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Seriam os Deuses Alcalóides?

Alex Polari de Alverga

I. Introdução
Queremos abordar aqui, através da pergunta título da nossa conferência, um
pouco do papel das plantas psicoativas no processo evolucionário da consciência
humana e do seu emprego desde a antigüidade como indutor dos estados
expandidos ou alterados de consciência. Depois nos deteremos mais
detalhadamente na questão da consciência xamânica e da descrição da "miração",
estado particular de experiência mística e êxtase visionário que ocorre sob o efeito
da bebida sacramental enteógena denominada SANTO DAIME (Ayahuasca, Yagé,
Caapi, etc.) e que por suas peculiaridades, parecem ser comum apenas ao relato de
experiências com os compostos triptamínicos. E, finalmente, considerar em que
precisamente a proposta enteógena pode se constituir em um paradigma para uma
nova consciência centrada no verdadeiro Self.
II. Uma Breve Teologia dos Enteógenos
Para buscarmos uma resposta para nossa pergunta devemos retroceder cerca de
três milhões de anos quando o homem, destacando-se dos demais primatas
superiores começava a sua lenta evolução rumo a consciência de si mesmo.
Durante o transcorrer de todo este período, o cérebro triplicou o seu peso mas foi
durante os últimos quinhentos mil anos que se formou o néo-córtex. Podemos
supor a consciência desta época como sendo um imenso Id dominando um lento
embrião do ego em formação. Antroposofícamente falando, as mônadas ou os
princípios espirituais que estavam se encarnando nessa época na Terra,
promovendo a vida e a evolução humana, ainda não estavam suficientemente
ajustados aos corpos físicos desses primeiros seres humanos. Segundo Steiner, eles
teriam uma consciência do plano espiritual e das auras dos seres e objetos do
mundo material, mas não tinham uma percepção nítida e diferenciada dos mesmos.
Isso só veio a acontecer quando houve o acoplamento definitivo entre os corpos
físicos etérico do homem, quando do ambos passaram a coincidir. Nesse momento,
a consciência humana teria deixado de ser uma "consciência de clarividência
nebulosa" para ganhar mais nitidez na apreensão do mundo material.
Nos últimos cem mil anos o processo se acelerou de forma significativa. O
Homo Sapiens tornara-se senhor do planeta e já devia contar com algo próximo de
uma consciência de si mesmo como indivíduo singular da sua espécie e um sistema
rudimentar de comunicação querendo se articular enquanto linguagem. Foi na
última fase deste período, nos últimos trinta mil anos, que uma verdadeira
revolução ocorreu no processo evolutivo. Por essa época, os nossos ancestrais
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caçadores e coletores já tinham uma forma de organização solidária que lhes
garantiam a sobrevivência frente ao ataque dos predadores e os rigores do meio
ambiente. Até hoje, pesquisadores e cientistas buscam uma boa resposta para essa
aceleração evolucionária, que corresponde aos últimos preparativos para que a
humanidade entrasse na cena da história. Alguns autores, entre eles Wasson e
Mckenna, apresentam uma sólida argumentação, que eu também partilho nessa
exposição, de que uma das causas principais da súbita irrupção da auto-consciência
humana teria sido a simbiose do homem com o mundo vegetal e especificamente
com os psicoativos. Essa é a perspectiva poética e visionária que sempre se
apresenta quando "consultamos" a inteligência e a memória que a Mente Vegetal
guarda desses eventos. Por meio dessa tese podemos entender também, o cenário
onde as hordas mais adaptadas desses homídeos onívoros ampliavam de forma
crescente sua dieta e seus conhecimentos sobre as plantas nutritivas, curativas e
psicoativas, o que causou mudanças e respostas cada vez mais rápidas na sua
estrutura neural, estados de consciência e comportamento.
Levi Strauss, comentando a obra de Wasson, analisa o mito da árvore do
conhecimento e a história bíblica de Adão e Eva, comendo o fruto proibido, como
a metáfora do contato do homem com o enteógeno primordial. Em outras palavras,
esse seria o momento da mudança do estado indiferenciado de clarividência
nebulosa para o de auto-consciência lúcida, o que trouxe como conseqüência a sua
expulsão do Éden.
