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ARTIGOS

Psicologia & Sociedade, 29: e149496

Reabilitação profissional e retorno ao trabalho:


uma aposta de intervenção
Rehabilitación profesional y retorno al trabajo:
una apuesta de intervención
Professional rehabilitation and return to work:
a intervention bet
http://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29149496

Ana Luisa Poersch e Álvaro Roberto Crespo Merlo


Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre/RS, Brasil

Resumo
Muitas são as dificuldades dos trabalhadores acometidos por doenças ocupacionais para retornar ao trabalho.
Esta pesquisa-intervenção teve como objetivo conhecer e se aproximar das experiências do retorno ao trabalho
e as implicações na produção de subjetividade em trabalhadores da área hospitalar. Ela foi realizada com grupos
de trabalhadores reabilitados de um hospital universitário geral de grande porte, em Porto Alegre, RS. Os
encontros (n=8) foram compostos por trabalhadores (n=20) de diversas funções e áreas de trabalho no hospital,
que tenham participado de programa de reabilitação profissional e estejam desenvolvendo suas atividades em
sua área de origem, ou em novo posto de trabalho. Os resultados apontam para as dificuldades, limitações e para
a problematização dos modelos de gestão no trabalho vigentes. Por outro lado, também apontam para a criação
de novos modos de trabalhar e viver e para a construção coletiva de estratégias de inventividade.
Palavras-chave: reabilitação profissional; retorno ao trabalho; clínicas do trabalho; saúde do trabalhador;
pesquisa-intervenção.

Resumen
Muchas son las dificultades de los trabajadores afectados por enfermedades profesionales para regresar al
trabajo. Esta investigación tuvo como objetivo conocer y acercarse de las experiencias de retorno al trabajo y
sus implicaciones en la producción de subjetividad en los trabajadores hospitalarios. Se llevó a cabo con grupos
de trabajadores rehabilitados en un hospital general universitario de grande en Porto Alegre, RS. Las reuniones
(n = 8) fueron compuestas por trabajadores (n = 20) de distintas funciones y áreas de trabajo en el hospital, que
participaron del programa de rehabilitación profesional y ya están desarrollando sus actividades en su lugar de
origen, o nuevo puesto trabajo. Los resultados apuntan a las dificultades, limitaciones y a la problematización
de los modelos de gestión en el trabajo actual. Por otro lado, también apuntan a la creación de nuevas formas de
trabajar y vivir y para la construcción colectiva de estrategias de inventividad.
Palabras clave: rehabilitación profesional; retorno al trabajo; clínicas del trabajo; salud del trabajador;
investigación-intervención.

Abstract
Workers affected by occupational illnesses face many difficulties to return to work. This intervention research
aimed to approach and understand experiences of return to work and their implications to the subjectivity
production of hospital workers who returned to work after participating in a rehabilitation program. The research
was conducted with groups of rehabilitated workers within a large university hospital in Porto Alegre, RS. The
meetings (8) were held with workers (20) of various functions and areas of the hospital, who had participated
in a professional rehabilitation program, and were developing their activities either in their original area or in a
new work position. The results point to the difficulties, limitations and to the problematization of current work
management models. However, they also indicate the creation of new ways of working and living, in affirmative
positions as hospital workers and the collective construction of inventiveness strategies.
Keywords: professional rehabilitation; return to work; work clinics; workers’ health; intervention research.

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Poersch, A. L. & Merlo, A. R. C. (2017). Reabilitação profissional e retorno ao trabalho: uma aposta de intervenção

Reabilitação profissional e retorno ao trabalho potencial laborativo, a orientação e o acompanhamento


