Ensinando a transgredir: a Aceitando a profissão de professora como
destino, hooks se atormentava com a realidade educação como prática da das salas de aula, espaços geralmente usados liberdade para a execução de rituais de controle cuja essência era o exercício injusto do poder. As alunas HOOKS, bell. provenientes de grupos marginalizados eram WMF Martins Fontes, 2013. 283 p. levadas a sentir que não estavam lá para aprender, mas para provar que eram iguais às brancas. Por isso mesmo, a obra de hooks reflete sua preocupação permanente com o processo Bell hooks é professora de inglês, estudos de descolonização na medida em que afeta as afro-americanos e estudos da mulher no City afro-americanas que vivem dentro da cultura da College de Nova York, escritora e feminista negra. supremacia branca nos Estados Unidos. Suas Nascida na zona rural do sul dos Estados Unidos, práticas pedagógicas nascem da interação entre na época da segregação racial, ela conta que, as pedagogias anticolonialista, crítica e feminista, nesse período, as meninas negras das classes o que lhe permite questionar as parcialidades trabalhadoras tinham três opções de carreira: que reforçam os sistemas de dominação. casar, trabalhar como empregada ou tornar-se Toda essa discussão pode ser verificada pela professora em uma escola. Para as negras 1, leitura dos 14 ensaios de seu livro. Eles se propõem lecionar era um ato fundamentalmente político, a atuar como uma intervenção contrapondo-se pois tinha raízes na luta antirracista. Aluna de à desvalorização da atividade das professoras. escolas negras segregadas, suas professoras São ensaios de celebração por transmitirem a eram quase todas mulheres. Elas lhe ensinaram, alegria que hooks sente ao dar aulas. Eles se desde cedo, que estudar era um ato contra- preocupam em repensar as práticas de ensino, hegemônico, um modo de resistir às estratégias refletindo sua experiência em discussões críticas brancas de colonização racista. Para realizar um com alunas e professoras que participaram de trabalho dessa envergadura, procuravam suas aulas, nas quais são abordados temas como conhecer tudo o que dissesse respeito à vida de racismo, sexismo, imperialismo, classe social, suas alunas (condições socioeconômicas, igreja experiência, feminismos, eros e erotismo no que frequentavam, como era a casa onde mora- processo pedagógico. A educação como práti- vam, como as famílias as tratavam). No entanto, ca da liberdade é um jeito de ensinar que qual- com a integração racial, tudo mudou: o conhe- quer uma pode aprender. Inspirada no educador cimento passou a se resumir à pura informação, brasileiro Paulo Freire e no monge budista viet- não tendo nenhuma relação com o modo namita Thich Nhat Hanh, ela entende que como se vivia. Ele não tinha ligações também professoras e alunas devem ser vistas em sua com a luta antirracista. Ali, a ânsia de aprender integralidade. Profundamente tocada pela obra era vista como uma espécie de ameaça à de Freire, ela conta que tê-lo lido inspirou-a a autoridade branca. Ao assistir aulas de professoras desafiar a educação bancária, a informação brancas, hooks notou que elas reforçavam os como consumo e a ênfase na memorização. estereótipos racistas, fazendo-a perder o gosto Além disso, hooks sentiu-se fortemente identificada pela escola. Ela lembra-se como sentiu-se com as camponesas marginalizadas e com as desprivilegiada com a dessegregação da escola negras de Guiné-Bissau trazidas por ele. Vinda de em sua adolescência e de como o apartheid uma área rural, sentiu-se intimamente ligada à continuava existindo na maioria dos espaços vida delas e sua relação com a alfabetização, já sociais desse lugar. A partir disso, passou a dife- que a impiedosa política segregacionista do sul renciar dois tipos de educação: a educação impedia as negras de lerem e escreverem, engajada, que tinha como pressuposto a prática fazendo-as depender de pessoas racistas para da liberdade, e a educação que se preocupava, ensiná-las. Freire matou a sede de hooks, sua unicamente, em reforçar a dominação. Ao iniciar grande carência enquanto sujeita colonizada, a graduação na Universidade Stanford, foi refor- marginalizada e que não tinha certeza de como çada a ideia de que era necessário aprender a se libertar, além de fazê-la compreender as obedecer às autoridades. limitações do tipo de educação que havia