No entanto, foi no final da última glaciação, que ocorreu há uns doze mil anos,
que as condições se tornaram propícias para a difusão da agricultura, domesticação
de animais e pastoreio. A intimidade com o manejo dessa última atividade, trouxe
um contato cada vez mais estreito com os fungos psilocíbicos associados ao
esterco de gado. Floresceram a partir dessa época festas consagradas aos
cogumelos sagrados, como parte dos cultos à fertilidade associados à Grande
Deusa. Vestígios arqueológicos da arte desse período, principalmente a partir do
oitavo milênio a.C., expressam de forma literal ou estilizada, o uso cerimonial dos
fungos em povos e culturas bastantes distantes entre si. O que parece indicar a
importância e a universalidade desses cultos na formação daquilo que M. Eliade
define como as primeiras hierofanias vegetais, uma espécie de pré-religião,
primeira separação que o homem fez de uma "esfera sagrada" em oposição a um
"mundo profano". Certas plantas e árvores, ou a natureza de um modo geral, eram
revestidas de atributos divinos ou mesmo divinizados. Hoje estamos em condição
de afirmar que esta postura não tinha nada de ingênua ou simplória,
correspondendo sim à ação da psilocibina e outros agentes enteógenos e as
conseqüências das visões dela decorrentes nos mitos, símbolos e arquétipos que se
apresentavam à consciência da época. Essas hierofanias vegetais foram portanto,
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cronologicamente, as mais antigas que se tem notícias. O que atesta que, por esse
tempo, no limiar da história conhecida, já havia uma familiaridade com o tema do
sagrado/vegetal, do Deus/Vegetal, que remonta a tempos ainda mais longínquos.
Sem dúvida, este foi um dos principais substratos que mais tarde vieram a formar
os diversos Cultos dos Mistérios da antiguidade e às grande religiões do mundo.
Talvez o caso mais conhecido e também o mais eloqüente seja o do Soma, que
segundo os hinos do Rig-Veda era prensado e mesclado a leite para ser consumido
em rituais e cerimonias dedicados ao Deus Indra. O Soma estava entronizado numa
posição de destaque no Panteão Védico. É mesmo Haoma citado no Zed-Advesta,
escrituras persas atribuídas a Zoroastro. O que nos permite estabelecer sua raiz ária
e considerar que possa ter sido difundido pelas diversas ondas migratórias dos
povos arianos que foram penetrando o Vale do Indo entre o segundo e o primeiro
milênio a.C. É igualmente possível que com o passar do tempo, por dificuldades de
suprimento ou de adaptação do Soma nas novas terras conquistadas, tenha havido
uma planta substituta, já conhecida pelos povos drávidas que habitavam a região e
cuja cultura se mesclou com a dos conquistadores. Já a Ioga e a Filosofia Sankhya
seriam adições posteriores. Suas posturas corporais, métodos respiratórios e
refinamento psicológico, enfatizavam a sadhana, as austeridades e a meditação
como o novo método para alcançar o êxtase, o samadi, estado de consciência onde
o Eu Átmico se funde no oceano de Braman. Experiência que certamente os
antigos riskhis (sábios videntes que receberam a revelação dos Vedas) tiveram,
embriagados pelo Soma.
Essas influência das plantas enteógenas na experiência dos estados místicos
associados a cultos agrários e de fertilidade, podem ser encontrados desde a Ásia,
passando pela Europa, até o extremo do continente sul-americano. O que nos
permite supor que elas foram, desde uma antigüidade ainda mais remota, o agente
acelerador e o detonador desse autêntico "Big Bang" da consciência que ocorreu
nos últimos trinta mil anos. Existe um certo consenso de que as triptaminas tenham
sido esse enteógeno primordial, não só pela reconstrução e suposição histórica,
como também e principalmente por causa da excelência e peculiaridade do êxtase
ou "miração" triptamínica, cujas visões são inigualáveis em florescência,
intensidade, conteúdo e principalmente na capacidade do Eu interagir no interior
dos eventos que fazem parte desse estado de consciência cósmica.
A consagração dos insights das visões como sendo de origem divina, explica a
reverência com que essas plantas eram tratadas. O ego recém conquistado já podia
transcender a si mesmo e travar contato com o Tu e com o Outro. Do respeito que
nasceu do homem, com a fonte ao mesmo tempo vegetal e espiritual que lhe
enviava aquela graça, aquela compreensão dele mesmo e do universo, nasceu a
idéia de religiosidade, de se religar com a sua origem e pátria cósmica. Num certo
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sentido, religião é aquela ânsia de se relacionar corretamente com o Outro
transcendente. Essa foi a aurora da consciência de si mesmo. No momento em que
a consciência humana transcendeu a si mesmo e pode vislumbrar a consciência
cósmica, o relâmpago precipitou-se no abismo e a Coroa do homem iluminou-se!