da programação profissional, a articulação com a
comunidade com vistas ao reingresso no mercado do
Muitas são as dificuldades dos trabalhadores trabalho e o acompanhamento e a pesquisa da fixação
acometidos por doenças ocupacionais para retornar no mercado de trabalho, preferencialmente por uma
ao trabalho, seja devido às limitações funcionais equipe multiprofissional (Maeno & Vilela, 2010).
decorrentes dos adoecimentos, aos obstáculos A mesma legislação isenta a Previdência Social da
vivenciados junto às empresas, ou então junto ao manutenção do segurado no mesmo emprego ou da
INSS e serviços de saúde (Toldrá, Daldon, Santos, & sua colocação em outro para o qual for reabilitado,
Lancman, 2010). Para os autores, a restrição laboral deixando claro que o processo de reabilitação
e o retorno ao trabalho estão entre os aspectos mais profissional cessa com a emissão de um certificado
complexos das políticas de atenção à saúde do que indique a função para a qual o reabilitando foi
trabalhador: capacitado profissionalmente.
É necessário pensar a reabilitação profissional para
além do que é feito no programa de reabilitação
Analisando criticamente a legislação, Maeno
profissional da Previdência Social e da clássica e Vilela (2010) são enfáticos ao afirmar que ali é
reabilitação clínica oferecida em diferentes serviços de explicitado o resultado esperado, parcial e incompleto,
saúde, mas, também, considerá-la como um processo que é a habilitação e a possibilidade de reinserção,
dinâmico de atendimento global do trabalhador que e não a reinserção efetiva. Uma preocupação que
deve envolver as empresas no processo de prevenção, se mostra contábil e administrativa, cujo processo
tratamento, reabilitação, readaptação e reinserção no de recolocação se constrói sob a responsabilidade
trabalho. (Toldrá et al., 2010, p. 11) institucional de orientadores profissionais e não
mais de equipes de reabilitação profissional, quando
A prática da reabilitação profissional está diversos desses orientadores profissionais não têm
historicamente ligada aos sistemas previdenciários familiaridade com o mundo do trabalho real e com as
como resposta pública à questão da incapacidade suas exigências, posto que:
(Takahashi, Simonelli, Souza, Mendes, & Alvarenga,
Seus procedimentos restringem-se à homologação
2010). Segundo os autores, em seus primórdios, os
de um processo precário de readaptação que não fica
programas de reabilitação profissional, na perspectiva
sob a coordenação geral do INSS, mas sim a cargo
do então modelo hegemônico denominado “Estado de da empresa de vínculo, com pouca interferência do
Bem-estar Social”, reservavam o papel estratégico de Estado. Não há sequer um programa de reabilitação
regulação econômica no sentido de reduzir o tempo de profissional traçado por esses orientadores
duração da concessão de benefícios por incapacidade, profissionais para cada caso. Com frequência,
no intuito de restabelecer o mais rápido possível a seus procedimentos restringem-se a entrevistar o
condição de contribuinte. Produziam ainda o efeito reabilitando e a encaminhá-lo à perícia do órgão,
de eliminar ou reduzir as desvantagens das pessoas solicitando à empresa de vínculo informações sobre
com incapacidades, permitindo o retorno ao trabalho o cargo a lhe ser oferecido. (Maeno & Vilela, 2010,
p. 91)
(Moom & Geicker, 1998).
Na atual legislação brasileira, o direito à Ao final deste processo, na maioria das vezes,
reabilitação profissional é concedido ao dependente, sem uma avaliação criteriosa da atividade laboral
além do segurado, acidentado do trabalho ou não, e oferecida pela empresa, promove-se um estágio, que,
se determinou que o segurado, em gozo de auxílio- cumprido de alguma forma, resulta na homologação
doença (benefício temporário por incapacidade), da reabilitação do segurado, independentemente das
impossibilitado de recuperação para sua atividade condições de possibilidade para uma efetiva reinserção
habitual, “deverá submeter-se ao processo de no ambiente de trabalho (Maeno & Vilela, 2010).
reabilitação profissional para o exercício de outra
Em consonância com as mudanças nos
atividade.” (Maeno & Vilela, 2010, p. 89). Neste caso,
programas de reabilitação profissional, a redução do
não pode ter o benefício temporário suspenso até que
modelo previdenciário de reabilitação profissional
seja dado como habilitado para o desempenho de nova
repercutiu no atendimento dos serviços de Saúde do
atividade, que lhe garanta a subsistência ou, quando
Trabalhador do Sistema Único de Saúde (SUS). A
considerado não recuperável, for aposentado por
desassistência atual aos trabalhadores - no que diz
invalidez (Lei n. 8.213/ 1991).
respeito à reabilitação, leva à necessidade médica
O regulamento da lei previdenciária menciona de prolongamento da prescrição de afastamento do
alguns procedimentos, incluindo a avaliação do trabalho pela permanência da incapacitação, quando

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não ocorrem as altas precoces pela perícia médica do pouco se mostra resolutiva por uma série de entraves
INSS, que não considera as questões de prevenção históricos e políticos, direciona cada vez mais à
(Takahashi et al., 2010), implicando no aumento do empresa, por sua vez, identificada como responsável
grau de desvantagem dos trabalhadores acidentados e pelo adoecimento, o encargo de solucionar o impasse,
adoecidos por ocasião do retorno ao trabalho - fator o quanto antes possível, desonerando o Estado no
diretamente associado à nossa investigação. pagamento do auxílio previdenciário. Neste jogo de
forças, o trabalhador muito pouco consegue intervir,
A partir deste contexto, a experiência do
assistindo passivamente à manipulação de seu corpo,
adoecimento e afastamento das atividades laborais
de sua história, e de seu futuro, pautada por interesses
também nos convoca a pensar nas marcas e nos efeitos
que poucas vezes incluem a sua saúde, muito embora
da atual lógica da produtividade exacerbada - inclusive
a legislação do SUS incentive seu protagonismo
nos programas de seguridade social - que acabam
(Portaria Interministerial n. 800/2005).
por designar aos trabalhadores afastados o posto de
incapazes e, consequentemente, improdutivos (Ramos,
Tittoni, & Nardi, 2008), desviantes frente às novas Uma aposta de intervenção
ferramentas de gestão e dispositivos de disciplina e
controle. Tomando o trabalho como produção de vida
e criação, a experiência do afastamento evidencia
Não obstante, a experiência de afastamento do
um rompimento, imperializa uma pausa nos modos
trabalho por adoecimento profissional está apontada
de viver e trabalhar. Para além da experiência de
social e historicamente pela incapacidade e pela
incapacidade, esta investigação pretende potencializar o
insegurança (Ramos, Tittoni, & Nardi, 2008). Tal
rompimento, enquanto oportunidade de transformação
vivência, conforme os autores, intensifica-se pelo
quando do retorno ao trabalho, enquanto resistência
incremento das exigências trazidas pela flexibilização
- como sugerem Ramos, Tittoni e Nardi (2008, p.
do trabalho, pelo risco do desemprego e pelas
212), mobilizando “afetos silenciados pelo cotidiano
dificuldades institucionais e burocráticas que irão
normativo e estafante de trabalho [quando], então,
atravessar a situação do trabalhador afastado frente à
o trabalhador pode vir a descobrir e descobrir-se em
busca de legitimar seus direitos.
outras habilidades e sensibilidades.” Visualizando
O retorno ao trabalho se faz, então, atravessado outros fluxos, produzindo rupturas e até mesmo outros
por estas vivências, particularizadas, confrontadas modos de trabalhar.
com os arranjos da organização que já não são mais
À luz da Psicodinâmica do Trabalho, Dejours
os mesmos. Compondo equipes que não mais se
(2004) salienta que a cooperação se refere à vontade das
constituem do mesmo modo e em relações e vínculos
pessoas de superarem coletivamente as contradições da
de trabalho que se fragilizaram face ao fomento
organização do trabalho. Para Merlo e Mendes (2009),
dos modelos individualistas de gestão no trabalho,
a Psicodinâmica do Trabalho visa ao coletivo de
somados ainda ao longo período de afastamento do
trabalho e não aos indivíduos isoladamente, atentando
universo laboral.
para as estratégias construídas coletivamente para dar
Não bastasse o luto pela perda do trabalho conta do trabalho prescrito, evitando o sofrimento e
e a vivência do sofrimento (físico ou mental) e buscando o prazer. De acordo com os autores, após
da incapacidade, a experiência do adoecimento diagnosticar o sofrimento psíquico em situações de
é atravessada ainda pela culpabilização dos trabalho, a psicodinâmica não busca atos terapêuticos
trabalhadores, individualizados e solitários em suas individuais, mas intervenções voltadas para a análise
patologias. Em estudo realizado no Rio Grande do da organização do trabalho à qual os trabalhadores
Sul (Hoefel, Bianchessi, Santos, & Zanette, 2004), estejam submetidos.
foi constatado que a falta de avaliação crítica dos
Desdobrando a proposta metodológica da
elementos do processo de trabalho como fatores
Psicodinâmica do Trabalho, a singularidade desta
relacionados ao adoecimento tem sido uma marca
pesquisa nos convoca a aproximações teóricas com
importante nos discursos médicos e institucionais.
correntes francesas contemporâneas em Clínicas
O percurso de retorno ao trabalho, a sua vez, é do Trabalho. Ao fazer o uso da teoria e do método
cercado por burocracias e dificuldades ao trabalhador, baseados no que foi originalmente proposto por
tensionadas pela dicotomia Organização versus Dejours, a sua vez pressupondo a indissociabilidade
Estado, em seus jogos de poder. Como exemplo, entre a pesquisa e a ação, convocamos os trabalhadores
temos a batalha supracitada, em que o INSS - em uma posição ativa de construção de dispositivos e
instituição em constante embate interno e que muito estratégias para o retorno ao trabalho ainda que com

