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100 anos da Revolução Russa

Subsídios para o estudo

Apresentação
A revolução de outubro é um dos momentos da história mais temidos pelas classes
dominantes e mais desconhecidos pelas classes exploradas. A guerra fria tratou de tentar
ofuscar essa história e após a queda do muro todo estudo sobre o tema é a partir de uma visão
resignada e absolutamente comprometida com a desconstrução de uma das mais brilhantes
construções humandas. Os acontecimentos, planos de ação, movimentos táticos, leituras da
conjuntura, alianças, política de massas etc foram resumidas a quase nada.
O triunfo de outubro de 1917 marcou profundamente o pensamento revolucionário. A
afirmação de que o centro de uma revolução é a combinação de força social de massas, projeto
de sociedade e política centrada na tomada do poder se converteu em uma máxima. Todas as
revoluções triunfantes combinaram essa tríade.
As lutas por reformas (econômicas) são o caminho para construir força social e educar
as massas para a ação, a compreensão das condições de opressão e exploração, etc
combinadas com a construção de um “estado maior” para conduzir o processo quando da
agudização das contradições e crise. Lenin destaca esse momento como “crise revolucionária”.
Temos aqui um vasto material para estudo. Textos da época e de alguns analistas estão
nesse compilado.
Bom estudo a tod@s!

Ronaldo T Pagotto – ronaldopagotto@yahoo.com.br


Agosto de 2017

1
Filmes
- Outubro
(http://www.youtube.com/watch?v=SJBNkh5xJvY)
Clássico de Sergei Eisenstein, filmado em 1929 e que buscou
reproduzir os dias mais quentes da Revolução.

- Dez dias que abalaram o mundo


(https://www.youtube.com/watch?v=DElBabNkhbU)
Baseado no livro 'Dez dias que abalaram o mundo' de John Reed. Com
imagens dos diretores Sergei Eisenstein y Grigori Aleksandrov e muitas
imagens da época.

- Eles se atreveram - A Revolução Russa de 1917


(http://www.youtube.com/watch?v=OTHsAeo66a0)
"Eles se atreveram" relata os feitos revolucionários tomando seu
nome das célebres palavras de Rosa Luxemburgo em defesa da Revolução
Russa: "Não se trata desta ou daquela questão secundária sobre táticas, mas
da capacidade de ação do proletariado, sua força para atuar, da vontade de
poder do socialismo como tal. Neste sentido, Lênin, Trotsky e seus
companheiros foram os primeiros a dar o exemplo ao proletariado mundial.
São ainda os únicos que até agora podem gritar: 'eu me atrevi!'."

- Encouraçado Potenkin
(http://www.youtube.com/watch?v=3i9FkLOac9s)
Obra prima do Sergei Eisenstein. Trata das tensões e antecedentes da
revolução de 1905.

- Do Czar a Lênin
(http://www.youtube.com/watch?v=_YOG6aiSl8k)
Cine Soviético.
Legendas em português.

- Requiem para Lenin ou As três canções para Lenin


Direção de Dziga VERTOV, (1934)
(http://www.youtube.com/watch?v=WFuvUO1riIM)

- O Fim de São Petersburgo


(1927) de Vsevolod Pudovkin
(http://www.youtube.com/watch?v=fYn8zapB5c4)
2
- Guerra E Paz (War And Peace)
(1956). Dir. King Vidor
(https://www.youtube.com/watch?v=v9YzZFCf-t8)

- Rasputin
(1996). Dir. Uli Edel
(https://www.youtube.com/watch?v=zC_5ROBX3H0)

- Reds
Filme baseado no livro do Jonh Reed. Direção de Warren Beatty
(não encontrei na net).

- Doutor Givago
Filme crítico, mas muito bom. Não achei na NET

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Materiais em ordem cronológica.

A. TEXTOS DO LENIN
Pós revolução de 1905
1. O Começo da Revolução na Rússia - 1905
2. As Lições da Revolução - 1910

Entre a revolução de fevereiro e a de outubro de 1917


3. Cartas de Longe
4. Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução
5. As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução
6. Sobre a Dualidade de Poderes
7. Resolução Sobre os Sovietes de Deputados Operários e Soldados
8. I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia
9. A Propósito das Palavras de Ordem
10. Onde Está o Poder e Onde Está a Contra-Revolução
11. Três Crises
12. Os Bolcheviques Devem Tomar o Poder
13. O Marxismo e a Insurreição
14. A Revolução Russa e a Guerra Civil
15. Reunião do Comité Central do POSDR (b) 10 (23) de Outubro de 1917
16. Conservarão os Bolcheviques o Poder de Estado?
17. Conselhos de um Ausente
18. Carta aos Camaradas – 16 de outubro de 1917 (TEXTO SUGERIDO E NÃO ENCONTRADO EM
FORMATO DIGITAL) – disp. Livro “As portas da Revolução” do Slavoj Sizek
19. Carta ao Comité Central do POSDR(b)
20. Carta aos Membros do CC

Pós tomada do poder – dez 1917 a 1923


21. Teses Sobre a Assembleia Constituinte
22. Discursos Sobre a Guerra e a Paz na Reunião do CC do POSDR(b)
23. Posição do CC do POSDR (Bolchevique) na Questão da Paz Separada e Anexionista
24. As Tarefas Imediatas do Poder Soviético
25. Seis Teses acerca das Tarefas Imediatas do Poder Soviético
26. Uma Grande Iniciativa
27. Acerca do Infantilismo "de Esquerda" e do Espírito Pequeno-Burguês
28. Para o Quarto Aniversário da Revolução de Outubro
29. Carta ao Congresso (Testamento Político de Lenin)
30. Sobre a Nossa Revolução (A Propósito das Notas de N. Sukhánov)

B. TEXTOS DA ROSA LUXEMBURG


31. A Revolução Russa

C. TEXTOS DO GRAMSCI
32. Notas Sobre a Revolução Russa
33. A Revolução Contra o Capital
34. Os Maximalistas Russos
35. A Utopia Russa

D. TEXTO DE ASTROJILDO PEREIRA


36. Notas Sobre a Revolução Russa (anexo)
4
E. TEXTO DE KIVA MAIDANIK
37. Depois de Outubro (anexo)

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O Começo da Revolução na Rússia
V. I. Lénine

25 (12) de Janeiro de 1905

Na Rússia estão a dar-se grandiosos acontecimentos históricos. O proletariado ergueu-se contra o


tsarismo. O proletariado foi levado à insurreição pelo governo. Agora dificilmente são possíveis dúvidas de que
o governo, deliberadamente, deixou que se desenvolvesse com relativa liberdade o movimento grevista e se
iniciasse uma ampla manifestação com o desejo de levar as coisas até ao emprego da força armada. E levou-as!
Milhares de mortos e feridos — tal é o balanço do domingo sangrento de 9 de Janeiro em Petersburgo1. A tropa
venceu os operários, as mulheres e as crianças desarmados. A tropa venceu o inimigo, metralhando os
operários que jaziam por terra. «Demos-lhes uma boa lição!» —dizem agora com incrível cinismo os servidores
do tsar e os seus lacaios europeus da burguesia conservadora.
Sim, a lição foi grande! O proletariado russo não esquecerá esta lição. As camadas menos preparadas e
mais atrasadas da classe operária, que acreditavam ingenuamente no tsar e desejavam com sinceridade
entregar pacificamente «ao próprio tsar» as reivindicações do martirizado povo, todas elas receberam uma
lição da força militar dirigida pelo tsar ou pelo tio do tsar, o grão-duque Vladímir.
A classe operária recebeu uma grande lição de guerra civil; a educação revolucionária do proletariado
avançou num dia como não poderia avançar em meses e anos de vida cinzenta, enfadonha e oprimida. A palavra
de ordem do heróico proletariado de Petersburgo «morte ou liberdade!» ecoa agora em toda a Rússia. Os
acontecimentos desenrolam-se com uma rapidez surpreendente. A greve geral em Petersburgo cresce. Toda a
vida industrial, social e política está paralisada. Na segunda-feira 10 de Janeiro, os choques entre os operários e
a tropa tornam-se mais encarniçados. Contrariamente aos enganosos comunicados governamentais, o sangue
corre em muitas e muitas partes da capital. Erguem-se os operários de Kólpino. O proletariado arma-se e arma
o povo. Os operários apoderam-se, segundo se diz, do depósito de armas de Sestroretsk. Os operários munem-
se de revólveres, forjam armas das suas próprias ferramentas, conseguem bombas para a desesperada luta pela
liberdade. A greve geral estende-se às províncias. Em Moscovo, 10 000 pessoas já abandonaram o trabalho. Está
marcada para amanhã (quinta-feira 13 de Janeiro) a greve geral em Moscovo. Rebentou uma revolta em Riga.
Manifestam-se os operários de Lodz, prepara-se a insurreição de Varsóvia e realizam-se manifestações do
proletariado em Helsingfors. Em Bakú, Odessa, Kíev, Khárkov, Kovno e Vilno cresce a efervescência entre os
operários e amplia-se a greve. Em Sebastopol ardem os depósitos e o arsenal do departamento da marinha, e a
tropa nega-se a abrir fogo contra os marinheiros sublevados. Greve em Revel e em Sarátov. Choque armado
entre a tropa e os operários e reservistas em Radom.
A revolução estende-se. O governo começa já a perder a cabeça. Da política de repressão sangrenta
tenta passar a concessões económicas e escapar-se com a esmola ou a promessa da jornada de trabalho de nove
horas. Mas a lição do sangrento dia não poderá ser em vão. A reivindicação dos operários insurrectos de
Petersburgo — a imediata convocação da Assembleia Constituinte eleita por sufrágio universal, directo, igual e
secreto — deve tornar-se a reivindicação de todos os operários em greve. Derrubamento imediato do governo
— tal é a palavra de ordem com a qual mesmo os operários de Petersburgo que acreditavam no tsar
responderam à carnificina de 9 de Janeiro pela boca do seu dirigente, o sacerdote Gueórgui Gapone, que, depois
deste dia sangrento, disse: «Já não temos tsar. Um rio de sangue separa o tsar do povo. Viva a luta pela
liberdade!»
Viva o proletariado revolucionário! — dizemos nós. A greve geral ergue e mobiliza massas cada vez
mais amplas da classe operária e dos pobres das cidades. Armar o povo converte-se numa das tarefas imediatas
deste momento revolucionário.
Só o povo armado pode ser um verdadeiro baluarte da liberdade popular. E quanto mais depressa o
proletariado conseguir armar-se, quanto mais tempo se mantiver na sua posição de combate de grevista
revolucionário, tanto mais depressa a tropa vacilará e tanto maior será o número de soldados que
compreenderão, por fim, o que estão a fazer, que passarão para o lado do povo contra os verdugos, contra o
tirano, contra os assassinos dos operários desarmados, das suas mulheres e dos seus filhos. Qualquer que seja o
desenlace da actual insurreição no próprio Petersburgo, em todos os casos ela tornar-se-á inevitável e
inelutavelmente o primeiro degrau para uma insurreição ainda mais ampla, mais consciente e mais preparada.
1
Em 9 de Janeiro de 1905 foi metralhada por ordem do tsar uma manifestação pacífica dos operários de Petersburgo,
que, encabeçados pelo padre Gapone, se dirigiam para o Palácio de Inverno para entregar uma petição ao tsar. Em resposta a
esta selvática acção repressiva contra operários desarmados, em toda a Rússia rebentaram greves políticas de massas e
manifestações sob a palavra de ordem de «Abaixo a autocracia!». Os acontecimentos de 9 de janeiro deram início à revolução
de 1905-1907.
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O governo conseguirá talvez adiar a hora do ajuste de contas, mas o adiamento apenas tornará ainda mais
grandioso o passo seguinte da ofensiva revolucionária. O adiamento só servirá à social-democracia para unir as
fileiras dos combatentes organizados e para difundir notícias sobre a iniciativa dos operários de Petersburgo. O
proletariado aderirá à luta, abandonando as fábricas e as empresas e preparando o seu próprio armamento.
Entre os pobres das cidades, entre os milhões de camponeses espalhar-se-ão cada vez mais amplamente as
palavras de ordem de luta pela liberdade. Formar-se-ão comités revolucionários em cada fábrica, em cada
bairro da cidade e aldeia importante. O povo insurrecto lançar-se-á ao derrubamento de todas e quaisquer
instituições governamentais da autocracia tsarista, proclamando a convocação imediata da assembleia
constituinte.
O armamento imediato dos operários e de todos os cidadãos em geral, a preparação e organização das
forças revolucionárias para a liquidação das autoridades e instituições governamentais — esta é a base prática
sobre a qual podem e devem unir-se todos os revolucionários sem distinções para o golpe comum. O
proletariado deve seguir sempre o seu caminho independente, sem enfraquecer a sua ligação com o partido
social-democrata e tendo presentes os seus grandes objectivos finais, a libertação da humanidade inteira de
toda a exploração. Mas esta independência do partido proletário social-democrata nunca nos poderá levar ao
esquecimento da importância da arremetida revolucionária comum no momento da actual revolução. Nós,
sociais-democratas, podemos e devemos marchar independentemente dos revolucionários da democracia
burguesa, guardando a independência de classe do proletariado, mas devemos marchar ombro com ombro
durante a insurreição, ao desferir golpes directos ao tsarismo, ao fazer frente à tropa, ao assaltar as bastilhas do
inimigo maldito de todo o povo russo.
O proletariado do mundo inteiro volta agora os seus olhos com febril impaciência para o proletariado
de toda a Rússia. O derrubamento do tsarismo na Rússia, iniciado heroicamente pela nossa classe operária, será
um ponto de viragem na história de todos os países, tornará mais leve a tarefa de todos os operários de todas as
nações, em todos os Estados e em todos os pontos do globo terrestre. E que cada social-democrata, que cada
operário consciente se lembre das grandiosas tarefas da luta de todo o povo que repousam agora nos seus
ombros. Que não se esqueça que representa as necessidades e os interesses também de todo o campesinato, de
toda a massa de trabalhadores e explorados, de todo o povo, contra o inimigo comum. Todos têm agora diante
dos olhos o exemplo dos heróicos proletários de Petersburgo.

Viva a revolução!

Viva o proletariado insurrecto!

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/01/25.htm

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As Lições da Revolução
Vladimir I. Lênin
12 de novembro de 1910

Decorreram cinco anos desde que, em Outubro de 1905, a classe operária da Rússia desferiu o
primeiro golpe poderoso na autocracia tsarista. Nessas grandes jornadas, o proletariado ergueu milhões de
trabalhadores para a luta contra os seus opressores. Conquistou para si, em alguns meses de 1905, melhorias
que os operários haviam esperado em vão das "autoridades" durante dezenas de anos. O proletariado
conquistou para todo o povo russo, embora por um breve período, a liberdade de imprensa, de reunião e de
associação, nunca vista na Rússia. Varreu do seu caminho a falsificada Duma de Bulíguine, arrancou ao tsar o
manifesto sobre a constituição e tornou impossível de uma vez para sempre governar a Rússia sem instituições
representativas.
As grandes vitórias do proletariado revelaram-se meias vitórias porque o poder tsarista não foi
derrubado. A insurreição de Dezembro terminou com uma derrota e a autocracia tsarista começou a retirar
uma após a outra as conquistas da classe operária à medida que enfraquecia a luta de massas. Em 1906 as
greves operárias e as agitações dos camponeses e dos soldados foram muito mais fracas que em 1905, mas no
entanto foram ainda muito fortes. O tsar (1*) dissolveu a primeira Duma, durante a qual a luta do povo começou
de novo a desenvolver-se, mas não ousou modificar imediatamente a lei eleitoral. Em 1907 a luta dos operários
enfraqueceu ainda mais, e o tsar, dissolvendo a segunda Duma, realizou um golpe de Estado (3 de Junho de
1907); ele violou todas as suas promessas soleníssimas de não promulgar leis sem o acordo da Duma e
modificou a lei eleitoral de modo a que a maioria na Duma fosse sem falta alcançada pelos latifundiários e
capitalistas, pelo partido das centúrias negras e seus serventuários.
Tanto as vitórias como as derrotas da revolução deram grandes lições históricas ao povo russo. Ao
celebrar o quinto aniversário de 1905, procuraremos esclarecer o conteúdo principal dessas lições.
A primeira e fundamental lição é que só a luta revolucionária das massas é capaz de obter melhorias
minimamente sérias na vida dos operários e na direcção do Estado. Nenhuma "simpatia" dos homens instruídos
para com os operários, nenhuma luta heróica de terroristas isolados, podiam minar a autocracia tsarista e a
omnipotência dos capitalistas. Só a luta dos próprios operários, só a luta conjunta de milhões podiam fazê-lo, e
quando essa luta enfraqueceu, imediatamente se começou a retirar aquilo que os operários haviam
conquistado. A revolução russa confirmou aquilo que se canta na canção internacional dos operários:
"Ninguém nos trará a salvação nem deus, nem rei, nem herói; conquistemos nós a libertação com as
nossas próprias mãos." (2*)

A segunda lição é a de que não basta minar, limitar o poder tsarista. É preciso suprimi-lo. Enquanto o
poder tsarista não for suprimido, as concessões do tsar serão sempre precárias. O tsar fazia concessões quando
a pressão da revolução se intensificava e retirava todas as concessões quando a pressão enfraquecia. Só a
conquista da república democrática, o derrube do poder tsarista, a passagem do poder para as mãos do povo,
pode libertar a Rússia da violência e da arbitrariedade dos funcionários, da Duma das centúrias negras e dos
outubristas, da omnipotência dos latifundiários e dos seus servidores no campo. Se as infelicidades que sofrem
os camponeses e os operários se tornaram hoje, depois da revolução, ainda mais pesadas do que antes, isso foi o
preço a pagar pelo facto de a revolução ter sido fraca, de o poder tsarista não ter sido derrubado. O ano de 1905,
e depois as duas primeiras Dumas e a sua dissolução ensinaram muito ao povo, ensinaram-lhe antes de mais a
luta comum por reivindicações políticas. O povo, ao despertar para a vida política, exigiu inicialmente
concessões à autocracia: que o tsar convocasse a Duma, que o tsar substituísse os antigos ministros por outros,
que o tsar "desse" o sufrágio universal. Mas a autocracia não fez nem podia fazer tais concessões. Aos pedidos
de concessões a autocracia respondeu com as baionetas. E então o povo começou a tomar consciência da
necessidade de lutar contra o poder autocrático. Agora Stolípine e a Duma negra dos senhores tentam ainda
com mais força meter, pode dizer-se, essa ideia na cabeça dos camponeses. Tentam metê-la e acabarão por
metê-la.
A autocracia tsarista também extraiu uma lição da revolução. Ela compreendeu que não era possível
fiar-se na fé dos camponeses no tsar. Ela reforça agora o seu poder através de uma aliança com os latifundiários
das centúrias negras e os industriais outubristas. Para derrubar a autocracia tsarista é agora necessária uma
arremetida muito mais forte da luta revolucionária de massas do que em 1905.
Será possível essa arremetida muito mais forte? A resposta a essa pergunta conduz-nos à terceira e
mais importante lição da revolução. Esta lição consiste em que nós vimos como actuam as diferentes classes do
povo russo. Antes de 1905 muitos pensavam que todo o povo aspirava de igual modo à liberdade e queria uma
liberdade igual; pelo menos a imensa maioria não tinha qualquer ideia clara do facto de que as diferentes

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classes do povo russo encaram de maneira diferente a luta pela liberdade e pretendem uma liberdade que não é
igual. A revolução dissipou o nevoeiro. Em fins de 1905, e depois também durante a primeira e a segunda
Dumas, todas as classes da sociedade russa se actuaram abertamente. Elas mostraram-se na prática, revelaram
quais eram as suas verdadeiras aspirações, por que podiam lutar e com que força, tenacidade e energia eram
capazes de lutar.
Os operários das fábricas, o proletariado industrial, travou a luta mais resoluta e mais tenaz contra a
autocracia. O proletariado iniciou a revolução pelo 9 de Janeiro (1) e pelas greves de massas. O proletariado
levou a luta até ao fim, erguendo-se para a insurreição armada em Dezembro de 1905 em defesa dos
camponeses que eram fuzilados, agredidos, torturados. O número de operários grevistas em 1905 foi de cerca
de três milhões (e com os ferroviários, os funcionários dos correios, etc., atingiram certamente os quatro
milhões), em 1906, um milhão e em 1907: 3/4 de milhão. O mundo nunca vira um movimento grevista tão forte.
O proletariado russo mostrou as enormes forças contidas nas massas operárias quando amadurece uma crise
verdadeiramente revolucionária. A onda de greves de 1905, a maior do mundo, estava ainda longe de ter
esgotado todas as forças de combate do proletariado. Por exemplo, na região industrial de Moscovo havia 567
000 operários fabris e 540 000 grevistas e na de Petersburgo 300 000 operários fabris e um milhão de
grevistas. Isto significa que os operários da região de Moscovo estão ainda longe de haver desenvolvido uma
tenacidade tão grande na luta como os de Petersburgo. E na gubérnia da Liflândia (3*) (cidade de Riga), para 50
000 operários houve 250 000 grevistas, isto é, cada operário fez greve, em média, mais de cinco vezes em 1905.
Presentemente, em toda a Rússia existem pelo menos três milhões de operários industriais, mineiros e
ferroviários, e este número aumenta todos os anos; com um movimento tão forte como o de Riga em 1905, eles
poderiam apresentar um exército de 15 milhões de grevistas.
Nenhum poder tsarista resistiria perante uma tal arremetida. Mas toda a gente compreende que
semelhante arremetida não pode ser suscitada artificialmente, segundo a vontade dos socialistas ou dos
operários de vanguarda. Tal arremetida só será possível quanto todo o país for dominado pela crise, pela
indignação, pela revolução. Para preparar essa arremetida é preciso atrair para a luta as camadas mais
atrasadas dos operários, é preciso realizar durante anos e anos um trabalho persistente, amplo, constante de
propaganda, agitação e organização, criando e fortalecendo todos os tipos de associações e organizações do
proletariado.
Pela força da sua luta, a classe operária da Rússia esteve à frente de todas as outras classes do povo
russo. As próprias condições de vida dos operários tornam-nos capazes de lutar e impelem-nos para a luta. O
capital reúne os operários em grandes massas nas grandes cidades, une-os, ensina-lhes as acções comuns. A
cada passo os operários chocam com o seu principal inimigo - a classe dos capitalistas. Lutando contra esse
inimigo, o operário torna-se socialista, chega à consciência da necessidade da completa reorganização da
sociedade, da completa supressão de toda a miséria e de toda a opressão. Ao tornarem-se socialistas, os
operários lutam com uma coragem indefectível contra tudo aquilo que se lhes atravessa no caminho, e antes de
mais contra o poder tsarista e contra os latifundiários feudais.
Os camponeses também se ergueram na revolução para lutar contra os latifundiários e contra o
governo, mas a sua luta era muito mais fraca. Calculou-se que a maioria dos operários fabris (até 3/5)
participou na luta revolucionária, nas greves, enquanto entre os camponeses sem dúvida apenas uma minoria
participou: de certeza não mais de um quinto ou de um quarto. Os camponeses lutaram menos tenazmente,
mais dispersos, menos conscientemente, muitas vezes confiando ainda na bondade do paizinho tsar. Em 1905 e
1906 os camponeses a bem dizer apenas assustaram o tsar e os latifundiários. Mas o que é preciso não é
assustá-los, o que é preciso é suprimi-los, o que é preciso é varrer da face da terra o seu governo - o governo
tsarista. Presentemente Stolípine e a Duma negra dos latifundiários procuram fazer dos camponeses ricos
novos agricultores latifundiários aliados do tsar e das centúrias negras. Mas quanto mais o tsar e a Duma
ajudam os camponeses ricos a arruinar a massa dos camponeses, mais consciente se torna essa massa, menos
ela conservará a fé no tsar, uma fé de escravos, uma fé de homens oprimidos e ignorantes. De ano para ano
aumenta no campo o número de operários rurais - eles não têm onde procurar salvação, a não ser numa aliança
com os operários das cidades para a luta comum. De ano para ano aumenta no campo o número de camponeses
arruinados, depauperados até ao fim, esfomeados - milhões e milhões deles, quando o proletariado urbano se
erguer, iniciarão uma luta mais decidida, mais coesa contra o tsar e os latifundiários.
Na revolução participou também a burguesia liberal, isto é, os latifundiários, industriais, advogados e
professores liberais, etc. Eles constituem o partido da "liberdade do povo" (democratas-constitucionalistas).
Prometeram muita ao povo e falaram muito de liberdade nos seus jornais. Tiveram a maioria dos deputados na
primeira e na segunda Dumas. Prometeram alcançar a liberdade "por via pacífica", condenavam a luta
revolucionária dos operários e camponeses. Os camponeses e muito dos deputados camponeses ("trudoviques"
(2)) acreditaram nessas promessas e humildes e seguiram dócil e submissamente os liberais, mantendo-se
afastados da luta revolucionária do proletariado. Nisso consistiu o maior erro dos camponeses (e de muitos

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citadinos) durante a revolução. Os liberais, com uma das mãos, e mesmo assim muito, muito raramente,
ajudavam a luta pela liberdade, mas a outra mão estendiam-na sempre ao tsar, prometendo-lhe manter e
reforçar o seu poder, reconciliar os camponeses com os latifundiários, "pacificar" os operários "arrebatados".
Quando a revolução chegou à luta decisiva contra o tsar, à insurreição de Dezembro de 1905, todos os
liberais traíram infamemente a liberdade do povo, abandonaram-se a luta. A autocracia tsarista aproveitou essa
traição dos liberais à liberdade do povo, aproveitou a ignorância dos camponeses, que em muitos aspectos
acreditavam nos liberais, e derrotou os operários insurrectos. E uma vez derrotado o proletariado, nenhuma
Duma, nenhuns discursos açucarados dos democratas-constitucionalistas, nenhumas promessas suas,
impediram o tsar de suprimir todos os restos de liberdade, de restabelecer a autocracia e o poder absoluto dos
latifundiários feudais.
Os liberais foram enganados. Os camponeses receberam uma lição dura mas útil. Não haverá liberdade
na Rússia enquanto as amplas massas do povo acreditarem nos liberais, acreditarem na possibilidade de "paz"
com o poder tsarista e se mantiverem afastadas da luta revolucionária dos operários. Nenhuma força no mundo
impedirá o advento da liberdade na Rússia quando a massa do proletariado das cidades se erguer para a luta,
afastar os liberais vacilantes e traidores, conduzir atrás de si os operários rurais e o campesinato arruinado.
E que o proletariado da Rússia se erguerá para essa luta e de novo encabeçará a revolução - garante-o
toda a situação económica da Rússia, toda a experiência dos anos da revolução.
Há cinco anos, o proletariado desferiu o primeiro golpe na autocracia tzarista. Para o povo russo
brilharam os primeiros raios da liberdade. Agora foi de novo restabelecida a autocracia tzarista, de novos
reinam e governam os feudais, de novo por toda a parte violência contra os operários e os camponeses, por toda
a parte o despotismo asiático das autoridades, o infame ultraje do povo. Mas as pesadas lições não terão sido
em vão. O povo russo já não é o que era em 1905. O proletariado ensinou-o a lutar. O proletariado conduzi-lo-á
à vitória.

(1*) Nicolau II. (N. Ed.)


(2*) Tradução da letra de A Internacional em russo. (N. Ed.)
(3*) Designação oficial de um território que abrangia a Letónia setentrional e a Estónia meridional do
século XVII até começos do século XX. (N. Ed.)
(1) 9 de Janeiro de 1905 ("Domingo Sangrento"): dia em que as tropas tsaristas dispararam sobre um
desfile pacífico dos operários de Petersburgo que levavam uma petição ao tsar. Mais de mil pessoas foram
mortas e duas mil feridas. O "Domingo Sangrento" foi o início da primeira revolução russa (1905-1907).
(2) Trudoviques (grupo de trabalho): grupo de democratas pequeno-burgueses nas Dumas de Estado.
A fracção dos trudoviques constituiu-se em Abril de 1906 com deputados camponeses à I Duma de Estado. Os
trudoviques oscilavam entre os democratas-constitucionalistas e os sociais-democratas revolucionários.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1910/11/12.htm

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Cartas de Longe[N1]
V. I. Lénine

20 de Março de 1917

Carta 1
A Primeira Etapa da Primeira Revolução

A primeira revolução gerada pela guerra mundial imperialista eclodiu. Esta primeira revolução não
será, certamente, a última.
A julgar pelos escassos dados de que se dispõe na Suíça, a primeira etapa desta primeira revolução,
concretamente, da revolução russa de 1 de Março de 1917 terminou. Esta primeira etapa certamente não será a
última etapa da nossa revolução.
Como pôde dar-se um tal «milagre», como foi possível que em apenas oito dias — o período indicado
pelo Sr. Miliukov no seu jactancioso telegrama a todos os representantes da Rússia no estrangeiro — se tenha
desmoronado uma monarquia que se tinha mantido durante séculos e se manteve, apesar de tudo, durante três
anos das maiores batalhas de classe em que participou todo o povo, em 1905-1907?
Não há milagres na natureza nem na história, mas cada viragem brusca da história, incluindo cada
revolução, oferece uma tal riqueza de conteúdo, desenvolve combinações de formas de luta e de correlação
entre as forças combatentes de tal modo inesperadas e originais que para um espírito filisteu muitas coisas
devem parecer milagre.
Para que a monarquia tsarista pudesse desmoronar-se em poucos dias, foi necessária a conjugação de
toda uma série de condições de importância histórica mundial. Indiquemos as mais importantes.
Sem os três anos de formidáveis batalhas de classe e a energia revolucionária do proletariado russo,
em 1905-1907, seria impossível uma segunda revolução tão rápida, no sentido de ter concluído a sua etapa
inicial em poucos dias. A primeira revolução (1905) revolveu profundamente o terreno, arrancou pela raiz
preconceitos seculares, despertou para a vida política e para a luta política milhões de operários e dezenas de
milhões de camponeses, revelou umas às outras, e ao mundo inteiro, todas as classes (e todos os partidos
principais) da sociedade russa na sua verdadeira natureza, na verdadeira correlação dos seus interesses, das
suas forças, das suas formas de acção, dos seus objectivos imediatos e futuros. A primeira revolução, e a época
contra-revolucionária que se lhe seguiu (1907-1914), revelaram toda a essência da monarquia tsarista,
levaram-na até ao «último limite», puseram a nu toda a podridão e infâmia, todo o cinismo e corrupção da corja
tsarista com esse monstro, Raspútine, à frente, toda a brutalidade da família Románov — esses pogromistas que
inundaram a Rússia com o sangue de judeus, de operários, de revolucionários, esses latifundiários, «os
primeiros entre os seus pares», que possuíam milhões de deciatinas de terra e que estavam dispostos a todas as
brutalidades, a todos os crimes, a arruinar estrangular qualquer número de cidadãos, para preservar a sua e da
sua classe «sacrossanta propriedade».
Sem a revolução de 1905-1907, sem a 1907-1914, teria sido impossível uma «autodeterminação» tão
exacta de todas as classes do povo russo dos povos que habitam na Rússia, uma determinação da relação destas
classes entre si e com a monarquia tsarista, que se manifestou durante os dias da revolução de Fevereiro-Março
de 1917. Esta revolução de oito dias foi «representada», se nos é permitido exprimir-nos em termos
metafóricos, como que depois de uma dezena de ensaios gerais e parciais; os «actores» conheciam-se uns aos
outros, os seus papéis, os seus lugares, o seu cenário, completamente, de ponta a ponta, até ao menor matiz das
orientações políticas e métodos de acção.

Mas se a primeira, a grande revolução de 1905, que os senhores Gutchkov e Miliukov e os seus lacaios
condenaram como uma «grande rebelião», deu origem doze anos mais tarde à «brilhante», «gloriosa» revolução
de 1917, chamada «gloriosa» pelos Gutchkov e Miliukov porque (por enquanto) lhes deu o poder — era preciso
ainda um grande, poderoso, omnipotente «encenador» que, por um lado, estivesse em condições de acelerar em
enorme escala o curso da história mundial e, por outro, de gerar crises mundiais, económicas, políticas,
nacionais e internacionais de intensidade inaudita. Além de uma extraordinária aceleração da história mundial,
eram igualmente necessárias viragens particularmente bruscas desta para que, numa dessas viragens, pudesse
voltar-se de um só golpe o carro da monarquia dos Románov manchado de sangue e de lama.

Este «encenador» omnipotente, este poderoso acelerador foi a guerra mundial imperialista.

Agora já não há dúvidas de que esta guerra é mundial, pois que os Estados Unidos e a China já hoje
estão meio envolvidos nela, e amanhã estarão envolvidos totalmente.

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Agora já não há dúvidas de que se trata de uma guerra imperialista de ambos os lados. Só os
capitalistas e os seus lacaios, os sociais-patriotas e sociais-chauvinistas, ou, usando em lugar de definições
críticas gerais nomes políticos conhecidos na Rússia - só os Gutchkov e os Lvov, os Miliukov e os Chingariov, por
um lado, só os Gvózdev, os Potréssov, os Tchkhenkéli, os Kérenski e os Tchkheídze, por outro lado, podem negar
ou escamotear este facto. Tanto a burguesia alemã como a anglo-francesa fazem a guerra para saquear outros
países, para estrangular os pequenos povos, para obter a supremacia financeira sobre o mundo, para partilhar e
redistribuir as colónias, para salvaguardar o regime capitalista agonizante, enganando e desunindo os operários
dos diferentes países.

Era objectivamente inevitável que a guerra imperialista acelerasse extraordinariamente e agudizasse


de um modo inaudito a luta de classe do proletariado contra a burguesia e se transformasse numa guerra civil
entre as classes inimigas.

Esta transformação iniciou-se com a revolução de Fevereiro-Março 1917, cuja primeira etapa nos
mostrou, em primeiro lugar, um golpe conjunto contra o tsarismo desferido por duas forças: por um lado, por
toda a Rússia burguesa e latifundiária, com todos os seus lacaios inconscientes e com todos os seus dirigentes
conscientes na pessoa dos embaixadores e capitalistas anglo-franceses, e, por outro lado, pelo Soviete de
deputados operários[N2], que começou a atrair deputados soldados e camponeses.

Estes três campos políticos, estas três forças políticas fundamentais:

a monarquia tsarista, cabeça dos latifundiários feudais, cabeça da velha burocracia e do generalato;
a Rússia burguesa e latifundiária — outubrista-democrata-constitucionalista[N3], atrás da qual se
arrastava a pequena-burguesia (os seus representantes principais são Kérenski e Tchkheídze);
o Soviete de deputados operários, procurando tornar seus aliados todo o proletariado e toda a massa
mais pobre da população — estas três forças políticas fundamentais revelaram-se com toda a clareza mesmo
nos oito dias da «primeira etapa», mesmo para um observador tão afastado dos acontecimentos e obrigado a
limitar-se aos escassos telegramas dos jornais estrangeiros como o autor destas linhas.
Mas antes de falar disto mais pormenorizadamente tenho de voltar à parte da minha carta que é
consagrada ao factor de maior importância — a guerra mundial imperialista.

A guerra ligou uns aos outros com cadeias de ferro as potências beligerantes, os grupos beligerantes
de capitalistas, os «senhores» do sistema capitalista, os escravistas da escravatura capitalista. Um só novelo
sangrento — eis o que é a vida sócio-política do momento histórico que atravessamos.

Os socialistas que passaram para o lado da burguesia no início da guerra, todos esses David e
Scheidemann na Alemanha, Plekhánov—Potréssov—Gvózdev e C.a na Rússia, gritam muito e a plenos pulmões
contra as «ilusões» dos revolucionários, contras as «ilusões» do Manifesto de Basileia[N4], contra o
«sonhofarsa» da transformação da guerra imperialista numa guerra civil. Eles cantaram em todos os tons a
força, vitalidade e adaptabilidade que o capitalismo teria revelado, eles que ajudaram os capitalistas a
«adaptar», domar, burlar e dividir as classes operárias dos diferentes países.

Mas «o último a rir é que ri melhor». A burguesia não foi capaz de adiar muito a crise revolucionária
gerada pela guerra. A crise cresce com força irresistível em todos os países, começando pela Alemanha, a qual,
na expressão de um observador que a visitou recentemente, atravessa uma «fome organizada de modo genial»,
e terminando pela Inglaterra e pela França, onde a fome se avizinha também e onde a organização é muito
menos «genial».

E natural que na Rússia tsarista, onde a desorganização era a mais monstruosa e onde o proletariado é
o mais revolucionário (não devido às suas qualidades particulares, mas devido às tradições vivas do «ano
cinco»), a crise revolucionária eclodisse mais cedo do que em qualquer outro lado. Esta crise foi acelerada por
uma série de derrotas gravíssimas infligidas à Rússia e aos seus aliados. As derrotas desorganizaram todo o
antigo mecanismo governamental e todo o antigo regime, provocaram o ódio de todas as classes da população
contra ele, exasperaram o exército e destruíram em grande medida o seu velho corpo de comando de carácter
aristocrático-fossilizado e burocrático excepcionalmente corrupto, substituíram-no por um corpo jovem, fresco,
predominantemente burguês, raznotchínets[N5], pequeno-burguês. As pessoas que abertamente rastejam
perante a burguesia ou simplesmente sem carácter, que gritavam e vociferavam contra o «derrotismo», estão

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agora colocadas perante o facto da ligação histórica existente entre a derrota da monarquia tsarista, a mais
atrasada e a mais bárbara, e o começo do incêndio revolucionário.

Mas se as derrotas no início da guerra desempenharam o papel de um factor negativo que veio
apressar a explosão, a ligação do capital financeiro anglo-francês, do imperialismo anglo-francês, com o capital
outubrista—democrata-constitucionalista da Rússia, foi o factor que acelerou esta crise por meio da
organização directa de uma conspiração contra Nicolau Románov.

Este lado da questão, extremamente importante, é passado em silêncio, por razões compreensíveis,
pela imprensa anglo-francesa e é maliciosamente salientado pela alemã. Nós, marxistas, devemos serenamente
encarar a verdade de frente, sem nos deixarmos perturbar nem pela mentira, pela mentira oficial adocicada e
diplomática dos diplomatas e ministros do primeiro grupo de beligerantes imperialistas, nem pelo piscar de
olhos e os risinhos dos seus concorrentes financeiros e militares do outro grupo beligerante. Todo o curso dos
acontecimentos da revolução de Fevereiro-Março mostra claramente que as embaixadas inglesa e francesa, com
os seus agentes e «ligações», que há muito faziam os mais desesperados esforços para impedir acordos
«separados» e uma paz separada entre Nicolau II (esperamos e faremos o necessário para que seja o último) e
Guilherme II, organizaram directamente a conspiração, em conjunto com os outubristas e democratas-
constitucionalistas, em conjunto com uma parte do generalato e do corpo de oficiais do exército e em especial
da guarnição de Petersburgo, para depor Nicolau Románov.

Não nos iludamos a nós próprios. Não caiamos no erro dos que estão prontos agora a cantar, à
semelhança de alguns «okistas» ou «mencheviques»[N6] que oscilam entre o gvozdevismo-potressovismo[N7]
e o internacionalismo, desviando-se com demasiada frequência para o pacifismo pequeno-burguês, a cantar o
«acordo» do partido operário com os democratas-constitucionalistas, o «apoio» daquele a estes, etc. Essas
pessoas, em conformidade com a sua velha e decorada doutrina (que não é, de modo algum, marxista), lançam
um véu sobre a conspiração dos imperialistas anglo-franceses com os Gutchkov e Miliukov, que tem como fim
depor o «principal guerreiro», Nicolau Románov, e substituí-lo por guerreiros mais enérgicos, mais frescos,
mais capazes.

Se a revolução venceu tão rapidamente e — aparentemente, ao primeiro olhar superficial — de um


modo tão radical, é apenas porque, por força de uma situação histórica extremamente original, se fundiram, e
fundiram-se com uma notável «harmonia», correntes absolutamente diferentes, interesses de classe
absolutamente heterogéneos, tendências políticas e sociais absolutamente opostas. A saber: a conspiração dos
imperialistas anglo-franceses que impeliram Miliukov, Gutchkov e C.a a tomarem o poder, no interesse do
prosseguimento da guerra imperialista, no interesse da sua condução com ainda maior obstinação e violência,
no interesse do extermínio de novos milhões de operários e camponeses da Rússia, para a obtenção de
Constantinopla. . . pelos Gutchkov, da Síria. . . pelos capitalistas franceses, da Mesopotâmia. . . pelos capitalistas
ingleses, etc. Isto por um lado. E, por outro lado, um profundo movimento proletário e popular de massas (de
toda a população pobre da cidade e do campo), com carácter revolucionário, pelo pão, pela paz, pela verdadeira
liberdade.

Seria simplesmente estúpido falar de «apoio» do proletariado revolucionário da Rússia ao


imperialismo democrata-constitucionalista—outubrista, «amassado» com o dinheiro inglês, tão repugnante
como o imperialismo tsarista. Os operários revolucionários demoliam, já demoliram em notável medida e
continuarão a demolir até aos alicerces a infame monarquia tsarista, sem se deixar entusiasmar nem perturbar
se, em certos momentos históricos, de curta duração e devidos a uma conjuntura excepcional, vem ajudá-los a
luta de Buchanan, Gutchkov, Miliukov e C.a para substituir um monarca por outro monarca que seja também, de
preferência, um Románov!

Foi assim e só assim que as coisas se passaram. Assim e só assim pode ver as coisas o político que não
teme a verdade, que pesa serenamente a correlação das forças sociais numa revolução, que avalia cada
«momento actual» não só do ponto de vista de toda a sua originalidade presente, de hoje, mas também do ponto
de vista das motivações mais profundas, de uma correlação mais profunda dos interesses do proletariado e da
burguesia, tanto na Rússia como em todo o mundo.

Os operários de Petersburgo, tal como os operários de toda a Rússia, lutaram abnegadamente contra a
monarquia tsarista, pela liberdade, pela terra para os camponeses, pela paz, contra o massacre imperialista. O
capital imperialista anglo-francês, no interesse da continuação e intensificação deste massacre, urdiu intrigas

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palacianas, tramou conspirações com os oficiais da guarda, incitou e encorajou os Gutchkov e Miliukov, montou
um novo governo totalmente acabado que tomou o poder logo depois de a luta proletária ter desferido os
primeiros golpes contra o tsarismo.

Este novo governo[N8], no qual os outubristas e os «renovadores pacíficos»[N9], ontem cúmplices de


Stolípine, o Enforcador, Lvov e Gutchkov, controlam postos realmente importantes, postos de combate, postos
decisivos, o exército e o funcionalismo — este governo, no qual Miliukov e outros democratas-
constitucionalistas têm assento sobretudo para decoração, para fachada, para adocicados discursos
professorais, enquanto o «trudovique»[N10] Kérenski desempenha o papel de balalaica para enganar os
operários e camponeses, este governo não é um conjunto fortuido de pessoas. São os representantes da nova
classe que subiu ao poder político na Rússia, a classe dos latifundiários capitalistas e da burguesia, que já há
muito dirige economicamente o nosso país e que tanto no tempo da revolução de 1905-1907, como no tempo
da contra-revolução de 1907-1914 e finalmente — e com particular rapidez — no tempo da guerra de 1914-
1917, se organizou politicamente de maneira extraordinariamente rápida, tomando nas suas mãos tanto as
administrações locais como a educação pública, congressos de todo o género, a Duma[N11], os comités
industriais de guerra[N12], etc. Esta nova classe estava já «quase totalmente» no poder em 1917; por isso,
bastáram os primeiros golpes contra o tsarismo para que ele se desmoronasse, deixando o lugar à burguesia. A
guerra imperialista, exigindo uma incrível tensão de forças, acelerou de tal forma o processo de
desenvolvimento da atrasada Rússia que nós, de um só golpe (de facto aparentemente de um só golpe),
alcançámos a Itália, a Inglaterra, quase a França, obtivemos um governo «de coligação», «nacional» (isto é,
adaptado para realizar o massacre imperialista e para enganar o povo) e «parlamentar».

Ao lado deste governo — que, do ponto de vista da actual guerra, no fundo não é mais do que um
simples agente da «firma» multimilionária: «Inglaterra e França» — surgiu um governo operário, o governo
principal não oficial, ainda pouco desenvolvido, relativamente fraco, que exprime os interesses do proletariado
e de todo o sector pobre da população da cidade e do campo. É o Soviete de deputados operários de Petrogrado,
que procura ligação com os soldados e camponeses, bem como com os operários agrícolas e sobretudo com
estes, em primeiro lugar, mais do que com os camponeses.

Tal é a verdadeira situação política, que antes de tudo devemos esforçar-nos por estabelecer com o
máximo possível de precisão objectiva para basear a táctica marxista sobre os únicos fundamentos sólidos em
que ela deve basear-se, sobre os fundamentos dos factos.

A monarquia tsarista foi destruída, mas ainda não recebeu o golpe de misericórdia.

O governo burguês outubrista—democrata-constitucionalista, querendo levar a guerra imperialista


«até ao fim», é na realidade um agente da firma financeira «Inglaterra e França» que é obrigado a prometer ao
povo o máximo de liberdades e de esmolas compatíveis com a manutenção do seu poder sobre o povo e com a
possibilidade de continuar o massacre imperialista.

O Soviete de deputados operários é a organização dos operários, o embrião do governo operário, o


representante dos interesses de todas as massas pobres da população, isto é, de 9/10 da população, que luta
pela paz, pelo pão, pela liberdade.

A luta destas três forças determina a situação que se apresenta agora e que constitui a transição da
primeira etapa da revolução para a segunda.

A contradição entre a primeira e a segunda força não é profunda, é temporária, é suscitada apenas pela
conjuntura do momento, por uma viragem brusca dos acontecimentos na guerra imperialista. Todo o novo
governo é composto por monárquicos, pois o republicanismo verbal de Kérenski simplesmente não é sério, não
é digno de um político, é objectivamente uma politiquice. O novo governo ainda não tinha dado o golpe de
misericórdia na monarquia tsarista e já começava a entrar em conluios com a dinastia dos latifundiários
Románov. A burguesia de tipo outubrista—democrata-constitucionalista necessita da monarquia como cabeça
da burocracia e do exército a fim de proteger os privilégios do capital contra os trabalhadores.

Quem diz que os operários devem apoiar o novo governo no interesse da luta contra a reacção do
tsarismo (e é isso o que dizem, aparentemente, os Potréssov, os Gvózdev, os Tchkhenkéli e também, apesar de
toda a sua posição evasiva, Tchkheídze) é um traidor aos operários, um traidor à causa do proletariado, à causa

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da paz e da liberdade. Pois, de facto, precisamente este novo governo já está atado de pés e mãos pelo capital
imperialista, pela política imperialista de guerra e de rapina, já iniciou os conluios (sem consultar o povo!) com
a dinastia, já trabalha na restauração da monarquia tsarista, já convida o candidato a novo tsar, Mikhaíl
Románov, já se preocupa com o reforço do seu trono, com a substituição da monarquia legítima (legal, que se
mantém na base da velha lei) por uma monarquia bonapartista, plebiscitaria (que se mantém na base do
sufrágio popular falsificado).

Não, para uma verdadeira luta contra a monarquia tsarista, para uma verdadeira garantia da
liberdade, não somente em palavras nem com promessas dos charlatães Miliukov e Kérenski, não são os
operários que devem apoiar o novo governo, mas este governo que deve «apoiar» os operários! Pois a única
garantia de liberdade e da destruição do tsarismo até ao fim é armar o proletariado, é consolidar, alargar,
desenvolver o papel, a importância e a força do Soviete de deputados operários.

Tudo o resto são frases e mentiras, auto-engano dos politiqueiros do campo liberal e radical,
maquinações fraudulentas.

Ajudai a armar os operários, ou pelo menos não o estorveis — e a liberdade na Rússia será invencível,
será impossível restaurar a monarquia, estará garantida a república.

De outro modo os Gutchkov e os Miliukov restaurarão a monarquia e nada realizarão, absolutamente


nada das «liberdades» prometidas por eles. Tem sido com promessas que todos os politiqueiros burgueses, em
todas as revoluções burguesas, têm «alimentado» o povo e enganado os operários.

A nossa revolução é burguesa — portanto os operários devem apoiar a burguesia — dizem os


Potréssov, os Gvózdev, os Tchkheídze, como o dizia ontem Plekhánov.

A nossa revolução é burguesa — dizemos nós, marxistas — portanto os operários devem abrir os
olhos ao povo quanto à fraude dos politiqueiros burgueses, devem ensiná-lo a não acreditar em palavras, a
contar unicamente com as suas próprias forças, com a sua própria organização, com a sua própria unidade, com
o seu próprio armamento.

O governo dos outubristas e dos democratas-constitucionalistas, dos Gutchkov e Miliukov, não pode —
mesmo que o quisessem sinceramente (só crianças podem acreditar na sinceridade de Gutchkov e de Lvov) —
não pode dar ao povo nem paz, nem pão, nem liberdade.

A paz — porque é um governo de guerra, um governo de continuação do massacre imperialista, um


governo de pilhagem que deseja pilhar a Arménia, a Galícia, a Turquia, tomar Constantinopla, reconquistar a
Polónia, a Curlândia, o Território Lituano, etc. Este governo está atado de pés e mãos pelo capital imperialista
anglo-francês. O capital russo é simplesmente uma sucursal da «firma» mundial que manipula centenas de
milhares de milhões de rublos e que tem por nome «Inglaterra e França».

O pão — porque este governo é burguês. No melhor dos casos dará ao povo, como deu a Alemanha,
uma «fome organizada de modo genial». Mas o povo não quererá suportar a fome. O povo aprenderá, e sem
dúvida aprenderá rapidamente, que há pão e pode ser obtido, mas não por outro modo eenão por meio de
medidas que não se inclinem perante a santidade do capital e da propriedade da terra.

A liberdade — porque é um governo de latifundiários e capitalistas, que teme o povo e já começou os


conluios com a dinastia dos Románov.

Num outro artigo falaremos dos problemas tácticos da nossa conduta imediata para com este governo.
Aí mostraremos em que consiste a peculiaridade do momento actual, da transição da primeira etapa da
revolução para a segunda, e a razão por que a palavra de ordem, a «tarefa do dia», neste momento, deve ser:
operários, vós realizastes prodígios de heroísmo proletário e popular na guerra civil contra o tsarismo, deveis
agora realizar prodígios de organização proletária e de todo o povo para preparar a vossa vitória na segunda
etapa da revolução.

Limitando-nos agora à análise da luta de classes e da correlação de forças de classe na actual etapa da
revolução, devemos levantar ainda a seguinte questão: quais são os aliados do proletariado na actual revolução?

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Tem dois aliados: em primeiro lugar, a grande massa da população dos semiproletários e em parte dos
pequenos camponeses da Rússia, que conta muitas dezenas de milhões de pessoas e constitui a imensa maioria
da população. Esta massa necessita de paz, pão, liberdade, terra. Esta massa estará inevitavelmente sob uma
certa influência da burguesia, e sobretudo da pequena-burguesia, da qual mais se aproxima pelas suas
condições de vida, vacilando entre a burguesia e o proletariado. As cruéis lições da guerra, que se tornarão
tanto mais cruéis quanto mais energicamente Gutchkov, Lvov, Miliukov e C.a conduzirem a guerra, impelirão
inevitavelmente esta massa para o proletariado, obrigá-la-ão a segui-lo. Agora, aproveitando a relativa
liberdade do novo regime e os Sovietes de deputados operários, devemos esforçar-nos antes de mais e acima de
tudo por esclarecer e organizar esta massa. Os Sovietes de deputados camponeses, os Sovietes de operários
agrícolas — eis uma das nossas tarefas mais sérias. Ao fazer isto, os nossos objectivos não consistirão só em que
os operários agrícolas criem os seus Sovietes próprios, mas também em que os camponeses deserdados e mais
pobres se organizem separadamente dos camponeses abastados. As tarefas específicas e as formas específicas
da organização agora vitalmente necessária serão tratadas na próxima carta.

Em segundo lugar, o aliado do proletariado russo é o proletariado de todos os países beligerantes e de


todos os países em geral. Ele actualmente encontra-se em grande medida abatido pela guerra, e é demasiada a
frequência com que falam em nome dele os sociais-chauvinistas que, tal como Plekhánov, Gvózdev, Potréssov
na Rússia, se passaram para o lado da burguesia. Mas a libertação do proletariado da sua influência progrediu
em cada mês de guerra imperialista, e a revolução russa acelerará, inevitavelmente, este processo a uma escala
enorme.

Com estes dois aliados, o proletariado pode avançar e avançará, utilizando as particularidades do
actual momento de transição, à conquista primeiro da república democrática e da vitória completa dos
camponeses sobre os latifundiários, em lugar da semimonarquia de Gutchkov e Miliukov, e depois para o
socialismo, o único que dará aos povos exaustos pela guerra a paz, o pão e a liberdade.

N. Lénine

Notas de fim de tomo:


[N1] V. I. Lénine escreveu as Cartas de Longe (cinco no total) quando estava na Suíça. As primeiras
quatro cartas foram escritas no período de 7 a 12 (de 20 a 25) de Março de 1917; a quinta carta, não terminada,
foi iniciada nas vésperas da partida de Lénine da Suíça rumo à Rússia, no dia 26 de Março (8 de Abril) de 1917.
Nas cartas Lénine faz uma apreciação das forças em desenvolvimento, das características e da orientação da
revolução na Rússia, analisa as questões da teoria da revolução, do Estado, da guerra e da paz, e aponta as
tarefas tácticas do partido. No Jomal Pravda foi publicada, em Março de 1917, apenas a primeira carta com
cortes e alterações feitas pela redacção do Pravda. As outras quatro só foram publicadas após a Revolução
Socialista de Outubro, em 1924. As ideias contidas na quinta carta, não acabada, foram desenvolvidas
posteriormente nas obras Cartas sobre Táctica e As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução. (Ver o
presente tomo, pp. 21-48.) (retornar ao texto)
[N2] Lénine refere-se ao Soviete de deputados operários de Petrogrado, criado nos primeiros dias da
revolução democrática burguesa de Fevereiro. As eleições para o Soviete começaram espontaneamente
nalgumas fábricas, e no espaço de alguns dias alargaram-se a todas as empresas da cidade. No dia 27 de
Fevereiro (12 de Março), antes da primeira reunião do Soviete, os mencheviques liquidacionistas K. A. Gvózdev,
B. O. Bogdanov e os membros da Duma de Estado N. S. Tchkheídze, M. I. Skóbelev e outros, procurando
assegurar para si a direcção do Soviete, autodeclararam-se Comité Executivo Provisório do Soviete. Na primeira
reunião do Soviete, na noite do mesmo dia, foi constituído um Praesidium (N. S. Tchkheídze, A. F. Kérenski e M.
I. Skóbelev). Do Comité Executivo, além dos membros do Praesidium, faziam parte A. G. Chliápnikov, N. N.
Sukhánov, I. M. Steklov; foram reservados lugares para representantes dos comités centrais e dos comités de
Petrogrado dos partidos socialistas. O partido dos socialistas-revolucionários pronunciara-se inicialmente
contra a criação do Soviete, mas depois enviou ao Soviete os seus representantes (V. A. Alexándrovitch, V. M.
Zenzínov e outros). O Soviete declarou-se o órgão dos deputados operários e soldados, e até ao I Congresso dos
Sovietes (Junho de 1917), constituiu de facto um centro de toda a Rússia. No dia 1 (14) de Março, o Comité
Executivo foi completado por representantes dos soldados: F. F. Linde, A. I. Padérine, A. D. Sadóvski e outros.
Apesar de a direcção do Soviete se encontrar nas mãos dos conciliadores, o Soviete, sob a pressão dos operários
e soldados revolucionários, tomou uma série de medidas revolucionárias: a prisão dos representantes do velho
poder e a libertação dos presos políticos. No dia 1 (14) de Março, o Soviete emitiu a «Ordem n° 1 à guarnição da
circunscrição militar de Petrogrado», que desempenhou um papel importante na revolucionarização do

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exército. Esta ordem estabeleceu a subordinação, nas acções políticas, das unidades militares ao Soviete; as
armas foram postas à disposição e sob o controlo dos comités de companhia e de batalhão; as ordens do Comité
Provisório da Duma de Estado só deviam ser observadas no caso de não contradizerem as ordens do Soviete,
etc. Mas, no momento decisivo, na noite de 2 (15) de Março, os conciliadores do Comité Executivo do Soviete
cederam voluntariamente o poder à burguesia e sancionaram a composição do Governo Provisório, formado
por representantes da burguesia e dos latifundiários. Este acto de capitulação perante a burguesia era
desconhecido no estrangeiro, porque não era permitida a passagem dos jornais à esquerda dos democratas-
constitucionalistas. V. I. Lénine tomou conhecimento disto quando voltou à Rússia. (retornar ao texto)
[N3] Outubristas: membros da União de 17 de Outubro, partido monárquico de grandes capitalistas
criado em Novembro de 1905. O nome do partido indicava a sua solidariedade com o Manifesto do tsar de 17 de
Outubro de 1905, o qual prometia introduzir na Rússia as liberdades constitucionais. Toda a actividade dos
outubristas era hostil ao povo e tinha por objectivo a defesa dos grandes capitalistas e dos grandes
latifundiários que administravam as suas propriedades com métodos capitalistas. O partido era encabeçado
pelo industrial e proprietário imobiliário A. I. Gutchkov e pelo grande latifundiário M. V. Rodzianko. Os
outubristas apoiavam inteiramente a política interna e externa reaccionária do tsarismo. Os outubristas, após a
revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, tornaram-se o partido governante e lutaram
activamente contra a revolução socialista que amadurecia na Rússia. Depois da Revolução Socialista de Outubro
os outubristas lutaram contra o Poder Soviético.
Democratas-constitucionalistas: membros do partido democrata-constitucíonalista, principal partido
da burguesia liberal monárquica da Rússia. Criado em Outubro de 1905, era constituído por representantes da
burguesia, latifundiários dirigentes dos zemstvos e intelectuais burgueses. Entre os seus dirigentes mais
destacados contavam-se P. N. Miliukov, S. S. Muromtsev, V. A. Maklákov, A. I. Chingariov, P. B. Struve, F. I.
Róditchev e outros. Posteriormente, os democratas-constitucionalistas tornaram-se o partido da burguesia
imperialista. Durante a Primeira Guerra Mundial os democratas-constitucionalistas apoiaram activamente a
política externa anexionista do governo tsarista. No período da revolução democrática burguesa de Fevereiro,
procuraram salvar a monarquia. Os democratas-constitucionalistas, que ocupavam uma posição dirigente no
Governo Provisório burguês, aplicaram uma política antipopular e contra-revolucionária. Depois da vitória da
Revolução Socialista de Outubro, os democratas-constitucionalistas foram inimigos irreconciliáveis do Poder
dos Sovietes, participando em todas as insurreições armadas contra-revolucionárias e campanhas dos
intervencionistas estrangeiros. (retornar ao texto)
[N4] Manifesto de Basileia: manifesto sobre a guerra aprovado pelo Congresso Socialista Internacional
Extraordinário, realizado em 24 e 25 de Novembro de 1912 em Basileia. O manifesto advertia os povos para o
perigo de uma guerra imperialista mundial iminente, revelava os propósitos rapinantes de uma tal guerra,
exortava os operários de todos os países a uma luta decidida pela paz, contrapondo «ao capitalismo imperialista
o poderio da solidariedade internacional do proletariado». O texto do Manifesto de Basileia continha um ponto,
tomado da resolução do Congresso de Estugarda de 1907 e redigido por Lénine, afirmando que os socialistas,
no caso de rebentar uma guerra imperialista, deviam aproveitar a crise económica e política provocada pela
guerra para a luta pela revolução socialista. (retornar ao texto)
[N5] Raznotchíntsi (singular: raznotchínets): «pessoas de diferentes classes e camadas». Pessoas
cultas de origem não nobre; provinham de diferentes classes: comerciantes, clero, pequena burguesia e
camponeses. (retornar ao texto)
[N6] Okistas: mencheviques unidos pelo seu centro dirigente, o Comité de Organização (CO; em russo
OK), que foi criado em 1912 na conferência de Agosto dos liquidacionistas. Durante a guerra imperialista
mundial o CO adoptou uma posição social-chauvinista. O CO funcionou até à eleição do CC do partido
menchevique no congresso «de unificação» do POSDR (menchevique) em Agosto de 1917.
Mencheviques: partidários da corrente oportunista pequeno-burguesa na social-democracia russa.
Tornaram-se conhecidos por «mencheviques» no II Congresso do POSDR, em 1903, quando este se cindiu numa
ala revolucionária e numa ala oportunista. Nas eleições para os órgãos centrais do partido, os sociais-
democratas revolucionários, chefiados por Lénine, obtiveram a maioria (em russo bolchinstvó), enquanto os
oportunistas ficaram em minoria (menchinstvó). Daí a origem da designação «bolcheviques» e «mencheviques».
Durante a revolução de 1905-1907, os mencheviques pronunciaram-se contra a hegemonia do proletariado na
revolução e contra a aliança da classe operária com o campesinato, e exigiram que se procurasse um
compromisso com a burguesia liberal, à qual, segundo a sua opinião, deveria caber o papel dirigente na
revolução. Nos anos de reacção que se seguiram à derrota da revolução de 1905-1907, a maioria dos
mencheviques tornaram-se liquidacionistas, isto é, reclamavam que fosse liquidado o partido revolucionário
clandestino da classe operária. Depois da vitória da revolução democrática burguesa, em Fevereiro de 1917, os
mencheviques participaram no Governo Provisório burguês, defenderam a política iimperialista deste e lutaram
contra a revolução socialista que se preparava. Após a vitória da Revolução Socialista de Outubro, os

17
mencheviques tornaram-se um partido abertamente contra-revolucionário, que organizou e participou em
conspirações e levantamentos armados com o fim de derrubar o Poder Soviético. (retornar ao texto)
[N7] Gvozdevismo-potressovismo: ala de direita, liquidacionista, do menchevismo, que adoptou uma
posição social-chauvinista durante a Primeira Guerra Mundial. Gvózdev e Potréssov eram os seus dirigentes.
(retornar ao texto)
[N8] Trata-se do Governo Provisório burguês formado em 2 (15) de Março de 1917 por acordo do
Comité Provisório da Duma de Estado com os dirigentes mencheviques e socialistas-revolucionários do Comité
Executivo do Soviete de deputados operários e soldados de Petrogrado. A composição do Governo Provisório
modificou-se várias vezes durante a sua existência. Inicialmente a maioria absoluta dos ministros do Governo
Provisório pertencia aos democratas-constitucionalistas e aos outubristas. Do primeiro governo faziam parte: o
príncipe G. E. Lvov (presidente do Conselho de Ministros e ministro do Interior), o dirigente democrata-
constitucionalista P. N. Miliukov (ministro dos Negócios Estrangeiros), o dirigente outubrista A. I. Gutchkov
(ministro de Guerra e, provisoriamente, ministro da Marinha) e outros representantes da grande burguesia e
dos latifundiários e também o trudovique A. F. Kérenski (ministro da Justiça). As poderosas manifestações do
proletariado de 20-21 de Abril (3-4 de Maio) de 1917 contra a política imperialista conduziram a uma crise do
Governo Provisório. Sob a pressão das massas os ministros P. N. Miliukov e A. I. Gutchkov foram obrigados a
sair do governo. Em 5 (18) de Maio foi formado o primeiro governo de coligação, no qual, juntamente com 10
ministros capitalistas, entraram dirigentes dos partidos conciliadores dos mencheviques e dos socialistas-
revolucionários. Depois dos acontecimentos de Julho, o governo passou a ser dirigido por A. F. Kérenski, que
formou o segundo governo de coligação, com a participação dos democratas-constitucionalistas. Pouco depois
do malogro da Conferência Democrática e do Pré-Parlamento, Kérenski, tendo-se entendido com os
democratas-constitucionalistas, formou o terceiro Governo Provisório de coligação. Este dirijtiu os seus
esforços para a repressão da revolução crescente: foi elaborado um plano de destruição do partido bolchevique,
de rendição de Petrogrado aos alemães, de desarmamento das unidades revolucionárias, etc. Contudo, este
plano foi frustrado pela insurreição vitoriosa de 25 de Outubro (7 de Novembro) de 1917, em resultado da qual
o Governo Provisório foi derrubado. (retornar ao texto)
[N9] «Renovadores pacíficos»: membros do partido da «renovação pacífica», organização monárquica
constitucionalista da grande burguesia e dos latifundiários, criado em 1906, depois da dissolução da I Duma de
Estado. Quanto ao seu programa estava muito perto dos outubristas. A sua actividade dirigia-se para a defesa
dos interesses da burguesia industrial e comercial e dos latifundiários que administravam as suas propriedades
com métodos capitalistas. Na III Duma de Estado o partido da «renovação pacífica» uniu-se com o chamado
partido das «reformas democráticas», formando a fracção dos «progressistas». (retornar ao texto)
[N10] Trudoviques (trudovàia gruppa, grupo do trabalho): grupo de democratas pequeno-burgueses
nas Dumas de Estado, formado por camponeses e intelectuais de tendência populista. A fracção dos trudoviques
foi criada pelos deputados camponeses à I Duma de Estado, em Abril de 1906. Na Duma de Estado os
trudoviques oscilavam entre os democratas-constitucionalistas e os sociais-democratas revolucionários. Depois
da revolução democrática burguesa de Fevereiro, os trudoviques defenderam activamente o Governo
Provisório. Tomaram uma posição hostil em relação à Revolução Socialista de Outubro. (retornar ao texto)
[N11] Duma de Estado: instituição representativa que o governo tsarista se viu obrigado a convocar
em consequência dos acontecimentos revolucionários de 1905. Formalmente, a Duma de Estado era um órgão
legislativo, mas de facto não tinha nenhum poder efectivo. As eleições para a Duma de Estado não eram
directas, nem iguais, nem gerais. Os direitos eleitorais das classes trabalhadoras e das nacionalidades não
russas que habitavam na Rússia estavam fortemente restringidos, e uma parte considerável dos operários e
camponeses não tinha quaisquer direitos eleitorais. Em virtude da lei eleitoral de 11 (24) de Dezembro de
1905, um voto dum latifundiário equivalia a 3 votos de representantes da burguesia urbana, a 15 votos de
camponeses e a 45 votos de operários. A I Duma de Estado (Abril-Junho de 1906) e a II Duma de Estado
(Fevereiro-Junho de 1907) foram dissolvidas pelo governo tsarista. Depois do seu próprio golpe de Estado de
dia 3 de Junho de 1907, o governo tsarista promulgou uma nova lei eleitoral que limitava ainda mais os direitos
dos operários, dos camponeses e da pequena burguesia urbana, assegurando o pleno domínio do bloco
reaccionário dos latifundiários e dos grandes capitalistas na III (1907-1912) e na IV (1912-1917) Dumas de
Estado. (retornar ao texto)
[N12] Comités industriais de guerra: foram criados na Rússia em Maio de 1915 pelos capitalistas com
o propósito de ajudar o governo tsarista a prosseguir a guerra. A. I. Gutchkov, dirigente do partido dos
outubristas, era presidente do Comité Central Industrial de Guerra. Com o fim de difundir entre os operários a
ideia do apoio à guerra imperialista, a burguesia criou, anexos a estes comités, os «grupos operários», em que
participaram os mencheviques. Os bolcheviques boicotaram os comités industriais de guerra, no que eram
apoiados pelos operários. (retornar ao texto)

18
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/03/20.htm

19
Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução[N13]
V. I. Lénine

07 Abril de 1917

Tendo chegado a Petrogrado só no dia 3 de Abril à noite, é natural que apenas em meu nome e com as
reservas devidas à minha insuficiente preparação tenha podido apresentar na assembleia de 4 de Abril um
relatório sobre as tarefas do proletariado revolucionário.

A única coisa que podia fazer para me facilitar o trabalho a mim próprio — e aos contraditores de boa-
fé — era preparar teses escritas. Li-as e entreguei o texto ao camarada Tseretéli. Li-as muito devagar e por duas
vezes: primeiro na assembleia dos bolcheviques e depois na de bolcheviques e menchevíques.

Publico estas minhas teses pessoais acompanhadas unicamente de brevíssimas notas explicativas, que
no relatório foram desenvolvidas com muito maior amplitude.

TESES

1. Na nossa atitude perante a guerra, que por parte da Rússia continua a ser indiscutivelmente uma
guerra imperialista, de rapina, também sob o novo governo de Lvov e C.a, em virtude do carácter capitalista
deste governo, é intolerável a menor concessão ao «defensismo revolucionário».

O proletariado consciente só pode dar o seu assentimento a uma guerra revolucionária que justifique
verdadeiramente o defensismo revolucionário nas seguintes condições:

a) passagem do poder para as mãos do proletariado e dos sectores pobres do campesinato que a ele
aderem;

b) renúncia de facto, e não em palavras, a todas as anexações;

c) ruptura completa de facto com todos os interesses do capital.

Dada a indubitável boa-fé de grandes sectores de representantes de massas do defensismo


revolucionário, que admitem a guerra só como uma necessidade e não para fins de conquista, e dado o seu
engano pela burguesia, é preciso esclarecê-los sobre o seu erro de modo particularmente minucioso,
perseverante, paciente, explicar-lhes a ligação indissolúvel do capital com a guerra imperialista e demonstrar-
lhes que sem derrubar o capital é impossível pôr fim à guerra com uma paz verdadeiramente democrática e não
imposta pela violência.

Organização da mais ampla propaganda deste ponto de vista no exército em operações.

Confraternização.

2. A peculiaridade do momento actual na Rússia consiste na transição da primeira etapa da revolução,


que deu o poder à burguesia por faltar ao proletariado o grau necessário de consciência e organização, para a
sua segunda etapa, que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato.

Esta transição caracteriza-se, por um lado, pelo máximo de legalidade (a Rússia é agora o país mais
livre do mundo entre todos os países beligerantes); por outro lado, pela ausência de violência contra as massas
e, finalmente, pelas relações de confiança inconsciente destas com o governo dos capitalistas, os piores inimigos
da paz e do socialismo.

Esta peculiaridade exige de nós habilidade para nos adaptarmos às condições especiais do trabalho do
partido entre as amplas massas do proletariado duma amplitude sem precedentes que acabam de despertar
para a vida política.

20
3. Nenhum apoio ao Governo Provisório, explicar a completa falsidade de todas as suas promessas,
sobretudo a da renúncia às anexações. Desmascaramento, em vez da «exigência» inadmissível e semeadora de
ilusões de que este governo, governo de capitalistas, deixe de ser imperialista.

4. Reconhecer o facto de que, na maior parte dos Sovietes de deputados operários, o nosso partido está
em minoria, e, de momento, numa minoria reduzida, diante do bloco de todos os elementos oportunistas
pequeno-burgueses, sujeitos à influência da burguesia e que levam a sua influência para o seio do proletariado,
desde os socialistas-populares[N14] e os socialistas-revolucionários[N15] até ao CO[N16] (Tchkheídze,
Tseretéli, etc), Steklov, etc.

Explicar às massas que os SDO(1*) são a única forma possível de governo revolucionário e que, por
isso, enquanto este governo se deixar influenciar pela burguesia, a nossa tarefa só pode consistir em explicar os
erros da sua táctica de modo paciente, sistemático, tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas
das massas.

Enquanto estivermos em minoria, desenvolveremos um trabalho de crítica e esclarecimento dos erros,


defendendo ao mesmo tempo a necessidade de que todo o poder de Estado passe para os Sovietes de deputados
operários, a fim de que, sobre a base da experiência, as massas se libertem dos seus erros.

5. Não uma república parlamentar — regressar dos SDO a ela seria um passo atrás, mas uma república
dos Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas e camponeses em todo o país, desde baixo até
acima.

Supressão da polícia, do exército e do funcionalismo(2*).

A remuneração de todos os funcionários, todos eles elegíveis e exoneráveis em qualquer momento,


não deverá exceder o salário médio de um bom operário.

6. No programa agrário, transferir o centro de gravidade para os Sovietes de deputados assalariados


agrícolas.

Confiscação de todas as terras dos latifundiários.

Nacionalização de todas as terras do país, dispondo da terra os Sovietes locais de deputados


assalariados agrícolas e camponeses. Criação de Sovietes de deputados dos camponeses pobres. Fazer de cada
grande herdade (com uma dimensão de umas 100 a 300 deciatinas, segundo as condições locais e outras e
segundo a determinação das instituições locais) uma exploração-modelo sob o controlo dos deputados
assalariados agrícolas e por conta da colectividade.

7. Fusão imediata de todos os bancos do país num banco nacional único e introdução do controlo por
parte dos SDO.

8. Não «introdução» do socialismo como nossa tarefa imediata, mas apenas passar imediatamente ao
controlo da produção social e da distribuição dos produtos por parte dos SDO.

9. Tarefas do partido:

a) congresso imediato do partido;

b) modificação do programa do partido, principalmente:

sobre o imperialismo e a guerra imperialista,


sobre a posição perante o Estado e a nossa reivindicação de um « Estado-Comuna »(3*),
emenda do programa mínimo, já antiquado;
c) mudança de denominação do partido(4*).

10. Renovação da Internacional.

21
Iniciativa de constituir uma Internacional revolucionária, uma Internacional contra os sociais-
chauvinistas e contra o «centro»(5*).

Para que o leitor compreenda por que tive de sublinhar de maneira especial, como rara excepção, o
«caso» de contraditores de boa-fé, convido-o a comparar estas teses com a seguinte objecção do Sr. Goldenberg:
Lénine «hasteou a bandeira da guerra civil no seio da democracia revolucionária» (citado no Edinstvo[N18] do
Sr. Plekhánov, n.° 5).

Uma pérola, não é verdade?

Escrevo, leio e mastigo: «Dada a indubitável boa-fé de grandes sectores de representantes de massas
do defensismo revolucionário ... dado o seu engano pela burguesia, é preciso esclarecê-los sobre o seu erro de
modo particularmente minucioso, paciente e perseverante ...

E esses senhores da burguesia, que se dizem sociais-democratas, que não pertencem nem aos grandes
sectores nem aos representantes de massas do defensismo, apresentam de rosto sereno as minhas opiniões,
expõem-nas assim: «hasteou (!) a bandeira (!) da guerra civil» (sobre a qual não há uma palavra nas teses, não
há uma palavra no relatório!) «no seio (!!) da democracia revolucionária...».

Que significa isto? Em que se distingue de uma agitação de pogromistas? da Rússkaia Vólia[19]?

Escrevo, leio e mastigo: «Os Sovietes de DO são a única forma possível de governo revolucionário e,
por isso, a nossa tarefa só pode consistir em explicar os erros da sua táctica de modo paciente, sistemático,
tenaz, e adaptado especialmente às necessidades práticas das massas...»

Mas contraditores de uma certa espécie expõem as minhas opiniões como um apelo à «guerra civil no
seio da democracia revolucionária»!!

Ataquei o Governo Provisório por não marcar um prazo próximo, nem nenhum prazo em geral, para a
convocação da Assembleia Constituinte e se limitar a promessas. Demonstrei que sem os Sovietes de deputados
operários e soldados não está garantida a convocação da Assembleia Constituinte, o seu êxito é impossível.

E atribuem-me a opinião de que sou contrário à convocação imediata da Assembleia Constituinte!!!

Qualificaria tudo isto de expressões «delirantes» se dezenas de anos de luta política não me tivessem
ensinado a considerar a boa-fé dos contraditores como uma rara excepção.

No seu jornal, o Sr. Plekhánov qualificou o meu discurso de «delirante». Muito bem, Sr. Plekhánov! Mas
veja quão desajeitado, inábil e pouco perspicaz é você na sua polémica. Se durante duas horas pronunciei um
discurso delirante, como é que centenas de ouvintes aguentaram esse «delírio»? Mais ainda. Para que dedica o
seu jornal toda uma coluna a relatar um «delírio»? Isso não pega, não pega mesmo nada.

É muito mais fácil, naturalmente, gritar, insultar e vociferar que tentar expor, explicar e recordar como
raciocinaram Marx e Engels em 1871, 1872 e 1875 sobre a experiência da Comuna de Paris[N20] e sobre qual o
Estado de que o proletariado necessita.

Provavelmente o ex-marxista Sr. Plekhánov não deseja recordar o marxismo.

Citei as palavras de Rosa Luxemburg, que em 4 de Agosto de 1914 chamou à social-democracia alemã
«cadáver malcheiroso». E os Srs. Plekhánov, Goldenberg e C.a sentem-se «ofendidos»... por quem? Pelos
chauvinistas alemães, qualificados de chauvinistas!

Enredaram-se os pobres sociais-chauvinistas russos, socialistas nas palavras e chauvinistas de facto.

Notas de rodapé:
(1*) Sovietes de deputados operários. (N. Ed.) (retornar ao texto)
(2*) Isto é, substituição do exército permanente pelo armamento geral do povo. (retornar ao texto)
(3*) Isto é, de um Estado cujo protótipo foi dado pela Comuna de Paris[N17]. (retornar ao texto)

22
(4*) Em lugar de «social-democracia», cujos chefes oficiais traíram o socialismo no mundo inteiro,
passando para o lado da burguesia (os «defensistas» e os vacilantes «kautskianos»), devemos denominar-nos
Partido Comunista. (retornar ao texto)
(5*) Na social-democracia internacional chama-se «centro» a tendência que vacila entre os
chauvinistas (= «defensistas») e os internacionalistas, isto é, Kautsky e C.a na Alemanha. Longuet e C.a na
França, Tchkheídze e C" na Rússia, Turati e C.a na Itália, MacDonald e C.a na Inglaterra, etc. (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N13] O artigo Sobre as Tarefas do Proletariado na Presente Revolução, publicado em 7 de Abril de
1917 no jornal Pravda, n.O26, com a assinatura de N. Lénine, contém as famosas Teses de Abril de V.I. Lénine,
aparentemente escritas durante a viagem de comboio, nas vésperas da sua chegada a Petrogrado.
Lénine leu as suas teses em duas reuniões do dia 14 (17) de Abril: na reunião de bolcheviques e na
reunião conjunta de bolcheviques e mcnchcviqucs delegados à Assembleia de Toda a Rússia dos Sovietes de
deputados operários e soldados, cfectuada no Palácio de Táurida. Lénine desenvolveu e concretizou
pormenorizadamcnte as Teses de Abril no trabalho As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução (Projecto de
Plataforma do Partido Proletário), escrito em 10 (23) de Abril de 1917. Ver o presente tomo, pp. 21-48.)
(retornar ao texto)
[N14] Socialistas-populares: membros do Partido Socialista Popular do Trabalho, pequeno-burguês,
criado em 1906 com base na ala direita do Partido Socialista-Revolucionário. Os «socialistas-populares» eram
partidários duma aliança com os democratas-constitucionalistas.
À frente do partido encontravam-se A. V. Pechekhónov, N. F. Annénski, V. A. Miakotine e outros.
Durante a Primeira Guerra Mundial os «socialistas-populares» adoptaram posições sociais-chauvinistas. Depois
da revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, o partido dos «socialistas-populares» fundiu-se com
os trudoviques, apoiou a actividade do Governo Provisório burguês, no qual estava representado. Depois da
Revolução Socialista de Outubro os «socialistas-populares» participaram em conspirações e levantamentos
armados contra-revolucionários contra o Poder Soviético. (retornar ao texto)
[N15] Socialistas-revolucionários: membros dum partido pequeno-burguês russo criado em fins de
1901, princípio de 1902. Durante a guerra imperialista mundial, a maior parte dos socialistas-revolucionários
adoptaram posições sociais-chauvinistas. Após a revolução democrática burguesa de Fevereiro de 1917, os
socialistas-revolucionários, juntamente com os mencheviques, foram o apoio principal do Governo Provisório
contra-revolucionário, e dirigentes deste partido (Kérenski, Avxéntiev, Tchernov) fizeram parte do Governo. O
partido dos socialistas-revolucionários renunciou a apoiar a reivindicação camponesa da liquidação dos
latifundiários. Os ministros do Governo Provisório membros do partido dos socialistas-revolucionários
enviaram destacamentos punitivos contra os camponeses que tinham tomado as terras dos latifundiários.
Depois da Revolução Socialista de Outubro, os socialistas-revolucionários, em aliança com a burguesia, com os
latifundiários e com os intervencionistas estrangeiros, lutavam activamente contra o Poder Soviético. (retornar
ao texto)
[N16] CO: Comité de Organização. Foi criado em 1912 na conferência de Agosto dos liquidacionistas.
Durante a guerra imperialista mundial o CO adoptou uma posição social-chauvinista. O CO funcionou até à
eleição do CC do partido menchevique no congresso "de unificação" do POSDR (menchevique) em Agosto de
1917. (retornar ao texto)
[N17] Comuna de Paris de 1871: a primeira experiência de ditadura do proletariado na história da
humanidade; governo revolucionário da classe operária instituído pela revolução proletária em Paris. Existiu
durante 72 dias, de 18 de Março a 28 de Maio de 1971. (retornar ao texto)
[N18] Edinstvo (Unidade): jornal diário, órgão do grupo de extrema-direita dos mencheviques
defensistas chefiado por G. V. Plekhánov. Publicou-se em Petrogrado de Março a Novembro de 1917; de
Dezembro de 1917 a Janeiro de 1918 publicou-se com o nome de Nache Edinstvo (Nossa Unidade).
Manifestando-se pelo apoio ao Governo Provisório, à coligação com a burguesia, por um «poder
firme», o jornal exigia a continuação da guerra imperialista «até à vitória completa»; juntamente com a
imprensa burguesa e centrista participou na campanha contra os bolcheviques. Teve uma atitude hostil em
relação à Revolução de Outubro e à instauração do Poder Soviético. (retornar ao texto)
[N19] Rússkaia Vólia (Liberdade Russa): diário burguês fundado pelo ministro tsarista do Interior A.
D. Protopópov e financiado pelos grandes bancos. Publicou-se em Petrogrado de Dezembro de 1916 a Outubro
de 1917. (retornar ao texto)
[N20] Ver K. Marx e F. Engels, Prefácio à edição alemã do «Manifesto do Partido Comunista» de 1872;
K. Marx, A Guerra Civil em França. Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos
Trabalhadores, Critica do Programa de Gotha; F. Engels, Carta a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875; K. Marx,
Cartas a L. Kugelmann de 12 e de 17 de Abril de 1871. (ln Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 4, S. 573-574;
Bd. 17, S. 335-350; (retornar ao texto)

23
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/04_teses.htm

24
As Tarefas do Proletariado na Nossa Revolução
(Projecto de Plataforma do Partido Proletário)
V. I. Lénine

10 (23) de Abril de 1917

O momento histórico que a Rússia atravessa caracteriza-se pelos seguintes traços fundamentais:

O Carácter de Classe da Revolução Realizada

1. O velho poder tsarista, que representava apenas um punhado de latifundiários feudais, que
comandava toda a máquina de Estado (exército, polícia, funcionalismo), foi derrotado, afastado, mas não
recebeu o golpe de misericórdia. A monarquia não está formalmente abolida. A corja dos Románov prossegue as
intrigas monárquicas. A posse de gigantescas propriedades pelos latifundiários feudais não foi liquidada.

2. O poder de Estado passou na Rússia para as mãos de uma nova classe, a saber: da burguesia e dos
latifundiários aburguesados. Nesta medida a revolução democrático-burguesa na Rússia está terminada.

A burguesia instalada no poder formou um bloco (uma aliança) com elementos claramente
monárquicos, que se distinguiram pelo apoio extremamente zeloso a Nicolau, o Sanguinário, e a Stolípine, o
Enforcador, em 1906-1914 (Gutchkov e outros políticos situados à direita dos democratas-constitucionalistas).
O novo governo burguês de Lvov e C.a tentou e iniciou conversações com os Románov para restaurar a
monarquia na Rússia. Encobrindo-se com uma fraseologia revolucionária, este governo nomeia para os postos
de comando partidários do antigo regime. Este governo esforça-se para reformar o menos possível todo o
aparelho da máquina de Estado (exército, polícia, burocracia), pondo-o nas mãos da burguesia. O novo governo
começou já a pôr toda a espécie de obstáculos à iniciativa revolucionária das acções de massas e à conquista do
poder pelo povo a partir de baixo — única garantia de êxitos reais da revolução.

Até hoje, este governo não marcou sequer o prazo de convocação da Assembleia Constituinte. Não toca
na propriedade latifundiária da terra, base material do tsarismo feudal. Este governo não pensa sequer começar
a investigar as actividades, em tornar públicas as actividades, em controlar as organizações financeiras
monopolistas, os grandes bancos, os consórcios e cartéis dos capitalistas, etc.

Os postos ministeriais mais importantes e decisivos do novo governo (o Ministério do Interior, o


Ministério da Guerra, isto é, o comando do exército, da polícia e da burocracia, de todo o aparelho de opressão
das massas) pertencem a notórios monárquicos e partidários da grande propriedade latifundiária. Aos
democratas-constitucionalistas, republicanos de última hora, republicanos a contragosto, foram concedidos
postos secundários, que não têm relação directa nem com o comando sobre o povo nem com o aparelho do
poder de Estado. A. Kérenski, representante dos trudoviques e «também-socialista», não desempenha
absolutamente nenhum papel além de adormecer com frases sonoras a vigilância e a atenção do povo.

Por todas estas razões, o novo governo burguês não merece, nem mesmo no campo da política interna,
nenhuma confiança do proletariado, e é inadmissível que este lhe preste qualquer apoio.

A Política Externa do Novo Governo

3. No campo da política externa, que as circunstâncias objectivas colocaram hoje em primeiro plano, o
novo governo é um governo de continuação da guerra imperialista, de uma guerra em aliança com as potências
imperialistas, a Inglaterra, a França, etc, pela partilha do saque capitalista e pelo estrangulamento dos povos
pequenos e fracos.

Apesar dos desejos expressos do modo mais claro, por intermédio do Soviete de deputados operários e
soldados, pela maioria indubitável dos povos da Rússia, o novo governo, subordinado aos interesses do capital
russo e aos do seu poderoso protector e senhor, o capital imperialista anglo-francês, o mais rico de todo o
mundo, não deu nenhum passo real para acabar com o massacre dos povos, organizado no interesse dos
capitalistas. Nem sequer tornou públicos os tratados secretos, de conteúdo notoriamente espoliador (sobre a
partilha da Pérsia, sobre o saque da China, sobre o saque da Turquia, sobre a partilha da Áustria, sobre a
anexação da Prússia Oriental, sobre a anexação das colónias alemãs, etc), que amarram notoriamente a Rússia

25
ao rapace capital imperialista anglo-francês. Ele confirmou estes tratados concluídos pelo tsarismo, que no
decorrer de séculos espoliou e oprimiu mais povos que os outros tiranos e déspotas, pelo tsarismo que não só
oprimia mas também desonrava e corrompia o povo grão-russo, cunvertendo-o em carrasco de outros povos.

O novo governo, tendo confirmado esses tratados vergonhosos e espoliadores, não propôs
imediatamente a todos os povos beligerantes um armistício, apesar da reivindicação claramente expressa da
maioria dos povos da Rússia por intermédio dos Sovietes de deputados operários e soldados. Ele limitou-se a
declarações e frases solenes, sonoras e pomposas, mas completamente ocas, que na boca dos diplomatas
burgueses serviram e servem sempre para enganar as massas ingénuas e crédulas do povo oprimido.

4. Por isso, o novo governo não só não merece a menor confiança no campo da política externa, como
continuar a exigir dele que proclame os desejos de paz dos povos da Rússia, que renuncie às anexações, etc, etc,
significa apenas, na realidade, enganar o povo, fazê-lo ter esperanças irrealizáveis, retardar o esclarecimento da
sua consciência, conciliá-lo indirectamente com a continuação da guerra, cujo verdadeiro carácter social não é
determinado pelos votos piedosos, mas pelo carácter de classe do governo que faz a guerra, pelas ligações da
classe representada por esse governo com o capital financeiro imperialista da Rússia, da Inglaterra, da França,
etc, pela política efectiva real seguida por essa classe.