Por isso os alcalóides, principalmente os triptamínicos, são fortes candidatos a
serem protodeuses. Sob seus auspícios, foi feita a primeira grande conexão entre o
mundo da jovem consciência humana recém desperta e o mundo divino e eterno,
entre o sagrado e o profano. O primeiro ancestral ou herói mítico, de Gilgamesh
até Viracocha, presentes em tantas cosmogonias de culturas tão distantes entre si,
são os ecos e as sombras dos tempos dos titãs. Onde esses semi-Deuses, metade
homem e metade Deus, foram iniciados por instrutores de uma ordem de
consciência superior - vale dizer portanto divinos - a fim de trazerem a luz, o fogo
de Prometeu para repartir com os seus irmãos.
Como a maior evidência arqueológica das contribuições realizadas, quando na
passagem dos "Deuses Alcalóides" pelos labirintos da consciência humana, está a
presença da serotonina, neuro-transmissor cerebral encarregado de estimular os
receptores dos neurônios e que tem praticamente a mesma estrutura molecular da
DMT (dimetil-triptamina) alcalóide presente nas várias plantas enteógenas usadas
pelos homens desde a antigüidade.
Mais maravilhoso ainda é essa oportunidade que a Mente Vegetal ofereceu à
Mente Humana e continua oferecendo ainda hoje na forma da mesma revelação
que foi enviada aos nossos longínquos antepassados. Isso porque, "revelação" é
uma verdade sempre idêntica em si mesma, apesar de poder ser expressa por
símbolos diversos dentro da psique humana. Ela é a mesma visão dos místicos e
iniciados de todas as idades, o que varia é apenas a convicção e o juízo de valor
que tiveram sob o que experimentaram. Isso fica claro, quando constatamos as
semelhanças e pontos comuns dos relatos das experiências de êxtase nas mais
diversas tradições. Se no passado foram considerados bem-aventurados "aqueles
que não viram e creram", maior prazer teremos nós quando pudermos enxergar
tudo aquilo que a nossa fé sempre acreditou !

III - Fronteiras entre o Psíquico e o Espiritual


O cenário onde esta busca da união mística se desenrola é a consciência. A
consciência é uma forma da verdade. Pode ser definida também como um nível de
realidade interior, já que é através dela, que reconhecemos os nossos próprios atos
e sentimentos. Numa outra acepção ela é a testemunha interna, que permite que o
ser possa ser provado através da existência, compreendido pelo conhecimento e
gozado na bem-aventurança.

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A grosso modo, os níveis básicos de consciência são: o de vigília, sono com
sonhos, sono profundo e desperto. Nos deteremos aqui neste quarto estado, que é a
matriz para as formas mais elevadas de consciência e de experiência mística.
Existe uma grande variedade de termos para denominar esses estados místicos:
consciência cósmica, visionária, xamânica, transpessoal, iluminação, auto-
transcendência, consciência objetiva, etc. Ou para usar uma terminologia mais
mística: o êxtase e a graça cristão, o satori zen, o samadi da Jnma Yoga, a fana sufi
e a "miração" da tradição daimista que nos deteremos mais adiante.
Por outro lado, a consciência representa uma espécie de zona mental onde se
percebe as diversas dimensões, mundos e planos da realidade. Seus eventos são de
uma outra ordem de realidade mas sem que, por isso, eles percam sua veracidade.
Na definição do grande místico esotérico-cristão Daskalos, a consciência ou mente
sagrada, pode alcançar desde a percepção tridimensional do mundo material,
passando pelas quatro dimensões do mundo psíquico, até o plano noético que é o
plano dos pensamentos, estreitamente associado ao psíquico. Daí para frente,
existem estados de consciência que apenas podem ser imaginados ou intuídos pela
consciência humana, pois estão além dos "mundos de separação", onde reina o
espírito e os mundos de pura espiritualidade. Podemos portanto dizer que o nível
psico-noético de consciência seja uma zona intermediária, um posto de fronteira,
que delimite de uma maneira tênue as diversas categorias e eventos de ordem
psíquica da experiência e realização espiritual. E que eventos serão esses que
podem ser definidos no horizonte de uma genuína experiência mística?