recebido como aluna. Criticando a teoria femi- tradicional de busca pela verdade, a partir de nista, que, em seu início, incluía apenas as mulhe- suas parcialidades, sustenta a supremacia branca, res brancas de classe mais privilegiada, hooks o imperialismo, o sexismo e o racismo, distorcen- afirma que a obra do educador a incluiu muito do a educação a tal ponto que esta deixou de mais do que a produção feminista, que, em sua ser uma prática emancipatória. Quanto às maioria, não acolhia as experiências das mu- discussões sobre multiculturalismo introduzidas lheres negras e o fato de que o gênero é profun- nesse ambiente, se, por um lado, acenam com damente conectado com questões de classe a esperança de uma vivência democrática no social e raça. A intersecção do pensamento dele espaço educacional, por outro, mostram profes- com a pedagogia trazida pelas professoras soras temerosas de perderem o controle em sala negras de sua infância causou um profundo de aula. Em sua universidade, hooks observou a impacto em sua formação. terrível dificuldade que elas tiveram para com- Quando começou a lecionar na gradua- preender que o reconhecimento das diferenças, ção, o primeiro paradigma que moldou sua muitas vezes, pode exigir mudanças na própria pedagogia foi o de que aprender deve ser um estrutura das aulas. O tratamento das diferenças processo prazeroso. Para criar um processo de obrigava-as a lidarem com antagonismos para aprendizagem empolgante, é necessário que a os quais não se encontravam preparadas. Dessa presença de todas seja reconhecida. A profes- forma, muitas das que haviam abraçado essa sora, nesse caso, não é a responsável exclusiva causa acabaram recuando. Isso porque, ainda pela dinâmica da sala, que deve ser vista como que o multiculturalismo esteja em foco, são um espaço comunitário de aprendizado. Do poucas as discussões sobre como ele deve ser ponto de vista da pedagogia engajada, as profes- levado no contexto da aula. Mas, para honrar a soras têm compromisso de lutar contra cisões realidade social e a experiência de grupos não entre mente e corpo e sua consequente compar- brancos e marginalizados, as professoras de timentalização, bem como com rupturas entre todos os níveis de ensino devem reconhecer que os distintos campos produtores de conhecimento. a universalidade de suas teorias e posiciona- Professoras e alunas devem compartilhar suas mentos precisa ser colocada à prova. Os temas narrativas conjuntamente, sendo que as primeiras podem ser abordados de inúmeras maneiras, precisam correr o risco de ligar suas narrativas não existindo uma única fórmula absoluta para confessionais às produções teóricas, mostrando todos. de que modo a experiência pode iluminar a O medo das professoras deve ser levado compreensão do material acadêmico. em consideração nos momentos de formação, A experiência é um elemento que auxilia assim como a criação de estratégias para na recuperação das vozes daqueles grupos de abordar a sala de aula e o currículo multiculturais. alunas que as têm silenciadas em sala de aula. Para tanto, é necessário ter disposição para Sua estratégia pedagógica é afirmar a existência abordar o ensino a partir de um ponto de vista dessas alunas, seu direito de falar de múltiplas que inclua uma consciência de raça, sexo e maneiras. Ela considera que todas levam para a classe social, fazendo da sala um espaço de sala de aula um conhecimento que vem da reflexão desses temas, associando-os com a experiência, e esta deva ser apresentada como disciplina oferecida. A adoção do multiculturalis- um modo de conhecer que coexiste com outras mo obriga as professoras a centrarem sua formas de conhecimento, sem hierarquias. A atenção na voz, respondendo a questões como: articulação entre teoria e prática e dessas com quem fala? quem ouve? por quê? Num contexto a experiência permite o engajamento na luta multicultural, elas são convidadas a aceitar a feminista. A experiência é criada a partir da dor, aprendizagem de novos paradigmas e epistemo- da luta e da exposição de algumas feridas e logias e sustentar o desconforto que isso pode serve para guiar as jornadas teóricas. Com isso, gerar naquelas que estão envolvidas no processo hooks busca desconstruir o conceito de voz de aprendizagem. A perspectiva multicultural privilegiada da autoridade. Seu convite é para obriga-as a reconhecer as estreitas fronteiras que que sejam questionadas as práticas pedagó- moldam o modo como o conhecimento é par- gicas usadas em sala de aula, as parcialidades tilhado. Leva-as a reconhecer sua cumplicidade impostas por pontos de vistas essencialistas, que na aceitação de todos os tipos de preconceitos não levam em consideração as construções e as incita a usar o conflito provocado pelas históricas ao lado de perspectivas que insistem diferenças como catalisador de novos modos que a experiência não tem vez nesses espaços. de pensar. A própria universidade, em seu papel Preocupada em fazer chegar suas teoriza-
ções para um público amplo, hooks defende livro traduzido em nossa língua. É hora, portanto, que uma escrita acessível é uma escolha política de formar nossa própria opinião sobre ela! que possibilita que todas possam se responsabilizar Nota por projetos que levem em conta a quebra de 1 Optei por adotar o feminino como referência em todo o paradigmas. O fato de não usar uma escrita estri- texto para referir-me a mulheres e homens. tamente acadêmica, muitas vezes lhe rendeu críticas. Mas hooks está acostumada a ocupar Érika Oliveira as margens e não se intimida. Esse é o seu primeiro Universidade Federal de São Paulo