A Original Dualidade de Poderes e o seu Significado de Classe

5. A peculiaridade essencial da nossa revolução, peculiaridade que mais imperiosamente requer uma
atenção reflectida, é a dualidade de poderes, surgida logo nos primeiros dias que se seguiram ao triunfo da
revolução.

Esta dualidade de poderes manifesta-se na existência de dois governos: o governo principal, autêntico
e efectivo da burguesia, o «Governo Provisório» de Lvov e C.a, que tem nas suas mãos todos os órgãos do poder,
e um governo suplementar, secundário, de «controlo», personificado pelo Soviete de deputados operários e
soldados de Petrogrado, que não tem nas suas mãos os órgãos do poder de Estado, mas se apoia directamente
na indubitável maioria absoluta do povo, nos operários armados e nos soldados.

A origem e o significado de classe desta dualidade de poderes consistem em que a revolução russa de
Março de 1917, não só varreu toda a monarquia tsarista, não só entregou o poder à burguesia, mas também se
aproximou de perto da ditadura democrática revolucionária do proletariado e do campesinato. Precisamente
tal ditadura (isto é, um poder que não se baseie na lei, mas na força directa das massas armadas da população),
e precisamente das classes mencionadas, são os Sovietes de deputados operários e soldados de Petrogrado e
outros locais.

6. Outra peculiaridade extremamente importante da revolução russa consiste em que o Soviete de


deputados soldados e operários de Petrogrado, que goza, segundo todos os indícios, da confiança da maioria
dos Sovietes locais, entrega voluntariamente o poder de Estado à burguesia e ao seu Governo Provisório, cede-
lhe voluntariamente a primazia, concluindo com ele um acordo para o apoiar, e contenta-se com o papel de
observador, de fiscalizador da convocação da Assembleia Constituinte (até hoje o Governo Provisório não
anunciou sequer a data da sua convocação).

Esta circunstância extraordinariamente original, que a História não tinha ainda conhecido sob tal
forma, conduziu ao entrelaçamento num todo único de duas ditaduras: a ditadura da burguesia (pois o governo
de Lvov e C.a é uma ditadura, isto é, um poder que não se apoia na lei nem na vontade previamente expressa
pelo povo, mas na conquista do poder pela força, além disso a conquista por esta classe bem determinada, a
saber: a burguesia) e a ditadura do proletariado e do campesinato (o Soviete de deputados operários e
soldados).

Não há a menor dúvida de que esse «entrelaçamento» não está em condições de se aguentar muito
tempo. Num Estado não podem existir dois poderes. Um deles tem de ser reduzido a nada, e toda a burguesia da
Rússia trabalha já com todas as suas forças, em todos os lugares e por todos os meios para afastar, enfraquecer
e reduzir a nada os Sovietes de deputados soldados e operários, para criar o poder único da burguesia.

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A dualidade de poderes não exprime senão um momento de transição no desenvolvimento da
revolução, quando ela já foi além dos limites da revolução democrático-burguesa comum mas não chegou ainda
a uma ditadura «pura» do proletariado e do campesinato.

O significado de classe (e a explicação de classe) desta situação transitória e instável consiste no


seguinte: a nossa revolução, como todas as revoluções, exigiu das massas o maior heroísmo e sacrifício na luta
contra o tsarismo, mas também arrastou para o movimento, bruscamente, um número imenso de pequenos
burgueses.

Um dos principais indícios científicos e políticos práticos de qualquer verdadeira revolução consiste
no aumento extraordinariamente rápido, brusco, súbito, do número dos «pequenos burgueses» que começam a
tomar parte activa, independente e efectiva na vida política, na organização do Estado.

Assim também na Rússia. A Rússia neste momento ferve. Milhões e dezenas de milhões de homens
politicamente adormecidos durante dez anos, politicamente sufocados pelo terrível jugo do tsarismo e os
trabalhos forçados a favor dos latifundiários e dos fabricantes, despertaram e integraram-se na política. E quem
são esses milhões e dezenas de milhões de homens? A maior parte são pequenos patrões, pequenos burgueses,
pessoas que estão a meio caminho entre os capitalistas e os operários assalariados. A Rússia é o país mais
pequeno-burguês de todos os países europeus.

Uma gigantesca onda pequeno-burguesa inundou tudo, dominou o proletariado consciente, não só
pelo seu número, mas também ideologicamente, isto é, contaminou e arrastou com as suas concepções políticas
pequeno-burguesas círculos muito amplos de operários.

Na vida real a pequena burguesia depende da burguesia, a sua vida (no sentido do lugar na produção
social) é de patrão e não de proletário, e na forma de pensar segue a burguesia.

Uma atitude de confiança inconsciente nos capitalistas, os piores inimigos da paz e do socialismo — eis
o que caracteriza a política actual das massas na Rússia, eis o que cresceu com rapidez revolucionária no
terreno económico-social do mais pequeno-burguês de todos os países europeus. Eis a base de classe do
«acordo» (sublinho que tenho em vista não tanto um acordo formal como o apoio de facto, o acordo tácito, a
entrega confiadamente inconsciente do poder) entre o Governo Provisório e o Soviete de deputados operários e
soldados — acordo que deu aos Gutchkov o melhor bocado, o verdadeiro poder, e ao Soviete promessas, honras
(provisoriamente), adulações, frases, garantias e reverências dos Kérenski.

A insuficiência numérica do proletariado na Rússia, a insuficiência da sua consciência e organização —


eis o reverso da mesma medalha.

Todos os partidos populistas, incluindo os socialistas-revolucionários, sempre foram pequeno-


burgueses, e também o partido do CO (Tchkheídze, Tseretéli, etc); os revolucionários sem partido (Steklov e
outros) igualmente foram dominados pela onda pequeno-burguesa ou não se impuseram a ela, não tiveram
tempo de se impor.

Peculiaridade da Táctica Decorrente do que Precede

7. Da peculiaridade atrás apontada da situação real decorre obrigatoriamente para o marxista — que
deve ter em conta os factos objectivos, as massas e as classes, e não os indivíduos, etc. — a peculiaridade da
táctica do momento presente.

Esta peculiaridade coloca no primeiro plano a necessidade de «misturar vinagre e fel na água
açucarada da frase democrático-revolucionária» (como se exprimiu — com notável acerto — o meu camarada
do CC do nosso partido, Teodoróvitch, na sessão de ontem do Congresso de toda a Rússia de empregados e
operários ferroviários em Petrogrado[N22]). Trabalho de crítica, esclarecimento dos erros dos partidos
pequeno-burgueses socialista-revolucionário e social-democrata, trabalho de preparação e coesão dos
elementos do partido conscientemente proletário, comunista, libertação do proletariado da embriaguez
pequeno-burguesa «geral».

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Este trabalho parece ser «apenas» um trabalho de propaganda. Mas, na realidade, é o trabalho
revolucionário mais prático, pois é impossível impulsionar uma revolução que se deteve, que se está afogando
com frases e «marca passo» não por causa de obstáculos externos, não por causa da violência por parte da
burguesia (de momento Gutchkov só ameaça empregar a violência contra a massa dos soldados), mas por causa
da inconsciência confiante das massas.

Somente lutando contra esta inconsciência confiante (e pode-se e deve-se lutar contra ela apenas
ideologicamente, pela persuasão fraternal, apontando para a experiência da vida) podemos libertar-nos do
desencadeamento de frases revolucionárias reinante e impulsionar verdadeiramente tanto a consciência do
proletariado como a consciência das massas, como a sua iniciativa audaz e resoluta à escala local, a realização
espontânea, o desenvolvimento e a consolidação das liberdades, da democracia, do princípio de propriedade de
toda a terra pela totalidade do povo.

8. A experiência mundial dos governos burgueses e latifundiários criou dois métodos para manter o
povo na opressão. O primeiro é a violência. Nicolau Románov I (Nicolau Garrote) e Nicolau II (o Sanguinário)
mostraram ao povo russo o máximo do possível e do impossível quanto a tais métodos de carrasco. Mas há
outro método, que as burguesias inglesa e francesa, «educadas» por uma série de grandes revoluções e
movimentos revolucionários de massas, elaboraram melhor que ninguém. É o método do engano, da adulação,
das frases, dos milhões de promessas, das esmolas miseráveis, das concessões nas coisas insignificantes para
conservar o essencial.

A peculiaridade do momento na Rússia consiste na transição vertiginosamente rápida do primeiro


método para o segundo, da violência contra o povo para as adulações ao povo, para o seu engano com
promessas. O gato Vaska ouve e continua a comer[N23]. Miliukov e Gutchkov detêm o poder, protegem os
lucros do capital, fazem a guerra imperialista no interesse do capital russo e anglo-francês — e limitam-se a
promessas, declamações, declarações de efeito em resposta aos discursos de «cozinheiros» como Tchkheídze,
Tseretéli e Steklov, que ameaçam, apelam para a consciência, suplicam, imploram, exigem, proclamam ... O gato
Vaska ouve e continua a comer.

Mas cada dia que passa, a inconsciência confiante e a confiança inconsciente irão desaparecendo,
sobretudo por parte dos proletários e dos camponeses pobres, a quem a vida (a sua situação económico-social)
ensina a não confiar nos capitalistas.

Os chefes da pequena burguesia «devem» ensinar o povo a confiar na burguesia. Os proletários devem
ensiná-lo a desconfiar.

O Defensismo Revolucionário e o seu Significado de Classe

9. O defensismo revolucionário deve ser considerado a manifestação mais importante e saliente da


onda pequeno-burguesa que inundou «quase tudo». É precisamente ele o pior inimigo do desenvolvimento e do
triunfo da revolução russa.

Quem tenha cedido neste ponto e não tenha sabido libertar-se está perdido para a revolução. Mas as
massas cedem de modo diferente dos chefes e libertam-se de modo diferente, por outra via de
desenvolvimento, por outro método.

O defensismo revolucionário é, por um lado, fruto do engano das massas pela burguesia, fruto da
confiante inconsciência dos camponeses e de uma parte dos operários, e, por outro, expressão dos interesses e
pontos de vista do pequeno patrão interessado até um certo grau nas anexações e nos lucros bancários e que
conserva «sagradamente» as tradições do tsarismo, que corrompia os grão-russos convertendo-os em carrascos
de outros povos.

O burguesia engana o povo especulando com o nobre orgulho deste pela revolução e apresentando as
coisas como se o carácter político-social da guerra tivesse mudado, no que se refere à Rússia, em consequência
desta etapa da revolução, da substituição da monarquia dos tsares pela quase república de Gutchkov e Miliukov.
E o povo acreditou — temporariamente — graças, em grau significativo, aos velhos preconceitos que lhe faziam
ver em outros povos da Rússia que não o grão-russo uma espécie de propriedade ou feudo dos grão-russos. A

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infame corrupção do povo grão-russo pelo tsarismo, que o ensinou a ver os outros povos como algo inferior,
algo que pertencia «de direito» à Grã-Rússia não pôde ser apagada de um só golpe.

Exige-se de nós habilidade para explicar às massas que o carácter politico-social da guerra não é
determinado pela «boa vontade» de pessoas e grupos, nem mesmo de povos, mas pela situação da classe que faz
a guerra, pela política de classe de que a guerra é a continuação, pelos laços do capital, como força económica
dominante da sociedade moderna, pelo carácter imperialista do capital internacional, pela dependência —
financeira, bancária, diplomática — da Rússia em relação à Inglaterra e à França, etc. Não é fácil expor
habilmente tudo isto, de maneira que as massas o entendam. Nenhum de nós seria capaz de fazê-lo de golpe
sem erros.

Mas a orientação, ou, melhor, o conteúdo da nossa propaganda deve ser esse e só esse. A mais
insignificante concessão ao defensismo revolucionário é uma traição ao socialismo, uma renúncia total ao
internacionalismo, por muito bonitas que sejam as frases e muito «práticas» as considerações com que sejam
justificadas.

A palavra de ordem de «Abaixo a guerra!» é, naturalmente, justa, mas não tem em conta a
peculiaridade das tarefas do momento, a necessidade de chegar às grandes massas por um caminho diferente. É
semelhante, parece-me, à palavra de ordem «Abaixo o tsar!», com que os inexperientes agitadores dos «bons
velhos tempos» se dirigiam directa e abertamente ao campo — e levavam pancada. Os representantes de
massas do defensismo revolucionário estão de boa fé — não num sentido pessoal, mas de classe, isto é,
pertencem a classes (operários e camponeses pobres) que realmente não têm nada a ganhar com as anexações
nem com o estrangulamento de outros povos. Coisa muito diversa acontece com os burgueses e os senhores
«intelectuais», que sabem muito bem que é impossível renunciar às anexações sem renunciar ao domínio do
capital e que enganam sem escrúpulos as massas com belas frases, com promessas desmedidas e inúmeras
obrigações.

Os representantes de massas do defensismo vêem as coisas com simplicidade, como o homem comum:
«Não quero anexações, mas os alemães 'lançam-se' contra mim e, portanto, defendo uma causa justa e não de
modo algum interesses imperialistas.» A homens deste tipo é preciso explicar e explicar que não se trata dos
seus desejos pessoais, mas das relações e condições de massas, de classe, políticas, da ligação da guerra com os
interesses do capital e com a rede internacional de bancos, etc. Tal é a única luta séria contra o defensismo, a
única que promete êxito, lento talvez, mas seguro e duradouro.

Como se Pode Por Fim a Guerra?

10. Não se pode pôr fim à guerra por «desejo próprio». Não se lhe pode pôr fim por decisão de uma das
partes. Não se lhe pode pôr fim «espetando a baioneta na terra», segundo a expressão de um soldado defensista.

Não se pode pôr fim à guerra mediante um «acordo» entre os socialistas de diferentes países, por meio
de uma «acção» dos proletários de todos os países, pela «vontade» dos povos, etc. — todas as frases deste
género, que enchem os artigos dos jornais defensistas, semidefensistas e semi-internacionalistas, assim como as
inumeráveis resoluções, proclamações, manifestos, resoluções do Soviete de deputados operários e soldados,
todas estas frases não são senão vazios, inocentes, bons desejos de pequenos burgueses. Nada existe de mais
nocivo do que tais frases sobre a «manifestação da vontade de paz dos povos», sobre a sequência que deverão
seguir as acções revolucionárias do proletariado (depois do russo, «é a vez» do alemão), etc. Tudo isso é
louisblanquismo[N24], doces sonhos, é brincar às «campanhas políticas», é, na realidade, a repetição da fábula
do gato Vaska.

A guerra não foi gerada pela má vontade dos capitalistas rapaces, embora seja indubitável que só se faz
no interesse deles e só a eles enriquece. A guerra é o produto de meio século de desenvolvimento do capital
mundial, dos seus milhares de milhões de fios e laços. É impossível sair da guerra imperialista, é impossível
conseguir uma paz democrática, não imposta pela violência, sem derrubar o poder do capital, sem a passagem
do poder de Estado para outra classe, para o proletariado.
A revolução russa de Fevereiro-Março de 1917 foi o começo da transformação da guerra imperialista
em guerra civil. Esta revolução deu o primeiro passo para a cessação da guerra. Apenas um segundo passo pode
garantir a sua cessação, a saber: a passagem do poder de Estado para o proletariado. Isto será o começo da

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«ruptura da frente» em todo o mundo — da frente dos interesses do capital: e só tendo rompido esta frente o
proletariado pode libertar a humanidade dos horrores da guerra, dar-lhe os benefícios de uma paz duradoura.

E a revolução russa, ao criar os Sovietes de deputados operários, levou já o proletariado da Rússia bem
perto dessa «ruptura da frente» do capital.

O Novo Tipo de Estado que Surge na Nossa Revolução

11. Os Sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, etc, são incompreendidos não só no
sentido de que a maioria não vê com clareza o seu significado de classe, o seu papel na revolução russa. São
incompreendidos também no sentido de que representam em si uma nova forma ou, mais exactamente, um
novo tipo de Estado.

O tipo mais perfeito, mais avançado dos Estados burgueses é a república democrática parlamentar: o
poder pertence ao parlamento; a máquina de Estado, o aparelho e os órgãos de administração são os habituais:
exército permanente, polícia, burocracia de facto inamovível, privilegiada, situada acima do povo.

Mas desde os fins do século XIX, as épocas revolucionárias apresentam um tipo superior de Estado
democrático, um Estado que, em certos aspectos, já deixa de ser, segundo a expressão de Engels, um Estado,
«não é já um Estado no verdadeiro sentido da palavra»[N25]. É o Estado do tipo da Comuna de Paris, que
substitui o exército e a polícia, separados do povo, pelo armamento imediato e directo do próprio povo. Nisto
consiste a essência da Comuna, caluniada e denegrida pelos escritores burgueses e à qual atribuíam
erroneamente, entre outras coisas, a intenção de «implantar» imediatamente o socialismo.

A revolução russa começou a criar, em 1905 e em 1917, um Estado precisamente deste tipo. A
República dos Sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, etc, unidos numa Assembleia
Constituinte de toda a Rússia dos representantes do povo ou num Conselho dos Sovietes, etc. — eis o que entre
nós surge já na vida hoje, actualmente, por iniciativa de um povo de muitos milhões de homens, que cria por
iniciativa própria a democracia à sua maneira, sem esperar nem que os senhores professores democratas-
constitucionalistas escrevam os seus projectos de lei de uma república parlamentar burguesa, nem que os
pedantes e rotineiros da «social-democracia» pequeno-burguesa, como o Sr. Plekhánov ou Kautsky, renunciem
às suas deturpações da teoria do marxismo quanto à questão do Estado.

O marxismo distingue-se do anarquismo pelo facto de que reconhece a necessidade do Estado e do


poder estatal no período revolucionário, em geral, na época da transição do capitalismo para o socialismo, em
particular.

O marxismo distingue-se do «social-democratismo» oportunista pequeno-burguês do Sr. Plekhánov,


Kautsky e C.a pelo facto de que reconhece a necessidade para os períodos indicados não de um Estado como a
república burguesa parlamentar habitual, mas de um como a Comuna de Paris.

As diferenças fundamentais entre este último tipo de Estado e o antigo são as seguintes:

Regressar da república burguesa parlamentar à monarquia é muito fácil (como a história o


demonstra), porque permanece intacta toda a máquina de opressão: o exército, a polícia, o funcionalismo. A
Comuna e os Sovietes de deputados operários, soldados, camponeses, etc, quebram e eliminam esta máquina.

A república burguesa parlamentar dificulta e asfixia a vida política independente das massas, a sua
participação directa na edificação democrática de toda a vida do Estado, de baixo para cima. Com os Sovietes de
deputados operários e soldados dá-se o contrário.

Estes últimos reproduzem o tipo de Estado elaborado pela Comuna de Paris e que Marx qualificou de
«forma política por fim descoberta, na qual pode ser realizada a emancipação económica dos
trabalhadores»[N26]

Costuma objectar-se: o povo russo não está ainda preparado para a «introdução» da Comuna. É o
argumento empregado pelos feudais, quando diziam que os camponeses não estavam preparados para a
liberdade. A Comuna, isto é, os Sovietes de deputados operários e camponeses, não «introduz», não se propõe

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«introduzir» nem deve introduzir nenhumas transformações que não estejam já absolutamente maduras na
realidade económica e na consciência da imensa maioria do povo. Quanto mais fortes forem a bancarrota
económica e a crise gerada pela guerra, tanto mais urgente é a necessidade de uma forma política, a mais
perfeita possível, que facilite a cura das terríveis feridas causadas à humanidade pela guerra. E quanto menos
experiência de organização o povo russo tiver, tanto mais resolutamente será preciso lançar-se à actividade
organizativa do próprio povo, e não exclusivamente dos politiqueiros burgueses e funcionários com
«lugarzinhos rendosos».

Quanto mais rapidamente nos desembaraçarmos dos velhos preconceitos do pseudomarxismo, do


marxismo deturpado pelo Sr. Plekhánov, Kautsky e C.a, quanto mais zelosamente ajudarmos o povo a construir
sem demora e por toda a parte Sovietes de deputados operários e camponeses, a tomar nas suas mãos toda a
vida, quanto mais tempo os Srs. Lvov e C.a adiarem a convocação da Assembleia Constituinte, tanto mais fácil
será ao povo fazer a escolha a favor da República dos Sovietes de deputados operários e camponeses (por meio
da Assembleia Constituinte ou sem ela, se Lvov demorar muito a convocá-la). Nesta nova actividade
organizativa do próprio povo, a princípio serão inevitáveis erros, mas é melhor errar e ir avante do que esperar
que os professores juristas convocados pelo Sr. Lvov escrevam as leis sobre a convocação da Assembleia
Constituinte e sobre a perpetuação da república burguesa parlamentar, sobre o estrangulamento dos Sovietes
de deputados operários e camponeses.

Se nos organizarmos e conduzirmos com habilidade a nossa propaganda, não só os proletários mas
também nove décimos do campesinato estarão contra a restauração da polícia, contra o funcionalismo
inamovível e privilegiado, contra o exército separado do povo. E é apenas nisto que consiste o novo tipo de
Estado.

12. A substituição da polícia por uma milícia popular é uma transformação que deriva de todo o curso
da revolução e que actualmente está a realizar-se na vida na maioria dos lugares da Rússia. Devemos explicar às
massas que, na maioria das revoluções burguesas de tipo comum, tal transformação foi muito efémera e que a
burguesia, mesmo a mais democrática e republicana, restabeleceu a velha polícia, de tipo tsarista, separada do
povo, colocada sob o comando de burgueses e capaz de oprimir o povo por todos os meios.

Só há um meio de impedir a restauração da polícia: criar uma milícia de todo o povo, fundi-la com o
exército (substituir o exército permanente pelo armamento geral do povo). Desta milícia deverão fazer parte
todos os cidadãos e cidadãs sem excepção, desde os 15 até aos 65 anos, idades que só tomamos a título de
exemplo para indicar a participação dos adolescentes e velhos. Os capitalistas deverão pagar aos operários
assalariados, criados, etc, os dias dedicados ao serviço social na milícia. Sem chamar a mulher à participação
independente não só na vida política em geral como também ao serviço social em geral, permanente, nem
sequer se pode falar não só de socialismo, mas mesmo de uma democracia duradoura e completa. E funções de
«polícia» tais como o cuidado dos doentes e das crianças abandonadas, a inspecção da alimentação, etc, não
podem absolutamente ser satisfatoriamente realizadas sem a igualdade de direitos da mulher, de facto e não
apenas no papel.

Impedir o restabelecimento da polícia, chamar as forças organizadoras de todo o povo à construção de


uma milícia geral — tais são as tarefas que o proletariado tem de levar às massas no interesse da segurança,
consolidação e desenvolvimento da revolução.

Os Programas Agrário e Nacional

13. No momento actual não podemos saber com precisão se se desenvolverá num futuro próximo uma
poderosa revolução agrária no campo russo. Não podemos saber precisamente quão profunda é a divisão de
classe do campesinato, acentuada, indubitavelmente, nos últimos tempos, em operários assalariados
permanentes e temporários e camponeses pobres (semiproletários), por um lado, e camponeses ricos e médios
(capitalistas e pequenos capitalistas), por outro lado. Só a experiência dá e pode dar a resposta a esta pergunta.

Mas como partido do proletariado temos a obrigação absoluta não só de apresentar sem demora um
programa agrário (sobre a terra) mas também de defender medidas práticas de realização imediata no
interesse da revolução agrária camponesa na Rússia.

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Devemos exigir a nacionalização de todas as terras, isto é, a passagem das terras existentes no país
para a propriedade do poder central do Estado. Este poder deverá determinar as proporções, etc, do fundo de
colonização, promulgar as leis para a protecção florestal, melhoramento do solo, etc, e proibir em absoluto toda
a mediação entre o proprietário da terra, o Estado, e o seu arrendatário, o agricultor (proibir todo o
subarrendamento da terra). Mas toda a disposição da terra, toda a determinação das condições locais da sua
posse e usufruto não deve encontrar-se de modo algum nas mãos da burocracia, dos funcionários, mas plena e
exclusivamente nas mãos dos Sovietes de deputados camponeses regionais e locais.

Para melhorar a técnica da produção de cereais e aumentar a produção e também para desenvolver as
grandes explorações agrícolas racionais e efectuar o controlo social sobre elas, devemos procurar, dentro dos
comités de camponeses, transformar cada herdade latifundiária confiscada numa grande exploração modelo,
sob o controlo dos Sovietes de deputados assalariados agrícolas.

Em contraposição às frases e à política pequeno-burguesa imperantes entre os socialistas-


revolucionários, principalmente nas ocas conversas sobre a norma de «consumo» ou de «trabalho», sobre a
«socialização da terra», etc, o partido do proletariado deve explicar que o sistema da pequena exploração, no
regime de produção mercantil, não está em condições de libertar a humanidade da miséria das massas e da sua
opressão.

Sem cindir imediata e obrigatoriamente os Sovietes de deputados camponeses, o partido do


proletariado deve explicar a necessidade de Sovietes especiais de deputados assalariados agrícolas e Sovietes
especiais de deputados camponeses pobres (semiproletários), ou, pelo menos, conferências especiais
permanentes dos deputados destes sectores de classe, como fracções ou partidos especiais dentro dos Sovietes
gerais de deputados camponeses. De outro modo, todas as melífluas frases pequeno-burguesas dos
populistas[N27] sobre os camponeses em geral servirão para encobrir o engano das massas sem terra pelos
camponeses ricos, que representam apenas uma variedade de capitalistas.

Em contraposição às prédicas liberais burguesas ou puramente burocráticas de muitos socialistas-


revolucionários e Sovietes de deputados operários e soldados, que aconselham os camponeses a não se
apoderarem das terras dos latifundiários e a não começarem as transformações agrárias até à convocação da
Assembleia Constituinte, o partido do proletariado deve exortar os camponeses a efectuar sem demora e por
iniciativa própria as transformações agrárias e a confiscação imediata das terras dos latifundiários por decisão
dos deputados camponeses das localidades.

Tem singular importância a este respeito insistir na necessidade de aumentar a produção de alimentos
para os soldados na frente e para as cidades, em que é absolutamente inadmissível destruir ou causar danos ao
gado, alfaias, máquinas, edifícios, etc, etc.

14. Na questão nacional, o partido proletário deve defender, em primeiro lugar, a proclamação e a
realização imediata da plena liberdade de separação da Rússia de todas as nações e povos oprimidos pelo
tsarismo, que foram incorporados pela força ou mantidos pela força dentro das fronteiras do Estado, isto é,
anexados.

Todas as expressões, declarações e manifestos renunciando às anexações que não sejam


acompanhados da liberdade efectiva de separação não são senão um engano burguês do povo ou ingénuos
votos pequeno-burgueses.

O partido proletário aspira a criar um Estado o maior possível, porque isto é vantajoso para os
trabalhadores, aspira à aproximação e posterior fusão das nações, mas quer alcançar este objectivo não pela
violência mas exclusivamente por meio de uma união livre e fraternal dos operários e das massas trabalhadoras
de todas as nações.

Quanto mais democrática for a república da Rússia, quanto melhor conseguir organizar-se em
república dos Sovietes de deputados operários e camponeses, tanto mais poderosa será a força de atracção
voluntária para uma tal república para as massas trabalhadoras de todas as nações.

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Plena liberdade de separação, a mais ampla autonomia local (e nacional), garantias
pormenorizadamente elaboradas dos direitos das minorias nacionais — tal é o programa do proletariado
revolucionário.

Nacionalização dos Bancos e dos Consórcios Capitalistas

15. O partido do proletariado não pode propor-se, de modo algum, «introduzir» o socialismo num país
de pequeno campesinato enquanto a imensa maioria da população não tiver tomado consciência da
necessidade da revolução socialista.

Mas só sofistas burgueses que se escondem atrás de palavrinhas «quase marxistas» podem deduzir
desta verdade a justificação duma política que adiaria medidas revolucionárias imediatas plenamente maduras
do ponto de vista prático, realizadas não poucas vezes, no decorrer da guerra, por uma série de Estados
burgueses e absolutamente necessárias para lutar contra a total desorganização económica e a fome iminentes.

Medidas como a nacionalização da terra e de todos os bancos e consórcios capitalistas, ou pelo menos
o estabelecimento do controlo imediato dos mesmos pelos Sovietes de deputados operários, etc, que não
significam de modo algum a «introdução» do socialismo, devem ser defendidas incondicionalmente e aplicadas,
dentro do possível, por via revolucionária. Sem estas medidas, que não são senão passos para o socialismo, e
perfeitamente realizáveis do ponto de vista económico, será impossível curar as feridas causadas pela guerra e
impedir a bancarrota que nos ameaça, e o partido do proletariado revolucionário jamais vacilará em atentar
contra os lucros inauditos dos capitalistas e banqueiros, que enriquecem precisamente «com a guerra» de modo
particularmente escandaloso.

A Situação da Internacional Socialista

16. Os deveres internacionais da classe operária da Rússia passam precisamente agora para primeiro
plano com particular força.

Nos nossos dias só os preguiçosos não juram ser internacionalistas, até os defensistas chauvinistas, até
os Srs. Plekhánov e Potréssov, até Kérenski, se dizem internacionalistas. Por isso é tanto mais urgente a
obrigação de que o partido do proletariado, cumprindo o seu dever, oponha com toda a clareza, com toda a
precisão e com toda a nitidez, ao internacionalismo em palavras o internacionalismo de facto.

Vazios apelos aos operários de todos os países, garantias ocas de fidelidade ao internacionalismo,
tentativas de estabelecer, directa ou indirectamente, «turnos» nas acções do proletariado revolucionário dos
vários países beligerantes, esforços para chegar a um «acordo» entre os socialistas dos países beligerantes a
respeito da luta revolucionária, a agitação para organizar congressos socialistas para desenvolver uma
campanha em favor da paz, etc, etc, — tudo isso não é, pela sua significação objectiva, por mais sinceros que
sejam os autores dessas ideias, dessas tentativas e desses planos, senão palavrório, e no melhor dos casos a
expressão de votos inocentes e piedosos, que só servem para encobrir o engano das massas pelos chauvinistas.
Os sociais-chauvinistas franceses, os mais hábeis e mais acabados em todos os métodos da fraude parlamentar,
há muito já bateram o recorde de frases pacifistas e internacionalistas inauditamente sonoras e pomposas,
unidas a uma traição inauditamente descarada do socialismo e da Internacional, à participação nos ministérios
que fazem a guerra imperialista, à votação de créditos ou de empréstimos (como na Rússia, ultimamente,
Tchkheídze, Skóbelev, Tseretéli e Steklov), à oposição à luta revolucionária no seu próprio país, etc, etc.

As boas pessoas esquecem com frequência a dura e cruel realidade da guerra imperialista mundial.
Esta realidade não admite frases, zomba de todos os votos inocentes e piedosos.

Há um e só um internacionalismo de facto: o trabalho abnegado pelo desenvolvimento do movimento


revolucionário e da luta revolucionária no seu próprio país, o apoio (pela propaganda, a simpatia e a ajuda
material) a esta luta, a esta linha, e só a esta, em todos os países sem excepção.

Tudo o mais é engano e manilovismo[N28].

O movimento socialista e operário internacional produziu durante os mais de dois anos de guerra, em
todos os países, três tendências; e quem abandonar o terreno real do reconhecimento destas três tendências, da

33
sua análise e da luta consequente pela tendência verdadeiramente intemacionalista, condenar-se-á a si mesmo
à impotência, à incapacidade e a erros.

As três tendências são as seguintes:

1) Os sociais-chauvinistas, isto é, os socialistas em palavras e chauvinistas de facto— estas pessoas


reconhecem a «defesa da pátria» na guerra imperialista (e, sobretudo, na guerra imperialista actual). Estas
pessoas são nossos adversários de classe. Passaram-se para o lado da burguesia.

Assim acontece com a maioria dos chefes oficiais da social-democracia oficial de todos os países. Os
Srs. Plekhánov e C.a na Rússia, os Scheidemann na Alemanha, Renaudel, Guesde, Sembat na França, Bissolati e
C.a na Itália; Hyndman, os fabianos[N29] e os «labouristas» (dirigentes do partido trabalhista[N30]) na
Inglaterra, Branting e C.a na Suécia, Troelstra e o seu partido na Holanda, Stauning e o seu partido na
Dinamarca, Victor Berger e outros «defensores da pátria» na América, etc.

2) A segunda tendência — o chamado «centro» — é formado pelos que vacilam entre os sociais-
chauvinistas e os verdadeiros internacionalistas.

Todos os do «centro» juram e trejuram que são marxistas internacionalistas, que são pela paz, que
estão dispostos a «fazer pressão» por todos os meios sobre os governos, dispostos a «exigir» por todas as
maneiras ao seu próprio governo que «exprima a vontade de paz do povo», são por toda a espécie de
campanhas a favor da paz, são pela paz sem anexações, etc. — e pela paz com os sociais-chauvinistas. O
«centro» é pela «unidade», o centro é inimigo da cisão.

O «centro» é o reino das lindas frases pequeno-burguesas, do internacionalismo em palavras, do


oportunismo pusilânime e da complacência para com os sociais-chauvinistas de facto.

A essência da questão reside em que o «centro» não está convencido da necessidade de uma revolução
contra o seu próprio governo, não a prega, não sustenta uma luta revolucionária abnegada, mas encontra
sempre os mais vulgares subterfúgios — de uma sonoridade «arquimarxista» — para não o fazer.

Os sociais-chauvinistas são nossos adversários de classe, são burgueses dentro do movimento


operário. Representam uma camada, os grupos, os estratos dos operários objectivamente subordinados pela
burguesia (melhores salários, cargos honoríficos, etc.) e que ajudam a sua própria burguesia a saquear e
oprimir os povos pequenos e fracos e a lutar pela partilha do saque capitalista.

O «centro» é formado pelos elementos rotineiros, corroídos pela legalidade apodrecida, corrompidos
pela atmosfera do parlamentarismo, etc, são funcionários habituados aos cargos confortáveis e ao trabalho
«tranquilo». Considerados histórica e economicamente, não representam nenhuma camada social específica,
representam apenas a transição do período superado do movimento operário de 1871 a 1914, que deu muitas
coisas de valor, sobretudo na arte imprescindível para o proletariado do trabalho lento, consequente e
sistemático de organização em grande e muito grande escala, para um novo período que se tornou
objectivamente necessário desde que rebentou a primeira guerra imperialista mundial, que abriu a era da
revolução social.

O chefe e representante principal do «centro» é Karl Kautsky, a mais destacada autoridade da II


Internacional (1889-1914), modelo de total bancarrota do marxismo e um exemplo de inaudita falta de
carácter, das mais lamentáveis vacilações e traições desde Agosto de 1914. A tendência do «centro» é
representada por Kautsky, Haase, Ledebour, a chamada «Associação Operária ou do Trabalho»[N31] no
Reichstag; na França são Longuet, Pressemane e todos os chamados «minoritaires»[N32] (minoritários) em
geral; na Inglaterra, Philip Snowden, Ramsay MacDonald e muitos outros dirigentes do «Partido Trabalhista
Independente»[N33] e alguns do Partido Socialista Britânico[N34]; Morris Hillquit e muitos outros na América;
Turati, Trèves, Modigliani, etc, na Itália; Robert Grimm e outros na Suíça; Viktor Adler e C.a na Áustria; o partido
do Comité de Organização, Axelrod, Mártov, Tchkheídze, Tseretéli e outros na Rússia, etc.

Compreende-se que existam certas pessoas que, sem se darem conta, passem da posição do social-
chauvinismo para a posição do «centro» e vice-versa. Qualquer marxista sabe que as classes diferem umas das
outras, ainda que as pessoas mudem livremente de classe; do mesmo modo as tendências na vida política

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diferem umas das outras, apesar de as pessoas passarem livremente de uma tendência para a outra, apesar dos
esforços e tentativas que se fazem para fundir as tendências.

3) A terceira tendência são os verdadeiros internacionalistas, cuja expressão mais fiel é a «esquerda de
Zimmerwald»[N35]. (Em apêndice inserimos o seu manifesto de Setembro de 1915, para que o leitor possa
conhecer em primeira mão a origem desta tendência.)

O seu principal traço distintivo é: a ruptura mais completa tanto com o social-chauvinismo como com o
«centro». A abnegada luta revolucionária contra o seu próprio governo imperialista e contra a sua própria
burguesia imperialista. O seu princípio é: «o inimigo principal está no nosso próprio país.» Luta sem descanso
contra as melífluas frases sociais-pacifistas (o social-pacifista é socialista em palavras e pacifista burguês de
facto; os pacifistas burgueses sonham com a paz perpétua sem derrubar o jugo e o domínio do capital) e contra
todos os subterfúgios com que se pretende negar a possibilidade, ou a oportunidade ou a necessidade da luta
revolucionária do proletariado e da revolução proletária, socialista, em ligação com a guerra actual.

Os representantes mais destacados desta tendência são: na Alemanha, o «Grupo Spartakus» ou «Grupo
da Internacional»[N36], do qual faz parte Karl Liebknecht. Karl Liebknecht é o representante mais famoso desta
corrente e da nova, da verdadeira Internacional proletária.

Karl Liebknecht apelou para os operários e soldados da Alemanha para que voltassem as armas contra
o seu próprio governo. Karl Liebknecht fez isto abertamente, da tribuna do Parlamento (Reichstag). E depois,
levando consigo proclamações impressas clandestinamente, dirigiu-se para a Praça de Potsdam, uma das
maiores praças de Berlim, para participar numa manifestação sob a palavra de ordem de «Abaixo o governo!».
Foi detido e condenado a trabalhos forçados. Está actualmente num presídio na Alemanha, tal como centenas se
não milhares de verdadeiros socialistas da Alemanha estão nas prisões por lutarem contra a guerra.

Karl Liebknecht lutou implacavelmente nos seus discursos e nas suas cartas não só contra os seus
próprios Plekhánov e Potréssov (os Scheidemann, Legien, David e C.a) mas também contra os seus próprios
elementos do centro, contra os seus próprios Tchkheídze e Tseretéli (Kautsky, Haase, Ledebour e C.a).

Karl Liebknecht e o seu amigo Otto Rühle, só dois entre os 110 deputados, romperam a disciplina,
destruíram a «unidade» com o «centro» e com os chauvinistas, se ergueram contra todos. Liebknecht é o único
que representa o socialismo, a causa do proletariado, a revolução proletária. Todo o resto da social-democracia
alemã não é mais, para usar a frase feliz de Rosa Luxemburg (também membro e um dos dirigentes do «Grupo
Spartakus»), do que um cadáver malcheiroso.

Outro grupo de verdadeiros internacionalistas na Alemanha é o jornal de Bremen Política


Operária[N37].

Em França os elementos mais próximos dos verdadeiros internacionalistas são Loriot e os seus amigos
(Bourderon e Merrheim deslizaram para o social-pacifismo) e também o francês Henri Guilbeaux, que publica
em Genebra a revista Amanhã[N38]; na Inglaterra, o jornal Trade-Unionista[N39] e uma parte dos membros do
Partido Socialista Britânico e do Partido Trabalhista Independente (por exemplo, Williams Russel, que
proclamou abertamente a necessidade de romper com os chefes traidores ao socialismo), o professor primário
e socialista escocês MacLean, condenado a trabalhos forçados pelo governo burguês da Inglaterra pela sua luta
revolucionária contra a guerra; centenas de socialistas da Inglaterra estão nas prisões pelo mesmo crime. Eles, e
só eles, são verdadeiros internacionalistas de facto; na América, o «Partido Socialista Operário»[N40] e os
elementos dentro do oportunista «Partido Socialista»[N41] que publicam desde Janeiro de 1917 o jornal O
Internacionalista[N42]; na Holanda, o partido dos «tribunistas», que publicam o jornal A Tribuna (Pannekoek,
Herman Gorter, Wijnkoop, Henriette Roland-Holst, que em Zimmerwald era do centro, mas que agora passou
para o nosso lado[N43]; na Suécia, o partido dos jovens ou dos esquerdas[N44], com dirigentes como
Lindhagen, Ture Nerman, Carleson, Ström e Z. Höglund, que em Zimmerwald participou pessoalmente na
fundação da «Esquerda de Zimmerwald» e se encontra hoje na prisão condenado pela sua luta revolucionária
contra a guerra; na Dinamarca, Trier e os seus amigos, que abandonaram o Partido «Social-Democrata» da
Dinamarca, que se tornou completamente burguês, com o ministro Stauning à cabeça; na Bulgária os
tesyiiaki[N45]; na Itália, os mais próximos são Constantino Lazzari, secretário do partido, e Serrati, redactor do
Avante[N46], seu órgão central; na Polónia, Rádek, Hanecki e outros dirigentes da social-democracia unificada
na «Direcção Territorial»; Rosa Luxemburg, Tyszka e outros dirigentes da social-democracia unificada na

35
«Direcção Principal»[N47]; na Suíça, os elementos de esquerda que redigiram os considerandos de um «
referendo » (Janeiro de 1917) para lutar contra os sociais-chauvinistas e contra o «centro» do seu próprio país e
que no congresso socialista do cantão de Zurique, realizado em Töss em 11 de Fevereiro de 1917, apresentaram
uma resolução revolucionária e de princípios contra a guerra[N48]; na Áustria, os jovens amigos de esquerda
de Friedrich Adler, que actuavam, em parte, no clube «Karl Marx» de Viena, fechado agora pelo
reaccionaríssimo governo austríaco, que quer liquidar Friedrich Adler pelo seu tiro heróico, embora pouco
reflectido, contra um dos seus ministros, etc, etc.

A questão não está nos matizes, que existem também entre os elementos de esquerda. A questão está
na tendência. O facto é que, numa época de terrível guerra imperialista, não é fácil ser um verdadeiro
internacionalista. Estes elementos são poucos, mas apenas neles está todo o futuro do socialismo, apenas eles
são os chefes das massas, e não os corruptores das massas.

Era objectivamente necessário que a distinção entre reformistas e revolucionários no seio dos sociais-
democratas, no seio dos socialistas em geral, sofresse transformações nas condições da guerra imperialista.
Quem se contenta com «exigir» aos governos burgueses que concluam a paz ou que «exprimam a vontade de
paz do povo», etc, desliza de facto para as reformas. Porque a questão da guerra, objectivamente, só se
apresenta de modo revolucionário.

Não há saída da guerra no sentido de uma paz democrática, e não imposta pela violência, no sentido da
libertação dos povos da escravidão de milhares de milhões de juros pagos aos senhores capitalistas
enriquecidos na «guerra», não há saída senão a revolução do proletariado.

Pode-se e deve-se exigir dos governos burgueses as mais diversas reformas, mas não se pode, sem cair
no manilovismo, no reformismo, exigir a esses homens e classes ligados por milhares de fios ao capital
imperialista que rompam esses fios, e sem os romper todo o falatório sobre a guerra contra a guerra não será
senão frases vazias e enganosas.

Os «kautskianos», o «centro», são revolucionários em palavras e reformistas de facto,


internacionalistas em palavras, cúmplices do social-chauvinismo de facto.

A Bancarrota da Internacional de Zimmerwald. Necessidade de Fundar a III Internacional

17. A Internacional de Zimmerwald adoptou desde o primeiro momento uma posição vacilante,
«kautskiana», «centrista», o que obrigou a Esquerda de Zimmerwald a separar-se imediatamente dela, a tornar-
se independente e a lançar um manifesto próprio (impresso na Suíça em russo, alemão e francês).

O principal defeito da Internacional de Zimmerwald — causa da sua bancarrota (pois está já em


bancarrota, tanto no terreno ideológico como no político) — são as suas vacilações, é a sua irresolução na
questão principal, que praticamente condiciona todas as outras: a questão da completa ruptura com o social-
chauvinismo e com a velha Internacional social-chauvinista, dirigida por Vandervelde e Huysmans em Haia
(Holanda), etc.

No nosso país ignora-se ainda que a maioria de Zimmerwald é formada precisamente por kautskianos.
Entretanto, este é um facto fundamental, que não se pode deixar de ter em conta e que é agora geralmente
conhecido na Europa Ocidental. Até o chauvinista, o ultrachauvinista alemão Heilmann, director da
arquichauvinista Gazeta de Chemnitz e colaborador da também arquichauvinista O Sino[N49], de Parvus, até
Heilmann (que é, naturalmente, «social-democrata» e zeloso defensor da «unidade» da social-democracia) teve
de reconhecer na imprensa que o centro, ou «kautskianismo», e a maioria de Zimmerwald são uma e a mesma
coisa.

E nos fins de 1916 e em princípios de 1917 confirmou-se definitivamente este facto. Embora no
manifesto de Kienthal[N50] se condene o social-pacifismo, toda a direita de Zimmerwald, toda a maioria de
Zimmerwald se passou para o social-pacifismo: Kautsky e C.a numa série de declarações em Janeiro e Fevereiro
de 1917; Bourderon e Merrheim, em França, ao votarem em unanimidade com os sociais-chauvinistas a favor
das resoluções pacifistas do Partido Socialista (Dezembro de 1916)[N51] e da «Confederação Geral do
Trabalho» (isto é, a organização nacional dos sindicatos franceses, também em Dezembro de 1916); Turati e C.a,
em Itália, onde todo o partido adoptou uma atitude social-pacifista, e o próprio Turati (e não por casualidade,

36
naturalmrnte) «escorregou», no seu discurso de 17 de Dezembro de 1916, para frases nacionalistas que
embelezavam a guerra imperialista.

O presidente da Conferência de Zimmerwald e de Kienthal, Robert Grimm, estabeleceu, em Janeiro de


1917, uma aliança com os sociais-chauvinistas do seu próprio partido (Greulich, Pflüger, Gustav Müller e
outros) contra os verdadeiros internacionalistas.

Em duas reuniões de zimmerwaldianos de diversos países, realizadas em Janeiro e Fevereiro de 1917,


essa atitude equívoca e hipócrita da maioria de Zimmerwald foi formalmente estigmatizada pelos
internacionalistas de esquerda de vários países: por Münzenberg, secretário da organização internacional dos
jovens e director do magnífico jornal internacionalista Internacional da Juventude[N52], por Zinóviev,
representante do Comité Central do nosso Partido; por K. Rádek, do Partido Social-Democrata Polaco
(«Direcção Territorial») e por Hartstein, social-democrata alemão, membro do «Grupo Spartakus».

Foi dado muito ao proletariado russo; em nenhuma parte do mundo houve uma classe operária que
tenha conseguido desenvolver tanta energia revolucionária como na Rússia. Mas a quem se deu muito, muito se
exigirá.

Não se pode tolerar por mais tempo o pântano zimmerwaldiano. Não podemos permitir que por culpa
dos «kautskianos» de Zimmerwald continuemos semialiados à Internacional chauvinista dos Plekhánov e dos
Scheidemann. É preciso romper imediatamente com esta Internacional. É preciso continuar em Zimmerwald
apenas para fins de informação.

Somos precisamente nós que temos de fundar, precisamente agora, sem perda de tempo, uma nova
Internacional revolucionária, proletária, ou melhor, devemos reconhecer sem temor, publicamente, que essa
Internacional já foi fundada e actua.

Esta é a Internacional dos «verdadeiros Ínternacionalistas» que enumerei minuciosamente acima. Eles,
e só eles, são os representantes das massas revolucionárias Ínternacionalistas, e não os corruptores das massas.

Se são poucos esses socialistas, que cada operário russo pergunte a si mesmo se havia na Rússia
muitos revolucionários conscientes em vésperas da revolução de Fevereiro e Março de 1917.

A questão não está no número, mas na exposição correcta das ideias e da política do proletariado
verdadeiramente revolucionário. O essencial não consiste em «proclamar» o internacionalismo, mas em saber-
se ser, inclusive nos momentos mais difíceis, verdadeiros internacionalistas.

Não nos enganemos com esperanças nos acordos e congressos internacionais. Enquanto durar a
guerra imperialista, as relações internacionais estarão comprimidas no torno de ferro da ditadura militar
imperialista burguesa. Se até o «republicano» Miliukov, que se vê obrigado a tolerar o governo paralelo do
Soviete de deputados operários, não deixou entrar em Abril de 1917 na Rússia o socialista suíço Fritz Platten,
secretário do partido, internacionalista e participante das conferências de Zimmerwald e Kienthal, apesar de
ser casado com uma russa e ir visitar parentes dela, e apesar de ter tomado parte em Riga na revolução de 1905,
pelo que foi encarcerado numa prisão russa e teve de pagar uma fiança ao governo tsarista para conseguir a sua
liberdade, fiança que agora pretendia recuperar; se ate o «republicano» Miliukov pôde fazer isso na Rússia em
Abril de 1917, julgue-se que valor terão as promessas e os votos, as frases e as declarações da burguesia sobre a
paz sem anexações, etc.

E a prisão de Trótski pelo governo inglês? E a retenção de Mártov na Suíça e a esperança de atrair
Mártov à Inglaterra, onde o espera a sorte de Trótski?

Não tenhamos ilusões. Não devemos enganar-nos a nós mesmos.

«Esperar» congressos ou conferências internacionais significa atraiçoar o internacionalismo, uma vez


provado que mesmo de Estocolmo não deixam sair para a Rússia nem socialistas fiéis ao internacionalismo,
nem sequer as suas cartas, apesar de todas as possibilidades e de toda a ferocidade da censura militar.

37
Não «esperar», mas fundar a III Internacional, eis o que deve fazer imediatamente o nosso partido; —
centenas de socialistas nas prisões da Alemanha e da Inglaterra respirarão com alívio; — milhares e milhares de
operários alemães que hoje organizam greves e manifestações que intimidam Guilherme, esse miserável e
bandido, lerão em panfletos clandestinos a nossa decisão, a nossa confiança fraternal em Karl Liebknecht e só
nele, a nossa decisão de lutar também agora contra o «defensismo revolucionário»; — lerão isto e reforçar-se-á
neles o internacionalismo revolucionário.

A quem muito se deu, muito se exigirá. Não há no mundo país onde exista, actualmente, tanta
liberdade como na Rússia. Aproveitemos esta liberdade, não para pregar o apoio à burguesia ou ao «defensismo
revolucionário» burguês, mas para, de modo audacioso e honrado, proletário, à maneira de Liebknecht, fundar a
III Internacional, uma Internacional que seja irredutivelmente hostil tanto aos traidores sociais-chauvinistas
como aos elementos vacilantes do «centro».

18. Depois do que dissemos, não é necessário gastar muitas palavras para demonstrar que nem se
pode falar de uma unificação dos sociais-democratas da Rússia.

Antes ficarmos só dois, como Liebknecht — e isto significa ficar com o proletariado revolucionário —
que abrigar sequer por um minuto a ideia de uma união com o partido do Comité de Organização, com
Tchkheídze e Tseretéli, que toleram um bloco com Potréssov no Rabotchaia Gazeta[N53], que votam no Comité
Executivo do Soviete de deputados operários a favor do empréstimo[N54], que caíram até ao «defensismo».

Que os mortos enterrem os seus mortos.

Quem quiser ajudar os vacilantes deve começar por deixar ele próprio de vacilar.

Como Deve Ser o Nome do Nosso Partido Para Ser Cientificamente Exacto e Contribuir Politicamente
Para Esclarecer a Consciência do Proletariado?

19. Passo à questão final, ao nome do nosso partido. Devemos chamar-nos Partido Comunista, como se
chamavam Marx e Engels.

Devemos repetir que somos marxistas e que nos baseamos no Manifesto Comunista, deturpado e
traído pela social-democracia em dois pontos principais:

Os operários não têm pátria: a «defesa da pátria» na guerra imperialista é uma traição ao socialismo;
2. A teoria marxista do Estado foi deturpada pela II Internacional.
O nome «social-democracia» é cientificamente inexacto, como, aliás, Marx demonstrou repetidas vezes
nomeadamente na Crítica do Programa de Gotha, em 1875, e como Engels repetiu, em linguagem mais popular,
em 1894[N55]. Do capitalismo a humanidade só pode passar directamente ao socialismo, isto é, à propriedade
social dos meios de produção e à distribuição dos produtos segundo o trabalho de cada um. O nosso partido vê
mais longe: o socialismo deverá inevitavelmente transformar-se de modo gradual em comunismo, em cuja
bandeira figura este lema: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.»

Tal é o meu primeiro argumento.

O segundo: a segunda parte da denominação do nosso partido (social-democrata) também é


cientificamente inexacta. A democracia é uma das formas do Estado. Entretanto nós, marxistas, somos inimigos
de qualquer Estado.

Os dirigentes da II Internacional (1889-1914), o Sr. Plekhánov, Kautsky, e quejandos aviltaram e


adulteraram o marxismo.

O marxismo distingue-se do anarquismo por reconhecer a necessidade do Estado para a passagem ao


socialismo, mas (e isto é o que o distingue de Kautsky e C.a) não de um Estado como a república democrática
burguesa parlamentar corrente, mas de um Estado como a Comuna de Paris de 1871, como os Sovietes de
deputados operários de 1905 e 1917.

38
O meu terceiro argumento: A vida criou, a revolução criou já de facto no nosso país, ainda que em
forma precária, embrionária, precisamente este novo «Estado», que não é um Estado no sentido próprio da
palavra.

Isto já é uma questão da prática das massas, e não apenas uma teoria dos chefes.

O Estado, no sentido próprio da palavra, é o comando sobre as massas, exercido por destacamentos de
homens armados separados do povo.

O nosso novo Estado nascente é também um Estado, pois necessitamos de destacamentos de homens
armados, necessitamos da ordem mais severa, necessitamos de reprimir impiedosamente pela violência todas
as tentativas da contra-revolução, tanto tsarista como burguesa gutchkovista.

Mas o nosso novo Estado nascente não é já um Estado no sentido próprio da palavra, pois numa série
de lugares da Rússia estes destacamentos de homens armados são a própria massa, todo o povo, e não alguém
colocado acima dele, separado dele, dotado de privilégios e praticamente inamovível.

Não se deve olhar para trás mas para a frente, não para a democracia de tipo burguês corrente, que
consolidava a dominação da burguesia por meio dos velhos órgãos de administração monárquicos, da polícia,
do exército e do funcionalismo.

É preciso olhar para a frente, para a nova democracia nascente, que deixa já de ser uma democracia,
pois democracia significa dominação do povo, e o próprio povo armado não pode exercer uma dominação sobre
si próprio.

A palavra democracia, aplicada ao partido comunista, não é só cientificamente inexacta. Agora, depois
de Março de 1917, significa uns antolhos postos nos olhos do povo revolucionário, e que o impedem de
construir livremente, corajosamente e por sua própria iniciativa o novo: os Sovietes de deputados operários,
camponeses e outros como único poder dentro do «Estado», como precursor da «extinção» de qualquer Estado.

O meu quarto argumento: é preciso ter em conta a situação objectiva do socialismo no mundo inteiro.

Ela não é a que existia de 1871 a 1914, quando Marx e Engels conscientemente se resignaram ao termo
inexacto e oportunista: «social-democracia». Porque então, depois de derrotada a Comuna de Paris, a história
tinha colocado na ordem do dia um trabalho lento de organização e educação. Não havia outro. Os anarquistas
não só estavam (e estão) totalmente errados teoricamente mas também económica e politicamente. Os
anarquistas apreciavam erradamente o momento, não compreendendo a situação internacional: o operário da
Inglaterra corrompido pelos lucros imperialistas, a Comuna de Paris esmagada, o movimento nacional-burguês
que acabava de triunfar (1871) na Alemanha, a Rússia semifeudal dormindo um sono secular...

Marx e Engels tiveram em conta correctamente o momento, compreenderam a situação internacional,


compreenderam as tarefas da aproximação lenta do começo da revolução social.

Compreendamos também nós as tarefas e peculiaridades da nova época. Não imitemos aqueles
marxistas de meia-tigela dos quais Marx dizia: «semeei dragões mas a colheita deu-me pulgas.»[N56]

A necessidade objectiva do capitalismo, que ao crescer se converteu em imperialismo, gerou a guerra


imperialista. A guerra levou toda a humanidade à beira do abismo, da destruição de toda a cultura, do
embrutecimento e da destruição de novos milhões de homens, de inúmeros milhões.

Não há outra saída senão a revolução do proletariado.

E em tal momento, em que esta revolução começa, em que dá os seus primeiros passos, tímidos,
inseguros, inconscientes, demasiado confiados na burguesia; em tal momento, a maioria (isto é verdade, isto é
um facto) dos chefes «sociais-democratas», dos parlamentares «sociais-democratas», dos jornais «sociais-
democratas» — e são precisamente tais órgãos que influenciam as massas —, a maioria deles traiu o socialismo,
atraiçoou o socialismo e passou para o lado da «sua» burguesia nacional.

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As massas estão confundidas, desorientadas e enganadas por estes chefes.

E nós iremos encorajar este engano, iremos facilitá-lo, agarrando-nos a este velho e caduco nome, tão
podre já como está podre a II Internacional!

Não importa que «muitos» operários interpretem honestamente a social-democracia. Já é tempo de


aprenderem a distinguir o subjectivo do objectivo.

Subjectivamente, estes operários sociais-democratas são chefes fidelíssimos das massas proletárias.
Mas a situação internacional objectiva é tal que o velho nome do nosso partido facilita o engano das
massas, entrava o movimento para a frente, pois a cada passo, em cada jornal, em cada fracção parlamentar, a
massa vê chefes, isto é, homens cujas palavras têm mais ressonância e cujos actos se vêem de mais longe, e
todos eles são «também-sociais-democratas», todos eles são «pela unidade» com os traidores do socialismo,
com os sociais-chauvinistas, todos eles apresentam à cobrança as velhas letras assinadas pela «social-
democracia»...

E os argumentos contra? «... Confundir-nos-ão com os anarquistas-comunistas ...»

E porque não tememos que nos confundam com os sociais-nacionais e sociais-liberais, com os radicais-
socialistas, o partido burguês da república francesa mais avançado e mais hábil no engano burguês das massas?
«... As massas habituaram-se, os operários 'apaixonaram-se' pelo seu partido social-democrata...»

Eis o único argumento, mas este é um argumento que põe de lado tanto a ciência marxista como as
tarefas de amanhã na revolução, como a situação objectiva do socialismo mundial, como a bancarrota
ignominiosa da II Internacional, como o prejuízo que causam ao trabalho prático os bandos de «também-
sociais-democratas» que rodeiam os proletários.

Este é um argumento de rotina, de entorpecimento, de inércia.

Mas nós queremos reconstruir o mundo. Queremos pôr fim à guerra imperialista mundial, na qual
estão envolvidos centenas de milhões de homens, à qual estão ligados os interesses de centenas e centenas de
milhares de milhões de capital e à qual não se poderá pôr fim com uma paz verdadeiramente democrática sem a
revolução proletária, a mais grandiosa na história da humanidade.

E temos medo de nós mesmos. Agarramo-nos à camisa suja a que estamos «habituados» e à qual já
tomamos «apego»...

Já é tempo de tirar a camisa suja, já é tempo de vestir roupa limpa.

Petrogrado, 10 de Abril de 1917.

Posfácio

A minha brochura envelheceu em consequência da ruína económica e da falta de capacidade de


trabalho das tipografias de Petersburgo. A brochura foi escrita a 10 de Abril de 1917, hoje estamos a 28 de
Maio, e ainda não saiu!

A brochura foi escrita como projecto de plataforma para a propaganda dos meus pontos de vista antes
da Conferência de Toda a Rússia do nosso partido[N57], o partido operário social-democrata da Rússia
bolchevique. Copiada à máquina e distribuída em vários exemplares entre os membros do partido antes da
conferência e na conferência, cumpriu, contudo, uma parte do seu trabalho. Mas agora a conferência já se
realizou de 24 a 29 de Abril de 1917, as suas resoluções foram publicadas (ver o suplemento ao n.° 13 do
Soldátskaia Pravda[N58]), e o leitor atento notará com facilidade que a minha brochura é, em muitos casos, o
projecto inicial destas resoluções.

Resta-me só exprimir a esperança de que, apesar de tudo, a brochura trará algum benefício em relação
a estas resoluções, à sua explicação, e depois deter-me em dois pontos.

40
Na p. 27 proponho que continuemos em Zimmerwald só com fins de informação. A conferência não
esteve de acordo comigo neste ponto, e tive de votar contra a resolução sobre a Internacional. Agora já se vê
claramente que a conferência cometeu um erro e que o curso dos acontecimentos o emendará rapidamente.
Continuando em Zimmerwald, participamos (ainda que seja contra a nossa vontade) no adiamento da criação
da III Internacional; entravamos indirectamente a sua criação, por estarmos ligados ao peso morto de
Zimmerwald, já ideológica e politicamente morto.

A situação do nosso partido em relação a todos os partidos operários do mundo inteiro é agora
precisamente tal que somos obrigados afundar imediatamente a III Internacional.

Além de nós, ninguém poderá fazê-la agora, e as demoras são prejudiciais. Continuando em
Zimmerwald só para fins de informação, teríamos tido imediatamente as mãos livres para tal criação (e, ao
mesmo tempo, poderíamos utilizar Zimmerwald, se as circunstâncias tornassem tal utilização possível).

Agora, pelo contrário, por causa do erro cometido pela conferência, vemo-nos obrigados a esperar
passivamente pelo menos até 5 de Julho de 1917 (data da convocação da conferência de Zimmerwald; e será
bem bom se não for adiada mais uma vez! já foi adiada uma vez...)[N59].

Mas a decisão adoptada unanimemente pelo CC do nosso partido depois da conferência e publicado no
n.° 55 do Pravda[N60], de 12 de Maio, semicorrigiu o erro: estabeleceu que abandonaremos Zimmerwald se
esta for conferenciar com ministros. Permito-me exprimir a esperança de que a segunda metade do erro será
corrigida em breve quando convocarmos a primeira conferência internacional dos «esquerdas» (da «terceira
tendência», dos «internacionalistas de facto»; ver mais acima, pp. 23-25).

O segundo ponto no qual é preciso determo-nos é a formação do «ministério de coligação» em 6 de


Maio de 1917[N61]. A brochura parece neste ponto particularmente envelhecida.

De facto, precisamente neste ponto ela não envelheceu absolutamente nada. Ela baseia tudo na análise
de classe, que temem como o fogo os mencheviques e os populistas[N62], os quais deram 6 ministros como
reféns aos 10 ministros capitalistas. E precisamente porque a brochura baseia tudo na análise de classe é que
ela não envelheceu, pois a entrada de Tseretéli, Tchernov e C.a no ministério modificou em grau insignificante
apenas a forma do acordo do Soviete de Petrogrado com o governo dos capitalistas, e eu acentuei
intencionalmente na brochura, na p. 8, que «tenho em vista não tanto um acordo formal como o apoio de facto».

Cada dia está mais claro que Tseretéli, Tchernov e C.a são precisamente apenas reféns dos capitalistas,
que o governo «renovado» não quer nem pode cumprir absolutamente nenhuma das suas pomposas promessas
nem na política externa nem na interna. Tchernov, Tseretéli e C.a mataram-se politicamente, revelaram-se
auxiliares dos capitalistas, que de facto estrangulam a revolução, Kérenski chegou ao extremo de empregar a
violência contra as massas (cf. p. 9 da brochura: «de momento, Gutchkov só ameaça empregar a violência contra
a massa», enquanto Kérenski teve de cumprir estas ameaças...)[N63]. Tchernov, Tseretéli e C.a mataram-se
politicamente a si e aos seus partidos, o menchevique e o socialista-revolucionário. O povo verá isto cada dia
com maior clareza.

O ministério de coligação é apenas um momento de transição no desenvolvimento das contradições de


classe fundamentais da nossa revolução, brevemente analisadas na minha brochura. As coisas não podem
continuar assim muito tempo. Ou para trás, para a contra-revolução em toda a linha, ou para a frente, para a
passagem do poder para as mãos de outras classes. Em tempo de revolução, em plena guerra imperialista
mundial, é impossível ficar parado.

N. Lénine
Petersburgo, 28 de Maio de 1917.

Notas de fim de tomo:


[N22] A Conferência de empregados e operários ferroviários de toda a Rússia efectuou-se em
Petrogrado de 6 a 20 de Abril (de 19 de Abril a 3 de Maio) de 1917. A conferência, dirigida pelos partidos
conciliadores, adoptou uma posição defensista e declarou o seu pleno apoio ao Governo Provisório. O membro
do CC do POSDR I. A. Teodoróvitch, que usou da palavra na sessão de 8 (21) de Abril, «introduziu alguma
discórdia na atmosfera geral», segundo testemunha o jornal menchevique Edinstvo. A conferência elegeu o

41
Comité Executivo e aprovou instruções tanto nos aspectos políticos como no que respeita às questões práticas
do melhoramento dos transportes ferroviários. (retornar ao texto)
[N23] Na conhecida fábula de Krilov O Gato e o Cozinheiro, o cozinheiro faz uma reprimenda edificante
ao gato, que está a comer um frango. O gato ouve o cozinheiro e continua a comer. (retornar ao texto)
[N24] Louisblanquismo: do nome de Louis Blanc (1811-1882), socialista pequeno-burguês e
historiador francês. Negava o carácter inconciliável das contradições entre as classes no capitalismo e opôs-se à
revolução proletária. Durante a revolução de Fevereiro de 1848 em França entrou no governo provisório. Com a
sua táctica conciliadora ajudou a burguesia a desviar os operários da luta revolucionária. (retornar ao texto)
[N25] F. Engels, Carta a A. Bebel de 18-28 de Março de 1875. (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke,
Bd. 19, S. 6) (retornar ao texto)
[N26] K. Marx, A Guerra Civil em França. Mensagem do Conselho Geral da Associação Internacional dos
Trabalhadores. (In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 17, S. 342.) (retornar ao texto)
[N27] Populistas: partidários do populismo, corrente pequeno-burguesa do movimento revolucionário
russo, surgida nos anos 60-70 do século XIX. Os populistas defendiam a abolição do absolutismo tsarista e a
transferência das terras dos latifúndios para o campesinato. Os populistas consideravam-se socialistas, mas o
seu socialismo era utópico.
Os populistas negavam que o desenvolvimento das relações capitalistas na Rússia fosse um processo
regido por leis e consideravam os camponeses, e não o proletariado, a principal força revolucionária; viam na
comunidade rural o germe do socialismo. Os populistas negavam o papel das massas populares no
desenvolvimento histórico e afirmavam que só as grandes personalidades, só os «heróis», fazem a história da
humanidade e não a multidão inerte, como chamavam às massas populares. Os populistas esforçavam-se por
erguer os camponeses para a luta contra a autocracia, e, para alcançar os seus propósitos, abandonavam as
cidades e iam para o campo, «ao povo» (daí a origem da palavra com que se designou esse movimento), mas não
encontraram apoio.
No seu desenvolvimento, o populismo passou por várias fases, desde um democratismo revolucionário
até ao liberalismo.
Nos anos 80-90, os populistas adoptaram uma política de conciliação com o tsarismo, defendendo os
interesses dos kulaques e lutando contra o marxismo. (retornar ao texto)
[N28] Manilovismo: do nome de Manílov, uma das personagens de Almas Mortas, novela do escritor
russo N. V. Gógol. O escritor encarnou na figura do latifundiário sentimental e «eufórico» Manílov os traços
típicos do sonhador abúlico, do fantasista oco e do charlatão ocioso. (retornar ao texto)
[N29] Fabianos: membros da Sociedade Fabiana, organização reformista inglesa fundada em 1884. Os
membros da Sociedade Fabiana eram, principalmente, representantes da intelectualidade burguesa: cientistas,
escritores, políticos; negavam a necessidade da luta de classe do proletariado e da revolução socialista,
afirmando que a transição do capitalismo para o socialismo pode efectuar-se apenas por meio de pequenas
reformas e transformações paulatinas da sociedade. V. 1. Lénine qualificou o fabianismo como «uma tendência
de oportunismo extrema» (V. I. Lénine, Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 16, p. 338). Em 1900 a Sociedade
Fabiana passou a fazer parte do Partido Trabalhista. Durante a guerra imperialista mundial (1914-1918) os
fabianos adoptaram as posições do social-chauvinismo. (retornar ao texto)
[N30] O Partido Trabalhista (Labour Party) da Inglaterra foi fundado em 1900 como uma
confederação de sindicatos, organizações e grupos socialistas cujo objectivo era levar representantes operários
ao Parlamento («Comité de Representação Operária»). Em 1906 o Comité passou a chamar-se Partido
Trabalhista. Os membros dos sindicatos são automaticamente membros do Partido sempre que paguem a
quotização respectiva. O Partido Trabalhista era inicialmente, pela sua composição, um partido operário;
posteriormente entrou nele um número considerável de elementos pequeno-burgueses e actualmente é, quanto
à sua ideologia e à sua táctica, uma organização oportunista. Desde que surgiu, os seus dirigentes seguem uma
política de colaboração de classe com a burguesia. Durante a Primeira Guerra Mundial os dirigentes do Partido
Trabalhista adoptaram uma posição social-chauvinista. Os trabalhistas formaram vários governos que
aplicavam a política do imperialismo inglês. (retornar ao texto)
[N31] A Associação Operária do Trabalho (Arbeitsgemeinschaft): organização dos centristas
(kautskistas) alemães criada na Primavera de 1916. Os centristas, embora pronunciassem palavras de ordem
pacifistas, eram na realidade sociais-chauvinistas e apontavam os seus golpes principais contra o Grupo
Internationale, que lutava contra a guerra imperialista e o governo imperialista da Alemanha. Em Abril de 1917
a Associação Operária e outros grupos centristas constituíram o Partido Social-Democrata Independente.
(retornar ao texto)
[N32] Minoritários ou longuetistas: minoria centrista do Partido Socialista Francês chefiada por J.
Longuet e fundada em 1915. Durante a guerra imperialista mundial adoptaram a posição do social-pacifismo.
Ao ficarem em minoria no Congresso do Partido Socialista Francês, realizado em Tours, em Dezembro de 1920,

42
onde triunfou a ala esquerda do partido, os longuetistas, juntamente com os reformistas declarados, separaram-
se do partido e ligaram-se à chamada a Internacional II 1/2; mas quando esta se dissolveu, voltaram para a II
Internacional. (retornar ao texto)
[N33] Partido Trabalhista Independente da Inglaterra (Independent Labour Party): organização
reformista criada em 1893 quando ganhavam força o movimento grevista e o movimento pela independência
da classe operária inglesa da influência dos partidos burgueses. O partido foi encabeçado por James Keir Hardie
e R. MacDonald. O Partido Trabalhista Independente da Inglaterra, desde que surgiu, adoptou uma posição
reformista burguesa, prestando a maior atenção a formas parlamentares de luta e a compromissos
parlamentares com o Partido Liberal. Lénine, ao qualificar o partido, escreveu que este era, «na realidade, um
partido oportunista que, de facto, sempre dependeu da burguesia» (V. I. Lénine, Obras Completas, 5." ed. em
russo, t. 39, p. 90).
Quando começou a Primeira Guerra Mundial o Partido Trabalhista Independente apresentou um
manifesto contra a guerra, mas em breve adoptou uma posição social-chauvinista. (retornar ao texto)
[N34] O Partido Socialista Britânico (British Socialist Party) foi fundado em 1911, em Manchester,
como resultado da unificação do Partido Social-Democrata com outros grupos socialistas. O PSB fazia
propaganda e agitação no espírito das ideias marxistas e era um partido «não oportunista, realmente
independente dos liberais» (V. I. Lénine, Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 23, p. 344).
Não obstante, o reduzido número de militantes e a débil ligação com as massas deram-lhe um carácter
sectário. Durante a Primeira Guerra Mundial desenvolveu-se no seio do partido uma dura luta entre a corrente
internacionalista (W. Gallacher, A. Inkpin, J. MacLean, T. Rothstein e outros) e a corrente social-chauvinista
encabeçada por Hyndman. Na corrente internacionalista havia elementos inconsequentes que mantinham
numa série de questões uma posição centrista. Em Fevereiro de 1906 um grupo de militantes do PSB fundou o
jornal The Call (Apelo), que contribuiu grandemente para a coesão dos internacionalistas. A Conferência anual
do PSB realizada em Abril de 1916 em Salford condenou a posição social-chauvinista de Hyndman e dos seus
sequazes, e estes abandonaram o partido. O PSB saudou a Grande Revolução Socialista de Outubro.
Os militantes do PSB desempenharam um importante papel no movimento dos trabalhadores ingleses
em defesa da Rússia Soviética contra a intervenção estrangeira.
O Partido Socialista Britânico, em conjunto com o Grupo Comunista de Unidade, desempenhou o
principal papel na constituição do Partido Comunista da Grã-Bretanha. No I Congresso de Unificação, que teve
lugar em 1920, a maioria esmagadora das organizações locais do PSB integrou-se no Partido Comunista.
(retornar ao texto)
[N35] A Esquerda de Zimmerwald foi fundada por iniciativa de V. I. Lénine na Conferência Socialista
Internacional realizada em Setembro de 1915 em Zimmerwald. A Esquerda de Zimmerwald era constituída por
oito representantes do CC do POSDR, dos socialistas-democratas de esquerda da Suécia, da Noruega, da Suíça,
da Alemanha, da oposição social-democrata da Polónia e dos sociais-democratas do Território da Letónia. O
grupo da Esquerda de Zimmerwald, encabeçado por Lénine, travou uma luta contra a maioria centrista na
conferência, declarando que enquanto permanecesse na organização de Zimmerwald faria propaganda dos seus
pontos de vista e actuaria independentemente na esfera internacional. A Esquerda de Zimmerwald editou, em
alemão, o seu órgão de imprensa, a revista Vorbote (O Precursor), em que foram publicados alguns artigos de V.
l. Lénine.
Eram os bolcheviques que constituíam a força dirigente do grupo da Esquerda de Zimmerwald, visto
que adoptaram a única posição consequente, completa e verdadeiramente internacionalista. (retornar ao texto)
[N36] Grupo Spartakus: organização revolucionária dos sociais-democratas de esquerda alemães,
criada no começo da Primeira Guerra Mundial por Karl Liebknecht, Rosa Luxemburg, Franz Mehring, Clara
Zetkin e outros. Em Abril de 1915, R. Luxemburg e F. Mehring fundaram a revista Die Internationale (A
Internacional), em torno da qual se consolidou o grupo principal dos sociais- democratas de esquerda da
Alemanha. Em 1 de Janeiro de 1916, em Berlim, reuniu-se uma conferência dos sociais-democratas de esquerda
da Alemanha, na qual o grupo se organizou formalmente e adoptou a decisão de se chamar Grupo
Internationale.
Desde 1916 o Grupo Internationale publicava e distribuía clandestinamente Cartas Políticas assinadas
por «Spartakus», e foi por isso que o Grupo Internationale se designou também como Grupo Spartakus.
O Grupo Spartakus realizou propaganda revolucionária entre as massas, organizou manifestações de
massas contra a guerra imperialista, dirigiu greves, denunciou o carácter imperialista da guerra mundial e a
traição dos dirigentes oportunistas da social-democracia.
Em Abril de 1917 o Grupo Spartakus integrou-se no Partido Social-Democrata Independente da
Alemanha, centrista, mas conservou dentro dele a sua independência orgânica.

43
Em Novembro de 1918, no decorrer da revolução na Alemanha, o Grupo Spartakus separou-se dos
«independentes», constituindo a «União Spartakus», mas logo depois, no Congresso Constitutivo, realizado de
30 de Dezembro de 1918 a 1 de Janeiro de 1919, fundou o Partido Comunista da Alemanha. (retornar ao texto)
[N37] Política Operária (Arbeiterpolitik): revista semanal dedicada aos problemas do socialismo
científico, órgão do grupo de Bremen dos radicais de esquerda que se integrou em 1919 no Partido Comunista
da Alemanha; editou-se em Bremen de 1916 a 1919. (retornar ao texto)
[N38] Amanhã (Demain): revista mensal de carácter político e literário, fundada pelo jornalista e
escritor internacionalista francês Henri Guilbeaux; editou-se de Janeiro de 1916 até 1919. (retornar ao texto)
[N39] Trade-Unionista (The Trade-Unionist): jornal dos sindicatos ingleses que se editou em Londres
de Novembro de 1915 a Novembro de 1916. (retornar ao texto)
[[N40] O Partido Socialista Operário da América foi fundado no Congresso de Unificação realizado em
1876 na cidade de Filadélfia, como resultado da unificação das secções americanas da I Internacional e de
outras organizações socialistas. A maior parte dos militantes do partido eram imigrados, muito pouco ligados
aos operários naturais dos Estados Unidos. Nos primeiros anos de existência do partido, a posição dirigente era
ocupada pelos lassallianos, que cometeram erros de carácter sectário e dogmático. As vacilações ideológicas e
tácticas dos dirigentes levaram ao enfraquecimento do partido e à separação deste duma série de grupos.
Nos anos 90 assumiu a direcção a ala esquerda do Partido Socialista Operário, encabeçada por D. de-
Leon, que cometeu erros de carácter anarco-sindicalista. Durante a Primeira Guerra Mundial imperialista
(1914-1918) o Partido Socialista Operário inclinou-se para o internacionalismo. Em 1919 a ala revolucionária
do Partido Socialista Operário participou na constituição do Partido Comunista dos Estados Unidos da América.
(retornar ao texto)
[N41] O Partido Socialista da América foi constituído no congresso realizado em 1901 na cidade de
Indianapolis, como resultado da unificação duma série de grupos socialistas. Durante a Primeira Guerra
Mundial manifestaram-se no Partido Socialista da América três correntes partidárias: os sociais-chauvinistas,
que apoiavam a política imperialista do governo, os centristas, que em palavras lutavam contra a guerra
imperialista, e a minoria revolucionária, que adoptava uma posição internacionalista e lutava contra a guerra.
Em 1919 verificou-se uma cisão no seio do Partido Socialista. A ala esquerda que resultou da cisão do
Partido Socialista tomou a iniciativa da criação e tornou-se o núcleo do Partido Comunista dos Estados Unidos
da América. (retornar ao texto)
[N42] O Internacionalista (The Internationalist): jornal semanal, órgão de imprensa da ala esquerda
dos socialistas americanos; foi editado no princípio de 1917 na cidade de Boston pela Liga de Propaganda
Socialista da América. (retornar ao texto)
[N43] Tribunistas: membros do Partido Social-Democrata da Holanda, cujo órgão de imprensa era o
jornal De Tribune. Os tribunistas não eram um partido revolucionário consequente, mas representavam a ala
esquerda do movimento operário da Holanda, e nos anos da Primeira Guerra Mundial imperialista (1914-1918)
adoptaram no fundamental uma posição internacionalista.
Em 1918 os tribunistas constituíram o Partido Comunista da Holanda.
A Tribuna (De Tribune): jornal fundado em 1907 pela ala esquerda do Partido Operário Social-
Democrata da Holanda. A partir de 1909, depois da exclusão dos elementos de esquerda e da constituição por
estes do Partido Social-Democrata da Holanda, este jornal tornou-se o órgão do novo partido; em 1918 tornou-
se o órgão do Partido Comunista Holandês; sob esse nome publicou-se até 1940. (retornar ao texto)
[N44] Lénine chamava partido dos jovens ou dos esquerdas na Suécia à corrente de esquerda da
social-democracia sueca. Durante a guerra imperialista mundial (1914-1918), os «jovens» adoptaram uma
posição internacionalista e aderiram ao grupo da Esquerda de Zimmerwald. Em Maio de 1917 formaram o
Partido Social-Democrata de Esquerda da Suécia. No congresso realizado por este partido em 1919 foi resolvido
aderir à Internacional Comunista. A ala revolucionária do partido fundou, em 1921, o Partido Comunista da
Suécia. (retornar ao texto)
[N45] Tesniaki (estreitos): Partido Operário Social-Democrata da Bulgária, revolucionário, fundado em
1903, depois da cisão do Partido Social-Democrata. O fundador e guia dos tesniaki foi D. Blagóev. Mais tarde os
tesniaki foram dirigidos pelos discípulos de Blagóev: G. Dimítrov, V. Kolárov e outros. Os tesniaki lutaram
contra a guerra imperialista. Em 1919 aderiram à Internacional Comunista e fundaram o Partido Comunista da
Bulgária. (retornar ao texto)
[N46] Avante! (Avanti!): diário, órgão central do Partido Socialista Italiano, fundado em Dezembro de
1896 em Roma. (retornar ao texto)
[N47] Os sociais-democratas polacos dividiram-se no princípio de 1912 em dois grupos: os partidários
da Direcção Principal (zarzadowcy em polaco), que procuravam compromissos e a conciliação com os
liquidacionistas, e os partidários da Direcção Territorial (rozeamowcy), que lutavam contra o liquidacionismo e

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cooperavam com os bolcheviques. Durante a guerra imperialista mundial (1914-1918) os dois grupos uniram-
se num só partido, que adoptou uma posição internacionalista. (retornar ao texto)
[N48] A resolução mencionada foi dirigida por Lénine e apresentada em nome dos sociais-democratas
de esquerda suíços ao Congresso cantonal da organização social-democrata de Zurique, realizado em 11 e 12 de
Fevereiro de 1917 em Tõss. (retornar ao texto)
[N49] 28 Lénine refere-se ao jornal Volksstime (Voz do Povo), órgão do partido Social-Democrata
Alemão; o jornal publicou-se em Chemnitz nos anos 1891-1933.
O Sino (Die Glocke): revista quinzenal editada em Munique e depois em Berlim (de 1915 a 1925) pelo
social-chauvinista Parvus (A. L. Helphand), membro do Partido Social-Democrata Alemão. (retornar ao texto)
[N50] Trata-se do manifesto Aos Povos Supliciados e Martirizados, aprovado na Conferência de
Kienthal, ou II Conferência Socialista Internacional, efectuada na cidade de Kienthal em 1916. (retornar ao
texto)
[N51] V. I. Lénine, no capítulo «O pacifismo dos socialistas e dos sindicalistas franceses» da sua obra O
Pacifismo Burguês e o Pacifismo Socialista, criticou as resoluções do Partido Socialista francês. (V. I. Lénine,
Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 30, pp. 251-256.) As duas resoluções saudavam o presidente dos EUA,
Wilson, que interveio na qualidade de pacificador apresentando uma proposta, dirigida a todas as nações, para
«exporem publicamente os seus pontos de vista sobre as condições em que a guerra poderia ser terminada»,
isto é, uma proposta de terminar a guerra imperialista com uma paz imperialista. (retornar ao texto)
[N52] Internacional da Juventude (Jugend-Internationale): órgão da união internacional de
organizações socialistas da juventude, que aderiu à Esquerda de Zimmerwald. Foi editado em Zurique desde
Setembro de 1915 ate Maio de 1918. (retornar ao texto)
[N53] Rabotchaia Gazeta (jornal Operário): diário dos mencheviques, publicou-se em Petrogrado
desde Março até Novembro de 1917. Apoiava o Governo Provisório burguês e lutava contra o partido
bolchevique e contra o seu guia, V. I. Lénine; tomou uma atitude hostil em relação à Revolução de Outubro.
(retornar ao texto)
[N54] O Comité Executivo do Soviete de Petrogrado, na sua sessão do dia 7 (20) de Abril de 1917,
aprovou por maioria de votos (21 contra 14) a resolução de apoiar activamente o chamado «Empréstimo da
Liberdade», que foi emitido pelo Governo Provisório para financiar a continuação da guerra imperialista. Os
bolcheviques membros do Comité Executivo do Soviete opuseram-se ao empréstimo, declarando que o apoio ao
empréstimo equivalia à votação a favor dos créditos de guerra, e apresentaram um projecto de resolução com a
fundamentação pormenorizada da sua posição. (retornar ao texto)
[N55] K. Marx, Crítica do Programa de Gotha; F. Engels, Prefácio à colectânea Internationales aus dem
«Volksstaat» (1871-1875). {In Karl Marx/Friedrich Engels, Werke, Bd. 19, S. 15-32; Bd. 22, S. 417-418.)
(retornar ao texto)
[N56] K. Marx e F. Engels atribuem esta expressão a H. Heine e citaram-na pela primeira vez na sua
obra A Ideologia Alemã (t. II, capítulo IV, 4., «A escola de Saint-Simon»). (In Karl Marx /Friedrich Engels, Werke,
Bd. 3, S. 498.) (retornar ao texto)
[N57] Trata-se da VII Conferência (de Abril) de Toda a Rússia do POSDR (b), realizada em Petrogrado
em 24-29 de Abril (7-12 de Maio) de 1917. Foi a primeira conferência do Partido realizada em condições legais.
Na Conferência participaram 133 delegados com voto deliberativo e 18 com voto consultivo, de 78 organizações
partidárias. Pela sua representatividade e pelas suas tarefas políticas e organizativas, a Conferência
desempenhou de facto o papel de um congresso, tendo elaborado uma lista política para todo o Partido e
formado os seus órgãos dirigentes.
Na ordem do dia da Conferência figuravam as seguintes questões: o momento actual (a guerra e o
Governo Provisório, etc), a conferência de paz, a atitude em relação aos Sovietes de deputados operários e
soldados, a revisão do programa do Partido, a situação na Internacional e as tarefas do Partido, a unificação das
organizações sociais-democratas internacionalistas, a questão agrária, a questão nacional, a Assembleia
Constituinte, a questão da organização, relatórios sobre as regiões, eleição do Comité Central.
Lénine fez parte da presidência da Conferência e dirigiu todos os seus trabalhos, tendo apresentado
relatórios e intervindo activamente na discussão das questões mais importantes, além de elaborar várias das
resoluções aprovadas pela Conferência. Kámenev e Ríkov intervieram na Conferência contra Lénine; seguindo
os mencheviques, declararam que a Rússia não estava madura para a revolução socialista; Lénine denunciou a
posição capituladora e antipartido de Kámenev e Ríkov, que negavam a possibilidade do triunfo do socialismo
na Rússia. Lénine criticou também implacavelmente as concepções de Piatakov, que se pronunciou contra a
política do Partido na questão nacional e que já durante a guerra adoptara, juntamente com Bukhárine, uma
posição social-chauvinista; Piatakov e Bukhárine pronunciavam-se contra o direito das nações à
autodeterminação incluindo a separação; este ponto de vista significava na prática a renúncia do proletariado a
aproveitar as reservas nacionais da revolução e condenava esta à derrota. Lénine censurou duramente a

45
intervenção de Zinóviev, que defendia a colaboração dos bolcheviques com os zimmerwaldianos; Lénine
exprimiu o seu desacordo com a resolução apresentada por Zinóviev e aprovada pela Conferência,
considerando que a sua aplicação dificultaria a criação da III Internacional, a Internacional Comunista. A
Conferência elegeu o Comité Central do Partido, encabeçado por Lénine.
A importância histórica da Conferência de Abril consiste em que ela adoptou o programa leninista de
passagem à segunda etapa da revolução na Rússia, traçou o plano da luta pela transformação da revolução
democrática burguesa em revolução socialista, avançou a reivindicação da passagem de todo o poder para os
Sovietes. Foi sob esta palavra de ordem que os bolcheviques prepararam as massas para a revolução proletária.
(retornar ao texto)
[N58] Soldátskaia Pravda («Pravda» do Soldado): diário bolchevique que se publicou desde Abril de
1917 até Março de 1918, inicialmente como órgão da Organização Militar do Comité de Petrogrado do
POSDR(b), e depois como órgão da Organização Militar do CC do POSDR(b). (retornar ao texto)
[N59] 38 A III Conferência de Zimmerwald (em Estocolmo) foi marcada inicialmente pela Comissão
Socialista Internacional para o dia 31 de Maio de 1917, mas foi repetidamente adiada para outras datas. V. I.
Lénine considerava que os bolcheviques deviam separar-se imediatamente da associação de Zimmerwald, onde
os centristas se tinham voltado para o social-chauvinismo, e iniciar imediatamente a formação da III
Internacional. A participação dos bolcheviques na III Conferência de Zimmerwald, segundo a ideia de Lénine,
devia ter um objectivo puramente informativo. A Conferência de Abril do POSDR(b), por proposta de G. E.
Zinóviev, decidiu a participação de representantes bolcheviques na Conferência, que se realizou de 5 a 12 de
Setembro de 1917.
A III Conferência de Zimmerwald confirmou inteiramente a conclusão de Lénine sobre a bancarrota da
associação de Zimmerwald e sobre a necessidade de se separar dela e de constituir a III Internacional, a
Internacional Comunista. A III Conferência de Zimmerwald foi a última conferência desta associação. (retornar
ao texto)
[N60] Pravda (Verdade): jornal diário legal dos bolcheviques, que se publicou em Petersburgo desde
22 de Abril (5 de Maio) de 1912. O jornal foi editado na base dos recursos financeiros recolhidos pelos próprios
operários e tinha uma difusão que alcançava os 40 mil exemplares. A tiragem de alguns números do jornal
atingia 60 mil exemplares.
Lénine dirigia ideologicamente o Pravda, escrevia quase diariamente para o jornal, dava instruções à
sua redacção. Foram publicados no Pravda cerca de 270 artigos e notas de Lénine assinados com diferentes
pseudónimos.
O Pravda foi alvo de constantes perseguições policiais. Só durante o primeiro ano da sua existência
foram intentados 36 processos judiciais contra os seus redactores. Ao todo, os redactores estiveram na prisão
47,5 meses. O jornal foi encerrado pelo governo tsarista oito vezes, mas continuou a sair sob outros nomes.
Nessas condições difíceis, os bolcheviques conseguiram editar 636 números áoPravda durante mais de dois
anos. Em 8 (21) de Julho de 1914 o jornal foi encerrado.
A edição do Pravda reiniciou-se só depois da revolução democrático-burguesa de Fevereiro de 1917. A
partir de 5 (18) de Março de 1917 o Pravda começou a publicar-se como órgão do Comité Central e do Comité
de Petersburgo do POSDR. A 5 (18) de Abril, depois do seu regresso do estrangeiro, Lénine passou a fazer parte
da redacção e encabeçou a direcção do Pravda. Em Julho-Outubro de 1917 o Pravda, perseguido pelo Governo
Provisório burguês contra-revolucionário, mudou de nome por mais de uma vez e publicou-se como Listok
«Pravdi» (Folha do «Pravda»), Proletári (Proletário), Rabótchi (Operário), Rabótchi Put (Via Operária). Depois
da vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro, a partir de 27 de Outubro (9 de Novembro) de 1917, o
órgão central do partido recomeçou a publicar-se sob o título inicial de Pravda. (retornar ao texto)
[N61] A constituição do primeiro Governo Provisório de coligação foi consequência da crise provocada
pela nota que o ministro dos Negócios Estrangeiros, P. N. Miliukov, tinha enviado às potências aliadas no dia 18
de Abril (1 de Maio) de 1917, confirmando a observância pelo Governo Provisório de todos os tratados
concluídos pelo governo tsarista, e prometendo continuar a guerra até à vitória definitiva. Devido às
manifestações espontâneas de protesto que se transformaram, nos dias 20 e 21 de Abril (3 e 4 de Maio), num
poderoso movimento dos operários e soldados, o Governo Provisório, para criar a impressão de uma viragem
de política resolveu demitir P. N. Miliukov e A. I. Gutchkov dos seus cargos de ministro dos Negócios
Estrangeiros e de Ministro da Guerra respectivamente, e apresentou ao Soviete de Petrogrado uma proposta
solicitando o seu consentimento para a formação do governo de coligação. O Comité Executivo, apesar da sua
decisão de 1 (14) de Março sobre a não participação de representantes do Soviete no Governo Provisório,
resolveu, na reunião extraordinária da noite do dia 1 (14) de Maio, aceitar a proposta do Governo Provisório.
Depois das negociações chegou-se, no dia 5 (18) de Maio, a um acordo sobre a partilha das pastas
ministeriais no novo governo, em que, além dos 10 ministros capitalistas, entraram também dirigentes dos
partidos conciliadores: A. F. Kérenski, ministro da Guerra e da Marinha, M. I. Skóbelev, ministro do Trabalho, V.