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Poersch, A. L. & Merlo, A. R. C. (2017). Reabilitação profissional e retorno ao trabalho: uma aposta de intervenção

restrições. Uma aposta que explora a dimensão estética implicada, pesquisa-inclinação que produz desvios
da criação, acompanhando processos singulares, sobre o campo investigado, pesquisa que não dissocia
discutindo coletivamente alternativas, socializando objeto investigado e sujeito que investiga, sujeito da/
experiências supostamente individuais e promovendo na investigação: pesquisa-intervenção” (Paulon &
encontros potentes, com vistas ao fortalecimento destes Romagnoli, 2010, p. 95).
trabalhadores perante os discursos de produtividade
Antecipamos, com Paulon e Romagnoli (2010),
e velocidade supostamente inquestionáveis que
que não é a técnica, ou o enquadre do campo, que
perpassam a reinserção laboral.
define o caráter de pesquisa-intervenção, senão a
Ao problematizar as vivências de sofrimento posição que o pesquisador ocupa nos jogos de poder,
e ruptura decorrentes do adoecimento e fundamentalmente, sua implicação com a instituição
afastamento, pretendemos, no retorno ao trabalho, do saber científico, e sua abertura para criar zonas
produzir, coletivamente, junto aos trabalhadores, de indagação, de desestabilização, que favoreçam e
questionamento frente às naturalizações associadas aflorem o coletivo. Coletivo aqui entendido enquanto
ao lugar de doente e de trabalhador com restrições, um plano povoado de relações e processos moleculares,
confrontando discursos institucionais e de gestão, que trazem o intensivo, “agenciando forças potentes,
discutindo a produção e os processos estabelecidos. que afetam e produzem efeitos, e dão passagem a
Criando e ativando, no trabalho e com o trabalho, intercessores criados nesses encontros, que conduzem
novos lugares de reconhecimento, vetor fundamental à invenção, a outros modos de expressão” (Paulon &
à transformação do sofrimento em criação segundo as Romagnoli, 2010, p. 96).
análises dejourianas.
Trata-se, então, não de uma metodologia
A experiência do coletivo pode igualmente com justificativas epistemológicas, mas sim de um
suscitar o resgate de laços de solidariedade e cooperação dispositivo de intervenção no qual se afirme o ato
entre trabalhadores, intensamente fragilizados político que toda a investigação constitui (Paulon,
por conta das novas formas de avaliação e gestão. 2005). Nesta perspectiva, não visamos a mudança
Sabemos que os modelos vigentes têm por objetivo a imediata de ações instituídas, posto que a mudança
gestão das subjetividades, através da incorporação por aqui é entendida como consequência da produção de
parte dos trabalhadores das metas e dos objetivos das uma outra relação entre teoria e prática, assim como
empresas e que busca negar, mediante a valorização sujeito-objeto (Rocha & Aguiar, 2003), o que envolve a
da insegurança e competição – dirigindo-se para afirmação de uma micropolítica do cotidiano e a recusa
resultados e não processos - a exploração da força e da individualização e psicologização dos conflitos.
do trabalho e o conflito capital-trabalho (Gernet &
Para este fim, resgatamos, agora com Rocha
Dejours, 2011; Tittoni & Nardi, 2011).
e Aguiar (2003), a proposta de metodologias
O investimento em um espaço coletivo pode coletivas que favoreçam as discussões e a produção
ainda se oferecer como resistência diante dos discursos cooperativa, com a perspectiva de fragilizar as
que valorizam o empreendedorismo individual, por hierarquias burocráticas e divisões em especialidades
meio de discussões que propiciem deslocamentos, que fragmentam o cotidiano e isolam os profissionais.
movimentos e novos questionamentos frente ao que Segundo as autoras, a pesquisa-intervenção, por sua
se tem como verdades. Para Dejours (2004), o que ação crítica e implicativa, “amplia as condições de um
é elaborado coletivamente, da vivência no trabalho, trabalho compartilhado” (Rocha & Aguiar, 2003, p.
transforma a relação subjetiva que os trabalhadores 71).
construíram sobre o trabalho e a instituição. Abrem-se,
Inspirados nesta possibilidade, tomamos, com
assim, linhas de fuga para novas ativações, discussões
Amador (2011), o trabalho real tensionado em relação
e percepções. Saúde, então, é a possibilidade de
ao trabalho prescrito, desde um lugar que resiste à
o sujeito se colocar em condições de habitar as
técnica, que está ligado ao fracasso das prescrições, o
multiplicidades, de construir e experimentar recursos
que convoca à produção de novos saberes por parte
capazes de reconfigurar suas práticas de modo mais
dos trabalhadores, estes eminentemente derivados
criativo (Mendes, Araújo, & Merlo, 2010), tanto na
das experiências vividas. Conforme a autora, o olhar
esfera singular quanto coletiva.
se direciona à processualidade, ao percurso, às linhas
Nesse sentido, nossa investigação se propôs embaralhadas que podem as forças tomar como
a discutir as nuances do retorno ao trabalho, a partir travessia, em percursos que podem ser de adesão
da metodologia denominada ‘pesquisa-intervenção’ ao poder ou então de criação face a ele. Para tal,
(Paulon, 2005; Paulon & Romagnoli, 2010; Passos Fonseca e Barros (2010, p. 110) acrescentam que “é
& Barros, 2000; Rocha & Aguiar, 2003): “pesquisa preciso partir de análises das situações de trabalho não