Comparando-se as descrições bíblicas de Ezequiel, Daniel, os relatos de Plotino,
São Paulo, Rumi, Eckhart, João da Cruz, Kabir, Ramakhrisna, os resultados
recentes das pesquisas feitas com LSD e mescalina e as atuais testemunhos sobre
os estados induzidos de consciência xamânicos, chega-se a coincidências
impressionantes entre o caráter dos estados de consciência alcançados, o que nos
permite traçar um quadro bem completo das principais características do fenômeno
místico. São elas:
 inefabilidade, incapacidade de narrar em palavras os primores
alcançados com toda sua riqueza de visões e sensações;
 caráter irretorquível das verdades vivenciadas, o que pressupõe uma
grande potencialização do dom da intuição;
 sensação de unicidade;
 experiência subjetiva de fusão do Eu no universo;
 transcendência do tempo e do espaço, sensação de emergir
beatificamente no Eterno Agora;
 sensação de profunda positividade frente à vida;

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 reconhecimento da sacralidade do caráter divino da experiência
obtida;
 aumento do poder de concentração e cognição;
 sensação de conforto e estímulo moral para desempenhar as
instruções recebidas;
 insights reveladores e valiosos para o solucionamento de conflitos
internos;
 reverência e humildade frente ao desconhecido, serenidade frente a
aceitação da morte e a compreensão desta como uma transição para uma
vida desmaterializada e de pura consciência;
 predisposições de altruísmo e abnegação;
 visualização da linguagem.
Todas essas referências se encontram combinadas em maior ou menor grau nos
estados alterados de consciência e se constituem em autenticas revelações místicas.
Sejam elas naturais, espontâneas ou induzidas por meio de tambores, mantras ou
enteógenos. Dependendo da intensidade de tais experiências, elas podem alcançar
o seu ápice, que é a sensação de fusão do Eu com o Absoluto, a "unio mistica" por
excelência. Seria ingenuidade supor que uma tal gama de fenômenos, com tantas
repercussões psicológicas, éticas e sociais relevantes, possam ser interpretados
como mera regressão infantil (mesmo que benéfica ao ego), ou o que seria pior, um
tipo de "degenerescência positiva" de um estado psicótico.

IV - Consciência Xamânica e "Miração"


Pode-se dizer que o xamanismo é o sistema de conhecimento espiritual mais
arcaico que se conhece. E que, desde o começo, sua prática sempre esteve
associada ao uso de enteógenos. Além de participar na maior parte de todas essas
sensações, próprias dos demais estados expandidos de consciência, a consciência
xamânica ou o estado de consciência xamânico também tem suas peculiaridades. A
sua própria e já clássica definição como sendo "a arte do êxtase", já pressupõe que
o xamã detém um conhecimento específico de operar no êxtase e esta é a sua maior
arte. Através dela, ele se aproxima de forma consciente até o máximo limiar
possível da aniquilação. É este o vôo do xamã: atingir a realidade além da nossa
percepção usual, mantendo sempre aberta as portas de acesso ao mundo espiritual.
Porém o mais importante que queremos destacar dentro do xamanismo é a
vivência, a mobilidade de atuação do Eu dentro do transe. O Eu se torna o veículo
divino, a carruagem dos cabalistas (Merkabath) que alça vôo em busca dos
palácios celestes. Mas ele não se limita em contemplar seus átrios e fachadas
reluzentes. Ele caminha por seus labirintos, túneis secretos, ele procura conhecer o
que se passa em cada um de seus aposentos e câmaras. Esse é o roteiro da
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"miração", um estado de consciência místico-xamânico, obtido com a ingestão
ritual do Santo Daime, que gostaríamos de nos deter mais minuciosamente.