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M. Tchernov, ministro da Agricultura, A. V. Pechekhónov, ministro dos Abastecimentos, I. G. Tseretéli, ministro
dos Correios e Telégrafos. (retornar ao texto)
[N62] Lénine refere-se aos socialistas revolucionários. (retornar ao texto)
[N63] Lénine refere-se à publicação em 11 (24) de Maio de 1917 pelo ministro da Guerra, A. F.
Kérenski, duma ordem que continha a «Declaração dos direitos do soldado», na qual havia um artigo sobre a
aplicação pelo comandante, em situação de combate, da força militar contra a insubordinação. Esse artigo era
dirigido contra os soldados e os oficiais que se recusavam a combater. Simultaneamente com a publicação da
ordem, A. F. Kérenski começou a dissolver regimentos e a entregar aos tribunais os oficiais e soldados que
«incitavam à insubordinação».

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/23.htm

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Sobre a Dualidade de Poderes
V. I. Lénine

9 de Abril de 1917

A questão fundamental de toda a revolução é a questão do poder de Estado. Sem esclarecer esta
questão nem sequer se pode falar em participar de modo consciente na revolução, para já não falar em dirigi-la.

Uma particularidade extremamente notável da nossa revolução consiste em que ela gerou uma
dualidade de poderes. É preciso, antes de mais nada, compreender este facto; sem isso será impossível ir
avante. É necessário saber completar e corrigir as velhas «fórmulas», por exemplo, as do bolchevismo, porque,
como se demonstrou, foram acertadas em geral, mas a sua realização concreta revelou-se diferente. Ninguém
antes pensava nem podia pensar na dualidade de poderes.

Em que consiste a dualidade de poderes? Em que ao lado do Governo Provisório, o governo da


burguesia, se formou outro governo, ainda fraco, embrionário, mas indubitavelmente existente de facto e em
desenvolvimento: os Sovietes de deputados operários e soldados.

Qual é a composição de classe deste outro governo? O proletariado e os camponeses (vestidos com a
farda de soldado). Qual o carácter político deste governo? É uma ditadura revolucionária, isto é, um poder que
se apoia directamente na conquista revolucionária, na iniciativa imediata das massas populares vinda de baixo,
e não na lei promulgada por um poder de Estado centralizado. É um poder de um género completamente
diferente do poder que geralmente existe nas repúblicas parlamentares democrático-burguesas do tipo
habitual imperante até agora nos países avançados da Europa e da América. Esta circunstância é esquecida com
frequência, não se medita sobre ela, apesar de que nela reside toda a essência do problema. Este poder é um
poder do mesmo tipo que a Comuna de Paris de 1871. Os traços fundamentais deste tipo são:

a fonte do poder não está numa lei previamente discutida e aprovada pelo parlamento mas na
iniciativa directa das massas populares partindo de baixo e à escala local, na «conquista» directa, para
empregar uma expressão corrente;
a substituição da polícia e do exército, como instituições separadas do povo e opostas ao povo, pelo
armamento directo de todo o povo; com este poder a ordem pública é mantida pelos próprios operários e
camponeses armados, pelo próprio povo armado;
o funcionalismo, a burocracia ou são substituídos também pelo poder imediato do próprio povo ou,
pelo menos, colocados sob um controlo especial, transformam-se em pessoas não só elegíveis mas exoneráveis
à primeira exigência do povo, reduzem-se à situação de simples representantes; transformam-se de camada
privilegiada, com «lugarzinhos» de remuneração elevada, burguesa, em operários de uma «arma» especial, cuja
remuneração não exceda o salário normal de um bom operário.
Nisto, e só nisto, consiste a essência da Comuna de Paris como tipo especial de Estado. Esta essência foi
esquecida e deturpada pelos Srs. Plekhánov (chauvinistas declarados que traíram o marxismo), Kautsky (os
homens do «centro», isto é, os que vacilam entre o chauvinismo e o marxismo) e, em geral, todos os sociais-
democratas, socialistas-revolucionários, etc, hoje dominantes.

Escapam-se com frases, refugiam-se no silêncio, esquivam-se, felicitam--se mutuamente mil vezes pela
revolução, não querem reflectir no que são os Sovietes de deputados operários e soldados. Não querem ver a
verdade manifesta de que, na medida em que esses Sovietes existem, na medida em que são um poder, existe na
Rússia um Estado do tipo da Comuna de Paris.

Sublinhei «na medida», pois é apenas um poder embrionário. Pactuando directamente com o Governo
Provisório burguês, e fazendo uma série de concessões de facto, cedeu e cede ele próprio posições à burguesia.

Porquê? Talvez porque Tchkheídze, Tseretéli, Steklov e C.a cometem um «erro»? Tolices. Assim pode
pensar um filisteu, mas não um marxista. A causa é o insuficiente grau de consciência e de organização dos
proletários e dos camponeses. O «erro» dos chefes mencionados reside na sua posição pequeno-burguesa, em
que obscurecem a consciência dos operários em vez de os esclarecerem, lhes inculcam ilusões pequeno-
burguesas em vez de as refutarem, reforçam a influência da burguesia sobre as massas em vez de libertarem as
massas dessa influência.

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Daqui deveria já ficar claro porque é que também os nossos camaradas cometem tantos erros ao
formular «sirnplesmente» esta pergunta: deve-se derrubar imediatamente o Governo Provisório?

Respondo:

deve-se derrubá-lo pois é oligárquico, burguês, e não de todo o povo, ele não pode dar nem paz, nem
pão, nem plena liberdade;
não se pode derrubá-lo agora pois sustenta-se graças a um acordo directo e indirecto, formal e de
facto, com os Sovietes de deputados operários e, em primeiro lugar, com o principal Soviete, o de Petrogrado;
de uma forma geral não se pode «derrubá-lo» pelo meio habitual, pois assenta no «apoio» que presta à
burguesia o segundo governo, o Soviete de deputados operários, e este governo é o único governo
revolucionário possível, que expressa directamente a consciência e a vontade da maioria dos operários e
camponeses. A humanidade não criou e nós não conhecemos ate hoje um tipo de governo superior nem melhor
que os Sovietes de deputados operários, assalariados agrícolas, camponeses e soldados.
Para se tornarem o poder, os operários conscientes têm de conquistar a maioria para o seu lado:
enquanto não existir violência contra as massas, não haverá outra via para o poder. Não somos
blanquistas[N21], não somos partidários da tomada do poder por uma minoria. Somos marxistas, partidários da
luta proletária de classe contra a embriaguez pequeno-burguesa, o defensismo-chauvinismo, a fraseologia, a
dependência em relação à burguesia.

Criemos um partido comunista proletário; os melhores partidários do bolchevismo criaram já os seus


elementos; unamo-nos para o trabalho proletário de classe e de entre os proletários, de entre os camponeses
pobres, um número cada vez maior colocar-se-á do nosso lado. Porque a vida destruirá dia a dia as ilusões
pequeno-burguesas dos «sociais-democratas», dos Tchkheídze, Tseretéli, Steklov, etc, dos «socialistas-
revolucionários», dos pequenos burgueses ainda mais «puros», etc, etc.

A burguesia é pelo poder único da burguesia.

Os operários conscientes são pelo poder único dos Sovietes de deputados operários, assalariados
agrícolas, camponeses e soldados, pelo poder único preparado pelo esclarecimento da consciência proletária e
pela sua libertação da influência da burguesia, e não por meio de aventuras.

A pequena-burguesia — os «sociais-democratas», os socialistas-revolucionários, etc, etc. — vacila,


dificultando este esclarecimento, esta libertação.

Tal é a verdadeira correlação das forças de classe, que determina as nossas tarefas.

Assinado: N. Lenine.

Nota de fim de tomo:


[N21] Blanquistas: partidários do blanquismo, corrente no movimento socialista francês chefiada por
Louis-Auguste Blanqui (1805-1881), eminente revolucionário e destacado representante do comunismo
utópico francês. Os blanquistas rejeitavam a luta de classes e tinham esperanças em que «a humanidade se
libertaria da escravidão assalariada não por meio da luta de classe do proletariado, mas por meio de uma
conspiração de uma pequena minoria de intelectuais» (V. I. Lénine, Obras Completas, 5ª ed. em russo, t. 13, p.
76).
Os blanquistas substituíam a actividade do partido revolucionário pelas acções de um pequeno grupo
clandestino de conspiradores, não tinham em conta a situação concreta indispensável para a vitória da
insurreição e não davam a importância à ligação com as massas. (retornar ao texto)

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/04/09.htm

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Resolução Sobre os Sovietes de Deputados Operários e Soldados
V. I. Lénine

15 (2) de Maio de 1917

Depois de discutir os relatórios e comunicações dos camaradas que trabalham nos Sovietes de
deputados operários e soldados das diferentes regiões da Rússia, a conferência estabelece:

Em toda uma série de regiões de província, a revolução avança mediante a organização do


proletariado e do campesinato em Sovietes por iniciativa própria, a destituição das velhas autoridades por
iniciativa própria, a criação de uma milícia operária e camponesa, a passagem de todas as terras para as mãos
do campesinato, o estabelecimento do controlo operário nas fábricas, o estabelecimento da jornada de trabalho
de 8 horas, o aumento dos salários, a garantia da manutenção sem quebra do ritmo da produção, o
estabelecimento da fiscalização dos operários sobre a distribuição dos víveres, etc.

Esse crescimento em amplitude e profundidade da revolução nas províncias é, por um lado, um


crescimento do movimento pela passagem de todo o poder aos Sovietes e pelo controlo dos próprios operários
e camponeses sobre a produção, e, por outro lado, serve de garantia da preparação de forças à escala de toda a
Rússia para a segunda etapa da revolução, que deve entregar todo o poder de Estado nas mãos dos Sovietes ou
de outros órgãos que exprimam directamente a vontade da maioria do povo (órgãos de auto-administraçào
local, Assembleia Constituinte, etc).

Nas capitais e em algumas grandes cidades, a tarefa da passagem do poder de Estado para os Sovietes
apresenta dificuldades particularmente grandes e exige uma preparação particularmente prolongada das forças
do proletariado. Aqui se concentram as maiores forças da burguesia. Aqui, a política de conciliação com a
burguesia, política que não poucas vezes trava a iniciativa revolucionária das massas e debilita a sua
independência, ganha proporções mais agudas, o que é particularmente perigoso dada a importância dirigente
destes Sovietes para as províncias.

É, pois, dever do partido proletário, por um lado, apoiar em todos os aspectos o referido
desenvolvimento da revolução nas localidades, e, por outro lado, lutar sistematicamente dentro dos Sovietes
(mediante a propaganda e a reeleição deles) pelo triunfo da linha proletária; dirigir todos os esforços e toda a
atenção para a massa de operários e soldados, para separar a linha proletária da pequeno-burguesa, a
internacionalista da defensista, a revolucionária da oportunista, para organizar e armar os operários, para
preparar as suas forças para a etapa seguinte da revolução.

A conferência declara uma vez mais que é necessário trabalhar em todos os aspectos dentro dos
Sovietes de deputados operários e soldados, aumentar o seu número, consolidar as suas forças, unir no seu seio
os grupos proletários internacionalistas do nosso partido.
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/05/15.htm

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I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia[N81]
3-24 de Junho (16 de Junho - 7 de Julho) de 1917

V. I. Lénine

4 (17) de Junho de 1917

Discurso Sobre a Atitude em Relação ao Governo Provisório

Camaradas, no curto espaço de tempo que me foi concedido só posso deter-me, e penso que isto é mais
conveniente, nas questões de princípio fundamentais, expostas pelo relator do Comité Executivo e pelos
oradores seguintes.

A questão primeira e fundamental que se colocava perante nós era a questão de onde estamos — o que
são estes Sovietes que se reuniram agora no Congresso de toda a Rússia, o que é a democracia revolucionária,
de que aqui tanto se fala para encobrir a completa incompreensão dela e a mais completa renúncia a ela. Pois
falar de democracia revolucionária diante de um Congresso dos Sovietes de toda a Rússia e encobrir o carácter
desta instituição, a sua composição de classe, o seu papel na revolução, não dizer sobre isto nem uma palavra, e
pretender ao mesmo tempo ao título de democratas, é estranho. Pintam-nos o programa de uma república
burguesa parlamentar, como a que tem havido em toda a Europa Ocidental, pintam-nos um programa de
reformas reconhecidas hoje por todos os governos burgueses, em cujo número se inclui também o nosso, e
falam-nos juntamente com isso de democracia revolucionária. Falam diante de quem? Diante dos Sovietes. E eu
pergunto-vos se existe algum país na Europa, burguês, democrático, republicano, no qual exista algo parecido
com estes Sovietes. Tendes de responder que não. Em parte alguma existe, nem pode existir, uma instituição
semelhante, pois das duas uma: ou um governo burguês com esses «planos» de reformas que nos pintam e que
dezenas de vezes em todos os países foram propostas e ficaram no papel, ou essa instituição para a qual agora
apelam, esse «governo» de tipo novo que foi criado pela revolução e do qual há exemplo apenas na história dos
maiores ascensos revolucionários, por exemplo em 1792 e em 1871 na França e em 1905 na Rússia. Os Sovietes
são uma instituição que não existe em nenhum dos Estados burgueses parlamentares de tipo corrente, e não
pode existir ao lado de um governo burguês. É o tipo novo e mais democrático de Estado, ao qual nós, nas
resoluções do nosso partido, dávamos o nome de república democrática camponesa-proletária, na qual o poder
pertence exclusivamente aos Sovietes de deputados operários e soldados. É um erro pensar que esta é uma
questão teórica, é um erro tentar apresentar as coisas como se se pudesse contorná-las, é um erro objectar que
actualmente coexistem com os Sovietes de deputados operários e soldados instituições deste ou daquele
género. Sim, coexistem. Mas precisamente isto é que gera uma quantidade inaudita de equívocos, de conflitos e
de atritos. É precisamente isto que provoca a passagem da revolução russa do seu primeiro ascenso, do seu
primeiro movimento de avanço, à sua estagnação e aos passos atrás que agora vemos no nosso governo de
coligação, em toda a política interna e externa, em relação com a ofensiva imperialista que se está preparando.

Das duas uma: ou um governo burguês comum, e nesse caso não são necessários os Sovietes de
operários, camponeses, soldados e outros, então serão ou dissolvidos pelos generais, pelos generais contra-
revolucionários que têm o exército nas mãos, sem prestar a menor atenção à oratória do ministro Kerenski, ou
morrerão de uma morte sem glória. Não há outro caminho para estas instituições, que não podem retroceder
nem parar e apenas podem existir avançando. Eis um tipo de Estado que não foi inventado pelos russos, que foi
gerado pela revolução, pois de outro modo a revolução não pode vencer. No seio do Soviete de toda a Rússia são
inevitáveis os atritos, a luta dos partidos pelo poder. Mas isso será uma superação dos possíveis erros e ilusões
pela própria experiência política das massas (rumores) e não pelos discursos que fazem os ministros, referindo-
se ao que disseram ontem, ao que escreverão amanhã e ao que prometerão depois de amanhã. Isto, camaradas,
do ponto de vista de uma instituição criada pela revolução russa e diante da qual se coloca hoje a questão de ser
ou não ser, é ridículo. Os Sovietes não podem continuar a existir como existem agora. Pessoas adultas, operários
e camponeses, têm de reunir-se para adoptar resoluções e ouvir discursos que não podem ser submetidos a
nenhuma prova documental! Instituições deste género representam a passagem para essa república que criara,
não em palavras, mas de facto, um poder firme, sem polícia, sem exército permanente, esse poder que na
Europa Ocidental não pode ainda existir, o poder sem o qual a revolução russa não pode vencer, no sentido da
vitória sobre os latifundiários, no sentido da vitória sobre o imperialismo.

Sem esse poder não se pode sequer falar de que nós próprios possamos conseguir uma vitória
semelhante, e quanto mais examinarmos o programa que nos aconselham aqui e os factos diante dos quais nos

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encontramos, com tanto maior força ressaltará a contradição fundamental. Dizem-nos, como disseram o relator
e outros oradores, que o primeiro Governo Provisório era mau! Mas então quando os bolcheviques, os
malfadados bolcheviques, disseram: «nenhum apoio, nenhuma confiança neste governo», quantas acusações de
«anarquismo» choveram sobre nós! Hoje todos dizem que o governo precedente foi mau, mas em que se
distingue desse governo precedente o governo de coligação, com os ministros quase-socialistas? Não basta de
conversas sobre programas e projectos, será que não basta, não é tempo de passar aos actos? Passou já um mês
desde que, em 6 de Maio, se formou o governo de coligação. Vede os factos, vede a ruína que existe na Rússia e
em todos os países arrastados para a guerra imperialista. Como se explica a ruína? Pela rapacidade dos
capitalistas. Eis onde está a verdadeira anarquia. E dizemos isto com base em confissões publicadas não no
nosso jornal, não em qualquer jornal bolchevique, Deus nos livre, mas no ministerial Rabótchaia Gazeta: os
preços industriais dos fornecimentos de carvão foram elevados pelo governo «revolucionário»!! E o governo de
coligação não mudou nada a este respeito. Perguntam-nos se na Rússia se pode introduzir o socialismo ou, em
geral, realizar imediatamente transformações radicais; tudo isso são vazios subterfúgios, camaradas. A doutrina
de Marx e Engels, como eles sempre explicaram, consiste em que: «a nossa teoria não é um dogma, mas um guia
para a acção.»[N82] Em nenhuma parte do mundo existe, nem pode existir durante a guerra, um capitalismo
puro que se transforme em socialismo puro, mas existe algo intermédio, algo novo, algo sem precedentes,
porque sucumbem centenas de milhões de homens arrastados para esta guerra criminosa entre capitalistas.
Não se trata de promessas de reformas, isso são palavras vazias; trata-se de dar o passo de que agora
necessitamos.

Se quereis referir-vos à democracia «revolucionária», diferenciai este conceito do de democracia


reformista sob um ministério capitalista, porque, enfim, é tempo de passar das frases sobre a «democracia
revolucionária», das congratulações recíprocas a propósito da «democracia revolucionária», à caracterização de
classe, tal como nos ensina o marxismo e o socialismo científico em geral. O que nos propõem é a passagem à
democracia reformista sob um ministério capitalista. E isso poderá ser magnífico do ponto de vista dos modelos
correntes da Europa Ocidental. Mas hoje existe toda uma série de países em vésperas da ruína, e as medidas
práticas que, como disse o orador precedente, o cidadão ministro dos Correios e Telégrafos, são tão
complicadas que é difícil implantá-las sem um estudo especial, essas medidas são completamente claras. Ele
disse que não existe na Rússia nenhum partido político que se declare pronto a tomar todo o poder. Eu
respondo: «Existe! Nenhum partido pode recusá-lo, e o nosso partido não o recusa: a todo o momento está
pronto a tomar todo o poder.» ( Aplausos, e risos.) Podeis rir quanto quiserdes, mas se o cidadão ministro nos
coloca diante desta questão ao lado de um partido de direita, receberá uma resposta adequada. Nenhum partido
pode recusar-se a isso. E num momento em que existe ainda liberdade, em que as ameaças de prisão e de
desterro para a Sibéria, ameaças da parte dos contra-revolucionários ao lado dos quais se sentam os nossos
ministros quase-socialistas, não são senão ameaças, em tal momento cada partido diz: depositai em nós a vossa
confiança e nós dar-vos-emos o nosso programa.

A nossa conferência de 29 de Abril deu este programa[N83]. Infelizmente, não o levam em


consideração, nem se regem por ele. É necessário, pelos vistos, esclarecê-lo de maneira popular. Tentarei dar ao
cidadão ministro dos Correios e Telégrafos uma explicação popular da nossa resolução, do nosso programa. O
nosso programa, em relação à crise económica, consiste em que seja exigida imediatamente — para isso não é
necessário nenhum adiamento — a publicação de todos os lucros fabulosos, que chegam a 500-800 por cento, e
que os capitalistas obtêm não como capitalistas no mercado livre, num capitalismo «puro», mas com os
fornecimentos de guerra. Eis realmente onde o controlo operário é necessário e possível. Eis uma medida que
vós, se vos chamais a vós próprios democracia «revolucionária», deveis realizar em nome do Soviete e que pode
ser implantada de hoje para amanhã. Isto não é o socialismo. Isto é abrir os olhos do povo para a verdadeira
anarquia e para o verdadeiro jogo com o imperialismo, o jogo com o património do povo, com centenas de
milhares de vidas, que amanhã perecerão porque continuamos a estrangular a Grécia. Publicai os lucros dos
senhores capitalistas, prendei 50 ou 100 dos milionários mais ricos. Bastará detê-los algumas semanas, ainda
que nas mesmas condições privilegiadas em que se mantém Nicolau Romanov, com a simples finalidade de pôr
a descoberto os fios, os manejos fraudulentos, a sujeira, a cobiça que também sob o novo governo custam ao
nosso país milhares e milhões todos os dias. Eis a causa fundamental da anarquia e da ruína, eis porque
dizemos: na Rússia continua tudo como antes, o governo de coligação não mudou nada, ele ofereceu apenas um
montão de discursos declamatórios, de frases pomposas. Por muito sinceros que sejam os homens, por muito
sinceramente que desejem o bem dos trabalhadores, as coisas não mudaram — a mesma classe continua no
poder. A política que está a ser seguida não é uma política democrática.

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Falam-nos da «democratização do poder central e local». Acaso não sabeis que essas palavras só são
novas para a Rússia, que nos outros países houve já dezenas de ministros quase-socialistas que fizeram ao país
promessas semelhantes? Que significam elas quando perante nós está o facto concreto e vivo: a população local
elege as autoridades, mas o á-bê-cê da democracia é violado pela pretensão do centro de nomear ou confirmar
as autoridades locais. A dilapidação do património do povo pelos capitalistas continua. A guerra imperialista
continua. E prometem-nos reformas, reformas e reformas, cuja execução é perfeitamente impossível neste
quadro, porque a guerra esmaga tudo, determina tudo. Porque não estais de acordo com os que dizem que a
guerra não se faz pelos lucros dos capitalistas? Em que reside o critério? Em primeiro lugar, em que classe está
no poder, em que classe continua a dominar, em que classe continua a ganhar centenas de milhares de milhões
com operações bancárias e financeiras? É a mesma classe capitalista, e por isso a guerra continua a ser
imperialista. Nem o primeiro Governo Provisório, nem o governo com os ministros quase-socialistas mudaram
nada: os tratados secretos continuam secretos, a Rússia continua a lutar pelos estreitos, pela continuação da
política liakhovista na Pérsia[N84], etc.

Eu sei que não quereis isto, que a maioria de vós não quer isto, e que os ministros não querem isto,
porque não se pode querer isto, porque isto significaria o massacre de centenas de milhões de homens. Mas
considerai a ofensiva de que tanto falam agora os Miliukov e os Maklákov. Eles compreendem perfeitamente do
que se trata. Sabem que isto está ligado à questão do poder, à questão da revolução. Dizem-nos que é precise
distinguir entre questões políticas e estratégicas. É ridículo apresentar sequer essa questão. Os democratas-
constitucionalistas compreendem perfeitamente que se trata de uma questão política.

Que a luta revolucionaria pela paz começada a partir de baixo pode conduzir a uma paz separada é
uma calúnia. O primeiro passo que daríamos se tivéssemos o poder seria: deter os maiores capitalistas e
romper todos os fios das suas intrigas. Sem isto, todas as frases sobre uma paz sem anexações nem
contribuições são palavras absolutamente vazias. O nosso segundo passo seria declarar aos povos,
independentemente dos governos, que consideramos todos os capitalistas bandidos, tanto Teréchtchenko, que
não é em nada melhor que Miliukov, só um pouco mais estúpido, como os capitalistas franceses, como os
ingleses, como todos.

O vosso próprio Izvéstia[N85] se embrulha e, em vez de uma paz sem anexações nem contribuições,
propõe manter o statu quo. Não, não é assim que concebemos a paz «sem anexações». E aqui até o Congresso
Camponês[N86] se aproxima mais da verdade, ao falar de uma república «federativa», dando assim expressão à
ideia de que a república russa não quer oprimir nenhum povo nem à maneira nova nem velha, de que não quer
conviver na base da violência com nenhum povo, nem com a Finlândia nem com a Ucrânia, que o ministro da
Guerra tanto critica e com as quais se criam conflitos imperdoáveis e inadmissíveis. Nós queremos uma
república da Rússia, una e indivisível, com um poder forte, mas um poder forte só se consegue com o acordo
voluntário dos povos. «Democracia revolucionária", isto são grandes palavras, mas são aplicadas a um governo
que complica com chicanas mesquinhas a questão da Ucrânia e da Finlândia, que, nem mesmo se queriam
separar, e que se limitam a dizer: não adieis a aplicação do á-bê-cê da democracia até à Assembleia Constituinte!

É impossível concluir uma paz sem anexações nem contribuições enquanto não renunciardes às vossas
próprias anexações. Porque, enfim, isto é ridículo, é um jogo, de que ri cada operário da Europa; ele diz: «em
palavras eles são eloquentes, exortam os povos a derrubar os banqueiros, mas colocam os banqueiros do
próprio país no ministério. Prendei-os, ponde a descoberto as manipulações, descobri os fios — isto não o fazeis
apesar de terdes organizações poderosas contra as quais é impossível resistir. Passastes pelos anos de 1905 e
1917, sabeis que a revolução não se faz de encomenda, que nos outros países as revoluções seguiram sempre o
duro e sangrento caminho das insurreições e que na Rússia não existe um só grupo, não existe uma só classe
que possa opor-se ao poder dos Sovietes. Na Rússia é possível que esta revolução, por excepção, seja uma
revolução pacífica. E se esta revolução oferecesse hoje ou amanhã a paz a todos os povos, rompendo com todas
as classes capitalistas, veríamos como a França e a Alemanha, pela boca dos seus povos, dariam o seu acordo
num prazo brevíssimo, porque esses países caminham para a ruína, porque a situação da Alemanha é
desesperada, porque ela não se pode salvar e porque a França ...

(O presidente: «O seu tempo esgotou-se.»).

Terminarei em meio minuto ... (Rumores, pedidos da assistência para que continue, protestos,
aplausos.)

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(O presidente: «Comunico ao Congresso que o praesidium propõe o prolongamento do tempo
concedido ao orador. Quem se opõe? A maioria é pela continuação do discurso.»)

Dizia eu que se a democracia revolucionária na Rússia fosse uma democracia não em palavras, mas de
facto, impulsionaria a revolução para a frente e não entraria em acordo com os capitalistas, não discorreria
sobre a paz sem anexações nem contribuições, mas procederia de modo a liquidar as anexações na Rússia e
declararia abertamente que considerava qualquer anexação criminosa e banditesca. E então seria possível
evitar a ofensiva imperialista, que ameaça com a morte milhares e milhões de homens, pela partilha da Pérsia,
dos Balcãs. Então ficaria aberto o caminho para a paz, caminho que não seria — isso não o dizemos — um
caminho simples, que não excluiria uma guerra realmente revolucionária.

Não colocamos esta questão como a coloca hoje Bazárov na Nóvaia Jizn[N87]; dizemos somente que a
Rússia se encontra em tais condições que, no fim da guerra imperialista, as suas tarefas são mais fáceis do que
poderia parecer. E ela encontra-se em condições geográficas tais que as potências que se decidissem a apoiar-se
no capital e nos seus interesses vorazes e marchar contra a classe operária russa e o semi proletariado, isto é, o
campesinato muito pobre, aliado a ela, se elas o fizessem isto seria para elas uma tarefa extremamente difícil. A
Alemanha está à beira da ruína e, depois da intervenção da América, que quer devorar o México e que amanhã
provavelmente entrará em luta com o Japão, depois dessa intervenção a situação da Alemanha é desesperada:
ela será aniquilada. A França, que, pela sua situação geográfica, é de todas a que mais sofre e cujo esgotamento
atinge o máximo, este pais que passa menos fome do que a Alemanha, perdeu incomparavelmente mais
material humano do que a Alemanha. Pois bem, se desde o primeiro passo se tivesse posto freio aos lucros dos
capitalistas russos e se se os tivesse privado de toda a possibilidade de embolsarem lucros de centenas de
milhões, se tivésseis proposto a todos os povos uma paz contra os capitalistas de todos os países, declarando
abertamente, ao fazê-lo, que não quereis entabular nenhuma espécie de negociações nem estabelecer o menor
contacto com os capitalistas alemães nem com quem, directa ou indirectamente, os favorecesse ou tivesse algo
que ver com eles, que vos negáveis a falar com os capitalistas franceses e ingleses — então ter-vos-íeis
pronunciado para os acusar perante os operários. Não teríeis considerado como uma vitória que tenha obtido
passaporte um MacDonald[N88], que nunca travou uma luta revolucionária contra o capital e que deixam
passar porque ele não exprimiu nem as ideias, nem os princípios, nem a prática, nem a experiência da luta
revolucionária contra os capitalistas ingleses, pela qual o nosso camarada MacLean e centenas de outros
socialistas ingleses estão nas prisões, tal como está o nosso camarada Liebknecht, que se encontra num presídio
por ter dito: «soldados alemães, disparai contra o vosso Kaiser».

Não seria mais acertado mandar os capitalistas imperialistas para esses mesmos trabalhos forçados
que a maioria dos membros do Governo Provisório, na terceira Duma especialmente restaurada para isto —
não sei, aliás, se é a terceira ou a quarta — diariamente nos preparam e prometem e que escrevem já, a esse
respeito, os novos projectos de lei do Ministério da Justiça? MacLean e Liebknecht, eis os nomes dos socialistas
que convertem em realidade a ideia da luta revolucionária contra o imperialismo. Eis o que é preciso dizer a
todos os governos se se quer lutar pela paz; é preciso acusá-los diante dos povos. Então colocareis todos os
governos imperialistas numa situação embrulhada. Mas agora quem está numa situação embrulhada sois vós,
quando vos dirigistes aos povos com o apelo pela paz de 14 de Março[N89], dizendo: «derrubai os vossos
imperadores, os vossos reis e os vossos banqueiros», enquanto nós, que temos nas mãos uma organização sem
precedentes, rica pelo número, experiência e força material como o Soviete de .Deputados operários e soldados,
formamos um bloco com os nossos banqueiros, constituímos um governo de coligação quase-socialista e
escrevemos projectos de reformas como os que vêm sendo escritos na Europa há dezenas e dezenas de anos.
Ali, na Europa, zombam de semelhante tipo de luta pela paz. E ali só a compreenderão quando os Sovietes
tomarem o poder e actuarem de modo revolucionário.

Em todo o mundo só existe um país que pode hoje dar passos para pôr fim à guerra imperialista, numa
escala de classe, contra os capitalistas, sem revolução sangrenta, só há um país, e esse país é a Rússia. E ela
continuará a sê-lo enquanto existir o Soviete de deputados operários e soldados. Ele não poderá existir muito
tempo ao lado de um Governo Provisório de tipo corrente. E ele continuará a ser como é apenas enquanto não
se passar à ofensiva. A passagem a ofensiva é uma viragem em toda a política da revolução russa, isto é, a
passagem da espera, da preparação da paz por uma insurreição revolucionária a partir de baixo, para o
recomeço da guerra. A passagem da confraternização numa frente à confraternização em todas as frentes, da
confraternização espontânea, quando se trocava uma côdea de pão por um canivete com um proletário alemão
faminto, pelo que são ameaçados com o presídio, à confraternização consciente: eis o caminho que era
apontado.

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Quando tomarmos nas nossas mãos o poder, poremos um freio aos capitalistas, e a guerra não será já a
mesma que a que se trava hoje, pois a guerra é determinada pela classe que a trava e não por aquilo que se
escreva num papel. No papel pode-se escrever o que se quiser. Mas, enquanto a classe capitalista formar a
maioria do governo, a guerra continuará a ser imperialista, escrevais vós o que escreverdes, por muito
eloquentes que sejais, sejam quais forem os ministros quase-socialistas que tenhais.. Isto todos sabem e todos
vêem. E o exemplo da Albânia, o exemplo da Grécia, da Pérsia[N90] mostrou-o de modo tão claro e tangível que
me surpreende que todo o mundo ataque a nossa declaração escrita sobre a ofensiva[N91] e ninguém diga uma
só palavra sobre os exemplos concretos! Prometer projectos é fácil, mas as medidas concretas vão sendo
adiadas. Escrever uma declaração sobre a paz sem anexações é fácil, mas o exemplo da Albânia, da Grécia, da
Pérsia é posterior ao ministério de coligação. E o Delo Naroda, órgão não do nosso partido, mas órgão
governamental, órgão dos ministros, escreveu que isto é um escárnio a que submetem a democracia russa, que
estrangulam a Grécia. E o próprio Miliukov, de quem fazeis sabe Deus o quê — é um simples membro do seu
partido, Térechtchenko não se diferencia em nada dele — escrevia que a diplomacia dos aliados exercia pressão
sobre a Grécia. A guerra continua a ser imperialista, e por muito que desejeis a paz, por mais sincera que seja a
vossa simpatia pelos trabalhadores e por mais sincero que seja o vosso desejo de paz — estou plenamente
convencido de que o desejo de paz não pode deixar de ser sincero na massa — sois impotentes, pois só se pode
pôr fim à guerra desenvolvendo a revolução. Quando na Rússia começou a revolução, começou também a luta
revolucionária a partir de baixo pela paz. Se vós tornásseis o poder nas vossas mãos, se o poder passasse para
as organizações revolucionárias para lutar contra os capitalistas russos, os trabalhadores dos outros países
acreditariam em vós e então poderíeis propor a paz. Então a nossa paz ficaria garantida, ao menos por dois
lados, por parte de dois povos que se esvaem em sangue e cuja causa é desesperada, por parte da Alemanha e
da França. E se as circunstâncias nos pusessem então na situação de uma guerra revolucionária — isto ninguém
sabe e não excluímos isto — diríamos: «não somos pacifistas, não renunciamos à guerra se a classe
revolucionária estiver no poder, se verdadeiramente despojou os capitalistas de toda a influência na direcção
dos assuntos e da possibilidade de acentuar a ruína que lhes permite embolsar centenas de milhões.» O poder
revolucionário declararia e explicaria a todos os povos sem excepção que todos os povos devem ser livres, que
do mesmo modo que o povo alemão não tem direito a lutar para conservar a Alsácia e a Lorena, também o povo
francês não tem direito a lutar pelas suas colónias. Porque se a França luta pelas suas colónias, a Rússia tem
Khivá e Bukhará, que são também uma espécie de colónias, e então a partilha das possessões coloniais
começará. E como partilha-las, segundo que norma? Segundo a força. Mas a força mudou, a situação dos
capitalistas é tal que não há outra saída senão a guerra. Quando tomardes o poder revolucionário, tereis a via
revolucionária para a paz: dirigir-se aos povos com um apelo revolucionário, explicar a táctica com o vosso
exemplo. Então abrir-se-á diante de vós o caminho de uma paz conquistada por via revolucionária e tereis as
maiores probabilidades de poder evitar a morte de centenas de milhares de homens, então podereis estar
seguros de que os povos alemão e francês pronunciar-se-ão a vosso favor. E os capitalistas ingleses, americanos
e japoneses, mesmo se quisessem uma guerra contra a classe operária revolucionária — cujas forças
decuplicarão quando tiver sido posto um freio e afastados os capitalistas, e o controlo tiver passado para as
mãos da classe operária — mesmo se os capitalistas americanos, ingleses e japoneses quiserem uma guerra,
haveria noventa e nove probabilidades em cem de não serem capazes de a travar. E bastará que declareis que
não sois pacifistas, que estais dispostos a defender a vossa república, a vossa democracia operária, proletária,
contra os capitalistas alemães e franceses e outros, para que a paz seja assegurada.

Eis por que atribuímos uma importância tão fundamental à nossa declaração sobre a ofensiva. Chegou
a hora de uma viragem em toda a historia da revolução russa. A revolução russa começou apoiada pela
burguesia imperialista de Inglaterra, que pensou que a Rússia era uma espécie de China ou Índia. Em vez disto,
ao lado do governo em que hoje têm a maioria os latifundiários e os capitalistas, surgiram os Sovietes,
organismos representativos com uma força nunca vista no mundo, que vós matais com a vossa participação no
ministério de coligação com a burguesia. Em vez disto, a revolução russa fez com que a luta revolucionária a
partir de baixo contra o governo capitalista seja acolhida em toda a parte, em todos os países, com três vezes
mais simpatia do que antes. A questão coloca-se assim: avançar ou recuar. Durante uma revolução é impossível
permanecer no mesmo lugar. Eis por que a ofensiva é uma viragem em toda a revolução russa, não no sentido
estratégico da ofensiva, mas político e económico. A ofensiva é hoje, objectivamente, independentemente da
vontade ou da consciência deste ou daquele ministro, o prosseguimento da matança imperialista e da morte de
centenas de milhares, de milhões de pessoas pelo estrangulamento da Pérsia e de outros povos fracos. A
passagem do poder para o proletariado revolucionário apoiado pelo campesinato pobre e a passagem para a
luta revolucionária pela paz sob as formas mais seguras e menos dolorosas que a humanidade jamais conheceu,

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a passagem para uma situação em que ficarão assegurados o poder e a vitória dos operários revolucionários
tanto na Rússia como em todo o mundo. (Aplausos de uma parte da assembleia.)

Notas de fim de tomo:


[N81] O I Congresso dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados de Toda a Rússia realizou-se em
3-24 de Junho (16 de Junho — 7 de Julho) de 1917 em Petrogrado. A maioria esmagadora dos delegados eram
mencheviques e socialistas-revolucionários. Nos seus discursos e resoluções exortavam os operários e soldados
a consolidar a disciplina no exército, a lançar uma ofensiva na frente e a apoiar o Governo Provisório e
opunham-se decididamente à passagem do poder para os Sovietes, declarando (como o fez o ministro Tseretéli)
que na Rússia não havia nenhum partido político capaz de assumir sozinho toda a plenitude do poder. Em
resposta a isto, Lénine, em nome do partido dos bolcheviques, afirmou: "Esse partido existe!" e, no seu discurso
da tribuna, disse que o partido bolchevique estava pronto em qualquer momento a assumir todo o poder.
Os bolcheviques aproveitaram amplamente a tribuna do Congresso para desmascarar a política
imperialista do Governo Provisório e a táctica conciliadora dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários,
exigindo a passagem de todo o poder para os Sovietes.
O Congresso elegeu o Comité Executivo Central, constituído fundamentalmente por mencheviques e
socialistas-revolucionários, que existiria até ao II Congresso dos Sovietes. (retornar ao texto)
[N82] Ver a carta de F. Engels a F. A. Sorge de 29 de Novembro de 1886. (In Karl Marx / Friedrich
Engels, Werke, Bd. 36, S. 578.) (retornar ao texto)
[N83] Lénine refere-se às decisões da VII Conferência (de Abril) de toda a Rússia do POSDR (b).
(retornar ao texto)
[N84] Ao falar da política liakhovista, Lénine refere-se ao esmagamento pelo Governo tsarista do
movimento revolucionário e de libertação nacional. O coronel do exército tsarista Liákhov comandou as tropas
russas que esmagaram a revolução burguesa na Pérsia em 1908. (retornar ao texto)
[N85] Izvéstia Petrográdskogo Sovieta Rabótchikh i Soldátskikh Deputátov (Notícias do Soviete de
Deputados Operários e Soldados de Petrogrado): jornal diário, começou a publicar-se em 28 de Fevereiro (13
de Março) de 1917. Depois da formação, no I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia, do Comité Executivo
Central dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados, o jornal tornou-se o órgão do CEC e, a partir de 1 (14)
de agosto, passou a publicar-se com o título Izvéstia Tsentrálnogo Ispolnítelnogo Komiteta i Petrográdskogo
Sovieta Rabótchikh i Soldátskikh Deputátov (Notícias do Comité Executivo Central e do Soviete de Deputados
Operários e Soldados de Petrogrado); a partir de 29 de setembro (12 de Outubro) publico-se com o título
Izvéstia Tsentrálnogo Ispolnítelnogo Komiteta Sovieta Rabótchikh i Soldátskikh Deputátov (Notícias do Comité
Executivo Central dos Sovietes de Deputados Operários e Soldados). Durante todo este tempo o jornal
encontrava-se nas mãos dos mencheviques e socialistas-revolucionários e conduzia uma luta encarniçada
contra o partido bolchevique. Depois do II Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia a composição da redacção
do Izvéstia foi modificada e o jornal tornou-se o órgão oficial do Poder Soviético. (retornar ao texto)
[N86] Trata-se do Primeiro Congresso de Deputados Camponeses de Toda a Rússia, realizado em 4-28
de Maio (17 Maio-10 Junho) de 1917, em Petrogrado. Os socialistas-revolucionários, que tomaram a iniciativa
de organizar o Congresso, influenciaram grandemente a eleição dos delegados nas localidades. A maioria do
Congresso pertencia também aos socialistas-revolucionários. O Congresso transformou-se em arena de uma
luta tenaz entre os bolcheviques e os socialistas-revolucionários para ganhar as massas camponesas.
Desenvolveu-se uma luta particularmente aguda quando da discussão do problema principal do congresso: a
questão agrária. Lénine, no seu discurso no projecto de resolução apresentado em nome da fracção
bolchevique, propôs que se declarasse a terra propriedade de todo o povo e se iniciasse imediatamente a
entrega das terras dos latifundiários aos camponeses, sem aguardar que se convocasse a Assembleia
Constituinte.
Mas os dirigentes socialistas-revolucionários conseguiram que o Congresso aprovasse as resoluções
redigidas por eles. As decisões do Congresso exprimiam os interesses dos kulaques, isto é, da burguesia rural.
(retornar ao texto)
[N87] Nóvaia Jizn (Vida Nova): diário que se editou em Petrogrado de Abril de 1917 a Julho de 1918 (a
partir de Setembro de 1917 com o título de Sobódvaia Jizn), fundado por um grupo de mencheviques
internacionalistas e de escritores agrupados em torno da revista Létopis (Crónica).
Lénine refere-se ao artigo de V. Bazaróv "E Depois?", que foi publicado no n° 40 do Nóvaia Jizn de 4
(17) de Junho de 1917. Bazaróv defendi a continuação de uma guerra separada, pretensamente no intuito de
salvar a revolução. (retornar ao texto)
[N88] Lénine refere-se à entrega pelo Governo Inglês de um passaporte a Ramsay MacDonald,
dirigente do Partido Trabalhista Indeendente da Inglaterra, convidado a ir à Rússia pelo Comité Executivo do
Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado. A viagem de MacDonald foi impedida pelo Sindicato

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dos Marinheiros Ingleses, que se negou a pilotar o navio em que MacDonald devia viajar para a Rússia.
(retornar ao texto)
[N89] O Apelo do Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado «Aos Povos de Todo o
Mundo» foi aprovado pela maioria dos mencheviques e socialistas-revolucionários do Soviete sob a pressão de
um amplo movimento dos trabalhadores, que lutavam para acabar com a guerra, na reunião do Soviete de 14
(27) de Março de 1917, e foi publicado no dia seguinte nos jornais Pravda e Izvéstia Petrográdskogo Sovieta
Rabótchikh i Soldátskikh Deputátov.
O apelo exortava os povos dos países beligerantes a «efectuarem acções decididas a favor da paz»;
contudo, não sublinhava o carácter rapinante da guerra nem propunha quaisquer medidas concretas de luta
pela paz, e, no fundo, justificava a continuação da guerra imperialista pelo Governo Provisório burguês.
(retornar ao texto)
[N90] Em Junho de 1917 a Albânia foi ocupada pela Itália, que proclamou a independência desse país,
mas sob o seu protectorado.
Na Grécia, sob a pressão da Inglaterra e da França, realizou-se um golpe de Estado. Os aliados, por
meio dum bloqueio económico que provocou na Grécia uma fome terrível e da ocupação pelas tropas anglo-
francesas de várias regiões do território grego, obrigaram o rei Constantino a abdicar do trono e colocaram no
poder o seu partidário Venizelos. A Grécia, a despeito da vontade da maioria esmagadora do povo, foi arrastada
para a guerra ao lado da Entente.
A Pérsia (Irão) foi, durante a guerra, ocupada pelas tropas inglesas e russas; no início do ano de 1917,
esse país, tendo perdido toda a independência, foi ocupado pelas tropas russas no Norte e pelas tropas inglesas
no Sul. Todos esses actos de brutal violência imperialista foram apoiados pelos diplomatas do Governo
Provisório. (retornar ao texto)
[N91] Trata-se da declaração do bureau da fracção bolchevique e do bureau dos sociais-democratas
internacionalistas unificados no I Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia exigindo que fosse colocada em
primeiro lugar a questão da ofensiva que o Governo Provisório estava a preparar na frente.
A declaração assinalava que esta ofensiva era ditada pelos magnates dos países imperialistas aliados,
que os círculos russos esperavam desta maneira concentrar todo o poder nas mãos dos grupos militaristas,
diplomáticos e capitalistas e assestar um golpe na luta revolucionária pela paz e nas posições conquistadas pela
democracia russa. A declaração advertia a classe operária, o exército e o campesinato para o perigo que o país
corria e apelava para que o congresso repelisse imediatamente a arremetida contra-revolucionária. Esta
proposta do bureau da fracção do POSDR (b) foi rejeitada pelo Congresso.
O ministro da Guerra, Kérenski, deu ordem de iniciar a ofensiva no dia 16 (29) de Junho. No dia 18 (1
de Julho) as tropas russas da frente sudoeste passaram à ofensiva. Nos primeiros dias a ofensiva eve êxito e as
tropas russas avançaram fazendo vários milhares de prisioneiros. Mais tarde, porém, o facto de os soldados
russos estarem extremamente fatigados e não compreenderem os objectivos da ofensiva, e de as tropas estarem
insuficientemente equipadas e abastecidas, conduziu ao rompimento pelas tropas alemãs da linha da frente, o
que obrigou o exército russo a uma retirada desordenada. O exército russo sofreu uma grande derrota, tendo
perdido em 10 dias cerca de 60 000 soldados e oficiais.
O fracasso da ofensiva na frente significou ao mesmo tempo o fracasso de toda a política do Governo
Provisório e do bloco defensista socialista-revolucionário-menchevique que o apoiava. A derrota das tropas
russas na ofensiva de Junho aumentou consideravelmente a influência dos bolcheviques entre as massas de
operários e soldados, que se convenciam cada vez mais de que os bolcheviques tinham razão. As notícias sobre
as enormes perdas sofridas pelas tropas russas durante a ofensiva provocaram uma onda de indignação entre
os trabalhadores e apressaram o início duma nova crise política no país.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/06/17.htm

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A Propósito das Palavras de Ordem
V. I. Lénine
17 de Julho de 1917

Aconteceu com demasiada frequência que, quando a história faz uma viragem brusca, até os partidos
avançados não podem durante um tempo mais ou menos longo habituar-se à nova situação, repetem palavras
de ordem que ontem eram correctas mas hoje perderam todo o sentido, perderam o sentido tão «subitamente»
como «súbita» foi a brusca viragem da história.
Algo semelhante pode repetir-se, ao que parece, com a palavra de ordem da passagem de todo o poder
de Estado para os Sovietes. Esta palavra de ordem foi justa durante o período irrevogavelmente passado da
nossa revolução, digamos, de 27 de Fevereiro a 4 de Julho. Esta palavra de ordem deixou agora visivelmente de
ser justa. Sem compreender isto, não se pode compreender nada das questões essenciais da actualidade. Cada
palavra de ordem particular deve derivar do conjunto de peculiaridades de uma determinada situação política.
E hoje, depois de 4 de Julho, a situação política na Rússia distingue-se radicalmente da situação de 27 de
Fevereiro a 4 de Julho.

Então, neste período passado da revolução, reinava no Estado a chamada «dualidade de poderes», que
exprimia tanto material como formalmente a situação indefinida e de transição do poder de Estado. Não
esqueçamos que a questão do poder é a questão fundamental de qualquer revolução.

Então o poder mantinha-se numa situação de instabilidade. Era compartilhado, por um acordo
voluntário entre si, pelo Governo Provisório e pelos Sovietes. Os Sovietes representavam delegações das massas
tanto de operários armados como de soldados livres, isto é, não submetidos a nenhuma coacção exterior. As
armas nas mãos do povo, a ausência de coacção exterior sobre o povo — eis em que consistia a essência da
questão. Eis o que abria e garantia a via pacífica de desenvolvimento de toda a revolução. A palavra de ordem:
«passagem de todo o poder para os Sovietes» era a palavra de ordem do passo imediato, o passo de realização
directa nesta via pacífica de desenvolvimento. Era a palavra de ordem do desenvolvimento pacífico da
revolução, que de 27 de Fevereiro até 4 de Julho era possível e, naturalmente, o mais desejável, e que hoje já é
absolutamente impossível.

Segundo todas as aparências, nem todos os partidários da palavra de ordem: «passagem de todo o
poder para os Sovietes» reflectiram suficientemente em que esta era a palavra de ordem do desenvolvimento
pacífico da revolução. Pacífico não apenas no sentido de que ninguém, nenhuma classe, nenhuma força séria,
podia então (de 27 de Fevereiro até 4 de Julho) opor-se e impedir a passagem do poder para os Sovietes. Isso
não é tudo. O desenvolvimento pacífico teria sido então possível também no sentido de que a luta de classes e
dos partidos dentro dos Sovietes teria podido então, com a passagem oportuna para eles da plenitude do poder
de Estado, revestir-se das formas mais pacíficas e mais indolores.

Também a este último aspecto do problema não se presta a atenção devida. Os Sovietes, pela sua
composição de classe, eram os órgãos do movimento dos operários e dos camponeses, a forma já pronta da sua
ditadura. Se tivessem tido a plenitude do poder, ter-se-ia acabado na prática com o principal defeito das
camadas pequeno-burguesas, com o seu pecado capital, a confiança nos capitalistas, ele teria sido criticado
mediante a experiência das suas próprias medidas. A substituição das classes e partidos que ocupam o poder
teria podido realizar-se pacificamente, dentro dos Sovietes, na base do seu poder único e pleno; a união de
todos os partidos soviéticos com as massas teria permanecido sólida e sem falhas. Não se pode perder de vista
nem por um instante sequer que só esta ligação estreitíssima e crescendo livremente em extensão e em
profundidade dos partidos soviéticos com as massas podia ajudar a acabar pacificamente com as ilusões do
espírito de conciliação pequeno-burguês com a burguesia. A passagem do poder para os Sovietes não mudaria
nem poderia mudar a correlação das classes; não mudaria em nada o carácter pequeno-burguês do
campesinato. Mas teria dado oportunamente um grande passo para separar os camponeses da burguesia, para
os aproximar e depois para os unir aos operários.

Assim poderia ter acontecido se o poder tivesse passado oportunamente para os Sovietes. E isto teria
sido o mais fácil, o mais vantajoso para o povo. Tal caminho seria o mais indolor e por isso era preciso lutar por
ele com toda a energia. Mas agora esta luta, a luta pela passagem oportuna do poder para os Sovietes, terminou.
A via pacífica do desenvolvimento da revolução foi tornada impossível. Começou a via não pacífica, a mais
dolorosa.

58
A viragem de 4 de Julho consiste precisamente em que, depois dessa data, mudou bruscamente a
situação objectiva. A situação instável do poder cessou, o poder passou, no ponto decisivo, para as mãos da
contra-revolução. O desenvolvimento dos partidos no terreno do espírito de conciliação dos partidos pequeno-
burgueses dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques com os democratas-constitucionalistas contra-
revolucionários conduziu a que ambos estes partidos pequeno-burgueses se tornassem de facto participantes e
cúmplices dos actos sangrentos da contra-revolução. A confiança inconsciente dos pequenos burgueses nos
capitalistas conduziu os primeiros, impulsionados pelo curso do desenvolvimento da luta dos partidos, a
apoiarem conscientemente os contra-revolucionários. O ciclo de desenvolvimento das relações entre os
partidos terminou. A 27 de Fevereiro todas as classses se encontraram juntas contra a monarquia. Depois de 4
de Julho, a burguesia contra-revolucionária, de braço dado com os monárquicos e os cem-negros, ligou a si os
socialistas-revolucionários e mencheviques pequeno-burgueses, intimidando-os em parte, e entregou de facto o
poder de Estado real nas mãos dos Cavaignac, nas mãos da camarilha militar que fuzila os insubordinados na
frente, que esmaga os bolcheviques em Petrogrado.

A palavra de ordem da passagem do poder para os Sovietes soaria agora como quixotismo ou como
uma troça. Esta palavra de ordem, objectivamente, seria enganar o povo, infundir-lhe a ilusão de que, mesmo
agora, bastaria aos Sovietes quererem tomar o poder ou deliberar isto para obter o poder, de que no Soviete
ainda se encontram partidos não manchados pela cumplicidade com os verdugos, de que é possível fazer com
que aquilo que aconteceu não tenha acontecido.

Seria o mais profundo dos erros pensar que o proletariado revolucionário é capaz, para «se vingar»,
digamos assim, dos socialistas-revolucionários e mencheviques pelo seu apoio à repressão contra os
bolcheviques, aos fuzilamentos na frente e ao desarmamento dos operários, de «se negar» a apoiá-los contra a
contra-revolução. Tal colocação da questão seria, em primeiro lugar, atribuir concepções pequeno-burguesas de
moral ao proletariado (pois, pelo bem da causa, o proletariado apoiará sempre não só a pequena burguesia
vacilante, mas mesmo a grande burguesia); seria, em segundo lugar — e isto é o principal — uma tentativa
pequeno-burguesa de ocultar por meio da «moralização» a essência política do problema.

Esta essência do problema consiste em que hoje já é impossível tomar o poder pacificamente. Só é
possível obtê-lo vencendo, numa luta decidida, os verdadeiros detentores do poder no momento actual, isto é, a
camarilha militar, os Cavaignac, que se apoiam nas tropas reaccionárias trazidas para Petrogrado, nos
democratas-constitucionalistas e nos monárquicos.

A essência do problema está em que estes novos detentores do poder só podem ser vencidos pelas
massas revolucionárias do povo, para cujo movimento é condição não apenas que sejam dirigidas pelo
proletariado, mas também que se afastem dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, que
traíram a causa da revolução.

Quem introduz na política a moral pequeno-burguesa raciocina assim: admitamos que os socialistas-
revolucionários e os mencheviques cometeram um erro ao apoiar os Cavaignac, que desarmam o proletariado e
os regimentos revolucionários; mas é preciso dar-lhes a possibilidade de «corrigir» o erro, «não lhes dificultar»
a correcção do «erro»; facilitar a vacilação da pequena-burguesia para o lado dos operários. Semelhante
raciocínio seria uma ingenuidade pueril ou simplesmente uma tolice, se não um novo engano dos operários.
Pois a vacilação das massas pequeno-burguesas para o lado dos operários consistiria apenas e precisamente
apenas no afastamento destas massas dos socialistas-revolucionários e mencheviques. A correcção do erro dos
partidos dos socialistas-revolucionários e mencheviques só poderia agora consistir em que estes partidos
declarassem Tseretéli e Tchernov, Dan e Rakítnikov cúmplices dos verdugos. Somos plena e
incondicionalmente partidários de tal «correcção do erro» ...

A questão fundamental da revolução é a questão do poder, dissemos nós. É preciso acrescentar:


precisamente as revoluções mostram a cada passo como se encobre a questão de onde está o verdadeiro poder,
mostram-nos a divergência entre o poder formal e o poder real. Nisso precisamente consiste uma das
particularidades principais de qualquer período revolucionário. Em Março e Abril de 1917 não se sabia se o
poder real estava nas mãos do governo ou nas mãos dos Sovietes.

59
Porém hoje é especialmente importante que os operários conscientes encarem judiciosamente a
questão central da revolução: nas mãos de quem está no momento actual o poder de Estado. Reflecti em quais
são as suas manifestações materiais, não tomeis as frases por factos, e a resposta não vos será difícil.

O Estado — escreveu Friedrich Engels — é constituído, antes de mais, por destacamentos de homens
armados providos de certos meios materiais tais como as prisões[N111]. Hoje, são os cadetes, os cossacos
reaccionários, especialmente trazidos para Petrogrado; os que mantêm na prisão Kámenev e outros; os que
encerraram o jornal Pravda; os que desarmaram os operários e uma determinada parte dos soldados; os que
fuzilam uma parte não menos determinada das tropas do exército. Estes verdugos são o poder real. Os Tseretéli
e Tchernov são ministros sem poder, ministros fantoches, chefes de partidos que apoiam a política dos
verdugos. Isto é um facto. E este facto não se modifica pelo facto de Tseretéli e Tchernov, pessoalmente,
seguramente «não aprovarem» os actos dos verdugos, pelo facto de os seus jornais negarem timidamente toda a
relação com estes: esta mudança de roupagem política não modifica o fundo do problema.

O encerramento do órgão de 150 000 eleitores de Petrogrado, o assassínio pelos cadetes do operário
Vóinov (6 de Julho) por levar o Listok Právdi da tipografia — não serão actos de verdugos? não será obra dos
Cavaignac? Dizem-nos que disso «não são culpados» nem o governo nem os Sovietes.

Tanto pior para o governo e para os Sovietes — respondemos nós — porque então isso significa que
eles são uns zeros; são fantoches, não têm o poder real.

O povo deve, antes de tudo e mais que tudo, saber a verdade — saber nas mãos de quem se encontra,
de facto, o poder de Estado. É preciso dizer ao povo toda a verdade: o poder está nas mãos da clique militar dos
Cavaignac (de Kérenski, de certos generais, oficiais, etc), apoiados pela burguesia como classe, com o partido
dos democratas-constitucionalistas à frente e com todos os monárquicos, actuando por meio de todos os jornais
cem-negristas, por meio do Nóvoe Vrémia, do Jivóe Slovo, etc, etc.

É preciso derrubar este poder. Sem isso, todas as frases sobre a luta contra a contra-revolução são
frases ocas, são «enganar-nos a nós mesmos e enganar o povo».

Este poder é apoiado hoje tanto pelos ministros Tseretéli e Tchernov como pelos seus partidos: é
preciso esclarecer o povo sobre o seu papel de verdugos e a inevitabilidade de tal «finale» destes partidos
depois dos seus «erros» de 21 de Abril, de 5 de Maio[N112], de 9 de Junho113, de 4 de Julho, depois de
aprovarem a política da ofensiva, uma política que em nove décimos determinou a vitória dos Cavaignac em
Julho.

É preciso reorganizar toda a agitação entre o povo de modo que ela tenha em conta, precisamente, a
experiência concreta da actual revolução e principalmente das jornadas de Julho, isto é, que mostre claramente
os verdadeiros inimigos do povo, a clique militar, os democratas-constitucionalistas e os cem-negros e
desmascare irrefutavelmente os partidos pequeno-burgueses, os partidos dos socialistas-revolucionários e
mencheviques, que desempenharam e desempenham o papel de auxiliares dos verdugos.

É preciso reorganizar toda a agitação entre o povo, de modo a esclarecer a completa impossibilidade
da obtenção da terra pelos camponeses enquanto não for derrubado o poder da clique militar, enquanto não
forem desmascarados e privados da confiança popular os partidos dos socialistas-revolucionários e dos
mencheviques. Em condições «normais» do desenvolvimento capitalista, isto seria um processo muito longo e
muito difícil, mas a guerra e o descalabro económico acelerá-lo-ão enormemente. Estes são «aceleradores» que
podem equiparar um mês e até uma semana a um ano.

Duas objecções se formularão, provavelmente, contra o que ficou dito atrás: primeiro, que falar hoje de
luta decisiva significa estimular as acções isoladas, que favoreceriam precisamente a contra-revolução;
segundo, que o derrubamento desta significa a passagem do poder, de qualquer forma, para as mãos dos
Sovietes.

Em resposta à primeira objecção dizemos: os operários na Rússia são já suficientemente conscientes


para não se deixarem levar por provocações num momento que é notoriamente desfavorável para eles. Que
agora avançar e resistir significaria ajudar a contra-revolução, isso é indubitável. Que a luta decisiva só é
possível com um novo ascenso da revolução nas massas mais profundas, isso também é indubitável. Mas não

60
basta falar em geral do ascenso da revolução, do seu impulso, da ajuda dos operários ocidentais, etc, é preciso
tirar uma conclusão determinada do nosso passado, é preciso tomar em consideração precisamente as nossas
lições. E esta consideração dá precisamente a palavra de ordem da luta decidida contra a contra-revolução que
se apoderou do poder.

A segunda objecção reduz-se também à substituição de verdades concretas por raciocínios


demasiadamente gerais. Excepto o proletariado revolucionário, não há nada, nenhuma força, capaz de derrubar
a contra-revolução burguesa. É precisamente o proletariado revolucionário que, depois da experiência de Julho
de 1917, tem de tomar ele próprio nas suas mãos o poder de Estado — sem isso é impossível a vitória da
revolução. O poder nas mãos do proletariado, apoiado pelo campesinato pobre ou os semiproletários — eis a
única saída, e já respondemos quais são precisamente as circunstâncias que podem acelerá-la
extraordinariamente.

Nesta nova revolução poderão e deverão surgir os Sovietes, mas não os Sovietes actuais, não os órgãos
de um espírito de conciliação com a burguesia, mas os órgãos de uma luta revolucionária contra ela. É certo que
também então seremos pela construção de todo o Estado segundo o tipo dos Sovietes. Não se trata da questão
dos Sovietes em geral, mas da questão da luta contra a contra-revolução actual e contra a traição dos Sovietes
actuais.

Substituir o concreto pelo abstracto é um dos pecados capitais, um dos pecados mais perigosos numa
revolução. Os actuais Sovietes fracassaram, sofreram uma bancarrota completa devido ao domínio sobre eles
dos partidos dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. No momento actual esses Sovietes parecem-
se com carneiros que são conduzidos ao matadouro, colocados sob o cutelo e balem lastimosamente. Hoje os
Sovietes são impotentes e estão desamparados perante a contra-revolução, que triunfou e triunfa. A palavra de
ordem da entrega do poder aos Sovietes pode ser compreendida como um «simples» apelo à passagem do
poder precisamente para os Sovietes actuais, mas dizer isso, apelar para isso, significaria agora enganar o povo.
Não há nada mais perigoso que o engano.

O ciclo de desenvolvimento da luta de classes e dos partidos na Rússia de 27 de Fevereiro a 4 de Julho


terminou. Começa um novo ciclo, no qual entram não as velhas classes, não os velhos partidos, não os velhos
Sovietes, mas renovados pelo fogo da luta, temperados, instruídos, reconstituídos pelo curso da luta. É preciso
olhar não para trás, mas para a frente. É preciso operar não com as velhas, mas com as novas categorias de
classes e de partidos posteriores a Julho. É preciso partir, no começo deste novo ciclo, da contra-revolução
burguesa triunfante, triunfante devido ao espírito de conciliação com ela dos socialistas-revolucionários e
mencheviques, e que só pode ser vencida pelo proletariado revolucionário. Neste novo ciclo haverá ainda,
naturalmente, etapas muito diversas até à vitória definitiva da contra-revolução e até à derrota definitiva (sem
luta) dos socialistas-revolucionários e mencheviques e ao novo ascenso da nossa revolução. No entanto, disto só
se poderá falar mais tarde, quando se delinearem estas etapas com precisão ...

Notas de fim de tomo:


[N111] Ver F. Fngels, A Origem da família, da Propriedade Privada e do Estado. In Karl Marx/Friedrich
Engels, Werke, Bd. 21, S. 166. (retornar ao texto)
[N112] A constituição do primeiro Governo Provisório de coligação foi consequência da crise
provocada pela nota que o ministro dos Negócios Estrangeiros, P. N. Miliukov, tinha enviado às potências
aliadas no dia 18 de Abril (1 de Maio) de 1917, confirmando a observância pelo Governo Provisório de todos os
tratados concluídos pelo governo tsarista, e prometendo continuar a guerra até à vitória definitiva. Devido às
manifestações espontâneas de protesto que se transformarem, nos dias 20 e 21 de Abril (3 e 4 de Maio), num
poderoso movimento dos operários e soldados, o Governo Provisório, para criar a impressão de uma viragem
de política resolveu demitir P. N. Miliukov e A. I. Gutchkov dos seus cargos de ministro dos Negócios
Estrangeiros e de ministro da Guerra respectivamente, e apresentou ao Soviete de Petrogrado uma proposta
solicitando o seu consentimento para a formação do governo de coligação. O Comité Executivo, apesar da sua
decisão de 1 (14) de Março sobre a não participação de representantes do Soviete no Governo Provisório,
resolveu, na reunião extraordinária da noite do dia 1(14) de Maio, aceitar a proposta do Governo Provisório.
Depois das negociações chegou-se, no dia 5 (18) de Maio, a um acordo sobre a partilha das pastas ministeriais
no novo governo, em que, além dos 10 ministros capitalistas, entraram também dirigentes dos partidos
conciliadores: A. F. Kérenski, ministro da Guerra e da Marinha, M. I. Skóbelev, ministro do Trabalho, V. M.
Tchernov, ministro da Agricultura, A. V. Pechekhónov, ministro dos Abastecimentos, I. G. Tseretéli, ministro dos
Correios e Telégrafos.

61
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/07/15.htm

62
Onde Está o Poder e Onde Está a Contra-Revolução

V. I. Lénine

18 de Julho de 1917

A esta questão responde-se habitualmente de modo muito simples: a contra-revolução não existe em
absoluto, ou não sabemos onde está. Mas sabemos muito bem onde está o poder: está nas mãos do Governo
Provisório, controlado pelo Comité Executivo Central (CEC) do Congresso dos Sovietes de deputados operários
e soldados de toda a Rússia. Tal é a resposta habitual.

A crise política de ontem[N94], como a maioria das crises de todo o género que arrasam tudo o que é
convencional, que destroem todas as ilusões, deixou como herança atrás de si as ruínas das ilusões expressadas
nas respostas habituais, que acabamos agora de citar, às questões fundamentais de cada revolução.

Existe um ex-membro da II Duma de Estado, Aléxinski, que os socialistas-revolucionários e os


mencheviques, os partidos dirigentes nos Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, se negaram
a admitir no Comité Executivo do Soviete de deputados operários e soldados enquanto não se reabilitar, isto é,
enquanto não restabelecer a sua honra.

Que significa isso? Por que é que o Comité Executivo, pública e formalmente, negou confiança a
Aléxinski e exigiu dele o restabelecimento da honra, ou seja, considerou-o desonesto?

Porque Aléxinski se tornou tão famoso pelas suas calúnias que, em Paris, os jornalistas dos partidos
mais diversos o qualificaram de difamador. Aléxinski não quis restabelecer a sua honra perante o Comité
Executivo e preferiu esconder-se no jornal de Plekhánov, Edinstvo, colaborando nele, a princípio com as iniciais,
e depois — recuperada a ousadia — também abertamente.

Ontem, 4 de Julho, à tarde, alguns bolcheviques foram prevenidos por conhecidos de que Aléxinski
tinha comunicado ao comité de jornalistas de Petrogrado não se sabe que nova infâmia caluniosa. A maioria dos
notificados não prestaram nenhuma atenção a este aviso, tratando com desprezo e repugnância Aléxinski e o
seu «trabalho». Mas um bolchevique, Djugachvíli (Stáline), membro do Comité Executivo Central, que conhecia
de há muito, por ser social-democrata georgiano, o camarada Tchkheídze, falou com ele na reunião do CEC
sobre esta nova campanha infame, caluniosa, de Aléxinski.

Isto aconteceu muito tarde na noite, mas Tchkheídze declarou que o CEC não assistiria indiferente à
difusão de calúnias por pessoas que temem o julgamento e as investigações por parte do CEC. Em seu nome,
como presidente do CEC, e em nome de Tseretéli, como membro do Governo Provisório, Tchkheídze dirigiu-se
imediatamente pelo telefone a todas as redacções, com a proposta de se absterem de publicar as calunias de
Aléxinski. Tchkheídze disse a Stáline que a maioria dos jornais se mostraram prontos a cumprir o seu pedido e
que unicamente o Edinstvo e o Retch «se esquivaram a uma resposta» por um momento (não vimos o Edinstvo,
e o Retch não reproduziu a calúnia). Em resultado, a calúnia apareceu somente nas páginas de um pequeno
jornal amarelo, totalmente desconhecido para a maioria das pessoas cultas, o Jivóe Slovo,n.° 51 (404), cujo
redactor-editor assina com o nome de A. M. Umánski.

Agora os caluniadores responderão diante dos tribunais. Neste aspecto, o assunto é simples e não tem
complicações.

O absurdo da calúnia salta à vista: um tal Ermólenko, alferes do 16.° Regimento Siberiano de
Atiradores, foi «transferido» (?) «em 25 de Abril para a retaguarda da frente do VI Exército para fazer agitação a
favor de uma rápida conclusão da paz separada com a Alemanha». Visivelmente, é um sujeito que fugiu do
cativeiro, sobre o qual o «documento» publicado no Jivóe Slovo acrescenta:

«Ermólenko aceitou esta missão por insistência dos camaradas.»


Por aqui já se pode julgar que confiança merece tal sujeito, suficientemente desonesto para aceitar
semelhante «missão»!... A testemunha é um homem desonesto. Isto é um facto. E que declarou esta testemunha?

Declarou o seguinte:

63
«Os oficiais do Estado-Maior General alemão Schiditzki e Lúbers comunicaram-lhe que realiza na
Rússia o mesmo género de agitação o agente do Estado-Maior General alemão e presidente da secção ucraniana
da 'União de Libertação da Ucrânia'[N96], A. Skóropis-Ioltukhóvski, e Lénine. Lénine foi encarregado de utilizar
todas as suas forças para minar a confiança do povo russo no Governo Provisório.»
Assim, os oficiais alemães, para incitar Ermólenko à sua acção desonesta, mentiram-lhe
descaradamente sobre Lénine, que, como todos sabem, como oficialmente declarou todo o partido bolchevique,
rejeitou sempre e incondicionalmente a paz em separado com a Alemanha da forma mais decidida e
irrevogável!! A mentira dos oficiais alemães é tão clara, grosseira, absurda, que nenhuma pessoa que saiba ler
poderia duvidar um minuto sequer de que é mentira. E uma pessoa com conhecimentos políticos duvidará tanto
menos quanto a comparação de Lénine com um tal Ioltukhóvski (?) e com a «União de Libertação da Ucrânia» é
um absurdo que salta particularmente à vista, pois tanto Lénine como todos os internacionalistas declararam
publicamente muitas vezes precisamente durante a guerra não ter nada que ver com esta suspeita «União»
social-patriota.

A grosseira mentira de Ermólenko, subornado pelos alemães, ou dos oficiais alemães, não mereceria a
menor atenção se o «documento» não acrescentasse certas «informações recentemente recebidas» — não se
sabe por quem, como, de quem, quando — segundo as quais «o dinheiro para a agitação» «é recebido» (por
quem? o «documento» teme dizer directamente que se acusa ou se suspeita de Lénine!! o documento silencia
por quem «é recebido»!) «por meio de» «pessoas de confiança»: os «bolcheviques» Fürstenberg (Hanecki) e
Kozlóvski. Sobre isto haveria também dados relativos ao envio de dinheiro através de bancos, e «a censura
militar verificou uma incessante (!) troca de telegramas de carácter político e pecuniário entre os agentes
alemães e os líderes bolcheviques»!!

De novo uma mentira tão grosseira que o seu absurdo salta à vista. Se houvesse nisso apenas uma
palavra de verdade, como poderia acontecer então, 1) que Hanecki há muito pouco tempo entrasse livremente
na Rússia e livremente saísse dela? 2) que nem Hanecki nem Kozlóvski tenham sido presos antes do
aparecimento nos jornais das informações sobre os seus crimes? Acaso o Estado-Maior General, se realmente
tivesse tido nas mãos quaisquer informações que merecessem o mínimo de confiança sobre envios de dinheiro,
sobre telegramas, etc, permitiria a difusão de rumores sobre isto através dos Aléxinski e da imprensa amarela,
não prendendo Hanecki e Kozlóvski? Não está claro que temos diante de nós um torpe trabalho de jornalistas
caluniadores da mais baixa espécie, e nada mais do que isso?

Acrescentemos que nem Hanecki nem Kozlóvski são bolcheviques, mas membros do Partido Social-
Democrata Polaco, que Hanecki é um membro do seu CC, que conhecemos desde o Congresso de Londres
(1903)[N97], do qual se retiraram os delegados polacos, etc. Os bolcheviques não receberam nenhum dinheiro
de Hanecki nem de Kozlóvski. Tudo isso é a mais grosseira, a mais completa das mentiras.

Em que reside o seu significado político? Em primeiro lugar, em que os adversários políticos dos
bolcheviques não podem prescindir de mentiras e calúnias. A tal ponto são vis e baixos estes adversários.

Em segundo lugar, em que nós obtemos a resposta à pergunta colocada no título do artigo.

O relatório sobre os «documentos» foi remetido a Kérenski já em 16 de Maio. Kérenskié membro tanto
do Governo Provisório como do Soviete, isto é, de ambos os «poderes». De 16 de Maio até 5 de Julho passou
muito tempo. O poder, se fosse o poder, poderia e deveria ele mesmo investigar os «documentos», interrogar as
testemunhas, prender os suspeitos. O poder, ambos os «poderes», tanto o Governo Provisório como o CEC,
podiam e deviam tê-lo feito.

Ambos os poderes permanecem inactivos. E verifica-se que o Estado-Maior General tem certas
relações com Aléxinski, que, por ser caluniador, não foi admitido no Comité Executivo do Soviete. O Estado-
Maior General, exactamente no momento da retirada dos democratas-constitucionalistas — por casualidade,
seguramente — permitiu a entrega dos seus documentos oficiais a Aléxinski para publicação!

O poder permanece inactivo. Nem Kérenski, nem o Governo Provisório, nem o Comité Executivo do
Soviete pensam sequer em prender Lénine, Hanecki e Kozlóvski, se é que são suspeitos. Ontem, 4 de Julho, à
noite, tanto Tchkheídze como Tseretéli pediram aos jornais que não publicassem essa calúnia evidente. E, ao
mesmo tempo, mais tarde, de madrugada, Pólovtsev envia cadetes[N98] e cossacos assaltar o Pravda, impedir a

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sua saída, prender os editores, apoderar-se dos livros (aparentemente para investigar se neles figura o dinheiro
suspeito), e, ao mesmo tempo, no amarelo, baixo, sujo pasquim Jivóe Slovo, foi publicada esta vil calúnia para
excitar as paixões, para sujar os bolcheviques, para criar uma atmosfera de pogrome, para dotar de uma
justificação plausível o acto de Pólovtsev, dos cadetes e cossacos que assaltaram o Pravda.

Quem não fechar os seus olhos para não ver a verdade não pode permanecer no erro. Quando é
necessário agir, ambos os poderes permanecem inactivos — o CEC porque «confia» nos democratas-
constitucionalistas e teme irritá-los, e os democratas-constitucionalistas não agem como poder porque
preferem agir nos bastidores.

A contra-revolução dos bastidores — ei-la bem visível: são os democratas-constitucionalistas, certos


círculos do Estado-Maior General («os altos comandos do exército», como diz a resolução do nosso partido) e a
imprensa suspeita, semi-cem-negrista". Eis os que não permanecem inactivos, os que «trabalham» em conjunto;
eis o meio do qual se alimenta o ambiente de pogromes, as tentativas de pogromes, os disparos sobre os
manifestantes, etc, etc.

Quem não fechar deliberadamente os seus olhos para não ver a verdade não pode permanecer mais
tempo no erro.

Não há nem haverá poder enquanto a sua passagem para as mãos dos Sovietes não tiver lançado uma
base para a sua criação. A contra-revolução aproveita-se da ausência de poder, unindo os democratas-
constitucionalistas com conhecidos altos comandos do exército e com a imprensa cem-negrista. Tal é a triste
realidade, mas realidade.

Operários e soldados! De vós exige-se serenidade, firmeza, vigilância.

Notas de fim de tomo:


[N92] Trata-se da manifestação organizada pelo Partido Bolchevique e que teve lugar no dia 18 de
Junho (1 de Julho) de 1917. No princípio de Junho a situação em Petrogrado tornou-se mais tensa. A insistência
obstinada cio Governo Provisório em continuar a guerra, os preparativos da ofensiva na frente, a escassez de
víveres, tudo isto causava a indignação dos operários e dos soldados. As massas dispunham-se
espontaneamente a descer à rua. Com o propósito de evitar provocações e vítimas desnecessárias, em 8 (21) de
Junho, numa reunião de membros do CC do Comité de Petrogrado e da Organização Militar com representantes
de operários dos bairros e das unidades militares, foi resolvido, por proposta de V. I. Lénine, realizar em 10 (23)
de Junho uma manifestação pacífica e organizada. A resolução do CC do Partido Bolchevique sobre a
manifestação foi saudada pelas massas e provocou uma grande preocupação tanto no governo como entre os
mencheviques e socialistas-revolucionários que decidiram frustrá-la. O I Congresso dos Sovietes de Toda a
Rússia, dirigido por eles, na sua reunião da noite de 9 (22) de (unho resolveu proibir durante três dias todas as
manifestações de rua. O CC do Partido Bolchevique não quis opor-se à resolução do Congresso dos Sovietes e,
por proposta de V. I. Lénine, decidiu, na sua reunião da noite de 9 para 10 de Junho, anular a manifestação. Dois
dias mais tarde, a direcção socialista-revolucionária-menchevique do Congresso dos Sovietes aprovou uma
resolução sobre a realização de uma manifestação no dia 18 de Junho (1 de Julho), isto é, o dia em que as tropas
russas iriam começar a ofensiva; os dirigentes dos partidos conciliadores pretenderam demonstrar a confiança
das massas no Governo Provisório. Na manifestação do dia 18 de Junho (1 de Julho) participaram
aproximadamente 500 000 operários e soldados de Petrogrado. A maioria esmagadora dos manifestantes
desfilou com as palavras de ordem revolucionárias do Partido Bolchevique. Só pequenos grupos levavam as
palavras de ordem dos partidos conciliadores exprimindo confiança no Governo Provisório. A manifestação
evidenciou o crescente espírito revolucionário das massas e a influência e prestígio do Partido Bolchevique. Ao
mesmo tempo, ela mostrou o completo fracasso dos partidos conciliadores pequeno-burgueses que apoiavam o
Governo Provisório. (retornar ao texto)
[N94] Lénine refere-se às manifestações de massas realizadas em Petrogrado em 3-4 (16-17) de Julho
de I 9 17. Estes acontecimentos foram o reflexo de uma profundíssima crise política ao país. No dia 3(16) de
Julho, começou uma manifestação que esteve muito próximo de se converter num levantamento armado contra
o Governo Provisório por este ter lançado as tropas numa ofensiva que ia manifestamente malograr-se (ver
nota 92). O Partido Bolchevique era naquela altura contra o levantamento armado porque não considerava
oportuno o momento, uma vez que a crise revolucionária no país ainda não amadurecera. Na reunião do Comité
Central realizada em 3 (1 6) de Julho foi decidido não empreender qualquer acção. A mesma decisão foi também
tomada na Conferência dos bolcheviques da cidade de Petrogrado. Os delegados à Conferência foram para as

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fábricas e para os bairros da cidade com o propósito de impedir que as massas se lançassem à acção. Mas esta já
fora iniciada e revelou-se impossível conter o movimento. O Comité Central, em conjunto com o Comité de
Petrogrado e com a Organização Militar, considerando o estado de espírito das massas, decidiu, na sua reunião
da noite de 3 (16) de Julho, participar na manifestação de 4 (17) de Julho com o fim de lhe comunicarem um
carácter pacífico e organizado. Mais de 500 000 pessoas participaram na manifestação do dia 4 (17) de Julho,
que decorreu sob as palavras de ordem bolcheviques de «Todo o Poder aos Sovietes!», etc. Os manifestantes
exigiram que o Comité Executivo Central (CEC) dos Sovietes tomasse o poder no país, mas os dirigentes
socialistas-revolucionários e mencheviques recusaram-se a tomar o poder. O Governo Provisório, com
conhecimento e consentimento do CEC menchevique-socialista-revolucionário, lançou contra a manifestação
pacífica destacamentos de cadetes e cossacos contra-revolucionários, que abriram fogo sobre os manifestantes.
Na reunião dos membros do CC e do Comité de Petrogrado realizada na noite de 4 para 5 de Julho e dirigida por
V. 1. Lénine, foi decidido suspender organizadamente a manifestação. Os mencheviques e os socialistas-
revolucionários juntaram-se aos partidos burgueses nos ataques ao Partido Bolchevique. Começaram o
desarmamento dos operários, as prisões, as rusgas e os pogromes. Após os acontecimentos de Julho, o poder no
país passou inteiramente para as mãos do Governo Provisório contra-revolucionário. Os Sovietes
transformaram-se num simples apêndice dele. Terminou a dualidade de poderes e também a fase pacífica da
revolução. (retornar ao texto)
[N96] União de Libertação da Ucrânia (Spilka Vizvolénia Ucraíni): organização nacionalista burguesa
criada em 1914, no início da Primeira Guerra Mundial, por um grupo de nacionalistas burgueses ucranianos. A
Spilka, contando com a derrota da Rússia tsarista na guerra, colocou-se a tarefa de conseguir a separação da
Ucrânia da Rússia e de criar uma monarquia ucraniana de latifundiários e burgueses sob protectorado alemão.
(retornar ao texto)
[N97] Congresso de Londres: II Congresso do POSDR, realizado de 17 (30) de Julho a 10 (23) de Agosto
de 1 903. As primeiras 13 sessões do Congresso decorreram em Bruxelas, mas depois, devido a perseguições
policiais, resolveu-se continuar o Congresso em Londres. O facto de os sociais-democratas polacos, que tinham
voto consultivo, se retirarem do II Congresso do POSDR deveu-se ao seu desacordo com o ponto do programa
do POSDR sobre o direito das nações à autodeterminação. Os sociais-democratas polacos, considerando
erradamente que este ponto favorecia os nacionalistas polacos, propuseram na reunião da comissão do
programa que ele fosse eliminado. Não se pronunciaram abertamente em defesa do seu ponto de vista nas
reuniões do Congresso mas, não concordando com a sua decisão, abandonaram o Congresso. (retornar ao texto)
[N98] Cadetes (em russo junkers): alunos das escolas militares de preparação de oficiais.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/07/18.htm

66
Três Crises

V. I. Lénine

20 de Julho de 1917

Quanto mais encarniçadamente caluniam e mentem contra os bolcheviques nestes dias, tanto mais
serenamente devemos, refutando as mentiras e as calúnias, reflectir nas ligações históricas dos acontecimentos
e na significação política, isto é, de classe, do curso actual da revolução.

Para refutar as mentiras e as calúnias devemos aqui repetir apenas a referência ao Listok
«Právdi»[N100] de 6 de Julho e dirigir de modo especial a atenção dos leitores para o artigo que publicamos
mais abaixo, que prova documentalmente que em 2 de Julho (segundo confissão do jornal do partido dos
socialistas-revolucionários) os bolcheviques fizeram campanha contra a manifestação, que em 3 de Julho a
indignação das massas extravasou e a manifestação começou contra os nossos conselhos, que em 4 de Julho
apelámos num panfleto (reproduzido pelo mesmo jornal dos socialistas-revolucionários, Delo Naroda[N101])
para uma manifestação pacífica e organizada, que na noite de 4 de Julho tomámos a decisão de suspender a
manifestação. Caluniai, caluniadores! Nunca refutareis estes factos nem o seu significado decisivo em todas as
suas ligações!

