se
limita a derivar, em bloco, um sistema teórico de uma
organização da praxis, sem mediações e sem respeitar a
especificidade dêsse sistema e de cada um dos seus com­
ponentes. Êsse trabalho está por fazer; é evidente que a
interpretação extradiscursiva esboçada no capítulo an­
terior tem um simples valor ilustrativo, e se destina a
propor um entre muitos outros caminhos possíveis.
Resta saber se essa dupla leitura poderia legitimar
o discurso que a funda, isto é, se teria a capacidade de
definir o estatuto epistemológico do discurso que anun­
cia a morte do homem. Ciência ou ideologia? N o fim
dêste ensaio, a questão fica em aberto. Válido enquanto
método, útil como instrumento polêmico, o homicídio per­
manece duvidoso no plano ontológico. A mortalidade do
homem não é certa; mas o discurso que proclama a sua
extinção, se ideológico, é seguramente mortal. Nesse ca­
so, esgotada a sua utilidade, o homicida, e não o homem,
será varrido “como na orla do mar um rosto de areia.” 28

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R E F E R Ê N C IA S
1 — Vide, por exemplo, na lingüística, além de F. de S uuhhuii',
C o u rs de L in g u istiq u e G énérale (Paris: Payot, 1988), N
Chomsky, S yncta tic S tru ctu res (La Haye: Mouton, 1867) n
E. Benveniste (Paris: Gallimard, 1966); na etnologia, Clamle
Lévi-Strauss, A n th ro p o lo g ie S tructurale (Paris: Plon, 195H),
na filosofia, L , A lth u sse r, Pour Marx (Paris: Maspero, 196(1);
na psicanálise, J. Lacan, E c r its (Paris: Ed. du Seuil, 190(1)
2 — Cf. J. P. Sartre: "11 s’agit de constituer une idéologie nou
velle, le dernier barrage que la bouigeoisie puisse encum
dresser contre Marx", em L ’A r c , n» 30, p. 88; H. Lefebvro,
Claude L é v i-S tr a u s s ou le N o u v e l E lea tism e, em ‘‘L’Honmii'
et la Société", n* 1 e 2; O. R. d’Allones, L e s M o t s contre Um
C hoses, em "Raison Présente", n» 2; e R. Garaudy, L a M o r t
de V H o m m e , em "La Pensée”, n“ 135.
3 — Tese defendida brilhantemente por Lucien Sebag, em M a r -
x ism e et S tructuralism e, (Paris: Payot, 1964).
4 — Michel Foucault, H is to ire de la F o lie d V A g e Classique (Pa­
ris: Plon, 1961).
5 — Ibidem, p. 27.
6 — M. Foucault, Na issa n ce de la Clinique (Paris: P .U .F ., 1963).
7 — Ibidem, p. 7.
8 — Ibidem, p. 173-4.
9 — M. Foucault L e s M o t s et les Choses (Paris: Gallimard,
1966).
10 — Ibidem, p. 274.
11 — M. Foucault, L ’A rch é o lo g ie du S avoir (Paris: Gallimard,
1969)
12 — M. Foucault, L a N a issa nce de la C linique, p. 30.
13 — Ibidem, p. 37.
14 — Foucault, L ’A rch é o lo g ie, p. 22.
15 — Ibidem, p. 65.
16 — Ibidem, p. 65.
17 — Ibidem, p. 83-84.
18 — Ibidem, p. 92-93.
19 — Sigmund Freud, In trodu ction â la Psych a na lise (Paris: Pay.it,
1965) trad. francesa de S. Jankelevitch, p. 266.
20 — L ’A rch é o lo g ie, p. 101.
21 — K. Marx, Capital (New York: TheModern Library) trad.
inglesa por S. Moore e E, Avelling, p. 68-69.
22 — Cf. entrevista de M. Foucault (nãocorrigida), noste livro.
23 —. L e s M o t s et les Choses, p. 339.
24 — Ibidem, p. 354.
25 — Ibidem, p. 390.
26 — Cf. G. Lukacs, H isto ire et C onscience de Classe (Paris: Les
Editions de Minuit, 1960) trad. francesa de Kostas Axelos.
27 — Cf. Herbert Marcuse, O n e-D im en sio n a l M a n (Boston: Boa-
con Press, 1968); vide também artigo do autor, D e E ro s "
Sísifo, em "Tempo Brasileiro”, n° 17-18.
28 — M. Foucault, L e s M o t s et les C hoses, p. 398.

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