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para buscar uma forma ideal de trabalhar, mas para desenvolvendo suas atividades, seja em sua área de
analisar os processos que estão em curso e construir, origem, seja em novo posto de trabalho, em períodos
coletivamente, outras/novas formas de organização do que variam entre 6 meses e 13 anos de reingresso
trabalho”. como profissional reabilitado.
Um trabalho inventivo que se realiza na medida Estabelecendo diálogo com os autores utilizados
em que é comum, coletivo, produzido em redes de no percurso teórico e metodológico, buscamos a
cooperação. É através deste entendimento, somado a compreensão dos modos de vida e trabalho destas
uma demanda que se faz ver mediante adoecimento trabalhadoras reabilitadas, problematizando também os
no trabalho que nossa proposta de intervenção se discursos que atravessam a experiência da reabilitação
constitui. profissional e retorno às atividades. Procuramos ainda
identificar em que medida tais questões emergem no
Da pesquisa propriamente dita cotidiano de trabalho das mencionadas trabalhadoras
e quais as estratégias de resistência que dali podem
advir.
Integrante da rede de hospitais universitários do Com Minayo e Sanches (1993), entendemos que
Ministério da Educação e vinculado academicamente à o material primordial da investigação qualitativa é a
universidade, nosso campo de investigação apresenta- palavra expressa na fala cotidiana, seja nas relações
se com a missão de oferecer serviços assistenciais afetivas e técnicas, seja nos discursos intelectuais,
à comunidade gaúcha, ser área de ensino para a burocráticos e políticos. Nesse aspecto, a análise do
universidade e promover a realização de pesquisas material levantado foi efetuada mediante a costura da
científicas e tecnológicas. A integração com diferentes teoria com a vivência dos trabalhadores, incluindo a
unidades de ensino da universidade se amplia e se pesquisadora.
consolida ano após ano, com a abertura de novos
espaços para a atuação de docentes, acadêmicos e Desta forma, os eixos de análise, singulares
pesquisadores. e vivenciais como em toda a investigação, foram se
produzindo ao longo da intervenção, a partir dos
Atualmente, o hospital em questão ocupa objetivos propostos, no debate com as trabalhadoras,
plenamente sua área física e seus recursos humanos, discussões e orientações acadêmicas. Optamos por
tendo conquistado reconhecimento como centro de compartilhar dois deles neste recorte. As Clínicas
referência em assistência, na formação de profissionais do Trabalho e seus interlocutores foram empregados
e na geração de conhecimentos. É considerada uma das na compreensão dos movimentos produzidos pelas
empresas mais sólidas e eficientes do país, cumprindo trabalhadoras na vivência do retorno ao trabalho e
sua Missão Institucional e obtendo o reconhecimento na construção de estratégias e invenções adotadas no
e destaque por seu desempenho. cotidiano do trabalho no hospital.
Nossa intervenção foi construída na reunião de Em consonância com a metodologia proposta
grupos de trabalhadores reabilitados deste hospital. e com as discussões trazidas em grupo, as falas que
A proposta teve início com a discussão a partir do ilustram esta produção não tiveram as trabalhadoras
questionamento: como é ser trabalhador reabilitado em individualmente identificadas, sobretudo porque
um hospital na atualidade? entendemos que se tratam de discursos produzidos
No total, foram realizados oito encontros, com coletivamente. Discursos ativados ao longo dos
variação entre 04 e 14 participantes, em um total de 20 encontros, nas discussões, que dizem dos encontros
trabalhadoras, todas mulheres, que se propuseram, em deste lugar de trabalhador reabilitado.
algum momento, a contribuir com nossa investigação.
As reuniões ocorreram em um local identificado com Das dificuldades, ou daquilo que persiste
o trabalho de tais profissionais, na própria instituição,
em horário fora de seu expediente laboral.
A dor faz parte de ti, a dor faz parte de ti. Mas, agora,
Com uma média de idade de 49 anos eu sei lidar com a dor que antes eu não sabia. Eu sei
(participantes entre 33 e 61 anos), as referidas qual é a minha limitação, então, se eu não posso fazer,
trabalhadoras exercem diferentes funções e pertencem eu não vou fazer porque quem vai sentir dor sou eu.
a distintas áreas de trabalho no hospital, e todas
participaram de programa de reabilitação profissional O retorno às atividades, quando finalmente ele
do INSS. Após períodos de afastamento do trabalho se dá, traz consigo evidências de um corpo que não é
que variaram entre 2 anos e 8 anos, atualmente estão mais o mesmo. Memórias e idealizações em relação