E com isso passamos à questão das ligações históricas dos acontecimentos. Quando, já no começo de
Abril, nos declarámos contra o apoio ao Governo Provisório, fomos atacados tanto pelos socialistas-
revolucionários como pelos mencheviques. E que demonstrou a vida?

Que demonstraram as três crises políticas: 20 e 21 de Abril102, 10 e 18 de Junho, 3 e 4 de Julho103?

Demonstraram, em primeiro lugar, o crescente descontentamento das massas com a política burguesa
da maioria burguesa do Governo Provisório.

Não deixa de ser interessante observar que no número de 6 de Julho o jornal do partido governante
dos socialistas-revolucionários, Delo Naroda, apesar de toda a sua hostilidade contra os bolcheviques, é
obrigado a reconhecer as profundas causas económicas e políticas do movimento de 3 e 4 de Julho. A néscia,
grosseira e vil mentira de que esse movimento foi provocado artificialmente, de que os bolcheviques fizeram
campanha a favor da manifestação, será cada dia mais e mais desmascarada.

A causa geral, a fonte geral, a raiz profunda geral das três crises políticas mencionadas é clara,
sobretudo para quem as examine nas suas ligações, como a ciência manda que se examine a política. É absurdo
pensar que três crises deste género tenham podido ser provocadas artificialmente.

Em segundo lugar, é instrutivo examinar o que houve de geral e o que houve de individual em cada
uma destas crises.

O que é geral é o transbordar do descontentamento das massas, a sua indignação contra a burguesia e
o seu governo. Quem esquecer, silenciar ou subestimar esta essência das coisas, renega as verdades
elementares do socialismo referentes à luta de classes.

A luta de classes na revolução russa — que meditem sobre isto aqueles que se chamam a si mesmos
socialistas e que sabem alguma coisa sobre o que foi a luta de classes nas revoluções europeias.

O que é individual nestas crises é a sua forma de manifestar-se: na primeira (20-21 de Abril) é
tempestuosa e espontânea, sem nenhuma organização, que levou ao tiroteio dos cem-negros contra os
manifestantes e a acusações inauditamente selvagens e mentirosas contra os bolcheviques. À explosão seguiu-
se uma crise política.

No segundo caso, a organização de uma manifestação pelos bolcheviques, a sua suspensão depois do
ameaçador ultimato e da proibição directa do Congresso dos Sovietes e a manifestação geral do 18 de Junho,
que deu clara preponderância às palavras de ordem bolcheviques. Segundo confissão dos próprios socialistas-

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revolucionários e mencheviques na noite de 18 de Junho, a crise política teria decerto estalado se a ofensiva
desencadeada na frente não a tivesse contido.

A terceira crise desencadeia-se espontaneamente em 3 de Julho, apesar dos esforços feitos no dia 2
pelos bolcheviques para a impedir, e depois de atingir o ponto máximo no dia 4, conduz nos dias 5 e 6 ao
apogeu da contra-revolução. As vacilações dos socialistas-revolucionários e mencheviques manifestam-se em
que Spiridónova e uma série de outros socialistas-revolucionários se pronunciam a favor da passagem do poder
aos Sovietes, e em que se pronunciam também no mesmo sentido os mencheviques internacionalistas, que
anteriormente se tinham declarado contra isso.

Finalmente, a última — e talvez a mais instrutiva — conclusão da análise dos acontecimentos nas suas
ligações consiste em que todas as três crises nos revelam uma certa forma, nova na história da nossa revolução,
de manifestações de tipo mais complexo, de movimento por ondas, que sobem velozmente e descem de modo
brusco, de exacerbação da revolução e da contra-revolução, de «eliminação» por um período mais ou menos
longo dos elementos intermédios.

Pela sua forma, o movimento, no decurso de todas estas três crises, foi uma manifestação. Uma
manifestação antigovernamental, tal seria, formalmente, a descrição mais precisa dos acontecimentos. Mas, e
aqui é que está a questão, não foi uma manifestação habitual, foi algo significativamente maior do que uma
manifestação e menor do que uma revolução. É uma explosão simultânea da revolução e da contra-revolução, é
uma «eliminação» violenta e às vezes quase súbita dos elementos intermédios, com o tempestuoso
aparecimento dos elementos proletários e burgueses.

A este respeito é extremamente característico que todos os elementos intermédios acusem como causa
de cada um desses movimentos ambas as forças determinadas de classe, tanto o proletariado como a burguesia.
Vede os socialistas-revolucionários e os mencheviques: suando sangue, berram e gritam que os bolcheviques,
com os seus extremismos, ajudam a contra-revolução, ao mesmo tempo que reconhecem repetidamente que os
democratas-constitucionalistas (com os quais formam um bloco no governo) são contra-revolucionários.
«Delimitarmo-nos — escrevia ontem o Delo Naroda — com um profundo fosso de todos os elementos de
direita, incluindo o belicoso Edinstvo (com o qual, acrescentamos nós, os socialistas-revolucionários formaram
um bloco nas eleições) — tal é a nossa tarefa mais urgente.»

Compare-se isto com o Edinstvo de hoje (7 de Julho), em que o editorial de Plekhánov se vê obrigado a
constatar o facto indiscutível de que os Sovietes (isto é, os socialistas-revolucionários e os mencheviques)
tomaram «duas semanas para pensar» e de que se o poder passasse para os Sovietes isso «equivaleria a uma
vitória dos leninistas».

«Se os democratas-constitucionalistas não se atêm à regra: quanto pior, melhor ... — escreve
Plekhánov — eles mesmos terão de reconhecer que cometeram um grave erro» (ao saírem do ministério),
«facilitando o trabalho aos leninistas.»
Não é isto característico? Os elementos intermédios acusam os democratas-constitucionalistas de
facilitar o trabalho aos bolcheviques, e os bolcheviques de facilitar o trabalho aos democratas-
constitucionalistas!! É assim tão difícil adivinhar que não é preciso senão trocar os nomes políticos pelas
denominações de classe e que obteremos então os sonhos da pequena burguesia sobre o desaparecimento da
luta de classes entre o proletariado e a burguesia? As lamentações da pequena burguesia sobre a luta de classe
do proletariado contra a burguesia? E assim tão difícil adivinhar que nenhum bolchevique do mundo teria
forças para «provocar» não três, mas até um só «movimento popular», se causas económicas e políticas
profundas não pusessem em movimento o proletariado? Que todos os democratas-constitucionalistas e
monárquicos juntos não teriam forças para provocar nenhum movimento «de direita» se causas não menos
profundas não tornassem contra-revolucionária a burguesia como classe?

A propósito do movimento de 20-21 de Abril acusaram-nos, tanto anos como aos democratas-
constitucionalistas, de obstinação, de extremismo, de agravar a situação, chegando até a acusar os bolcheviques
(por mais absurdo que isto pareça) do tiroteio na avenida Névski; e quando o movimento terminou, esses
mesmos socialistas-revolucionários e mencheviques escreveram nas colunas do seu órgão comum e oficial, o
Izvéstia, que o «movimento popular» «varreu os imperialistas Miliukov, etc», isto é, glorificaram o movimento!!
Não é isto característico? Não demonstra isto de forma particularmente clara a incompreensão pela pequena
burguesia do mecanismo, da essência da luta de classe do proletariado contra a burguesia?

68
A situação objectiva é esta: a imensa maioria da população do país é, pelo seu modo de vida e mais
ainda pelas suas ideias, pequeno-burguesa. Mas no país reina, através principalmente dos bancos e dos
consórcios, o grande capital. No país existe um proletariado urbano suficientemente desenvolvido para seguir o
seu próprio caminho, mas que ainda não é capaz de atrair imediatamente para o seu lado a maioria dos
semiproletários. Deste facto fundamental, de classe, decorre a inevitabilidade de crises como as três que
estudamos e igualmente das suas formas.

Naturalmente que no futuro as formas das crises poderão variar. Mas a essência das coisas manter-se-
á mesmo no caso em que, por exemplo, em Outubro se reúna uma Assembleia Constituinte socialista-
revolucionária. Os socialistas-revolucionários prometeram aos camponeses (1) a abolição da propriedade
privada da terra; (2) a entrega da terra aos trabalhadores; (3) a confiscação das terras dos latifundiários e a sua
entrega aos camponeses sem indemnização. A realização destas grandes transformações é absolutamente
impossível sem as medidas revolucionárias mais decididas contra a burguesia, medidas que unicamente
poderão ser realizadas mediante a aliança do campesinato pobre com o proletariado, unicamente mediante a
nacionalização dos bancos e dos consórcios.

Os crédulos camponeses, que durante algum tempo acreditaram que era possível conseguir estas belas
coisas com espírito de conciliação com a burguesia, sentir-se-ão inevitavelmente desapontados e ...
«descontentes» (para falar suavemente) com a aguda luta de classe do proletariado contra a burguesia pela
realização de facto das promessas dos socialistas-revolucionários. Assim foi e assim será.

Notas de fim de tomo:


[N100] Listok «Právdi» (Folha do «Pravda»): um dos nomes do diário bolchevique Pravda. (retornar
ao texto)
[N101] Delo Naroda (A Causa do Povo): diário, órgão do Partido Socialista-Revolucionário; editou-se
em Petrogrado de Março de 1917 a Julho de 1918.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/07/20.htm

69
Os Bolcheviques Devem Tomar o Poder[N178]
V. I. Lénine

14 de Setembro de 1917

Carta ao Comité Central, aos Comités de Petrogrado e de Moscovo do POSDR(b)

Tendo obtido a maioria nos Sovietes de deputados operários e soldados de ambas as capitais, os
bolcheviques podem e devem tomar o poder de Estado nas suas mãos.

Podem, pois a maioria activa dos elementos revolucionários do povo de ambas as capitais é suficiente
para arrastar as massas, para vencer a resistência do adversário, para o destruir, para conquistar o poder e
mantê-lo. Pois, propondo imediatamente uma paz democrática, entregando imediatamente a terra aos
camponeses, restabelecendo as instituições e as liberdades democráticas espezinhadas e destruídas por
Kérenski, os bolcheviques formarão um governo que ninguém derrubará.

A maioria do povo está por nós. Demonstrou-o o longo e difícil caminho de 6 de Maio a 31 de Agosto e
a 12 de Setembro[N179]: a maioria nos Sovietes das capitais é fruto do desenvolvimento do povo para o nosso
lado. As vacilações dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques, o reforço dos internacionalistas entre
eles, provam a mesma coisa.

A Conferência Democrática não representa a maioria do povo revolucionário, mas apenas as cúpulas
pequeno-burguesas conciliadoras. Não nos devemos enganar com os números das eleições, a questão não está
nas eleições: comparai as eleições para as dumas urbanas de Petrogrado e de Moscovo com as eleições para os
Sovietes. Comparai as eleições em Moscovo com a greve de 12 de Agosto[N180] em Moscovo: eis os dados
objectivos sobre a maioria dos elementos revolucionários que conduzem as massas. A Conferência Democrática
engana o campesinato, não lhe dando nem a paz nem a terra.

Só um governo bolchevique satisfará o campesinato.

***

Porque devem os bolcheviques tomar o poder precisamente agora?

Porque a iminente entrega de Petrogrado tornará as nossas probabilidades cem vezes piores.

E não temos forças para impedir a entrega de Petrogrado com um com um exército com Kérenski e C.a
à cabeça.

Também não é possível «esperar» a Assembleia Constituinte, pois, com a rendição de Petrogrado,
Kérenski e C.a podem sempre frustrá-la. Só o nosso partido, tomando o poder, pode garantir a convocação da
Assembleia Constituinte e, tomando o poder, acusará os outros partidos de protelação e provará a
acusação[N181].

Deve-se e pode-se impedir uma paz separada entre os imperialistas ingleses e alemães, mas apenas
agindo rapidamente.

O povo está cansado das vacilações dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários. Só a nossa
vitória nas capitais arrastará os camponeses atrás de nós.

***

A questão não é o «dia» da insurreição nem o seu «momento» no sentido estreito. Isto será decidido
apenas pela voz comum daqueles que estão em contacto com os operários e os soldados, com as massas.

A questão consiste em que o nosso partido tem agora de facto, na Conferencia Democrática, o seu
congresso, e este congresso deve decidir (queira ou não queira, mas deve) o destino da revolução.

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A questão consiste em tornar a tarefa clara para o partido: pôr na ordem do dia a insurreição armada
em Petrogrado e em Moscovo (e na sua região), a conquista do poder, o derrubamento do governo. Reflectir
como fazer agitação a favor disto, sem o expressar assim na imprensa.

Recordar, reflectir nas palavras de Marx sobre a insurreição: «a insurreição é uma arte»[N182], etc.

***

É ingénuo esperar pela maioria «formal» dos bolcheviques: nenhuma revolução espera por isto.
Também Kérenski e C.a não esperam, antes preparam a entrega de Petrogrado. Precisamente as lamentáveis
vacilações da «Conferência Democrática» devem esgotar e esgotarão a paciência dos operários de Petrogrado e
de Moscovo! A história não nos perdoará se não tomarmos agora o poder.

Não há um aparelho? Há um aparelho: Os Sovietes e as organizações democráticas. A situação


internacional está precisamente agora, em vésperas de uma paz separada dos ingleses com os alemães, a nosso
favor. Propor precisamente agora a paz aos povos significa vencer.

Tomando o poder imediatamente em Moscovo como em Petrogrado (pouco importa quem começa;
talvez mesmo Moscovo possa começar), venceremos absoluta e indubitavelmente.

Notas de fim de tomo:


[N178] As cartas de Lénine "Os Bolcheviques devem tomar o Poder" e "O Marxismo e a Insurreição"
foram discutidas na reunião do CC de 15 (28) de Setembro de 1917. O Comité Central tomou a decisão de fixar
para muito breve uma reunião do CC dedicada à discussão das questões tácticas. Foi colocada à votação a
questão de conservar apenas um exemplar das cartas de Lénine. Houve 6 votos a favor desta proposta, 4 contra
e 6 abstenções. Kámenev que era contra a linha do Partido em direcção à Revolução Socialista, apresentou à
reunião do CC um projecto de resolução dirigido contra as propostas de Lénine de organização da insurreição
armada. O Comité Central rejeitou a resolução de Kámenev. (retornar ao texto)
[N179] No dia 6 de Maio foi anunciada a composição do primeiro Governo Provisório de coligação.
No dia 31 de Agosto o Soviete de Deputados Operários e Soldados de Petrogrado aprovou uma
resolução bolchevique que exigia a instituição de um governo soviético.
O dia 12 de Setembro era a data marcada pelo Comité Executivo Central dos Sovietes de Deputados
Operários e Soldados, dominado pelos socialistas-revolucionários e mencheviques, para a reunião da
Assembleia Democrática. (retornar ao texto)
[N180] Em 12 (25) de Agosto de 1917, inaugurou-se em Moscovo uma conferência convocada pelo
Governo Provisório com o fim de mobilizar as forças contra-revolucionárias para derrotar a revolução. Nesse
mesmo dia o Comité Central do Partido Bolchevique publicou um manifesto que desmascarava o carácter
contra-revolucionário da conferência e exortava as massas trabalhadoras a organizarem comícios de protesto.
Na greve organizada pelo Comité de Moscovo do Partido no dia 12 (25) Agosto participaram mais de
400 000 pessoas. A greve dos operários moscovitas frustou as tentativas da contra-revolução. Realizaram-se
também comícios de protesto e greves noutras cidades do país. (retornar ao texto)
[N181] O Governo Provisório anunciou a convocação da Assembleia Constituinte na sua declaração de
2 (15) de Março de 1917. Em 14 (27) de Junho o Governo Provisório aprovou uma resolução que marcava as
eleições para a Assembleia Constituinte para o dia 17 (30) de Setembro. Contudo em Agosto o governo adiou as
eleições para o dia 12 (25) de Novembro.
As eleições para a Assembleia Constituinte já após a vitória da Revolução Socialista de Outubro, na
data marcada anteriormente 12 (25) de Novembro de 1917. As eleições realizaram-se com base nas listas
elaboradas antes da Revolução de Outubro e de acordo com disposições aprovadas ainda pelo Governo
Provisório, e em circunstâncias em que uma parte considerável do povo não podia ainda compreender o grande
significado da revolução socialista. Os socialistas-revolucionários de direita aproveitaram-se disso, tendo
conseguido nas províncias e regiões mais afastadas dos centros industriais e da capital do país obter a maioria
dos votos. A Assembleia Constituinte foi convocada pelo Governo Soviético e inaugurou-se em 5 (18) de Janeiro
de 1918 em Petrogrado. A maioria contra-revolucionária da Assembleia Constituinte rejeitou a "Declaração dos
direitos do povo trabalhador e explorado" proposta pelo Comité Executivo Central de Toda a Rússia e negou-se
a reconhecer o Poder Soviético. O CECR decretou no dia 6 (19) de Janeiro a dissolução da Assembleia
Constituinte burguesa. (retornar ao texto)
[N182] F. Engels, Revolução e Contra-revolução na Alemanha (In Karl Marx / Friederich Engels,
Werke, Bd. 8, S.95) A obra Revolução e Contra-revolução na Alemanha foi escrita por F. Engels e publicada no

71
jornal New York Daily Tribune em 1851-52, numa série de artigos assinados por Marx, que inicialmente
planeara escrever ele próprio essa obra; contudo, ocupado pelas investigações económicas, Marx confiou a
Engels a realização desse trabalho. Durante a redacção da obra Engels consultava constantemente Marx,
entregando-lhe os artigos para revisão antes de serem enviados para publicação. Só mais tarde, quando se
publicou a correspondência entre Marx e Engels, se soube que a obra fora escrita por Engels.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/14.htm

72
O Marxismo e a Insurreição
Carta ao Comité Central do POSDR(b)

Lenin
26-27 de Setembro de 1917

Entre as mais maldosas e talvez mais divulgadas deturpações do marxismo pelos partidos «socialistas»
dominantes encontra-se a mentira oportunista de que a preparação da insurreição, e em geral o tratamento da
insurreição como uma arte, é «blanquismo».
O chefe do oportunismo, Bernstein, adquiriu já uma triste celebridade ao acusar o marxismo de
blanquismo e, no fundo, os oportunistas de hoje em nada renovam nem «enriquecem» as pobres «ideias» de
Bernstein com os gritos de blanquismo.
Acusar os marxistas de blanquismo porque tratam a insurreição como uma arte! Poderá haver
deturpação mais gritante da verdade, quando nenhum marxista nega que foi precisamente Marx quem se
pronunciou da forma mais determinada, precisa e indiscutível sobre isto, chamando à insurreição precisamente
uma arte, dizendo que se deve tratar a insurreição como uma arte, que é necessário conquistar um primeiro
êxito e ir de êxito em êxito, sem interromper a ofensiva contra o inimigo, aproveitando a sua confusão, etc, etc?
Para ter êxito, a insurreição deve apoiar-se não numa conjura, não num partido, mas na classe
avançada. Isto em primeiro lugar. A insurreição deve apoiar-se no ascenso revolucionário do povo. Isto em
segundo lugar. A insurreição deve apoiar-se naquele ponto de viragem na história da revolução em crescimento
em que a actividade das fileiras avançadas do povo seja maior, em que sejam mais fortes as vacilações nas
fileiras dos inimigos e nas fileiras dos amigos fracos, hesitantes e indecisos da revolução. Isto em terceiro lugar.
Estas são as três condições da colocação da questão da insurreição que distinguem o marxismo do blanquismo.
Mas uma vez que existem estas condições, negarmo-nos a tratar a insurreição como uma arte significa
trair o marxismo e trair a revolução.
Para demonstrar porque é que é precisamente o momento que atravessamos aquele em que é
obrigatório para o partido reconhecer que a insurreição foi posta na ordem do dia pela marcha objectiva dos
acontecimentos e tratar a insurreição como uma arte, para o demonstrar o melhor é talve utilizar o método
comparativo e confrontar o 3-4 de Julho com os dias e Setembro.
A 3-4 de Julho podia-se, sem faltar à verdade, colocar assim a questão: seria mais correcto tomar o
poder, pois, de outro modo, os inimigos igualmente nos acusarão de insurreição e acabarão connosco como
insurrectos. Mas daqui não se podia tirar a conclusão da utilidade da tomada do poder naquele momento, pois
então não existiam as condições objectivas para a vitória da insurreição.
1. Não estava ainda connosco a classe que é a vanguarda da revolução.
Não tínhamos ainda a maioria entre os operários e os soldados das capitais. Agora ela existe em ambos os
Sovietes. Ela foi criada apenas pela história de Julho e Agosto, pela experiência das «represálias» contra os
bolcheviques e pela experiência da kornilovada.
2. Não havia então o ascenso revolucionário de todo o povo. Agora, depois da kornilovada, existe.
Demonstram-no a província e a tomada do poder pelos Sovietes em muitos lugares.
3. Não havia então vacilações, em proporções políticas gerais sérias, entre os nossos inimigos e entre a
pequena burguesia hesitante. Agora as vacilações são gigantescas: o nosso principal inimigo, o
imperialismo aliado e mundial, pois os «aliados» estão à cabeça do imperialismo mundial, começa a
vacilar entre a guerra até à vitória e uma paz separada contra a Rússia. Os nossos democratas pequeno-
burgueses, tendo perdido claramente a maioria do povo, começaram a vacilar gigantescamente,
rejeitaram o bloco, a coligação, com os democratas-constitucionalistas.
4. Por isso a insurreição em 3-4 de Julho teria sido um erro: nós não conservaríamos o poder, nem física
nem politicamente. Fisicamente, apesar de que Petrogrado esteve por momentos nas nossas mãos, pois
os nossos operários e soldados não estavam então dispostos a bater-se, a morrer pela posse de
Petrogrado: não havia a «fúria», o ódio ardente tanto contra os Kérenski como contra os Tseretéli—
Tchernov, os nossos homens ainda não estavam temperados pela experiência das perseguições contra
os bolcheviques, com a participação dos socialistas-revolucionários e mencheviques.

Politicamente, não conservaríamos o poder em 3-4 de Julho porque, antes da kornilovada, o exército e
a província podiam marchar e marchariam contra Petrogrado.
Agora o quadro é completamente diferente.
Temos por nós a maioria da classe que é a vanguarda da revolução, a vanguarda do povo, capaz de
arrastar as massas.

73
Temos por nós a maioria do povo, pois a demissão de Tchernov está longe de ser o único indício, mas é
o mais visível e mais palpável, de que o campesinato não receberá a terra do bloco dos socialistas-
revolucionários, (nem dos próprios socialistas-revolucionários). E nisto reside a essência do carácter popular
da revolução.
Temos por nós a vantagem da situação de um partido que conhece firmemente o seu caminho, num
momento de vacilações inauditas tanto de todo o imperialismo como de todo o bloco dos mencheviques e
socialistas-revolucionários.
Temos por nós uma vitória segura, pois o povo está já à beira do desespero e nós apontamos a todo o
povo a saída segura, mostrando a todo o povo «nos dias da kornilovada» a importância da nossa direcção, e
depois propondo um compromisso aos bloquistas e recebendo deles uma recusa sem que tenham de modo
nenhum terminado as vacilações por parte deles.
Seria o maior dos erros pensar que a nossa proposta de compromisso ainda não foi rejeitada, que a
Conferência Democrática ainda pode aceitá-la O compromisso foi proposto por um partido a partidos; não
podia ser proposto de outro modo. Os partidos rejeitaram-no. A Conferência Democrática é apenas uma
conferência, nada mais. Não se deve esquecer uma coisa: nela não está representada a maioria do povo
revolucionário o campesinato pobre e exasperado. É uma conferência da minoria do povo — não se pode
esquecer esta verdade evidente. Seria o maior dos erros, o maior cretinismo parlamentar da nossa parte se
tratássemos a Conferência Democrática como um parlamento, pois mesmo se ela se declarasse o parlamento
permanente e soberano da revolução, nada resolveria também: a decisão está fora dela, nos bairros operários
de Petrogrado e de Moscovo.
Temos diante de nós todas as premissas objectivas de uma insurreição com êxito. Temos diante de nós
as excepcionais vantagens de uma situação em que só a nossa vitória na insurreição porá fim a essa coisa mais
penosa do mundo, as vacilações, que esgotaram o povo; em que só a nossa vitória na insurreição dará
imediatamente a terra ao campesinato; — em que só a nossa vitória na insurreição fará fracassar o jogo de uma
paz separada contra a revolução, e fá-lo-á fracassar mediante a proposta aberta de uma paz mais completa,
mais justa, mais próxima, uma paz em proveito da revolução.
Só o nosso partido, finalmente, vencendo na insurreição, pode salvar Petrogrado, pois se a nossa
proposta de paz for rejeitada e não obtivermos nem sequer um armistício, então nós tornar-nos-emos
«defensistas», então pôr-nos-emos à cabeça dos partidos da guerra, seremos o mais «guerreiro» dos partidos,
conduziremos a guerra de uma maneira verdadeiramente revolucionária. Tiraremos aos capitalistas todo o pão
e todas as botas. Deixar-lhes-emos migalhas, calçá-los-emos com alpargatas. Daremos todo o pão e todo o
calçado para a frente.
E então defenderemos Petrogrado.
Na Rússia são ainda imensamente grandes os recursos tanto materiais como espirituais para uma
guerra verdadeiramente revolucionária; há 99 probabilidades em 100 de que os alemães nos darão pelo menos
um armistício. E obter um armistício agora significa já vencer todo o mundo.

***
Reconhecendo a absoluta necessidade da insurreição dos operários de Petrogrado e de Moscovo para
salvar a revolução e para nos salvarmos da partilha «separada» da Rússia pelos imperialistas de ambas as
coligações, devemos, em primeiro lugar, adaptar a nossa táctica política na Conferência às condições da
insurreição que cresce; devemos, em segundo lugar, demonstrar que não reconhecemos apenas em palavras a
ideia de Marx da necessidade de tratar a insurreição como uma arte.
Devemos, na Conferência, unir imediatamente a fracção dos bolcheviques, sem correr atrás do
número, sem recear deixar os vacilantes no campo dos vacilantes: aí eles são mais úteis à causa da revolução do
que no campo dos lutadores decididos e abnegados.
Devemos redigir uma breve declaração dos bolcheviques, sublinhando da maneira mais incisiva a
inoportunidade dos longos discursos, a inoportunidade dos «discursos» em geral, a necessidade de uma acção
imediata para salvar a revolução, a absoluta necessidade de cortar completamente com a burguesia, de destituir
completamente todo o governo actual, de romper de maneira absoluta com os imperialistas anglo-franceses,
que preparam a partilha «separada» da Rússia, a necessidade da passagem imediata de todo o poder para as
mãos da democracia revolucionária, encabeçada pelo proletariado revolucionário.
A nossa declaração deve ser a formulação mais breve e incisiva desta conclusão em ligação com os
projectos programáticos: paz aos povos, terra aos camponeses, confiscação dos lucros escandalosos e repressão
da sabotagem escandalosa da produção pelos capitalistas.
Quanto mais breve, quanto mais incisiva for a declaração, melhor. Nela é preciso salientar claramente
apenas mais dois pontos muito importantes: o povo está esgotado pelas vacilações, o povo está dilacerado pela

74
indecisão dos socialistas-revolucionários e mencheviques; nós rompemos definitivamente com estes partidos,
pois eles traíram a revolução.
E o outro é: propondo imediatamente uma paz sem anexações, rompendo imediatamente com os
imperialistas aliados e com todos os imperialistas, obteremos imediatamente ou um armistício ou a passagem
de todo o proletariado revolucionário para o lado da defesa, e o prosseguimento, sob a sua direcção, pela
democracia revolucionária, de uma guerra verdadeiramente justa, verdadeiramente revolucionária.
Depois de ter lido esta declaração, depois de chamar a decidir e não a falar, a actuar e não a escrever
resoluções, devemos lançar toda a nossa fracção para as fábricas e os quartéis: é aí o seu lugar, é aí que está o
nervo da vida, é aí que está a fonte da salvação da revolução, é aí que está o motor da Conferência Democrática.
Aí devemos explicar em discursos ardentes e apaixonados o nosso programa e colocar a questão
assim: ou a aceitação completa dele pela Conferência, ou a insurreição. Não há meio termo. É impossível
esperar. A revolução perece.
Colocando a questão assim, concentrando toda a fracção nas fábricas e nos quartéis, calcularemos
correctamente o momento para o começo da insurreição.
E para tratar a insurreição de um modo marxista, isto é, como uma arte, devemos, ao mesmo tempo,
sem perder um minuto, organizar o estado-maior dos destacamentos insurreccionais, distribuir as forças,
lançar os regimentos de confiança para os pontos mais importantes, cercar o teatro Alexandrínski, tomar a
Fortaleza de Pedro e Paulo[N183], prender o estado-maior general e o governo, enviar contra os cadetes e
contra a «divisão selvagem» destacamentos capazes de morrer para não deixar que o inimigo abra caminho
para os centros da cidade; devemos mobilizar os operários armados, chamando-os ao combate final e
desesperado, tomar imediatamente os telégrafos e os telefones, instalar o nosso estado-maior da insurreição na
central telefónica, ligar com ele por telefone todas as fábricas, todos os regimentos, todos os pontos da luta
armada, etc.
Tudo isto, naturalmente, como exemplo, apenas para ilustrar que no momento que vivemos não se
pode permanecer fiel ao marxismo, permanecer fiel à revolução, sem tratar a insurreição como uma arte.

N. Lenine

[N183] O Teatro Alexandrinski em Petrogrado era o local onde se realizava a Conferência Democrática.
Fortaleza de Pedro e Paulo: prisão onde, durante o tsarismo, se encarceravam os presos políticos. A Fortaleza
de Pedro e Paulo tinha um enorme arsenal e era um importante ponto estratégico da cidade de Petrogrado.

http://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/09/27-1.htm

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A Revolução Russa e a Guerra Civil
V. I. Lénine

29 (16) de Setembro de 1917

Assustam-nos Com a Guerra Civil

Assustada pelo facto de os mencheviques e os socialistas-revolucionários terem renunciado à


coligação com os democratas-constitucionalistas, e pelo facto de a democracia poder, talvez, formar
perfeitamente um governo sem eles e governar a Rússia contra eles, a burguesia não poupa esforços para
assustar a democracia.

Assustai com todo o zelo possível — tal é a palavra de ordem de toda a imprensa burguesa. Assustai
sem poupar esforços! Menti, caluniai — mas assustai!

O Birjovka assusta com as informações inventadas acerca das acções bolcheviques. Assustam com os
boatos sobre a demissão de Alexéev e sobre a ameaça de uma ofensiva alemã até Petrogrado, como se os factos
não tivessem provado que precisamente os generais kornilovistas (ao número dos quais pertence
indubitavelmente também Alexéev) são capazes de abrir a frente aos alemães na Galicia, tanto diante de Riga
como diante de Petrogrado, que são precisamente os generais kornilovistas que provocam o maior ódio do
exército para com o quartel-general.

Procura dar-se a este método de intimidação da democracia a forma mais «sólida» e convincente por
meio de referências ao perigo de «guerra civil». De todas as formas de intimidação, a intimidação com a guerra
civil é talvez a mais difundida. Eis como o comité de Rostov do Don do partido da liberdade do povo formulou
esta ideia corrente, e muito generalizada nos círculos filisteus, na resolução de 1 de Setembro (n.° 210 do
Retch):

«O Comitê está convencido de que a guerra civil pode varrer todas as conquistas da revolução e
absorver em torrentes de sangue a nossa jovem liberdade ainda fraca, e por isso considera necessário, no
interesse da salvação das conquistas da revolução, um protesto enérgico contra o aprofundamento da
revolução, ditado por utopias socialistas irrealizáveis ...»
Aqui está expressa, sob a forma mais clara, precisa, meditada e circunstaciada, a ideia fundamental,
que se encontra inúmeras vezes nos editoriais do Retch, nos artigos de Plekhánov e Potréssov, nos editoriais
dos jornais mencheviques, etc, etc. Não será por isso inútil determo-nos nesta ideia mais pormenorizadamente.

Procuraremos estudar a questão da guerra civil de forma mais concreta, baseando-nos, entre outras
coisas, na experiência de meio ano já vivida pela nossa revolução.

Esta experiência, em plena conformidade com a experiência de todas as revoluções europeias a partir
dos fins do século XVIII, mostra-nos que a guerra civil é a forma mais aguda da luta de classes, quando uma
série de choques e combates económicos e políticos, repetindo-se, acumulando-se, alargando-se, agudizando-se,
conduz à transformação destes choques em luta de armas na mão de uma classe contra outra classe. A guerra
civil ocorre com maior frequência — pode dizer-se, mesmo quase exclusivamente — em países minimamente
livres e avançados entre as classes cuja oposição é criada e aprofundada por todo o desenvolvimento
económico do capitalismo, por toda a história da sociedade moderna em todo o mundo, a saber: entre a
burguesia e o proletariado.

Assim também nós, no meio ano vivido da nossa revolução, vivemos em 20-21 de Abril e em 3-4 de
Julho explosões espontâneas muito fortes, que se aproximavam de perto do início da guerra civil por parte do
proletariado. E a insurreição kornilovista representou uma conspiração militar, apoiada pelos latifundiários e
capitalistas com o partido dos democratas-constitucionalistas à frente, que conduziu já de facto ao início da
guerra civil por parte da burguesia.

Tais são os factos. Tal é a história da nossa própria revolução. E é preciso sobretudo aprender dessa
história, é preciso sobretudo reflectir no seu curso e no seu significado de classe.

76
Tentemos comparar os rudimentos da guerra civil proletária e os rudimentos da guerra civil burguesa
na Rússia do ponto de vista: 1) da espontaneidade do movimento, 2) dos seus objectivos, 3) da consciência das
massas que participam nele, 4) da força do movimento, 5) da sua tenacidade. Cremos que se todos os partidos
que actualmente «atiram gratuitamente» de passagem as palavras «guerra civil» colocassem a questão desta
maneira e tentassem estudar de facto os rudimentos da guerra civil, a consciência de toda a revolução russa
ganharia muito, muitíssimo.

Comecemos pela espontaneidade do movimento. Sobre o 3-4 de Julho, temos os depoimentos de


testemunhas tais como o Rabótchaia Gazeta menchevique e o Delo Naroda socialista-revolucionário, os quais
reconheceram o facto do crescimento espontâneo do movimento. Citei estes depoimentos num artigo do
Proletárskoe Delo, publicado em forma de folheto separado sob o título Resposta aos Caluniadores(1*). Mas os
mencheviques e socialistas-revolucionários, por causas plenamente compreensíveis, defendendo-se a si
próprios e a sua participação nas perseguições aos bolcheviques, continuam a negar oficialmente o carácter
espontâneo da explosão de 3-4 de Julho.

Afastemos por enquanto o que é discutível. Deixemos o que é indiscutível. Ninguém contesta o carácter
espontâneo do movimento de 20-21 de Abril. O partido dos bolcheviques aderiu a este movimento espontâneo
com a palavra de ordem «todo o poder aos Sovietes», aderiu, de modo completamente independente dele, o
falecido Linde, levando à rua 30 000 soldados armados, prontos a prender o governo. (Entre outras coisas, diga-
se entre parêntesis, este facto da saída das tropas não foi investigado nem estudado. Mas quando se reflecte
nele colocando o 20 de Abril na conexão histórica dos acontecimentos, isto é, considerando-o como um elo da
cadeia que vai de 28 de Fevereiro a 29 de Agosto, torna-se claro que a culpa e o erro dos bolcheviques foi o
insuficiente revolucionarismo da sua táctica e de modo algum o excessivo revolucionarismo, de que nos acusam
os filisteus).

Assim, é indubitável o carácter espontâneo do movimento, que se aproximou do começo da guerra


civil pelo proletariado. Na kornilovada não há nada sequer aproximadamente semelhante à espontaneidade: aí
há apenas uma conspiração de generais que esperavam arrastar uma parte das tropas por meio do engano e da
força das ordens.

Que o carácter espontâneo de um movimento é um indício da sua profundidade nas massas, da solidez
das suas raízes, da impossibilidade da sua eliminação, é indubitável. A profundidade das raízes da revolução
proletária e a falta de raízes da contra-revolução burguesa, eis o que mostram os factos do ponto de vista do
carácter espontâneo do movimento.

Examinemos os objectivos do movimento. O 20-21 de Abril aproximou-se extremamente das palavras


de ordem bolcheviques, e o 3-4 de Julho cresceu em ligação directa com elas, sob a sua influência e direcção. O
partido dos bolcheviques falava de forma completamente aberta, determinada, clara, precisa, para todos o
ouvirem, nos seus jornais e na sua agitação verbal, da ditadura do proletariado e do campesinato pobre, da paz
e de a propor imediatamente, da confiscação das terras dos latifundiários, destes objectivos principais da
guerra civil proletária.

Relativamente aos objectivos da kornilovada, todos nós sabemos, e ninguém da democracia o contesta,
que esses objectivos consistiam na ditadura dos latifundiários e da burguesia, na dispersão dos Sovietes, na
preparação da restauração da monarquia. O partido dos democratas-constitucionalistas, principal partido
kornilovista (dever-se-ia, diga-se de passagem, passar agora a chamar-lhe partido kornilovista), dispondo de
uma imprensa maior e de forças de agitação maiores do que os bolcheviques, nunca se decidiu nem se decide a
falar abertamente ao povo nem na ditadura da burguesia, nem na dispersão dos Sovietes, nem nos objectivos
kornilovistas em geral!

Do ponto de vista dos objectivos do movimento, os factos dizem que a guerra civil proletária pode
apresentar-se com a exposição aberta ao povo dos seus objectivos finais, atraindo com isso as simpatias dos
trabalhadores, mas a guerra civil burguesa só ocultando os seus objectivos pode tentar conduzir uma parte das
massas; daí a enorme diferença quanto à questão da consciência das massas.

Existem dados objectivos sobre esta questão, segundo parece, exclusivamente em relação ao número
de filiados nos partidos e às eleições. Parece não haver outros factos que permitam julgar com precisão da
consciência das massas. Que o movimento proletário revolucionário é encabeçado pelo partido dos

77
bolcheviques, e o movimento contra-revolucionário burguês pelo partido dos democratas-constitucionalistas,
isto é claro e dificilmente pode ser contestado após a experiência de meio ano de revolução. Pode-se invocar
três comparações de carácter factual quanto à questão que estamos a examinar. A comparação das eleições de
Maio para as Dumas de bairro em Petrogrado com as de Agosto para a Duma central dá a diminuição dos votos
democratas-constitucionalistas e um enorme aumento dos votos bolcheviques. A imprensa democrata-
constitucionalista reconhece que onde há aglomerações de massas de operários ou de soldados, aí observa-se
também, regra geral, a força do bolchevismo.

Depois, o carácter consciente da participação das massas no partido, dada a inexistência de quaisquer
estatísticas sobre a flutuação do número dos membros do partido, sobre a assistência às reuniões, etc, só pode
ser comprovado nos factos com os dados publicados relativamente às recolhas de fundos para o partido. Estes
dados mostram um heroísmo enorme e de massas dos operários bolcheviques na recolha de fundos para o
Pravda, para os jornais fechados, etc. Os relatórios sobre as recolhas foram sempre publicados. Nos democratas-
constitucionalistas não vemos nada de semelhante: o seu trabalho de partido é «alimentado», é claro, com as
contribuições dos ricos. Nem vestígios duma ajuda activa das massas.

Finalmente, a comparação dos movimentos de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, por um lado, e da
kornilovada, por outro, mostra-nos que os bolcheviques apontam directamente às massas o seu inimigo na
guerra civil, a saber: a burguesia, os latifundiários e os capitalistas. A kornilovada já mostrou o engano directo
das tropas que seguiam Kornílov, engano que foi posto a descoberto logo pelo primeiro encontro da «divisão
selvagem» e dos comboios kornilovistas com os petrogradenses.

Prossigamos. Quais são os dados sobre a força do proletariado e da burguesia na guerra civil? A força
dos bolcheviques está apenas no número dos proletários, na sua consciência, nas simpatias das «bases» (isto é,
os operários e os camponeses pobres) socialistas-revolucionárias e mencheviques pelas palavras de ordem
bolcheviques. É um facto que foram precisamente estas palavras de ordem que levaram efectivamente atrás e si
a maioria das massas revolucionárias activas em Petrogrado em 20-21 de Abril e em 18 de Junho, e em 3-4 de
Julho.

Com esta comparação entre os dados sobre as eleições «parlamentares» e os dados sobre os referidos
movimentos de massas confirma-se inteiramente, em relação à Rússia, uma observação feita muitas vezes no
Ocidente, a saber: a força do proletariado revolucionário, do ponto de vista da influência sobre as massas e da
sua integração na luta, é incomparavelmente maior na luta não parlamentar do que na luta parlamentar. Esta é
uma observação muito importante sobre a questão da guerra civil.

É compreensível porque é que todas as condições e todo o ambiente da luta parlamentar e das eleições
reduz a força das classes oprimidas em comparação com a força que elas podem desenvolver de facto numa
guerra civil.

A força dos democratas-constitucionalistas e da kornilovada está na força da riqueza. Que o capital


anglo-francês e o imperialismo estão a favor dos democratas-constitucionalistas e a favor da kornilovada, isto
foi demonstrado por uma longa série de intervenções políticas e pela imprensa. É geralmente sabido que toda a
«direita» da Conferência de Moscovo de 12 de Agosto estava furiosamente a favor de Kornílov e Kalédine. É
geralmente sabido como a imprensa burguesa francesa e inglesa «ajudava» Kornílov. Há indícios de que ele
recebia uma ajuda por parte dos bancos.

Toda a força da riqueza se colocou a favor de Kornílov, mas que fracasso tão triste e rápido! As forças
sociais que, além dos ricos, podem ver-se com os kornilovistas são apenas duas: a «divisão selvagem» e os
cossacos. No primeiro caso, é apenas a força do obscurantismo e do engano. Esta força é tanto mais temível
quanto mais a imprensa se mantiver nas mãos da burguesia. O proletariado, triunfando na guerra civil, minaria
esto fonte de «força» imediata e radicalmente.

No que se refere aos cossacos, temos aqui uma camada da população formada por proprietários rurais
ricos, pequenos e médios (a propriedade rural média é de cerca de 50 deciatinas) duma das zonas periféricas da
Rússia que mais conservaram traços medievais de vida, de economia, de costumes. Aqui pode ver-se uma base
socioeconómica para uma Vendeia[N134] russa. Mas o que mostraram os factos relativos ao movimento
kornilovista-kaledinista? Mesmo Kalédine, o «chefe amado» apoiado pelos Gutchkov, Miliukov, Riabuchínski e
C.a, não levantou, apesar de tudo, um movimento de massas!! Kalédine ia para a guerra civil de modo

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infinitamente mais «directo» e rectilíneo do que os bolcheviques. Kalédine «ia levantar o Don» abertamente, e
apesar de tudo Kalédine não levantou nenhum movimento de massas na «sua» região, numa região de cossacos
isolada da democracia de toda a Rússia! Pelo contrário, observamos, por parte do proletariado, explosões
espontâneas do movimento no centro da influência e da força da democracia antibolchevique de toda a Rússia.

Não há dados objectivos sobre a atitude das diferentes camadas e dos diferentes grupos económicos
dos cossacos para com a democracia e para com a kornilovada. Há apenas indícios de que a maioria dos
cossacos pobres e médios se inclinam mais para a democracia, e só a oficialidade e as camadas superiores dos
cassacos abastados são plenamente kornilovistas.

Seja como for, está historicamente provada, depois da experiência de 26-31 de Agosto, uma extrema
fraqueza do movimento cossaco de massas a favor da contra-revolução burguesa.

Resta a última questão: a da tenacidade do movimento. Relativamente ao movimento proletário-


revolucionário, bolchevique, já temos o facto provado de que a luta contra o bolchevismo, em meio ano de
república na Rússia, foi conduzida como uma luta ideológica, com um predomínio gigantesco dos órgãos de
imprensa e das forças de agitação por parte dos opositores do bolchevismo (e com a inclusão muito «arriscada»
na luta «ideológica» da campanha de calúnias), e também pela via das acções repressivas: centenas dê pessoas
foram presas, foi destruída a tipografia principal, foram encerrados o jornal principal e uma série de jornais. O
resultado é mostrado pelos factos: um enorme reforço do bolchevismo nas eleições de Agosto em Petrogrado,
depois um reforço das correntes internacionalistas e «de esquerda» que se aproximam do bolchevismo tanto no
partido socialista-revolucionário como no menchevique. Quer dizer, a tenacidade do movimento proletário-
revolucionário na Rússia republicana é muito grande. Os factos dizem que os esforços conjuntos dos
democratas-constitucionalistas, dos socialistas-revolucionários e mencheviques não conseguiram de modo
algum enfraquecer este movimento. Pelo contrário, foi precisamente a coligação dos kornilovistas com a
«democracia» que reforçou o bolchevismo. Não pode haver outros meios de luta contra a corrente proletária-
revolucionária senão uma influência ideológica e acções repressivas.

Por enquanto, não há dados sobre a tenacidade do movimento democrata-constitucionalista-


kornilovista. Os democratas-constitucionalistas nunca sofreram perseguições. Até libertaram Gutchkov, até não
prenderam Maklakov e Miliukov. Até não fecharam o Retch. Poupam os democratas-constitucionalistas. O
governo de Kérenski namora os democratas-constitucionalistas e kornilovistas. E se se colocar a questão da
seguinte maneira: suponhamos que os Riabuchínski anglo-franceses e russos ofereçam mais e mais milhões aos
democratas-constitucionalistas, ao Edinstvo, ao Den, etc, para uma nova campanha eleitoral em Petrogrado;
será crível que o número dos seus votos cresça agora, após a kornilovada? Dificilmente se poderá dar a esta
pergunta, a julgar pelas reuniões, etc, uma resposta que não seja negativa . . .

***

Ao resumir as conclusões da nossa comparação dos dados da história da revolução russa, obtemos a
conclusão de que o início da guerra civil por parte do proletariado revelou a força, a consciência, o
enraizamento, o crescimento e a tenacidade do movimento. O início da guerra civil por parte da burguesia não
revelou nenhuma força, nenhuma consciência das massas, nenhum enraizamento, nenhumas possibilidades de
vitória.

A aliança dos democratas-constitucionalistas com os socialistas-revolucionários e mencheviques


contra os bolcheviques, isto é, contra o proletariado revolucionário, foi experimentada na prática no decurso de
vários meses, e esta aliança dos kornilovistas, temporariamente ocultos, com a «democracia», levou de facto não
ao enfraquecimento mas ao reforço dos bolcheviques, à falência da «coligação», ao reforço da oposição «de
esquerda» também entre os mencheviques.

A aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques contra os democratas-


constitucionalistas, contra a burguesia, ainda não foi experimentada. Ou, para ser mais preciso, tal aliança foi
experimentada apenas numa frente, apenas durante cinco dias, de 26 a 31 de Agosto, durante a kornilovada, e
essa aliança permitiu nessa altura alcançar a vitória mais completa, com uma facilidade ainda nunca vista em
nenhuma revolução, sobre a contra-revolução, ela permitiu uma vitória tão esmagadora sobre a contra-
revolução burguesa, latifundiária e capitalista, imperialista-aliada e democrata-constitucionalista, que deste

79
lado a guerra civil foi pulverizada, se transformou em nada desde o próprio começo, se desagregou antes de
qualquer «combate».

E perante este facto histórico toda a imprensa burguesa, com todos os seus porta-vozes (os Plekhánov,
Potréssov, Brechko-Brechkóvskaia, etc), grita com todas as forças que é precisamente a aliançados
bolcheviques com os mencheviques e socialistas-revolucionários que «ameaça» com os horrores da guerra
civil!.

Isto seria ridículo se não fosse triste. É triste que em geral possa encontrar ouvintes semelhante
absurdo claro, evidente, clamoroso, semelhante troça dos factos, de toda a história da nossa revolução . . . Isto
prova que está ainda enormemente difundida a mentira burguesa e interesseira (e a difusão é inevitável
enquanto a imprensa estiver monopolizada pela burguesia), mentira que submerge e abafa as lições mais
indubitáveis, palpáveis e indiscutíveis da revolução.

Se existe uma lição da revolução absolutamente indiscutível, absolutamente provada pelos factos, é
que unicamente uma aliança dos bolcheviques com os socialistas-revolucionários e mencheviques, unicamente
uma passagem imediata de todo o poder aos Sovietes tornaria impossível uma guerra civil na Rússia. Pois
contra tal aliança, contra os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses é inconcebível qualquer
guerra civil iniciada pela burguesia, tal «guerra» não chegaria sequer a um só combate, a burguesia não
encontrará pela segunda vez, depois da kornilovada, nem sequer a «divisão selvagem», nem sequer o número
anterior de comboios de cossacos para o movimento contra o Governo Soviético!

O desenvolvimento pacífico de qualquer revolução em geral é uma coisa extraordinariamente rara e


difícil, pois a revolução é a maior agudização das contradições de classe mais agudas, mas num país camponês,
quando a aliança do proletariado e do campesinato pode dar a paz às massas esgotadas pela guerra mais injusta
e mais criminosa, e toda a terra ao campesinato — em tal país, em tal momento histórico excepcional, com a
passagem de todo o poder para os Sovietes, um desenvolvimento pacífico da revolução é possível e provável. A
luta de partidos pelo poder dentro dos Sovietes pode decorrer pacificamente se os Sovietes forem plenamente
democráticos, se eles renunciarem aos «pequenos furtos», ao «roubo» dos princípios democráticos, tais como a
concessão aos soldados de um representante por cada 500 eleitores, e aos operários de um por cada 1000.
Numa república democrática tais pequenos furtos estão condenados ao desaparecimento.

Contra os Sovietes que entregam toda a terra sem indemnização aos camponeses e que propõem uma
paz justa a todos os povos, contra tais Sovietes não é de modo algum de temer, é completamente impotente
qualquer aliança da burguesia anglo-francesa e russa, dos Kornílov, dos Buchanan e dos Riabuchínski, dos
Miliukov com os Plekhánov e os Potréssov. A resistência da burguesia contra a entrega da terra aos camponeses
sem indemnização, contra semelhantes transformações em outros domínios da vida, contra a paz justa e o
rompimento com o imperialismo, tal resistência, naturalmente, é inevitável. Mas para a resistência chegar à
guerra civil, para isto são necessárias massas, por pouco numerosas que sejam, capazes de combater e vencer
os Sovietes. Mas a burguesia não tem tais massas e não tem onde as ir buscar. Quanto mais rápida e
decididamente os Sovietes tomarem todo o poder tanto mais depressa se cindirão tanto as «divisões selvagens»
como os cossacos, se cindirão na minoria mais insignificante de kornilovistas conscientes e na enorme maioria
dos partidários da aliança democrática e socialista (pois tratar-se-á então precisamente do socialismo) dos
operários e camponeses.

Com a passagem do poder para os Sovietes, a resistência da burguesia levará a que cada capitalista
será «seguido», vigiado, controlado e registado por dezenas e centenas de operários e camponeses, cujo
interesse exigirá que seja combatido o engano do povo pelos capitalistas. As formas e métodos deste registo e
controlo foram elaborados e simplificados precisamente pelo capitalismo, precisamente por criações do
capitalismo tais como os bancos, as grandes fábricas, os consórcios, os caminhos-de-ferro, os correios, as
sociedades de consumidores e os sindicatos. Bastará que os Sovietes castiguem os capitalistas que se furtam ao
controlo mais pormenorizado ou enganam o povo com a confiscação de todos os seus bens e prendendo-os por
um período breve para quebrar, sem derramamento de sangue, toda a resistência da burguesia. Pois é
precisamente através dos bancos, uma vez nacionalizados, é precisamente através dos sindicatos de
empregados, através dos correios, através das sociedades de consumidores, através dos sindicatos, que o
controlo e o registo se tornarão universais, omnipotentes, omnipresentes e invencíveis.

80
E os Sovietes russos, a aliança dos operários e camponeses pobres russos, não estão sós nos seus
passos para o socialismo. Se estivéssemos sós, não teríamos forças para realizar esta tarefa até ao fim e
pacificamente, pois esta tarefa é, no fundo, internacional. Mas nós temos uma reserva grandiosa, os exércitos de
operários mais avançados noutros países, nos quais o rompimento da Rússia com o imperialismo e com a
guerra imperialista acelerará inevitavelmente a revolução operária, socialista, que neles amadurece.

***

Falam de «torrentes de sangue» na guerra civil. Di-lo a resolução dos democratas-constitucionalistas-


kornilovistas, citada atrás. Esta frase é repetida de mil maneiras por todos os burgueses e por todos os
oportunistas. Dela riem e rirão, não podem deixar de rir depois da kornilovada, todos os operários conscientes.

Mas a questão das «torrentes de sangue» no tempo de guerra que vivemos pode e deve ser colocada na
base de um cômputo aproximado das forças, de um cálculo das consequências e resultados, tomada seriamente
e não como uma oca frase corrente, não apenas como uma hipocrisia dos democratas-constitucionalistas, que
tudo fizeram pela sua parte para Kornílov conseguir inundar a Rússia com «torrentes de sangue», a fim de
restaurar a ditadura da burguesia, o poder dos latifundiários e a monarquia.

«Torrentes de sangue», dizem-nos. Consideremos também este lado da questão.

Suponhamos que continuam as vacilações dos mencheviques e socialistas-revolucionários, eles não


entregam o poder aos Sovietes, não derrubam Kérenski, restabelecem o velho e apodrecido compromisso com a
burguesia sob uma forma um pouco diferente (em lugar dos democratas-constitucionalistas, por exemplo,
kornilovistas «sem partido»), não substituem o aparelho do poder de Estado pelo aparelho soviético, não
propõem a paz, não rompem com o imperialismo, não confiscam as terras dos latifundiários. Suponhamos que
este é o desenlace das vacilações actuais dos socialistas-revolucionários e mencheviques, que este é o desenlace
do «12 de Setembro».

A experiência da nossa própria revolução diz de forma absolutamente clara que a consequência disto
seria um enfraquecimento ainda maior dos socialistas-revolucionários e mencheviques, uma separação ainda
maior deles com as massas, um aumento incrível da indignação e da exasperação nas massas, um aumento
enorme das simpatias para com o proletariado revolucionário, para com os bolcheviques.

O proletariado da capital estará então ainda mais perto do que agora da comuna, da insurreição
operária, da tomada do poder nas suas mãos, da guerra civil na sua forma mais elevada e decidida: depois da
experiência de 20-21 de Abril e de 3-4 de Julho, tal resultado deve ser reconhecido como historicamente
inevitável.

«Torrentes de sangue», gritam os democratas-constitucionalistas. Mas semelhantes torrentes de


sangue dariam a vitória ao proletariado e ao campesinato pobre, e esta vitória, com noventa e nove por cento de
probabilidades, daria a paz em lugar da guerra imperialista, isto é, pouparia a vida a centenas de milhares de
pessoas que hoje derramam o seu sangue por causa da partilha dos lucros e das conquistas (anexações) dos
capitalistas. Se o 20-21 de Abril tivesse terminado com a passagem de todo o poder para os Sovietes e desse a
vitória dentro deles aos bolcheviques em aliança com o campesinato pobre, então, mesmo que isto tivesse
custado «torrentes de sangue», isto salvaria a vida a meio milhão de soldados russos, que morreram decerto
nos combates de 18 de Junho.

Assim calcula e assim calculará cada operário e soldado consciente russo, se ponderar e tomar em
consideração a questão da guerra civil que se coloca actualmente por toda a parte, e, naturalmente, tal operário
e soldado, que viveu e reflectiu alguma coisa, não se assustará com os clamores acerca das «torrentes de
sangue» lançadas pelos homens, partidos e grupos que desejam sacrificar as vidas de novos milhões de
soldados russos por Constantinopla, por Lvov, por Varsóvia, pela «vitória sobre a Alemanha».

Nenhumas «torrentes de sangue» numa guerra civil interna se comparam sequer aproximadamente
com aqueles mares de sangue que os imperialistas russos derramaram depois de 19 de Junho (a despeito das
probabilidades extraordinariamente elevadas de o evitar por meio da entrega do poder aos Sovietes).

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Em tempo de guerra, senhores Miliukov, Potréssov, Plekhánov, argumentai mais cuidadosamente
contra as «torrentes de sangue» na guerra civil, pois os soldados conhecem e viram mares de sangue.

A situação internacional da revolução russa agora, em 1917, no quarto ano de uma guerra
criminosíssima, inauditamente pesada, que esgotou os povos, é tal que a proposta duma paz justa pelo
proletariado russo vencedor na guerra civil significaria noventa e nove por cento de probabilidades de
conseguir um armistício e a paz sem derramar outros mares de sangue.

Porque a união dos imperialismos anglo-francês e alemão, inimigos entre si, contra a república
proletária socialista da Rússia é na prática impossível, e a união dos imperialismos inglês, japonês e americano
contra nós é extremamente difícil de realizar e não nos assusta de modo nenhum em virtude da própria
situação geográfica da Rússia. E, entretanto, a existência de massas proletárias revolucionárias e socialistas
dentro de todos os Estados europeus é um facto, o amadurecimento e a inevitabilidade da revolução socialista
mundial não oferece dúvidas, e não se pode ajudar seriamente esta revolução, naturalmente, com delegações e
com o jogo às conferências de Estocolmo com os Plekhánov ou os Tseretéli estrangeiros, mas apenas com o
movimento para a frente da revolução russa.

Os burgueses gritam sobre uma derrota inevitável da comuna na Rússia, isto é, a derrota do
proletariado se ele conquistasse o poder.

São gritos mentirosos, gritos interesseiros e de classe.

Ao conquistar o poder, o proletariado da Rússia tem todas as probabilidades de o manter e de dirigir a


Rússia até à revolução vitoriosa no Ocidente.

Porque, em primeiro lugar, aprendemos muito desde o tempo da Comuna e não repetiríamos os seus
erros fatais, não deixaríamos ficar a banca nas mãos da burguesia, não nos limitaríamos a defender-nos contra
os nossos versalheses (isto é, os kornilovistas), mas passaríamos à ofensiva contra eles e esmagá-los-íamos.

Em segundo lugar, o proletariado vitorioso dará a paz à Rússia. E nenhuma força derrubará o governo
da paz, o governo de uma paz justa, sincera, honrada, depois de todos os horrores de mais de três anos de
massacre dos povos.

Em terceiro lugar, o proletariado vitorioso dará a terra, imediatamente e sem indemnização, ao


campesinato. E a maioria gigantesca do campesinato, esgotado e exasperado pelo «jogo com os latifundiários»
que o nosso governo pratica, sobretudo o governo de «coligação», sobretudo o governo de Kérenski, apoiará
por todos os meios, inteiramente e sem reservas o proletariado vitorioso.

Falais todos em «esforços heróicos» do povo, senhores mencheviques e socialistas-revolucionários. Há


apenas uns dias encontrei essa frase uma e outra vez no editorial do vosso Izvéstia TsIK. Em vós isto é apenas
uma frase. Mas os operários e camponeses que a lêem pensam nela, e cada reflexão, apoiada pela «experiência»
da kornilovada, pela experiência do ministério de Pechekhónov, pelas «experiências» do ministério de
Tchernov e assim por diante, cada reflexão conduz inevitavelmente a esta conclusão: mas este «esforço
heróico» não é senão a confiança do campesinato pobre nos operários da cidade como seus mais fiéis aliados e
chefes. O esforço heróico não é senão a vitória do proletariado russo sobre a burguesia na guerra civil, pois só
tal vitória salvará de vacilações dolorosas, só ela dará uma saída, dará a terra, dará a paz.

Se se pode realizar a aliança dos operários da cidade com o campesinato pobre através da passagem
imediata do poder aos Sovietes, tanto melhor. Os bolcheviques farão tudo para assegurar esta via pacífica do
desenvolvimento da revolução. Sem isto, nem a Assembleia Constituinte, por si só, será a salvação, porque
também nela os socialistas-revolucionários poderão continuar o «jogo» aos acordos com os democratas-
constitucionalistas, com Brechko-Brechkóvskaia e Kérenski (em que são eles melhores do que os democratas-
constitucionalistas?), etc, etc.

Se nem sequer a experiência da kornilovada ensinou a «democracia» e se ela continuar a sua política
funesta de vacilações e de conciliação, então diremos: nada destrói tanto a revolução proletária como estas
vacilações. Não intimideis, pois, senhores, com a guerra civil: ela é inevitável se não quiserdes ajustar contas,
agora mesmo e até ao fim, com a kornilovada e com a «coligação» — então esta guerra dará a vitória sobre os

82
exploradores, dará a terra aos camponeses, dará a paz aos povos, abrirá um caminho seguro para a revolução
vitoriosa do proletariado socialista mundial.

Notas de rodapé:
(1*) Ver V. I. Lénine, Obras Completas, 5.a ed. em russo, t. 34, pp. 21-32. (N. Ed.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N134] Vendeia: departamento da França, centro da contra-revolução no tempo da revolução
burguesa do fim do século XVIII. Tornou-se sinónimo de contra-revolução.

83
Reunião do Comité Central do POSDR (b) 10 (23) de Outubro de 1917
V. I. L énine

10 (23) de Outubro de 1917

1 - Relatório

Acta

O camarada Lenine constata que desde começos de Setembro se nota certa indiferença pela questão da
insurreição. Entretanto, isto é inadmissível se estamos a lançar seriamente a palavra de ordem da tomada do
poder pelos Sovietes. Por isso se devia há muito ter prestado atenção ao aspecto técnico da questão.
Aparentemente, agora já se perdeu bastante tempo.

Não obstante, a questão está colocada com muita agudeza e o momento decisivo está próximo.

A situação internacional é tal que devemos tomar a iniciativa.

Aquilo que se trama com a rendição até Narva e com a rendição de Petrogrado mais ainda nos obriga a
acções decididas.

A situação política também influi energicamente neste sentido. Em 3-5 de Julho as acções decididas
pelo nosso lado teriam sido derrotadas devido ao facto de que não tínhamos a maioria por nós. Desde então o
nosso ascenso avança a passos de gigante.

O absentismo e a indiferença das massas podem explicar-se por as massas estarem cansadas de
palavras e resoluções.

Agora temos a maioria por nós. Do ponto de vista político, as coisas amadureceram plenamente para a
passagem do poder.

O movimento agrário também vai nesta direcção, pois é claro que são necessárias forças heróicas para
sufocar este movimento. A palavra de ordem de passagem de toda a terra tornou-se palavra de ordem geral dos
camponeses. Deste modo, a situação política está preparada. Temos de falar do aspecto técnico. Aí reside toda a
questão. Entretanto, sentimo-nos inclinados, tal como os defensistas, a considerar como uma espécie de pecado
político a preparação sistemática da insurreição.

Esperar até a Assembleia Constituinte, que evidentemente não estará connosco, é insensato, pois
significa complicar a nossa tarefa.

O congresso regional e a proposta de Minsk[N217] devem ser aproveitados para começar as acções
decisivas.

2 - Resolução

O CC considera que tanto a situação internacional da revolução russa (a insurreição na esquadra na


Alemanha, como manifestação extrema do desenvolvimento em toda a Europa da revolução socialista mundial,
depois a ameaça da paz entre os imperialistas com o objectivo de estrangular a revolução na Rússia) como a
situação militar (decisão indubitável da burguesia russa e de Kérenski e C.a de entregar Petrogrado aos
alemães) e a obtenção pelo partido proletário da maioria nos Sovietes — tudo isto em ligação com a insurreição
camponesa e com a viragem da confiança do povo para o nosso partido (eleições em Moscovo) e, finalmente, a
evidente preparação de uma segunda kornilovada (retirada de tropas de Petrogrado, transporte de cossacos
para Petrogrado, cerco de Minsk pelos cossacos, etc.) — tudo isto coloca na ordem do dia a insurreição armada.

Considerando deste modo que a insurreição armada é inevitável e amadureceu completamente, o CC


propõe a todas as organizações do partido que se guiem por isto e discutam e resolvam segundo este ponto de
vista todas as què'stões práticas (congresso dos Sovietes da Região Norte, retirada de tropas de Petrogrado,
acções em Moscovo e Minsk, etc).

84
Notas de fim de tomo:
[N216] A reunião do Comité Central do Partido Bolchevique de 10 (23) de Outubro de 1917 foi a
primeira reunião do CC em que Lenine participou após a sua chegada de Víborg a Petrogrado. Nesta reunião do
CC, presidida por Sverdlov, Lenine apresentou um relatório sobre o momento actual. O CC aprovou uma
resolução proposta por Lenine que punha na ordem do dia a tarefa da preparação imediata da insurreição
armada. Apenas Zinóviev e Kámenev intervieram e votaram contra a insurreição. Na reunião do CC, Tróstki não
votou contra a insurreição, mas considerava que a insurreição devia ser adiada até ao II Congresso dos Sovietes,
o que significava de facto fazê-la fracassar, pois isto oferecia ao Governo Provisório a possibilidade de
concentrar para o dia de convocação do congresso forças para esmagar a insurreição. O CC deu uma réplica
decidida aos capitulacionistas. A reunião do CC de 10 (23) de Outubro tem um enorme significado histórico. A
resolução do CC sobre a insurreição armada, aprovada por 10 votos contra 2, tornou-se uma directriz para todo
o Partido Bolchevique — preparar imediatamente a insurreição armada. Nesta reunião do CC foi criado, para a
direcção política da insurreição, um Bureau Político dirigido por Lenine. (retornar ao texto)
[N217] Lenine refere-se ao relatório de Sverdlov na reunião do CC de 10 (23)de Outubro de 1917
acerca do terceiro ponto da ordem do dia, «Minsk e a frente Norte». Sverdlov informou das possibilidades
técnicas da insurreição armada em Minsk e da proposta de Minsk de enviar um corpo de exército
revolucionário para ajudar Petrogrado.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/10/23.htm

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Conservarão os Bolcheviques o Poder de Estado?[N194]
V. I. L énine
14 de Outubro de 1917

Prefácio à Segunda Edição


[Publicado em 1918 na brochura: N. Lénine, Conservarão os Bolcheviques o Poder de Estado?, colecção
«Biblioteca do soldado e do camponês» Petersburgo.]
Como é visível do seu texto, a presente brochura foi escrita em finais de Setembro e terminada em 1 de
Outubro de 1917.
A revolução de 25 de Outubro fez passar a questão colocada nesta brochura do domínio da teoria para
o domínio da prática.
A esta questão é preciso responder agora com factos, e não com palavras. Os argumentos teóricos
contra o poder bolchevique são extremamente fracos. Estes argumentos foram rebatidos.
A tarefa consiste agora em demonstrar com a prática da classe avançada — o proletariado — a
vitalidade do governo operário e camponês. Todos os operários conscientes, tudo o que existe de vivo e honesto
no campesinato, todos os trabalhadores e explorados mobilizarão todos os seus esforços para resolver na
prática esta importantíssima questão histórica.
Ao trabalho, todos ao trabalho, a causa da revolução socialista mundial deve vencer e vencerá.
Petersburgo, 9 de Novembro de 1917.
N. Lénine

Em que concordam todas as tendências, desde o Retch até ao Nóvaia Jizn inclusive, desde
os democratas-constitucionalistas—kornilovistas até aos semi-bolcheviques, todos com excepção dos
bolcheviques?
Em que os bolcheviques sozinhos ou nunca se decidirão a tomar todo o poder de Estado nas suas
mãos, ou, se se decidirem e o tomarem, não poderão conservá-lo mesmo pelo mais curto período de tempo.
Se alguém observar que a questão da tomada de todo o poder de Estado pelos bolcheviques sozinhos é
uma questão política absolutamente irreal, que só a mais tola presunção de um qualquer «fanático» pode
considerá-la real, refutaremos esta observação citando as exactas declarações dos partidos e tendências
políticas mais responsáveis e mais influentes das diferentes «cores».
Mas para começar duas palavras acerca da primeira das questões apontadas, a saber: decidir-se-ão os
bolcheviques a tomar sozinhos todo o poder de Estado? Já tive ocasião, no Congresso dos Sovietes de Toda a
Rússia, de responder com uma afirmação categórica a esta questão numa observação que fui levado a gritar do
lugar durante um dos discursos ministeriais de Tseretéli[N195]. E não encontrei nem na imprensa nem
oralmente declaração da parte dos bolcheviques de que não devamos tomar sozinhos o poder. Continuo a
manter o ponto de vista de que um partido político em geral — e em particular o partido da classe avançada —
não teria direito a existir, seria indigno de se considerar como um partido, seria um triste zero em todos os
sentidos se renunciasse ao poder uma vez que tivesse a possibilidade de obter o poder.
Citemos agora as declarações dos democratas-constitucionalistas, dos socialistas-revolucionários e
dos semi-bolcheviques (gostaria mais de dizer um quarto de bolcheviques) sobre a questão que nos interessa.

Editorial do Retch de 16 de Setembro:


«... Na sala do Teatro Alexandrínski reinavam o desacordo e a confusão, e a imprensa socialista reflecte
o mesmo quadro. Só a opinião dos bolcheviques se distingue pela sua determinação e franqueza. Na
Conferência, esta é a opinião da minoria. Nos Sovietes, esta corrente reforça-se cada vez mais. Mas, apesar de
toda afogosidade verbal, das frases jactanciosas, da demonstração de autoconfiança, os bolcheviques, com
excepção de alguns fanáticos, só são valentes nas palavras. Por sua própria vontade não tentarão tomar «todo o
poder». Desorganizadores e destruidores par excellence(1*), em essência são cobardes, no fundo da alma estão
perfeitamente conscientes da sua intrínseca ignorância e do carácter efémero dos seus êxitos actuais.
Compreendem tão bem como todos nós que o primeiro dia do seu definitivo triunfo seria também o primeiro
dia da sua queda precipitada. Irresponsáveis por natureza, anarquistas pelos métodos e processos, são
concebíveis apenas como uma das correntes do pensamento político, melhor dizendo, como uma das suas
aberrações. O melhor método para nos livrarmos por muitos anos do bolchevismo, para o banir, seria a entrega
aos seus dirigentes dos destinos do país. E se não fosse a consciência do carácter inadmissível e funesto de
semelhantes experiências, poderia em desespero de causa decidir-se um meio tão heróico. Felizmente,
repetimos, estes tristes heróis do dia não aspiram de facto de modo nenhum à conquista de toda a plenitude do
poder. Em nenhumas condições são capazes de um trabalho criador. Deste modo, toda a sua determinação e
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franqueza se limita à esfera da tribuna política, à retórica dos comícios. Na prática a sua posição não pode ser
tomada em consideração de qualquer ponto de vista. De resto, num só aspecto ela tem no entanto uma certa
consequência real: une todos os outros matizes do 'pensamento socialista' na rejeição da sua atitude...»

Assim raciocinam os democratas-constitucionalistas. E eis o ponto de vista do maior partido,


«dominante e governante», da Rússia, do partido dos «socialistas-revolucionários», num editorial igualmente
não assinado, isto é, da redacção do Delo Naroda, seu órgão oficial, de 21 de Setembro:
«... Se a burguesia não quer trabalhar juntamente com a democracia até à Assembleia Constituinte na
base da plataforma aprovada pela Conferência, então a coligação tem de surgir no seio da Conferência. Isto é um
pesado sacrifício da parte dos defensores da coligação, mas a ela têm de chegar também os propagandistas de
uma 'linha pura' do poder. Mas tememos que também aqui não possa ter lugar um acordo. E então resta uma
terceira e última combinação: o poder deve ser organizado pela metade da Conferência que defendeu em
princípio a ideia da sua homogeneidade. «Falemos claramente: os bolcheviques serão obrigados a formar o
gabinete. Eles inculcaram com a maior energia na democracia revolucionária o ódio à coligação, prometendo-
lhe todos os bens depois da eliminação da 'política de conciliação e atribuindo a esta última todos os males do
pais. «Se se davam conta da sua agitação, se não enganavam as massas, são obrigados a pagar as letras que
emitiram a torto e a direito. «A questão coloca-se claramente.
«E que não façam esforços inúteis para se esconderem atrás de qualquer teoria criada à pressa sobre a
impossibilidade de eles tomarem o poder. «A democracia não aceitará essas teorias.
«Ao mesmo tempo, os partidários da coligação devem garantir-lhes um apoio total. Eis as três
combinações, os três caminhos que estão diante de nós — não há outros!» (O itálico pertence ao próprio Delo
Naroda.)

Assim raciocinam os socialistas-revolucionários. Eis, finalmente, a «posição», se é que se pode chamar


posição à tentativa de se sentar entre duas cadeiras, dos «um quarto de bolcheviques» do Nóvaia Jizn, tomada
no editorial do Nóvaia Jizn de 23 de Setembro:
«...Se a coligação com Konoválov e Kichkine for novamente formada, isto significará simplesmente uma
nova capitulação da democracia e a revogação da resolução da Conferência sobre um poder responsável na base
da plataforma de 14 de Agosto...
«...Um ministério homogéneo de mencheviques e socialistas-revolucionários poderá sentir tão pouco a sua
responsabilidade como a sentiram os ministros socialistas responsáveis no governo de coligação... Tal governo não
só não poderia reunir à sua volta as forças vivas' da revolução, como não poderia contar com o mínimo apoio
activo da sua vanguarda - o proletariado.
«Não obstante, não seria uma saída melhor da situação, mas ainda pior, propriamente não seria uma
saída, mas simplesmente um malogro, a constituição de um gabinete homogéneo de outro tipo, de um governo 'do
proletariado e do campesinato pobre'. É verdade que ninguém lança tal palavra de ordem, excepto em notas
casuais, tímidas, sistematicamente 'esclarecidas' depois, do Rabótchi Put.»(Escrevem «corajosamente» esta
inverdade gritante publicistas responsáveis que até se esqueceram do editorial do Delo Naroda de 21 de
Setembro...)

«Os bolcheviques ressuscitaram agora formalmente a palavra de ordem: todo o poder aos Sovietes. Ela
foi anulada quando, depois das jornadas de Julho, os Sovietes, por meio do CEC, adoptaram com determinação a
via de uma activa política anti-bolchevique. Hoje, porém, não só pode considerar-se restaurada a 'linha do
Soviete' como existem todas as razões para considerar que o projectado congresso dos Sovietes dará uma
maioria bolchevique. Em tais condições, a palavra de ordem 'todo o poder aos Sovietes', ressuscitada pelos
bolcheviques, é uma 'linha táctica' orientada precisamente para a ditadura do proletariado e do 'campesinato
pobre'. É verdade que por Sovietes se entendem também os Sovietes de deputados camponeses, e deste modo a
palavra de ordem bolchevique pressupõe um poder apoiado numa parte esmagadora de toda a democracia da
Rússia. Mas em tal caso a palavra de ordem 'todo o poder aos Sovietes' perde o significado próprio, na medida
em que, pela sua composição, torna os Sovietes quase idênticos ao 'pré-parlamento' formado pela
Conferência...» (A afirmação do Nóvaia Jizn é uma desavergonhada mentira, equivalente à declaração de que a
imitação e falsificação do democratismo são «quase idênticas» ao democratismo: o pré-parlamento é
uma imitação que faz passar a vontade da minoria do povo, especialmente de Kuskova, Berkenheim,
dos Tchaikóvski e C.a, pela vontade da maioria. Isto em primeiro lugar. Em segundo lugar, até os Sovietes
camponeses, falsificados pelos Avxéntiev e pelos Tchaikóvski, deram na Conferência uma percentagem tão alta
de adversários da coligação que, juntamente com os Sovietes de deputados operários e soldados, originariam
um fracasso certo da coligação. E, em terceiro lugar, «o poder aos Sovietes» significa que o poder dos Sovietes
camponeses se propagaria principalmente no campo, e nos campos está assegurada a preponderância dos

87
camponeses pobres.) «... Se isto é assim, então a palavra de ordem bolchevique deve ser imediatamente retirada
da ordem do dia. E se 'o poder aos Sovietes' apenas encobre a ditadura do proletariado, então tal poder significa
precisamente o fracasso e o naufrágio da revolução.
«Será preciso demonstrar que o proletariado, isolado não só das outras classes do país, mas também
das verdadeiras forças vivas da democracia, não poderá nem dominar tecnicamente o aparelho de Estado e pô-
lo em movimento numa situação excepcionalmente complicada, nem politicamente será capaz de resistir a toda
a pressão das forças inimigas que varrerá não só a ditadura do proletariado mas além disso toda a revolução?
«O único poder que responde às exigências do momento é actualmente uma coligação realmente
honesta dentro da democracia.»
***
Pedimos desculpa aos leitores por estes longos extractos, mas eles eram absolutamente necessários.
Era necessário apresentar com exactidão a posição dos diferentes partidos hostis aos bolcheviques. Era
necessário demonstrar com exactidão a circunstância extraordinariamente importante de que todos estes
partidos reconheceram que a questão da tomada da plenitude do poder de Estado pelos bolcheviques sozinhos
é não só uma questão real, mas também actual, premente.
Passemos agora à análise dos argumentos devido aos quais «todos», desde os democratas-
constitucionalistas até aos do Nóvaia Jizn, estão convencidos de que os bolcheviques não conservarão o poder.
O respeitável Retch não avança absolutamente nenhum argumento. Ele apenas lança sobre os
bolcheviques uma torrente de injúrias das mais escolhidas e virulentas. A passagem que citámos mostra, entre
outras coisas, como seria profundamente errado pensar que o Retch «provoca» os bolcheviques para a tomada
do poder, e que por isso: «muito cuidado, camaradas, pois o que o inimigo aconselha é de certeza mau!». Se, em
vez de analisarmos com sentido prático as razões, tanto de carácter geral como concreto, nos deixamos
«convencer» de que a burguesia nos «provoca» para a conquista do poder, encontrar-nos-emos enganados pela
burguesia, pois ela infalivelmente sempre profetizará maldosamente milhões de males derivados da conquista
do poder pelos bolcheviques, sempre gritará maldosamente: «o melhor para nos desembaraçarmos dos
bolcheviques de um só golpe e por 'longos anos' seria deixá-los chegar ao poder e depois derrotá-los
totalmente». Tais gritos são também uma provocação, se quiserdes, só que do lado oposto. Os democratas-
constitucionalistas e os burgueses não nos «aconselham» de modo nenhum e nunca nos «aconselharam» a
tomar o poder, eles apenas se esforçam por nos intimidar com as tarefas pretensamente insolúveis do poder.
Não. Não devemos deixar-nos intimidar pelos gritos dos burgueses intimidados. Devemos lembrar-nos
firmemente de que nunca nos colocámos tarefas sociais «insolúveis», mas as tarefas perfeitamente solúveis dos
passos imediatos para o socialismo, como única saída de uma situação muito difícil, só as resolverá a ditadura do
proletariado e do campesinato pobre. Mais do que nunca, mais do que em qualquer outro lugar, a vitória, e uma
vitória duradoura, está agora assegurada ao proletariado na Rússia se tomar o poder.
Examinaremos de modo puramente prático as circunstâncias concretas que tornam desfavorável este
ou aquele momento determinado, mas sem nos deixarmos intimidar nem por um só instante com os clamores
selvagens da burguesia, e sem esquecer que a questão da tomada de todo o poder pelos bolcheviques se torna
na verdade urgente. Agora um perigo infinitamente maior ameaça o nosso partido no caso de esquecermos isto
do que no caso de considerarmos «prematura» a tomada do poder. A este respeito agora nada pode ser
«prematuro»: todas as probabilidades num milhão, com excepção de uma ou duas, são favoráveis a isto.
A propósito das maldosas injúrias do Retch podemos e devemos repetir:
Ouvimos a aprovação
Não no doce murmúrio do louvor,
Mas nos gritos selvagens do furor![N196]
Que a burguesia nos odeie tão selvaticamente é uma das provas mais evidentes da verdade de que
indicamos correctamente ao povo os caminhos e os meios para derrubar o domínio da burguesia.
***
O Delo Naroda, desta vez, por uma rara excepção, não se dignou honrar-nos com as suas injúrias, mas
também não avançou nem sombra de argumentos. Apenas tenta intimidar-nos de forma indirecta, por alusões,
com a perspectiva de que «os bolcheviques se verão obrigados a formar gabinete». Admito inteiramente que, ao
intimidar-nos, os próprios socialistas-revolucionários estejam sinceramente intimidados, mortalmente
intimidados pelo espectro do liberal intimidado. Também admito que os socialistas-revolucionários consigam
intimidar alguns bolcheviques em instituições especialmente elevadas e especialmente apodrecidas, como o
CEC e as comissões de «contactos» a ele semelhantes (isto é, nas que têm ligações com os democratas-
constitucionalistas, que se conluiam com os democratas-constitucionalistas, para nos exprimirmos mais
simplesmente), pois, em primeiro lugar, a atmosfera em todos estes CECs, no «pré-parlamento», etc, é nojenta e
bafienta até à náusea, respirá-la durante muito tempo é nocivo para qualquer homem, e, em segundo lugar, a

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sinceridade é contagiosa, e um filisteu sinceramente intimidado é capaz de converter em filisteu por algum
tempo até um revolucionário isolado.
Mas por mais compreensível que seja, julgando «humanamente», este medo sincero do socialista-
revolucionário que teve a infelicidade de ser ministro com os democratas-constitucionalistas, ou de estar
perante os democratas-constitucionalistas numa posição ministeriável, deixar-se intimidar significa cometer
um erro político, que demasiado facilmente pode raiar a traição ao proletariado. Os vossos argumentos práticos,
senhores! Não espereis que nos deixemos intimidar com o vosso medo!
***
Encontramos argumentos práticos apenas no Nóvaia Jizn. Ele desempenha desta vez o papel de
advogado da burguesia, que lhe fica muito melhor que o papel de defensor dos bolcheviques, claramente
«chocante» para esta dama agradável sob todos os aspectos.[N197]
O advogado avançou seis argumentos:
1. o proletariado está «isolado das outras classes do país»;
2. ele está «isolado das verdadeiras forças vivas da democracia»;
3. «não poderá dominar tecnicamente o aparelho de Estado»;
4. «ele não poderá pôr em movimento» este aparelho;
5. «a situação é excepcionalmente complicada»;
6. ele «não será capaz de resistir a toda a pressão das forças inimigas que varrerá não só a
ditadura do proletariado mas além disso toda a revolução».
O primeiro argumento é exposto pelo Nóvaia Jizn de modo desajeitado até ao ridículo, pois na
sociedade capitalista e semi-capitalista conhecemos apenas três classes: a burguesia, a pequena burguesia (o
campesinato como seu principal representante) e o proletariado. Pois bem, que sentido tem falar do isolamento
do proletariado em relação às outras classes, quando se trata da luta do proletariado contra a burguesia? da
revolução contra a burguesia?
O Nóvaia Jizn quis provavelmente dizer que o proletariado está isolado do campesinato, pois aqui de
facto não se podia tratar dos latifundiários. Mas era impossível dizer precisa, claramente, que o proletariado
está agora isolado do campesinato, pois a falsidade gritante de semelhante afirmação salta aos olhos.
É difícil imaginar que num país capitalista o proletariado esteja tão pouco isolado da pequena
burguesia - e notai: numa revolução contra a burguesia - como hoje o proletariado na Rússia. Entre os dados
objectivos e indiscutíveis temos os últimos dados da votação por e contra a coligação com a burguesia nas
«cúrias» da «duma de Bulíguine»[N198] tseretélista, isto é, da famigerada Conferência «Democrática».
Tomemos as cúrias dos Sovietes. Obtemos:
Pela
Contra
coligação
Sovietes de deputados operários e
83 195
soldados
Sovietes de deputados camponeses 102 70
Todos os Sovietes 185 262
Assim, a maioria no seu conjunto está do lado da palavra de ordem proletária: contra a coligação com a
burguesia. E vimos acima que mesmo osdemocratas-constitucionalistas são obrigados a reconhecer o reforço
da influência dos bolcheviques nos Sovietes. E temos aqui uma Conferência convocada pelos chefes
de ontem nos Sovietes, pelos socialistas-revolucionários e mencheviques, que têm uma maioria assegurada nas
instituições centrais! É claro que a preponderância real dos bolcheviques nos Sovietes está aqui diminuída.
Tanto quanto à questão da coligação com a burguesia como quanto à questão da entrega imediata das
terras dos latifundiários aos comités camponeses, os bolcheviques têm já agora a maioria nos Sovietes de
deputados operários, soldados e camponeses, a maioria do povo, a maioria da pequena burguesia. O Rabótchi
Put n.° 19, de 24 de Setembro, cita do número 25 do Známia Trudá[N199], órgão dos socialistas-
revolucionários, informações sobre a Conferência dos Sovietes locais de deputados camponeses realizada em
Petrogrado em 18 de Setembro. Nesta conferência pronunciaram-se pela coligação sem restrições os comités
executivos de quatro Sovietes camponeses (das províncias de Kostromá, Moscovo, Samara e Táurida). Pela
coligação sem os democratas-constitucionalistas pronunciaram-se os comités executivos de três províncias e
de dois exércitos (das províncias de Vladímir, de Riazan e do mar Negro). Contra a coligação pronunciaram-se
os comités executivos de vinte e três províncias e quatroexércitos.
Assim, a maioria dos camponeses é contra a coligação!
Eis o vosso «isolamento do proletariado».
De passagem, é preciso observar que pela coligação se pronunciaram três províncias periféricas, a de
Samara, a de Táurida e a do mar Negro, onde há relativamente muitos camponeses ricos, grandes latifundiários
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que empregam operários assalariados, e também quatro províncias industriais (Vladímir, Riazan, Kostromá e
Moscovo), nas quais a burguesia camponesa é também mais forte do que na maioria das províncias da Rússia.
Seria interessante reunir dados mais pormenorizados sobre esta questão e examinar se não haverá informações
precisamente sobre os camponeses pobresnas províncias com um maior campesinato «rico».
É além disso interessante que os «grupos nacionais» deram uma preponderância muito significativa
aos adversários da coligação, a saber: 40 votos contra 15. A política anexionista e brutalmente violenta
do bonapartista Kérenski e C.a em relação às nações sem plenos direitos da Rússia deu os seus frutos. A grande
massa da população das nações oprimidas, isto é, incluindo a massa da pequena burguesia, confia mais no
proletariado da Rússia que na burguesia, pois a história pôs aqui na ordem do dia a luta das nações oprimidas
contra os opressores pela libertação. A burguesia traiu de maneira infame a causa da liberdade das nações
oprimidas, o proletariado é fiel à causa da liberdade.
As questões nacional e agrária são, actualmente, questões fundamentais do momento das massas
pequeno-burguesas da população da Rússia. Isto é incontestável. E, quanto a ambas as questões, o proletariado
está excepcionalmente «não isolado». Tem por si a maioria do povo. Só ele é capaz de conduzir, quanto a ambas
as questões, uma política tão resoluta, verdadeiramente «democrático-revolucionária», que assegure
imediatamente ao poder de Estado proletário o apoio da maioria da população, mas também uma verdadeira
explosão de entusiasmo revolucionário nas massas, pois pela primeira vez as massas encontrariam da parte do
governo não a opressão implacável dos camponeses pelos latifundiários, dos ucranianos pelos grão-russos,
como sob o tsarismo, não a tentativa, encoberta com frases pomposas, de prosseguir sob a república
exactamente a mesma política, não chicanas, ofensas, intrigas, adiamentos, rasteiras, evasivas (com
que Kérenski recompensa os camponeses e as nações oprimidas), mas uma simpatia ardente demonstrada com
factos, medidas imediatas e revolucionárias contra os latifundiários, a imediata restituição da plena liberdade à
Finlândia, à Ucrânia, à Bielorrússia, aos muçulmanos, etc.
Os senhores socialistas-revolucionários e mencheviques sabem-no perfeitamente, e por isso arrastam
as cúpulas semidemocratas-constitucionalistasdas cooperativas em auxílio da sua política democrático-
reaccionária contra as massas. Por isso nunca se decidirão a consultar a massa, a organizar um referendo ou
mesmo uma votação em todos os Sovietes locais, em todas as organizações locais, relativamente a pontos
determinados da política prática, por exemplo, se se deve entregar imediatamente todas as terras dos
latifundiários aos comités camponeses, se se deve dar satisfação a estas ou aquelas reivindicações dos
finlandeses ou dos ucranianos, etc.
E a questão da paz, esta questão fundamental de toda a vida actual. O proletariado está «isolado das
outras classes»... Na realidade, o proletariado actua aqui como representante de toda a nação, de tudo o que há
de vivo e de honesto em todas as classes, da gigantesca maioria da pequena burguesia, pois só o proletariado,
quando alcançar o poder, proporá imediatamente a todos os povos beligerantes uma paz justa, só o proletariado
tomará medidas verdadeiramente revolucionárias (publicação dos tratados secretos, etc.) para alcançar o mais
rapidamente possível uma paz o mais justa possível.
Não. Os senhores do Nóvaia Jizn, que gritam acerca do isolamento do proletariado, com isso apenas
exprimem o seu próprio medo subjectivo da burguesia. A situação objectiva na Rússia, indubitavelmente, é tal
que exactamente agora o proletariado não esta «isolado» da maioria da pequena burguesia. Exactamente agora,
depois da triste experiência da «coligação», o proletariado tem pelo seu lado a simpatia da maioria do povo.
Esta condição necessária para a conservação do poder pelos bolcheviques existe.
***
O segundo argumento consiste em que o proletariado está pretensamente «isolado das verdadeiras
forças vivas da democracia». O que isto significa, é impossível sabê-lo. Isto provavelmente é «grego», como
dizem os franceses nestes casos.
Os escritores do Nóvaia Jizn são gente ministeriável. Seriam perfeitamente aptos para ministros sob
os democratas-constitucionalistas. Pois o que se exige de tais ministros é precisamente habilidade para dizer
frases plausíveis e delambidas absolutamente sem nenhum sentido, com as quais se possa encobrir todas as
infâmias, com as quais por isso estão garantidos os aplausos dos imperialistas e dos sociais-imperialistas. Os
aplausos dosdemocratas-constitucionalistas, de Brechkóvskaia, de Plekhánov e C.a, estão assegurados aos
novojiznistas pela afirmação de que o proletariado está isolado das verdadeiras forças vivas da democracia,
pois diz-se aqui de forma indirecta — ou esta afirmação será compreendida como se o dissessem — que
os democratas-constitucionalistas, Brechkóvskaia, Plekhánov, Kérenski e C.a são «as forças vivas da
democracia».
Isto é falso. São forças mortas. A história da coligação o demonstrou.
Os novojiznistas, intimidados pela burguesia e pelo ambiente burguês-intelectual, consideram «viva» a
ala direita dos socialistas-revolucionários emencheviques, como o Vólia Naroda[N200], o Edinstvo, etc, que em
nada de substancial se distingue dos democratas-constitucionalistas. Mas nós consideramos vivo apenas o que