A "miração" é um termo que foi cunhado na tradição do Santo Daime pelo
Mestre Irineu para designar o estado visionário que a bebida produz. O verbo
"mirar" corresponde a olhar, contemplar. Dele deriva-se o substantivo "mirante",
que é um local alto e isolado onde se pode descortinar uma vasta paisagem. A
palavra "miração" une contemplação mais ação (mira+ação), o que expressa de
maneira clara que o termo foi cunhado por pessoas que eram plenamente
conscientes da viagem do Eu no interior da experiência visionária, característica do
êxtase xamânico. E que é simbolizado pela viagem da águia voando em direção ao
sol. Sem dúvida existe uma grande diferença entre uma iniciação quietista - que
prepara o neófito através do silêncio e da meditação - e a iniciação xamãnica que o
convida para ser protagonista totalmente responsável pelo seu desdobramento
astral e vôo espiritual. Nele, somos convidados a participar de um filme em que as
cenas que se desenrolam na tela, dependem, em última instância, do que está
ocorrendo no interior da nossa consciência. Em outras palavras: só conseguiremos
salvar a donzela do "filme astral" das garras do vilão, se a nossa disposição para
tanto for tão verdadeira como a nossa capacidade de realizá-la. Temos que estar
concentrados no nosso objetivo, mobilizando desde o nosso interior a coragem e a
sabedoria necessária para atravessar as diversas provas do percurso iniciático. Caso
contrário, a "narrativa visionária" sai do nosso controle podendo acontecer um
desfecho negativo e uma interrupção do vôo do Eu rumo ao êxtase.
Estamos querendo dizer que dentro da miração o estado de ação e
contemplação são como as faces complementares de uma mesma moeda. A mente,
antes de dar partida ao fluxo de imagem da miração, experimenta várias outras
fases de preparação. Tem que distinguir a genuína experiência visionária da
imaginação pura e simples, dos jogos mentais de projeção e visualização. As
imagens visionárias, os eventos visionários que envolvem o nosso Eu dentro da
"miração" são de ordem psico-noética, isso é, ocorrências numa ordem de
realidade contígua ao mundo espiritual. O que nos permite afirmar que a "miração"
ativa os nossos corpos sutis e os libera par agir dentro do cenário feérico e
numinoso da realidade xamãnica.
Esse nível de consciência atingido pela "miração" vem quase sempre
acompanhado de uma voz interior que guia, acompanha ou dirige o processo. esta
é, ao meu ver, a faceta mais incomum e maravilhosa da "miração" do Daime.
Durante o seu transcurso nossa consciência participa dos fenômenos psíquicos,
noéticos e espirituais, através dos nossos corpos sutis. Através deles, o nosso Eu
comparece nos momentos decisivos e brevíssimos onde se decide sobre o nosso
destino em meio às vagas probabilidades do mar de indeterminações quânticas.
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Dessa forma, imprimimos movimento ao que é imutável e eterno, manifestamos
vida e fecundamos a matéria por seu intermédio. Ajudamos a tecer a trama do
próprio destino, a complexa textura dos eventos geradores da realidade e da vida.
Isso significa que, no êxtase da "miração", estamos travando um diálogo com
Deus, estamos trabalhando com Ele, estamos sendo convocados para essa grande
responsabilidade de sermos co-criadores do universo. E sem dúvida, só um destino
com tal nobreza justifica o plano da criação divina, as provas da evolução, o
porquê da queda luciférica, a entrada em cena do mal e a nossa tarefa de convertê-
lo e reunificá-lo com a verdade até o final dos tempos. Receber essa missão é o
cerne da Revelação em todos os tempos. Enquanto que o cerne da iniciação é
adquirir a força de vontade suficiente para executar tudo o que foi revelado na
miração.
Anteriormente nos referimos que a falta de mérito e de coragem durante o vôo
xamãnico poderia desestabilizar a "miração", ou o que é pior, fazer com que o fio
narrativo da experiência visionária tenda para um desfecho desfavorável. Nesses
reinos espirituais de deslumbrante beleza, parece que impera uma terrível justiça.
O homem não está programado para ser perfeito. Ele tem que biológica,
psicológica, social, moral e espiritualmente falando, escolher ser perfeito. Isso se
faz através da faca de dois gumes do seu livre arbítrio. Graças a ele, o homem por
um lado supera em estatura os deuses, devas e querubins, enquanto que por outro,
se torna presa fácil da ambivalência de sua frágil inconsistência humana. O
Budismo Tibetano se refere a esta eclosão súbita da ruptura do ego frente ao
sublime, como sendo o momento em que, dentro da meditação, o meditador, sob a
inspiração da Dakini (aspecto feminino do Buda), enfrenta as entidades
terrificantes que se postam diante do Nirvana. Quando o ego consegue se apossar
do Eu, a consciência já expandida se retrai novamente. Nesses momentos, as visões
podem se tornar negativas, até mesmo terrificantes e isso está associado aos efeitos
purgativos e miméticos da bebida enteógena indutora da "miração". Reconhecido
porém o impostor, é a hora da consciência, à semelhança da esfinge, lançar o seu
desafio: Decifra-me ou te devoro! Somos cobrados a apresentar um desempenho
compatível com a nossa presunção de alcançar a imortalidade. Se nessa hora não
tivermos verdade para apresentar, o monstro elemental por nós mesmo criado, nos
come. O Poder nos cobra sempre a nossa transformação para podermos continuar
no caminho. Pois sem a verdade no ser, o caminho se torna perigoso para o
impostor.