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ao trabalho outrora exercido convocam o trabalhador a trabalho podem se mostrar processos mais sensíveis
duras confrontações em relação ao novo momento que e permeáveis ao funcionamento das equipes,
carece de construções e significados. aparentemente tão engessados à realidade hospitalar.
Contudo, ao longo das discussões, ao problematizar
A ansiedade de novamente pertencer a uma
acerca deste tema, chegamos a uma constatação
equipe de trabalho, acompanhada das expectativas
interessante: a de que a dinâmica do reconhecimento, no
de aceitação, acolhimento e aprendizagem, se
funcionamento da instituição em questão, geralmente
mostram componentes importantes neste cenário de
se dá por meio de um olhar externo, já que, entre pares,
inseguranças e afirmações:
esta verificação é rara.
E eu vou dizer pra vocês, pra mim foi difícil porque
eu tinha acabado de me formar na faculdade, eu tava A atividade do trabalho é complexa, disso não
fazendo mestrado, tava perto de apresentar, tive que abrimos mão. Ela envolve não apenas a execução
parar tudo. Eu fiquei doente realmente. Tu parou a técnica e operacional de regras e procedimentos,
tua vida. mas também uma diversidade de habilidades e
competências demandadas pelas situações laborais
A pausa do adoecimento se faz (re)ver de forma (Amazarray, Câmara & Carlotto, 2014). Abrange ainda
intensa no retorno ao trabalho. De um posicionamento um universo de relações hierárquicas e burocráticas
passivo ante a seguridade social e médica, precisam muito específico, em se tratando do trabalho no
emergir sujeitos, ainda fragilizados, como protagonistas, hospital.
capazes de se reintegrar também a um modelo de
mercado que vem se modificando com o passar do Assim, e considerando a gama de agenciamentos
tempo: “Eu tô no Hospital desde 2002. Eu me afastei eu envolvidos no processo de trabalho, apostamos
tinha 8 anos de Hospital, fiquei 3 anos fora esperando que, quanto mais espaço de acolhimento, criação e
uma vaga em outra área. Nunca aconteceu, então eu discussão as equipes forem capazes de proporcionar,
voltei pra mesma área. Tô reabilitada vai fazer 1 ano.” melhores serão as possibilidades de implicação destes
trabalhadores reabilitados, desde seu reingresso, no
No intervalo de tempo em que um trabalhador
desempenhar de tarefas e demais rotinas cotidianas.
fica afastado, muitos personagens se movimentam e se
modificam no quadro da instituição. E, no momento do Por outro lado, cientes dos modos em que a
retorno, discutimos o quanto maiores esclarecimentos gestão vem sendo pensada e conduzida nos ambientes
junto às equipes podem se mostrar positivos para hospitalares, podemos inferir as dificuldades que
uma recepção mais elucidada e tranquila destes tais práticas encontram para se constituir. Temas
trabalhadores, que se bem a alguns possam parecer como sobrecarga de trabalho, rotinas assoberbadas,
novos, têm, em sua maioria, uma história prévia de competição entre pares, perpassaram todas as
trabalho e dedicação à empresa. discussões nos grupos, e nos ajudam a problematizar
os entraves que se formam, dificultando relações de
Com Merlo (2014), entendemos que a relação
cooperação. Dejours (2004) ressalta que a cooperação
com o trabalho é estabelecida na relação com o outro.
refere-se, sobretudo, à vontade das pessoas de
Para tal, o trabalhador aporta uma contribuição - que
trabalharem juntas e de superarem coletivamente
a sua vez repousa sobre uma mobilização de recursos
as contradições que surgem da própria natureza ou
bastante profunda:
da essência da organização do trabalho. Para haver
Por que as pessoas aportam essa contribuição? É cooperação, é preciso troca, paridade, confiança. E
porque, em troca dessa contribuição, elas esperam uma para isso, apostamos, é necessário um espaço para o
retribuição. E que retribuição elas esperam? O que as coletivo se construir discursivamente.
pessoas esperam, acima de tudo, é uma retribuição
moral. É a dimensão moral e simbólica que conta. O Segundo o autor, tendo em vista o cenário
que as pessoas esperam é que se reconheça a qualidade do trabalho na contemporaneidade, reafirmar a
do trabalho. A qualidade de sua contribuição. (Merlo, confiança enquanto dimensão irredutível do trabalho,
2014, p. 17) da qualidade, segurança e seguridade pode parecer
mais um sonho utópico. Por outro lado, partindo do
Essa retribuição pode passar, eventualmente,
pressuposto de que trabalho é muito mais do que a
por premiações de ordem financeira, salarial, etc. No
execução de atividades - sendo também uma relação
entanto, sabemos que, apesar da importância destes
social, ele envolverá, em razão disso, um conjunto
reconhecimentos, o verdadeiro impacto psicológico
complexo de relações entre o sujeito e aqueles que
está ligado a uma dimensão simbólica.
com, e para quem, ele trabalha: “o trabalho pressupõe
Entendemos então que através da via do invenção e apropriação de saber-fazer coletivo”
reconhecimento a reinserção e a permanência no (Gernet & Dejours, 2011, p. 63).