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está ligado às massas e não aos kulaques, apenas aqueles a quem as lições da coligação afastaram dela. As
«forças vivas activas» da democracia pequeno-burguesa são representadas pela ala esquerda dos socialistas-
revolucionários e mencheviques. O reforço desta ala esquerda, especialmente depois da contra-revolução de
Julho, é um dos indícios objectivos mais seguros de que o proletariado não está isolado.
Mostram-no ainda com maior evidência nos últimos tempos as vacilações dos socialistas-
revolucionários centristas para a esquerda, demonstradas pela declaração de Tchernov de 24 de Setembro de
que o seu grupo não pode apoiar a nova coligação com Kichkine e C.a. Estas vacilações para a esquerda do
centro socialista-revolucionário, que até este momento constituía a esmagadora maioria dos representantes do
partido dos socialistas-revolucionários, do partido que vai à cabeça e predomina pelo número de votos
recolhidos por ele na cidade e especialmente no campo, demonstram que as declarações do Delo Naroda por
nós citadas acima sobre a necessidade de a democracia, em certas condições, «garantir pleno apoio» a um
governo puramente bolchevique, que estas declarações não são, em todo o caso, apenas frases.
Factos como a recusa do centro socialista-revolucionário de apoiar a nova coligação com Kichkine ou a
preponderância dos adversários da coligação entre os mencheviques-defensistas das províncias (Jordânia no
Cáucaso, etc), são uma prova objectiva de que uma determinada parte das massas que até agora seguiam
os mencheviques e os socialistas-revolucionários apoiará um governo puramente bolchevique.
É precisamente das forças vivas da democracia que o proletariado da Rússia não está agora isolado.
***
Terceiro argumento: o proletariado «não poderá dominar tecnicamente o aparelho do Estado». Este é
talvez o argumento mais habitual, mais corrente. Merece a maior atenção por este motivo e também porque
aponta para uma das tarefas mais sérias, mais difíceis, que se colocarão ao proletariado vitorioso. Não há dúvida
de que estas tarefas são muito difíceis, mas se nós, que nos chamamos socialistas, apontarmos esta dificuldade
só para nos esquivarmos ao cumprimento de tais tarefas, na prática reduzir-se-ia a nada a diferença entre nós e
os servidores da burguesia. A dificuldade das tarefas da revolução proletária deve estimular os partidários do
proletariado a um estudo mais atento e concreto dos meios para realizar essas tarefas.
Por aparelho de Estado entende-se, em primeiro lugar, o exército permanente, a polícia e o
funcionalismo. Ao dizerem que o proletariado não poderá dominar tecnicamente este aparelho, os escritores
do Nóvaia Jizn revelam a mais extrema ignorância e a falta de desejo de ter em conta nem os factos da vida nem
as considerações feitas há muito na literatura bolchevique.
Os escritores do Nóvaia Jizn consideram-se todos, se não marxistas, pelo menos conhecedores do
marxismo, socialistas cultos. Mas Marx ensinou, na base da experiência da Comuna de Paris, que o
proletariado não pode simplesmente apossar-se da máquina de Estado já existente e pô-la em marcha para os
seus próprios fins, que o proletariado tem de destruir esta máquina e substituí-la por uma nova (disto falo mais
pormenorizadamente numa brochura de que a primeira parte está já terminada e que em breve se publicará
com o título: O Estado e a Revolução. A doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na
revolução). Esta nova máquina de Estado foi criada pela Comuna de Paris, e os Sovietes de deputados operários,
soldados e camponeses russos são um «aparelho de Estado» do mesmo tipo. Eu apontei muitas vezes esta
circunstância desde 4 de Abril de 1917, fala-se nisto nas resoluções das conferências bolcheviques e também na
literatura bolchevique. O Nóvaia Jizn, naturalmente, poderia declarar o seu completo desacordo tanto
com Marx como com os bolcheviques, mas iludir plenamente a questão da parte de um jornal que tão
frequentemente e tão altivamente injuria os bolcheviques pela pretensa falta de seriedade em relação às
questões difíceis, significa passar a si mesmo um atestado de pobreza.
O proletariado não pode «apossar-se» do «aparelho de Estado» e «pô-lo em movimento». Mas
pode destruir tudo o que existe de opressor, de rotineiro, de incorrigivelmente burguês no velho aparelho de
Estado, colocando em seu lugar um aparelho novo, seu. Este aparelho são precisamente os Sovietes de
deputados operários, soldados e camponeses.
Não é possível deixar de chamar simplesmente monstruoso o facto de que o Nóvaia Jizn se tenha
esquecido por completo deste «aparelho de Estado». Os novojiznistas, procedendo assim nos seus raciocínios
teóricos, no fundo fazem no domínio da teoria política o que os democratas-constitucionalistas fazem na prática
política. Pois se de facto o proletariado e a democracia revolucionária não necessitam de qualquer novo
aparelho de Estado, então os Sovietes perdem a raison d'etre(2*) e perdem o direito de existir, então
os democratas-constitucionalistas kornilovistas têm razão nos seus esforços para reduzir a nada os Sovietes!
Este monstruoso erro teórico e a cegueira política do Nóvaia Jizn são tanto mais monstruosos quanto
até os mencheviques-intemacionalistas (com os quais o Nóvaia Jizn formou um bloco nas últimas eleições para
a Duma urbana de Petrogrado) revelaram nesta questão uma certa aproximação em relação aos bolcheviques.
Assim, lemos na declaração da maioria dos Sovietes, que o camarada Mártov apresentou na Conferência
Democrática:

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«...Os Sovietes de deputados operários, soldados e camponeses, criados nos primeiros dias da revolução
pelo poderoso impulso da verdadeira actividade criadora do povo, formaram a nova tessitura do Estado
revolucionário, que substitui a tessitura gasta do Estado do velho regime...»
Isto é dito de uma maneira demasiado bela, isto é, o requinte da expressão encobre aqui a falta de
clareza do pensamento político. Os Sovietes nãosubstituíram ainda a velha «tessitura» e esta velha
«tessitura» não é o Estado do velho regime, mas o Estado tanto do tsarismo como da república burguesa. Mas
em todo o caso Mártov está aqui duas cabeças acima dos novojiznistas.
Os Sovietes são um novo aparelho de Estado que, em primeiro lugar, proporciona a força armada dos
operários e dos camponeses, e esta força não está, como a força do velho exército permanente, separada do
povo, mas ligada a ele do modo mais estreito; no aspecto militar, esta força é incomparavelmente mais
poderosa do que as anteriores; no aspecto revolucionário não pode ser substituída por qualquer outra. Em
segundo lugar, este aparelho proporciona uma ligação tão estreita, indissolúvel, com as massas, com a maioria
do povo, facilmente controlável e renovável, que não há absolutamente nada de semelhante no aparelho de
Estado anterior. Em terceiro lugar, este aparelho, em virtude da elegibilidade e amovibilidade da sua
composição pela vontade do povo, sem formalidades burocráticas, é muito mais democrático que os aparelhos
anteriores. Em quarto lugar, ele proporciona uma sólida ligação com as profissões mais diversas, facilitando
sem burocracia as reformas mais diversas com o mais profundo carácter. Em quinto lugar, proporciona uma
forma de organização da vanguarda, isto é, da parte mais consciente, mais enérgica, mais avançada das
classesoprimidas, dos operários e dos camponeses, sendo deste modo um aparelho mediante o qual a
vanguarda das classes oprimidas pode elevar, educar, instruir e guiar toda a gigantesca massa destas classes,
que até então estava completamente fora da vida política, fora da história. Em sexto lugar, proporciona a
possibilidade de unir as vantagens do parlamentarismo com as vantagens da democracia imediata e directa, isto
é, de unir na pessoa dos representantes eleitos do povo tanto a função legislativa como a execução das leis. Em
comparação com o parlamentarismo burguês, isto é um passo em frente no desenvolvimento da democracia
que tem uma importância histórica mundial.
Em 1905, os nossos Sovietes foram apenas, por assim dizer, um embrião, pois só existiram umas
semanas. É claro que nas condições de então estava fora de questão o seu desenvolvimento completo. Também
na revolução de 1917 isto está ainda fora de questão, pois o prazo de alguns meses é extremamente pequeno, e
principalmente: os chefes socialistas-revolucionários e mencheviques prostituíram os Sovietes, reduziram-nos
ao papel de lugares de conversa, ao papel de apêndices da política conciliadora dos chefes. Sob a direcção
dos Líber, dos Dan, dos Tseretéli e dos Tchernov, os Sovietes apodreciam e desagregavam-se em vida. Os
Sovietes só poderão desenvolver-se verdadeiramente, manifestar a plenitude das suas aptidões e capacidades
tomando todo o poder de Estado, pois de outro modo nada têm a fazer, de outro modo eles são simples
embriões (e é impossível ser embrião demasiado tempo) ou brinquedos. A «dualidade de poderes» é a paralisia
dos Sovietes.
Se a actividade criadora popular das classes revolucionárias não tivesse criado os Sovietes, a revolução
proletária na Rússia seria uma causa sem esperança, pois, com o velho aparelho, o proletariado
indubitavelmente não poderia conservar o poder, e é impossível criar de um só golpe o novo aparelho. A triste
história da prostituição tseretélista—tchernovista dos Sovietes, a história da «coligação», é ao mesmo tempo a
história da emancipação dos Sovietes das ilusões pequeno-burguesas, da sua passagem pelo «purgatório» do
estudo prático por eles de toda a baixeza e imundície de todas e quaisquer coligações burguesas. Tenhamos
esperança que o «purgatório» não tenha debilitado os Sovietes, mas os tenha temperado.
***
A principal dificuldade da revolução proletária é a realização à escala nacional do registo e controlo
mais preciso e mais consciencioso, do controlo operário sobre a produção e a distribuição dos produtos.
Quando os escritores novojiznistas nos objectavam que caíamos no sindicalismo ao avançar a palavra
de ordem de «controlo operário», esta expressão era um exemplo da aplicação escolar e tola do «marxismo»,
que não foi meditado, mas decorado à maneira struvista. O sindicalismo ou rejeita a ditadura revolucionária do
proletariado ou relega-a, tal como o poder político em geral, para o último lugar. Nós colocamo-la em primeiro
lugar. Se dissermos simplesmente no espírito dos novojiznistas: não controlo operário, mas controlo estatal,
obtemos uma frase reformista burguesa, obtemos, no fundo, uma fórmula puramente democrata-
constitucionalista, pois os democratas-constitucionalistas nada têm contra a participação dos operários no
controlo «estatal». Os democratas-constitucionalistas—kornilovistas sabem muito bem que tal participação é o
melhor meio de a burguesia enganar os operários, o melhor meio para subornar subtilmente, no sentido
político, todos os Gvózdev, Nikítine, Prokopóvitch, Tseretéli e todo este bando.
Quando dizemos: «controlo operário», colocando esta palavra de ordem sempre ao lado de ditadura do
proletariado, imediatamente a seguir a ela, explicamos com isto de que Estado se trata. O Estado é o órgão de
domínio de uma classe. De qual? Se é da burguesia, então é o Estado democrata-constitucionalista—

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kornilovista—«kerenskista», pelo qual o povo operário na Rússia é «kornilovizado e kerenskizado» há já mais
de meio ano. Se é do proletariado, se se trata de um Estado proletário, isto é, da ditadura do proletariado, então
o controlo operário pode tornar-se o registo nacional, universal, omnipresente, muitíssimo preciso e
consciencioso da produção e distribuição dos produtos.
Nisto está a dificuldade principal, nisto está a tarefa principal da revolução proletária, isto é, socialista.
Sem os Sovietes esta tarefa seria, pelo menos para a Rússia, insolúvel. Os Sovietes apontam o trabalho
organizativo do proletariado que pode resolver esta tarefa de importância histórica universal.
Chegámos aqui a outro aspecto da questão do aparelho de Estado. Além do aparelho
predominantemente de «opressão» do exército permanente, da polícia e do funcionalismo, existe no Estado
actual um aparelho ligado de modo particularmente estreito aos bancos e aos consórcios, um aparelho que
efectua uma grande quantidade de trabalho de cálculo e registo, se é lícito exprimirmo-nos assim. Este aparelho
não pode nem deve ser destruído. É preciso arrancá-lo da submissão aos capitalistas, cortar, separar, isolar dele
os capitalistas e os seus fios de influência, é preciso subordiná-lo aos Sovietes proletários, é preciso torná-lo
mais largo, mais universal, mais popular. E isto pode fazer-se, apoiando-se nas conquistas já realizadas pelo
grande capitalismo (assim como a revolução proletária em geral só apoiando-se nestas conquistas é capaz de
conseguir o seu objectivo).
O capitalismo criou aparelhos de registo na forma de bancos, consórcios, dos correios, sociedades de
consumidores, associações de empregados.Sem os grandes bancos o socialismo seria irrealizável.
Os grandes bancos são o «aparelho do Estado» de que necessitamos para realizar o socialismo e
que tomamos já pronto do capitalismo, e aqui a nossa tarefa consiste apenas em cortar aquilo que deforma do
ponto de vista capitalista este magnífico aparelho, em torná-lo ainda maior, ainda mais democrático, ainda mais
universal. A quantidade transformar-se-á em qualidade. Um banco único de Estado, o maior dos maiores, com
sucursais em cada distrito, junto de cada fábrica, isto é já nove décimos do aparelho socialista. Isto é
uma contabilidade nacional, um registo nacional da produção e distribuição dos produtos, isto, por assim dizer,
é como que o esqueleto da sociedade socialista.
Podemos «tomar» e «pôr em movimento» este «aparelho de Estado» (que sob o capitalismo não é
totalmente de Estado, mas que connosco, sob o socialismo, será inteiramente de Estado) de um só golpe, com
um só decreto, pois o trabalho efectivo de contabilidade, de controlo, de registo, de estatística e de cálculo é
executado aqui por empregados, a maioria dos quais se encontra numa situação de proletários ou semi-
proletários.
Com um só decreto do governo proletário pode-se e deve-se transferir todos estes empregados para a
situação de empregados do Estado — do mesmo modo que os cães de guarda do capitalismo, como Briand e
outros ministros burgueses, transferem os ferroviários em greve, com um só decreto, para a situação de
empregados do Estado. Precisaremos de muitos mais destes empregados do Estado, e pode-se obter mais, pois o
capitalismo simplificou as funções de registo e de controlo, reduziu-as a registos relativamente simples, ao
alcance de qualquer pessoa alfabetizada.
A «estatização» da massa dos empregados dos bancos, dos consórcios, do comércio, etc, etc, é uma
coisa perfeitamente realizável tanto tecnicamente (graças ao trabalho prévio para nós realizado pelo
capitalismo e pelo capitalismo financeiro) como politicamente, com a condição do controlo e da vigilância
dos Sovietes.
E com os altos empregados, que são muito poucos, mas que pendem para os capitalistas, somos
obrigados a proceder, como com os capitalistas, «com severidade». Eles, tal como os capitalistas,
oferecerão resistência. Esta resistência teremos de a quebrar, e se o eternamente
ingénuoPechekhónov balbuciava, já em Junho de 1917, como um autêntico «menino de Estado», que «a
resistência dos capitalistas foi quebrada», o proletariado realizará a sério esta frase pueril, esta fanfarronice
infantil, esta saída própria de uma criança.
Nós podemos fazê-lo, pois trata-se de quebrar a resistência de uma insignificante minoria da
população, literalmente um punhado de homens, sobre cada um dos quais as associações de empregados, os
sindicatos, as sociedades de consumidores e os Sovietes estabelecerão uma tal vigilância que cada Tit Títitch
ficará cercado como os franceses em Sedan[N201]. Conhecemos estes Tit Títitch pelo nome: basta tomar as
listas dos directores, dos membros das administrações, dos grandes accionistas, etc. São algumas centenas,
quando muito alguns milhares em toda a Rússia, o Estado proletário, com o aparelho dos Sovietes, associação
de empregados, etc, pode designar para cada um deles uma dezena e uma centena de controladores, de modo
que, em vez de «esmagar a resistência», talvez se consiga mesmo, por meio do controlo operário (sobre os
capitalistas) tornar qualquer resistênciaimpossível.
A «chave» da questão nem sequer estará em confiscar os bens dos capitalistas, mas precisamente no
controlo operário nacional, universal, sobre os capitalistas e os seus possíveis partidários. A confiscação só por
si não basta, pois nela não há nenhum elemento de organização, de cálculo de uma distribuição correcta.

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Substituiremos facilmente a confiscação pela imposição de um imposto justo (mesmo que com uma taxa
«chingariovista») — apenas excluiríamos a possibilidade de evitar a prestação de contas, de ocultar a verdade,
de fugir à lei. E só o controlo operário do Estado operário eliminará esta possibilidade.
A consorcização obrigatória, isto é, a união obrigatória em associações sob o controlo do Estado, eis o
que o capitalismo preparou, eis o que foi realizado na Alemanha pelo Estado dos junkers, eis o que será
completamente realizável na Rússia para os Sovietes, para a ditadura do proletariado, eis o que nos dará um
«aparelho de Estado» universal, moderno e não burocrático.(3*)
***
Quarto argumento dos advogados da burguesia: o proletariado não poderá «pôr em movimento» o
aparelho de Estado. Este argumento não representa nada de novo em comparação com o argumento
precedente. Naturalmente não poderíamos nem apossar-nos do velho aparelho nem pô-lo em movimento. O
novo aparelho, os Sovietes, já foi posto em movimento pelo «poderoso impulso da verdadeira actividade
criadora do povo». Apenas é necessário retirar a este aparelho as peias que lhe colocou a dominação dos
chefes socialistas-revolucionários e mencheviques. Este aparelho está já em marcha e só é preciso deitar fora as
monstruosas inutilidades pequeno-burguesas que o impedem de ir avante e avante a toda a velocidade.
Duas circunstâncias temos aqui de analisar, para completar o que dissemos acima: em primeiro lugar,
os novos meios de controlo criados não por nós, mas pelo capitalismo no seu estádio militar-imperialista; em
segundo lugar, a importância do aprofundamento do democratismo na administraçãode um Estado de tipo
proletário.
O monopólio do trigo e as senhas de racionamento de pão não foram criados por nós, mas pelo Estado
capitalista em guerra. Ele criou já o trabalho geral obrigatório no quadro do capitalismo, que é um presídio
militar para os operários. Mas também aqui, como em toda a sua actividade criadora histórica, o proletariado
toma as suas armas do capitalismo, não as «inventa», não as «cria do nada».
O monopólio do trigo, as senhas de racionamento de pão, o trabalho geral obrigatório são, nas mãos do
Estado proletário, nas mãos dos Sovietes investidos de todo o poder, o meio mais poderoso de registo e de
controlo, um meio tal que, tornado extensivo aos capitalistas e aos ricos em geral,aplicado a eles pelos
operários, representará uma força ainda nunca vista na história para «pôr em movimento» o aparelho de
Estado, para superar a resistência dos capitalistas, para os submeter ao Estado proletário. Este meio do
controlo e da obrigatoriedade de trabalhar é mais forte que as leis da Convenção[N202] e a sua guilhotina. A
guilhotina só intimidava, só quebrava a resistência activa. Para nós isto não basta.
Para nós isto não basta. Precisamos não apenas de «intimidar» os capitalistas, no sentido de que eles
sintam a omnipotência do Estado proletário e não pensem sequer em resistência activa a ele. Também
precisamos de quebrar a resistência passiva, indubitavelmente ainda mais perigosa e mais nociva. Precisamos
não só de quebrar a resistência, qualquer que seja. Precisamos de obrigar a trabalhar dentro do novo quadro da
organização do Estado. Não basta «pôr na rua os capitalistas», é preciso (depois de pôr na rua os «resistentes»
imprestáveis e incorrigíveis) colocá-los ao serviço do novo Estado. Isto diz respeito tanto aos capitalistas como a
certa camada superior da intelectualidade burguesa, dos empregados, etc.
E temos os meios para isso. O próprio Estado capitalista beligerante pôs nas nossas mãos os meios e as
armas para isto. Estes meios são: o monopólio do trigo, a senha de racionamento de pão, o trabalho geral
obrigatório. «Quem não trabalha não deve comer», eis a regra fundamental, a primeira e mais importante de
todas que os Sovietes de deputados operários podem aplicar na prática e aplicarão quando tomarem o poder.
Cada operário tem uma caderneta de trabalho. Este documento não o humilha, ainda
que agora, indubitavelmente, seja um documento da escravidão assalariada capitalista, um testemunho de que
o trabalhador pertence a este ou àquele parasita.
Os Sovietes introduzirão a caderneta de trabalho para os ricos, e depois gradualmente também para
toda a população (num país camponês, provavelmente, ainda por muito tempo a caderneta de trabalho não será
necessária para a esmagadora maioria do campesinato). A caderneta de trabalho deixará de ser um sinal da
«plebe», deixará de ser um documento das classes «inferiores», um testemunho da escravidão assalariada.
Converter-se-á num testemunho de que na nova sociedade já não há «operários» mas que em compensação não
há ninguém que não seja trabalhador.
Os ricos deverão receber do sindicato de operários ou empregados com o qual a sua esfera de
actividade se relacione mais de perto uma caderneta de trabalho, deverão todas as semanas, ou em qualquer
outro prazo determinado, receber deste sindicato um certificado de que cumprem conscienciosamente o seu
trabalho; sem isto não poderão receber as senhas de racionamento de pão ou víveres em geral. Precisamos de
bons organizadores da banca e da unificação de empresas (os capitalistas têm mais experiência neste assunto, e
com gente experimentada o trabalho é mais fácil), precisamos em número cada vez maior do que antes de
engenheiros, de agrónomos, de técnicos, de especialistas de todo o género com formação científica — dirá o
Estado proletário. A todos estes trabalhadores daremos um trabalho adequado às suas forças e aos seus

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hábitos, provavelmente só de forma gradual estabeleceremos a igualdade completa de salários, mantendo
durante o período de transição um salário mais elevado para estes especialistas, mas colocá-los-emos sob um
controlo operário em todos os aspectos, e conseguiremos a aplicação plena e incondicional do princípio: «quem
não trabalha não come». A forma de organização do trabalho não a inventamos, tomamo-la já pronta do
capitalismo — bancos, consórcios, as melhores fábricas, estações experimentais, academias, etc; só teremos que
adoptar os melhores modelos da experiência dos países avançados.
E, naturalmente, não cairemos de modo nenhum no utopismo, não abandonaremos o terreno do
cálculo prático mais sensato se dissermos: toda a classe dos capitalistas oporá a resistência mais obstinada, mas
a organização de toda a população em Sovietes quebrará essa resistência, e aos capitalistas especialmente
obstinados e recalcitrantes será necessário, claro, castigá-los com a confiscação de todos os seus bens e a prisão,
mas, em contrapartida, a vitória do proletariado aumentará o número de casos como o que, por exemplo, leio
no Izvéstia de hoje.
«A 26 de Setembro apresentaram-se no Conselho Central de Comités de Fábrica dois engenheiros
declarando que um grupo de engenheiros decidira constituir uma associação de engenheiros socialistas.
Considerando que o actual momento é na realidade o começo da revolução social, a associação põe-se à disposição
das massas operárias e deseja, em defesa dos interesses dos operários, actuar de pleno acordo com as organizações
operárias. Os representantes do Conselho Central de Comités de Fábrica responderam que o Conselho, na sua
organização, irá formar com muito gosto uma secção de engenheiros, cujo programa contenha as teses
fundamentais da I Conferência de Comités de Fábrica sobre o controlo operário da produção. Nos próximos dias
realizar-se-á uma reunião conjunta dos delegados do Conselho Central de Comités de Fábrica e do grupo de
iniciativa dos engenheiros socialistas» (Izvéstia TsIK de 27 de Setembro de 1917).
***
O proletariado não poderá — dizem-nos — pôr em movimento o aparelho de Estado.
Depois da revolução de 1905, governavam a Rússia 130 000 latifundiários, governavam através de
uma extrema violência sobre 150 milhões de pessoas com um escárnio sem limite, obrigando a imensa maioria
a um trabalho de forçados e a uma existência de semi-famintos.
E pretensamente não poderiam governar a Rússia 240 000 membros do partido bolchevique, governar
no interesse dos pobres e contra os ricos. Estas 240 000 pessoas têm já a seu favor, pelo menos, um milhão de
votos da população adulta, pois é precisamente esta a relação entre o número de membros do partido e o
número de votos nele que estabelece a experiência da Europa e a experiência da Rússia, quanto mais não seja,
por exemplo, as eleições de Agosto para a Duma de Petrogrado. Assim, temos já um "aparelho de Estado» de um
milhão de pessoas, fiéis ao Estado socialista ideologicamente e não para receber a 20 de cada mês uma bela
soma.
Mais ainda, temos um «meio maravilhoso» para imediatamente, de um só golpe, decuplicar o nosso
aparelho de Estado, um meio de que nunca dispôs nem pode dispor qualquer Estado capitalista. Esta coisa
maravilhosa é a integração dos trabalhadores, dos pobres, no trabalho quotidiano de direcção do Estado.
Para explicar como é fácil de aplicar esse meio maravilhoso, como é isento de erros na sua actividade,
tomaremos o exemplo mais simples e claro.
O Estado precisa de desalojar coercivamente uma determinada família de sua casa e de alojar outra.
Isto é o que faz a todo o momento o Estado capitalista, e irá fazê-lo também o nosso, o Estado proletário ou
socialista.
O Estado capitalista desaloja uma família de operários que perdeu a pessoa que a mantinha e deixa de
pagar a renda. Aparece o oficial de diligências, um polícia ou um guarda, todo um pelotão deles. Num bairro
operário, para executar um despejo é necessário um destacamento de cossacos. Porquê? Porque o oficial de
diligências e o «guarda» se negam a ir sem uma muito forte protecção militar. Sabem que o espectáculo do
despejo provoca em toda a população dos arredores, em milhares e milhares de pessoas quase levadas ao
desespero, uma ira tão furiosa, um tal ódio aos capitalistas e ao Estado capitalista, que o oficial de diligências e o
pelotão de guardas podem ser feitos em pedaços num instante. São necessárias grandes forças militares, para
uma grande cidade é preciso trazer alguns regimentos, necessariamente de qualquer região afastada, para que
os soldados sejam estranhos à vida dos pobres da cidade, para que os soldados não possam «ser contagiados»
pelo socialismo.
O Estado proletário precisa de alojar coercivamente na casa de um rico uma família extremamente
necessitada. O nosso destacamento da milícia operária é composto, suponhamos, por 15 pessoas: dois
marinheiros, dois soldados, dois operários conscientes (bastará que só um deles seja membro do nosso partido
ou simpatizante), 1 intelectual e 8 trabalhadores pobres, obrigatoriamente pelo menos 5 mulheres, criados,
trabalhadores não qualificados, etc. O destacamento apresenta-se em casa do rico, analisa-a, encontra 5 quartos,
dois homens e duas mulheres. — «Cidadãos, apertem-se durante este Inverno em dois quartos e preparem dois
quartos para a instalação neles de duas famílias que vivem em caves. Temporariamente, enquanto com a ajuda

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dos engenheiros (o senhor é engenheiro, não é?) não tivermos construído boas casas para todos, terão
forçosamente de se apertar um pouco. O vosso telefone servirá para dez famílias. Isto economizará umas 100
horas de trabalho, corridas para as lojas, etc. Além disso, há na vossa família dois semi-operários desocupados,
que podem executar um trabalho ligeiro: uma cidadã de 55 anos e um cidadão de 14. Estarão de serviço
diariamente 3 horas para velar pela justa distribuição de víveres para 10 famílias e fazer os registos necessários
para isto. O cidadão estudante que se encontra no nosso destacamento irá agora redigir em dois exemplares
esta ordem do Estado, e terão a bondade de nos darem uma declaração em que se comprometem a cumpri-la
fielmente.»
Assim, em minha opinião, poderia ser apresentada em exemplos evidentes a correlação entre o
aparelho estatal e a administração estatal velha, burguesa, e a nova, socialista.
Nós não somos utopistas. Sabemos que qualquer operário não qualificado e qualquer cozinheira não
são capazes neste momento de começar a dirigir o Estado. Nisso estamos de acordo tanto com os democratas-
constitucionalistas como com Brechkóvskaia e com Tseretéli. Mas diferenciamo-nos destes cidadãos em que
exigimos a ruptura imediata com o preconceito de que administrar o Estado, levar a cabo o trabalho diário,
quotidiano de administração, é coisa que só podem fazer os ricos ou funcionários provenientes de famílias ricas.
Nós exigimos que a aprendizagem dos assuntos da administração do Estado seja realizada pelos operários e
soldados conscientes e que ela seja iniciada imediatamente, isto é, que imediatamente se comece a fazer
participar nesta aprendizagem todos os trabalhadores, todos os pobres.
Sabemos que os democratas-constitucionalistas também estão de acordo em ensinar ao povo o
democratismo. As damas democratas-constitucionalistas estão de acordo em dar conferências às criadas sobre
a igualdade de direitos da mulher, segundo as melhores fontes inglesas e francesas. E também num próximo
concerto-comício, perante milhares de pessoas, será organizada no palco uma troca de beijos: a dama
conferencistademocrata-constitucionalista beijará Brechkóvskaia, Brechkóvskaia o ex-ministro Tseretéli, e o
povo agradecido aprenderá deste modo eloquentemente o que são a igualdade, a liberdade e a fraternidade
republicanas...
Sim, estamos de acordo em que os democratas-constitucionalistas, Brechkóvskaia e Tseretéli, são, a
seu modo, dedicados ao democratismo e propagandeiam-no entre o povo. Mas que fazer, se temos uma
concepção um tanto diferente do democratismo?
No nosso modo de ver, para aligeirar os inauditos sofrimentos e desgraças da guerra, bem como para
curar as horríveis feridas que a guerra causou ao povo, é necessário um democratismo revolucionário, são
necessárias medidas revolucionárias, precisamente do tipo das que descrevemos como exemplo na distribuição
de habitações no interesse dos pobres. Precisamente assim é preciso proceder tanto na cidade como no campo
com os produtos alimentares, com a roupa, com o calçado, etc, e no campo com a terra, etc. Para administrar o
Estado neste espírito, podemos dispor imediatamente de um aparelho estatal de uns dez, senão mesmo vinte
milhões de homens, um aparelho como ainda nenhum Estado capitalista conheceu. Só nós podemos criar este
aparelho, porque temos assegurada a simpatia mais completa e sem reservas da gigantesca maioria da
população. Só nós podemos criar este aparelho, porque temos operários conscientes, disciplinados por uma
longa «escola» capitalista (não é em vão que estivemos na escola do capitalismo), que são capazes de criar uma
milícia operária e de gradualmente a ampliarem (começando a ampliar imediatamente) para a transformarem
em milíciade todo o povo. Os operários conscientes devem dirigir, mas podem integrar no trabalho de
administração verdadeiras massas de trabalhadores e oprimidos.
É claro que os erros são inevitáveis nos primeiros passos deste novo aparelho; mas não cometeram
erros os camponeses, quando passaram da servidão para a liberdade e começaram a resolver eles próprios os
seus assuntos? Haverá outro caminho para ensinar o povo a governar-se a si mesmo, para evitar os erros, que
não seja o caminho da prática? que não seja o começo imediato do verdadeiro auto-governo popular? Agora o
mais importante é acabar com o preconceito intelectual burguês de que só podem dirigir o Estado funcionários
especiais, totalmente dependentes do capital por toda a sua posição social. O mais importante é pôr fim a um
estado de coisas em que os burgueses, os funcionários e os ministros «socialistas» tentam dirigir como no
passado, mas não podem dirigir, e depois de sete meses obtêm uma insurreição camponesa num país
camponês!! O mais importante é incutir nos oprimidos e nos trabalhadores a confiança nas suas forças,
mostrar-lhes na prática que podem e devem encarregar-se eles próprios de uma
distribuição correcta, severamente regulamentada, organizada, do pão, de todos os alimentos, do leite, do
vestuário, da habitação, etc, no interesse dos pobres. Sem isto não há salvação da Rússia da bancarrota e da
ruína, e ao iniciar-se honesta e corajosamente em toda a parte a entrega dos assuntos da administração nas
mãos dos proletários e semi-proletários, originar-se-á um entusiasmo revolucionário das massas nunca visto na
história, multiplicar-se-ão de tal modo as forças do povo na luta contra as desgraças, que muitas coisas que
parecem impossíveis para as nossas estreitas e velhas forças burocráticas se tornarão realizáveis para as forças

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da massa de milhões de homens que começam a trabalhar para si mesmos e não para o capitalista, para o
fidalgote, para o burocrata, e não por medo ao cacete.
***
Com a questão do aparelho de Estado relaciona-se também a questão do centralismo, que foi colocada
de uma maneira particularmente enérgica e com particular falta de êxito pelo camarada Bazárov, no número
138 do Nóvaia Jizn de 27 de Setembro, no artigo: Os Bolcheviques e o Problema do Poder.
O camarada Bazárov raciocina deste modo:
«Os Sovietes não são um aparelho adaptado a todos os domínios da vida do Estado», pois uma
experiência de sete meses, segundo ele, mostrou, «dezenas e centenas de dados documentais que a Secção
Económica do Comité Executivo de Petersburgo possui» confirmaram que os Sovietes, embora em muitos locais
tenham utilizado de facto «toda a plenitude do poder», «não conseguiram alcançar resultados minimamente
satisfatórios no domínio da luta contra a ruína». É necessário um aparelho «dividido por ramos de produção,
rigorosamente centralizado dentro de cada ramo e subordinado a um centro único nacional». «Trata-se — vede
bem — não de substituir o velho aparelho, mas apenas de o reformar... por mais que os bolcheviques
escarneçam dos homens que têm um plano...»
Todos estes raciocínios do camarada Bazárov são assombrosamente fracos, como um decalque dos
raciocínios da burguesia, de cujo ponto de vista de classe são o reflexo!
De facto, é simplesmente ridículo (a não ser que se trate de uma repetição da egoísta mentira de classe
dos capitalistas) dizer que os Sovietes tenham tido onde quer que seja na Rússia «toda a plenitude do poder».
Toda a plenitude do poder exige o poder sobre toda a terra, sobre todos os bancos, sobre todas as fábricas; e
quem conhecer minimamente a experiência da história e os dados da ciência sobre a ligação da política com a
economia, não poderá «esquecer» esta «pequena» circunstância.
O método enganador da burguesia consiste em, não dando o poder aos Sovietes, sabotando todos os
seus passos sérios, conservando o governo nas suas mãos, conservando o poder sobre a terra e sobre os bancos,
etc, atirar para cima dos Sovietes a culpa pela ruína!! Nisto consiste também toda a triste experiência da
coligação.
Os Sovietes nunca tiveram a plenitude do poder, e as suas medidas nunca puderam ser mais que
paliativos que aumentaram a confusão.
Demonstrar aos bolcheviques, centralistas por convicção e por programa e por táctica de todo o seu
partido, a necessidade do centralismo significa verdadeiramente arrombar uma porta aberta. Se os escritores
do Nóvaia Jizn se dedicam a esta ocupação vazia, é apenas porque nada compreenderam do sentido e da
importância dos nossos gracejos sobre o seu ponto de vista «nacional». E os novojiznistas não compreenderam
isto porque reconhecem a teoria da luta de classes apenas em palavras e não por convicção. Repetindo palavras
aprendidas de cor acerca da luta de classes, a cada momento se desviam para o «ponto de vista supra-classista»,
teoricamente ridículo e praticamente reaccionário, chamando a este servilismo para com a burguesia plano
«nacional».
O Estado, estimados senhores, é um conceito de classe. O Estado é um órgão ou uma máquina de
violência de uma classe sobre outra. Enquanto for uma máquina para a violência da burguesia sobre o
proletariado, até então a palavra de ordem proletária só poderá ser uma: destruição desse Estado. Mas quando
o Estado for proletário, quando for uma máquina de violência do proletariado sobre a burguesia, então seremos
plena e incondicionalmente partidários de um poder firme e do centralismo.
Falando em termos mais populares: não nos rimos dos «planos», mas de que Bazárov e C.a não
compreendem que, negando o «controlo operário», negando a «ditadura do proletariado», eles são pela
ditadura da burguesia. Não há meio termo, o meio termo é apenas um sonho oco de democrata pequeno-
burguês.
Nenhum órgão central, nenhum bolchevique nunca se pronunciou contra o centralismo dos Sovietes,
contra a sua unificação. Nenhum de nós tem nada a objectar aos comités de fábrica por ramos de produção e à
sua centralização. Bazárov atira ao lado.
Nós rimos, ríamos e riremos não do «centralismo», não dos «planos», mas do reformismo. Porque,
depois da experiência da coligação, o vosso reformismo é excepcionalmente risível. E falar «não de substituir o
aparelho, mas de o reformar» significa ser reformista, significa tornar-se não democrata revolucionário, mas
democrata reformista. O reformismo outra coisa não é que concessões da classe dirigente e não o seu
derrubamento, concessões conservando o poder nas suas mãos.
É isto precisamente o que foi provado por meio ano de coligação.
E é disso que nos rimos. Bazárov, não meditando na teoria da luta de lasses, deixa-se apanhar pela
burguesia que canta em coro: «é assim, precisamente assim, não nos opomos de modo nenhum às reformas,
somos partidários da participação dos operários no controlo a nível nacional, estamos perfeitamente de
acordo», e o bom do nosso Bazárov desempenha objectivamente o papel de porta-voz dos capitalistas.

97
Assim foi sempre, assim será sempre com as pessoas que, em situações de aguda luta de classes,
tentam ocupar uma posição «intermédia». E é precisamente porque os escritores do Nóvaia Jizn não conseguem
compreender a luta de classes que a sua política é uma eterna vacilação tão risível entre a burguesia e o
proletariado.
Ponham-se a fazer «planos», caros cidadãos, isso não é política, isso não é luta de classes, aqui podeis
prestar um bom serviço ao povo. Tendes no vosso jornal uma quantidade de economistas. Uni-vos aos
engenheiros, etc, que estão dispostos a estudar as questões da regulação da produção e da distribuição, dedicai
o suplemento do vosso grande «aparelho» (jornal) ao estudo prático dos dados precisos sobre a produção e a
distribuição dos produtos na Rússia, sobre os bancos e os consórcios, etc, etc. — eis como prestareis um serviço
ao povo, aqui a vossa posição entre duas cadeiras não será particularmente nociva, eis qual o trabalho em
matéria de «planos» que provocará não o riso mas o reconhecimento dos operários.
Quando vencer o proletariado fará assim: porá os economistas, os engenheiros, os agrónomos, etc, sob
o controlo das organizações operárias, a elaborar um «plano», a verificá-lo, à procura dos meios de economizar
trabalho por meio da centralização, à procura das medidas e métodos de controlo mais simples, mais barato,
mais conveniente e universal. Por isto pagaremos aos economistas, aos estatísticos, aos técnicos bom dinheiro,
mas... não lhes daremos de comer se não executarem este trabalho conscienciosa e inteiramente no interesse dos
trabalhadores.
Somos pelo centralismo e por um «plano», mas por um centralismo e por um plano do
Estado proletário, pela regulação proletária da produção e da distribuição no interesse dos pobres, dos
trabalhadores e explorados, contra os exploradores. E estamos de acordo em reconhecer como «à escala
nacional» apenas aquele que quebre a resistência dos capitalistas, que dê toda a plenitude do poder à maioria
do povo, isto é, aos proletários e semi-proletários, aos operários e camponeses pobres.
***
O quinto argumento consiste em que os bolcheviques não conservarão o poder, pois «a situação é
excepcionalmente complicada...».
Oh, que espertalhões! Estão prontos, talvez, a reconciliar-se com a revolução — mas sem uma
«situação excepcionalmente complicada».
Tais revoluções não existem, e os suspiros por tais revoluções não são mais que lamentos
reaccionários de intelectual burguês. Ainda que a revolução comece numa situação que, aparentemente, não é
muito complicada, a própria revolução, no seu desenvolvimento, cria sempre uma
situaçãoexcepcionalmente complicada. Porque uma revolução, uma revolução verdadeira, profunda, «popular»,
segundo a expressão de Marx[N203], é um processo incrivelmente complicado e doloroso de agonia da velha
ordem social e de nascimento da nova ordem social, de um novo modo de vida de dezenas de milhões de
homens. A revolução é a luta de classes e a guerra civil mais agudas, mais furiosas, mais encarniçadas. Na
história não houve uma só grande revolução sem guerra civil. E só um homem enconchado[N204] pode pensar
que uma guerra civil é concebível sem uma «situação excepcionalmente complicada».
Se não tivesse havido situações excepcionalmente complicadas não teria também havido revoluções.
Quem tem medo dos lobos não se meta pelo bosque.
No quinto argumento nada há para analisar, pois não há nele quaisquer pensamentos económicos,
nem políticos, nem quaisquer outros em geral. Nele há apenas suspiros, suspiros de homens aflitos e assustados
com a revolução. Permitir-me-ei, para caracterizar estes suspiros, duas pequenas recordações pessoais.
Uma conversa com um engenheiro rico pouco antes das jornadas de Julho. Este engenheiro foi em
tempos revolucionário, foi membro do partido social-democrata e até do bolchevique. Agora todo ele é medo,
ódio aos operários enfurecidos e indomáveis. Ainda se estes operários fossem como os alemães — diz ele
(homem culto, que esteve no estrangeiro) — eu, naturalmente, compreendo em geral a inevitabilidade da
revolução social, mas no nosso país, com o baixo nível dos nossos operários que a guerra trouxe... isto não é
uma revolução, isto é o abismo.
Ele estaria pronto a reconhecer a revolução social se a história conduzisse a ela de maneira tão
pacífica, tão tranquila, tão suave e tão precisa como um comboio rápido alemão chega à estação. O solene
revisor abre as portas da carruagem e exclama: «estação revolução social. Alle aussteigen (toda a gente sai)!».
Então porque não passar da situação de engenheiro sob os Tit Títitch para a situação de engenheiro sob as
organizações operárias?
Este homem viu greves. Sabe que tempestade de paixões se levanta sempre, mesmo nos tempos mais
pacíficos, na greve mais vulgar. E compreende, naturalmente, quantos milhões de vezes mais forte essa
tempestade deve ser quando a luta de classes levanta todos os trabalhadores de um país enorme, quando a
guerra e a exploração levaram quase ao desespero milhões de homens, martirizados durante séculos pelos
latifundiários, saqueados e maltratados durante décadas pelos capitalistas e pelos funcionários tsaristas.

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Compreende «teoricamente» tudo isto, reconhece tudo isto apenas em palavras, simplesmente está assustado
com a «situação excepcionalmente complicada».
Depois das jornadas de Julho, graças à atenção especialmente solícita com que me honrou o governo
de Kérenski, tive de ir para a clandestinidade. Naturalmente, eram os operários que nos escondiam. Num
distante subúrbio operário de Petrogrado, numa pequena casa de operários, dão-nos almoço. A dona da casa
traz pão. O dono da casa diz: «Olha que magnífico pão. Agora 'eles' não se atrevem, claro, a dar-nos pão mau. Até
já nos tínhamos esquecido de que em Petrogrado podem dar pão bom.»
Surpreendeu-me esta apreciação de classe das jornadas de Julho. O meu pensamento girava em torno
do significado político do acontecimento, pesava o seu papel no curso geral dos acontecimentos, analisava de
que situação decorria este ziguezague da história e que situação criaria, como devíamos mudar as nossas
palavras de ordem e o nosso aparelho do partido para o adaptar à situação em mudança. Eu, homem que não
conheci necessidades, não tinha pensado no pão. Para mim, o pão era como qualquer coisa que existia por si
mesma, como uma espécie de produto derivado do trabalho do escritor. Ao que é a base de tudo, à luta de
classes pelo pão, chega o pensamento através da análise política por um caminho extraordinariamente
complicado e confuso.
Mas um representante da classe oprimida, embora fosse um dos operários bem pagos e instruídos,
agarra directamente o touro pelos cornos com esta simplicidade e esta franqueza admiráveis, com esta firme
decisão, com esta assombrosa clareza de pensamentos de que nós, os intelectuais, estamos tão afastados como
das estrelas do céu. Todo o mundo se divide em dois campos: «nós», os trabalhadores, e «eles», os exploradores.
Nem sombra de perplexidade pelo acontecido: é apenas uma das batalhas na longa luta do trabalho contra o
capital. Onde trabalha o machado saltam estilhas.
«Que coisa dolorosa esta 'situação excepcionalmente complicada' da revolução» — assim pensa e
sente o intelectual burguês.
«Demos-'lhes' um apertão, 'eles' não se atrevem a ser tão insolentes como antes. Mais um apertão,
derrubá-los-emos completamente» — assim pensa e sente o operário.
***
Sexto e último argumento: o proletariado «não será capaz de resistir a toda a pressão das forças
inimigas que varrerá não só a ditadura do proletariado mas além disso toda a revolução».
Não tenteis assustar-nos, senhores, porque não nos assustareis. Vimos essas forças inimigas e a sua
pressão na kornilovada (de que a kerenskiadaem nada se diferencia). Como o proletariado e o campesinato
pobre varreram a kornilovada, em que situação lamentável e desamparada se encontraram os partidários da
burguesia e os poucos representantes das camadas locais de pequenos proprietários de terra particularmente
abastados e particularmente «inimigos» da revolução, isto todos viram, disto o povo lembra-se. O Delo
Naroda de 30 de Setembro, exortando os operários a «aceitarem com paciência» a kerenskiada (isto é,
a kornilovada) e a forjada Duma tsereteliana-buliguiniana até à Assembleia Constituinte (convocada sob a
protecção de «medidas militares» contra o campesinato insurrecto!), o Delo Naroda repete esganiçando-se
precisamente o sexto argumento doNóvaia Jizn e gritando até enrouquecer: «o governo de Kérenski não se
submeterá em nenhum caso» (ao poder dos Sovietes, ao poder dos operários e camponeses, que o Delo
Naroda, para não ficar atrás dos pogromistas e dos anti-semitas, dos monárquicos e dos democratas-
constitucionalistas, chama o poder «de Trótski e Lénine»: eis até que métodos chegam os socialistas-
revolucionários!!).
Mas nem o Nóvaia Jizn nem o Delo Naroda assustarão os operários conscientes. «O governo
de Kérenski — dizeis — não se submeterá em nenhum caso», isto é, falando em termos mais simples, mais
directos e mais claros, repetirá a kornilovada. E os senhores do Delo Naroda atrevem-se a dizer que isto seria
uma «guerra civil», que isto é uma «perspectiva terrível»!
Não, senhores, não enganareis os operários. Não será uma guerra civil, mas um motim desesperado de
um punhado de kornilovistas: se eles desejam «não se submeter» ao povo e incitá-lo a todo o custo a repetir em
vasta escala o que aconteceu em Viborg com os kornilovistas, se ossocialistas-revolucionários desejam isto, se o
membro do partido socialista-revolucionário Kérenski deseja isto, pode levar o povo à exasperação. Mas com
isto, senhores, não assustareis os operários e os soldados.
Que desfaçatez sem limites: forjaram uma nova Duma buliguiniana, por meio de fraudes aliciaram em
seu auxílio cooperativistas reaccionários,kulaques do campo, acrescentaram-lhes capitalistas e latifundiários
(os chamados elementos censitários), e com este bando de kornilovistas queremsabotar a vontade do povo, a
vontade dos operários e camponeses.
Levaram as coisas a tal ponto num país camponês que por toda a parte a insurreição camponesa se
estende como um largo rio! Ora pensem: numa república democrática em que 80% da população são
camponeses, levaram-nos a uma insurreição camponesa... Esse mesmo Delo Naroda, jornal deTchernov, órgão

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do partido dos «socialistas-revolucionários», que a 30 de Setembro tem a desvergonha de aconselhar os
operários e camponeses a «terem paciência», no seu editorial de 29 de Setembro viu-se obrigado a reconhecer:
«Até este momento quase nada se fez para suprimir as relações de servidão que ainda dominam no
campo precisamente da Rússia central.»
No mesmo editorial de 29 de Setembro, este mesmo Delo Naroda diz que «o pulso stolipiniano ainda se
faz sentir fortemente» nos métodos dos «ministros revolucionários». Isto é, por outras palavras, falando mais
clara e simplesmente, chama stolipinianos a Kérenski, Nikítine, Kichkine e
C.a
Os «stolipinianos» Kérenski e C.a, que levaram os camponeses à insurreição, adoptam agora «medidas
militares» contra os camponeses e consolam o povo com a convocação da Assembleia Constituinte
(embora Kérenski e Tseretéli já tenham enganado o povo uma vez, declarando solenemente a 8 de Julho que a
Assembleia Constituinte seria convocada a 17 de Setembro, na data fixada, e depois faltaram à sua palavra e
adiaram a convocatória da Assembleia Constituinte, contrariamente ao conselho até
do menchevique Dan, adiaram a Assembleia Constituinte não para fins de Outubro, como queria o CEC
menchevique de então, mas para fins de Novembro). Os «stolipinianos» Kérenski e C.a consolam o povo com a
convocação próxima da Assembleia Constituinte, como se o povo pudesse acreditar em quem mentiu uma vez
num caso semelhante, como se o povo pudesse acreditar na convocação regular da Assembleia Constituinte por
um governo que toma medidas militares em aldeias remotas, isto é, que encobre claramente as prisões
arbitrárias de camponeses conscientes e a falsificação das eleições.
Levar os camponeses à insurreição e ter a desvergonha de lhes dizer: «é preciso 'ter paciência', é
preciso esperar, ter confiança num governo que reprime com 'medidas militares' os camponeses insurrectos!»
Levar as coisas até à morte de centenas de milhares de soldados russos na ofensiva depois de 19 de
Junho, até ao prolongamento da guerra, até à insurreição dos marinheiros alemães, que atiram os seus
superiores à água, levar as coisas até aqui, palrando todo o tempo de paz, sem propor uma paz justa a todos os
beligerantes, e ter a desvergonha de dizer aos operários e camponeses, aos soldados que morrem: «é necessário
ter paciência», tende confiança no governo do «stolipiniano» Kérenski, tende confiança mais um mês nos
generais kornilovistas, talvez durante este mês mandem para o matadouro mais algumas dezenas de milhares
de soldados... «É necessário ter paciência.»
Não é isto desvergonha??
Não, senhores socialistas-revolucionários, colegas de partido de Kérenski, não enganareis os soldados!
Os operários e soldados não tolerarão o governo de Kérenski nem um só dia, nem uma só
hora mais, pois sabem que um governo dos Sovietes faráimediatamente a todos os beligerantes a proposta de
uma paz justa e consequentemente conseguirá, segundo toda a probabilidade, um armistício imediato e uma paz
rápida.
Nem um só dia, nem uma só hora mais tolerarão os soldados do nosso exército de camponeses que,
contra a vontade dos Sovietes, se mantenha o governo de Kérenski, que reprime com medidas militares a
insurreição camponesa.
Não, senhores socialistas-revolucionários, colegas de partido de Kérenski, não enganareis mais os
operários e os camponeses.
***
Na questão da pressão das forças inimigas que, segundo assegura o Nóvaia Jizn mortalmente
assustado, varrerá a ditadura do proletariado, há ainda um monstruoso erro lógico e político, que só podem
deixar de ver aqueles que se deixaram assustar quase até à irresponsabilidade.
«A pressão das forças inimigas varrerá a ditadura do proletariado» — dizeis. Muito bem. Mas vós sois
todos economistas e pessoas instruídas, queridos concidadãos. Todos sabeis que é um absurdo e uma prova de
ignorância confrontar a democracia com a burguesia, que isto é o mesmo que confrontar puds com archinas.
Porque há uma burguesia democrática e camadas não democráticas (capazes de uma Vendeia) da pequena
burguesia.
«Forças inimigas» — isso é uma frase. O que é um conceito de classe é a burguesia (a favor da qual
estão também os latifundiários).
A burguesia juntamente com os latifundiários, o proletariado, a pequena burguesia, os pequenos
proprietários e, em primeiro lugar, os camponeses — eis as três «forças» fundamentais em que a Rússia se
divide, como qualquer país capitalista. Eis as três «forças» fundamentais que desde há muito tempo foram
reveladas em cada país capitalista (e na Rússia) não só pela análise económica científica mas também
pela experiência política de toda a história moderna de todos os países, pela experiência de todas as revoluções
europeias desde o século XVIII, pela experiência das duas revoluções russas de 1905 e 1917.
Assim, ameaçais os proletários de que a pressão da burguesia varrerá o seu poder? É a isto e só a isto
que se reduz a vossa ameaça, não tem qualquer outro conteúdo.

100
Muito bem. Se a burguesia, por exemplo, pode varrer o poder dos operários e camponeses pobres,
então nada mais resta senão a «coligação», isto é, a aliança ou o acordo entre os pequenos burgueses e a
burguesia. É impossível conceber outra coisa!!
Mas a coligação tentada durante meio ano conduziu ao fracasso, e vós próprios, queridos cidadãos
do Nóvaia Jizn, que não sabeis pensar,renunciastes à coligação.
Qual é então o resultado?
Tanto vos enredastes, cidadãos do Nóvaia Jizn, de tal modo vos deixastes assustar, que já não sois
capazes de levar até ao fim o mais simples raciocínio, de contar já não até cinco, mas até três.
Ou todo o poder à burguesia — isto não o defendeis há muito, e a própria burguesia não se atreve
mesmo a insinuá-lo, sabendo que já em 20-21 de Abril o povo, com um só movimento de ombros, derrubou esse
poder e o derrubará agora três vezes mais decidida, mais implacavelmente. Ou o poder à pequena burguesia,
isto é, à sua coligação (aliança, acordo) com a burguesia, pois a pequena burguesia não quer e não pode tomar o
poder, autónoma e independentemente, como demonstrou a experiência de todas as revoluções, como
demonstra também a ciência económica, que explica que num país capitalista é possível estar pelo capital, é
possível estar pelo trabalho, mas não é possível manter-se no meio. Esta coligação já experimentou na Rússia
durante meio ano mais de uma dúzia de métodos e fracassou.
Ou, finalmente, todo o poder aos proletários e aos camponeses pobres, contra a burguesia, para
quebrar a sua resistência. Isto ainda não se experimentou, e vós, senhores do Nóvaia Jizn, desaconselhais isto ao
povo, tentando assustá-lo com o vosso próprio medo perante a burguesia.
Não se pode inventar uma quarta via.
Portanto, se o Nóvaia Jizn teme a ditadura do proletariado e renuncia a ela por causa de uma derrota
pretensamente possível do poder proletário pela burguesia, isto equivale a um regresso furtivo à posição
de conciliação com os capitalistas!!! É claro como o dia que quem teme a resistência, quem não acredita na
possibilidade de quebrar esta resistência, quem ensina ao povo: «temei a resistência dos capitalistas, não
podereis com ela», com isso mesmo apela de novo à conciliação com os capitalistas.
O Nóvaia Jizn enredou-se impotente e lamentavelmente, como se enredaram agora os democratas
pequeno-burgueses que vêem a falência da coligação, que não ousam defendê-la abertamente, mas que, ao
mesmo tempo, defendidos pela burguesia, temem o poder pleno dos proletários e do campesinato pobre.
***
Temer a resistência dos capitalistas e, ao mesmo tempo, chamar-se a si próprio revolucionário, querer
figurar entre os socialistas - que vergonha! Que decadência ideológica do socialismo mundial corrompido pelo
oportunismo foi necessária para poderem surgir tais vozes!
Nós já vimos, todo o povo viu, a força da resistência dos capitalistas, pois os capitalistas são mais
conscientes do que outras classes e logo compreenderam a importância dos Sovietes, logo puseram em tensão
até ao último grau todas as suas forças, recorreram a tudo, lançaram mão de todos os meios, chegaram a
recursos inauditos de mentira e de calúnia, às conspirações militares, para fazer fracassar os Sovietes, para os
reduzir a nada, para os prostituir (com a ajuda dos mencheviques e socialistas-revolucionários), para os
transformar em locais de conversa, para cansar os camponeses e os operários com meses e meses do
palavreado mais oco e do jogo à revolução.
Mas ainda não vimos a força da resistência dos proletários e dos camponeses pobres, pois esta força só
se revelará em toda a sua dimensão quando o poder estiver nas mãos do proletariado, quando dezenas de
milhões de homens esmagados pelas necessidades e pela escravidão capitalista virem na
experiência, sentirem que o poder no Estado pertence às classes oprimidas, que o poder ajuda os pobres a lutar
contra os latifundiários e os capitalistas,quebra a sua resistência. Só então poderemos ver quanta força ainda
intacta de resistência contra os capitalistas dormita no povo, só então se revelará o que Engels chama o
«socialismo latente»[N205], só então, por cada dez mil inimigos abertos ou ocultos, que se revelam a si próprios
pela acção ou pela resistência passiva, do poder da classe operária, se levantará um milhão de novos
combatentes, até agora politicamente adormecidos, que vegetavam nos tormentos da necessidade e no
desespero, que tinham perdido já a fé em que também eles são pessoas, em que também eles têm direito à vida,
em que todo o poderio de um Estado moderno centralizado pode estar ao seu serviço e em que os
destacamentos da milícia proletária também os chamam a eles, com plena confiança, à participação directa,
mais próxima e quotidiana na administração do Estado.
Com a participação benevolente dos Plekhánov, Brechkóvskaia, Tseretéli, Tchernov e C.a, os
capitalistas e latifundiários tudo fizeram para sujar a república democrática, para sujá-la com o seu servilismo
perante a riqueza até ao ponto em que a apatia e a indiferença dominam o povo, tudo lhe é igual, pois um
faminto não pode distinguir a república da monarquia, um soldado que tirita de frio, descalço, martirizado, que
morre por interesses alheios, não está em condições de amar a república.

101
Mas quando o último operário não qualificado, qualquer desempregado, cada cozinheira, todo o
camponês arruinado, virem — não pelos jornais, mas virem com os próprios olhos — que o poder proletário
não rasteja perante a riqueza, mas ajuda os pobres, que este poder não recua perante as medidas
revolucionárias, que tira os produtos supérfluos aos parasitas e os dá aos famintos, que instala à força nas
residências dos ricos os que não têm tecto, que obriga os ricos a pagar o leite mas não lhes dá uma gota de leite
enquanto não forem dele abastecidos em quantidades suficientes as crianças detodas as famílias pobres, que a
terra passa para os trabalhadores, as fábricas e os bancos para o controlo dos operários, que um castigo
imediato e severo espera os milionários que escondem as suas riquezas — quando os pobres virem e sentirem
isto, então nenhuma força dos capitalistas e doskulaques, nenhuma força do capital financeiro mundial que
maneja centenas de milhares de milhões, vencerá a revolução popular, mas, pelo contrário,ela vencerá no
mundo inteiro, pois a revolução socialista amadurece em todos os países.
A nossa revolução é invencível se não tiver medo de si própria, se entregar toda a plenitude do poder
ao proletariado, pois connosco estão ainda forças infinitamente maiores, mais desenvolvidas, mais organizadas
do proletariado mundial, temporariamente esmagadas pela guerra, mas não suprimidas, e, pelo contrário,
multiplicadas por ela.
***
Temer que o poder dos bolcheviques, isto é, o poder do proletariado, que tem assegurado o apoio sem
reservas do campesinato pobre, seja «varrido» pelos senhores capitalistas! Que miopia, que vergonhoso temor
do povo, que hipocrisia! Os que dão provas desse temor pertencem a essa «alta sociedade» (alta segundo o
critério capitalista, mas, de facto, apodrecida) que pronuncia a palavra «justiça» sem acreditar nela, por hábito,
como uma frase, sem lhe dar qualquer conteúdo.
Eis um exemplo:
O senhor Pechekhónov é um conhecido semidemocrata-constitucionalista. Não se encontrará
um trudovique e correligionário mais moderado dasBrechkóvskaia e dos Plekhánov. Nunca houve ministro
mais servil diante da burguesia. O mundo nunca viu partidário mais caloroso da «coligação», do acordo com os
capitalistas!
E eis qual a confissão que foi obrigado a fazer este senhor no seu discurso na Conferência
«Democrática» (leia-se buliguiniana), segundo o defensista/zvásfra:
«Existem dois programas. Um é o programa das pretensões de grupo, das pretensões de classe e
nacionais. Os que mais abertamente defendem este programa são os bolcheviques. Mas também para os outros
sectores da democracia não é fácil renunciar a este programa. Pois trata-se de pretensões das massas
trabalhadoras, de pretensões das nacionalidades prejudicadas e oprimidas. Por isso, não é assim tão fácil para a
democracia romper com os bolcheviques, renunciar a estas reivindicações de classe, em primeiro lugar porque
no fundo estas reivindicações são justas. Mas este programa pelo qual lutámos antes da revolução, pelo qual
fizemos a revolução e que, noutras condições, todos defenderíamos unanimemente, representa nas actuais
condições um enorme perigo. Agora o perigo ainda é mais forte porque temos de apresentar essas
reivindicações num momento em que ao Estado é impossível satisfazê-las. Primeiro é preciso proteger o todo
— o Estado —, salvá-lo da morte, e para isso só há um caminho: não o de satisfazer as reivindicações, por mais
justas e fortes que sejam, mas, pelo contrário, restrições e sacrifícios que todos devem fazer» (Izvéstia TsIKde 17
de Setembro).
O senhor Pechekhónov não compreende que, enquanto estiverem no poder os capitalistas
ele não defende o todo, mas os interesses egoístas do capital imperialista russo e «aliado». O
senhor Pechekhónov não compreende que a guerra só deixaria de ser de conquista, imperialista, de rapina,
depois de romper com os capitalistas, com os seus tratados secretos, com as suas anexações (conquistas de
terras alheias), com as suas falcatruas financeiras bancárias. O senhor Pechekhónov não compreende que
só depois disto a guerra se tornará, no caso de recusa pelo adversário da proposta que lhe seja feita de uma paz
justa, uma guerra defensiva, justa. O senhor Pechekhónov não compreende que a capacidade de defesa de um
país que derrubou o jugo do capital, entregou a terra aos camponeses e pôs os bancos e as fábricas sob o
controlo operário, seria muitas vezes superior à capacidade de defesa de um país capitalista.
E, principalmente, o senhor Pechekhónov não compreende que, ao ver-se obrigado a reconhecer a
justiça do bolchevismo, ao reconhecer que as suas reivindicações são reivindicações «das massas
trabalhadoras», isto é, da maioria da população, abandona deste modo todas as suas posições, todas as posições
de toda a democracia pequeno-burguesa.
Eis onde está a nossa força. Eis por que o nosso governo será invencível: porque até os nossos
adversários são obrigados a reconhecer que o programa bolchevique é o programa «das massas trabalhadoras»
e «das nacionalidades oprimidas».
De facto o senhor Pechekhónov é um amigo político dos democratas-constitucionalistas, do público
do Edinstvo e do Delo Naroda, das Brechkóvskaiae dos Plekhánov, é um representante dos kulaques e dos

102
senhores cujas esposas e irmãs viriam amanhã a vazar os olhos com as suas sombrinhas aos bolcheviques
agonizantes, se estes viessem a ser derrotados pelas tropas de Kornílov ou (o que é completam ente igual) pelas
tropas de Kérenski.
E tal senhor é obrigado a reconhecer a «justiça» das reivindicações bolcheviques.
Para ele, a «justiça» é apenas uma frase. Mas para as massas dos semiproletários, para a maioria da
pequena burguesia da cidade e do campo, arruinados, torturados e extenuados pela guerra, não é uma frase, é a
questão mais aguda, mais candente, mais importante da morte pela fome, do pedaço de pão. É por isso que não
é possível fundamentar qualquer política sobre a «coligação», sobre a «conciliação» dos interesses dos famintos
e dos arruinados com os interesses dos exploradores. É por isso que um governo bolchevique tem assegurado o
apoio destas massas, na sua esmagadora maioria.
Justiça é uma palavra vazia, dizem os intelectuais e os canalhas que se inclinam a declarar-se marxistas
com o elevado fundamento de que «contemplaram o traseiro» do materialismo económico.
As ideias tornam-se uma força quando se apoderam das massas. E precisamente agora os
bolcheviques, isto é, os representantes do internacionalismo revolucionário proletário, encarnam com a sua
política a ideia que impulsiona em todo o mundo as imensas massas trabalhadoras.
Só por si, a justiça, só por si o sentimento das massas indignadas pela exploração, nunca as teria
conduzido ao caminho certo para o socialismo. Mas quando, graças ao capitalismo, cresceu o aparelho material
dos grandes bancos, dos consórcios, dos caminhos-de-ferro, etc; quando a riquíssima experiência dos países
avançados acumulou uma reserva de maravilhas da técnica, cuja aplicação é entravada pelo capitalismo;
quando os operários conscientes forjaram um partido de um quarto de milhão de membros para tomar
planificadamente nas mãos este aparelho e pô-lo em marcha, com o apoio de todos os trabalhadores e
explorados - quando existem estas condições, então não se poderá encontrar na Terra força que possa impedir
os bolcheviques, se não se deixarem assustar e se souberem tomar o poder, de o conservarem até à vitória da
revolução socialista mundial.

Posfácio
As linhas precedentes estavam já escritas quando o editorial do Nóvaia Jizn de 1 de Outubro trouxe
uma nova pérola de estupidez, tanto mais perigosa quanto se esconde atrás de uma bandeira de simpatia pelos
bolcheviques e sob o véu de um sábio raciocínio filisteu: «não vos deixeis provocar» (não vos deixeis apanhar
na armadilha dos gritos acerca de provocações com o objectivo de assustar os bolcheviques e induzi-los a não
tomar o poder).
Eis essa pérola:
«As lições de movimentos como o de 3-5 de Julho, por um lado, e das jornadas kornilovistas, por outro,
demonstraram com plena clareza que uma democracia que tem à sua disposição os órgãos mais influentes entre
a população é invencível quando ocupa na guerra civil uma posição defensiva, e sofre uma derrota, perdendo
todos os elementos intermédios e vacilantes, quando toma nas suas mãos a iniciativa de uma ofensiva.»

Se os bolcheviques manifestassem sob qualquer forma qualquer transigência em relação à estupidez


filistina expressa neste raciocínio, deitariam a perder tanto o seu partido como a revolução.
Pois o autor deste raciocínio, pondo-se a falar da guerra civil (exactamente o tema adequado para a
dama simpática em todos os aspectos), adulterou até uma incrível comicidade as lições da história sobre esta
questão.
Eis como raciocinava acerca destas lições, acerca das lições da história sobre esta questão, o
representante e fundador da táctica proletária-revolucionária, Karl Marx:
«Ora, a insurreição é uma arte, do mesmo modo que a guerra ou outras artes, e sujeita a certas regras
cujo desprezo leva à ruína do partido que dele se torna culpado. Estas regras, inferências lógicas da essência dos
partidos e das condições que num tal caso há que enfrentar, são tão claras e simples que a curta experiência de
1848 familiarizara consideravelmente os alemães com elas. Em primeiro lugar, nunca se deve jogar com a
insurreição se não há decisão para ir até ao fim (literalmente: arrostar com todas as consequências desse jogo).
A insurreição é uma operação com grandezas extremamente indeterminadas, cujo valor se pode alterar dia a
dia; as forças armadas contra as quais se tem de lutar têm a vantagem da organização, da disciplina e da
autoridade tradicional completamente do seu lado» (Marx tem em vista o caso mais «difícil» da insurreição:
contra um velho poder «firme», contra um exército ainda não desagregado sob a influência da revolução e das
oscilações do governo); «se não se pode levantar contra elas grandes forças contrárias é-se batido e aniquilado.
Em segundo lugar, uma vez iniciada a insurreição, aja-se então com a maior decisão e tome-se a ofensiva. A
defensiva é a morte de todos os levantamentos armados; estes ficam perdidos ainda antes de se terem medido
com o inimigo. Surpreende os adversários, enquanto as suas tropas estão dispersas, assegura diariamente
novos êxitos, ainda que pequenos; conserva a preponderância moral que o primeiro levantamento vitorioso te

103
trouxe; chama a ti aqueles elementos oscilantes que seguem sempre o ímpeto mais forte e se batem sempre do
lado seguro; força os teus inimigos a recuar antes que possam reunir as suas forças contra ti; em suma, nas
palavras de Danton, até hoje o maior mestre conhecido da táctica revolucionária: de l'audace, de l'audace,
encore de l'audace!(4*)» (Revolução e Contra-revolução na Alemanha, ed. alemã de 1907, p. 118.)[N206]
Nós refizemos tudo isto — poderão dizer os pseudomarxistas do Nóvaia Jizn —, em vez da tripla
audácia, possuímos duas virtudes: «temos duas: a moderação e a meticulosidade»[N207]. Para «nós» a
experiência da história universal, a experiência da grande revolução francesa, não é nada. Para «nós» o
importante é a experiência dos dois movimentos de 1917, adulterados pelos óculos de Moltcháline.
Examinemos esta experiência sem estes lindos óculos.
Comparais o 3-5 de Julho com a «guerra civil» pois confiastes em Aléxinski, Perevérzev e C.a. É
característico dos senhores do Nóvaia Jiznacreditarem em tal gente (não fazendo por si próprios absolutamente
nada, apesar do enorme aparelho de um grande diário, para reunir informaçõessobre o 3-5 de Julho).
Mas suponhamos por um momento que o 3-5 de Julho não foi o começo de uma guerra civil, mantida
pelos bolcheviques nos limites de um começo, mas uma verdadeira guerra civil. Suponhamos.
O que demonstra, neste caso, esta lição?
Em primeiro lugar, que os bolcheviques não passaram à ofensiva, pois é indiscutível que na noite de 3
para 4 de Julho, e mesmo em 4 de Julho, teriam obtido muito se tivessem passado à ofensiva. A defensiva foi a
sua fraqueza, se se fala de uma guerra civil (como fala o Nóvaia Jizn e não da transformação de uma explosão
espontânea numa manifestação do tipo da de 20-21 de Abril, como dizem os factos).
Assim, a «lição» fala contra os sábios do Nóvaia Jizn.
Em segundo lugar, se em 3-4 de Julho os bolcheviques nem sequer se colocaram o objectivo da
insurreição, se nem um único organismobolchevique colocou sequer semelhante questão, a causa disso
está fora da nossa discussão com o Nóvaia Jizn. Pois estamos a discutir sobre as lições da «guerra civil», isto é,
da insurreição, e não quando uma notória ausência de maioria do seu lado impede um partido revolucionário
de pensar na insurreição.
Como toda a gente sabe que os bolcheviques obtiveram a maioria tanto nos Sovietes das capitais como
do país (mais de 49% dos votos em Moscovo) só muito depois de Julho de 1917, consequentemente as «lições» a
tirar não são de modo nenhum as que quer ver essa dama agradável em todos os aspectos que é o Nóvaia Jizn.
Não, não, será bem melhor que não trateis de política, cidadãos do Nóvaia Jiznl
Se o partido revolucionário não tem a maioria nos destacamentos avançados das classes
revolucionárias e no país, nem se pode pensar em insurreição. Além disso, para ela é necessário: 1) o
crescimento da revolução à escala nacional; 2) a total bancarrota moral e política do velho governo, por
exemplo, do de «coligação»; 3) grandes oscilações no campo de todos os elementos intermédios, isto é, aqueles
que não estão inteiramente com o governo, ainda que ontem estivessem inteiramente com ele.
Por que é que o Nóvaia Jizn, ao falar das «lições» de 3-5 de Julho, nem sequer notou esta lição muito
importante? Porque não se trata de políticos que se põem a tratar de questões políticas, mas de gente de um
círculo intelectual assustada pela burguesia.
Continuemos. Em terceiro lugar, os factos dizem que foi precisamente depois de 3-4 de Julho,
precisamente em ligação com o desmascaramento dos senhores Tseretéli pela sua política de Julho, em ligação
com o facto de que as massas viram nos bolcheviques os seus combatentes de vanguarda, e traidores nos
«sociais-bloquistas», que começa a derrota dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques. Esta derrocada
foi demonstrada plenamente já antes da komilovada, com as eleições de 20 de Agosto em Petrogrado, que
deram a vitória aos bolcheviques e a derrota aos «social-bloquistas» (o Delo Naroda, não há muito tempo,
tentou refutar isto, escondendo os resultados sobre todos os partidos; porém isso é enganar-se a si mesmo e
enganar os leitores; segundo os dados do Den de 24 de Agosto, que se referiam apenas à cidade, a percentagem
de votos a favor dosdemocratas-constitucionalistas aumentou de 22% para 23%, mas o número absoluto de
votos a seu favor diminuiu 40%; a percentagem dos votos a favor dos bolcheviques subiu de 20% para 33%, e o
número absoluto de votos a seu favor apenas baixou 10%; a percentagem dos votos a favor de todos os
«partidos intermédios» diminuiu de 58% para 44%, e o número absoluto de votos a seu favor diminuiu 60%!!).
A derrocada dos socialistas-revolucionários e dos mencheviques depois das jornadas de Julho e até
à kornilovada é demonstrada também pelo crescimento da ala «esquerda» de ambos os partidos, que atinge
quase 40%: é a «vingança» das perseguições dos bolcheviques pelos senhoresKérenski.
O partido proletário, apesar da «perda» de algumas centenas dos seus
membros, ganhou enormemente com o 3-4 de Julho, pois foi precisamente nessas duras jornadas que
as massas compreenderam e viram a sua lealdade e a traição dos socialistas-revolucionários e mencheviques. A
«lição» que se tira, pois, não é de modo nenhum, de modo nenhum a do Nóvaia Jizn, mas outra: não vos afasteis
das massas em efervescência para os «Moltcháline da democracia», e se fazeis a insurreição, passai à ofensiva
enquanto as forças do inimigo estão dispersas, apanhai o inimigo de surpresa.

104
Não é assim, senhores pesudomarxistas do Nóvaia Jizn?
Ou será que o «marxismo» consiste em não pôr na base da táctica a apreciação exacta da
situação objectiva, mas em manter no mesmo saco, sem reflexão e sem crítica, tanto a «guerra civil» como o
«Congresso dos Sovietes e a convocação da Assembleia Constituinte»?
Mas isto é simplesmente ridículo, senhores, isto é simplesmente escarnecer do marxismo e de toda a
lógica em geral!
Se na situação objectiva das coisas não existe base para agudizar a luta de classes até ao ponto da
«guerra civil», então porque falais de «guerra civil» a propósito do «Congresso dos Sovietes e da Assembleia
Constituinte»? (pois precisamente assim se intitula o editorial do Nóvaia Jizn que examinamos). Então deveríeis
dizer claramente ao leitor e demonstrar-lhe que nas condições da situação objectiva não existe terreno para a
guerra civil e que, por isso, a táctica pode e deve basear-se em coisas «simples», pacíficas, constitucionais legais,
do ponto de vista jurídico e parlamentar, como o Congresso dos Sovietes e a Assembleia
Constituinte. Poderia então sustentar-se a opinião de que semelhante Congresso e semelhante Assembleia são
realmente capazes de decidir.
Mas se as condições objectivas do momento implicam a inevitabilidade ou mesmo apenas a
probabilidade da guerra civil, se não falastes dela «no ar», mas vendo claramente, sentindo, palpando a
existência de um ambiente de guerra civil, então como e possível pôr em primeiro lugar o Congresso dos
Sovietes ou a Assembleia Constituinte?? Isso é escarnecer das massas famintas e martirizadas! Mas então o
faminto estará de acordo em «esperar» dois meses? Ou será que a ruína, sobre cujo aumento vós próprios
escreveis diariamente, estará de acordo em «esperar» até ao Congresso dos Sovietes ou até à Assembleia
Constituinte? Ou será que a ofensiva alemã, na ausência de passos sérios para a paz (isto é, na ausência de uma
proposta formal de uma paz justa a todos os beligerantes) da nossa parte, estará de acordo em «esperar» o
Congresso dos Sovietes ou a Assembleia Constituinte? Ou tendes dados que vos permitem concluir que a
história da revolução russa, que desde 28 de Fevereiro até 30 de Setembro se desenvolveu de uma maneira
extraordinariamente tempestuosa e com um ritmo inauditamente rápido, decorrerá de 1 de Outubro a 29 de
Novembro[N208] com um ritmo arquitranquilo, pacífico, legalmente equilibrado, que exclui as explosões, os
saltos, as derrotas na guerra, as crises económicas? Ou será que o exército na frente, a propósito do qual o
oficial não bolchevique Dubássov declarou oficialmente em nome da frente que ele «não lutará», este exército
continuará tranquilamente a passar fome e frio até à data «marcada»?
Ou será que a insurreição camponesa, porque vós a chamais «anarquia» e «progrome»,
porque Kérenski enviará forças, «militares» contra os camponeses, deixará de ser um elemento da guerra civil?
Ou será possível, será concebível um trabalho tranquilo, justo, não falsificado do governo para convocar a
Assembleia Constituinte num país camponês quando este governo reprime a insurreição camponesa?
Não riais da «confusão no Instituto Smólni»[N209], senhores! A vossa confusão não é menor. Às
terríveis questões da guerra civil respondeis com frases confusas e miseráveis ilusões constitucionais. Eis
porque é que eu digo que se os bolcheviques cedessem a esse estado de espírito, deitariam a perder tanto o seu
partido como a sua revolução.
N. Lénine
1 de Outubro de 1917

Notas de Rodapé:
(1*) Por excelência. (N. Ed.)
(2*) Razão de ser. (N. Ed.)
(3*) Para mais pormenores sobre a importância da consorcização obrigatória ver a minha brochura A
Catástrofe Que Nos
Ameaça e Como Combatê-la
(4*) Audácia, audácia, mais uma vez audácia. Em francês no original. (N. Ed.)

Notas de Fim de Tomo:


[N194] O artigo "Conservarão os Bolcheviques o Poder de Estado?" foi escrito por Lénine em Víborg
em fins de Setembro - 1 (14) de Outubro de 1917 - e publicado pela primeira vez em Outubro de 1917 no n°. 1-2
da revista Prosvechtchénie.
Prosvechtchénie: revista teórica bolchevique legal; publicou-se em Petersburgo de Dezembro de 1911 a Junho
de 1914. A revista foi criada por iniciativa de Lénine que, a partir do estrangeiro, dirigia o seu trabalho. No
Outono de 1917 recomeçou a publicação da revista, mas só saiu um número (duplo).
[N195] O facto que Lénine menciona teve lugar na sessão do I Congresso dos Sovietes de Deputados
Operários e Soldados

105
de Toda a Rússia realizada em 4 (17) de Junho de 1917. (Ver Tomo II das Obras Escolhidas de VI Lénine em três
tomos, p. 105).
[N196] Lénine cita o poema de N. A. Nekrássov "Ditoso é o poeta sem malícia"
[N197] Dama agradável sobre todos os aspectos: trata-se de uma das personagens da obra "Almas
Mortas" do escritor russo N.V. Gógol.
[N198] Duma de Bulíguine: organismo representativo consultivo que o governo tsarista tencionava
convocar em 1905. O projecto de lei para a instituição de uma Duma consultiva do Estado e o regulamento
eleitoral foram elaborados por uma comissão presidida pelo ministro do Interior Bulíguine e publicados
juntamente com o manifesto do tsar em 6 (19) Agosto de 1905. Os bolcheviques boicotaram a Duma de
Bulíguine, que o Governo não conseguiu chegar a reunir devido à revolução de 1905. (retornar ao texto)
[N199] Známia Trudá (A bandeira do trabalho): diário, órgão do Comité de Petrogrado do Partido
Socialista-Revolucionário. A partir de 28 de Dezembro de 1917 (10 Janeiro de 1918), tornou-se o órgão central
do partido dos socialistas-revolucionários de esquerda. Fechado em Julho de 1918 durante a revolta
dos socialistas-revolucionários de esquerda.
[N200] Vólia Noroda (A Vontade do Povo): diário, órgão da ala direita do Partido Socialista-
Revolucionário; publicou-se em Petrogrado de Abril a Novembro de 1917. Mais tarde foi publicado com outros
nomes. Foi fechado definitivamente em Fevereiro de 1918.
[N201] Sedan: cidade da França; durante a guerra franco-prussiana de 1870-1871 todo o exército
francês, chefiado pelo Imperador Napoleão III, foi cercado e aprisionado perto de Sedan.
[N202] Convenção: terceira Assembleia Nacional durante a revolução burguesa francesa de fins do
século XVIII. A Convenção foi criada como máxima instituição representativa em França em resultado da
insurreição popular de 10 de Agosto de 1792, que derrubou a monarquia. A Convenção existiu até 26 de
Outubro de 1795. O seu trabalho mais fecundo teve lugar no período da ditadura jacobina (de 31 de Maio-2
Junho de 1793 a 27 de Julho de 1794). A Convenção acabou definitivamente com o feudalismo, reprimiu
impiedosamente todos os elementos contra-revolucionários e conciliadores e lutou contra a intervenção
estrangeira.
[N203] Ver a carta de K. Marx a L. Kugelmann de 12 de Abril de 1871. (In Karl Marx / Friederich
Engels, Werke, Bd. 33, S. 205).
[N204] Homem enconchado: protagonista da narrativa do mesmo nome do escritor russo A. P.
Tchékhov. É o tipo do pequeno-burguês medíocre que tem medo de todas as inovações e de todas as iniciativas.
[N205] Ver a carta de F. Engels a F. A. Sorge de 22 de Fevereiro de 1888. (In Karl Marx / Friederich
Engels, Werke, Bd. 37, S. 22).
[N206] F. Engels, Revolução e Contra-revolução na Alemanha (In Karl Marx / Friederich Engels,
Werke, Bd. 8, S. 95).
[N207] A moderação e a meticulosidade: palavras com que Moltcháline, personagem da comédia de A.
S. Griboédov "A Desgraça de Ter Engenho", arrivista e adulador, descreve as suas virtudes. Lénine utilizava
frequentemente esta expressão ao falar da burguesia liberal e dos sociais-oportunistas.
[N208] Lénine, ao citar as datas mencionadas no texto, referia-se a: 28 de Fevereiro (13 de Março) de
1917 — data da revolução democrática burguesa de Fevereiro; 30 Setembro (13 de Outubro) de 1917 — dia
para que o Governo Provisório planeava inicialmente convocar a Assembleia Constituinte; 28 de Novembro (11
de Dezembro) de 1917 — data marcada para a reunião da Assembleia Constituinte.
[N209] Lénine cita palavras de N. Sukhánov no seu artigo "Rebentou Novamente a Trovoada",
publicado no Nóvaia Jizn. Desde Agosto de 1917, no edifício do Instituto Smólni funcionavam as fracções
bolcheviques do Comité Executivo Central de Toda a Rússia e do Soviete de Deputados Operários e Soldados de
Petrogrado. Em Outubro o Comité Militar Revolucionário tinha também aí as suas instalações.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/10/14.htm

106
Carta aos Membros do Partido Bolchevique[N219]

V. I. Lénine

18 (31) de Outubro de 1917

Camaradas! Ainda não tive possibilidade de obter os jornais de Petrogrado de quarta-feira, 18 de


Outubro. Quando me comunicaram por telefone o texto completo da intervenção de Kámenev e Zinóviev no
jornal Nóvaia Jizn, que não é do partido, recusei-me a acreditar. Mas verificou-se que não pode haver dúvidas, e
sou obrigado a aproveitar esta oportunidade para fazer chegar esta carta aos membros do partido na quinta-
feira à noite ou sexta-feira de manhã, pois seria um crime ficar calado perante o facto de tão inaudita acção de
fura-greves.

Quanto mais séria é a questão prática, quanto mais responsáveis e «destacados» são os homens que
actuam como fura-greves, tanto mais perigosa é a sua acção, tanto mais decididamente é preciso pôr na rua os
fura-greves, tanto mais imperdoável seria vacilar por causa de quaisquer «méritos» passados dos fura-greves.

Imaginai! Nos círculos do partido sabe-se que o partido discute a questão da insurreição desde
Setembro. Ninguém ouviu nada sobre nenhuma carta ou folha de nenhuma das pessoas citadas! Agora, poder-
se-ia dizer que na véspera do congresso dos Sovietes, dois destacados bolcheviques manifestam-se contra a
maioria e, evidentemente, contra o CC. Isto não é dito abertamente, e com isto o prejuízo para a causa ainda é
maior, pois falar com insinuações é ainda mais perigoso.

Do texto da declaração de Kámenev e Zinóviev é perfeitamente claro que eles estiveram contra o CC,
pois, de outro modo, a sua declaração não teria sentido, mas não é dito precisamente qual a disposição do CC
que contestam.

Porquê?

A coisa é clara: porque o CC não a publicou. Que resulta daqui?

Sobre uma importantíssima questão candente, na véspera do dia crítico de 20 de Outubro, dois
«bolcheviques destacados», na imprensa não partidária, e além disso precisamente no jornal que sobre esta
questão está de mãos dadas com a burguesia contra o partido operário, atacam nesse jornal uma decisão não
publicada do centro do partido.