É o que Sebastião Mota, um dos principais "padrinhos" do Daime chama da
necessidade de "ser em vez de parecer". Ser verdadeiro é pois a ciência para
entramos totalmente seguros nos estados elevados de consciência e deles
conseguirmos sair, trazendo no retorno novas aquisições para continuarmos a
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Busca. Nos níveis sutis, a verdade atrai a verdade. O ser manifestado enquanto
verdade é a matéria prima da criação. Quanto mais estamos na verdade, mais se
apresenta a nós na miração aquilo que precisamos ser. E Deus nos usa como peças
do seu quebra-cabeças divino, nos inspira amor e nos torna cúmplices da sua obra.
A verdade do ser é exata, nela nada falta nem sobra. Não há lugar para
condicionamentos mentais, hábitos viciosos disfarçados de caráter, máscaras ou
papéis sociais. Se o nosso coração nos acusa, é porque não temos verdade. E
sempre que esta falta de verdade interromper a nossa "miração", desestabilizando-
a, devemos aproveitar o seu momento sagrado para pedir ao Poder que nos
conceda a chance de nossa transformação. O sofrimento e o desconforto, que às
vezes essa disciplina nos acarreta, depois sempre é sentida como benéfica. Eis a
autêntica terapia xamânica, uma terapia de conversão à verdade, onde nos
afastamos das ilusões e das samsaras nos tornando cada vez mais conscientes do
nobre script que Deus nos reservou.
Tentamos aqui, violando o item da inefabilidade da experiência mística,
expressar de alguma maneira com as palavras, essa sensação extraordinária que é
trabalharmos projetados em nossos corpos sutis nas oficinas seráficas da criação
divina. Isso ocorre, como já vimos, mediante à atuação do Eu Superior no interior
das imagens visionárias, como se a "miração" fosse um jogo interativo de
"realidade virtual espiritual". Para que esse processo traga benefícios que possam
ser incorporados ao ser, exige-se deste uma postura passiva-receptiva e um padrão
mental positivo e elevado. Dessa forma é que a barquinha da consciência pode
navegar nas ondas do mar sagrado, que é a Mente, e se manter com as velas
enfunadas em meio ao mau tempo e aos maus pensamentos.
Para finalizar esse ponto, gostaríamos de nos referir sucintamente a duas
questões conexas à nossa abordagem de estado de consciência xamânico da
"miração". Trata-se do carma e da mediunidade, aspectos ligados ao tema da cura
xamânica. Num certo sentido, a cura espiritual já é a própria imersão do Eu nesses
estados elevados de consciência, fazendo com que ele amplie a sua visão interna
sobre as causas dos desequilíbrios que geram as doenças. Nessas vivências
visionárias do Eu no interior da "miração" também ocorre dele se lembrar de fatos
relativos às suas vidas passadas, facilitando a compreensão de padrões cármicos
que precisam ser interrompidos nessa encarnação.
Já o fenômeno da mediunidade, não se resume apenas ao transe e à
incorporação. Num outro sentido, ele trata também da miríades de pequenos "eus"
que orbitam em torno do nosso Eu central. E que à primeira distração nossa,
entram por dentro da casa e assumem o lugar do dono. Em alguns estágios da
"miração" podemos perceber esses "eus" como seres. Podemos perceber que cada
pensamento que flui na nossa mente é um ser e com isso, aprendemos a melhor
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ajustar o nosso dial mediúnico para captar apenas a freqüência dos seres que nos
interessam. Mas nem sempre podemos escolher o que chega à nossa mente.
Portanto esse canal mediúnico também nos ajuda a auto-doutrinar os maus
pensamentos e afastar as más influências psíquicas e espirituais que podem se
tornar nossos futuros obsessores.
Tentamos expressar um pouco o nosso entendimento da "miração"
compreendido como um estado de percepção mística que guarda várias
semelhanças com aquilo que denominamos consciência cósmica. Escolhemos um
aspecto da "miração", a saber o da relação interativa do Eu com as visões,
característica da tradição xamânica. Isso porque, a "miração" é ao mesmo tempo
uma realidade visionária em movimento e um estado de contemplação extático. À
maneira do samadi, comporta vários estágios, graus e possibilidades de realização.