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Aqui temos uma aposta para criação, para pertinentes a questões legais e jurídicas, poderia ser
a problematização do instituído, para reflexão e oferecido um momento de discussão a despeito dos
proposição de alternativas. O coletivo de trabalho demais atravessamentos que perpassam a reinserção
é sempre constituído em torno de regras de trabalho do trabalhador reabilitado. “Mas é o tipo da coisa,
comuns que derivam da construção do próprio coletivo como eu tava dizendo, é a má administração, porque
(Gernet & Dejours, 2011). Na ausência disso, de acordo se a chefia, principalmente os nossos supervisores,
com os autores, há apenas um grupo ou uma reunião entrassem nas áreas, tivessem conhecimento... Porque
de pessoas que podem, eventualmente, compartilhar elas sabem quem trabalha e quem não trabalha.”
interesses comuns.
Considerando as atuais discussões acerca
Mas a gente tem que falar as coisas, não dá pra gente da gestão e poder gerencialista (Gaulejac, 2007),
deixar, porque se a gente não falar, ninguém vai saber precisamos pensar no significado que tem, para
o que tá acontecendo com a gente. E daí todo mundo
qualquer chefia na instituição, receber um funcionário
“tá, reabilitado, reabilitado, trabalhando como
funcionário normal”, mas a gente não é funcionário reabilitado, com limitações em sua produção, e que
normal. sabidamente ocupa uma vaga comum, posto que não
há permissão para a manutenção de quadros extras
Como então propiciar espaços de criação e no hospital. Os indicadores e metas são construídos
discussão coletivos em meio às exigências rígidas do baseados em situações ideais de trabalho, e é sob esta
trabalho hospitalar? Seria esta própria pesquisa um ótica que as lideranças são cobradas.
dispositivo para tal? É paradoxal ter que atender a um programa do
Não podemos, todavia, prosseguir nossa Estado (no caso, o da reabilitação), em uma instituição
discussão sem lançar um olhar à gestão de pessoas, que pertence ao mesmo Estado e na qual ele próprio
tema que, direta ou indiretamente, atravessou nossos oferece dificuldades à sua execução. Uma linha de
encontros, por onde passaram muitas das limitações análise construída nas discussões sugere direcionar
compartilhadas, e ao mesmo tempo, linhas de fuga e um olhar mais qualificado às lideranças nas equipes,
possibilidade. Através dos relatos, pudemos perceber que, pressionadas, se mostram equivocadas em muitas
o quanto a variabilidade das condutas entre chefias e conduções. Imaginamos que também a elas caibam
demais agentes de supervisão se mostra diretamente esclarecimentos a respeito de muitas dúvidas inerentes
relacionada aos modos como a equipe trabalha, e o ao programa.
próprio funcionário reabilitado, com esta condição: “E Não obstante, em tempos de valorização do
dentro da própria supervisão elas... como é que é... eu discurso da qualidade, os efeitos da lógica gerencialista
não sei se elas sabem, ou elas se fazem que não sabem, se mostraram em relatos que ultrapassam a questão
elas não respeitam as restrições que a gente tem. Elas da reabilitação profissional. Percebemos que, em um
fazem tipo um testezinho assim”. primeiro momento, as trabalhadoras participantes
Em recente publicação (Bianchessi, Dantas, reconheciam suas dificuldades diretamente associadas
Poersch, & Ramos, 2014), os autores compartilham à reabilitação. No entanto, sempre que ampliávamos
o quanto, muitas vezes, as lideranças não estão as situações e discussões, surgiam apontamentos
preparadas ou mesmo dispostas a discutir temas de uma ordem maior, que remetem novamente aos
ligados aos processos de trabalho que tenham relação modos contemporâneos de condução do trabalho na
com o adoecimento dos trabalhadores, que, a sua vez, saúde.
denunciam, ocasionalmente, a dificuldade que as Nos grupos, tratamos de nos implicarmos em tais
chefias têm em gerenciar o trabalho de suas equipes e
discussões, na busca de efetivas contribuições acerca
eventuais restrições laborais. Os ajustes relacionados
dos efeitos destes modelos de gestão no cotidiano dos
aos períodos singulares, de cada sujeito que retorna
trabalhadores. Para além do sofrimento - evidente nas
às atividades, não são previsíveis, o que torna cada
falas e na condição de reabilitado, problematizamos
processo muito peculiar no que tange ao investimento
sobre como este tipo de administração se faz ver nas
de todos os profissionais envolvidos (Bianchessi et al.,
relações de trabalho e o quanto cada trabalhador, para
2014).
além do cargo ocupado, transmite e repete eventuais
Muitos detalhes passam desapercebidos por modalidades de violência – algumas evidenciadas nos
parte das chefias que não tenham experiência, ou próprios encontros. Não sem dificuldades, pudemos
sequer conhecimento do significado do programa nos escutar e pensar, no tocante a possibilidades
de reabilitação profissional. Em nossos encontros, e limites relativos às especificidades das áreas de
apontamos que para estas, além de esclarecimentos trabalho.

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Poersch, A. L. & Merlo, A. R. C. (2017). Reabilitação profissional e retorno ao trabalho: uma aposta de intervenção

Debates intensos, caminhos possíveis, Em se tratando de um retorno, muitas falas apontam