Mas isto é mil vezes mais infame e milhões de vezes mais prejudicial do que todas as intervenções de
Plekhánov na imprensa não partidária em 1906-1907, que o partido condenou com tanta dureza! Então tratava-
se apenas de eleições, mas hoje trata-se da insurreição para a conquista do poder!

E sobre tal questão, depois da adopção de uma decisão pelo centro, contestar esta decisão não
publicada perante os Rodzianko e os Kérenski, num jornal não partidário — poderá imaginar-se
comportamento mais traidor, mais fura-greves?

Consideraria uma vergonha para mim se, por causa das estreitas relações anteriores com estes dois ex-
camaradas, eu vacilasse em condená-los. Declaro abertamente que não os considero mais a ambos como
camaradas e que lutarei com todas as forças, tanto perante o CC como perante o congresso, pela exclusão de
ambos do partido.

Pois um partido operário, a quem a vida coloca cada vez com mais frequência frente a frente com a
insurreição, não é capaz de resolver este difícil problema se disposições não publicadas do centro depois da sua
adopção são contestadas na imprensa não partidária e se as hesitações e a confusão são introduzidas nas
fileiras dos combatentes.

Que os senhores Zinóviev e Kámenev fundem o seu partido com as dezenas de pessoas que se
desnortearam ou com os candidatos à Assembleia Constituinte. Os operários não irão para esse partido, pois a
sua primeira palavra de ordem será:

107
«aos membros do CC vencidos na questão do combate decisivo na reunião do CC é permitido irem para
a imprensa não partidária atacar as disposições não publicadas do partido.»
Que construam eles próprios um tal partido; o nosso partido operário dos bolcheviques só ganhará
com isso.

Quando se publicarem todos os documentos, manifestar-se-á de modo ainda muito mais claro o acto
de fura-greves de Zinóviev e Kámenev. De momento, que os operários coloquem a seguinte questão:

«Suponhamos que a direcção de um Sindicato de Toda a Rússia decidiu, depois de um mês de


discussão e por uma maioria superior a 80 por cento, que é necessário preparar uma greve, mas sem publicar
por enquanto a data ou qualquer outra coisa. Suponhamos que dois membros, com o falso pretexto de terem
uma 'opinião própria', começavam depois da decisão não só a escrever para grupos locais sobre a revisão da
decisão mas também deixavam sair informações das suas cartas em jornais não partidários. Suponhamos que,
finalmente, eles próprios atacavam a decisão em jornais não partidários, não obstante não estar ainda
publicada, e começavam a denegrir a greve perante os capitalistas.
Pergunto se os operários vacilariam em excluir do seu meio semelhantes fura-greves?»

No que se refere à situação da questão da insurreição, agora, tão próximo o 20 de Outubro, não posso
ajuizar de longe até que ponto a causa é prejudicada pela intervenção dos fura-greves na imprensa não
partidária. É indubitável que o prejuízo prático causado é muito grande. Para reparar as coisas é preciso, em
primeiro lugar, restaurar a unidade da frente bolchevique com a exclusão dos fura-greves.

A fraqueza dos argumentos ideológicos contra a insurreição será tanto mais clara quanto mais os
pusermos à luz do dia. Há dias enviei ao Rabótchi Put um artigo acerca disto, e se a redacção não achar possível
publicá-lo, certamente que os membros do partido conhecê-lo-ão através do manuscrito[N220].

Estes argumentos «ideológicos», se assim se pode dizer, reduzem-se a dois: primeiro, a «esperar» pela
Assembleia Constituinte. Esperemos, talvez aguentemos — eis todo o argumento. Talvez apesar da fome, apesar
da ruína, apesar de esgotada a paciência dos soldados, apesar dos passos de Rodzianko para a entrega de
Petrogrado aos alemães, apesar dos lock-outs, talvez ainda aguentemos.

Quiçá e talvez, nisto reside toda a força do argumento.

Segundo, um pessimismo gritante. A burguesia e Kérenski têm tudo optimamente, nós temos tudo mal.
Os capitalistas têm tudo maravilhosamente preparado, os operários têm tudo mal. Os «pessimistas» no que se
refere ao aspecto militar do assunto gritam esganiçados, mas os «optimistas» calam-se, pois só aos fura-greves
agrada revelar certas coisas a Rodzianko e Kérenski.

Tempos difíceis. Uma dura tarefa. Uma dura traição.

E apesar de tudo a tarefa será resolvida, os operários cerrarão fileiras, a insurreição camponesa e a
impaciência extrema dos soldados na frente farão a sua obra! Cerremos mais estreitamente as nossas fileiras —
o proletariado tem de vencer!

N. Lenine

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Notas de fim de tomo:


[N219] A Carta aos Membros do Partido Bolchevique e a Carta ao Comité Central do POSDR(b)
reflectem a luta de Lenine contra Zinóviev e Kámenev, que tentavam torpedear a decisão do CC sobre a
insurreição armada. Tendo sofrido uma derrota na reunião do CC de 10 (23) de Outubro de 1917, na qual se
discutiu a questão da insurreição, no dia seguinte - 11 (24) de Outubro - Zinóviev e Kámenev dirigiram uma
declaração ao CC e uma carta, intitulada Acerca do Momento Actual, aos comités de Petrogrado, de Moscovo,

108
regional de Moscovo e regional da Finlândia do POSDR(b) e às fracções bolcheviques do CEC dos Sovietes e do
Congresso dos Sovietes da Região Norte.
Nesta carta pronunciavam-se contra a resolução tomada pelo CC sobre a insurreição armada. Não
tendo recebido nenhum apoio na reunião alargada do Comité de Petrogrado de 15 (28) de Outubro, na qual foi
lida a sua carta, e na reunião ampliada do CC de 16 (29) de Outubro, onde se pronunciaram novamente contra a
insurreição armada, Zinóviev e Kámenev passaram à traição directa. Em 18 (31) de Outubro foi publicada no
jornal semimenchevique Nóvaia Jizn uma nota com o título I. Kámenev sobre a «Intervenção», na qual Kámenev,
em seu nome e no de Zinóviev, se declarava contra a insurreição armada, revelando deste modo ao inimigo uma
importantíssima decisão secreta do Partido. Nesse mesmo dia Lenine escreveu a Carta aos Membros do Partido
Bolchevique, e em 19 de Outubro (1 de Novembro) a Carta ao Comité Central do POSDR(b). Nas suas cartas
Lenine estigmatizava este acto como uma traição à revolução, chamava fura-greves a Zinóviev e Kámenev e
exigia a sua expulsão do Partido.
A carta de Lenine ao Comité Central do POSDR(b) foi discutida na reunião do CC de 20 de Outubro (2
de Novembro). Na discussão desta questão, Dzerjínski, intervindo em primeiro lugar, propôs «exigir a Kámenev
o completo afastamento da actividade política». Em relação a Zinóviev alegou que este último se escondia da
perseguição do poder e de qualquer modo não participava no trabalho do Partido. Na sua intervenção Sverdlov
assinalou que o acto de Kámenev não podia de modo nenhum ser justificado, mas que o CC não tinha o direito
de o expulsar do Partido. Propôs que se aceitasse a demissão de Kámenev do CC. Stáline interveio duas vezes na
reunião do CC. Inicialmente propôs que se levasse a questão à discussão de um plenário do CC, e, quando a sua
proposta não foi aceite, declarou na sua segunda intervenção que «a expulsão do Partido não é receita», e
propôs obrigar Zinóviev e Kámenev a submeterem-se às decisões do CC, demitindo-os do CC. Este mesmo ponto
de vista foi também expresso por Stáline nas colunas do jornal Rabótchi Put, numa nota Da Redacção publicada
em 20 de Outubro (2 de Novembro), antes da tomada de decisão do Comité Central. Nesta nota Stáline escrevia
que a rispidez do tom do artigo de Lenine (Carta aos Camaradas) não alterava, relativamente a Zinóviev e
Kámenev, o facto «de que no fundamental continuamos a ser correligionários». A nota Da Redacção foi
publicada por Stáline já depois da declaração de Kámenev no Nóvaia Jizn e de ter sido feita nas cartas de Lenine
uma apreciação da conduta de Kámenev e Zinóviev.
O Comité Central aceitou a demissão de Kámenev do CC; Zinóviev e Kámenev foram colocados na
obrigação de não fazer nenhumas declarações contra as decisões do CC e a linha de trabalho por ele traçado. Foi
também decidido que nenhum membro do CC se pronunciasse contra as decisões tomadas pelo CC.
Lenine não esteve de acordo com a decisão do CC em relação a Zinóviev e Kámenev, e escreveu acerca
disto uma carta a Sverdlov, na qual chamava compromisso a esta decisão. (retornar ao texto)
[N220] Trata-se do artigo Carta aos Camaradas, em que Lenine desmascarou toda a inconsequência
dos «argumentos» de Kámenev e de Zinóviev, que se pronunciavam contra a insurreição armada.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/10/31.htm

109
Carta ao Comité Central do POSDR(b)

V. I. Lénine

19 de Outubro (1 de Novembro) de 1917

Queridos camaradas!

Um partido que se respeite a si mesmo não pode tolerar no seu seio actos de fura-greves nem fura-
greves. Isto é evidente. E quanto mais se medita na intervenção de Zinóviev e Kámenev na imprensa não
partidária tanto mais indiscutível se torna que a sua conduta representa o mais completo acto de fura-greves. A
evasiva de Kámenev na reunião do Soviete de Petrogrado é algo de verdadeiramente baixo; ele está, não vedes,
completamente de acordo com Trótski. Mas será difícil compreender que Trótski não podia, não tinha o direito,
não devia dizer diante dos inimigos mais do que disse? Será difícil compreender que o dever do partido, que
escondeu ao inimigo a sua decisão (da necessidade da insurreição armada, sobre o seu pleno amadurecimento,
sobre a preparação em todos os aspectos, etc), que esta decisão obriga nas intervenções públicas a imputar ao
adversário não só a «culpa» mas também a iniciativa? Só crianças poderiam não compreender isto. A evasiva de
Kámenev é simplesmente uma fraude. O mesmo deve dizer-se da evasiva de Zinóviev. Pelo menos da sua carta
«justificativa» (parece que ao Órgão Central), carta que é tudo o que eu vi (pois eu, membro do CC até agora não
vi a opinião particular, a «pretensa opinião particular» que tanto apregoa a imprensa burguesa). Dos
«argumentos» de Zinóviev: Lenine enviou as suas cartas «antes da adopção de quaisquer decisões», e vós não
protestastes. Assim escreve literalmente Zinóviev, ele próprio sublinhando com quatro traços a palavra antes.
Será difícil compreender que antes da decisão pelo centro da questão da greve se pode fazer agitação tanto a
favor como contra, mas que depois da decisão a favor da greve (depois da decisão suplementar de a esconder ao
inimigo), depois disso fazer agitação contra a greve é um acto de fura-greves? Qualquer operário entenderá isto.
A questão da insurreição armada foi discutida no centro em Setembro. Eis quando Zinóviev e Kámenev podiam
e deviam ter intervido por escrito para que todos, vendo os seus argumentos, para que todos apreciassem a sua
completa confusão. Ocultar as suas opiniões ao partido durante todo um mèsantes da adopção da decisão e
difundir uma opinião particular depois da decisão significa ser fura-greves.

Zinóviev finge não compreender esta diferença, não compreender que depois da decisão sobre a greve,
da decisão do centro, só os fura-greves podem fazer agitação perante as instâncias inferiores contra a decisão.
Qualquer operário entenderá isto.

E Zinóviev fez precisamente essa agitação e torpedeou a decisão do centro tanto na reunião de
domingo[N221], onde ele e Kámenev não conquistaram nem um voto, como na sua carta de agora. Pois Zinóviev
tem a desvergonha de afirmar que «o partido não foi consultado» e que tais questões «não são decididas por
dez pessoas». Imaginai. Todos os membros do CC sabem que à reunião decisiva assistiram mais de dez
membros do CC que assistiu a maioria dos membros, que o próprio Kámenev, nessa reunião, declarou: «Esta
reunião é decisiva», que, quanto aos membros do CC ausentes, se sabia perfeitamente que na sua maioria não
estavam de acordo com Zinóviev e Kámenev. E eis que, depois de uma decisão do CC numa reunião que também
Kámenev considerou decisiva, um membro do CC tem o descaramento de escrever: «O partido não foi
consultado.» «Tais questões não são decididas por dez»; isto é o mais completo acto fura-greves. Até ao
congresso do partido decide o CC. O CC decidiu. Kámenev e Zinóviev, que não intervieram por escrito antes da
decisão, começaram a contestar a decisão do CC depois de ter sido tomada.

Isto é o mais completo acto de fura-greves. Depois da adopção de uma decisão é inadmissível qualquer
contestação, uma vez que se trata da preparação imediata e secreta para uma greve. Zinóviev tem agora o
descaramento de nos imputar a «advertência ao inimigo». Onde está o limite da desvergonha? Quem, na
realidade, prejudicou a causa, sabotou a greve com a «advertência-ao inimigo», se não aqueles que intervieram
na imprensarão partidária?

Intervir contra uma disposição «decisiva» do partido num jornal que nesta questão está de acordo com
toda a burguesia.

Se tolerar isto, o partido será impossível, o partido será destruído.

110
Chamar «opinião particular» àquilo de que Bazárov toma conhecimento e imprime num jornal não
partidário — isso significa escarnecer do partido.

A intervenção de Kámenev e Zinóviev na imprensa não partidária foi particularmente infame ainda
porque a sua caluniosa mentira não pode ser refutada abertamente pelo partido: não conheço as decisões sobre
a data, escreve e publica Kámenev no seu próprio nome e no de Zinóviev. (Depois de tal declaração, Zinóviev é
plenamente responsável por toda a conduta e pela intervenção de Kámenev.)

Como pode o CC refutar isto?

Não podemos dizer a verdade perante os capitalistas, a saber: que decidimos a greve e decidimos
ocultar a escolha do momento para ela.

Não podemos refutar a caluniosa mentira de Zinóviev e Kámenev sem prejudicar a causa ainda mais. A
infinita infâmia, a verdadeira perfídia destes dois homens consiste precisamente em que eles denunciaram
perante os capitalistas o plano dos grevistas, pois, uma vez que nos calamos na imprensa, todos adivinham
como estão as coisas.

Kámenev e Zinóviev denunciaram a Rodzianko e a Kérenski a decisão do CC do seu partido sobre a


insurreição armada e sobre a dissimulação ao inimigo da preparação da insurreição armada, da escolha da data
para a insurreição armada. Isto é um facto. Este facto não pode ser refutado com nenhuma evasiva. Dois
membros do CC, com uma caluniosa mentira, denunciaram perante os capitalistas a decisão dos operários. A
resposta a isto só pode e deve ser uma: uma decisão imediata do CC:

«Considerando que a intervenção de Zinóviev e de Kámenev na imprensa não partidária é um


completo acto de fura-greves, o CC exclui ambos do partido.»
É-me difícil escrever isto a propósito de dois ex-camaradas íntimos, mas consideraria um crime as
vacilações neste caso, pois, de outro modo, um partido de revolucionários que não puna destacados fura-greves
perecerá.

A questão da insurreição armada, mesmo se os fura-greves a adiaram por muito tempo com a
denúncia a Rodzianko e Kérenski, não foi retirada, não foi retirada pelo partido. Como é possível prepararmo-
nos para a insurreição armada e prepará-la tolerando entre nós «destacados» fura-greves? Quanto mais
destacados, tanto mais perigosos, tanto mais indignos de «perdão». On n'est trahi que par les siens, dizem os
franceses. Só pode ser traidor um homem nosso.

Quanto «mais destacados» são os fura-greves, tanto mais obrigatório é puni-los imediatamente com a
exclusão.

Só assim é possível sanear o partido operário, depurar-se de uma dúzia de intelectuaizinhos sem
carácter, cerrar as fileiras dos revolucionários, ir ao encontro de grandes e grandíssimas dificuldades, ir com os
operários revolucionários.

Não podemos publicar a verdade: que depois da reunião decisiva do CC Zinóviev e Kámenev tiveram o
descaramento de exigir uma revisão na reunião de domingo, que Kámenev gritou sem vergonha: «O CC
fracassou, pois nada fez durante a semana» (eu não podia refutar, pois não é possível dizer o que se fez
exactamente), e Zinóviev, com ar inocente, propôs uma resolução rejeitada pela reunião:

«Não agir até à conferência com os bolcheviques que terão de chegar a 20 para o congresso dos
Sovietes.»
Imaginai: depois de o centro ter decidido a questão da greve, propor a uma reunião de base que seja
adiada e transferida (para o congresso do dia 20, mas o congresso foi depois adiado ... os Zinóviev confiam nos
Liberdan[N185]), que seja transferida para um organismo que os estatutos do partido não conhecem, que não
tem poderes sobre o CC, que não conhece Petrogrado.

E depois disto Zinóviev ainda tem o descaramento de escrever: «Assim dificilmente se reforçará a
unidade do partido.»

111
Como chamar a isto outra coisa que não ameaça de cisão?

Eu a tal ameaça respondo que irei até ao fim, que obterei liberdade de palavra perante os operários e,
custe o que custar, estigmatizarei o fura-greves Zinóviev como fura-greves. A ameaça de cisão respondo com a
declaração de guerra até ao fim, pela exclusão de ambos os fura-greves do partido.

Depois de um mês de debates, a direcção de um sindicato decidiu: a greve é inevitável e amadureceu,


esconderemos a data aos patrões. Depois disso, dois da direcção vão à base contestar a decisão e fracassam.
Então, os dois vão à imprensa perante os capitalistas e denunciam por meio de uma mentira caluniosa a decisão
da direcção, sabotando com isto a greve numa boa metade ou protelando-a até piores tempos, advertindo o
inimigo.

Eis o mais completo acto de fura-greves. E eis porque exijo a exclusão de ambos os fura-greves,
reservando para mim o direito (dada a sua ameaça de cisão) de tudo publicar, quando for possível publicar.

Notas de fim de tomo:


[N185] Liberdan: nome irónico dado aos dirigentes mencheviques Líber e Dan e aos seus partidários
depois da publicação no jornal bolchevique de Moscovo Sotsial-Demokrat de um artigo satírico de Demián
Bédni intitulado "Liberdan". (retornar ao texto)
[N221] Aqui e mais adiante, Lenine refere-se à reunião alargada do CC do POSDR(b) realizada no dia
16 (29) de Outubro de 1917, em que Zinóviev e Kámenev se pronunciaram contra a resolução sobre a
insurreição armada aprovada na Reunião do CC de 10 (23) de Outubro.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/11/01.htm

112
Conselhos de um Ausente
V. I. Lénine

21 de Outubro de 1917

Escrevo estas linhas a 8 de Outubro e tenho poucas esperanças de que elas estejam já a 9 nas mãos dos
camaradas de Petrogrado. É possível que cheguem tarde, pois o Congresso dos Sovietes do Norte está marcado
para 10 de Outubro[N212]. Tentarei, no entanto, dar os meus Conselhos de um Ausente para o caso de que a
intervenção provável dos operários e soldados de Petrogrado e de todos os «arredores» tenha lugar em breve,
mas ainda não tenha tido lugar.
Que todo o poder deve passar para os Sovietes é evidente. Igualmente deve ser indiscutível para todo o
bolchevique que um poder proletário-revolucionário (ou bolchevique — isto agora é a mesma coisa) tem
assegurada a maior simpatia e o apoio sem reservas de todos os trabalhadores explorados no mundo inteiro em
geral, nos países beligerantes em particular, entre os camponeses russos em especial. Não vale a pena determo-
nos nestas verdades, por de mais conhecidas e há muito tempo demonstradas.
É preciso determo-nos em algo que é duvidoso que esteja inteiramente claro para todos os camaradas,
a saber: que a passagem do poder para os Sovietes significa agora, na prática, a insurreição armada. Poderia
parecer que isto é evidente, mas nem todos reflectiram nem reflectem nisto. Renunciar agora à insurreição
armada significaria renunciar à principal palavra de ordem do bolchevismo (todo o poder aos Sovietes) e a todo
o internacionalismo proletário-revolucionário em geral.
Mas a insurreição armada é uma forma especial da luta política, submetida a leis especiais, nas quais é
preciso reflectir atentamente. Karl Marx exprimiu esta verdade com um notável relevo ao escrever que «a
insurreição» armada «é, como a guerra, uma arte».

Marx destacou entre as regras mais importantes desta arte:

1. Nunca jogar com a insurreição e, uma vez começada, saber firmemente que é preciso ir até ao fim.
2. É necessário concentrar no lugar decisivo, e no momento decisivo, uma grande superioridade de
3. forças, pois de outro modo o inimigo, possuindo melhor preparação e organização, aniquilará os
4. insurrectos.
5. Uma vez começada a insurreição, é preciso agir com a maior decisão e passar obrigatória e
incondicionalmente à ofensiva. « A defensiva é a morte da insurreição armada.»
6. É preciso esforçar-se para apanhar o inimigo de surpresa, captar o momento em que as suas tropas
estão ainda dispersas.

É preciso obter diariamente êxitos ainda que pequenos (poderia dizer-se: em cada hora, se se tratar de
uma só cidade), mantendo, a todo o custo a «superioridade moral».
Marx resumiu as lições de todas as revoluções no que se refere à insurreição armada com as palavras
de «Danton, até hoje o maior mestre conhecido da táctica revolucionária: audácia, audácia, mais uma vez
audácia»[N213]
Aplicado à Rússia e a Outubro de 1917, isto significa: ofensiva, simultânea e o mais súbita e rápida
possível, sobre Petrogrado, obrigatoriamente de fora, de dentro, dos bairros operários, da Finlândia, de Reval,
de Cronstadt, ofensiva de toda a esquadra, acumulação de uma superioridade gigantesca de forças sobre os 15-
20 mil (e talvez mais) da nossa "guarda burguesa" (os cadetes) das nossas «tropas da Vendeia» (uma parte dos
cossacos), etc.
Combinar as nossas três forças principais: a esquadra, os operários e as unidades militares, de modo a
que sejam obrigatoriamente ocupados e mantidos seja com que perdas for: a) os telefones, b) os telégrafos, c) as
estações ferroviárias e d) as pontes em primeiro lugar.
Constituir os elementos mais decididos (as nossas «tropas de choque» e a juventude operária, bem
como os melhores marinheiros) em pequenos destacamentos para a ocupação por eles de todos os pontos mais
importantes e para a sua participação em toda a parte em todas as operações importantes, por exemplo:
Cercar e isolar Petrogrado, tomá-la com um ataque combinado da esquadra, dos operários e das tropas
- esta é uma tarefa que exige arte e tripla audácia.
Formar destacamentos dos melhores operários com espingardas e granadas de mão para atacar e
cercar os «centros» do inimigo (escolas militares, telégrafos e telefones, etc.) com a palavra de ordem: antes
morrermos todos que deixar passar o inimigo.
Esperemos que, no caso de se decidir a intervenção, os dirigentes apliquem com êxito os grandes
preceitos de Danton e Marx.

113
O êxito tanto da revolução russa como da mundial depende de dois ou três dias de luta.

[N212] O Congresso dos Sovietes da Região Norte, inicialmente marcado para 8 (21) de Outubro em
Helsingfors (Helsínquia) e depois para 10 (23) de Outubro em Petrogrado, realizou-se de 11 (24) de Outubro a
13 (26) de Outubro de 1917 na cidade de Petrogrado. No Congresso participaram 94 delegados, dos quais 51
eram bolcheviques. O Congresso, na sua resolução sobre o momento actual, sublinhou que só a passagem
imediata de todo o poder para as mãos dos Sovietes tanto no centro como nas localidades podia salvar o país e a
revolução. O Congresso exortou os camponeses a apoiar a luta do proletariado pelo poder. As resoluções
aprovadas pelo Congresso tiveram uma enorme importância para a preparação, a organização e a mobilização
de todas as forças para a vitória da Grande Revolução Socialista de Outubro. (retornar ao texto)
[N213] F. Engels, Revolução e Contra-revolução na Alemanha (In Karl Marx / Friederich Engels,
Werke, Bd. 8, S. 95)

http://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/10/21.htm

114
Carta aos Membros do CC[N224]

V. I. Lénine

6 de Novembro de 1917

Camaradas!

Escrevo estas linhas na noite de 24, a situação é extremamente crítica. É claríssimo que agora, na
verdade, a demora na insurreição equivale à morte.

Tento com todas as forças convencer os camaradas de que agora tudo está pendente por um fio, de que
na ordem do dia estão questões que já não se resolvem com conferências nem com congressos (ainda que sejam
mesmo congressos dos Sovietes), mas exclusivamente com os povos, com as massas, com a luta das massas
armadas.

A investida burguesa dos kornilovistas, a destituição de Verkhóvski mostram que não se pode esperar.
É necessário, custe o que custar, hoje à noite, hoje de madrugada, prender o governo, depois de ter desarmado
os cadetes (depois de os vencer, se resistirem), etc.

Não se pode esperar!! Pode-se perder tudo!!

Valor da tomada do poder imediatamente: defesa do povo (não do congresso, mas do povo, do exército
e dos camponeses em primeiro lugar) contra o governo kornilovista, que despediu Verkhóvski e urdiu uma
segunda conspiração kornilovista.

Quem deve tomar o poder?

Isto agora não é importante: que o tome o Comité Militar Revolucionário[N225] «ou outra instituição»
que declare que só entregará o poder aos verdadeiros representantes dos interesses do povo, dos interesses do
exército (proposta de paz imediata), dos interesses dos camponeses (deve-se tomar a terra imediatamente,
abolir a propriedade privada), dos interesses dos famintos.

É necessário que todos os bairros, todos os regimentos, todas as forças sejam imediatamente
mobilizados e que enviem sem demora delegações ao Comité Militar Revolucionário, ao CC dos bolcheviques,
exigindo insistentemente: não deixar em caso algum o poder nas mãos de Kérenski e C.a até 25, de modo
nenhum; decidir a questão obrigatoriamente hoje à noite ou de madrugada.

A história não perdoará a demora aos revolucionários, que podem vencer hoje (e seguramente
vencerão hoje), arriscando-se a perder muito amanhã, arriscando-se a perder tudo.

Tomando o poder hoje, não o tomaremos contra os Sovietes, mas para eles.

A tomada do poder é a obra da insurreição; o seu objectivo político esclarece-se depois da tomada.

Seria a ruína ou um formalismo esperar a votação indecisa de 25 de Outubro, o povo tem o direito e é
obrigado a resolver tais questões não por votações, mas pela força; o povo tem o direito e é obrigado, nos
momentos críticos da revolução, a dirigir os seus representantes, mesmo os seus melhores representantes, e
não a esperar por eles.

Assim o demonstrou a história de todas as revoluções, e seria um crime imenso dos revolucionários se
perdessem o momento, sabendo que deles depende a salvação da revolução, a proposta da paz, a salvação de
Petrogrado, a salvação da fome, a entrega da terra aos camponeses.

O governo vacila. É preciso acabar com ele custe o que custar! A demora na intervenção equivale à
morte.

Notas de fim de tomo:

115
[N224] Esta carta aos membros do Comité Central do POSDR (b) foi escrita por Lénine ao fim da tarde
de 24 de Outubro (6 de Novembro). Na noite do mesmo dia, Lénine chegou clandestinamente ao Smólni e
assumiu a direcção imediata da insurreição armada. (retornar ao texto)
[N225] O Comité Militar Revolucionário anexo ao Soviete de Petrogrado foi criado em 12 (25) de
Outubro de 1917 por indicação do CC do Partido Bolchevique. Do CMR faziam parte representantes do Comité
Central do Partido, do Comité de Petrogrado, do Soviete de Petrogrado, dos comités de fábrica, dos sindicatos e
das organizações militares. O CMR, directamente dirigido pelo CC do Partido, trabalhava em estreito contacto
com a Organização Militar bolchevique na formação de destacamentos da Guarda Vermelha e no armamento
dos operários. A tarefa principal do CMR era preparar a insurreição armada de acordo com as directrizes do CC
do Partido Bolchevique. O CMR levou a cabo um vasto trabalho para organizar as forças de combate para a
vitória da Revolução Socialista de Outubro. O núcleo dirigente do CMR era o Centro Militar Revolucionário,
criado na reunião do CC de 16 (29) de Outubro de 1917 e cuja actividade era orientada por Lénine. Depois da
vitória da Revolução Socialista de Outubro e da formação, no II Congresso dos Sovietes, do Governo Soviético, a
tarefa principal do Comité Militar Revolucionário tornou-se o combate à contra-revolução e a manutenção da
ordem revolucionária. À medida que se criava e consolidava o aparelho estatal soviético, o Comité Militar
Revolucionário transmitia as suas funções aos comissariados do povo, que se estavam a organizar. No dia 5 (18)
de Dezembro de 1917 o Comité Militar Revolucionário foi extinto.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/11/06.htm

116
Teses Sobre a Assembleia Constituinte

V. I. Lénine

25 de Dezembro de 1917

1) A reivindicação da convocação da Assembleia Constituinte entrou muito justamente no programa


da social-democracia revolucionária, porque numa república burguesa a Assembleia Constituinte é a forma
superior do democratismo e porque, ao criar o pré-parlamento, a república mperialista com Kérenski à cabeça
preparava uma falsificação das eleições e uma série de violações do democratismo

2) Apresentando a reivindicação da convocação da Assembleia Constituinte, a social-democracia


revolucionária, desde o próprio começo da revolução de 1917, sublinhou mais de uma vez que a república dos
Sovietes é uma forma de democratismo mais elevada do que a república burguesa habitual com a Assembleia
Constituinte.

3) Para a passagem do regime burguês ao socialista, para a ditadura do proletariado, a república dos
Sovietes (de deputados operários, soldados e camponeses) é não só a forma de tipo mais elevado das
instituições democráticas (comparada com a república burguesa habitual coroada por uma Assembleia
Constituinte), mas também é a única forma capaz de assegurar a passagem menos dolorosa para o socialismo.

4) A convocação da Assembleia Constituinte na nossa revolução se gundo as listas apresentadas em


meados de Outubro de 1917 realiza-se em condições que excluem a possibilidade de uma expressão justa da
vontade do Povo em geral e das massas trabalhadoras em particular pelas eleições para esta Assembleia
Constituinte.

5) Em primeiro lugar, o sistema proporcional de eleições só dá uma verdadeira expressão da vontade


do povo quando as listas partidárias correspondem efectivamente à divisão real do povo nos agrupamentos
partidários que se reflectem nestas listas. E no nosso país, como é sabido, o partido que entre Maio e Outubro
teve mais partidários no povo e particularmente no campesinato, o partido dos socialistas-revolucionários,
apresentou listas únicas para a Assembleia Constituinte em meados de Outubro de 1917, mas cindiu-se em
Novembro de 1917 depois das eleições para a Assembleia Constituinte, antes da sua convocação.

Devido a isto, mesmo formalmente não há nem pode haver correspondência entre a vontade dos
eleitores na sua massa e a composição dos eleitos àAssembleia Constituinte.

6) Em segundo lugar, uma fonte de classe ainda mais importante, não formal nem jurídica mas
económico-social, de não correspondência entre a vontade do povo, e especialmente das classes trabalhadoras,
por um lado, e a composição da Assembleia Constituinte, por outro, é a circunstância de que as eleições para a
Assembleia Constituinte tiveram lugar quando a esmaga dora maioria do povo não podia ainda conhecer toda a
dimensão e impor tância da Revolução de Outubro, da revolução soviética, proletária e cam ponesa, começada a
25 de Outubro de 1917, isto é, depois de terem sido apresentadas as listas dos candidatos à Assembleia
Constituinte.

7) A Revolução de Outubro, conquistando o poder para os Sovietes, arrancando o domínio político das
mãos da burguesia e entregando-o nas mãos do proletariado e do campesinato pobre, atravessa perante os
nossos olhos sucessivas etapas do seu desenvolvimento.

8) Ela começou com a vitória de 24-25 de Outubro na capital, quando o II Congresso dos Sovietes de
deputados operários e soldados de toda a Rússia, essa vanguarda dos proletários e da parte politicamente mais
activa do campesinato, deu a preponderância ao partido bolchevique e o elevou ao poder.

9) A revolução envolveu depois durante Novembro e Dezembro toda a massa do exército e do


campesinato, exprimindo-se em primeiro lugar na destituição e na reeleição das velhas organizações de
direcção (comités de exército, comités camponeses provinciais, CEC do Soviete de deputados camponeses de
toda a Rússia, etc), que exprimiam um período da revolução já ultrapassado, de conciliação, a sua etapa
burguesa e não proletária, e que por isso tinham inevitavelmente de sair da cena sob a pressão das mais
profundas e mais amplas massas populares.

117
10) Este poderoso movimento das massas exploradas para reconstituir os órgãos dirigentes das suas
organizações ainda não terminou hoje, em meados de Dezembro de 1917, e uma das suas etapas é o congresso
dos ferroviários em curso.

11) O agrupamento das forças de classe da Rússia na sua luta de classes assume Consequentemente, de
facto, em Novembro e em Dezembro de 1917, uma forma fundamentalmente diferente da que pôde encontrar a
sua expressão nas listas partidárias de candidatos à Assembleia Constituinte em meados de Outubro de 1917.

12) Os últimos acontecimentos na Ucrânia (em parte também na Finlândia e na Bielorússia, bem como
no Cáucaso) apontam do mesmo modo para um novo agrupamento das forças de classe que tem lugar no
processo da luta entre o nacionalismo burguês da Rada ucraniana[N238], da Dieta finlandesa, etc, por um lado,
e o Poder Soviético, a revolução proletária e camponesa de cada uma dessas repúblicas nacionais, por outro.

13) Finalmente, a guerra civil, começada com a insurreição contra-revolucionária democrata-


constitucionalista-kaledinista contra o Poder Soviético, contra o governo operário e camponês, agudizou
definitivamente a luta de classes e eliminou toda a possibilidade de resolver por uma via democrática formal as
questões mais candentes colocadas pela história aos povos da Rússia e, em primeiro lugar, à sua classe operária
e ao seu campesinato.

14) Só a vitória total dos operários e camponeses sobre a insurreição dos burgueses e dos
latifundiários (que encontrou a sua expressão no movimento democrata-constitucionalista-kaledinista), só uma
implacável repressão militar dessa insurreição de escravistas pode de facto assegurar a revolução proletária e
camponesa. O curso dos acontecimentos e o desenvolvimento da luta de classes na revolução fizeram com que a
palavra de ordem «Todo o poder à Assembleia Constituinte», que não tem em conta as conquistas da revolução
operária e camponesa, que não tem em conta o Poder Soviético, que não tem em conta as decisões do II
Congresso dos Sovietes de deputados operários e soldados de toda a Rússia, do II Congresso de deputados
camponeses de toda a Rússia, etc, com que tal palavra de ordem se tenha tornado de facto a palavra de ordem
dos democratas-constitucionalistas e dos kaledinistas e dos seus cúmplices. Para todo o povo(1*) tornou-se
inteiramente claro que a Assembleia Constituinte, se se divorciasse do Poder Soviético, estaria inevitavelmente
condenada à morte política.

15. Uma das questões mais agudas da vida do povo é a questão da paz. A luta verdadeiramente
revolucionária pela paz só se iniciou na Rússia depois da vitória da revolução de 25 de Outubro, e esta vitória
deu os primeiros frutos na forma da publicação dos tratados secretos, da conclusão do armistício e do começo
das negociações públicas sobre a paz geral sem anexações nem contribuições.

Só agora as vastas massas populares obtêm de facto, completa e abertamente, a possibilidade de ver
uma política de luta revolucionária pela paz e de estudar os seus resultados.

Durante as eleições para a Assembleia Constituinte as massas populares estavam privadas desta
possibilidade.

E claro que também neste aspecto é inevitável a falta de correspondência entre a composição dos
eleitos à Assembleia Constituinte e a verdadeira vontade do povo na questão do fim da guerra.

16. O conjunto de circunstâncias acima expostas tem por resultado que a Assembleia Constituinte,
convocada segundo as listas dos partidos existentes antes da revolução proletária e camponesa, numa situação
de domínio da burguesia, entre inevitavelmente em conflito com a vontade e os interesses das classes
trabalhadoras e exploradas, que a 25 de Outubro iniciaram a revolução socialista contra a burguesia. É natural
que os interesses desta revolução estejam acima dos direitos formais da Assembleia Constituinte, mesmo se
estes direitos formais não tivessem sido minados pela ausência na PB sobre a Assembleia Constituinte do
reconhecimento do direito do povo a eleger novos deputados a qualquer momento.

17) Qualquer tentativa, directa ou indirecta, de examinar a questão da Assembleia Constituinte de um


ponto de vista jurídico formal, no quadro da democracia burguesa habitual, sem ter em conta a luta de classes e
a guerra civil, constitui uma traição à causa do proletariado e a passagem para o ponto de vista da burguesia. É
um dever incondicional da social-democracia revolucionária prevenir todos e cada um contra este erro no qual

118
caem alguns dirigentes do bolchevismo, que não souberam avaliar a insurreição de Outubro e as tarefas da
ditadura do proletariado.

18) A única possibilidade de resolver sem dor a crise criada devido à não correspondência das eleições
para a Assembleia Constituinte e a vontade do povo e os interesses das classes trabalhadoras e exploradas
consiste na aplicação com a maior extensão e rapidez possível do direito do povo a proceder a novas eleições
dos membros da Assembleia Constituinte, na adesão da própria Assembleia Constituinte à lei do CEC sobre
estas novas eleições e na declaração da Assembleia Constituinte de que reconhece sem reservas o Poder
Soviético, a revolução soviética, a sua política na questão da paz, da terra e do controlo operário, na adesão
decidida da Assembleia Constituinte ao campo dos adversários da contra-revolução democrata-
constitucionalista-kaledinista.

19) Sem estas condições, a crise relacionada com a Assembleia Constituinte só pode ser resolvida por
via revolucionária, pela via das medidas revolucionárias mais enérgicas, rápidas, firmes e decididas por parte
do Poder Soviético contra a contra-revolução democrata-constitucionalista-kaledinista, quaisquer que sejam as
palavras de ordem e as instituições (mesmo a qualidade de membros da Assembleia Constituinte) com que se
encubra esta contra-revolução. Qualquer tentativa de atar as mãos do Poder Soviético nesta luta seria
cumplicidade com a contra-revolução.

Notas de rodapé:
(1*) No texto publicado no Pravda seguiam-se as palavras: «torna-se claro que esta palavra de ordem
significa na realidade a luta pela supressão do Poder Soviético e . . .». (N. Ed.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[238N] Rada Central Ucraniana: organização nacionalista burguesa contra-revolucionária constituída
pela coligação dos partidos e grupos burgueses e pequeno-burgueses nacionalistas ucranianos no Congresso
Nacional de Toda a Ucrânia, realizado em Abril de 1917 em Kíev.
A Rada Central procurava consolidar o poder da burguesia e dos latifundiários ucranianos, criar um
Estado burguês ucraniano, utilizando para isso o movimento de libertação nacional da Ucrânia. A Rada apoiava
o Governo Provisório, embora estivesse em desacordo com ele na questão da autonomia ucraniana.
Depois da vitória da Revolução Socialista de Outubro a Rada declarou-se órgão supremo da «República
Popular da Ucrânia» e travou uma luta aberta contra o Poder Soviético, sendo um dos centros da contra-
revolução de toda a Rússia.
Em Dezembro de 1917, no I Congresso dos Sovietes de Toda a Ucrânia realizado em Khárkov, a
Ucrânia foi proclamada República Soviética. O Congresso declarou abolido o poder da Rada Central. Em
Dezembro de 1917 e em Janeiro de 1918 todo o território ucraniano foi percorrido por uma vaga de
levantamentos armados dirigidos contra o poder da Rada Central, pela restauração do poder soviético. Em
Janeiro de 1918 as tropas soviéticas da Ucrânia passaram à ofensiva e no dia 26 de Janeiro (8 de Fevereiro)
ocuparam a cidade de Kíev, tendo derrubado o poder da Rada burguesa.
A Rada Central, depois de derrotada e expulsa do territótio nacional da Ucrânia Soviética, fez uma
aliança com o imperialismo alemão e concluiu com ele uma paz separada. Em Março de 1918, a Rada voltou a
Kíev junto com as tropas austro-alemãs que invadiram o território da Ucrânia. Os alemães, tendo-se convencido
de que a Rada era absolutamente incapaz de esmagar o movimento revolucionário na Ucrânia e de garantir o
fornecimento de víveres às tropas invasoras, dissolveram-na no fim de Abril.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1917/12/25.htm

119
Discursos Sobre a Guerra e a Paz na Reunião do CC do POSDR(b)[N245]

V. I. Lénine

11 (24) de Janeiro de 1918

O primeiro a tomar a palavra é o camarada Lenine, que assinala que na reunião de 8 (21) de Janeiro se
esboçaram três pontos de vista quanto a esta questão, e coloca a questão de se se deve discutir a questão
segundo os pontos das teses por ele expostas ou abrir uma discussão geral. É aprovada a última proposta, e dá-
se a palavra ao camarada Lenine.

Ele começa pela exposição dos três pontos de vista esboçados na reunião anterior:

a paz anexionista separada,


a guerra revolucionária e
declarar a guerra acabada, desmobilizar o exército, mas não assinar a paz.

Na reunião anterior o primeiro ponto de vista obteve 15 votos, o segundo 32 e o terceiro 16.

O camarada Lenine assinala que os bolcheviques nunca renunciaram à defesa, mas essa defesa e
protecção da pátria devia ter determinadas condições concretas, que existem actualmente, a saber: a defesa da
república socialista contra um imperialismo internacional extraordinariamente forte. O problema consiste
apenas em como é que devemos defender a pátria — a república socialista. O exército está desmedidamente
esgotado pela guerra; os efectivos de cavalos são tais que não poderemos levar a artilharia, a haver uma
ofensiva; a situação dos alemães nas ilhas do mar Báltico é tão boa que eles, a haver ofensiva, poderão tomar
Reval e Petrogrado só com as mãos. Continuando a guerra nestas condições, reforçaremos extraordinariamente
o imperialismo alemão, será preciso na mesma concluir a paz, mas então a paz será pior, porque não seremos
nós que a assinaremos. Indubitavelmente, a paz que somos obrigados a assinar agora é uma paz ignominiosa,
mas, se começar a guerra, o nosso governo será varrido, e a paz será concluída por outro governo. Agora
apoiamo-nos não só no proletariado, mas também no campesinato pobre, o qual se afastará de nós se a guerra
continuar. O prolongamento da guerra é no interesse do imperialismo francês, inglês e americano, e disso serve
de prova, por exemplo, a proposta feita pelos americanos no Quartel-General de Krilenko de 100 rublos por
cada soldado russo. Os que defendem o ponto de vista da guerra revolucionária indicam que desse modo nos
encontraremos em guerra civil com o imperialismo alemão e que desse modo despertaremos uma revolução na
Alemanha. Mas a Alemanha apenas está grávida da revolução, enquanto nós demos à luz uma criança
plenamente sã — a república socialista —, que podemos matar começando a guerra. Temos nas nossas mãos
uma carta circular dos sociais-democratas alemães, temos informações acerca da atitude em relação a nós de
duas tendências do centro, das quais uma considera que nós estamos subornados e que agora em Brest tem
lugar uma comédia com os papéis distribuídos de antemão. Esta parte ataca-nos por causa do armistício. A
outra parte dos kautskianos declara que a honestidade pessoal dos chefes dos bolcheviques está acima de
qualquer dúvida, mas que a conduta dos bolcheviques constitui um enigma psicológico[N246]. Não conhecemos
a opinião dos sociais-democratas de esquerda. Os operários ingleses apoiam a nossa aspiração à paz.
Naturalmente que a paz que concluiremos será uma paz ignominiosa, mas precisamos de uma protelação para
aplicar reformas sociais (tomai apenas os transportes); precisamos de nos consolidar mas para isso é
necessário tempo. Precisamos de esmagar até ao fim a burguesia, mas para isso precisamos de ter livres as duas
mãos. Tendo feito isto, libertaremos as nossas duas mãos e então poderemos conduzir uma guerra
revolucionária contra o imperialismo internacional. Os destacamentos do exército revolucionário voluntário
criados actualmente são os oficiais do nosso exército futuro.

O que propõe o camarada Trótski — a cessação da guerra, a renúncia a assinar a paz e a


desmobilização do exército — é uma manifestação política internacional. Com a nossa retirada de tropas o que
conseguimos é entregar a república socialista da Estlândia aos alemães. Diz-se que, concluindo a paz, libertamos
com isso as mãos aos japoneses e aos americanos, os quais se apoderarão imediatamente de Vladivostoque. Mas
enquanto eles chegarem apenas até Irkutsk, nós poderemos consolidar a nossa república socialista. Assinando a
paz, estamos a trair, naturalmente, a Polónia autodeterminada, mas conservamos a república socialista da
Estlândia e damos a possibilidade de consolidar as nossas conquistas. Naturalmente que fazemos uma viragem

120
à direita, que conduz através de um chiqueiro muito sujo, mas nós devemos fazê-lo. Se os alemães começarem a
ofensiva, seremos obrigados a assinar qualquer paz, mas então, naturalmente, ela será pior. Para salvar a
república socialista, três mil milhões de indemnização não é preço demasiado caro. Assinando a paz agora, nós
mostramos de modo patente às amplas massas que os imperialistas (da Alemanha, da Inglaterra e da França),
tendo tomado Riga e Bagdá, continuam a bater-se enquanto nós nos desenvolvemos, se desenvolve a república
socialista.

O camarada Lenine assinala que não está de acordo em alguns pontos com os seus partidários Stáline e
Zinóviev[N247]. Por um lado, naturalmente que no Ocidente existe um movimento de massas, mas a revolução
ali ainda não começou. No entanto, se devido a isso modificássemos a nossa táctica, seríamos traidores ao
socialismo internacional. Ele não está de acordo com Zinóviev em que a conclusão da paz enfraquecerá por
algum tempo o movimento no Ocidente. Se nós acreditarmos que o movimento alemão pode desenvolver-se
imeditamente no caso de interrupção das negociações de paz, temos que sacrificar-nos, pois a revolução alemã
será, quanto à força, muito superior à nossa. Mas a questão consiste em que o movimento ali ainda não
começou, enquanto no nosso país já tem uma criança recém-nascida que grita bem alto, e se nós neste momento
não dissermos claramente que estamos de acordo com a paz, estaremos perdidos. O importante para nós é
mantermo-nos até ao surgimento da revolução socialista geral, e só podemos consegui-lo assinando a paz.

O camarada Lenine propõe que se ponha à votação que nós protelemos por todos os meios a
assinatura da paz.

Notas de fim de tomo:


[N245] Na reunião do CC realizada em 11 (24) de Janeiro de 1918, depois da intervenção de Lenine
discutiu-se a questão da guerra e da paz. Contra a posição de Lenine intervieram os «comunistas de esquerda» e
Trótski. Na esperança de que a resistência dentro do CC à conclusão da paz fosse superada e se pudesse
verificar uma mudança de opinião dos partidários da continuação da guerra revolucionária, Lenine apresentou
uma proposta sobre a protelação por todos os meios das negociações de paz. Esta proposta foi aprovada por 12
votos contra 1. (retornar ao texto)
[N246] Lenine refere-se possivelmente ao artigo «Os bolcheviques e a social-democracia alemã», que
foi publicado sem assinatura no jornal Nóvaiajizn n°. 7, de 11 (24) de Janeiro de 1918. No jornal indicava-se que
o artigo pertencia a um destacado representante do Partido Social-Democrata Independente da Alemanha.
(retornar ao texto)
[N247] Lenine refere-se à intervenção de Stáline assim relatada na acta: «O camarada Stáline
considera que, aceitando a palavra de ordem de guerra revolucionária, fazemos o jogo do imperialismo. A
posição do camarada Trótski não é uma posição. No Ocidente não existe movimento revolucionário, não
existem factos, existem apenas em potência, mas nós não podemos contar com um movimento em potência. Se
os alemães iniciarem a ofensiva, isso reforçará a contra-revolução no nosso país.»
No que diz respeito à intervenção de G. E. Zinóviev, Lenine refere-se às seguintes palavras suas: «...
naturalmente, temos pela frente uma intervenção cirúrgica grave, já que com a paz reforçaremos o chauvinismo
na Alemanha e, durante algum tempo, enfraqueceremos o movimento em todo o Ocidente. E a seguir temos
outra perspectiva: a morte da república socialista.»

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/01/24-1.htm

121
Posição do CC do POSDR (Bolchevique) na Questão da Paz Separada e Anexionista

V. I. Lénine

26 de Fevereiro de 1918

Queridos camaradas!

O Bureau de Organização do CC considera necessário dirigir-se a vós para explicar os motivos que
levaram o CC a concordar com as condições de paz propostas pelo governo alemão. O Bureau de Organização
dirige-se a vós, camaradas, com esta explicação de uma ampla informação a todos os membros do partido do
ponto de vista do CC, que representa todo o partido no período entre os Congressos. O Bureau de Organização
considera necessário indicar que no CC não houve unanimidade na questão da assinatura das condições de paz.
Mas uma vez que se adoptou uma decisão, deve ser apoiada por todo o partido. Nos próximos dias realizar-se-á
o congresso do partido, e apenas nele se poderá resolver a questão de até que ponto o CC exprimiu
correctamente a posição efectiva de todo o partido. Até ao congresso, todos os membros do partido, em nome
do dever de partido, em nome da manutenção da unidade nas nossas próprias fileiras, aplicam a decisão do seu
órgão dirigente central, do CC do partido.

A necessidade absoluta de assinar no presente momento (24 de Fevereiro de 1918) a paz anexionista,
incrivelmente dura, com a Alemanha é provocada acima de tudo pelo facto de não termos exército, de não
podermos defender-nos.

Todos sabem por que todos nós nos tornámos defensistas, a favor da defesa da pátria, depois de 25 de
Outubro de 1917, depois da vitória da ditadura do proletariado e dos camponeses pobres.

Do ponto de vista da defesa da pátria é inadmissível deixarmo-nos arrastar para um conflito militar
quando não temos exército e quando o inimigo está armado até aos dentes, magnificamente preparado.

É impossível à República Socialista Soviética fazer a guerra tendo de modo evidente a imensa maioria
das massas operárias, camponeses e de soldados que elegem os Sovietes contra a guerra. Isso seria uma
aventura. Outra coisa será se esta guerra terminar, ainda que seja com uma paz arquidura, e o imperialismo
alemão quiser depois fazer novamente uma guerra ofensiva contra a Rússia. Então a maioria dos Sovietes estará
certamente a favor da guerra.

Fazer a guerra agora significa objectivamente cair na provocação da burguesia russa. Ela sabe muito
bem que a Rússia está agora indefesa e seria derrotada mesmo por insignificantes forças alemãs, às quais
bastaria cortar as principais linhas férreas para tomar pela fome Petrogrado e Moscovo. A burguesia quer a
guerra, pois quer o derrubamento do Poder Soviético e o acordo com a burguesia alemã. Confirma-o com toda a
clareza o triunfo dos burgueses em Dvinsk e Réjitsa, em Venden e Hapsal, em Minsk e Drissa quando da entrada
dos alemães.

A defesa da guerra revolucionária neste momento converte-se inevitavelmente numa frase


revolucionária. Pois sem exército, sem a mais séria preparação económica, para um país camponês arruinado
fazer a guerra moderna contra um imperialismo avançado é uma coisa impossível. A resistência ao
imperialismo alemão, que nos esmagaria, depois de nos ter feito prisioneiros, é absolutamente necessária. Mas
seria uma frase oca a exigência: resistir precisamente por meio de uma insurreição armada e precisamente
agora, quando uma tal resistência é evidentemente sem esperança para nós, evidentemente vantajosa tanto
para a burguesia alemã como para a russa.

É também uma frase a defesa da guerra revolucionária neste instante, com o argumento do apoio do
movimento socialista internacional. Se com a nossa aceitação inoportuna do combate contra o imperialismo
alemão lhe facilitamos a derrota da República Soviética, prejudicaremos e não ajudaremos o movimento
operário alemão e internacional e a causa do socialismo. É necessário apenas ajudar os internacionalistas
revolucionários dentro dos seus países com um trabalho sistemático, tenaz e multilateral, mas ir para a
aventura da insurreição armada quando ela é evidentemente uma aventura é indigno de um marxista.

122
Se Liebknecht vencer em 2-3 semanas (isto é possível) livrar-nos-á, naturalmente, de todas as
dificuldades. Mas seria simplesmente uma estupidez e transformaríamos em escárnio a grande palavra de
ordem da solidariedade dos trabalhadores de todos os países se nos ocorresse garantir perante o povo que
Liebknecht vencerá, sem falta e obrigatoriamente, nas próximas semanas. São precisamente os que pensam
assim que convertem numa frase perfeitamente oca a grande palavra de ordem: «jogámos tudo na revolução
mundial».

A situação assemelha-se, objectivamente, à do Verão de 1907. Então esmagou-nos e fez-nos


prisioneiros o monárquico russo Stolípine, e agora o imperialista alemão. Então a palavra de ordem de
insurreição imediata revelou-se uma frase oca que se apoderou, infelizmente, de todo o partido dos socialistas-
revolucionários. Agora, no momento actual, a palavra de ordem de guerra revolucionária é claramente uma
frase que entusiasma os socialistas-revolucionários de esquerda, que repetem os argumentos dos socialistas-
revolucionários de direita. Estamos prisioneiros do imperialismo alemão, espera-nos uma luta longa e difícil
para derrubar este pioneiro do imperialismo mundial; esta luta é absolutamente o combate último e decisivo
pelo socialismo, mas começar esta luta com a insurreição armada neste momento contra o pioneiro do
imperialismo é uma aventura em que nunca se lançarão os marxistas.

A preparação multilateral, firme e sistemática da capacidade defensiva do país, da autodisciplina em


todo o lado e em toda a parte, a utilização da dura derrota para elevar a disciplina em todos os domínios da vida
com vista ao ascenso económico do país e à consolidação do Poder Soviético — eis a tarefa do dia, eis a
preparação da guerra revolucionária de facto e não em palavras.

Em conclusão, o Bureau de Organização considera necessário indicar que, na medida em que até agora
a ofensiva do imperialismo alemão não cessou, todos os membros do partido devem organizar uma resistência
unânime. Se com a assinatura da paz, ainda que seja dura em extremo, for impossível conseguir tempo para nos
prepararmos para novas batalhas, o nosso partido deve indicar a necessidade de pôr em tensão todas as forças
para opor a resistência mais franca.

Se se puder ganhar tempo, conseguir uma trégua ainda que breve para o trabalho de organização,
temos o dever de o conseguir. Se não nos for dado um adiamento, o nosso partido deve chamar as massas à luta,
à autodefesa mais enérgica. Estamos convencidos de que todos os membros do partido cumprirão o seu dever
para com o partido, para com a classe operária do seu país, para com o povo e o proletariado. Mantendo o Poder
Soviético prestamos o melhor, o mais forte apoio ao proletariado de todos os países na sua luta incrivelmente
dura, difícil, contra a sua burguesia. E não há nem pode haver agora maior golpe para a causa do socialismo do
que a derrocada do Poder Soviético na Rússia.

Com saudações fraternais


O Bureau de Organização do CC do POSDR (bolchevique)

123
As Tarefas Imediatas do Poder Soviético

V. I. Lénine

26 de Abril de 1918

A Situação Internacional da República Soviética da Rússia e as Tarefas Fundamentais da


Revolução Socialista

Graças à paz conseguida — apesar de toda a sua dureza e de toda a sua precaridade —, a República
Soviética da Rússia obtém durante certo tempo a possibilidade de concentrar as suas forças no aspecto mais
importante e difícil da revolução socialista, a saber: na tarefa de organização.

Esta tarefa foi colocada com clareza e precisão perante todas as massas trabalhadoras e oprimidas no
4.° parágrafo (parte 4) da resolução aprovada a 15 de Março de 1918 no Congresso Extraordinário dos Sovietes
em Moscovo, no mesmo parágrafo (ou na mesma parte) da resolução em que se fala de autodisciplina dos
trabalhadores e da luta implacável contra o caos e a desorganização(1*).

A precaridade da paz conseguida pela República Soviética da Rússia não é determinada, naturalmente,
pelo facto de esta pensar agora reiniciar as acções militares; excepto os contra-revolucionários burgueses e os
seus seguidores (os mencheviques e outros), nenhum político que esteja no seu perfeito juízo pensa nisso. A
precaridade da paz é determinada pelo facto de que nos Estados imperialistas que têm fronteiras com a Rússia
a Oeste e a Leste e que possuem uma enorme força militar, pode triunfar de um momento para o outro o partido
militar, tentado pela momentânea fraqueza da Rússia e impelido pelos capitalistas, que odeiam o socialismo e
estão ávidos de rapinas.

Em tal situação, a garantia, real e não no papel, da paz, é para nós exclusivamente a dissensão entre as
potências imperialistas, que alcançaram o ponto culminante e que se manifestam, por um lado, no reinicio da
matança imperialista dos povos do Ocidente e, por outro lado, na competição imperialista extremamente aguda
entre o Japão e a América pelo domínio do Grande Oceano e das suas costas.

É claro que, defendida por uma protecção tão insegura, a nossa República Socialista Soviética se
encontra numa situação internacional absolutamente crítica e extraordinariamente precária. É necessária uma
extrema tensão de todas as nossas forças para aproveitar a trégua que nos foi concedida por uma confluência de
circunstâncias, para curar as graves feridas que a guerra trouxe a todo o organismo social da Rússia e para
elevar o nível económico do país, sem o que nem sequer se pode falar de uma elevação minimamente séria da
capacidade defensiva.

Também é claro que só prestaremos um sério auxílio à revolução socialista no Ocidente, que se atrasou
em virtude de uma série de causas, na medida em que soubermos resolver a tarefa de organização que se nos
coloca.

A condição fundamental para resolver com êxito a tarefa de organização, que temos perante nós em
primeiro lugar, consiste na plena assimilação pelos dirigentes políticos do povo, isto é, pelos membros do
Partido Comunista da Rússia (bolchevique), e, depois, por todos os representantes conscientes das massas
trabalhadoras, da diferença radical entre as revoluções burguesas anteriores e a actual revolução socialista, no
aspecto que estamos a analisar.

Nas revoluções burguesas, a tarefa principal das massas trabalhadoras consistia na realização de um
trabalho negativo ou destruidor de aniquilamento do feudalismo, da monarquia e do medievalismo. O trabalho
positivo ou construtivo de organização da nova sociedade era realizado pela minoria possuidora, burguesa, da
população. E, apesar da resistência dos operários e camponeses pobres, realizava esta tarefa com relativa
facilidade, não só porque a resistência das massas exploradas pelo capital era então, devido à sua dispersão e
falta de desenvolvimento, extremamente fraca, mas também porque a principal força organizadora da
sociedade capitalista, construída de uma maneira anárquica, é o mercado nacional e internacional, que cresce
espontaneamente em amplitude e profundidade.

124
Pelo contrário, a tarefa principal do proletariado e do campesinato pobre por ele guiado é, em toda a
revolução socialista — e consequentemente também na revolução socialista começada por nós na Rússia a 25
de Outubro de 1917 — o trabalho positivo ou construtivo de organização de uma rede extraordinariamente
complexa e delicada de novas relações de organização que abarquem a produção e a distribuição planificada
dos produtos necessários à existência de dezenas de milhões de pessoas. Tal revolução só pode ser realizada
com êxito com a actividade criadora histórica independente da maioria da população e, em primeiro lugar, da
maioria dos trabalhadores. Só no caso de o proletariado e o campesinato pobre encontrarem em si consciência,
firmeza ideológica, abnegação e perseverança suficientes, a vitória da revolução socialista estará assegurada. Ao
criar um novo tipo de Estado, o Estado Soviético, que abre às massas trabalhadoras e oprimidas a possibilidade
de tomar uma parte muito activa na construção independente da nova sociedade, resolvemos apenas uma
pequena parte de uma tarefa difícil. A dificuldade principal reside no campo económico: realizar um registo e
um controlo rigorosíssimo e geral da produção e distribuição dos produtos, elevar a produtividade do trabalho,
socializar de facto a produção.

O desenvolvimento do partido bolchevique, que é hoje o partido governamental na Rússia, mostra de


uma maneira particularmente evidente em que consiste a viragem histórica que atravessamos e que constitui a
peculiaridade do momento político actual e exige uma nova orientação do Poder Soviético, isto é, uma nova
colocação das novas tarefas.

A primeira tarefa de todo o partido do futuro é convencer a maioria do povo da justeza do seu
programa e da sua táctica. Esta tarefa estava em primeiro plano tanto sob o tsarismo como no período de
conciliação dos Tchernov e dos Tseretéli com os Kérenski e os Kichkine. Agora, esta tarefa, que, naturalmente,
está ainda longe de estar terminada (e que nunca pode ser completamente esgotada), está resolvida no
fundamental, pois, como o demonstrou irrefutavelmente o último congresso dos Sovietes em Moscovo, a
maioria dos operários e camponeses da Rússia está de modo evidente ao lado dos bolcheviques.

A segunda tarefa do nosso partido era a conquista do poder político e o esmagamento da resistência
dos exploradores. Também esta tarefa de modo nenhum está completamente esgotada, e não pode ser
ignorada, pois os monárquicos e os democratas-constitucionalistas por um lado, e os seus seguidores e lacaios,
os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita, por outro, continuam as suas tentativas para se
unirem para derrubar o Poder Soviético. Mas, no fundamental, a tarefa de esmagar a resistência dos
exploradores já foi resolvida no período de 25 de Outubro de 1917 até (aproximadamente) Fevereiro de 1918
ou até à rendição de Bogaévski.

Apresenta-se agora, como tarefa imediata e que constitui a peculiaridade do momento que
atravessamos, a terceira tarefa — organizar a administração da Rússia. Naturalmente que esta tarefa foi
colocada e resolvida por nós já no dia seguinte ao 25 de Outubro de 1917, mas até agora, enquanto a resistência
dos exploradores tomava ainda a forma de guerra civil aberta, até agora a tarefa da administração não pôde
tornar-se a tarefa principal, central.

Tornou-se agora. Nós, o partido bolchevique, convencemos a Rússia. Conquistámos a Rússia — dos
ricos para os pobres, dos exploradores para os trabalhadores. Agora devemos administrar a Rússia. E toda a
peculiaridade do momento que vivemos, toda a dificuldade consiste em compreender as particularidades da
transição da tarefa principal de convencer o povo e esmagar militarmente os exploradores para a tarefa
principal de administrar.

Pela primeira vez na história mundial, um partido socialista conseguiu concluir, nos seus traços
principais, a obra da conquista do poder e de esmagamento dos exploradores, conseguiu abordar a tarefa da
administração. É necessário que nos mostremos dignos cumpridores desta dificílima (e muito grata) tarefa da
revolução socialista. E necessário reflectir que para administrar com êxito é preciso, além de saber convencer,
além de saber vencer na guerra civil, saber organizar praticamente. Esta tarefa é a mais difícil, pois trata-se de
organizar de um modo novo as bases mais profundas, as económicas, da vida de dezenas e dezenas de milhões
de pessoas. E esta é a tarefa mais grata, pois unicamente depois de a resolver (nos seus traços principais e
fundamentais) se poderá dizer que a Rússia se tornou não só uma república soviética, mas também socialista.

A Palavra de Ordem Geral do Momento

125
A situação objectiva acima descrita, criada por uma paz extremamente dura e precária, por uma
dolorosa ruína, pelo desemprego e pela fome que nos deixou em herança a guerra e o domínio da burguesia (na
pessoa de Kérenski e dos mencheviques e socialistas-revolucionários de direita que o apoiavam) — tudo isto
originou inevitavelmente um extremo cansaço e mesmo o esgotamento das forças da vasta massa dos
trabalhadores. Ela exige insistentemente — e não pode deixar de exigir — um certo repouso. Na ordem do dia
coloca-se o restabelecimento das forças produtivas, arruinadas pela guerra e pela gestão da burguesia; a cura
das feridas provocadas pela guerra, pela derrota na guerra, pela especulação e pelas tentativas da burguesia
para restabelecer o derrubado poder dos exploradores; o ascenso económico do país; a protecção firme de uma
ordem elementar. Pode parecer um paradoxo, mas, na realidade, em virtude das condições objectivas indicadas,
é absolutamente indubitável que neste momento o Poder Soviético só pode consolidar a passagem da Rússia ao
socialismo no caso de resolver praticamente, apesar da reacção da burguesia, dos mencheviques e socialistas-
revolucionários de direita, precisamente estas tarefas muito elementares e elementaríssimas para a
manutenção da vida social. O cumprimento prático destas tarefas elementaríssimas e a superação das
dificuldades de organização dos primeiros passos para o socialismo são agora, em virtude das particularidades
concretas da situação actual e existindo o Poder Soviético com as suas leis sobre a socialização da terra, o
controlo operário, etc, duas faces de uma mesma medalha.

Faz cuidadosa e honestamente as contas do dinheiro, gere de modo económico, não sejas preguiçoso,
não roubes, observa a mais rigorosa disciplina no trabalho — estas são precisamente as palavras de ordem que,
justamente ridicularizadas pelos proletários revolucionários quando a burguesia encobria com discursos
semelhantes o seu domínio como classe dos exploradores, se tornam agora, depois do derrubamento da
burguesia, as palavras de ordem principais e imediatas do momento. E a realização prática destas palavras de
ordem pela massa dos trabalhadores constitui, por um lado, a única condição para salvar o país, martirizado
quase até à morte pela guerra imperialista e pelos abutres imperialistas (com Kérenski à cabeça) e, por outro
lado, a realização prática destas palavras de ordem pelo Poder Soviético, com os seus métodos, na base das suas
leis, é necessária e suficiente para a vitória definitiva do socialismo. Isto é o que não sabem compreender os que
afastam com desdém a colocação em primeiro plano de palavras de ordem tão «gastas» e «triviais». Num país
de pequenos camponeses, que apenas há um ano derrubou o tsarismo e há menos de meio ano se libertou dos
Kérenski, ficou, naturalmente, bastante anarquismo espontâneo, aumentado pelo asselvajamento e pela
barbárie, que acompanham toda a guerra longa e reaccionária, surgiu muito desespero e exasperação sem
objecto; se acrescentarmos a isto a política provocatória dos lacaios da burguesia (mencheviques, socialistas-
revolucionários de direita e outros), tornar-se-á plenamente compreensível que esforços prolongados e tenazes
dos melhores e mais conscientes operários e camponeses são necessários para uma viragem completa do
estado de espírito das massas e a sua passagem a um trabalho ordenado, consequente e disciplinado. Só esta
passagem realizada pela massa pobre (os proletários e os semiproletários) é capaz de concluir a vitória sobre a
burguesia e, particularmente, sobre a burguesia camponesa, a mais obstinada e numerosa.

A Nova Fase da Luta Contra a Burguesia

A burguesia foi vencida no nosso país, mas ainda não foi arrancada pela raiz, não foi aniquilada nem
sequer totalmente quebrada. Por isso, na ordem do dia coloca-se uma forma nova e superior de luta contra a
burguesia, a passagem da tarefa muito simples de prosseguir a expropriação dos capitalistas para a tarefa muito
mais complexa e difícil de criar condições nas quais não possa nem existir nem surgir de novo a burguesia. É
claro que esta é uma tarefa incomparavelmente mais elevada e enquanto não estiver resolvida não haverá ainda
socialismo.

Se tomarmos a escala das revoluções oeste-europeias, estamos agora aproximadamente no nível


alcançado em 1793 e 1871. Temos o direito legítimo de nos orgulharmos por nos termos elevado a este nível e,
num aspecto, chegámos indubitavelmente um pouco mais longe, a saber: decretámos e implantámos em toda a
Rússia um tipo superior de Estado, o Poder Soviético. Mas não podemos em caso algum contentarmo-nos com o
que foi conseguido, pois apenas começámos a transição para o socialismo, mas ainda não realizámos o que é
decisivo neste aspecto.

O decisivo é a organização do registo e do controlo rigorosíssimos e a nível nacional da produção e


distribuição dos produtos. Entretanto, ainda não alcançámos o registo e o controlo nas empresas, nos diversos
ramos e sectores da economia que arrancámos à burguesia, e sem isto nem sequer se pode falar da segunda
condição material da implantação do socialismo, igualmente essencial, a saber: a elevação da produtividade do
trabalho à escala nacional.

126
Por isso, não seria possível definir a tarefa do momento presente com uma simples fórmula: continuar
a ofensiva contra o capital. Apesar de ser indubitável que não desferimos o golpe de misericórdia no capital e
apesar de ser indiscutivelmente necessário continuar a ofensiva contra este inimigo dos trabalhadores, tal
definição seria imprecisa, não seria concreta, nela não se teria em conta a peculiaridade do momento presente,
quando no interesse de êxito da ofensiva ulterior se tem de «interromper» agora a ofensiva.

Isto pode explicar-se comparando a nossa situação na guerra contra o capital com a situação de um
exército vitorioso que tomou, digamos, metade ou dois terços do território inimigo e é obrigado a interromper a
ofensiva para reagrupar as forças, aumentar as reservas de meios de combate, reparar e reforçar as linhas de
comunicação, construir novos depósitos, trazer novas reservas, etc. A interrupção da ofensiva do exército
vitorioso em semelhantes condições é necessária precisamente no interesse da conquista do território restante
ao inimigo, isto é, no interesse da vitória completa. Quem não tenha compreendido que tal é, precisamente, o
carácter da «interrupção» da ofensiva contra o capital, imposta pela situação objectiva do momento actual, nada
compreendeu do momento político que vivemos.

Claro está que só se pode falar de uma «interrupção» entre aspas da ofensiva contra o capital, isto é, só
metaforicamente. Numa guerra vulgar pode dar-se uma ordem geral sobre a interrupção da ofensiva, pode-se,
de facto, deter o avanço. Na guerra contra o capital não é possível deter o avanço e nem se deve falar de que
renunciemos a continuar a expropriação do capital. Trata-se de modificar o centro de gravidade do nosso
trabalho económico e político. Até agora estavam em primeiro plano as medidas de imediata expropriação dos
expropriadores. Agora coloca-se em primeiro plano a organização do registo e do controlo nas empresas em
que os capitalistas já foram expropriados e em todas as restantes empresas.

Se agora quiséssemos continuar a expropriar o capital com o ritmo anterior, sofreríamos


provavelmente uma derrota, pois o nosso trabalho de organização do registo e do controlo proletários atrasou-
se claramente, de modo evidente para toda a pessoa que pense, em relação ao trabalho de directa
«expropriação dos expropriadores». Se agora dedicarmos todas as nossas forças ao trabalho de organização do
registo e do controlo, poderemos resolver esta tarefa, recuperaremos o tempo perdido, ganharemos toda a
nossa «campanha» contra o capital.

Mas o reconhecimento de que se tem de recuperar o tempo perdido acaso não equivale a reconhecer
algum erro cometido? De modo nenhum. Tomemos novamente uma comparação de carácter militar. Se
podemos derrotar e fazer recuar o inimigo apenas com destacamentos de cavalaria ligeira, devemos fazê-lo.
Mas se isto pode fazer-se com êxito apenas até um determinado limite, é plenamente concebível que para além
desse limite surgirá a necessidade de utilizar a artilharia pesada. Reconhecendo que agora se tem de recuperar
o tempo perdido no transporte da artilharia pesada, não consideramos de modo nenhum um erro o ataque
vitorioso da cavalaria.

Os lacaios da burguesia censuraram-nos com frequência o facto de termos conduzido um ataque


contra o capital «no estilo da guarda vermelha». Censura absurda, digna justamente dos lacaios do saco de
dinheiro. Pois o ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o capital foi no seu tempo ditado
incondicionalmente pelas circunstâncias: em primeiro lugar, o capital resistia então militarmente, na pessoa de
Kérenski e Krasnov, Sávinkov e Gots (ainda hoje Gueguetchkóri resiste desta maneira), Dútov e Bogaévski. Não
é possível quebrar uma resistência militar senão por meios militares, e os guardas vermelhos realizaram a obra
histórica nobilíssima e grandiosa de libertar os trabalhadores e explorados do jugo dos exploradores.

Em segundo lugar, então não teríamos podido pôr em primeiro plano os métodos de administração em
vez dos métodos de repressão, porque a arte da administração não é inata nos homens, mas é dada pela
experiência. Então não tínhamos esta experiência, agora temos. Em terceiro lugar, não podíamos ter então à
nossa disposição especialistas dos diferentes ramos do conhecimento e da técnica, pois eles combatiam nas
fileiras dos Bogaévski ou tinham ainda a possibilidade de opor, por meio da sabotagem, uma resistência passiva
sistemática e tenaz. Mas agora quebrámos a sabotagem. O ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o
capital teve êxito, foi vitorioso, pois vencemos tanto a resistência militar do capital como a resistência do capital
por meio da sabotagem.

Quer isto acaso dizer que o ataque «no estilo da guarda vermelha» contra o capital é sempre
apropriado, apropriado em todas as circunstâncias, que não temos outros métodos de lutar contra o capital?

127
Seria infantil pensar deste modo. Vencemos por meio da cavalaria ligeira, mas também temos artilharia pesada.
Vencemos por meio dos métodos de repressão, mas também saberemos vencer pelos métodos de
administração. Temos de saber modificar os métodos de luta contra o inimigo quando se modificam as
circunstâncias. Não renunciaremos nem por um instante à repressão «no estilo da guarda vermelha» contra os
senhores Sávinkov e Gueguetchkóri, assim como contra quaisquer outros contra-revolucionários latifundiários
e burgueses. Mas não somos tão tolos que ponhamos em primeiro lugar os métodos «no estilo da guarda
vermelha» num momento em que, no fundamental, a época da necessidade do ataque no estilo da guarda
vermelha terminou (e terminou vitoriosamente) e quando bate à porta a época da utilização dos especialistas
burgueses pelo poder de Estado proletário para tornar a lavrar o solo de tal modo que nele não possa de modo
nenhum crescer qualquer burguesia.

É uma época peculiar, ou melhor, uma fase peculiar do desenvolvimento e, para vencer o capital até ao
fim, temos de saber adaptar as formas da nossa luta às condições peculiares desta fase.

Sem a direcção dos especialistas dos diferentes ramos do conhecimento, da técnica, da experiência, é
impossível a transição para o socialismo, porque o socialismo exige um movimento de avanço consciente e
massivo para uma produtividade do trabalho superior em comparação com o capitalismo e na base do que foi
alcançado pelo capitalismo. O socialismo deve realizar este movimento de avanço à sua maneira, com os seus
próprios métodos, mais concretamente, por métodos soviéticos. Mas os especialistas, em virtude de todas as
condições da vida social que fez deles especialistas, são inevitavelmente burgueses na sua massa. Se, tendo
conquistado o poder, o nosso proletariado resolvesse rapidamente a tarefa do registo, do controlo e da
organização à escala nacional (isto era irrealizável por causa da guerra e do artaso da Rússia), então, tendo
esmagado a sabotagem, por meio do registo e do controlo gerais também submeteríamos por completo os
especialistas burgueses. Devido a um considerável «atraso» na introdução do registo e do controlo em geral,
apesar de termos conseguido vencer a sabotagem, ainda não criámos as condições que ponham à nossa
disposição os especialistas burgueses. A massa dos sabotadores «aceita o emprego», mas os melhores
organizadores e os maiores especialistas podem ser utilizados pelo Estado, seja à maneira antiga, à maneira
burguesa (isto é, por um salário elevado), seja à maneira nova, à maneira proletária (isto é, por meio da criação
das condições do registo e do controlo nacionais a partir de baixo, condições que, por si mesmas, submeteriam e
atrairiam inevitavelmente os especialistas).

Tivemos agora de recorrer ao velho método burguês e aceitar um pagamento muito elevado dos
«serviços» dos maiores especialistas burgueses. Todos os que conhecem a situação vêem isto, mas nem todos
meditam no significado de semelhante medida por parte do Estado proletário. É claro que tal medida é um
compromisso, um desvio dos princípios da Comuna de Paris e de qualquer poder proletário, que exigem a
redução dos ordenados ao nível do salário do operário médio, que exigem que se lute contra o carreirismo com
factos e não com palavras.

Mas isto não é tudo. É claro que tal medida é não apenas uma interrupção — em certo campo e em
certo grau — da ofensiva contra o capital (pois o capital não é uma simples soma de dinheiro, mas uma
determinada relação social), mas também um passo atrás do nosso poder de Estado socialista, soviético, que
desde o primeiro momento proclamou e conduziu uma política de redução dos altos ordenados até ao nível do
salário do operário médio[N294].

Naturalmente, os lacaios da burguesia, em especial os de pouca monta como os mencheviques, os


novojiznistas e os socialistas-revolucionários de direita, rir-se-ão pelo facto de termos reconhecido que damos
um passo atrás. Mas não devemos prestar atenção aos seus risinhos. Devemos estudar as peculiaridades do
caminho, novo e difícil ao mais alto grau, para o socialismo, sem encobrir os nossos erros e fraquezas, mas
tentando fazer a tempo o que não foi feito. Ocultar às massas que a atracção dos especialistas burgueses, por
meio de salários extraordinariamente elevados, é um desvio dos princípios da Comuna, significaria descer ao
nível dos politiqueiros burgueses e enganar as massas. Explicar abertamente como e porque demos um passo
atrás, discutir publicamente quais os meios que temos para recuperar o tempo perdido, significa educar as
massas e aprender com a experiência, aprender juntamente com elas a construir o socialismo. Talvez não haja
na história uma única campanha militar vitoriosa na qual o vencedor não tenha cometido alguns erros, não
tenha sofrido derrotas parciais, não tenha recuado temporariamente nalguma coisa e nalgum lado. E a
«campanha» contra o capitalismo empreendida por nós é um milhão de vezes mais difícil do que a mais difícil
campanha militar, e seria tolo e vergonhoso cair no desânimo por causa de uma retirada isolada e parcial.

128
Abordemos a questão do ponto de vista prático. Admitamos que, para dirigir o trabalho do povo com o
objectivo do ascenso económico mais rápido possível do país, a República Soviética da Rússia necessita de 1000
sábios e especialistas de primeira classe dos diversos domínios do conhecimento, da técnica e da experiência
prática. Admitamos que temos de pagar a cada uma destas «estrelas de primeira grandeza» — a maioria deles,
naturalmente, está tanto mais corrompida pelos costumes burgueses quanto mais gostosamente grita acerca da
corrupção dos operários — 25000 rublos por ano. Admitamos que esta soma (25 milhões de rublos) tem de ser
duplicada (supondo o pagamento de prémios pelo cumprimento particularmente rápido e eficiente das tarefas
técnicas e de organização mais importantes) ou mesmo quadruplicada (supondo o recrutamento de algumas
centenas de especialistas estrangeiros mais exigentes). Pergunta-se: poder-se-á considerar excessivo ou acima
das forças da República Soviética o gasto de cinquenta ou cem milhões de rublos por ano para a reorganização
do trabalho do povo segundo a última palavra da ciência e da técnica? Naturalmente que não. A esmagadora
maioria dos operários e camponeses conscientes aprovará este gasto, sabendo pela vida prática que o nosso
atraso nos obriga a perder milhares de milhões, que ainda não alcançámos o grau suficiente de organização,
registo e controlo para provocar a participação geral e voluntária das «estrelas» da intelectualidade burguesa
no nosso trabalho.

Naturalmente, a questão tem também outro aspecto. A influência corruptora das altas remunerações é
indiscutível — tanto sobre o Poder Soviético (tanto mais que na rapidez da revolução não pode deixar de aderir
a este poder uma certa quantidade de aventureiros e ladrões, que, juntamente com alguns comissários ineptos
ou sem escrúpulos, não desgostariam de chegar a «estrelas» da... dilapidação do erário público) como sobre a
massa operária. Mas tudo o que há de pensante e honesto entre os operários e os camponeses pobres
concordará connosco, reconhecerá que não estamos em condições de nos livrarmos de repente da herança má
do capitalismo, que não podemos libertar a República Soviética do «tributo» de 50 ou 100 milhões de rublos
(tributo pelo nosso próprio atraso na organização do registo e do controlo nacionais a partir de baixo) senão
organizando-nos, reforçando a disciplina entre nós próprios, limpando as nossas fileiras de todos os
«conservadores da herança do capitalismo», «os que observam as tradições do capitalismo», isto é, dos
mandriões, parasitas e dilapidadores do erário público (agora toda a terra, todas as fábricas, todos os caminhos-
de-ferro são o «erário público» da República Soviética). Se os operários e os camponeses pobres conscientes e
avançados, ajudados pelas instituições soviéticas, conseguem num ano organizar-se, disciplinar-se, corrigir-se,
criar uma poderosa disciplina do trabalho, então num ano poderemos libertar-nos deste «tributo», que poderá
mesmo ser reduzido antes ... exactamente na medida dos êxitos da nossa disciplina e organização de trabalho
operárias e camponesas. Quanto mais depressa nós, operários e camponeses, aprendermos uma melhor
disciplina do trabalho e uma técnica de trabalho mais elevada, aproveitando para isto a ciência dos especialistas
burgueses, tanto mais depressa nos livraremos de todo o «tributo» a estes especialistas.

O nosso trabalho de organização, sob a direcção do proletariado, de registo e do controlo nacionais da


produção e da distribuição dos produtos está fortemente atrasado em relação ao nosso trabalho de
expropriação directa dos expropriadores. Esta tese é fundamental para compreender as peculiaridades do
momento presente e as tarefas do Poder Soviético que dai decorrem. O centro de gravidade da luta contra a
burguesia desloca-se para a organização deste registo e controlo. Só partindo disto poderemos definir
correctamente as tarefas imediatas da política económica e financeira no domínio da nacionalização dos bancos,
da monopolização do comércio externo, do controlo do Estado sobre a circulação fiduciária, da introdução de
um imposto sobre os bens e os rendimentos aceitável do ponto de vista proletário, da introdução do trabalho
obrigatório.

Nestes domínios (e são domínios muito e muito essenciais), estamos extremamente atrasados nas
transformações socialistas, e estamos atrasados precisamente porque o registo e o controlo em geral estão
insuficientemente organizados. Compreende-se, esta é uma das tarefas mais difíceis e, com a ruína criada pela
guerra, só admite uma solução prolongada, mas não se pode esquecer que é aqui exactamente que a burguesia
— especialmente as numerosas pequena burguesia e burguesia camponesa — nos dá o combate mais sério,
minando o controlo que estamos a estabelecer, minando, por exemplo, o monopólio dos cereais, conquistando
posições para a especulação e o comércio especulativo. Estamos ainda longe de ter levado suficientemente à
prática aquilo que já decretámos, e a tarefa principal do momento consiste precisamente em concentrar todos
os esforços na realização prática, efectiva, das bases das transformações que se converteram já em leis (mas não
se converteram ainda em realidade).

Para prosseguir a nacionalização dos bancos e marchar firmemente para a transformação dos bancos
em pontos centrais da contabilidade social no socialismo é necessário, em primeiro lugar e acima de tudo,

129
conseguir êxitos reais no aumento do número de sucursais do Banco Nacional, na atracção dos depósitos, na
simplificação ao público das operações de depositar e levantar dinheiro, na liquidação das «bichas», na captura
e fuzilamento dos concussionários e vigaristas, etc. Em primeiro lugar levar à prática realmente o mais simples,
organizar satisfatoriamente o existente — e depois preparar o mais complexo.

Consolidar e pôr em ordem os monopólios de Estado (sobre o trigo, o couro, etc.) já implantados e,
com isso, preparar a monopolização do comércio externo pelo Estado; sem tal monopolização, não poderemos
«livrar-nos» do capital estrangeiro mediante o pagamento de «tributos»[N295]. E toda a possibilidade da
construção socialista depende de se saberemos, no decurso de um determinado período de transição, defender
a nossa independência económica interna, pagando certo tributo ao capital estrangeiro.

No que respeita à cobrança dos impostos em geral, e do imposto sobre bens e rendimentos em
particular, também estamos extraordinariamente atrasados. A imposição de contribuições à burguesia —
medida que, em princípio, é absolutamente aceitável e merece a aprovação do proletariado — mostra que neste
aspecto estamos ainda mais perto dos métodos de conquista (da Rússia dos ricos para os pobres) que dos
métodos de administração. Mas, para nos tornarmos mais fortes, para nos mantermos mais solidamente nas
nossas pernas, devemos passar a estes últimos métodos, devemos substituir a constribuição imposta à
burguesia por um imposto sobre os bens e rendimentos, permanente e regularmente cobrado, o qual dará mais
ao Estado proletário e que exige de nós precisamente uma maior organização e um melhor funcionamento do
registo e do controlo.

O nosso atraso na introdução do trabalho obrigatório mostra mais uma vez que na ordem do dia se
coloca precisamente o trabalho preparatório e de organização que, por um lado, deve consolidar
definitivamente o conquistado e, por outro lado, é necessário para preparar a operação que «cercará» o capital
e o obrigará a «render-se». Deveríamos começar imediatamente a introdução do trabalho obrigatório, mas
introduzi-lo de uma maneira muito gradual e circunspecta, verificando cada passo por meio da experiência
prática e, naturalmente, introduzindo como primeiro passo o trabalho obrigatório para os ricos. A introdução
da caderneta de trabalho e de consumo e orçamento para todos os burgueses, incluídos os do campo, seria um
sério passo em frente na direcção do «cerco» total do inimigo e da criação de um registo e de um controlo
verdadeiramente nacionais da produção e da distribuição dos produtos.

Importância da Luta por um Registro e por um Controlo Nacionais

O Estado que, durante séculos, foi um órgão de opressão e espoliação do povo, deixou-nos em herança
um enorme ódio e desconfiança das massas por tudo o que é estatal. Superar isto é uma tarefa muito difícil,
unicamente ao alcance do Poder Soviético, mas que também requer dele longo tempo e uma enorme
perseverança. Sobre a questão do registo e do controlo — questão fundamental para a revolução socialista no
dia a seguir ao derrubamento da burguesia — tal «herança» reflecte-se de uma maneira particularmente aguda.
Passará inevitavelmente certo tempo até que as massas, que pela primeira vez se sentiram livres depois do
derrubamento dos latifundiários e da burguesia, compreendam — não pelos livros, mas pela sua própria
experiência soviética —, compreendam e sintam que sem um registo e um controlo multilaterais e estatais
sobre a produção e a distribuição de produtos, o poder dos trabalhadores, a liberdade dos trabalhadores não
pode manter-se e que o regresso ao jugo do capitalismo é inevitável.

Todos os hábitos e tradições da burguesia em geral, e da pequena burguesia em particular, são contra
o controlo estatal e são pela intangibilidade da «sacrossanta propriedade privada», da «sacrossanta» empresa
privada. Hoje vemos com particular clareza até que grau é exacta a tese marxista de que o anarquismo e o
anarco-sindicalismo são correntes burguesas, em que contradição irreconciliável se encontram em relação ao
socialismo, à ditadura do proletariado, ao comunismo. A luta para incutir nas massas a ideia do registo e do
controlo estatais soviéticos, para levar à prática esta ideia, para romper com o maldito passado que ensinou a
considerar a obtenção do pão e do vestuário como um assunto «privado», a compra e venda como um negócio
que «só a mim diz respeito» — esta é uma luta grandiosa, de importância histórico-mundial, a luta da
consciência socialista contra a espontaneidade anárquico-burguesa.