Apresenta planos e panoramas imensos e às vezes passa tempo trabalhando apenas
alguns fotogramas. Sua meta suprema é a realização do Eu superior do homem.
Apesar da ajuda inestimável das plantas sagradas para a sua consecução, o trabalho
espiritual da "miração" nunca termina. Continua no dia-a-dia através do esforço de
se manter coerente com os seus ensinos.
Algumas vezes, através da "miração", temos uma percepção clara da realidade
espiritual da vida além do corpo. Penetramos assim no mistério que a nossa
ignorância chama de morte, mas que não passa de uma transição para um outro
estado de consciência. Voltar dessa experiência da "morte" com conhecimento do
que isso seja, significa ter renascido e recebido o mais alto grau de iniciação,
independente do credo que cada um professe.
Por isso consagramos o ser divino presente nessas plantas amigas e professoras
do homem e a "miração" que ela nos fornece. Mesmo que o seu uso responsável
seja sempre benéfico, é porém dentro de um contexto ritual e religioso, que
sentimos uma maior segurança para a utilização profilática e terapêutica dos
enteógenos.

V. O Contexto Ritual da Miração


No movimento religioso do Santo Daime existem diversas modalidades de
ritual: concentração, cura, feitio da bebida, estudo e desenvolvimento mediúnico e
as festas dos hinários, que é a forma que nos deteremos mais aqui.
No hinário, dentro de um amplo salão na forma de uma estrela de seis pontas,
se perfilam os batalhões masculino e feminino, e dos rapazes e das moças, cada um
com seu setor de base. Os neófitos, idosos, senhoras e crianças, ficam sentados
mais ao fundo. O sacramento enteógeno é distribuído, todos entram em fila e
começa o bailado ao som dos hinos, que são cantos que os mestres e outros
membros mais avançados da irmandade recebem por ocasião da miração, sendo
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desta forma considerados ensinos divinos, mensagens do poder do Daime para
todos e não apenas para quem o recebeu. Todos cantam e bailam dentro de um
retângulo de aproximadamente 80 cm. de comprimento. Cada um porta um maracá
para acompanhar o ritmo do bailado. A perfeição do trabalho está na harmonia da
música, no ritmo e no canto. A jornada começa no entardecer da data marcada e
vai até o nascer do dia da manhã seguinte. Todo este dispositivo, predispõe seus
participantes a terem uma atitude receptiva e segura em relação aos efeitos da
bebida sacramental. Isto ocorre poucos minutos após sua ingestão. A consciência
passa a perceber pessoas e objetos como portadoras de uma aura de leve
irridescência. Logo depois sentimos uma pressão, o pulsar da energia dentro e fora
do corpo, propagando-se em ondas concêntricas como uma pedra lançada na
superfície de um lago. É a chegada daquilo que chamamos "Força", a propriedade
ativa do cipó, componente masculino da bebida cerimonial. O bailado e o ritmo
dos maracás condensam cada vez mais energia, se constituindo também em
indutores auxiliares do transe xamânico. É nesse ponto que a luz costuma chegar.
A luz, o princípio feminino da folha, quando se casa com a força, o princípio
masculino do cipó, gera a miração. Espoucam luzes, ouvimos zumbidos eletrônicos
e o barulho de matracas. Suavemente ela se instala e nos transporta para o reino
das visões. Progressivamente o nível de consciência se eleva para patamares mais
elevados, tanto individual como grupalmente. Esse reservatório comum de energia
psíquica e espiritual, denominamos de "corrente", que é quem sustenta o vôo
individual de cada um na miração e a beleza do conjunto. Quando isso ocorre,
nosso campo visual se altera, aparecem luzes, imagens, sensações, lembranças,
insights e visões. A intensidade do momento interior da viagem de cada um se
expressa na força da corrente. Qualquer piscar de olhos altera o fluxo das imagens.
É como se em nossa mente, um diafragma regulasse a entrada da luz e um zoom
nos aproximasse dos ângulos mais desconhecidos do universo.