oportunidades de invenção de modos de existir e para a continuidade de um trabalho outrora iniciado.
produzir. Entendemos, com Passos (2009, p. 14), que é Independente do cargo ocupado - e apesar de todas as
deste movimento que aventamos: dificuldades - o reingresso ao hospital parece carregar
um significado peculiar, associado à valorização e ao
Trata-se de fazer atravessar (transversalizar) os níveis respeito social desta atividade.
molar e molecular, micro e macropolítico. Realidade
social e realidade desejante se distinguem, mas não Aqui resgatamos o quanto o trabalho tem duplo
se separam de tal maneira que não possamos pensar caráter: se, por um lado, é dispêndio de força motriz,
a mudança das formas de organização do socius sem
desgaste, consumo de energia, por outro, o trabalho
pensarmos na alteração dos modos de subjetivação.
(p. 14)
humano é intencional, tem produção de conteúdo
significativo para quem o exerce (Araujo, Busnardo,
Marchiori, Lima, & Endlich, 2002). Dessa maneira,
Das possibilidades, ou daquilo que resiste a atividade ganha sentido se o ser humano consegue
se reconhecer no conteúdo da tarefa que realiza, e o
A experiência do retorno ao trabalho, atravessada trabalho no hospital se mostra relevante.
por tantas dificuldades, mostrou-se, na mesma A identificação com o ambiente (inclusive
intensidade, satisfatória. Ainda que diversas situações físico, de circulação) hospitalar se revela um fator
tenham sido compartilhadas em relação aos impasses interessante na nossa discussão. Após episódio de
advindos do processo doloroso de afastamento e adoecimento e afastamento, o retorno fica atrelado à
consequente reintegração, o fato de retornar ao saúde, à produção de saúde – ainda que com dor:
universo laboral se destacou como fator importante de
Eu digo: às vezes não é por ter algum problema
saúde mental. pessoal, ou por ter algum problema de saúde que tu
Sabemos que o fato de estar inserido em tem que deixar a peteca sair, sabe? Tu não pode se dar
uma empresa não é garantia de segurança quanto por vencida, entendeu? Tem que dar a volta por cima,
entendeu, e buscar força, energia, porque às vezes
à manutenção da empregabilidade. O cenário do
até a forma como tu interage com as pessoas, sabe,
trabalho, em constante transformação, convoca os aquilo te faz um bem. Tem dias que eu saio daqui,
trabalhadores, especialmente estes, após longo período sabe, ai, meu Deus, que coisa boa, tu fica aquela coisa
de pausa, ao confronto com diferenças no que concerne assim, não tem como tu explicar (...) uma sensação
ao funcionamento do hospital. tão gostosa, uma coisa tão boa de simplesmente se
sentir querida e amada pelas pessoas.
As (novas) organizações do trabalho demandam
um trabalhador mais flexível, com habilidades pessoais e Definitivamente, o trabalho aqui não é somente
de relacionamento que permitam e incentivem o trabalho um modo de ganhar a vida – é também uma forma de
em equipe, estas consideradas tão importantes quanto as inserção social na qual os aspectos psíquicos e físicos
habilidades técnicas para a função (Nardi, 2006, p. 66): estão fortemente implicados. Sabemos que ele pode
O trabalhador deve se tornar mais “autônomo” ser um fator de deterioração, de envelhecimento e de
(embora a informática tenha permitido um controle doenças graves, “mas pode também se constituir em
direto da produtividade, sem a necessidade de níveis um fator de equilíbrio e de desenvolvimento” (Dejours,
hierárquicos intermediários), com maior poder
Dessors, & Desriaux, 1993, p. 98).
para tomar decisões sem a supervisão dos chefes
imediatos… .Em contraponto, deve assumir os riscos O reconhecimento com respeito ao trabalho hospitalar,
da produção. (Nardi, 2006, p. 66) relacionado nos grupos ao cuidado contínuo, urgente
e complexo, também convoca as trabalhadoras a uma
Dispostos a assumir estes riscos, ou então a responsabilidade no que tange ao funcionamento da
instituição em geral, quando por vezes colocam sua
resistir a tal chamamento, a maioria dos trabalhadores
dor em segundo plano, frente à demanda do paciente,
reabilitados associa o retorno às atividades a um que, em última análise, é sempre trazido como
significado maior do trabalho: beneficiário primordial nas ações de trabalho. E então
Bom, o que me faz assim, acordar todos os dias pra o reconhecimento é maior do que a dor.
mim vir trabalhar não é motivação, né? O que me
faz vir, eu acho, assim, que é o convívio aqui, sabe,
Considerações finais
o convívio que tu tem com as outras pessoas, porque
faz falta. Tu ficar só em casa, te faz falta o convívio.
Sociali... Socialização, né? E tu te sentir útil, tu te Yves Clot (2010) considera que as
sentir assim de uma forma ou de outra, nosso trabalho transformações no trabalho só conseguem se manter,
nos faz, nos torna... de forma duradoura, quando passam pela ação dos

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Psicologia & Sociedade, 29: e149496