O controlo operário foi introduzido entre nós como lei, mas na prática e mesmo na consciência das
amplas massas do proletariado apenas começa a penetrar. Falamos insuficientemente na nossa agitação, os
operários e camponeses avançados pensam e falam insuficientemente de que a falta de registo e a falta de
controlo no domínio da produção e distribuição dos produtos é a morte para os embriões do socialismo, é uma

130
dilapidação do erário público (pois todos os bens pertencem ao erário público e o erário público é o Poder
Soviético, o poder da maioria dos trabalhadores), que a negligência no registo e no controlo é uma cumplicidade
directa com os Kornílov alemães e russos, que só podem derrubar o poder dos trabalhadores na condição de
não conseguirmos resolver a tarefa do registo e de controlo, e que com a ajuda de toda a burguesia camponesa,
com a ajuda dos democratas-constitucionalistas, dos mencheviques, dos socialistas-revolucionários de direita
nos «espreitam», esperando o momento. Mas enquanto o controlo operário não for um facto, enquanto os
operários avançados não tiverem organizado e levado a cabo a sua campanha vitoriosa e implacável contra os
infractores deste controlo ou os que mostrarem despreocupação a respeito do controlo, até então não
poderemos, depois de ter dado o primeiro passo (o do controlo operário), dar o segundo passo no caminho do
socialismo, isto é, passar à regulação operária da produção.

O Estado socialista pode surgir unicamente como uma rede de comunas de produção e consumo, que
registem conscienciosamente a sua produção e consumo, economizem o trabalho, elevem constantemente a sua
produtividade e com isso alcancem a possibilidade de reduzir a jornada de trabalho até sete, seis horas e
mesmo menos. Sem organizar um registo e um controlo nacionais, rigorosíssimos e universais sobre os cereais
e a obtenção dos cereais (e depois também de todos os outros produtos necessários), não é possível sair daqui.
O capitalismo deixou-nos em herança organizações de massas capazes de facilitar a transição para o registo e o
controlo de massas da distribuição de produtos: as sociedades de consumo. Na Rússia estão menos
desenvolvidas do que nos países avançados, mas, não obstante, abarcaram mais de dez milhões de membros. O
decreto publicado há dias sobre as sociedades de consumo representa um fenómeno extraordinariamente
importante e demonstra de modo evidente a peculiaridade da situação e das tarefas da República Socialista
Soviética no momento presente.

O decreto constitui um acordo com as cooperativas burguesas e com as cooperativas operárias que
continuam a manter um ponto de vista burguês. O acordo ou compromisso consiste, primeiro, em que os
representantes das citadas instituições não só participaram na discussão do decreto como obtiveram de facto o
direito de voto deliberativo, pois as partes do decreto que encontraram a decidida oposição destas instituições
foram rejeitadas. Segundo, o compromisso consiste, no fundo, em que o Poder Soviético renuncia ao princípio
da admissão gratuita nas cooperativas (único princípio consequentemente proletário), bem como à associação
de toda a população de um dado local numa só cooperativa. Renunciando a este princípio, único princípio
socialista que corresponde à tarefa da supressão das classes, foi dado o direito de continuarem a existir às
«cooperativas operárias de classe» (que neste caso se chamam «de classe» unicamente porque se subordinam
aos interesses de classe da burguesia). Finalmente, a proposta do Poder Soviético de excluir totalmente a
burguesia da direcção das cooperativas foi também muito atenuada e a proibição de entrar na direcção tornou-
se extensiva apenas aos proprietários das empresas comerciais e industriais de carácter capitalista privado.

Se o proletariado, agindo através do Poder Soviético, tivesse conseguido organizar o registo e o


controlo à escala de todo o Estado ou pelo menos as bases desse controlo, não haveria necessidade de
semelhantes compromissos. Através das secções de víveres dos Sovietes, através dos órgãos de abastecimento
junto dos Sovietes, uniríamos a população numa cooperativa única dirigida pelo proletariado, sem a
colaboração das cooperativas burguesas, sem concessões ao princípio puramente burguês que aconselha que a
cooperativa operária permaneça operária ao lado da burguesa, em vez de subordinar a si toda a cooperativa
burguesa, fundindo ambas, chamando a si toda a direcção, tomando nas suas mãos a vigilância do consumo dos
ricos.

Ao concluir tal acordo com as cooperativas burguesas, o Poder Soviético definiu de um modo concreto
as suas tarefas tácticas e os seus peculiares métodos de acção para a presente fase de desenvolvimento, a saber:
ao dirigir os elementos burgueses, ao aproveitá-los, ao fazer-lhes determinadas concessões parciais, nós
criamos as condições para um avanço que será mais lento do que no começo supúnhamos, mas que ao mesmo
tempo será mais firme, com uma base e linhas de comunicação mais solidamente garantidas, com uma melhor
consolidação das posições conquistadas. Os Sovietes podem (e devem) medir agora os seus êxitos na obra da
edificação socialista, entre outras coisas, com medidas extraordinariamente claras, simples, práticas:
precisamente em que número de comunidades (comunas ou aldeias, bairros, etc.) e em que medida o
desenvolvimento das cooperativas se aproxima do objectivo de abarcar toda a população.

A Elevação da Produtividade do Trabalho

131
Em toda a revolução socialista, depois de se ter resolvido a tarefa da conquista do poder pelo
proletariado e à medida que, no principal e fundamental, se cumpra a tarefa de expropriar os expropriadores e
esmagar a sua resistência, avança inevitavelmente para primeiro plano a tarefa essencial da criação de um
sistema social superior ao do capitalismo, a saber: a elevação da produtividade do trabalho e, em relação com
isto (e para isto), a sua organização superior. O nosso Poder Soviético encontra-se precisamente numa situação
em que, graças às vitórias sobre os exploradores, desde Kérenski até Kornílov, obteve a possibilidade de
abordar directamente esta tarefa, de a ela se entregar plenamente. E aqui torna-se imediatamente evidente que,
se é possível apoderar-se em poucos dias do poder de Estado central, se é possível esmagar em poucas semanas
a resistência militar (e a sabotagem) dos exploradores, mesmo nos diferentes cantos de um grande país, a
solução duradoura da tarefa da elevação da produtividade do trabalho exige, em todo o caso (especialmente
depois de uma guerra das mais penosas e devastadoras), vários anos. São as circunstâncias objectivas que
ditam aqui incondicionalmente o carácter prolongado do trabalho.

O ascenso da produtividade do trabalho exige, acima de tudo, que se assegure a base material da
grande indústria: o desenvolvimento da produção de combustível, de ferro, de máquinas, da indústria química.
A República Soviética da Rússia encontra-se em condições vantajosas porquanto dispõe — mesmo depois da
paz de Brest — de gigantescas reservas de mineral (nos Urais), de combustível na Sibéria Ocidental (hulha), no
Cáucaso e no Sudeste (petróleo), no Centro (turfa), de gigantescas riquezas florestais, força hidráulica,
matérias-primas para a indústria química (Karabugaz), etc. A exploração destas riquezas naturais com os
métodos da técnica moderna dará a base de um progresso nunca visto das forças produtivas.

Outra condição da elevação da produtividade do trabalho é, em primeiro lugar, o ascenso cultural e


educativo da massa da população. Este ascenso realiza-se agora com uma rapidez enorme, coisa que não vêem
as pessoas cegas pela rotina burguesa, incapazes de compreender quão grande é o impulso para a luz e o
espírito de iniciativa que se desenvolve agora entre as «camadas inferiores» do povo, graças à organização
soviética. Em segundo lugar, também é uma condição do ascenso económico a elevação da disciplina dos
trabalhadores, a habilidade no trabalho, a eficácia, a intensidade do trabalho, a sua melhor organização.

Neste aspecto, a acreditar naqueles que se deixaram atemorizar pela burguesia ou a servem
egoistamente, as coisas estão entre nós particularmente mal e mesmo sem esperança. Esta gente não
compreende que não houve nem pode haver uma revolução em que os partidários do que é velho não gritem
acerca da ruína, da anarquia, etc. É natural que nas massas, que acabaram de se libertar de um jugo
incrivelmente selvagem, tenha lugar uma profunda e ampla efervescência e fermentação; que a elaboração
pelas massas das novas bases da disciplina do trabalho é um processo muito demorado; que esta elaboração
nem sequer podia começar antes da vitória completa sobre os latifundiários e a burguesia.

Mas, sem nos deixarmos dominar minimamente pelo desespero, frequentemente fingido, que
propagam os burgueses e os intelectuais burgueses (que perderam a esperança de manter os seus velhos
privilégios), nós não devemos de modo algum encobrir um mal evidente. Pelo contrário, revela-lo-emos e
reforçaremos os métodos soviéticos de luta contra ele, pois o êxito do socialismo é inconcebível sem a vitória da
disciplina proletária consciente sobre a anarquia espontânea pequeno-burguesa, essa verdadeira garantia da
possibilidade da restauração do regime de Kérenski e Kornílov.

A vanguarda mais consciente do proletariado da Rússia já colocou a si mesma a tarefa de elevar a


disciplina do trabalho. Por exemplo, tanto no Comité Central do Sindicato dos Metalúrgicos como no Conselho
Central dos Sindicatos começou a elaboração das medidas e projectos de decreto correspondentes[N296]. É
preciso apoiar e impulsionar com todas as forças este trabalho. É preciso colocar na ordem do dia, aplicar na
prática e experimentar o salário à peça, aplicar muito do que há de científico e progressivo no sistema de
Taylor, regular o salário com os balanços gerais da produção ou com os resultados da exploração do transporte
ferroviário, por barco, etc, etc.

Em comparação com as nações avançadas, o russo é um mau trabalhador. E não podia ser de outro
modo sob o regime tsarista e com a vitalidade dos restos do regime de servidão. Aprender a trabalhar — esta é
a tarefa que o Poder Soviético deve colocar em toda a sua envergadura perante o povo. A última palavra do
capitalismo neste aspecto, o sistema de Taylor — tal como todos os progressos do capitalismo —, reúne em si
toda a refinada crueldade da exploração burguesa e uma série de riquíssimas conquistas científicas no campo
da análise dos movimentos mecânicos no trabalho, a supressão dos movimentos supérfluos e inábeis, a
elaboração dos métodos de trabalho mais correctos, a introdução dos melhores sistemas de registo e controlo,

132
etc. A República Soviética deve adoptar a todo o custo as conquistas mais valiosas da ciência e da técnica neste
domínio. A possibilidade de realizar o socialismo é determinada precisamente pelos nossos êxitos na
combinação do Poder Soviético e da organização soviética da administração com os últimos progressos do
capitalismo. Tem de se criar na Rússia o estudo e o ensino do sistema de Taylor, a sua experimentação e
adaptação sistemáticas. Ao mesmo tempo, caminhando para a elevação da produtividade do trabalho, é preciso
ter em conta as particularidades do período de transição do capitalismo para o socialismo, que exigem, por um
lado, que sejam lançadas as bases da organização socialista da emulação e, por outro lado, exigem a aplicação da
coacção para que a palavra de ordem de ditadura do proletariado não seja maculada por uma prática de
brandura excessiva do Poder Soviético.

A Organização da Emulação

Ao número de absurdos que a burguesia difunde gostosamente sobre o socialismo pertence o de que
os socialistas negam a importância da emulação. De facto, só o socialismo, ao suprimir as classes e,
consequentemente, a escravização das massas, abre pela primeira vez o caminho para a emulação numa escala
verdadeiramente de massas. E é precisamente a organização soviética que, passando da democracia formal da
república burguesa à verdadeira participação das massas trabalhadoras na administração, coloca pela primeira
vez a emulação numa ampla escala. E muito mais fácil colocar isto no domínio político do que no económico,
mas para o êxito do socialismo o último é precisamente o importante.

Tomemos um meio de organizar a emulação como a publicidade. A república burguesa assegura-a


apenas formalmente, subordinando de facto a imprensa ao capital, distraindo a «populaça» com vacuidades
políticas picantes, ocultando o que sucede nas oficinas, nas transacções comerciais, nos abastecimentos, etc, sob
o véu do «segredo comercial», que protege a «sacrossanta propriedade». O Poder Soviético aboliu o segredo
comercial, entrou num novo caminho, mas ainda quase nada fizemos para aproveitar a publicidade no interesse
da emulação económica. Temos de começar um trabalho sistemático para que, ao mesmo tempo que se reprime
implacavelmente a imprensa burguesa, impregnada até à medula de falsidades e descaradas calúnias, se
trabalhe na criação de uma imprensa que não distraia e não mistifique as massas com vacuidades políticas
picantes, mas que submeta ao juízo das massas as questões económicas quotidianas e as ajude a estudá-las
seriamente. Cada fábrica, cada aldeia é uma comuna de produção e consumo que tem o direito e a obrigação de
aplicar à sua maneira as leis soviéticas gerais («à sua maneira» não no sentido de as violar, mas no sentido da
diversidade de formas da sua aplicação), resolver à sua maneira o problema do registo da produção e da
distribuição dos produtos. Sob o capitalismo, isto era um «assunto privado» de cada capitalista, latifundiário,
kulaque. Sob o Poder Soviético, isto não é um assunto privado, mas um assunto de Estado da maior importância.

E quase ainda não começámos o trabalho enorme, difícil, mas em compensação também grato, de
organizar a emulação entre as comunas, introduzir a contabilidade e a publicidade no processo de produção dos
cereais, do vestuário, etc, converter os relatórios burocráticos, mortos e secos em exemplos vivos, umas vezes
repelentes e outras atractivos. No modo de produção capitalista, a importância de um exemplo isolado,
digamos, de um qualquer artel de produção, era inevitavelmente limitada em grau extremo, e só a ilusão
pequeno-burguesa podia sonhar em «corrigir» o capitalismo com a influência dos modelos de virtuosas
instituições. Depois de o poder político passar para as mãos do proletariado, depois da expropriação dos
expropriadores, as coisas mudam radicalmente e — de acordo com as repetidas indicações de destacados
socialistas — a força do exemplo adquire pela primeira vez a possibilidade de manifestar a sua influência de
massas. As comunas modelo devem servir e servirão de educadores, professores e estímulos para as comunas
atrasadas. A imprensa deve servir de instrumento da construção socialista, dando a conhecer com todos os
pormenores os êxitos das comunas modelo, analisando as causas do seu êxito, os seus métodos de gestão,
colocando, por outro lado, na «lista negra» as comunas que conservam obstinadamente as «tradições do
capitalismo», isto é, a anarquia, a preguiça, a desordem, a especulação. Na sociedade capitalista, a estatística era
da exclusiva incumbência dos «funcionários públicos» ou de estreitos especialistas; nós devemos levá-la às
massas, popularizá-la, para que os trabalhadores aprendam gradualmente a compreender e a ver eles próprios
como e quanto é preciso trabalhar, como e quanto se pode descansar, para que a comparação dos resultados
práticos da economia das diferentes comunas se transforme em objecto de interesse e estudo gerais, para que
as comunas que se destaquem sejam recompensadas imediatamente (com a redução da jornada de trabalho por
um certo período, com o aumento dos salários, com a concessão de uma maior quantidade de bens e valores
culturais ou estéticos, etc).

133
Quando uma nova classe aparece na cena histórica na qualidade de chefe e dirigente da sociedade, isto
nunca se passa sem um período de violentos «balanços», abalos, lutas e tempestades, por um lado, e, por outro
lado, sem um período de passos inseguros, experiências, vacilações e dúvidas em relação à escolha de novos
métodos que correspondam à nova situação objectiva. A nobreza feudal agonizante vingava-se da burguesia
que a vencia e a desalojava, não só por meio de conspirações e tentativas de insurreição e restauração, mas
também por meio de torrentes de troças sobre a inabilidade, a falta de jeito e os erros desses «arrivistas» e
«insolentes» que se atreviam a tomar nas suas mãos o «sagrado leme» do Estado, sem a preparação secular
para isto dos príncipes, barões, nobres e fidalgos — exactamente como os Kornílov e os Kérenski, os Gots e os
Mártov, toda essa confraria de heróis da traficância burguesa e do cepticismo burguês, se vingam agora da
classe operária da Rússia pela sua tentativa «atrevida» de tomar o poder.

Evidentemente que são necessárias não semanas, mas longos meses e anos para que a nova classe
social, e uma classe até agora oprimida e esmagada pela miséria e pela ignorância, possa assimilar a nova
situação, orientar-se, organizar o seu trabalho, promover os seus organizadores. Compreende-se que o partido
que dirige o proletariado revolucionário não podia adquirir a experiência e os hábitos dos grandes
empreendimentos organizativos calculados para milhões e dezenas de milhões de cidadãos, que a modificação
dos velhos hábitos quase exclusivamente de agitação é uma coisa muito prolongada. Mas aqui nada há de
impossível, e desde que tenhamos a clara consciência da necessidade da mudança, a firme decisão de a realizar,
a perseverança necessária na prossecução de um grande e difícil objectivo, consegui-lo-emos. Existe um grande
número de talentos organizativos no «povo», isto é, entre os operários e os camponeses que não exploram o
trabalho alheio; o capital esmagava-os, arruinava-os, atirava-os fora aos milhares, nós ainda não sabemos
descobri-los, animá-los, pô-los de pé, promovê-los. Mas aprenderemos isto se nos dedicarmos a aprender isto
com todo o entusiasmo revolucionário, sem o qual não existem revoluções vitoriosas.

Nenhum movimento popular profundo e potente na história decorreu sem uma imunda espuma —
sem aventureiros e vigaristas, fanfarrões e palradores que se agarram aos inovadores inexperientes, sem
barafunda absurda, sem confusão, sem vã agitação, sem tentativas de alguns «chefes» de começarem vinte
coisas e não levar nenhuma até ao fim. Que ganam e ladrem os cães fraldiqueiros da sociedade burguesa, desde
Belorrússov até Mártov, a propósito de cada estilha a mais ao abater o grande velho bosque. Por alguma razão
são cães fraldiqueiros, para ladrar ao elefante proletário. Que ladrem. Nós continuaremos no nosso caminho,
tentando pôr à prova e identificar, com o maior cuidado e circunspecção possíveis, os verdadeiros
organizadores, os homens de bom senso e com sagacidade prática, os homens que reunam a fidelidade ao
socialismo com a capacidade de organizar sem barulho (e apesar da barafunda e do barulho) o trabalho comum,
firme e concertado de grande quantidade de pessoas no âmbito da organização soviética. Só estas pessoas,
depois de provadas dez vezes e elevando-as das tarefas mais simples às mais difíceis, devemos promover aos
postos responsáveis de dirigentes do trabalho do povo, de dirigentes da administração. Ainda não aprendemos
a fazê-lo. Mas aprenderemos.

«Organização Harmoniosa» e Ditadura

A resolução do último congresso dos Sovietes (realizado em Moscovo) apresenta como tarefa
primordial do momento a criação de uma «organização harmoniosa» e a elevação da disciplina(2*). Hoje todos
«votam» e «subscrevem» com agrado tal tipo de resoluções, mas, habitualmente, não reflectem em que a sua
aplicação exige a coacção — e a coacção precisamente sob a forma de ditadura. E entretanto seria a maior
estupidez e a mais absurda utopia supor que a passagem do capitalismo ao socialismo é possível sem coacção e
sem ditadura. A teoria de Marx pronunciou-se há muito, e com a maior precisão, contra este absurdo
democrático-pequeno-burguês e anarquista. E a Rússia de 1917-1918 confirma com tal evidência, de um modo
tão palpável e convincente a teoria de Marx a este respeito, que só pessoas irremediavelmente estúpidas ou
tenazmente decididas a voltar as costas à verdade podem ainda enganar-se a este respeito. Ou ditadura de
Kornílov (se o tomarmos como o tipo russo do Cavaignac burguês) ou ditadura do proletariado — nem se pode
falar de outra saída para um país onde se realiza um desenvolvimento extraordinariamente rápido, com
viragens extraordinariamente bruscas e com uma terrível ruína, criada pela mais penosa das guerras. Todas as
soluções intermédias são ou um engano do povo pela burguesia, que não pode dizer a verdade, que não pode
dizer que necessita de Kornílov, ou uma estupidez dos democratas pequeno-burgueses, dos Tchernov, Tseretéli
e Mártov, com o seu palavreado sobre a unidade da democracia, a ditadura da democracia, a frente democrática
geral e outros disparates do mesmo estilo. Temos de considerar perdidos os que mesmo no decurso da
revolução russa de 1917-1918 não aprenderam que as soluções intermédias são impossíveis.

134
Por outro lado, não é difícil convencermo-nos de que, em qualquer transição do capitalismo para o
socialismo, a ditadura é necessária por duas razões principais ou em duas direcções principais. Em primeiro
lugar, é impossível vencer e desarraigar o capitalismo sem esmagar de maneira implacável a resistência dos
exploradores, que não podem ser privados de repente da sua riqueza, das vantagens que lhes proporcionam a
organização e o conhecimento e que, consequentemente, tentarão inevitavelmente, durante um período
bastante prolongado, derrubar o odiado poder dos pobres. Em segundo lugar, qualquer grande revolução,
especialmente uma revolução socialista, mesmo se não existe uma guerra externa, é inconcebível sem guerra
interna, isto é, sem guerra civil, que significa uma ruína ainda maior do que a provocada pela guerra externa;
que significa milhares e milhões de casos de vacilação e de deserções de um campo para o outro; que significa
um estado da maior indeterminação, de desequilíbrio e de caos. E, evidentemente, todos os elementos de
decomposição da sociedade velha, inevitavelmente numerosíssimos, ligados principalmente à pequena
burguesia (pois é ela que qualquer guerra e qualquer crise arruina e deita a perder em primeiro lugar), não
podem deixar de «se revelar» numa revolução tão profunda. E os elementos da decomposição não podem
«revelar-se» senão num aumento dos crimes, da vagabundagem, do suborno, da especulação e de escândalos de
toda a espécie. Para acabar com isto é preciso tempo e é precisa uma mão de ferro.

Na história não houve nenhuma grande revolução em que o povo não tenha sentido isto
instintivamente e não tenha revelado uma firmeza salvadora, fuzilando os ladrões no local do crime. A
infelicidade das revoluções precedentes consistiu em ter durado pouco o entusiasmo revolucionário das
massas, que as mantinha em estado de tensão e lhes dava forças para exercer uma repressão implacável sobre
os elementos de decomposição. A causa social, isto é, de classe, desta pouca duração do entusiasmo
revolucionário das massas residia na debilidade do proletariado, o único em condições (se é suficientemente
numeroso, consciente e disciplinado) de atrair a si a maioria dos trabalhadores e explorados (a maioria dos
pobres, para falar de forma mais simples e popular) e de conservar o poder por um tempo suficientemente
longo para esmagar por completo não só todos os exploradores como todos os elementos de decomposição.

Esta experiência histórica de todas as revoluções, esta lição — económica e política — de alcance
histórico universal, foi resumida por Marx ao dar uma fórmula breve, incisiva, precisa e brilhante: ditadura do
proletariado. E a marcha vitoriosa da organização soviética através de todos os povos e línguas da Rússia
demonstrou que a revolução russa abordou correctamente esta tarefa de alcance histórico universal. Pois o
Poder Soviético não é outra coisa senão a forma organizativa da ditadura do proletariado, da ditadura da classe
avançada, que eleva a um novo democratismo e a uma participação independente na administração do Estado
dezenas e dezenas de milhões de trabalhadores e explorados, os quais aprendem com a sua própria experiência
a ver na vanguarda disciplinada e consciente do proletariado o seu chefe mais seguro.

Mas ditadura é uma grande palavra. E as grandes palavras não devem ser lançadas ao vento. A
ditadura é um poder férreo, de audácia e rapidez revolucionárias, implacável na repressão tanto dos
exploradores como dos arruaceiros. Mas o nosso poder é excessivamente brando e muitas vezes parece-se mais
com gelatina do que com ferro. É impossível esquecer por um momento sequer que o elemento burguês e
pequeno-burguês luta contra o Poder Soviético de duas maneiras: por um lado, actuando de fora com os
métodos dos Sávinkov, Gots, Gueguetchkóri e Kornílov, com conspirações e insurreições, com o seu imundo
reflexo «ideológico», com torrentes de mentiras e calúnias na imprensa dos democratas-constitucionalistas, dos
socialistas-revolucionários de direita e dos mencheviques; por outro lado, este elemento actua de dentro,
aproveitando qualquer elemento de decomposição, qualquer fraqueza, para o suborno, para o aumento da
indisciplina, do desleixo e do caos. Quanto mais nos aproximamos do total esmagamento militar da burguesia
mais perigoso se torna para nós o elemento da anarquia pequeno-burguesa. E contra este elemento não se pode
lutar apenas por meio da propaganda e da agitação, apenas por meio da organização da emulação, apenas por
meio da selecção de organizadores; tem de se lutar também por meio da coacção.

A medida que se torne a tarefa fundamental do poder não a repressão militar mas a administração, a
manifestação típica da repressão e da coacção não será o fuzilamento no local, mas o tribunal. Depois de 25 de
Outubro de 1917, também neste aspecto as massas revolucionárias entraram no caminho certo e
demonstraram a vitalidade da revolução, começando a organizar os seus próprios tribunais operários e
camponeses, mesmo antes de quaisquer decretos sobre a dissolução do aparelho judicial burocrático-burguês.
Mas os nossos tribunais revolucionários e populares são excessiva e incrivelmente fracos. Sente-se que ainda
não foi definitivamente abolida a opinião que o povo tem dos tribunais como algo de burocrático e alheio,
opinião herdada do jugo dos latifundiários e da burguesia. Não há ainda a consciência suficiente de que o
tribunal é um órgão para atrair precisamente os pobres sem excepção à administração do Estado (pois a

135
actividade judicial é uma das funções da administração do Estado), que o tribunal é um órgão de poder do
proletariado e do campesinato pobre, que o tribunal é um instrumento de educação na disciplina. Não há ainda
a consciência suficiente do facto simples e evidente de que se a fome e o desemprego são os principais males da
Rússia, estas calamidades não poderão ser vencidas por nenhum movimento impulsivo, mas só por uma
organização e uma disciplina em todos os aspectos, universal e de todo o povo, para aumentar a produção de
pão para os homens e de pão para a indústria (combustível), transportá-lo a tempo e distribuí-lo
correctamente; que por isso quem viola a disciplina do trabalho em qualquer fábrica, em qualquer empresa, em
qualquer assunto, é culpado dos tormentos da fome e do desemprego; que é necessário saber encontrar os
culpados disto, entregá-los ao tribunal e puni-los implacavelmente. O elemento pequeno-burguês, contra o qual
devemos agora travar uma luta tenaz, manifesta-se precisamente na fraca consciência da relação económica e
política da fome e do desemprego com o desleixo de todos e cada um no terreno da organização e da disciplina;
manifesta-se em que se mantém solidamente a concepção do pequeno proprietário: arrecadar o mais possível, o
resto pouco me importa.

No transporte ferroviário, que é, talvez, onde se encarnam com maior evidência as ligações
económicas de um organismo criado pelo grande capitalismo, manifesta-se com especial relevo esta luta entre o
desleixo pequeno-burguês e o espírito de organização proletário. O elemento «administrativo» proporciona
sabotadores e concussionários em grande abundância; a melhor parte do elemento proletário luta pela
disciplina; mas quer num quer noutro existem, como é natural, muitos vacilantes, «fracos», incapazes de resistir
à «tentação» da especulação, da concussão, da vantagem pessoal, comprada ao preço da deterioração de todo o
aparelho, de cujo correcto trabalho depende a vitória sobre a fome e o desemprego.

É característica a luta que se desenvolveu neste terreno em torno do último decreto sobre a
administração dos caminhos-de-ferro, do decreto de concessão de poderes ditatoriais (ou poderes «ilimitados»)
a determinados dirigentes[N297]. Os representantes conscientes (e na sua maioria, provavelmente,
inconscientes) do desleixo pequeno-burguês quiseram ver na concessão de poderes «ilimitados» (isto é,
ditatoriais) a determinadas pessoas um desvio do princípio da colegialidade, do democratismo e dos princípios
do Poder Soviético. Nalguns lugares, entre os socialistas-revolucionários de esquerda desenvolveu-se uma
agitação francamente própria de arruaceiros contra o decreto sobre os poderes ditatoriais, isto é, uma agitação
que apelava para os maus instintos e para a ânsia do pequeno proprietário de «arrecadar». Colocou-se uma
questão de uma importância verdadeiramente enorme: em primeiro lugar, a questão de princípio de se a
nomeação de indivíduos, de ditadores investidos de poderes ilimitados é, em geral, compatível com os
princípios fundamentais do Poder Soviético; em segundo lugar, em que relação está este caso — este
precedente, se quiserdes — com as tarefas especiais do poder no actual momento concreto. Devemos deter-nos
muito atentamente tanto numa como noutra questão.

Que a ditadura de indivíduos foi com muita frequência, na história dos movimentos revolucionários, a
expressão, o portador, o veículo da ditadura das classes revolucionárias, disto fala a experiência irrefutável da
história. É indubitável que a ditadura de indivíduos foi compatível com o democratismo burguês. Mas neste
ponto os difamadores burgueses do Poder Soviético, bem como os seus seguidores pequeno-burgueses, dão
sempre provas de destreza de mãos: por um lado, declaram que o Poder Soviético é simplesmente algo de
absurdo, anárquico, selvagem, eludindo zelosamente todos os nossos paralelos históricos e provas teóricas de
que os Sovietes são a forma superior de democratismo, mais ainda: o começo da forma socialista de
democratismo; por outro lado, apresentam-nos a exigência de um democratismo superior ao burguês e dizem: a
ditadura pessoal é absolutamente incompatível com o vosso democratismo soviético, bolchevique (isto é, não
burguês, mas socialista).

Os raciocínios não podem ser piores. Se não somos anarquistas, devemos aceitar a necessidade do
Estado, isto é, a coacção, para passar do capitalismo ao socialismo. A forma de coacção é determinada pelo grau
de desenvolvimento da classe revolucionária dada, a seguir por circunstâncias especiais como, por exemplo, a
herança de uma guerra longa e reaccionária, a seguir pelas formas de resistência da burguesia e da pequena
burguesia. Por isso, não existe absolutamente nenhuma contradição de princípio entre o democratismo
soviético (isto é, socialista) e a aplicação do poder ditatorial de indivíduos. A diferença entre a ditadura
proletária e a burguesa consiste em que a primeira dirige os seus golpes contra a minoria exploradora no
interesse da maioria explorada, e depois em que a primeira é exercida — também através de indivíduos — não
só pelas massas trabalhadoras e exploradas, mas também por organizações estruturadas de modo a despertar,
erguer estas massas para uma actividade criadora histórica (as organizações soviéticas pertencem a este
género de organizações).

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Quanto à segunda questão, do significado precisamente do poder ditatorial unipessoal do ponto de
vista das tarefas específicas do momento presente, devemos dizer que toda a grande indústria mecanizada —
isto é, precisamente a fonte e a base material, produtiva, do socialismo — exige uma unidade de vontade
absoluta e rigorosíssima que dirija o trabalho comum de centenas, milhares e dezenas de milhares de pessoas.
Tanto tecnicamente como economicamente e historicamente esta necessidade é evidente e quantos pensaram
no socialismo sempre a reconheceram como sua condição. Mas como pode ser assegurada a mais rigorosa
unidade de vontade? Por meio da subordinação da vontade de milhares à vontade de um só.

Esta subordinação pode, com uma consciência e uma disciplina ideais dos participantes no trabalho
comum, recordar mais a suave direcção de maestro. Se não existir uma disciplina e uma consciência ideais, ela
pode tomar as formas ásperas da ditadura. Mas de um ou de outro modo, a subordinação sem reservas a uma
única vontade é absolutamente necessária para o êxito dos processos de trabalho, organizado segundo o tipo da
grande indústria mecanizada. Para os caminhos-de-ferro ela é dupla e triplamente necessária. E esta transição
de uma tarefa política para outra, que na aparência em nada se lhe assemelha, constitui toda a originalidade do
momento que vivemos. A revolução acaba de quebrar as cadeias mais antigas, mais fortes e mais pesadas, com
as quais se submetiam as massas pela força. Isso acontecia ontem. Mas hoje, essa mesma revolução,
precisamente no interesse do seu desenvolvimento e consolidação, precisamente no interesse do socialismo,
exige a obediência sem reservas das massas à vontade única dos dirigentes do processo de trabalho. Está claro
que semelhante transição é inconcebível de um só golpe. Está claro que só pode realizar-se ao preço dos
maiores solavancos, abalos, de regressos ao que é velho, mediante uma enorme tensão das energias da
vanguarda proletária, que conduz o povo para o que é novo. Nisto não reflectem os que caem no histerismo
filistino do Nóvaia Jizn ou do Vperiod[N298], do Delo Naroda ou do Nach Vek[N299].

Tomai a psicologia do representante médio, de base, da massa trabalhadora e explorada e comparai


esta psicologia com as condições objectivas, materiais, da sua vida social. Até à Revolução de Outubro ele não
tinha visto ainda na realidade que as classes possuidoras, exploradoras, lhe tivessem doado, renunciado em seu
proveito a algo de realmente sério para elas. Não tinha visto ainda que lhe tivessem dado a terra e a liberdade,
muitas vezes prometidas, que lhe tivessem dado a paz, que tivessem renunciado aos interesses «de grande
potência» e aos tratados secretos de grande potência, que tivessem renunciado ao capital e aos lucros. Viu-o
unicamente depois de 25 de Outubro de 1917, quando ele próprio tomou isto pela força e teve de o defender
também pela força contra os Kérenski, os Gots, os Gueguetchkóri, os Dútov e os Kornílov. É compreensível que,
durante certo tempo, toda a sua atenção, todos os seus pensamentos, todas as suas forças espirituais se tenham
orientado apenas para respirar, endireitar-se, desenvolver-se, tomar os bens imediatos da vida que podia tomar
e que não lhe tinham dado os exploradores derrubados. É compreensível que seja preciso certo tempo para que
o representante de base da massa não só veja, não só se convença, mas também sinta que não se pode
simplesmente «tomar», agarrar e arrecadar, que isto conduz a um aumento da ruína, ao desastre, ao regresso
dos Kornílov. A viragem correspondente nas condições de vida (e, consequentemente, também na psicologia)
da massa dos trabalhadores de base não faz mais do que começar. E toda a nossa tarefa, a tarefa do partido dos
comunistas (bolcheviques), que é o intérprete consciente da aspiração dos explorados à libertação, é dar-se
conta desta viragem, compreender a sua necessidade, pôr-se à cabeça das massas esgotadas e cansadas que
procuram uma saída, conduzi-las pelo caminho certo, pelo caminho da disciplina do trabalho, pelo caminho da
conciliação das tarefas de fazer comícios acerca das condições de trabalho com as tarefas da subordinação sem
reservas à vontade do dirigente soviético, do ditador, durante o trabalho.

Os burgueses, os mencheviques, os novojiznistas, que só vêem caos, confusão e explosões de egoísmo


de pequenos proprietários, ridicularizam os «comícios», e, ainda com mais frequência, resmungam furiosos
acerca deles. Mas sem os comícios a massa de oprimidos nunca poderia passar da disciplina imposta pelos
exploradores à disciplina consciente e voluntária. Os comícios são, precisamente, o verdadeiro democratismo
dos trabalhadores, o seu método de se endireitarem, o seu despertar para nova vida, os seus primeiros passos
num campo que eles próprios limparam da canalha (exploradores, imperialistas, latifundiários, capitalistas) e
que eles próprios querem aprender a organizar à sua maneira, para si, na base dos princípios do seu próprio
poder, soviético, e não de um poder alheio, senhorial ou burguês. Foi necessária precisamente a vitória de
Outubro dos trabalhadores sobre os exploradores, foi necessária toda uma etapa histórica de discussão inicial
pelos próprios trabalhadores das novas condições de vida e das novas tarefas, para que se tornasse possível a
passagem duradoura a formas superiores da disciplina do trabalho, a uma assimilação consciente da ideia da
necessidade da ditadura do proletariado, à subordinação sem reservas às disposições unipessoais dos
representantes do Poder Soviético durante o trabalho.

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Esta passagem começou agora.

Resolvemos com êxito a primeira tarefa da revolução, vimos como as massas trabalhadoras
elaboraram em si mesmas a condição fundamental do seu êxito: a união dos esforços contra os exploradores
para o seu derrubamento. Etapas como as de Outubro de 1905 e Fevereiro e Outubro de 1917 têm uma
importância histórica universal.

Resolvemos com êxito a segunda tarefa da revolução: despertar e erguer precisamente aquelas
«camadas inferiores» da sociedade que os exploradores espezinhavam e que só depois de 25 de Outubro de
1917 obtiveram toda a liberdade de os derrubar e de começar a orientar-se e a instalar-se à sua maneira. Os
comícios precisamente das massas trabalhadoras mais oprimidas, mais embrutecidas e menos preparadas, a
sua passagem para o lado dos bolcheviques, a instauração por elas da sua organização soviética por toda a parte
— eis a segunda grande etapa da revolução.

Começa a terceira. É preciso consolidar o que nós próprios conquistámos, o que nós próprios
decretámos, legalizámos, discutimos e projectámos, consolidar em formas estáveis de uma disciplina do
trabalho diária. Esta é a tarefa mais difícil, mas também a mais grata, pois só a sua resolução nos dará a ordem
socialista. É preciso aprender a conjugar o democratismo dos comícios das massas trabalhadoras, tempestuoso,
que corre como a cheia primaveril, que transpõe todas as margens, com a disciplina férrea durante o trabalho,
com a obediência sem reservas à vontade de uma só pessoa, do dirigente soviético, durante o trabalho.

Ainda não aprendemos isto. Mas aprenderemos.

A restauração da exploração burguesa ameaçava-nos ontem na pessoa dos Kornílov, dos Gots, dos
Dútov, dos Gueguetchkóri, dos Bogaévski. Vencêmo-los. Esta restauração, esta mesma restauração ameaça-nos
hoje sob outra forma, sob a forma do elemento de desleixo e anarquismo pequeno-burguês, do espírito de
pequeno proprietário: «não tenho nada a ver com isso», sob a forma de ataques e incursões quotidianas,
pequenas mas numerosas, deste elemento contra a disciplina proletária. Temos de vencer este elemento de
anarquia pequeno-burguesa, e vencê-lo-emos.

O Desenvolvimento da Organização Soviética

O carácter socialista do democratismo soviético — isto é, proletário, na sua aplicação concreta,


presente — consiste, primeiro, em que os eleitores são as massas trabalhadoras e exploradas, ficando excluída a
burguesia; segundo, em que desaparecem todas as formalidades e restrições burocráticas das eleições, as
próprias massas determinam a ordem e o prazo das eleições, com plena liberdade de revogar os eleitos;
terceiro, em que se cria a melhor organização de massas da vanguarda dos trabalhadores, do proletariado da
grande indústria, que lhe permite dirigir as mais amplas massas de explorados, atraí-las a uma vida política
independente e educá-las politicamente na base da sua própria experiência, em que, deste modo, se aborda pela
primeira vez a tarefa de que verdadeiramente toda a população aprenda a administrar e comece a administrar.

Tais são os principais sinais distintivos do democratismo aplicado na Rússia, que constitui um tipo
mais elevado de democratismo, a ruptura com a sua deformação burguesa, a passagem ao democratismo
socialista e as condições que permitam o começo da extinção do Estado.

Naturalmente, o elemento de desorganização pequeno-burguesa (que se manifestará inevitavelmente


numa ou noutra medida em qualquer revolução proletária, e que na nossa revolução se manifesta com
particular força em virtude do carácter pequeno-burguês do país, do seu atraso e das consequências da guerra
reaccionária) não pode deixar de imprimir a sua marca também nos Sovietes.

É preciso trabalhar sem desfalecimento para desenvolver a organização dos Sovietes e o Poder
Soviético. Existe a tendência pequeno-burguesa para converter os membros dos Sovietes em «parlamentares»
ou, por outro lado, em burocratas. É preciso lutar contra isto, chamando todos os membros dos Sovietes à
participação prática na administração. Em muitos lugares, as secções dos Sovietes estão a transformar-se em
órgãos que gradualmente se fundem com os comissariados. O nosso objectivo é chamar todos os pobres à
participação prática na administração, e todos os passos para a realização disto — quanto mais variados melhor
— devem ser registados, estudados e sistematizados minuciosamente, devem ser comprovados por uma

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experiência mais ampla, legalizados. O nosso objectivo é conseguir que cada trabalhador, depois de cumprir a
«aula» de 8 horas de trabalho produtivo, cumpra de modo gratuito os deveres estatais: a passagem para isto é
particularmente difícil, mas esta passagem é a única garantia da definitiva consolidação do socialismo.
Naturalmente, a novidade e a dificuldade da mudança provoca uma grande abundância de passos dados, por
assim dizer, às apalpadelas, uma grande abundância de erros e vacilações — sem isto não pode haver qualquer
movimento brusco de avanço. Toda a originalidade da situação que vivemos consiste, do ponto de vista de
muitos que desejam considerar-se socialistas, em que as pessoas se habituaram a opor de forma abstracta o
capitalismo ao socialismo, e colocaram entre um e outro, com ar profundo, a palavra «salto» (alguns,
recordando fragmentos lidos nas obras de Engels, acrescentavam com ar ainda mais profundo: «salto do reino
da necessidade para o reino da liberdade»[N300]. A maioria dos chamados socialistas, que «leram nos livros»
acerca do socialismo, mas que nunca aprofundaram a sério este problema, não sabem pensar que os mestres do
socialismo chamaram «salto» à viragem considerada do ponto de vista das revoluções da história universal, e
que os saltos desta natureza abrangem períodos de 10 anos e mesmo mais. Naturalmente que a famosa
«intelectualidade» fornece em tais alturas uma quantidade infinita de carpideiras: uma chora pela Assembleia
Constituinte, outra pela disciplina burguesa, a terceira pela ordem capitalista, a quarta pelo latifundiário culto, a
quinta pelo espírito imperialista de grande potência, etc, etc.

O verdadeiro interesse da época dos grandes saltos consiste em que a abundância dos escombros do
que é velho, acumulados por vezes com maior rapidez que os germes do que é novo (nem sempre visíveis,
imediatamente), exige que se saiba destacar o mais essencial na linha ou na cadeia do desenvolvimento.
Existem momentos históricos em que o mais importante para o êxito da revolução consiste em acumular a
maior quantidade possível de escombros, isto é, fazer saltar o máximo de instituições velhas; existem
momentos em que, depois de ter feito saltar o suficiente, se coloca na ordem do dia o trabalho «prosaico»
(«aborrecido» para o revolucionário pequeno-burguês) de limpar o terreno de escombros; existem momentos
em que o mais importante é tratar com solicitude os germes do que é novo, que crescem por entre os
escombros num terreno ainda mal limpo de entulho.

Não basta ser revolucionário e partidário do socialismo ou comunista em geral. É necessário saber
encontrar em cada momento particular o elo particular da cadeia a que temos de nos agarrar com todas as
forças para reter toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte; a ordem dos elos, a sua
forma, o seu encadeamento, a diferença entre uns e outros na cadeia histórica dos acontecimentos não são tão
simples nem tão rudimentares como uma cadeia vulgar feita pelo ferreiro.

A luta contra a deturpação burocrática da organização soviética é assegurada pela solidez dos laços
dos Sovietes com o «povo», no sentido de trabalhadores e explorados, pela flexibilidade e elasticidade desses
laços. Os pobres nunca consideram como instituições «suas» os parlamentos burgueses, mesmo na melhor
república capitalista do mundo quanto a democratismo. Mas os Sovietes são «seus», e não alheios, para a massa
de operários e camponeses. Aos actuais «sociais-democratas» do matiz de Scheidemann ou, o que é quase igual,
de Mártov, os Sovietes desagradam-lhes e atrai-os o respeitável parlamento burguês ou a Assembleia
Constituinte, do mesmo modo que a Turguénev, há sessenta anos, o atraía a moderada constituição monárquica
e aristocrática e desagradava o democratismo mujique de Dobroliúbov e Tchernichévski.

É precisamente esta proximidade dos Sovietes do «povo» dos trabalhadores que cria formas especiais
de revogação e de outro controlo a partir de baixo que devem agora ser desenvolvidas com particular zelo. Por
exemplo os Sovietes de Instrução Pública, como conferências periódicas dos eleitores soviéticos e dos seus
delegados para discutir e controlar a actividade das autoridades soviéticas neste domínio, merecem a maior
simpatia e apoio. Nada existe de mais tolo que transformar os Sovietes em algo de fossilizado e auto-suficiente.
Quanto maior for a decisão com que hoje devamos defender um poder firme e implacável, a ditadura de
indivíduos para determinados processos de trabalho, em determinados momentos de funções puramente
executivas, tanto mais variadas terão de ser as formas e os métodos de controlo a partir de baixo, para paralisar
qualquer sombra de possibilidade de deturpação do Poder Soviético, para arrancar repetida e infatigavelmente
a erva daninha do burocratismo.

Conclusão

Uma situação extraordinariamente dura, difícil e perigosa no aspecto internacional; necessidade de


manobrar e de recuar; um período de espera de novas explosões da revolução, que amadurece com penosa
lentidão no Ocidente; dentro do país um período de construção lenta e de «apertar» implacavelmente, de luta

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prolongada e tenaz da severa disciplina proletária contra os elementos ameaçadores do desleixo e da anarquia
pequeno-burguesa — tais são, em poucas palavras, os traços distintivos da fase particular da revolução
socialista que atravessamos. Tal é o elo da cadeia histórica dos acontecimentos a que temos de nos agarrar
agora com todas as forças para nos mostrarmos à altura da tarefa até ao momento de passarmos ao elo
seguinte, que nos atrai pelo seu particular brilho, pelo brilho das vitórias da revolução proletária internacional.

Tentai comparar com o conceito corrente, habitual, do «revolucionário» as palavras de ordem


decorrentes das particularidades da fase que atravessamos: manobrar, recuar, esperar, construir lentamente,
apertar implacavelmente, disciplinar com severidade, fulminar o desleixo... Será surpreendente que quando
ouvem isto alguns «revolucionários» sejam tomados por uma nobre indignação e comecem a «fulminar-nos»
por esquecimento das tradições da Revolução de Outubro, por conciliação com os especialistas burgueses, por
compromissos com a burguesia, por espírito pequeno-burguês, por reformismo, etc, etc?

A infelicidade destes tristes revolucionários consiste em que, mesmo aqueles que trabalham guiados
pelas melhores intenções do mundo e os que se distinguem pela absoluta fidelidade à causa do socialismo, não
chegam a compreender o estado particular e particularmente «desagradável» pelo qual deve passar fatalmente
um país atrasado, despedaçado por uma guerra reaccionária e infeliz, que iniciou a revolução socialista muito
antes dos países mais adiantados, falta-lhes a firmeza necessária nos momentos difíceis de uma difícil transição.
Naturalmente, a oposição «oficial» deste género ao nosso partido procede do partido dos socialistas-
revolucionários de esquerda. Claro que existem e existirão sempre excepções individuais aos tipos de grupo ou
de classe. Mas os tipos sociais ficam. Num país com um enorme predomínio da população dos pequenos
proprietários sobre a puramente proletária, reflectir-se-á inevitavelmente — e de tempos a tempos reflectir-se-
á com extrema agudeza — a diferença entre o revolucionário proletário e o pequeno-burguês. Este último vacila
e oscila a cada viragem dos acontecimentos, passa de um revolucionarismo ardente em Março de 1917 à
glorificação da «coligação» em Maio, ao ódio contra os bolcheviques (ou à lamentação do seu «aventureirismo»)
em Julho, a afastar-se deles, temeroso, em finais de Outubro, a apoiá-los em Dezembro; por último, em Março e
Abril de 1918, os homens deste tipo franzem desdenhosamente o nariz e dizem: «Não sou dos que cantam hinos
ao trabalho 'orgânico', ao praticismo e ao gradualismo.»

A fonte social de tais tipos é o pequeno patrão enraivecido pelos horrores da guerra, pela súbita
devastação, pelos inauditos sofrimentos da fome e da ruína, que se debate histericamente, procurando a saída e
a salvação, vacilando entre a confiança no proletariado e o apoio a ele, por um lado, e os acessos de desespero,
por outro. Tem de se compreender claramente e assimilar firmemente que sobre semelhante base social não é
possível construir qualquer socialismo. Só a classe que prossegue o seu caminho sem vacilações, que não
desanima nem cai no desespero nos trajectos mais duros, difíceis e perigosos, pode dirigir as massas
trabalhadoras e exploradas. Não precisamos de impulsos histéricos. Precisamos da marcha cadenciada dos
batalhões de ferro do proletariado.
Notas de rodapé:
(1*) Ver Tomo II, Obras Escolhidas de V. I. Lénine em 3 Tomos, p.554 (N. Ed.) (retornar ao texto)
(2*) Ver Tomo II, Obras Escolhidas de V I Lénine em três Tomos, p. 554 (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N293] A obra de V. I. Lênine As Tarefas Imediatas do Poder Soviético chamava-se no manuscrito
Teses sobre as Tarefas do Poder Soviético no Momento Actual. As Teses de Lénine foram discutidas na reunião
do CC do Partido realizado em 26 de Abril de 1918. O CC aprovou-as por unanimidade e resolveu publicá-las
nos jornais Pravda e Izvéstia VtsIK e também em brochura separada. A brochura foi editada em inglês nesse
mesmo ano em Nova Iorque e em francês em genebra; sob a redacção de F.Platten, foi editado em alemão, em
Zurique, um resumo desta obra com o título de Am Tage nach der Revolution (No Dia Seguinte à Revolução).
(retornar ao texto)
[N294] No dia 18 de Novembro (1 de Dezembro) de 1917 o Conselho de Comissários do Povo
resolveu, por proposta de Lénine, aprovar a resolução "Acerca da remuneração dos Comissários do Povo e dos
funcionários e empregados superiores". De acordo com essa resolução, o salário mensal máximo do Comissário
do Povo era de 500 rublos, com um aumento de 100 rublos por cada membro de família incapacitado para o
trabalho, o que equivalia ao salário médio de um operário. No dia 2 (15) de Janeiro de 1918 o Comissariado do
Povo esclareceu que o decreto não proibia oferecer aos peritos um salário maior ao máximo anteriormente
estabelecido e autorixou, de facto, uma remuneração mais elevada do trabalho dos cientistas e técnicos.
(retornar ao texto)
[N295] O controlo sobre o comércio externo foi estabelecido logo nos primeiros dias do poder
soviético. Em Dezembro de 1917 Lénine levantou a questão do estabelecimento do monopólio estatal do

140
comércio externo. O decreto sobre o monopólio do comércio externo foi aprovado pelo Conselho de
Comissários do Povo em 22 de Abril de 1918. (retornar ao texto)
[N296] Trata-se do "Regulamento sobre a Disciplina do Trabalho", adoptado pelo Conselho Central dos
Sindicatos de Toda a Rússia em 3 de Abril e publicado na revista Naródnoe Khoziáistvo, n°2, de Abril de 1918. O
Conselho dos Sindicatos propôs a introdução em todas as empresas estatais do país de regras rigorosas de
ordem interna, o estabelecimento de normas de produção e de cálculo da produtividade do trabalho, a aplicação
do pagamento do trabalho à peça e o estabelecimento de prémios pela superação das normas de produção, a
aplicação de medidas severas contra os infractores da disciplina do trabalho. Na base das decisões adoptadas
pelo Conselho Central dos Sindicatos de Toda a Rússia, o Comité Central do sindicato dos metalúrgicos deu
indicações a todas as organizações de base sobre a aplicação na indústria metalúrgica do pagamento à peça e do
sistema de prémios. O princípio do pagamento à peça foi definitivamente estabelecido pela publicação, em
Dezembro de 1918, do Código de Leis do Trabalho soviético. (retornar ao texto)
[N297] Trata-se do decreto "Sobre a centralização da administração, a protecção dos caminhos-de-
ferro e a elevação da sua produtividade". Tendo analisado em 18 de Março de 1918 um projecto de decreto
proposto pelo Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação sobre a não interferência das diferentes
instituições nos assuntos do departamento dos caminhos-de-ferro, o Conselho dos Comissários do Povo
encarregou uma comissão especial de elaborar um decreto na base das seguintes teses de Lénine: "1. Grande
Centralização. 2. Nomeação de responsáveis em cada centro local, por escolha das organizações ferroviárias.3.
Cumprimento obrigatório das ordens. 4. Direitos ditatoriais dos destacamentos de protecção militar
encarregados de assegurar a ordem. 5. Medidas para o registo imediato do material circulante e sua localização.
6. Medidas para a criação da secção técnica. 7. Combustível." No projecto que foi apresentado pela comissão e
analisado na reunião do Conselho de Comissários do Povo de 21 de Março, foram introduzidas por Lénine uma
série de emendas substanciais, depois do que foi aprovado pelo governo. Em virtude de o decreto ter
encontrado uma atitude hostil da parte da Comité Executivo dos Ferroviários de Toda a Rússia, que se
encontrava sob forte influência dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários de esquerda, em 23 de
Março o Comissariado do Povo para as Vias de Comunicação colocou na reunião do Conselho de Comissários do
Povo a questão da sua alteração. Refutando as acusações dos adversários do decreto, Lénine esclareceu a
necessidade de adopção das medidas mais firmes para a eliminação da sabotagem nos caminhos-de-ferro e
introduziu emendas que reforçavam o decreto. O decreto foi definitivamente aprovado pelo governo com estas
emendas em 23 de Março e publicado em 26 de Março no n° 57 do Izvéstia VtsIK, com a assinatura de Lénine.
(retornar ao texto)
[N298] Vperiod (Avante): diário menchevique; editou-se em Moscovo, com interrupções, de Março de
1917 a Fevereiro de 1919. Foi fechado por exercer uma actividade contra-revolucionária. (retornar ao texto)
[N299] Nach Vek (O Nosso Século): um dos títulos do jornal dos democratas-constitucionalistas Retch
(A Palavra). (retornar ao texto)
[N300] Lénine refere-se e cita a obra de F. Engels Anti-Dührinng. (In Karl Marx / Friederich Engels,
Werke, Bd. 20, S. 264)

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/04/26.htm

141
Seis Teses acerca das Tarefas Imediatas do Poder Soviético

V. I. Lénine

3 de Maio de 1918

1. A situação internacional da República Soviética é difícil e crítica ao mais alto grau, pois os interesses
mais profundos e fundamentais do capital internacional e do imperialismo estimulam a aspirar não só a uma
arremetida militar contra a Rússia, mas também a um acordo sobre a partilha da Rússia e o estrangulamento do
Poder Soviético.

Apenas a agudização da matança imperialista dos povos no Oeste da Europa e a concorrência


imperialista do Japão e da América no Extremo Oriente paralisam ou refreiam essas aspirações, e só em parte e
só por um certo tempo, provavelmente curto.

Por isso, a táctica obrigatória da República Soviética deve ser, por um lado, uma tensão extrema de
todas as forças para o mais rápido ascenso económico do país, a elevação da sua capacidade defensiva e a
criação de um poderoso exército socialista; por outro lado, na política internacional é obrigatória uma táctica de
manobra, de recuo e de espera até ao momento em que amadureça definitivamente a revolução proletária
internacional, que está a amadurecer hoje com maior rapidez do que antes em toda uma série de países
avançados.

2. No domínio da política interna, coloca-se neste momento na ordem do dia, de acordo com a
resolução do Congresso dos Sovietes de Toda a Rússia de 15 de Março de 1918, a tarefa organizativa.
Precisamente esta tarefa, aplicada à nova e superior organização da produção e da distribuição de produtos na
base da grande produção (trabalho) mecanizada socializada, constitui o conteúdo principal — e a condição
principal da vitória completa — da revolução socialista que começou na Rússia em 25 de Outubro de 1917.

3. Do ponto de vista puramente político, a essência do momento consiste em que foram cumpridas, nos
traços principais e fundamentais, a tarefa de convencer a Rússia trabalhadora da justeza do programa da
revolução socialista e a tarefa de conquistar a Rússia dos exploradores para os trabalhadores, e na ordem do dia
coloca-se a tarefa principal — como administrar a Rússia. A organização de uma administração correcta, a
aplicação firme das disposições do Poder Soviético — tal é a tarefa essencial dos Sovietes, tal é a condição da
vitória completa do tipo soviético de Estado, tipo que não é suficiente decretar formalmente, que não é
suficiente instituir e implantar em todos os confins do país, mas que é necessário ainda organizar e verificar
praticamente no trabalho regular, quotidiano de administração.

4. No domínio da construção económica do socialismo, a essência do momento consiste em que o


nosso trabalho de organização do registo e do controlo por todo o povo e universais da produção e da
distribuição dos produtos e de implantação da regulação proletária da produção atrasou-se muito em relação
ao trabalho de expropriação directa dos expropriadores — os latifundiários e capitalistas. É este o facto
fundamental que determina as nossas tarefas.

Dele decorre, por um lado, que a luta contra a burguesia entra numa nova fase, a saber: o centro de
gravidade passa a ser a organização do registo e do controlo. Só por esta via podem ser consolidadas todas as
conquistas económicas contra o capital e todas as medidas de nacionalização de alguns ramos da economia
nacional alcançadas por nós desde Outubro, e só por esta se pode preparar a conclusão com êxito da luta contra
a burguesia, isto é, a consolidação total do socialismo.

Do facto fundamental assinalado decorre, por outro lado, porque é que o Poder Soviético foi obrigado,
em certos casos, a dar um passo atrás ou a aceitar um compromisso com as tendências burguesas. Um desses
passos atrás e um desses abandonos dos princípios da Comuna de Paris foi, por exemplo, a introdução de
remunerações elevadas para uma série de especialistas burgueses. Um desses compromissos foi o acordo com
as cooperativas burguesas acerca dos passos e medidas para integrar gradualmente toda a população nas
cooperativas. Enquanto o poder proletário não puser plenamente de pé o controlo e o registo por todo o povo,
os compromissos deste género serão necessários, e a nossa tarefa consiste, sem silenciar de modo algum
perante o povo os seus traços negativos, em fazer esforços para melhorar o registo e o controlo como único
meio e via para a supressão total de todos os compromissos semelhantes. No momento actual, são necessários

142
semelhantes compromissos como única (dado o nosso atraso no registo e no controlo) garantia de um avanço
mais lento, mas mais seguro. A necessidade de tais compromissos desaparecerá com a aplicação total do registo
e do controlo da produção e da distribuição dos produtos.

5. Colocam-se, em particular, na ordem do dia as medidas para elevar a disciplina do trabalho e a


produtividade do trabalho. Os passos já empreendidos nesta direcção, em particular pelos sindicatos, devem ser
apoiados, consolidados e intensificados com todas as forças. Entre eles figuram, por exemplo, a introdução do
salário à peça, a aplicação do muito do que há de científico e progressivo no sistema de Taylor, regular os
salários com os balanços gerais do trabalho da fábrica ou com os resultados da exploração do transporte
ferroviário e por barco, etc. Entre eles figuram também a organização da emulação entre as distintas comunas
de produção e de consumo, a selecção dos organizadores, etc.

6. A ditadura do proletariado é uma necessidade absoluta na transição do capitalismo para o


socialismo, e na nossa revolução esta verdade obteve a sua plena confirmação prática. Mas a ditadura
pressupõe um poder revolucionário verdadeiramente firme e implacável na repressão tanto dos exploradores
como dos arruaceiros, e o nosso poder é demasiado brando. A subordinação e uma subordinação sem reservas,
durante o trabalho, às disposições unipessoais dos dirigentes soviéticos, dos ditadores, eleitos ou designados
pelas instituições soviéticas, dotados de plenos poderes ditatoriais (como o exige, por exemplo, o decreto
ferroviário) está assegurada de uma maneira que está ainda longe e longe de ser suficiente. Aqui manifesta-se a
influência do elemento pequeno-burguês, o elemento dos hábitos, aspirações e estados de espírito dos
pequenos proprietários, que estão em radical contradição com a disciplina proletária e o socialismo. Tudo o que
há de consciente no proletariado deve estar dirigido para a luta contra este elemento pequeno-burguês, o qual
encontra uma expressão não só directa (no apoio da burguesia e dos seus lacaios, os mencheviques, os
socialistas-revolucionários de direita, etc, a qualquer resistência ao Poder Soviético), mas também indirecta (na
vacilação histérica que revelam nas questões políticas principais tanto o partido pequeno-burguês dos
socialistas-revolucionários de esquerda como a corrente «comunista de esquerda»[N304] no nosso partido, a
qual desce aos processos do revolucionarismo pequeno-burguês e imita os socialistas-revolucionários de
esquerda).

Uma disciplina férrea e a ditadura do proletariado aplicada até ao fim contra as oscilações pequeno-
burguesas - tal é a palavra de ordem geral e sintetizadora do momento.

Notas de fim de tomo:


[N303] As Seis Teses acerca das Tarefas Imediatas do Poder Soviético foram escritas por Lénine por
encargo do CECR, depois de apresentado e discutido na reunião deste órgão do Estado, em 29 de Abril de 1918,
o seu relatório sobre as tarefas imediatas do poder soviético. Em 3 de Maio as teses de Lénine, com pequenas
modificações, foram aprovadas por unanimidade pelo Comité Central do Partido e distribuídas para os Sovietes
locais em 4 de Maio, com a indicação de que elas "devem servir de base para a actividade de todos os Sovietes".
(retornar ao texto)
[N304] Trata-se do grupo antipartido dos "comunistas de esquerda" que apareceu no começo de 1918
em ligação com a conclusão do tratado de paz com a Alemanha (Tratado de Brest-Litovsk). O Grupo dos
"Comunistas de Esquerda", mascarando-se com frases esquerdistas sobre a guerra revolucionária, defendia
uma política aventureira que levaria a República Soviética, que não tinha exército, a uma guerra contra a
Alemanha imperialista, colocando assim em perigo o poder soviético. Os "comunistas de esquerda"
manifestaram-se também contra a direcção unipessoal, a disciplina do trabalho e a utilização de especialistas
burgueses na indústria. O Partido, dirigido por Lénine, repudiou firmemente a política dos "comunistas de
esquerda"

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/05/03.htm

143
Uma Grande Iniciativa
V. I. Lenine
28 de Junho de 1919

Escrito: 28 de Junho 1919

A imprensa comunica muitos exemplos de heroísmo dos soldados vermelhos. Na luta contra as tropas
de Koltchak, Deníkine e outras tropas dos latifundiários e capitalistas, os operários e os camponeses dão
freqüentemente provas de milagres, de coragem e tenacidade, defendendo as conquistas da revolução
socialista. Lenta e difícil é a eliminação da anarquia, a superação do cansaço e do desleixo, mas, apesar de tudo,
avança. O heroísmo das massas trabalhadoras, que se sacrificam conscientemente pela causa da vitória do
socialismo, constitui a base da disciplina nova, fraterna, do Exército Vermelho, do seu renascimento,
fortalecimento e crescimento.
Não menos digno de atenção é o heroísmo dos operários na retaguarda. Neste aspecto tem uma
importância verdadeiramente gigantesca a organização pelos operários, por sua própria iniciativa, dos sábados
comunistas. Evidentemente, trata-se apenas de um começo, mas de um começo de excepcional importância. E o
começo de uma revolução mais difícil, mais essencial, mais radical e mais decisiva do que o derrubamento da
burguesia, pois é uma vitória sobre a própria rotina, o desleixo, o egoísmo pequeno-burguês, sobre todos esses
hábitos que o maldito capitalismo deixou em herança ao operário e ao camponês. Quando esta vitória estiver
consolidada, então e só então se criará a nova disciplina social, a disciplina socialista, então só então será
impossível voltar para trás, para o capitalismo, e o comunismo se tornará verdadeiramente invencível.
O Pravda publicou em 17 de Maio o artigo do camarada A. J. "O trabalho à maneira revolucionária. (Um
sábado comunista)". Este artigo é tão importante que o reproduzimos na integra:

O TRABALHO À MANEIRA REVOLUCIONÁRIA


(UM SÁBADO COMUNISTA)
A carta do CC do PCR acerca do trabalho à maneira revolucionária deu um forte impulso às
organizações comunistas e aos comunistas. Um entusiasmo geral levou para a frente muitos ferroviários
comunistas, mas a maioria deles não pôde abandonar os postos de responsabilidade nem descobrir novos
métodos de trabalho à maneira revolucionária. As notícias procedentes das localidades acerca da lentidão no
trabalho de mobilização e da morosidade burocrática obrigaram o subdistrito do caminho-de-ferro Moscovo-
Kazán a dar atenção ao mecanismo da gestão da rede ferroviária. Verificou-se que, pela insuficiência de mão-de-
obra e pela fraca intensidade do trabalho, se atrasavam as encomendas urgentes e as reparações rápidas de
locomotivas. Em 7 de Maio, numa assembléia geral de comunistas e de simpatizantes do subdistrito da linha
Moscovo-Kazán, foi colocada a questão de passar das palavras aos atos em relação à ajuda à vitória
sobre Koltchak. A proposta apresentada dizia:
"Em vista da grave situação interna e externa, e a fim de conseguir a superioridade sobre o inimigo de
classe, os comunistas e simpatizantes devem fazer um novo esforço e tirar ao seu descanso mais uma hora de
trabalho, isto é, aumentar uma hora ao seu dia de trabalho, somá-las e no sábado dar duma só vez seis horas de
trabalho físico, a fim de produzir imediatamente um valor real. Considerando que os comunistas não devem
poupar nem a sua saúde nem a sua vida para assegurar as conquistas da revolução, o trabalho será feito
gratuitamente. O sábado comunista será introduzido em todo o subdistrito até à vitória completa
sobre Koltchak."
Depois de algumas vacilações, esta proposta foi aprovada por unanimidade.
No sábado, 10 de Maio, às 6 horas da tarde, os comunistas e simpatizantes, como soldados,
apresentaram-se ao trabalho, formaram filas, e os chefes de oficina distribuíram-nos, na melhor ordem, pelos
postos de trabalho.
Os resultados do trabalho à maneira revolucionária estão à vista. O quadro junto" mostra as empresas e
o caráter do trabalho.
O valor total do trabalho ascende, segundo a tarifa normal, 5 milhões de rublos, e segundo a tarifa das
horas extraordinárias, a mais50% .
A intensidade do trabalho de carga foi superior em 270 % à dos operários normais. Nos restantes
trabalhos, a intensidade foi aproximadamente igual.
Suprimiu-se o atraso de sete dias a três meses que existia no cumprimento das encomendas (urgentes)
como resultado da insuficiência de mão-de-obra e da morosidade burocrática.
O trabalho foi efetuado apesar do mau estado (fácil de eliminar) das ferramentas, o que atrasou certos
grupos 30 a 40 minutos.

144
A administração que ficara para a direção dos trabalhos mal tinha tempo de preparar novas tarefas, e
talvez não seja muito exagerada a reflexão, feita por um velho contramestre, de que no sábado comunista foi
realizado um trabalho no qual operários inconscientes e desleixados teriam gasto uma semana.
Como também participaram nos trabalhos pessoas que são simplesmente adeptos sinceros do Poder
Soviético, como se espera a afluência de grande número deles nos sábados futuros e como também outros
distritos desejam seguir o exemplo dos ferroviários comunistas da linha Moscovo-Kazán, deter-me-ei mais
pormenorizadamente no aspecto organizativo, utilizando os dados provenientes das localidades.
Cerca de 10 % dos participantes nestes trabalhos são comunistas que trabalham permanentemente
nas localidades. Os restantes ocupam postos eletivos e de responsabilidade, desde o comissário da linha até ao
comissário de diferentes empresas, e também do sindicato, e trabalhadores da direção e do Comissariado das
Vias de Comunicação.
Nunca se viu tanto entusiasmo e harmonia no trabalho. Quando os operários, empregados de
escritório e funcionários da direção, depois de terem levantado o aro de quarenta puds de uma roda para uma
locomotiva de comboio de passageiros, a fizerem rolar para o seu lugar sem palavras grosseiras nem
discussões, como formigas laboriosas, nascia no fundo do coração um fervoroso sentimento de alegria pelo
trabalho coletivo e fortalecia-se a fé em que a vitória da classe operária é inabalável. Os abutres mundiais não
conseguirão estrangular os operários vitoriosos, a sabotagem interna não verá a vitória de Koltchak.
Terminado o trabalho, os presentes foram testemunhas duma cena jamais vista: urna centena de
comunistas, fatigados mas com os olhos brilhantes de alegria, saudaram o êxito do trabalho com o canto solene
de A lnternacional. E parecia que as notas triunfais do hino triunfal atravessavam os mures para se irem
espalhar pela Moscovo operária e, como as ondas formadas por uma pedra atirada à água, propagar-se pela
Rússia operária e despertar os cansados e desleixados.
A.].

Hor
as de
Nú trabalho
Local de Trabalho
Designação dos trabalhos mero de
trabalho p executado
operários T
/
otal
pessoa
5 2
Carregamento de materiais 48
Moscovo 40 Carregados 7500
para a linha, de ferramentas para a
. Oficinas puds.
reparação de locomotivas e peças de 21
principais de 3 63
vagões para Perovo, Múrom, Alatír e
locomotivas Descarregados 1800 puds
Sízran 5
4 20
Moscovo No total, um
. Depósito de Reparação corrente e trabalho
1 equivalente à
26 5
comboios de complexa de locomotivas 30 reparação dei 1 1/2
passageiros locomotiva
Postas em serviço
Moscovo
Reparação corrente de 2 1locomotivas e em 4
. Estação de 24 6
locomotivas 44 desmontadas as peças para
triagem
reparação
Moscovo
Reparação corrente de 7 2 carruagens de 3a
. Secção de 12 6
carruagens de passageiros 2 classe
carruagens
"Perovo" 5 2
Reparação corrente de 46 12 vagões de
. Oficinas 30
vagões e pequenas reparações mercadorias cobertos e 2
principais de
realizadas no sábado e no domingo 23 abertos
vagões 5 115
Postos em serviço
20 no1total 4 locomotivas e 16
Total -
5 014 vagões e descarregados e
carregados 9300 puds

145
Apreciando este magnífico "exemplo digno de ser imitado", o Pravda de 20 de Maio, num artigo do
camarada N. R. com esse titulo, escrevia:
"Não são raros os casos de trabalhos do mesmo tipo realizados pelos comunistas. Conheço casos
semelhantes na central elétrica e em diversas vias férreas. Na linha Nikolaevskaia os comunistas contribuíram
com várias noites de trabalho suplementar para levantar uma locomotiva que tinha caído numa placa giratória;
na linha do Norte, no Inverno, todos os comunistas e simpatizantes trabalharam vários domingos para limpar a
neve das vias, as células de muitas estações de mercadorias fazem rondas noturnas nas estações com o objetivo
de lutar contra os ladrões de mercadorias. Mas este trabalho era ocasional, não sistemático. Os camaradas da
linha de Kazán introduziram um elemento novo que dá a este trabalho um caráter sistemático e permanente.
Até à vitória completa sobreKoltchak", decidiram os camaradas da linha de Kazán, e nisso reside toda a
importância do seu trabalho. Eles prolongam em uma hora a jornada de trabalho dos comunistas e
simpatizantes durante toda a duração do estado de guerra; ao mesmo tempo, dão o exemplo do trabalho
produtivo.
Este exemplo foi já imitado e deve continuar a ser imitado. A assembleia geral de comunistas e
simpatizantes da linha de caminho-de-ferro Alexandrovskaia, depois de discutir a situação militar e a decisão
dos camaradas da linha de Kazán, decidiu: 1) Introduzir os "sábados" para os comunistas e simpatizantes da
linha Alexandrovskaia. O primeiro sábado foi fixado para 17 de Maio. 2) Organizar os comunistas e
simpatizantes em brigadas modelo, exemplares, que deverão mostrar aos operários como é preciso trabalhar e
o que se pode fazer na realidade com os materiais, ferramentas e alimentação atuais.
Segundo os camaradas da linha de Kazán, o seu exemplo causou grande impressão e esperam que no
próximo sábado participará no trabalho um número considerável de operários sem partido. No momento em
que escrevemos estas linhas, ainda não começou nas oficinas da linha Alexandrovskaia o trabalho
extraordinário dos comunistas; apenas correu o rumor sobre os trabalhos projetados, mas já a massa sem
partido se pôs em movimento e comenta: "Não sabíamos ontem, senão ter-nos-íamos preparado e teríamos
trabalhado também", "no próximo sábado virei sem falta", ouve-se por todos os lados. A impressão produzida
por este gênero de trabalho é muito grande.
O exemplo dos camaradas da linha de Moscovo-Kazán deve ser seguido por todas as células
comunistas da retaguarda. Não apenas as células comunistas do nó ferroviário de Moscovo, mas todas as
organizações do partido na Rússia devem imitar este exemplo. E no campo as células comunistas devem, em
primeiro lugar, cultivar as terras dos combatentes do Exército Vermelho, ajudando as suas famílias.
Os camaradas da linha de Kazán acabaram o seu trabalho no primeiro sábado comunista cantando A
Internacional. Se a organização comunista de toda a Rússia seguir este exemplo e o aplicar firmemente, os duros
meses próximos serão vividos pela República Soviética da Rússia aos poderosos acordes de
A Internacional, cantada por todos os trabalhadores da República
Ao trabalho, camaradas comunistas!"
O Pravda informava em 23 de Maio de 1919 que:
"em 17 de Maio teve lugar o primeiro sábado comunista na linha Alexandrovskaia. De acordo com a
decisão da assembléia geral, 98 comunistas e simpatizantes trabalharam gratuitamente cinco horas
extraordinárias, recebendo apenas o direito a comprar uma segunda refeição, e para essa refeição paga foi-lhes
dada, como operários manuais, meia libra de pão".

Apesar de o trabalho estar insuficientemente preparado e insuficientemente organizado, apesar


disso a produtividade do trabalho foi duas ou três vezes superior ao habitual.
Eis alguns exemplos:
Cinco torneiros fizeram em 4 horas 80 eixos pequenos. A produtividade, em comparação com a
habitual, foi de 213%.

Vinte serventes recolheram em 4 horas 600 puds de material velho e 70 molas de vagão de 31 puds de
peso cada uma, num total de 850 puds. A produtividade, em comparação com a habitual, foi de 300%.
"Os camaradas explicam isto dizendo que em tempo normal o trabalho é fastidioso e aborrece, mas
aqui se trabalhou com gosto, com entusiasmo. Mas agora será vergonha fazer menos tempo normal do que
nos sábados comunistas.
"Agora muitos operários sem partido expressam o desejo de participar nos sábados. As brigadas de
locomotivas oferecem-se para retirar no sábado uma locomotiva do "cemitério", repará-la e pô-la em circulação.
Recebemos notícias de que na linha de Viazma se estão a organizar sábados semelhantes.

146
O camarada A. Diatchenko escreve no Pravda de 7 de Junho como decorre o trabalho nestes sábados
comunistas. Reproduzimos a parte principal do seu artigo, intitulado "Notas de um sábado comunista":
"Foi com grande alegria que, acompanhado de um camarada, fui fazer o meu "estágio" de sábado, por
decisão do comitê do partido do subdistrito ferroviário, e dar durante algum tempo, durante algumas horas,
descanso à cabeça, fazendo trabalhar os músculos ... Fomos destacados para trabalhar na carpintaria da linha.
Chegamos, vimos os nossos camaradas, saudamo-nos, gracejamos, e contamos as forças: éramos 30 ... E à nossa
frente tínhamos um "monstro", uma caldeira de peso bastante respeitável, uns 600 ou 700 puds, que tínhamos
que "deslocar", isto é, fazer rolar 1/4 ou 1/3 de versta até uma plataforma. A dúvida insinuou-se nos nossos
espíritos. Mas metemos mãos à obra: muito simplesmente os camaradas colocaram sob a caldeira uns rolos de
madeira, ataram duas cordas e começou o trabalho ... A caldeira não queria ceder, mas finalmente cedeu.
Estávamos contentes, éramos tão poucos porque durante duas semanas operários não comunistas em número
três vezes superior ao nosso tinham estado a puxar aquela mesma caldeira, mas ela não se deixou convencer até
que nós chegássemos ... Trabalhamos uma hora, intensamente, todos à uma, ao som compassado da ordem -
"um, dois, três" - do nosso camarada capataz, e a caldeira avança, avança. Mas, de repente, que aconteceu?
Subitamente toda uma fila de camaradas caiu por terra comicamente: uma das cordas "tinha-nos atraiçoado" ...
Mas a interrupção não durou mais que uns minutos: substitui-mo-la imediatamente por um cabo. À tarde,
anoitecia já visivelmente, tínhamos ainda de vencer uma pequena encosta para que o trabalho estivesse pronto.
Doíam-nos os braços, as palmas das mãos ardiam-nos, transpirávamos, fazíamos todos os esforços - mas o
trabalho avançava. Os "administrativos" confusos perante o nosso êxito, acabaram por decidir-se a deitar as
mãos ao cabo: ajudem-nos que já é tempo: um soldado vermelho, com um acordeão nas mãos observava o
nosso trabalho. Que pensa ele? Que gente é esta? Porque trabalham assim a um sábado, quando toda a gente
está em casa? Eu respondo às suas conjecturas e digo: "Camarada! Toca-nos qualquer coisa alegre, não somos
uns trabalhadores quaisquer, mas verdadeiros comunistas; vês como trabalhamos rapidamente, não
preguiçamos, trabalhamos a sério". O soldado vermelho pousou cuidadosamente o seu acordeão e apressou-se
a deitar uma mão ao cabo.
- Que esperto é o inglês! entoou com a sua bela voz de tenor o camarada U. Fizemos coro com ele, e
ressuou surdamente a letra da canção operária Dubínuchka.
Por falta de hábito, cansaram-se-nos os músculos, curvaram-se-nos os ombros e as costas, mas ...
tínhamos à nossa frente um dia livre, o nosso dia de descanso, e poderemos dormir bem. O objetivo estava
próximo, e depois de pequenas vacilações o nosso "monstro" estava já quase em cima da plataforma: ponham-
lhe umas tábuas por baixo, empurrem-na para a plataforma, e que esta caldeira faça o trabalho que há muito se
espera dela. Caminhamos em grupo para a casa que serve de "clube" à célula local, que, coberto de cartazes e
cheio de espingardas, estava muito iluminado, e depois de A Internacional bem cantada deleitam-nos com chá
com rum e ate pão. Esta bebida, preparada pelos camaradas locais, vinha muito a propósito depois do nosso
duro trabalho. Despedimo-nos fraternalmente dos camaradas e alinhamos em filas. Os cantos revolucionários
ressoavam no silêncio da noite na rua adormecida, e o ruído cadenciado dos passos acompanhava a canção.
"Marchemos ousadamente, camaradas". "De pé, ó vítimas da fome", dizia o hino de A Internacional e do
trabalho.
Passou uma semana. Os nossos braços e os nossos ombros tinham descansado, e fomos para um
"sábado", agora já a nove verstas, para fazer vagões. Foi em Perovo. Os camaradas subiram para o tecto de um
"americano", e com voz sonora e bela cantaram A Internacional. Os viajantes escutavam, ao que parecia,
assombrados. As rodas batiam cadenciadamente, e nós, não conseguindo trepar até ao tecto, penduramo-nos à
volta do "americano", sobre os degraus, parecendo passageiros "temerários". Eis a paragem; tínhamos chegado.
Atravessamos um longo pátio e encontramos o cordial comissário camarada G.
- Trabalho há, gente é que há pouca! No total, 30 homens, e em 6 horas é preciso fazer reparações
correntes em treze vagões. Assim estão os jogos de rodas já marcados; não há apenas vagões vazios, mas
também uma cisterna cheia... mas não importa, "desenrascar-nos-emos", camaradas!
O trabalho avança rápido. Cinco camaradas e eu trabalhamos com alavancas. Sob a pressão dos nossos
ombros e de duas alavancas, sob a direção do camarada "capataz", fazemos saltar rapidamente de uma para
outra via estes pares de rodas, que pesam entre 60 e 70 puds. Mal se tirou ainda um par de rodas quando já
outro ocupa o seu lugar. Quando já estão todas no lugar, fazemos rodar rapidamente pelos carris este ferro-
velho até um barracão. Uma, duas, três; uma alavanca de ferro giratória levanta as rodas no ar, e ei-las que já
não estão nos carris. Ali, na obscuridade, ouve-se o bater dos martelos; são os nossos camaradas que trabalham,
diligentes como abelhas, nos seus vagões "doentes". Trabalham de carpinteiro, pintam, arranjam os tectos - O
trabalho avança, para alegria nossa e do camarada comissário. Ali os ferreiros pediram a nossa ajuda. Na forja
portátil estava, aquecida ao rubro, uma barra de engate de vagão com o gancho dobrado por um choque.
Branca, faiscante, passou para a bigorna e com os nossos golpes certeiros, sob o olhar de um camarada
experiente, recupera a sua forma normal. Estava ainda rubra quando a levamos sobre os ombros, com toda a

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rapidez, para o seu lugar. Despedindo faíscas, introduzimo-la no alvéolo de ferro: uns quantos golpes e ficou no
lugar Metemo-nos sob o vagão. Ai a estrutura destes engates e barras não é tão simples como parece, porque há
todo um sistema de rebites e uma mola em espiral
O trabalho avança, a noite torna-se cada vez mais escura e é mais viva a luz das tochas. Em breve
terminaremos. Uma parte dos camaradas, encostados a um montão de jantes, bebem chá quente a pequenos
goles. E uma fresca noite de Maio, e a Lua no quarto crescente recorta-se bela no céu. Gracejos, risos, humor são.
- Camarada G., deixa o trabalho, já tens 13 vagões!
Mas para o camarada G. isto é pouco.
Acabado o chá, entoamos as nossas canções de triunfo e dirigimo-nos para a saída
O movimento em prol de organização dos "sábados comunistas" não se limita a Moscovo. O Pravda de
6 de Junho informava:
"Em 31 de Maio teve lugar em Tver o primeiro sábado comunista. Cento e vinte e oito comunistas
trabalharam na linha férrea. Em três horas e meia carregaram e descarregaram 14 vagões, repararam três
locomotivas, serraram 10 braças de lenha e executaram outros trabalhos. A intensidade do trabalho dos
operários comunistas qualificados ultrapassou em 13 vezes a produtividade normal.
Seguidamente, no Pravda de 8 de Junho lemos:
" Os sábados comunistas
" Sarátov, 5 de Junho. Os ferroviários comunistas, correspondendo ao apelo dos seus camaradas de
Moscovo, decidiram, numa assembleia geral do partido, trabalhar gratuitamente aos sábados cinco horas
extraordinárias para apoiar a economia nacional.

Reproduzi com o máximo pormenor e inteiramente as informações relativas aos sábados


comunistas porque observamos aqui, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes da edificação comunista,
ao qual a nossa imprensa dedica insuficiente atenção e que nós todos apreciamos ainda insuficientemente.
Menos palavreado político e maior atenção aos fatos mais simples, mais vivos, tomados da vida e
verificados na vida, da edificação comunista; tal é a palavra de ordem que todos nós, os nossos escritores,
agitadores, propagandistas, organizadores, etc., devemos repetir constantemente.
É natural e inevitável que durante os primeiros tempos depois da revolução proletária nos preocupe
acima de tudo a tarefa principal e fundamental: superar a resistência da burguesia, vencer os exploradores,
reprimir as suas conspirações (como a "conspiração dos escravistas" para entregar Petrogrado, na qual
participaram todos, desde os cem negros e os democratas-constitucionalistas até aos mencheviques e os
socialistas-revolucionários). Mas, ao lado desta tarefa, surge também inevitavelmente - e cada vez com maior
força - a tarefa mais essencial da edificação comunista positiva, da criação das novas relações econômicas, da
nova sociedade.
A ditadura do proletariado - como já tive ocasião de indicar mais de uma vez e, entre outras, também
no meu discurso de 12 de Março na reunião do Soviete de deputados de Petrogrado - não é só a violência sobre
os exploradores, nem sequer é principalmente a violência. A base econômica dessa violência revolucionária, a
garantia da sua vitalidade e do seu êxito, está em que o proletariado representa e realiza um tipo mais elevado
de organização social do trabalho em comparação com o capitalismo. Isto é o essencial. Nisto reside a fonte da
força e a garantia da vitória inevitável e completa do comunismo.
A organização feudal do trabalho social assentava na disciplina do cacete, na ignorância e no
embrutecimento extremos dos trabalhadores, espoliados e escarnecidos por um punhado de latifundiários. A
organização capitalista do trabalho social assentava na disciplina da fome, e a massa enorme dos trabalhadores,
apesar de todo o progresso da cultura e da democracia burguesa, continuou a ser, mesmo nas repúblicas mais
avançadas, mais civilizadas e mais democráticas, a massa ignorante e embrutecida dos escravos assalariados ou
dos camponeses esmagados, espoliados e escarnecidos por um punhado de capitalistas. A organização
comunista do trabalho social, de que o socialismo constitui o primeiro passo, assenta e assentará cada vez mais
na disciplina livre e consciente dos próprios trabalhadores, que derrubaram o jugo tanto dos latifundiários
como dos capitalistas.
Esta nova disciplina não cai do céu nem nasce de votos piedosos, mas decorre das condições materiais
da grande produção capitalista, e apenas delas. Sem elas é impossível. E o portador ou veículo dessas condições
materiais é uma classe histórica determinada, criada, organizada, unida, instruída, educada e temperada pelo
grande capitalismo. Essa classe é o proletariado.
A ditadura do proletariado, se traduzirmos esta expressão latina, científica, histórico-filosófica, para
uma linguagem mais simples, significa o seguinte:
só uma classe determinada, a saber os operários urbanos e em geral os operários das fábricas, os
operários industriais, está em condições de dirigir toda a massa de trabalhadores e explorados na luta para
derrubar o jugo do capital, no processo do próprio derrubamento, na luta para manter e consolidar a vitória, na

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obra da criação do novo regime social, do regime socialista, em toda a luta pela completa supressão das classes.
(Notemos entre parênteses: a diferença científica entre o socialismo e o comunismo consiste apenas em que a
primeira palavra designa a primeira fase da sociedade nova que nasce do capitalismo, e a segunda palavra
designa uma fase superior e mais avançada dessa sociedade.)
O erro da Internacional amarela "de Berna" consiste em que os seus chefes só em palavras reconhecem
a luta de classes e o papel dirigente do proletariado, receando levar as suas idéias até ao fim, receando
precisamente a inevitável conclusão que causa particular horror à burguesia e que é absolutamente inaceitável
para ela. Receiam reconhecer que a ditadura do proletariado é também um período de luta de classes, que é
inevitável enquanto as classes não tiverem sido suprimidas e que muda as suas formas, tornando-se
particularmente encarniçada e particularmente específica durante os primeiros tempos após o derrubamento
do capital. Uma vez conquistado o poder político, o proletariado não cessa a sua luta de classe, antes a continua
até a supressão das classes, mas naturalmente noutras condições, sob outras formas e com outros meios.
E que quer dizer "supressão das classes"? Todos aqueles que se dizem socialistas reconhecem este
objetivo final do socialismo, mas nem todos, longe disso, refletem no seu significado. Chama-se classes a
grandes grupos de pessoas que se diferenciam entre si pelo seu lugar num sistema de produção social
historicamente determinado, pela sua relação (as mais das vezes fixada e formulada nas leis) com os meios de
produção, pelo seu papel na organização social do trabalho e, consequentemente, pelo modo de obtenção e
pelas dimensões da parte da riqueza social de que dispõem. As classes são grupos de pessoas, um dos quais
pode apropriar-se do trabalho do outro graças ao fato de ocupar um lugar diferente num regime determinado
de economia social.
E claro que, para suprimir por completo as classes, é preciso não só derrubar os exploradores, os
latifundiários e capitalistas, não só abolir a suapropriedade, é preciso abolir ainda toda a propriedade privada
dos meios de produção, é preciso suprimir tanto a diferença entre a cidade e o campo, como a diferença entre os
trabalhadores manuais e intelectuais. E uma obra muito longa. Para a realizar, é necessário um gigantesco passo
em frente no desenvolvimento das forças produtivas, é necessário superar a resistência (frequentemente
passiva, que é particularmente tenaz e particularmente difícil de superar) das numerosas sobrevivências da
pequena produção, é preciso superar a enorme força do hábito e da rotina ligadas a estas sobrevivência.
Supor que todos os "trabalhadores" são igualmente capazes de realizar este trabalho seria uma frase
vazia e uma ilusão de um socialista antediluviano, pré-marxista. Porque essa capacidade não se dá por si
mesma, antes nasce historicamente e nasce apenas das condições materiais da grande produção capitalista. No
principio do caminho do capitalismo para o socialismo, só o proletariado possui essa capacidade. Ele está em
condições de cumprir a gigantesca missão que lhe incumbe, primeiro porque é a classe mais forte e mais
avançada das sociedades civilizadas; segundo, porque nos países mais desenvolvidos constitui a maioria da
população; terceiro, porque nos países capitalistas atrasados, como a Rússia, a maioria da população é
composta por semiproletários, isto é, por homens que regularmente vivem uma parte do ano como proletários,
que procuram regularmente a subsistência, em certa medida, no trabalho assalariado em empresas capitalistas.
Aqueles que tentam resolver os problemas da transição do capitalismo para o socialismo com
generalidades sobre a liberdade, a igualdade, a democracia em geral, a igualdade da democracia do trabalho,
etc. (como o fazem Kautsky, Mártov e os outros heróis da Internacional amarela de Berna), apenas revelam
desta maneira a sua natureza de pequenos burgueses, de filisteus, de espíritos mesquinhos, que se arrastam
servilmente atrás da burguesia no plano ideológico. Este problema só pode ser resolvido de um modo acertado
por um estudo concreto das relações específicas existentes entre a classe específica que conquistou o poder
político, ou seja, o proletariado, e toda a massa não proletária e também semiproletária da população
trabalhadora, e estas relações não se estabelecem em condições fantasticamente harmoniosas, "ideais", mas nas
condições reais de uma raivosa e multiforme resistência por parte da burguesia.
Em qualquer país capitalista, incluindo a Rússia, a imensa maioria da população - e mais ainda a
imensa maioria da população trabalhadora - sentiu mil vezes sobre si e os seus familiares a opressão do capital,
a sua pilhagem e toda a espécie de vexames. A guerra imperialista - isto é, o assassínio de dez milhões de
homens para decidir se a primazia na pilhagem de todo o mundo devia pertencer ao capital inglês ou alemão -
agudizou, ampliou e aprofundou extraordinariamente estas provações, forçando as massas a tomar consciência
delas. Daí a inevitável simpatia da imensa maioria da população, particularmente da massa dos trabalhadores,
pelo proletariado, pelo fato de ele, com uma audácia heróica com implacabilidade revolucionária, derrubar o
jugo do capital, derrubar os exploradores, reprimir a sua resistência e, derramando o seu próprio sangue, abrir
o caminho que conduz à criação duma sociedade nova, na qual não haverá lugar para os exploradores.
Por maiores e inevitáveis que sejam as hesitações pequeno-burguesas, a tendência para voltar para
trás, para o lado da "ordem" burguesa, para debaixo da "asa" da burguesia, por parte das massas não proletárias
e semiproletárias da população trabalhadora, elas não podem deixar de reconhecer a autoridade moral e
política do proletariado, que não só derruba os exploradores e reprime a sua resistência, mas que também

149
estabelece um vínculo social, uma disciplina social novos e mais elevados: a disciplina dos trabalhadores
conscientes e unidos, que não conhecem nenhum jugo e nenhum poder além do poder da sua própria união, da
sua própria vanguarda, mais consciente, audaciosa, unida, revolucionária e firme.
Para vencer, para criar e consolidar o socialismo, o proletariado tem que realizar uma tarefa dupla, ou
melhor, com dois aspectos: primeiro, arrastar, com o seu heroísmo abnegado na luta revolucionária contra o
capital, toda a massa de trabalhadores e explorados, arrastá-la, organizá-la, dirigi-la para o derrubamento da
burguesia e o esmagamento completo de toda a resistência por parte desta; segundo, conduzir atrás de si toda a
massa de trabalhadores e de explorados, assim como todas as camadas pequeno-burguesas, para a via da nova
construção econômica, para a via da criação do novo vínculo social, da nova disciplina do trabalho e da nova
organização do trabalho, que combina a última palavra da ciência e da técnica capitalista com a união maciça
dos trabalhadores conscientes, que criam a grande produção socialista.
Esta segunda tarefa é mais difícil que a primeira, porque não pode ser realizada em caso algum pelo
heroísmo de um impulso isolado, mas exige o heroísmo mais prolongado, mais perseverante, mais difícil do
trabalho de massas e quotidiano. Mas esta tarefa é também mais essencial que a primeira, porque no fim de
contas, a fonte mais profunda da força para as vitórias sobre a burguesia e a única garantia de solidez e
inalienabilidade destas vitórias reside unicamente num modo novo e superior da produção social, na
substituição da produção capitalista e pequeno-burguesa pela grande produção socialista.