Dependendo do desenrolar do ritual, a corrente facilita ou dificulta a miração,
sendo possível em determinados momentos, uma vivência coletiva da mesma
visão, o que se constitui o ponto culminante do trabalho. Durante esse longo
percurso, o eu se desdobra no astral, evoca e soluciona alguma situação cármica
pendente, canaliza a energia para realizar uma cura nele mesmo ou em outro,
obtém insights reveladores e libertadores para seus conflitos e é tomado por toda
sorte de inefáveis estados de percepção mística, compreensão do universo, amor
pelos seus irmãos, premonições e sincronicidades. Ao final de todos esses estágios,
encontra-se sempre aberto à possibilidade do êxtase total e beatífico. Tudo isso, é
bom que se diga, se processa em íntima conexão com a música, o canto, a dança e
o ritmo dos maracás. A barquinha singra as ondas do mar sagrado da mente
embalada pelo hinos que guiam a nossa travessia. Durante esta, os hinos tem o
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poder de responder a todas as questões que a nossa consciência coloca no exato
momento em que elas são formuladas.

VI. Conclusões
A tese que desenvolvemos no decorrer dessa nossa exposição é que a nossa
consciência humana talvez deva muito mais ao contato dos nossos ancestrais com
as plantas enteógenas do que podemos supor. Dessa simbiose com a Inteligência
Cósmica da Mente Vegetal o homem firmou seu ego e arriscou ir ainda mais longe
em busca de si mesmo. Do resultado dessa procura, ele chegou em Deus e na
Consciência Cósmica, criou a religião.
Falamos também um pouco sobre os estados místicos e nos detivemos na
miração, essa pequena jóia incrustada na consciência xamânica.
Agora só nos resta concluir dizendo que acreditamos cada vez mais no valor
das experiências místicas obtidas por meio dos sacramentos enteógenos. Motivo
pelo qual, fenômenos com a Igreja Nativa do Peiote nos Estados Unidos, a religião
Bwiti na África Central e culto do Ayahuasca e do Santo Daime no Brasil devem
ser objeto do maior respeito. Nessas autênticas religiões enteógenas o fiel
comprova pela própria experiência o fundamento da sua fé, unindo seu
crescimento interior com a sua responsabilidade social.
Também queremos destacar a importância da continuidade deste rico diálogo
em torno da consciência, unindo pesquisadores, homens da ciência, psicoterapeutas
e diversas correntes místicas. Essa união veio a preencher um vácuo depois que as
últimas gerações viram naufragar as esperanças depositadas nas soluções marxista
e freudiana, incapazes de solucionar totalmente o enigma da consciência humana.
Isso porque, o marxismo confiou demasiadamente na suposição de que a
consciência seria uma mera introjeção das relações sociais, bastando promover
uma ordem social mais justa para gerar um estado de consciência mais elevado. Já
a psicanálise freudiana falhou porque superestimou o papel que a liberação da
sexualidade poderia trazer para a humanidade, e que terminou se limitando a cura
de uns tantos casos de histeria e neurose no contexto da sociedade ocidental.
Destronados a libido e a luta de classes do papel de força motriz da história, só
restaria os chips de computadores demonstrarem sua ineficácia em promover a
felicidade humana para que a consciência assuma essa papel que sempre foi e será
seu. Pois ela continua sendo, ainda hoje, o palco de eventos que repercutem em
todo o Universo.
Por tudo isso, é auspicioso constatar que a cada dia aumenta mais o número de
pessoas que tem acesso a níveis de consciência mística, muitas delas através das
tradições xamânicas e dos cultos enteógenos. O que sugere que a chamada
"Reforma Enteógena" possa se tornar uma autêntica "Revolução Enteógena" no
http://www.aguiadourada.org
decorrer dos próximos anos. Revolução, é bom que se entenda, não no sentido de
um extravasar de energias socialmente ameaçadoras, senão como uma autêntica
revolução interior e que deverá trazer influências regeneradoras para todo o
planeta.
Se a evolução humana continua seguindo o seu curso, como acreditamos, a
conquista desses níveis mais elevados de consciência podem prefigurar as novas
faculdades que serão incorporadas à consciência humana dos próximos tempos.
A miração e o processo de trabalho interior que ela desencadeia na psique e no
espírito humano é uma das ferramentas dessa evolução. Além de ser uma técnica,
um caminho para o sagrado, é um atalho para o conhecimento.
É bom lembrar, que os atalhos são necessários quando temos que cobrir uma
grande distância e o tempo que dispomos é curto.
Muito Obrigado
Manaus, 18 de maio de 1996

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