próprios coletivos de trabalho. Para ele, esse é o Referências


motivo que, clinicamente, a análise do trabalho busca
apoiar os coletivos em seus esforços para a ampliação Amador, F. S. (2011). Produção de imagens, subjetivação e
de seu poder de agir no seu meio. Diz ele: “A ação trabalho penitenciário: uma contribuição às clínicas do
transformadora duradoura não poderá, portanto, ser trabalho. Psicologia: Ciência e Profissão, 31(2), 358-
delegada a um especialista da transformação, a qual 373.
Amazarray, M. R., Câmara, S. G., & Carlotto, M. S. (2014).
não se pode tornar, sem graves decepções para os Investigação em saúde mental MP âmbito da saúde pública
agentes da demanda, um simples objeto de expertise” no Brasil. In Á. R. C. Merlo, C. G. Bottega, & K. V. Perez
(Clot, 2010, p. 118). (Orgs.), Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento
e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho (pp. 75-
Esvaziada de seu sentido, a atividade do 92). Porto Alegre: Evangraf.
sujeito se vê amputada de seu poder de agir quando Araujo, M. D., Busnardo, E. A., Marchiori, F. M., Lima, M. F., &
os objetivos da ação em vias de se fazer estão Endlich, T. M. (2002). Formas de produzir saúde no trabalho
desvinculados do que é realmente importante para hospitalar: uma intervenção em psicologia.  Cadernos de
o trabalhador, e quando outros objetivos válidos, Psicologia Social do Trabalho, 5, 37-49.
Bianchessi, D. L. C., Dantas, F. F., Poersch, A. L., & Ramos,
reduzidos ao silêncio, são deixados em suspenso: M. Z. (2014). Sobre uma construção em atenção em saúde
“essa desvitalização da atividade é uma modalidade mental e trabalho na empresa. In Á. R. Merlo, B. Crespo,
habitual da atrofia do poder de agir” (Clot, 2010, p. C. Garcia, & K. V. Perez (Orgs.), Atenção à saúde mental
16). do trabalhador: sofrimento e transtornos psíquicos
relacionados ao trabalho (pp. 117-132). Porto Alegre:
Nas linhas desta escrita, nos inúmeros Evangraf.
momentos de encontros, pudemos produzir sentido Clot, Y. (2010). Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte:
em relação ao trabalho no hospital, resgatando Sobrefactum.
histórias de corredor, emoções cotidianas, detalhes Dejours, C. (2004). O trabalho como enigma. In S. Lancman
& L. I. Sznelman (Orgs.),   Christophe Dejours: da
que afirmam da escolha de dedicar um corpo à psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (pp. 127-139).
produção de saúde em outro corpo, ainda que pondo Rio de Janeiro: Fiocruz; Brasília: Paralelo 15.
sua saúde em risco. Dejours, C., Dessors, D., & Desriaux, F. (1993). Por um trabalho
fator de equilíbrio. Revista de Administração de Empresas,
A amputação - aqui tão concreta nas limitações 33(3), 98-104.
físicas e restrições ocupacionais - em momento algum Gernet, I. & Dejours, C. (2011). Avaliação do trabalho e
se doou ao poder de agir, ao desejo de transformação reconhecimento. In P. F. Bendassolli & L. A. P. Soboll
que permeou a realização de todos os grupos. Espaços (Orgs.), Clínicas do trabalho: novas perspectivas para a
em que a queixa, dolorosa muitas vezes, cedeu espaço compreensão do trabalho na atualidade (pp. 61-70). São
Paulo: Atlas.
à criação, à invenção. Fonseca, T. M. G. & Barros, M. E. B. (2010). Entre prescrições
Compartilhamos com Silva (1998, p. 33) o quanto e singularizações: o trabalho em vias da criação.  Fractal,
Revista de Psicologia, 22(1), 101-114.
os encontros com trabalhadores hospitalares seguem
Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia,
gerando indagações: “Do ponto de vista destes sujeitos, poder gerencialista e fragmentação social. Aparecida, SP:
quais são os encontros felizes e os acontecimentos Ideias & Letras.
desejados? Destes, quais têm encontrado condições de Hoefel, M. G. L., Bianchessi, D., Santos, A., & Zanette, S.
possibilidade? Sobre quais invisibilidades podemos e (2004). Intervenção interdisciplinar em saúde e trabalho
devemos lançar focos de luz?” no Hospital de Clínicas de Porto Alegre: grupos com
proposta terapêutica para o tratamento de pacientes com
Dentro do hospital, em meio a ruídos, lesões por esforços repetitivos. In Á. R. C. Merlo (Org.),
interrupções, atrasos, saídas antecipadas, estar ali, fez Saúde e trabalho no Rio Grande do Sul: realidade,
pesquisa e intervenção (pp. 191-213). Porto Alegre:
sentido. Apesar da dor. A dor do reabilitado, esta com
UFRGS.
a qual não se sabe lidar, ela não é física. Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991. (1991). Dispõe sobre
os planos de benefícios da Previdência Social e dá outras
O retorno às atividades é o retorno do poder providências. Brasília, DF: Presidência da República.
de agir, de transformar. A amputação é de ordem Maeno, M. & Vilela G., R. A. (2010). Reabilitação profissional
simbólica, quando se perdem os coletivos de trabalho, no Brasil: elementos para a construção de uma política
quando a limitação é sentida individualmente. Quando pública. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 35(121),
uma atividade perde sentido, quando ela passa a 87-99.
Merlo, Á. R. C. (2014). Sofrimento psíquico e atenção à saúde
gerar somente indicadores, em detrimento do prazer,
mental. In Á. R. C. Merlo, C. G. Bottega, & K. V. Perez
da alegria; quando ela é fragmentada, quantificada. (Orgs.), Atenção à saúde mental do trabalhador: sofrimento
Quando uma avaliação é feita sobre a deficiência e não e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho (pp. 12-
sobre a possibilidade de ação, de criação. 29). Porto Alegre: Evangraf.

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Poersch, A. L. & Merlo, A. R. C. (2017). Reabilitação profissional e retorno ao trabalho: uma aposta de intervenção

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e cartografia: melindres e meandros metodológicos. Estudos
e Pesquisas em Psicologia, 10(1). 85-102. Ana Luisa Poersch é psicóloga, mestre pelo Programa
Portaria Interministerial n. 800, de 03 de maio de 2005. (2005). de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional.
Publica o texto base da Minuta de Política Nacional de Linha de pesquisa “Políticas Públicas, Saúde, Trabalho e
Segurança e Saúde do Trabalho e dá outras providências. Produção de Subjetividade” (PPGPSI/UFRGS).
Brasília, DF: Ministérios do Trabalho da Previdência Social Endereço: Rua Luiz Manoel, 133/303, Bairro Santana,
e da Saúde. Porto Alegre/RS. CEP 90040-390.
Ramos, M. Z., Tittoni, J., & Nardi, H. C. (2008). A experiência E-mail: analuisapoersch@yahoo.com.br
de afastamento do trabalho por adoecimento vivenciada
como processo de ruptura ou continuidade nos modos de Álvaro Roberto Crespo Merlo  é médico, professor
viver.  Cadernos de Psicologia Social do Trabalho,  11(2), orientador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
209-221. Social e Institucional. Linha de pesquisa “Políticas
Rocha, M. L. & Aguiar, K. F. (2003). Pesquisa-intervenção e a Públicas, Saúde, Trabalho e Produção de Subjetividade”
produção de novas análises. Psicologia: ciência e profissão, (PPGPSI/UFRGS).
23(4), 64-73. E-mail: merlo@ufrgs.br

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