Os "sábados comunistas" têm uma imensa importância histórica precisamente porque nos mostram a
iniciativa consciente e voluntária dos operários no desenvolvimento da produtividade do trabalho, na passagem
a uma nova disciplina do trabalho e na criação de condições socialistas na economia e na vida.
J. Jacoby, um dos poucos, ou mais exatamente um dos raríssimos democratas burgueses da Alemanha
que, depois das lições de 1870-1871, não passaram para o chauvinismo nem para o nacional-liberalismo, mas
para o socialismo, dizia que a fundação de uma só associação operária tinha mais importância histórica do que a
batalha de Sadowa. E tinha razão. A batalha de Sadowa decidiu qual de duas monarquias burguesas, a austríaca
ou a prussiana, teria a supremacia na criação de um Estado capitalista nacional alemão. A fundação de uma
associação operária representava um pequeno passo para a vitória mundial do proletariado sobre a burguesia.
Do mesmo modo, nós podemos dizer que o primeiro sábado comunista, organizado em 10 de Maio de 1919 em
Moscovo pelos operários ferroviários da linha férrea Moscovo-Kazán, tem mais importância histórica do que
qualquer vitória de Hindenburgo ou de Foch e dos ingleses na guerra imperialista de 1914-1918. As vitórias dos
imperialistas são o massacre de milhões de operários para aumentar os lucros dos milionários anglo-
americanos e franceses. São a bestialidade do capitalismo agonizante, empanturrado, que apodrece em vida, O
sábado comunista dos operários ferroviários da linha Moscovo-Kazán é uma das células da sociedade nova,
socialista, que traz a todos os povos da terra a emancipação do jugo do capital e das guerras.
Os senhores burgueses e os seus lacaios, incluindo os mencheviques e socialistas-revolucionários,
habituados a considerarem-se representantes da "opinião pública", troçam, naturalmente, das esperanças dos
comunistas, chamando a estas esperanças "embondeiro num vaso de reseda" e riem-se do ínfimo número de
sábados, em comparação com os inumeráveis casos de roubo, ociosidade, redução de produtividade,
deterioração das matérias-primas, deterioração dos produtos, etc. Nós respondemos a esses senhores: se a
intelectualidade burguesa tivesse ajudado com os seus conhecimentos os trabalhadores e não os capitalistas
russos e estrangeiros para a restauração do poder, a revolução seria mais rápida e mais pacífica. Mas isso é uma
utopia, pois a questão é decidida pela luta de classes, e a maioria da intelectualidade inclina-se para a burguesia.
O proletariado triunfará não com a ajuda da intelectualidade, mas apesar da sua oposição (pelo menos na maior
parte dos casos), afastando os intelectuais burgueses incorrigíveis, transformando, reeducando e submetendo
os vacilantes, conquistando gradualmente para o seu lado um número cada vez maior deles. Regozijar-se
maldosamente a propósito das dificuldades e insucessos da revolução, semear o pânico, fazer propaganda do
regresso ao passado - tudo isto são armas e processos da luta de classe da intelectualidade burguesa. Mas o
proletariado não se deixará enganar com isso.
Mas se abordarmos a questão a fundo, será possível encontrar na história um único exemplo de um
modo de produção novo que se tenha implantado de repente, sem uma longa série de reveses, de erros e de
recaídas? Meio século depois da queda do regime de servidão, persistiam ainda na aldeia russa muitas
sobrevivência da servidão. Meio século depois da abolição da escravidão dos negros na América, a situação dos
negros continuava a ser, em muitos casos, de semi-escravidão. A intelectualidade burguesa, incluindo os
mencheviques e socialistas-revolucionários, é fiel a si mesma servindo o capital e mantendo uma argumentação
totalmente falsa: antes da revolução proletária acusavam-nos de utopismo, e depois dela exigem que
eliminemos fantasticamente depressa as sobrevivências do passado!
Mas nós não somos utopistas e conhecemos o verdadeiro valor dos "argumentos" burgueses, sabemos
também que as sobrevivência do passado nos costumes predominarão inevitavelmente durante um certo

150
tempo, depois da revolução, sobre os rebentos do novo. Quando o novo acaba de nascer, tanto na natureza
como na vida social, o velho permanece sempre mais forte do que ele durante um certo tempo. Os sarcasmos a
propósito da debilidade dos rebentos do novo, o cepticismo barato dos intelectuais, etc., são, no fundo,
processos da luta de classe da burguesia contra o proletariado, da defesa do capitalismo perante o socialismo.
Devemos estudar minuciosamente os rebentos do novo, dispensar-lhes a maior atenção, ajudar por todos os
meios o seu crescimento e "cuidar" desses débeis rebentos. E inevitável que alguns deles pereçam. Não se pode
assegurar que precisamente os "sábados comunistas" desempenharão um papel de particular importância. Não
se trata disso. Trata-se de que é preciso apoiar todos e quaisquer rebentos do novo, entre os quais a vida
selecionará os mais vivazes. Se um cientista japonês, para ajudar os homens a vencer a sífilis, teve a paciência
de experimentar 605 preparações antes de elaborar a 606a, que satisfaz determinadas exigências, quem quiser
resolver um problema mais difícil, vencer o capitalismo, deverá ter perseverança para experimentar centenas e
milhares de novos processos, métodos e meios de luta até elaborar os mais úteis.
Os "sábados comunistas" têm tanta importância porque foram iniciados não por operários que se
encontram em condições excepcionalmente favoráveis, mas por operários de diversas especialidades, incluindo
também operários não especializados, serventes que se encontram nas condiçõeshabituais, isto é, as mais
duras. Todos conhecemos muito bem a condição fundamental da queda da produtividade do trabalho que se
verifica não apenas na Rússia, mas em todo o mundo: a ruína e a miséria, a exasperação e o cansaço provocados
pela guerra imperialista, as doenças e a subalimentação. Pela sua importância, esta última ocupa o primeiro
lugar. A fome - eis a causa. E para suprimir a fome é necessário elevar a produtividade do trabalho tanto na
agricultura como nos transportes e na indústria. Encontramo-nos, por conseguinte, perante uma espécie de
círculo vicioso: para elevar a produtividade do trabalho é preciso escapar à fome, e para escapar à fome é
preciso elevar a produtividade do trabalho.
É sabido que semelhantes contradições se resolvem na prática pela ruptura deste círculo vicioso, por
uma viragem no estado de espírito das massas, pela iniciativa heróica de alguns grupos, que no quadro de tal
viragem desempenha freqüentemente um papel decisivo. Os serventes de Moscovo e os ferroviários de
Moscovo (tendo em vista naturalmente a maioria, e não um punhado de especuladores, funcionários e outros
guardas brancos) são trabalhadores que vivem em condições desesperadamente difíceis. Sofrem de
subalimentação crônica, e agora, antes da nova colheita, quando a situação do abastecimento piorou em toda a
parte, sofrem de verdadeira fome. E estes operários famintos, cercados pela maldosa agitação contra-
revolucionária da burguesia, dos mencheviques e dos socialistas--revolucionários, organizam os "sábados
comunistas", trabalham horas extraordináriassem qualquer remuneração e conseguem um aumento enorme da
produtividade do trabalho, apesar de se encontrarem cansados, atormentados e extenuados pela
subalimentação. Não será isto um heroísmo grandioso? Não será o começo duma viragem de importância
histórica universal?
A produtividade do trabalho é, em última análise, o mais importante, o principal para a vitória do novo
regime social. O capitalismo criou uma produtividade do trabalho nunca vista sob o feudalismo. O capitalismo
pode ser definitivamente vencido e será definitivamente vencido porque o socialismo cria uma nova
produtividade do trabalho muitíssimo mais elevada. É uma tarefa muito difícil e muito longa, mas já começou, e
isso é o principal. Se na Moscovo faminta do Verão de 1919, operários famintos, que viveram quatro duros anos
de guerra imperialista, depois de ano e meio de uma guerra civil ainda mais dura, puderam iniciar esta grande
obra, que desenvolvimento atingirá ela quando vencermos na guerra civil e conquistarmos a paz?
O comunismo é uma produtividade do trabalho mais elevada que a dó capitalismo, obtida
voluntariamente por operários conscientes e unidos que utilizam uma técnica avançada. Os sábados
comunistas têm um valor excepcional como começo efetivo do comunismo, e isto é extremamente raro, pois nos
encontramos numa etapa na qual "se dão apenas os primeiros passos na transformação do capitalismo para o
comunismo" (como diz, com toda a razão, o programa do nosso partido110).
O comunismo começa lá onde dos operários de base surge uma preocupação abnegada, que supera a
dureza do trabalho, pelo aumento da produtividade do trabalho, pela salvaguarda de cada pud de trigo, de
carvão, de ferro e de outros produtos que não se destinam pessoalmente aos que trabalham nem aos seus
"próximos", mas a pessoas "alheias", isto é, a toda a sociedade no seu conjunto, a dezenas e centenas de milhões
de homens, unidos primeiro num Estado socialista, e depois numa união de Repúblicas Soviéticas.
Karl Marx, em O Capital, troça da pomposidade e grandiloqüência da grande parte democrático-
burguesa das liberdades e direitos do homem, de toda essa fraseologia sobre a liberdade, a igualdade e a
fraternidade em geral, que deslumbra os pequenos burgueses e filisteus de todos os países, incluindo os vis
heróis atuais da vil Internacional de Berna. Marx contrapõe a essas pomposas declarações de direitos a maneira
simples, modesta, prática e corrente com que o proletariado apresenta a questão: redução da jornada de
trabalho pelo Estado, eis um exemplo típico. Toda a justeza e toda a profundidade da observação de Marx nos
aparece com tanto maior clareza e evidência quanto mais se desenvolve o conteúdo da revolução proletária. As

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"fórmulas" do verdadeiro comunismo distinguem-se da fraseologia pomposa, artificiosa e solene dos Kautsky,
dos mencheviques e dos socialistas-revolucionários, bem como dos seus queridos "irmãos" de Berna,
precisamente em que elas reduzem tudo às condições de trabalho. Menos palavreado acerca da "democracia do
trabalho", acerca da "igualdade liberdade, fraternidade", a "soberania do povo" e outras coisas semelhantes: o
operário e o camponês conscientes dos nossos dias distingue nestas frases ocas a fraude do intelectual burguês
tão facilmente como qualquer pessoa com experiência da vida que, ao ver a fisionomia irrepreensivelmente
cuidada e o aspecto de uma "pessoa distinta", afirma imediatamente e sem se enganar: "E de certeza um
trapaceiro."
Menos frases pomposas e mais trabalho simples, quotidiano, mais preocupação por cada pud de trigo e
por cada pud de carvão! Mais preocupação porque esse pud de trigo e esse pud de carvão, indispensáveis ao
operário faminto e ao camponês esfarrapado e descalço, lhes cheguem não por traficâncias, não à maneira
capitalista, mas pelo trabalho consciente, voluntário, abnegadamente heróico de simples trabalhadores, como
os serventes e os ferroviários da linha Moscovo-Kazán.
Todos devemos reconhecer que a cada passo, em toda a parte, e também nas nossas fileiras, se
revelam vestígios da abordagem charlatanesca, intelectual burguesa, da questão da revolução. A nossa
imprensa, por exemplo, não luta o suficiente contra estes restos putrefactos do apodrecido passado
democrático-burguês e apoia pouco os rebentos simples, modestos, quotidianos, mas vivos, do verdadeiro
comunismo.
Tomemos a situação da mulher. Nenhum partido democrático do mundo, em nenhuma das repúblicas
burguesas mais avançadas, faz, neste aspecto, em dezenas de anos, nem a centésima parte daquilo que nós
fizemos no primeiro ano do nosso poder. Não deixamos, no sentido literal da palavra, pedra sobre pedra das
infames leis da desigualdade de direitos da mulher, das restrições ao divórcio, das ignóbeis formalidades que o
rodeiam, sobre o não reconhecimento dos filhos naturais, a investigação da paternidade, etc. - leis de que
subsistem em todos os países civilizados numerosos vestígios, para vergonha da burguesia e do capitalismo.
Temos mil vezes razão para nos sentirmos orgulhosos do que fizemos neste domínio. Mas
quanto maislimpamos o terreno da cangalhada de velhas leis e instituições burguesas, tanto mais claro se
tornou para nós que isto foi apenas a limpeza do terreno para a construção, mas ainda não a própria
construção.
A mulher continua a ser escrava do lar, apesar de todas as leis libertadoras, porque está oprimida,
sufocada, embrutecida, humilhada pelospequenos trabalhos domésticos, que a amarram à cozinha e aos filhos,
que malbaratam a sua atividade num trabalho improdutivo, mesquinho, enervante, embrutecedor e opressivo.
A verdadeira emancipação da mulher e o verdadeiro comunismo só começarão ali e onde começar a luta em
massa (dirigida pelo proletariado, detentor do poder do Estado) contra esta pequena economia doméstica, ou,
mais exatamente, quando começar a suatransformação em massa numa grande economia socialista.
Concedemos nós na prática suficiente atenção a esta questão, que, do ponto de vista teórico, é
indiscutível para qualquer comunista? Certamente que não. Preocupamo-nos suficientemente com
os rebentos do comunismo que já existem neste domínio? Uma vez mais, não e não. .As cantinas públicas, as
creches e os jardins infantis - eis exemplos destes rebentos, eis meios simples, correntes, sem pompa,
grandiloqüência nem solenidade, de fato capazes de emancipar a mulher, de fato capazes de minorar e suprimir
a sua desigualdade em relação ao homem pelo seu papel na produção social e na vida social. Estes meios não
são novos. Foram criados (como, em geral, todas as premissas materiais do socialismo) pelo grande capitalismo,
mas neste eles têm sido, em primeiro lugar, uma raridade, e em segundo lugar - o que tem particular
importância -, ou "eram empresas mercantis, com todos os piores aspectos da especulação, do lucro, do engano,
da falsificação, ou então uma ."acrobacia da caridade burguesa", odiada e desprezada, com toda a razão, pelos
melhores operários.
É indubitável que estas instituições são já muito mais numerosas no nosso país e começam a mudar de
caráter. E indubitável que entre as operárias e camponesas há muito mais talentos organizativos do que os que
nós conhecemos, pessoas que sabem organizar o trabalho prático, com a participação de um grande número de
trabalhadores e de um número muito maior de consumidores, sem a abundância de frases, a futilidade, as
brigas e a charlatanice sobre planos, sistemas, etc., da que "padece" a "intelectualidade", sempre demasiado
presumida, ou os "comunistas" precoces. Mas não cuidamos como devíamos desses rebe4ltos do novo.
Vejamos a burguesia. Como sabe admiravelmente dar publicidade àquilo que lhe é necessário! Como
exalta as empresas "modelo" (na opinião dos capitalistas) nos milhões de exemplares dos seus jornais, como
sabe fazer de instituições burguesas "modelo" objeto de orgulho nacional! A nossa imprensa não se preocupa,
ou quase não se preocupa, em descrever as melhores cantinas ou as melhores creches, em conseguir, com uma
insistência diária, a transformação de algumas delas em instituições modelo, em fazer propaganda delas, em
descrever pormenorizadamente a economia de esforço humano, as vantagens para os consumidores, a
poupança de produtos, a libertação da mulher da escravidão doméstica, a melhoria das condições sanitárias que

152
se conseguem com um exemplar trabalho comunista e que se podem alcançar, que se podem alargar a toda a
sociedade, a todos os trabalhadores.
Uma produção exemplar, sábados comunistas exemplares, um cuidado e uma honestidade exemplares
na obtenção e distribuição de cada pud de trigo, cantinas exemplares, a limpeza exemplar duma habitação
operária, de um bairro, tudo isto deve tornar-se, dez vezes mais do que agora, objeto de atenção e cuidado tanto
por parte da nossa imprensa como por parte de cada organização operária e camponesa. Tudo isto são rebentos
de comunismo, e cuidar destes rebentos é uma obrigação primordial de todos nós. Por muito difícil que seja a
situação do abastecimento e da produção, o avanço em toda a frente em ano e meio de poder bolchevique é
indubitável: o aprovisionamento de cereais subiu de 30 milhões de puds (de 1.VIII.1917 a 1.VIII.19 18) para 100
milhões de puds (de 1.VIII.1918 a 1.V.1919); cresceu a horticultura, diminuiu a extensão dos campos não
semeados, começou a melhorar o transporte ferroviário, apesar das gigantescas dificuldades com o
combustível, etc. Sobre este fundo geral, e com o apoio do poder de Estado proletário, os rebentos de
comunismo não estiolarão, mas crescerão e florescerão, transformando-se em comunismo pleno.

É necessário refletir sobre o significado dos "sábados comunistas" para retirar desta grande iniciativa
todas as lições práticas, de grande importância, que dela decorrem.
O apoio por todos os meios a esta iniciativa é a primeira e principal lição. Começou-se a usar entre nós
a palavra "comuna" com excessiva ligeireza. Qualquer empresa fundada por comunistas ou com a sua
participação recebe a cada passo e imediatamente o nome de "comuna"; e com isto esquece-se freqüentemente
que essa denominação tão honrosa deve ser conquistada por um trabalho prolongado e perseverante,
conquistada por êxitos práticoscomprovados na edificação verdadeiramente comunista.
Por isso é inteiramente justa, na minha opinião, a decisão, que amadureceu na maioria do CEC,
de anular um decreto do Conselho de Comissários do Povo no que se refere à denominação "comunas de
consumo""12. Não importa que a denominação seja mais simples; a propósito, as lacunas e os defeitos
das primeiras etapas do novo trabalho de organização não serão atribuídos às "comunas", mas imputados (e é
justo que assim seja) aos mauscomunistas. Seria muito útil eliminar do uso corrente a palavra "comuna",
impedir que a primeira pessoa que aparece possa apossar-se desta palavra, ou reconhecer esta denominação
unicamente às verdadeiras comunas, que demonstraram verdadeiramente na prática (e confirmaram pelo
reconhecimento unânime de toda a população local) que podem e sabem organizar as coisas à maneira
comunista. Primeiro demonstra a tua capacidade de trabalhar gratuitamente no interesse da sociedade, no
interesse de todos os trabalhadores, a capacidade de "trabalhar à maneira revolucionária", a capacidade de
elevar a produtividade do trabalho, de organizar as coisas de modo exemplar, e depois estende a mão para o
honroso título de "comuna"!
Neste aspecto, os "sábados comunistas" constituem uma excepção do mais alto valor. Porque aqui os
serventes e os operários ferroviários da linha Moscovo-Kazán primeiro mostraram de fato que são capazes de
trabalhar como comunistas, e depois deram à sua iniciativa a denominação de "sábados comunistas". E preciso
procurar e conseguir que se proceda também assim no futuro, que todos aqueles que chamem comuna à sua
empresa, instituição ou obra sem o demonstrar com o trabalho duro e os êxitos práticos de um trabalho
prolongado, com uma maneira exemplar e realmente comunista de organizar as coisas, sejam impiedosamente
ridicularizados e cobertos de vergonha como charlatães ou fanfarrões.
A grande iniciativa dos "sábados comunistas" deve ser aproveitada também noutro sentido, a saber:
para depurar o partido. Era absolutamente inevitável, nos primeiros tempos depois da revolução, quando a
massa das pessoas "honestas" e de espírito pequeno-burguês estava particularmente amedrontada, quando a
intelectualidade burguesa, incluindo, claro está, os mencheviques e os socialistas-revolucionários, sabotava sem
excepção, como lacaios da burguesia, era absolutamente inevitável que aderissem ao partido dirigente
aventureiros e outros elementos nocivos. Não houve nem pode haver nenhuma revolução sem isto. O
importante é que o partido dirigente, apoiando-se na classe avançada, sã e forte, saiba depurar as suas fileiras.
Já há muito tempo que começamos o trabalho neste aspecto. É preciso continuá-lo sem desfalecimento
e sem descanso. A mobilização dos comunistas para a guerra ajudou-nos: os cobardes e os canalhas fugiram do
partido. Bons ventos os levem! Esta diminuição do número de membros do partido significa um enorme
crescimento da sua força e peso. E preciso continuar a depuração, utilizando a iniciativa dos "sábados
comunistas": admitir no partido apenas depois de meio ano, digamos, de "prova" ou "estágio", que consistam
em "trabalho à maneira revolucionária". A mesma prova deve ser exigida a todos os membros do partido que
tenham entrado depois de 25 de Outubro de 1917 e que não tenham demonstrado com trabalhos ou méritos
especiais a sua absoluta firmeza, lealdade e capacidade de ser comunistas.
A depuração do partido, ligada à inflexível elevação do seu grau de exigência em relação a um trabalho
autenticamente comunista, melhorará oaparelho do poder de Estado e aproximará dum modo gigantesco
a passagem definitiva dos camponeses para o lado do proletariado revolucionário.

153
Os "sábados comunistas", entre outras coisas, projetaram uma luz extraordinariamente clara sobre o
caráter de classe do aparelho do poder de Estado sob a ditadura do proletariado. O CC do partido escreve uma
carta acerca do "trabalho à maneira revolucionária"*. A idéia foi lançada pelo Comitê Central de um partido que
conta entre 100 000 e 200 000 membros (suponho que serão os que ficarão depois duma depuração séria, pois
agora são mais).
A idéia é retomada pelos operários sindicalizados. O seu número na Rússia e na Ucrânia é de 4 milhões.
Eles são, na sua gigantesca maioria, favoráveis ao poder de Estado proletário, à ditadura do proletariado. 200
000 e 4 000 000 - eis a proporção das "rodas dentadas", se me é permitido expressar-me assim. Vêm a
seguir dezenas de milhões de camponeses, que se dividem em três grupos principais: o semiproletariado ou
camponeses pobres, o grupo mais numeroso e mais próximo do proletariado; depois o campesinato médio; por
último, um grupo muito reduzido, o dos kulaques ou burguesia rural.
Enquanto subsistir a possibilidade de comerciar com o trigo e especular com a fome, o camponês
continuará a ser (e isto é inevitável durante um certo período de tempo sob a ditadura do proletariado)
semitrabalhador e semiespeculador. Como especulador é-nos hostil, hostil ao Estado proletário, e inclina-se
para o entendimento com a burguesia e os seus fiéis lacaios, incluindo o menchevique Cher ou o socialista-
revolucionário B. Tchernenkov, partidários do comércio livre dos cereais. Mas como trabalhador, o camponês é
amigo do Estado proletário, é o aliado mais fiel do operário na luta contra o latifundiário e contra o capitalista.
Como trabalhadores, os camponeses, na sua imensa massa de milhões de pessoas, apoiam a "máquina" de
Estado, que é dirigida por cem ou duzentos mil homens da vanguarda proletária comunista e que consiste em
milhões de proletários organizados.
Jamais houve no mundo um Estado mais democrático, no verdadeiro sentido da palavra, mais
estreitamente ligado às massas trabalhadoras e exploradas.
E precisamente este trabalho proletário, que os "sábados comunistas" representam e levam à prática,
que traz consigo a consolidação definitiva do respeito e do amor do campesinato pelo Estado proletário. Este
trabalho, e só ele, convence definitivamente o camponês de que temos razão, de que o comunismo tem razão, e
faz do camponês um nosso partidário sem reservas. E isto significa: conduzirá à superação completa das
dificuldades do abastecimento, à vitória completa do comunismo sobre o capitalismo na questão da produção e
da distribuição de cereais, conduzirá à consolidação absoluta do comunismo.
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1919/06/28.htm

154
Acerca do Infantilismo "de Esquerda" e do Espírito Pequeno-Burguês

V. I. Lénine

5 de Maio de 1918

A publicação pelo pequeno grupo dos «comunistas de esquerda» da sua revista Kommunist[N305] (n.°
1, 20 de Abril de 1918) e das suas «teses», dá uma excelente confirmação do que eu disse na brochura sobre as
tarefas imediatas do Poder Soviético. Seria impossível desejar uma confirmação mais evidente — na literatura
política — de toda a ingenuidade da defesa do desleixo pequeno-burguês, que se esconde por vezes sob
palavras de ordem «de esquerda». É útil e necessário determo-nos nos raciocínios dos «comunistas de
esquerda», porque são característicos do momento que vivemos; explicam com invulgar clareza, do lado
negativo, o «âmago» deste momento; são instrutivos, pois diante de nós temos os melhores dos homens que não
compreenderam o momento e que tanto pelos seus conhecimentos como pela sua fidelidade estão muito acima
dos vulgares representantes do mesmo erro, a saber: os socialistas-revolucionários de esquerda.

Como grandeza política — ou que pretende desempenhar um papel político —, o grupo dos
«comunistas de esquerda» deu-nos as suas «teses sobre o momento actual». É um bom hábito marxista fazer
uma exposição coerente e global dos fundamentos das suas concepções e da sua táctica. E este bom hábito
marxista ajudou-nos a desmascarar o erro dos nossos «esquerdas», pois já a própria tentativa de argumentar —
e não de declamar — revela a inconsistência da argumentação.

Salta aos olhos, em primeiro lugar, a abundância de alusões, insinuações e subterfúgios a propósito da
velha questão de se foi correcto concluir a paz de Brest. Os «esquerdas» não se decidiram a colocar de frente
esta questão e agitam-se comicamente, amontoando argumentos sobre argumentos, pescando considerações,
procurando toda a espécie de «por um lado» e «por outro lado», espalham-se mentalmente por todos os
assuntos e mais um fazendo esforços para não verem como a si mesmos se refutam. Os «esquerdas» citam
solicitamente o número: 12 votos no congresso do partido contra a paz e 28 pela paz, mas silenciam
discretamente que na fracção bolchevique do congresso dos Sovietes, das muitas centenas de votos, eles
reuniram menos de um décimo. Criam a «teoria» de que a paz foi aprovada pelos «cansados e desclassificados»
e que contra a paz «estavam os operários e os camponeses das regiões do Sul de mais vitalidade económica e
melhor abastecidos de pão» ... Como não rir disto?

Nem uma sílaba sobre a votação do Congresso dos Sovietes de Toda a Ucrânia a favor da paz, nem uma
palavra sobre o carácter social e de classe do conglomerado político tipicamente pequeno-burguês e
desclassificado na Rússia que era contra a paz (o partido dos socialistas-revolucionários de esquerda). É uma
maneira puramente infantil de ocultar a sua bancarrota com divertidas explicações «científicas», de ocultar
factos cuja simples revisão mostraria que foram precisamente as «cúpulas» e os dirigentes desclassificados e
intelectuais do partido que contestaram a paz com palavras de ordem retiradas da fraseologia pequeno-
burguesa, que foram precisamente as massas de operários e camponeses explorados que aprovaram a paz.

Apesar de tudo, a verdade simples e clara sobre a questão da guerra e da paz abre caminho através de
todas as referidas declarações e subterfúgios dos «esquerdas». «A conclusão da paz — vêem-se obrigados a
reconhecer os autores das teses — enfraqueceu por agora a aspiração dos imperialistas a um arranjo
internacional» (os «esquerdas» não expõem isto com precisão, mas não é aqui o lugar de nos determos nas
imprecisões). «A conclusão da paz já conduziu à exacerbação do conflito entre as potências imperialistas.»

Isto é um facto. Isto tem importância decisiva. Eis porque os adversários da conclusão da paz faziam
objectivamente o jogo dos imperialistas, caíam na sua armadilha. Pois enquanto não rebentar a revolução
socialista internacional, que abarque alguns países e tenha força suficiente que lhe permita vencer o
imperialismo internacional, até então, o dever directo dos socialistas que venceram num único país
(particularmente se for atrasado) consiste em não aceitar o combate com os gigantes do imperialismo, em
tentar evitar o combate, em esperar que o conflito dos imperialistas entre si os enfraqueça ainda mais,
aproxime ainda mais a revolução nos outros países. Os nossos «esquerdas» não compreenderam esta simples
verdade em Janeiro, Fevereiro e Março, também temem agora reconhecê-la abertamente; ela abre caminho
através de todos os seus confusos: «por um lado, é impossível deixar de confessar, por outro lado, é preciso
reconhecer»[N306].

155
«No decurso da Primavera e Verão próximos — escrevem os 'esquerdas' nas suas teses — deve
começar a derrocada do sistema imperialista que, no caso de vitória do imperialismo alemão na actual fase da
guerra, só poderá ser adiada e se exprimirá então em formas ainda mais agudas.»
A formulação é aqui ainda mais infantilmente imprecisa, não obstante todo o jogo ao científico. É
próprio de crianças «compreender» a ciência como se ela pudesse determinar em que ano, na Primavera e no
Verão ou no Outono e no Inverno, «deve» «começar a derrocada».

São esforços ridículos para saber o que não se pode saber. Nenhum político sério dirá alguma vez
quando «deve começar» esta ou aquela derrocada do «sistema» (tanto mais que a derrocada do sistema já
começou, e do que se trata é do momento da explosão nos diferentes países). Mas através da impotência infantil
da formulação abre caminho uma verdade indiscutível: as explosões da revolução noutros países mais
avançados estão mais perto de nós agora, um mês depois da «trégua» iniciada com a conclusão da paz, do que
estavam há um mês ou mês e meio.

E então?

Então tinham inteira razão e foram já justificados pela história os partidários da paz, os que tentaram
meter na cabeça dos que gostam de atitudes espectaculares que é necessário saber calcular a correlação de
forças e não ajudar os imperialistas, facilitando-lhes o combate contra o socialismo quando o socialismo é ainda
fraco e as probabilidades de êxito do combate são evidentemente desfavoráveis para o socialismo.

Mas os nossos comunistas «de esquerda» — que gostam também de se chamar comunistas
«proletários», pois têm particularmente pouco de proletário e particularmente muito de pequeno-burguês —
não sabem pensar na correlação de forças, não sabem tomar em consideração a correlação de forças. Nisto
reside o âmago do marxismo e da táctica marxista, mas eles fingem que não vêem o «âmago» com frases
«orgulhosas» como a seguinte:

«... A consolidação nas massas da inactiva 'psicologia de paz' é um facto objectivo do momento
político...»
Uma autêntica pérola! Depois de três anos da mais martirizante e reaccionária das guerras, o povo
recebeu, graças ao Poder Soviético e à sua táctica correcta, que não cai na fraseologia, uma trégua pequena,
muito e muito pequena, precária e longe de ser completa, mas os intelectuaizinhos «de esquerda», com a
magnificência de um Narciso enamorado de si mesmo, proferem com ar profundo: «a consolidação (!!!) nas
massas (???) da inactiva (!!!???) psicologia de paz.» Não tinha eu razão quando disse no congresso do partido
que o jornal ou revista dos «esquerdas» não deveria chamar-se Kommunist, mas Szlachcic?(1*)

Acaso pode um comunista, que compreenda minimamente as condições de vida e a psicologia das
massas trabalhadoras e exploradas, descer até este ponto de vista do intelectual típico, do pequeno-burguês, do
desclassificado, com o estado de espírito do fidalgote ou do szlachcic, que declara «inactiva» a «psicologia de
paz» e considera «actividade» agitar uma espada de cartão? Pois é precisamente agitar uma espada de cartão o
que fazem os nossos «esquerdas», quando eludem o facto, conhecido de todos e demonstrados uma vez mais
com a guerra na Ucrânia, de que os povos, esgotados por três anos de matança, não podem combater sem
tréguas, de que a guerra, se não se tem forças para a organizar à escala nacional, origina a cada passo a
psicologia da desorganização própria do pequeno proprietário, e não a da férrea disciplina proletária. Vemos a
cada passo na revista Kommunist que os nossos «esquerdas» não têm noção da férrea disciplina proletária nem
da sua preparação, que estão impregnados até à medula com a psicologia do intelectual pequeno-burguês
desclassificado.

II

Mas talvez as frases dos «esquerdas» acerca da guerra sejam simplesmente uma fogosidade infantil,
orientada, além disso, para o passado e, por isso, sem sombra de significado político? Assim defendem alguns os
nossos «esquerdas». Mas isto é falso. Se se pretende ter um papel de direcção política, tem de se saber pensar
bem as tarefas políticas, e a falta disto transforma os «esquerdas» em pregadores sem carácter da oscilação, que
objectivamente só tem um significado: com as suas vacilações, os «esquerdas» ajudam os imperialistas a
provocar a República Soviética da Rússia para um combate evidentemente desvantajoso para ela, ajudam os
imperialistas a arrastar-nos para uma armadilha. Escutai:

156
«... A revolução operária da Rússia não pode 'manter-se' abandonando o caminho revolucionário
internacional, fugindo constantemente ao combate e recuando perante a investida do capital internacional,
fazendo concessões ao 'capitalpátrio'.
«Deste ponto de vista são necessárias: uma decidida política internacional de classe, que una a
propaganda revolucionária internacional pela palavra e pelos actos, e o fortalecimento da ligação orgânica com
o socialismo internacional (e não com a burguesia internacional)...»
Falar-se-á em particular dos ataques que aqui se fazem no domínio da política interna. Mas vejam esta
orgia da frase — juntamente com a timidez nos factos — no domínio da política externa. Que táctica é
obrigatória para quem não quer ser um instrumento da provocação imperialista e cair na armadilha no
momento actual? Todo o político deve dar uma resposta clara e directa a esta pergunta. A resposta do nosso
partido é conhecida: no momento actual, retirar, fugir ao combate. Os nossos «esquerdas» não se atrevem a
dizer o contrário e disparam para o ar: «uma decidida política internacional de classe»!!

Isto é enganar as massas. Se quereis combater agora, dizei-o directamente. Se não quereis recuar
agora, dizei-o directamente. De outro modo, sois, pelo vosso papel objectivo, um instrumento da provocação
imperialista. E a vossa «psicologia» subjectiva é a psicologia do enraivecido pequeno-burguês, que se faz de
valentão e se vangloria mas sente perfeitamente que o proletário tem razão ao recuar e procurar recuar
organizadamente; que o proletário tem razão ao calcular que, enquanto ainda não se tem forças, é preciso
recuar (perante o imperialismo ocidental e oriental) mesmo que até aos Urais, pois essa é a única possibilidade
de ganhar algo para o período de maturação da revolução do Ocidente, revolução que não «deve» (não obstante
a tagarelice dos «esquerdas») começar «na Primavera ou no Verão», mas que de mês para mês se torna mais
próxima e mais provável.

Os «esquerdas» não têm uma política «sua»; não se atrevem a declarar que o recuo agora é
desnecessário. Dão voltas e agitam-se, jogando com as palavras, colocam sub-repticiamente a questão da fuga
«constante» ao combate no lugar da questão da fuga ao combate no momento actual. Lançam bolas de sabão:
«propaganda revolucionária internacional pelos actos»!! Que significa isto?

Isto só pode significar uma destas duas coisas: ou é nozdriovismo[N307], ou é guerra ofensiva com o
objectivo de derrubar o imperialismo internacional. Não se pode dizer abertamente tal absurdo, e por isso os
comunistas «de esquerda» têm de refugiar-se por detrás de frases altissonantes e ocas para evitar que os
ridicularize qualquer operário consciente: talvez que o leitor distraído não note o que significa, na realidade,
essa «propaganda revolucionária internacional pelos actos».

Lançar frases sonoras é uma propriedade dos intelectuais pequeno-burgueses desclassificados. Os


proletários comunistas organizados castigarão por estas «maneiras», certamente, pelo menos com troças e com
a expulsão de todos os postos de responsabilidade. É preciso dizer às massas a amarga verdade, simples, clara e
directamente: é possível e mesmo provável que o partido militar obtenha mais uma vez a supremacia na
Alemanha (no sentido de passar imediatamente à ofensiva contra nós) e que a Alemanha, juntamente com o
Japão, por um acordo formal ou tácito, nos reparta e nos estrangule. A nossa táctica, se não queremos escutar os
gritadores, é: esperar, protelar, fugir ao combate, recuar. Se afastarmos os gritadores e «nos pusermos na
linha», criando uma disciplina verdadeiramente férrea, verdadeiramente proletária, verdadeiramente
comunista, temos sérias possibilidades de ganhar muitos meses. E então, recuando (no pior dos casos) até aos
Urais, facilitamos ao nosso aliado (o proletariado internacional) a possibilidade de acudir em nosso auxílio, a
possibilidade de «cobrir» (exprimindo-nos em linguagem desportiva) a distância que separa o começo das
explosões revolucionárias da revolução.

Esta táctica, e só esta, fortalece de facto a ligação de um destacamento do socialismo internacional, que
se encontra isolado temporariamente, com os outros destacamentos, mas em vós, caros «comunistas de
esquerda», só se obtém, para dizer a verdade, o «fortalecimento da ligação orgânica» de uma frase sonora com
outra frase sonora. É uma má «ligação orgânica»!

E vou explicar-vos, meus caros, por que razão vos aconteceu essa desgraça: porque vós aprendeis de
cor e retendes na memória mais do que reflectis nas palavras de ordem da revolução. Por isso colocais as
palavras «defesa da pátria socialista» entre aspas, que devem significar, provavelmente, uma tentativa de
ironizar, mas que, de facto, demonstram confusão nas vossas cabeças. Estais habituados a considerar o
«defensismo» como uma coisa infame e vil, retivestes e aprendestes isto, decorastes isto tão zelosamente que
alguns de vós chegaram ao ponto de dizer o absurdo de que, na época imperialista, a defesa da pátria é uma

157
coisa inadmissível (de facto, ela é inadmissível só numa guerra imperialista, reaccionária, conduzida pela
burguesia). Mas não reflectistes porquê e quando é infame o «defensismo».

Reconhecer a defesa da pátria significa reconhecer a legitimidade e a justiça da guerra. A legitimidade


e a justiça de que ponto de vista? Só do ponto de vista do proletariado socialista e da sua luta pela sua
libertação; nós não reconhecemos outro ponto de vista. Se a guerra é conduzida pela classe dos exploradores
com o objectivo de reforçar o seu domínio como classe, é uma guerra criminosa, e o «defensismo» em tal guerra
é uma infâmia e uma traição ao socialismo. Se a guerra é conduzida pelo proletariado que venceu a burguesia
no seu país, é conduzida no interesse do fortalecimento e desenvolvimento do socialismo, então é uma guerra
legítima e «sagrada».

Somos defensistas desde 25 de Outubro de 1917. Disse isto mais de uma vez com toda a precisão, e vós
não vos atreveis a contestá-lo. No interesse do «fortalecimento da ligação» com o socialismo internacional é
obrigatório defender a pátria socialista. Destruiria a ligação com o socialismo internacional quem tratasse com
ligeireza a defesa de um país no qual o proletariado já venceu. Quando éramos representantes de uma classe
oprimida, não adoptámos uma atitude leviana perante a defesa da pátria na guerra imperialista, negámos por
princípio tal defesa. Quando nos tornámos representantes da classe dominante, que começou a organizar o
socialismo, exigimos que todos tenham uma atitude séria perante a defesa do país. E ter uma atitude séria
perante a defesa do país significa preparar-se a fundo e ter rigorosamente em conta a correlação de forças. Se as
forças são evidentemente poucas, o principal meio de defesa é recuar para o interior do país (quem vir nisto
uma fórmula forjada só para este caso pode ler o que diz o velho Clausewitz, um dos grandes escritores
militares, acerca do balanço das lições da história a este respeito). Mas entre os «comunistas de esquerda» não
existe o menor indício de que compreendam a importância da questão da correlação de forças.

Quando, por princípio, éramos inimigos do defensismo, tínhamos direito a ridicularizar os que
queriam «preservar» a sua pátria pretensamente no interesse do socialismo. Quando obtivemos o direito de ser
defensistas proletários, toda a colocação da questão muda radicalmente. Passa a ser nosso dever fazer um
muito cuidadoso cálculo das forças, sopesar minuciosamente se poderá chegar a tempo o nosso aliado (o
proletariado internacional). O interesse do capital é destruir o inimigo (o proletariado revolucionário) por
partes antes que se unam (de facto, isto é, iniciando a revolução) os operários de todos os países. O nosso
interesse é fazer todo o possível, aproveitar mesmo a mais pequena probabilidade para protelar o combate
decisivo até ao momento (ou «até depois» do momento) dessa unificação dos destacamentos revolucionários
num grande exército internacional.

III

Passaremos às desventuras dos nossos «comunistas de esquerda» no domínio da política interna. É


difícil ler sem um sorriso frases como as seguintes nas teses sobre o momento actual:

«... O aproveitamento planificado dos meios de produção que ficaram intactos só é concebível com a
mais decidida socialização»... «Não capitular perante a burguesia e os intelectuais pequeno-burgueses seus
sequazes, mas esmagar a burguesia e quebrar definitivamente a sabotagem...»
Caros «comunistas de esquerda», quanta decisão têm... e que pouca reflexão! Que significa «a mais
decidida socialização»?

Pode ser-se decidido ou indeciso na questão da nacionalização, da confiscação. Mas a essência está em
que mesmo a maior «decisão» do mundo é insuficiente para passar da nacionalização e confiscação à
socialização. A desgraça dos nossos «esquerdas» está em que com essa ingénua e infantil combinação de
palavras, «a mais decidida... socialização» revelam a sua completa incompreensão da essência da questão, da
essência do momento «actual». A desventura dos «esquerdas» está em que não notaram a própria essência do
«momento actual», da passagem das confiscações (durante cuja realização a qualidade principal do político é a
decisão) à socialização (para cuja realização se requer do revolucionário outra qualidade).

Ontem a essência do momento actual era nacionalizar, confiscar com a maior decisão, golpear e
esmagar a burguesia, quebrar a sabotagem. Hoje, só os cegos não vêem que nacionalizámos, confiscámos,
golpeámos e ferimos mais do que aquilo que conseguimos contar. E a socialização distingue-se exactamente da
simples confiscação em poder-se confiscar apenas com «decisão», sem saber contar correctamente e distribuir
correctamente, mas é impossível socializar sem saber isto.

158
O nosso mérito histórico consiste em que fomos ontem (e seremos amanhã) decididos nas
confiscações, em esmagar a burguesia, em quebrar a sabotagem. Escrever hoje sobre isso numas «teses sobre o
momento actual» significa voltar-se para o passado e não compreender a transição para o futuro.

...«Quebrar definitivamente a sabotagem» ... Que tarefa encontraram! Mas os sabotadores estão já
«quebrados» em grau suficiente. O que nos falta é uma coisa absolutamente, absolutamente diferente: calcular
que sabotadores e onde devemos colocá-los, organizar as nossas forças para que, digamos, um dirigente ou
controlador bolchevique vigie uma centena de sabotadores que venham a servir-nos. Em tal situação, lançar
frases como «a mais decidida socialização», «esmagar» e «quebrar definitivamente» significa falhar
completamente. É peculiar do revolucionário pequeno-burguês não notar que para o socialismo não basta
esmagar, quebrar, etc. — isso é suficiente para o pequeno proprietário, enfurecido contra o grande —, mas o
revolucionário proletário jamais cairia em semelhante erro.

Se as palavras que citámos suscitam um sorriso, a descoberta feita pelos «comunistas de esquerda» de
que a República Soviética, com o «desvio bolchevique de direita», se vê ameaçada de «evoluir para o capitalismo
de Estado» suscita uma franca gargalhada homérica. Pode dizer-se, na verdade, que nos pregaram um susto! E
com que zelo repetem os «comunistas de esquerda» esta terrível descoberta nas suas teses e nos seus artigos...

Mas não pensaram em que o capitalismo de Estado seria um passo em frente face à situação actual na
nossa República Soviética. Se, por exemplo, dentro de meio ano se estabelecesse no nosso país o capitalismo de
Estado, isso seria um imenso êxito e a mais firme garantia de que, ao cabo de um ano, o socialismo se
consolidaria definitivamente e se tornaria invencível.

Imagino a nobre indignação com que o «comunista de esquerda» repudiará estas palavras e a «crítica
demolidora» que dirigirá aos operários contra o «desvio bolchevique de direita». Como? Na República Socialista
Soviética a passagem ao capitalismo de Estado significaria um passo em frente?... Não será isto uma traição ao
socialismo?

Precisamente aqui reside a raiz do erro económico dos «comunistas de esquerda». E precisamente
neste ponto que é preciso, por isso, determo-nos mais pormenorizadamente.

Em primeiro lugar, os «comunistas de esquerda» não compreenderam qual é precisamente a transição


do capitalismo ao socialismo que nos dá direito e fundamento para nos denominarmos República Socialista dos
Sovietes.

Em segundo lugar, revelam o seu espírito pequeno-burguês precisamente em não verem o elemento
pequeno-burguês como inimigo principal do socialismo no nosso país.

Em terceiro lugar, ao avançarem com o espantalho do «capitalismo de Estado», demonstram não


compreender o Estado soviético na sua diferença económica do Estado burguês.

Examinemos todas estas três circunstâncias.

Ainda não houve, parece-me, uma única pessoa que ao ocupar-se da questão da economia da Rússia
tenha negado o carácter de transição dessa economia. Nenhum comunista negou, parece-me, que a expressão
República Socialista Soviética significa a decisão do Poder Soviético de realizar a transição para o socialismo,
mas de modo algum o reconhecimento da nova ordem económica como socialista.

Mas o que significa a palavra transição? Não significará, aplicada à economia, que no regime actual
existem elementos, partículas, pedaços tanto de capitalismo como de socialismo? Todos reconhecem que sim.
Mas nem todos, ao reconhecerem isto, reflectem sobre precisamente que elementos das diferentes estruturas
económicas e sociais existem na Rússia. E nisto está toda a essência da questão.

Enumeremos esses elementos:

economia camponesa, patriarcal, isto é, natural em grau significativo:


pequena produção mercantil (isto inclui a maioria dos camponeses que vendem cereais);

159
capitalismo privado;
capitalismo de Estado;
socialismo.
A Rússia é tão grande e tão variada que nela se entrelaçam todos esses tipos diferentes de estrutura
económico-social. A peculiaridade da situação consiste precisamente nisso.

Pergunta-se: que elementos predominam? É claro que num país pequeno-burguês predomina, e não
pode deixar de predominar, o elemento pequeno-burguês; a maioria, a imensa maioria dos agricultores, são
pequenos produtores de mercadorias. O invólucro do capitalismo de Estado (o monopólio dos cereais, o
controlo dos patrões e comerciantes, dos cooperativistas burgueses) é quebrado ora aqui ora ali pelos
especuladores, e o principal objecto de especulação são os cereais.

A luta principal trava-se precisamente neste domínio. Entre quem e quem se trava essa luta, se
falarmos nos termos das categorias económicas, como, por exemplo, o «capitalismo de Estado»? Entre os
degraus quarto e quinto na ordem pela qual os enumerei agora? Naturalmente que não. Não é o capitalismo de
Estado que luta aqui contra o socialismo, mas é a pequena burguesia mais o capitalismo privado que lutam
juntos, de comum acordo, tanto contra o capitalismo de Estado como contra o socialismo. A pequena burguesia
resiste contra qualquer intervenção do Estado, registo e controlo tanto capitalista de Estado como socialista de
Estado. Isso é um facto da realidade absolutamente indiscutível, em cuja incompreensão reside a raiz do erro
económico dos «comunistas de esquerda». O especulador, o ladrão do comércio, o sabotador do monopólio: eis
o nosso principal inimigo «interno», o inimigo das medidas económicas do Poder Soviético. Se há 125 anos
ainda se podia perdoar aos pequenos burgueses franceses, os revolucionários mais ardentes e mais sinceros, a
aspiração de vencer o especulador por meio da execução de alguns «eleitos» e os trovões das declamações, hoje
a atitude puramente palavrosa de certos socialistas-revolucionários de esquerda perante esta questão desperta
em cada revolucionário consciente apenas repugnância ou asco. Sabemos perfeitamente que a base económica
da especulação é a camada dos pequenos proprietários, extraordinariamente vasta na Rússia, e o capitalismo
privado, que tem em cada pequeno burguês um seu agente. Sabemos que os milhões de tentáculos desta hidra
pequeno-burguesa se apoderam aqui e além de determinadas camadas de operários, que a especulação, em vez
do monopólio de Estado, irrompe por todos os poros da nossa vida económico-social.

Os que não vêem isso revelam precisamente com a sua cegueira que são prisioneiros dos preconceitos
pequeno-burgueses. Assim precisamente são os nossos «comunistas de esquerda», que em palavras (e na sua
mais sincera convicção, naturalmente) são inimigos implacáveis da pequena burguesia, mas, de facto, não fazem
mais do que ajudá-la, não fazem mais do que servi-la, não fazem mais do que exprimir o seu ponto de vista,
lutando — em Abril de 1918!! — contra... o «capitalismo de Estado»! Erraram profundamente!

O pequeno burguês tem uma reservazinha de dinheiro, alguns milhares, acumulados por meios
«lícitos» e, sobretudo, ilícitos, durante a guerra. Tal é o tipo económico característico como base da especulação
e do capitalismo privado. O dinheiro é o certificado para a obtenção da riqueza social, e a camada de muitos
milhões de pequenos proprietários, ao guardar cuidadosamente esse certificado, escondem-no do «Estado», não
acreditando em nenhum socialismo e comunismo, «esperando até que passe» a tempestade proletária. Ou
submetemos este pequeno burguês ao nosso controlo e registo (poderemos fazê-lo se organizarmos os pobres,
isto é, a maioria da população ou semiproletários em redor da vanguarda proletária consciente), ou ele
derrubará o nosso poder operário inevitável e inelutavelmente, como derrubaram a revolução os Napoleões e
os Cavaignac, que crescem precisamente nesse terreno dos pequenos proprietários. Assim se coloca a questão.
Os socialistas-revolucionários de esquerda são os únicos que não vêem esta verdade, simples e clara, atrás da
fraseologia sobre o campesinato «trabalhador», mas quem pode tomar a sério os socialistas-revolucionários de
esquerda, afundados na fraseologia?

O pequeno burguês que esconde os seus milhares é um inimigo de capitalismo de Estado e quer
realizar estes milhares exclusivamente para si, contra os pobres, contra toda a espécie de controlo geral do
Estado, e a soma dos milhares forma uma base de muitos milhares de milhões para a especulação, que
torpedeia a nossa edificação socialista. Suponhamos que determinado número de operários produz em alguns
dias uma soma de valores expressa pelo número 1000. Suponhamos além disso que perdemos 200 desta soma
como consequência da pequena especulação, das dilapidações de todo o género e da «fuga» dos pequenos
proprietários aos decretos soviéticos e às disposições soviéticas. Todo o operário consciente dirá: se eu pudesse
dar 300 dos 1000 como preço da criação de uma maior ordem e organização, com gosto daria trezentos em vez
de duzentos, pois com o Poder Soviético reduzir esse «tributo», digamos, até cem ou cinquenta será uma tarefa

160
perfeitamente fácil, desde que se implantem a ordem e a organização, desde que seja quebrado definitivamente
o torpedeamento pelos pequenos proprietários de todo o monopólio de Estado.

Este simples exemplo com números — simplificado premeditadamente ao máximo para tornar mais
popular a exposição — explica a correlação da situação actual, entre o capitalismo de Estado e o socialismo. Os
operários têm nas mãos o poder de Estado, têm a mais completa possibilidade jurídica de «apanhar» todo o
milhar, isto é, de não entregar nem um copeque que não seja destinado a fins socialistas. Esta possibilidade
jurídica, que se apoia na passagem de facto do poder para os operários, é um elemento do socialismo.

Mas os elementos da pequena propriedade e do capitalismo privado minam por muitas vias a situação
jurídica, fazem passar a especulação, torpedeiam o cumprimento dos decretos soviéticos. O capitalismo de
Estado seria um gigantesco passo em frente mesmo se pagássemos mais do que agora (e propositadamente
tomei este exemplo numérico para o mostrar mais nitidamente), pois merece a pena pagar «para aprender»,
pois isso é útil para os operários, pois vencer a desordem, a ruína e o relaxamento é o mais importante, pois a
continuação da anarquia do pequeno proprietário representa o perigo maior e mais temível, que nos deitará a
perder inevitavelmente (se não o vencermos), enquanto pagar um maior tributo ao capitalismo de Estado não
só não nos deitará a perder como nos levará pelo caminho mais seguro para o socialismo. A classe operária,
depois de aprender a proteger a ordem estatal da anarquia do pequeno proprietário, depois de aprender a
estruturar uma grande organização nacional da produção segundo princípios capitalistas de Estado, terá então
nas mãos — desculpem-me a expressão — todos os trunfos, e a consolidação do socialismo estará assegurada.

O capitalismo de Estado é incomparavelmente superior, do ponto de vista económico, à nossa


economia actual, isto em primeiro lugar.

E em segundo lugar, nada há nele de temível para o Poder Soviético, pois o Estado soviético é um
Estado onde está assegurado o poder dos operários e dos pobres. Os «comunistas de esquerda» não
compreenderam estas verdades indiscutíveis, que, naturalmente, jamais compreenderá o «socialista-
revolucionário de esquerda», incapaz em geral de associar na cabeça quaisquer ideias sobre economia política,
mas que todo o marxista será obrigado a reconhecer. Não vale a pena discutir com o socialista-revolucionário
de esquerda, basta apontá-lo a dedo como um «exemplo repulsivo» de charlatão, mas com o «comunista de
esquerda» é preciso discutir, pois aqui o erro é cometido por marxistas, e a análise dos seus erros ajudará a
classe operária a encontrar o caminho certo.

IV

Para esclarecer mais ainda a questão, citaremos em primeiro lugar um exemplo concretíssimo de
capitalismo de Estado. Todos conhecemos esse exemplo: a Alemanha. Temos aqui a «última palavra» da grande
técnica capitalista moderna e da organização planificada, subordinada ao imperialismo junker-burguês. Ponde
de lado as palavras sublinhadas, colocai em vez de Estado militar, junker, burguês, imperialista, também um
Estado, mas um Estado de outro tipo social, de outro conteúdo de classe, o Estado soviético, isto é, proletário, e
obtereis toda a soma de condições que dá como resultado o socialismo.

O socialismo é inconcebível sem a grande técnica capitalista construída segundo a última palavra da
ciência moderna, sem uma organização estatal planificada que submeta dezenas de milhões de pessoas à mais
rigorosa observância de uma norma única na produção e na distribuição dos produtos. Nós, os marxistas,
sempre falámos disso, e não vale a pena perder sequer dois segundos a conversar com gente que não
compreendeu nem sequer isto (os anarquistas e uma boa metade dos socialistas-revolucionários de esquerda).

Ao mesmo tempo, o socialismo é inconcebível sem o domínio do proletariado no Estado: isso é


também o a-bê-cê. E a história (de que ninguém, excepto os mencheviques obtusos de primeira ordem,
esperava que desse de modo suave, tranquilo, fácil e simples o socialismo «integral») seguiu um caminho tão
peculiar que pariu em 1918 duas metades desligadas de socialismo, uma ao pé da outra, exactamente como dois
futuros pintos dentro da mesma casca do imperialismo internacional. A Alemanha e a Rússia encarnaram em
1918 do modo mais patente a realização material das condições económico-sociais, produtivas e económicas do
socialismo, por um lado, e das condições políticas do socialismo, por outro lado.

A revolução proletária vitoriosa na Alemanha quebraria de um só golpe, com enorme facilidade,


qualquer casca do imperialismo (feito, infelizmente, do melhor aço, pelo que não podem quebrá-lo os esforços

161
de qualquer... pinto), tornaria seguramente realidade a vitória do socialismo mundial, sem dificuldades ou com
dificuldades insignificantes, se se tomar, naturalmente, uma escala histórico-universal, e não filistina e de
círculo, do «difícil».

Enquanto a revolução tardar ainda em «nascer» na Alemanha, a nossa tarefa é aprender com os
alemães o capitalismo de Estado, transplantá-lo com todas as forças, não regatear métodos ditatoriais para
acelerar a sua transplantação, mais ainda do que Pedro acelerou a transplantação do ocidentalismo para a
bárbara Rússia, não se detendo perante meios bárbaros de luta contra a barbárie. Se entre os anarquistas e
socialistas-revolucionários de esquerda existem homens (recordo involuntariamente os discursos de Karéline e
Gué no CEC) capazes de raciocinar à Narciso de que não é próprio de nós, revolucionários, «aprender» com o
imperialismo alemão, é preciso dizer uma coisa: uma revolução que acreditasse seriamente em semelhantes
homens perder-se-ia irremediavelmente (e muito merecidamente).

Na Rússia predomina agora exactamente o capitalismo pequeno-burguês, do qual um único e mesmo


caminho conduz tanto ao grande capitalismo de Estado como ao socialismo, conduz uma via que passa através
de uma única e mesma estação intermédia, chamada «registo e controlo por todo o povo sobre a produção e a
distribuição dos produtos». Quem não compreenda isto comete um erro económico imperdoável, ou
desconhecendo os factos da realidade, não vendo o que existe nem sabendo olhar a verdade de frente, ou
limitando-se a contrapor abstractamente o «capitalismo» ao «socialismo», não aprofundando as formas e
degraus concretos dessa transição hoje no nosso país. Diga-se entre parêntesis, é o mesmo erro teórico que fez
perder o juízo dos melhores homens do campo do Nóvaia Jizn e do Vperiod: os piores e medianos dentre eles
arrastam-se, obtusos e indecisos, na cauda da burguesia, assustados por ela; os melhores não compreenderam
que os mestres do socialismo não falavam gratuitamente de todo um período de transição do capitalismo para o
socialismo e não sublinhavam em vão as «longas dores de parto» da nova sociedade, e, além disso, esta nova
sociedade é também uma abstracção, que só pode encarnar na vida através de uma série de tentativas
concretas, imperfeitas e variadas, para criar este ou aquele Estado socialista.

Precisamente porque não se pode avançar a partir da actual situação económica da Rússia sem passar
pelo que é comum tanto ao capitalismo de Estado como ao socialismo (o registo e o controlo por todo o povo), é
um completo absurdo teórico assustar os outros e assustar-se a si mesmo com a «evolução para o capitalismo
de Estado» (Kommunist, n°1, p. 8, col.1). Isso significa, exactamente, deixar que o pensamento «se afaste» do
verdadeiro caminho da «evolução», não compreender este caminho; na prática, isso equivale a puxar para trás,
para o capitalismo do pequeno proprietário.

A fim de que o leitor se convença de que não é de modo nenhum só hoje que faço uma «elevada»
apreciação do capitalismo de Estado, mas que a fiz também antes da tomada do poder pelos bolcheviques,
permito-me fazer a seguinte citação da minha brochura A Catástrofe Que Nos Ameaça e Como Combatê-la,
escrita em Setembro de 1917:

«... E se tentardes substituir o Estado dos capitalistas e dos junkers, o Estado dos capitalistas e dos
latifundiários, pelo Estado democrático-revolucionário, isto é, que destrua revolucionariamente todos os
privilégios, que não receie aplicar revolucionariamente o mais completo democratismo? Vereis que num Estado
verdadeiramente democrático-revolucionário o capitalismo monopolista de Estado significa inevitavelmente,
infalivelmente, um passo ou passos para o socialismo!
«... Pois o socialismo não é outra coisa senão o passo em frente seguinte a partir do monopólio
capitalista de Estado.
«,.. O capitalismo monopolista de Estado é a mais completa preparação material do socialismo, é a sua
antecâmara, é o degrau da escada da história entre o qual e o degrau chamado socialismo não há nenhum
degrau intermédio» (pp. 27 e 28)
Notai que isto foi escrito no tempo de Kérenski, que não se fala aqui da ditadura do proletariado, não
se fala do Estado socialista, mas do Estado «democrático-revolucionário». Acaso não é claro que, quanto mais
alto nos tenhamos elevado acima deste degrau político, quanto mais plenamente tenhamos encarnado nos
Sovietes o Estado socialista e a ditadura do proletariado, menos nos será permitido temer o «capitalismo de
Estado»? Acaso não é claro que, no sentido material, económico, produtivo, ainda não nos encontramos na
«antecâmara» do socialismo? E que não se pode entrar pela porta do socialismo senão através desta
«antecâmara», ainda não alcançada por nós?

162
De qualquer ponto que se aborde a questão, a conclusão é uma e só uma: o raciocínio dos «comunistas
de esquerda» acerca da ameaça que seria para nós o «capitalismo de Estado» é um completo erro económico e
uma prova evidente de que estão inteiramente prisioneiros precisamente da ideologia pequeno-burguesa.

Também é extremamente instrutiva a seguinte circunstância.

Quando no CEC discutimos com o camarada Bukhárine(2*), ele observou, entre outras coisas: na
questão das remunerações elevadas aos especialistas, «nós» (evidentemente: nós, os «comunistas de
esquerda») «estamos à direita de Lenine», pois não vemos aqui qualquer desvio dos princípios, recordando as
palavras de Marx de que, em determinadas condições, o mais conveniente para a classe operária seria «livrar-se
pagando de todo este bando»[N308] (precisamente do bando dos capitalistas, isto é, pagar um resgate à
burguesia pela terra, pelas fábricas e outros meios de produção).

Esta observação extraordinariamente interessante revela, em primeiro lugar, que Bukhárine está duas
cabeças acima dos socialistas-revolucionários de esquerda e dos anarquistas, que não está de modo nenhum
irremediavelmente atolado nas frases, mas que, pelo contrário, tenta reflectir nas dificuldades concretas da
transição — dolorosa e dura transição — do capitalismo para o socialismo.

Em segundo lugar, esta observação revela ainda com maior evidência o erro de Bukhárine.
Efectivamente. Reflecti no pensamento de Marx.

Tratava-se da Inglaterra dos anos 70 do século passado, do período culminante do capitalismo pré-
monopolista, do país onde então existia menos militarismo e burocracia, do país onde então existiam maiores
probabilidades de vitória «pacífica» do socialismo no sentido do «pagamento do resgate» à burguesia pelos
operários. E Marx dizia: em determinadas condições, os operários não se recusarão de modo algum a pagar um
resgate à burguesia. Marx não se atava as mãos — nem aos futuros dirigentes da revolução socialista — quanto
às formas, meios e métodos da revolução, compreendendo muito bem quão grande seria o número de novos
problemas que então se colocariam, como mudaria toda a situação no decorrer da revolução, com que
frequência e com que força ela mudaria no decurso da revolução.

Pois bem, e na Rússia Soviética, depois da tomada do poder pelo proletariado, depois do esmagamento
da resistência militar e da sabotagem dos exploradores, não é evidente que se criaram algumas condições do
tipo das que podiam ter-se criado há meio século na Inglaterra se ela tivesse então começado a passar
pacificamente para o socialismo? A submissão dos capitalistas aos operários na Inglaterra poderia então ter
sido assegurada pelas seguintes circunstâncias:

o mais completo predomínio dos operários, dos proletários, entre a população devido à ausência de
campesinato (nos anos 70 havia na Inglaterra indícios que permitiam esperar êxitos extraordinariamente
rápidos do socialismo entre os operários agrícolas);
excelente organização do proletariado em sindicatos (a Inglaterra era então o primeiro país do mundo
neste sentido);
nível cultural relativamente alto do proletariado, educado pelo desenvolvimento secular da liberdade
política;
o longo hábito dos capitalistas magnificamente organizados da Inglaterra — eram então os capitalistas
melhor organizados de todos os países do mundo (hoje essa primazia passou para a Alemanha) — para resolver
as questões políticas e económicas por meio de um compromisso.
Eis em virtude de que circunstâncias podia então surgir a ideia da possibilidade da submissão pacífica
dos capitalistas da Inglaterra aos seus operários.

No nosso país, essa submissão é assegurada no momento actual por determinadas premissas
fundamentais (triunfo em Outubro e esmagamento, desde Outubro até Fevereiro, da resistência militar e da
sabotagem dos capitalistas). No nosso país, em vez do mais completo predomínio dos operários, dos
proletários, entre a população e do seu alto nível de organização, o factor da vitória foi o apoio do campesinato
pobre e rapidamente arruinado aos proletários. Por último, no nosso país não existe nem um elevado nível
cultural nem o hábito dos compromissos. Se se reflectir nestas condições concretas, tornar-se-á claro que
podemos e devemos conseguir agora a combinação dos meios de repressão implacável(3*) contra os
capitalistas incultos, que não aceitam qualquer «capitalismo de Estado», que não concebem qualquer
compromisso e continuam a torpedear as medidas soviéticas por meio da especulação, do suborno dos pobres,

163
etc, com os meios do compromisso ou do resgate em relação aos capitalistas cultos, que aceitam o «capitalismo
de Estado», que são capazes de o aplicar e que são úteis ao proletariado como organizadores inteligentes e
experientes das maiores empresas, que de facto abastecem de produtos dezenas de milhões de pessoas.

Bukhárine é um economista marxista magnificamente instruído. Por isso recordou que Marx tinha
profundíssima razão quando ensinava aos operários a importância de preservar a organização da grande
produção precisamente para facilitar a transição para o socialismo e que era completamente admissível a ideia
de pagar bem aos capitalistas, de lhes pagar um resgate, se (a título de excepção: a Inglaterra era então uma
excepção) as circunstâncias fossem tais que obrigassem os capitalistas a submeter-se pacificamente e a
passarem de uma maneira organizada e culta para o socialismo com a condição do resgate.

Mas Bukhárine caiu num erro, pois não reflectiu sobre a peculiaridade concreta do momento actual na
Rússia, um momento exactamente excepcional, em que nós, o proletariado da Rússia, vamos à frente de
qualquer Inglaterra e de qualquer Alemanha quanto ao nosso regime político, quanto à força do poder político
dos operários e, ao mesmo tempo, vamos atrás do Estado mais atrasado da Europa Ocidental quanto à
organização de um capitalismo de Estado decente, quanto ao nível cultural, quanto ao grau de preparação para
a «introdução» do socialismo no domínio material e produtivo. Não é claro que desta situação peculiar decorre,
para o momento actual, precisamente a necessidade de um «resgate» peculiar, que os operários devem propor
aos capitalistas mais cultos, mais talentosos e mais capazes do ponto de vista da organização, dispostos a servir
o Poder Soviético e a ajudar honestamente a organizar a grande e muito grande produção «estatal»? Não é claro
que numa situação tão peculiar devemos esforçar-nos por evitar dois tipos de erros, cada um dos quais é
pequeno-burguês à sua maneira? Por um lado, seria um erro irreparável declarar que, uma vez que se
reconhece a desconformidade das nossas «forças» económicas e da força política, não se devia,
«consequentemente», ter tomado o poder[N309]. Assim raciocinam os «homens enconchados», que esquecem
que nunca haverá «conformidade», que ela não pode existir no desenvolvimento da natureza bem como no
desenvolvimento da sociedade, que só mediante uma série de tentativas — cada uma das quais, tomada
separadamente, será unilateral, padecerá de certa desconformidade — se criará o socialismo integral através da
colaboração revolucionária dos proletários de todos os países.

Por outro lado, seria um erro evidente dar rédea solta aos gritadores e aos palavrosos, que se deixam
arrastar pelo «brilhante» revolucionarismo, mas que são incapazes de um trabalho revolucionário consequente,
reflectido, ponderado, que também tenha em conta as mais difíceis transições.

Felizmente, a história do desenvolvimento dos partidos revolucionários e da luta do bolchevismo


contra eles deiixou-nos em herança tipos nitidamente definidos, entre os quais os socialistas-revolucionários de
esquerda e os anarquistas, de modo bastante evidente o tipo de maus revolucionários. Gritam agora — gritam
até à histeria, perdendo o fôlego — contra o «espírito de conciliação» dos «bolcheviques de direita». Mas não
sabem pensar em que era mau o «espírito de conciliação» e por que foi condenado justamente pela história e
pelo curso da revolução.

O espírito de conciliação do tempo de Kérenski entregava o poder à burguesia imperialista, e a questão


do poder é a questão fundamental de qualquer revolução. O espírito de conciliação de uma parte dos
bolcheviques em Outubro-Novembro de 1917 ou temia a tomada do poder pelo proletariado ou queria partilhar
a meias o poder não só com os «companheiros de viagem inseguros», como os socialistas-revolucionários de
esquerda, mas também com os inimigos, os tchernovistas, os mencheviques, que nos teriam estorvado
inevitavelmente no fundamental: na dissolução da Constituinte, na destruição implacável dos Bogaévski, na
implantação completa das instituições soviéticas, em cada confiscação.

Agora o poder foi tomado, mantido, consolidado nas mãos de um partido, do partido do proletariado,
mesmo sem os «companheiros de viagem inseguros». Falar agora de espírito de conciliação, quando não se trata
nem pode sequer tratar-se de partilhar o poder, de renunciar à ditadura dos proletários contra a burguesia,
significa simplesmente repetir como uma pega palavras aprendidas de cor, mas não compreendidas. Chamar
«espírito de conciliação» ao facto de que, chegados a uma situação em que podemos e devemos administrar o
país, tentemos ganhar, sem poupar dinheiro, os elementos mais cultos instruídos pelo capitalismo, pô-los ao
nosso serviço contra a desagregação dos pequenos proprietários, significa não saber de modo nenhum pensar
nas tarefas económicas da edificação do socialismo.

164
E por isso — e embora ateste a favor do camarada Bukhárine a circunstância de que «se envergonhou»
imediatamente no CEC do «serviço» que lhe prestaram os Karéline e os Gué — apesar de tudo continua a
constituir uma séria advertência à corrente dos «comunistas de esquerda» a alusão aos seus companheiros de
luta política.

Tomai o Známia Trudá, o órgão dos socialistas-revolucionários de esquerda, que no seu número de 25
de Abril de 1918 declarava com orgulho:

«A posição actual do nosso partido solidariza-se com outra corrente de bolchevismo (com Bukhárine,
Pokróvski e outros).»
Tomai o menchevique Vperiod dessa mesma data, que continha, entre outras coisas, a seguinte: «tese»
do conhecido menchevique Issuv:

«A política do Poder Soviético, alheia desde o próprio começo ao carácter autenticamente proletário,
entra nos últimos tempos de maneira cada vez mais aberta no caminho da conciliação com a burguesia e
adquire um carácter claramente antioperário. Sob a bandeira da nacionalização da indústria conduz uma
política de implantação de trusts industriais, sob a bandeira do restabelecimento das forças produtivas do país
fazem-se tentativas para suprimir a jornada de trabalho de oito horas, para introduzir o trabalho à peça e o
sistema de Taylor, as listas negras e os certificados de conduta. Esta política ameaça privar o proletariado das
suas conquistas fundamentais no domínio económico e convertê-lo numa vítima da exploração ilimitada por
parte da burguesia.»
É magnífico, não é verdade?

Os amigos de Kérenski, que juntamente com ele conduziram a guerra imperialista em nome dos
tratados secretos e prometeram anexações aos capitalistas russos, os colegas de Tseretéli, que ali de Junho se
preparava para desarmar os operários, os Liberdan[N185], que encobriam o poder da burguesia com frases
sonoras, eles, eles acusam o Poder Soviético de «conciliação com a burguesia», de «implantar trusts» (isto é, de
implantar precisamente o «capitalismo de Estado»!), de introduzir o sistema de Taylor.

Sim, os bolcheviques devem oferecer a Issuv uma medalha, e a sua tese deve ser exposta em cada clube
operário e em cada sindicato como modelo de discursos provocatórios da burguesia. Os operários conhecem
agora bem, conhecem por experiência em toda a parte, os Liberdan, os Tseretéli, os Issuv, e será
arquiproveitoso para os operários reflectir atentamente acerca das razões por que semelhantes lacaios da
burguesia provocam os operários para que se oponham ao sistema de Taylor e à «implantação de trusts».

Os operários conscientes compararão reflectidamente a «tese» do amigo dos senhores Liberdan e


Tseretéli, Issuv, com a seguinte tese dos «comunistas de esquerda»:

«A introdução da disciplina do trabalho em ligação com o restabelecimento da direcção dos


capitalistas na produção não poderá aumentar de maneira substancial a produtividade do trabalho, mas
diminuirá a iniciativa, a actividade e o grau de organização de classe do proletariado. Ameaça com a servidão a
classe operária e despertará o descontentamento tanto das camadas atrasadas como da vanguarda do
proletariado. Para levar à prática este sistema, com o ódio reinante entre os meios proletários contra os
'sabotadores capitalistas', o partido comunista seria obrigado a apoiar-se na pequena burguesia contra os
operários, e com isso perder-se-ia como partido do proletariado» (Kommunist, n° 1, p. 8, col. 2).
Eis aprova mais palpável de como os «esquerdas» caíram na armadilha, de como cederam à
provocação dos Issuv e outros Judas do capitalismo. Eis uma boa lição aos operários, que sabem que
precisamente a vanguarda do proletariado está a favor de que se implante a disciplina de trabalho, que é
precisamente a pequena burguesia que mais se esforça para destruir essa disciplina. Palavras como as da citada
tese dos «esquerdas» são a maior vergonha, de facto uma renúncia total ao comunismo, uma passagem
completa precisamente para o lado da pequena burguesia.

«Em ligação com o restabelecimento da direcção dos capitalistas», eis com que palavras pensam
«defender-se» os «comunistas de esquerda». É uma defesa absolutamente inútil, pois, em primeiro lugar, o
Poder Soviético entrega a «direcção» aos capitalistas ao mesmo tempo que existem os comissários operários ou
os comités operários que seguem cada passo do dirigente, aprendem com a sua experiência de direcção e têm a
possibilidade não só de apelar contra as disposições do dirigente mas também de o destituir através dos órgãos
do Poder Soviético. Em segundo lugar, entrega-se a «direcção» aos capitalistas para funções executivas durante

165
o trabalho, cujas condições são determinadas precisamente pelo Poder Soviético e abolidas ou revistas por ele.
Em terceiro lugar, o Poder Soviético entrega a «direcção» aos capitalistas não como capitalistas, mas como
técnicos especialistas ou organizadores com uma elevada remuneração do trabalho. E os operários sabem
muito bem que os organizadores das empresas verdadeiramente grandes e muito grandes, dos trusts ou de
outras instituições pertencem, em noventa e nove por cento dos casos, à classe dos capitalistas, tal como os
técnicos de primeira classe; mas são precisamente esses que nós, o partido proletário, devemos admitir como
«dirigentes» do processo de trabalho e da organização da produção, pois não há outros que conheçam este
assunto pela prática, pela experiência. Pois os operários, que saíram já da infância, na qual poderiam ficar
desorientados pela frase «de esquerda» ou pelo desleixo pequeno-burguês, caminham para o socialismo
precisamente através da direcção capitalista dos trusts, através da grande produção mecanizada, através das
empresas com um movimento anual de vários milhões, só através dessa produção e dessas empresas. Os
operários não são pequenos burgueses. Não temem o grande «capitalismo de Estado», apreciam-no como um
instrumento seu, proletário, que o seu Poder Soviético utilizará contra a desagregação e a desorganização dos
pequenos proprietários.

Só não compreendem isto os intelectuais desclassificados e por isso pequeno-burgueses até à medula,
cujo protótipo no grupo dos «comunistas de esquerda» e na sua revista é Ossínski, quando escreve:

«... Toda a iniciativa na organização e direcção da empresa pertencerá aos 'organizadores de trusts':
porque nós não queremos ensiná-los, convertê-los em trabalhadores de base, mas aprender com eles»
(Kommunist, n° 1, p. 14, col. 2).
Os esforços para fazer ironia nesta frase são dirigidos contra as minhas palavras: «aprender o
socialismo com os organizadores de trusts.»

Para Ossínski isto é ridículo. Quer converter os organizadores de trusts em «trabalhadores de base».
Se isto tivesse sido escrito por um homem da mesma idade daquele de quem o poeta dizia: «Só quinze anos, não
mais?»[N310]..., não haveria razão para surpresa. Mas é um tanto estranho ouvir estas palavras de um marxista
que aprendeu que o socialismo é impossível sem aproveitar as conquistas da técnica e da cultura alcançadas
pelo grande capitalismo. Aqui nada ficou do marxismo.

Não. Só são dignos de se chamarem comunistas os que compreendem que é impossível criar ou
introduzir o socialismo sem aprender com os organizadores de trusts. Pois o socialismo não é uma invenção,
mas é a assimilação pela vanguarda operária, depois de conquistar o poder, a assimilação e a aplicação do que
foi criado pelos trusts. Nós, o partido do proletariado, não temos donde retirar o saber para organizar a grande
produção do tipo dos trusts, como os trusts; não temos donde a não ser dos especialistas de primeira classe do
capitalismo.

Nada temos a ensinar-lhes, a não ser que nos entreguemos ao objectivo infantil de «ensinar» o
socialismo aos intelectuais burgueses: é preciso não ensiná-los mas expropriá-los (o que na Rússia se faz com
bastante «decisão»), é preciso quebrar a sua sabotagem, é preciso submetê-los, como camada ou grupo, ao
Poder Soviético. Mas nós — se não somos comunistas em idade infantil nem mentalidade infantil — devemos
aprender com eles, e há algo a aprender, pois o partido do proletariado e a vanguarda do proletariado não têm
experiência de trabalho independente na organização de empresas muito grandes que sirvam dezenas de
milhões de pessoas.

E os melhores operários da Rússia compreenderam-no. Começaram a aprender com os capitalistas


organizadores, com os engenheiros dirigentes, com os técnicos especialistas. Começaram com firmeza e
precaução pelo mais fácil, passando gradualmente ao mais difícil. Se as coisas vão mais devagar na metalurgia e
na construção de maquinaria é porque é mais difícil. Mas os operários têxteis, tabaqueiros e curtidores não
temem, como os intelectuais pequeno-burgueses desclassificados, o «capitalismo de Estado», não temem
«aprender com os organizadores de trusts». Nas instituições dirigentes centrais, do tipo da «Administração
Principal dos Curtumes» ou da «Direcção Central dos Têxteis», estes operários sentam-se ao lado dos
capitalistas, aprendem com eles, organizam os trusts, organizam o «capitalismo de Estado», que com o Poder
Soviético é a antecâmara do socialismo, uma condição da vitória duradoura do socialismo.

Este trabalho dos operários avançados da Rússia, ao lado da sua actividade para introduzir a disciplina
do trabalho, realizou-se e realiza-se sem ruído, sem brilho, sem o barulho e o estrondo de que necessitam
alguns «esquerdas», com enorme cuidado e gradualmente, tendo em conta as lições da prática. Neste duro

166
trabalho, trabalho de aprendizagem prática de construção da grande produção, está a garantia de que estamos
no caminho certo, a garantia de que os operários conscientes da Rússia lutam contra a desagregação e a
desorganização dos pequenos proprietários, contra a indisciplina pequeno-burguesa(4*), a garantia da vitória
do comunismo.

VI

Para terminar, duas observações:

Quando discutimos com os «comunistas de esquerda» em 4 de Abril de 1918 (ver Kommunist, n° 1, p.


4, nota) coloquei-lhes de frente a questão: procurai explicar o que vos desagrada no decreto sobre os caminhos-
de-ferro, apresentai as vossas correcções a ele. É o vosso dever como dirigentes soviéticos do proletariado, de
outro modo as vossas palavras reduzem-se a frases.

A 20 de Abril de 1918 saiu o n° 1 do Kommunist — nele não há nem uma palavra sobre como se
deveria modificar ou corrigir, na opinião dos «comunistas de esquerda», o decreto sobre os caminhos-de-ferro.

Com esse silêncio, os «comunistas de esquerda» condenaram-se a si mesmos. Limitaram-se a ataques e


insinuações contra o decreto sobre os caminhos-de-ferro (pp. 8 e 16 do n° 1), mas não responderam nada de
inteligível à questão: «como corrigir o decreto se está errado?»

Os comentários são supérfluos. Os operários conscientes chamaram ou «issuvista» ou uma frase a tal
«critica» do decreto sobre os caminhos-de-ferro (modelo da nossa linha, a linha da firmeza, a linha da ditadura,
a linha da disciplina proletária).

Outra observação. No n.° 1 do Kommunist publica-se uma recensão muito lisonjeira para mim do
camarada Bukhárine sobre a minha brochura O Estado e a Revolução. Porém, por muito valiosas que sejam para
mim as referências de homens como Bukhárine, devo dizer em consciência que o carácter da recensão revela
um facto triste e significativo: Bukhárine encara as tarefas da ditadura proletária voltado para o passado e não
para o futuro. Bukhárine observou e sublinhou tudo o que podem ter de comum na questão do Estado o
revolucionário proletário e o revolucionário pequeno-burguês. Bukhárine «não observou» exactamente o que
distingue o primeiro do segundo.

Bukhárine observou e sublinhou que se deve «destruir» e «fazer saltar» o velho aparelho de Estado,
que se deve «acabar de estrangular» a burguesia, etc. O pequeno burguês enfurecido também pode querer isso.
E isso já o fez, nos traços principais, a nossa revolução desde Outubro de 1917 até Fevereiro de 1918.

Mas na minha brochura fala-se também do que não pode querer o pequeno burguês, nem sequer o
mais revolucionário, do que quer o proletário consciente, do que ainda não fez a nossa revolução. E sobre esta
tarefa, sobre a tarefa do dia de amanhã, Bukhárine calou-se.

Mas eu tenho tantos mais fundamentos para não me calar sobre isto quanto, em primeiro lugar, deve
esperar-se de um comunista maior atenção para as tarefas de amanhã do que para as de ontem, e, em segundo
lugar, a minha brochura foi escrita antes de os bolcheviques tomarem o poder, quando não se podia oferecer
aos bolcheviques a consideração pequeno-burguesa vulgar: «claro, depois de terem conquistado o poder
cantam, naturalmente, a canção da disciplina ...»

«... O socialismo transformar-se-á em comunismo ... porque os homens se habituarão a observar as


condições elementares da convivência social sem violência e sem subordinação» (O Estado e a Revolução, pp.
77-78. Por conseguinte, falava-se das «condições elementares» antes da tomada do poder).
«... Só então a democracia começará a extinguir-se ...» quando «os homens se habituarem
gradualmente a observar as regras elementares da convivência, conhecidas ao longo dos séculos e repetidas
durante milénios em todas as prescrições, a observá-las sem violência, sem coacção, sem o aparelho especial de
coacção que se chama Estado» (ibid., p. 8414; falava-se das «prescrições» antes da tomada do poder).
«... A fase superior do desenvolvimento do comunismo» (a cada um segundo as suas necessidades, de
cada um segundo as suas capacidades) «pressupõe uma produtividade do trabalho que não é a actual e um
homem que não é o actual filisteu, capaz, como os seminaristas de Pomialóvski, de dilapidar à toa a riqueza
social e de exigir o impossível» (ibid. p. 91).

167
«... Até que chegue a fase superior do comunismo, os socialistas exigem o mais rigoroso controlo por
parte da sociedade e por parte do Estado sobre a medida do trabalho e a medida do consumo...» (ibid.,15).
«... Registo e controlo — eis o principal, o que é necessário para a organização, para o funcionamento
regular da primeira fase da sociedade comunista» (ibid., p. 9516).
E é preciso organizar este controlo não se sobre «a insignificante minoria dos capitalistas, sobre os
senhoritos que desejam conservar os hábitos capitalistas», mas também sobre aqueles operários que estão
«profundamente corrompidos pelo capitalismo» (ibid., p. 9617), e sobre «os parasitas, os fidalgotes, os
vigaristas e outros depositários das tradições do capitalismo» (ibid.18).

E significativo que Bukhárine não tenha sublinhado isto.

5.V.1918

Notas de rodapé:
(1*) Szlachcic: nobre polaco — vide Sétimo Congresso Extraordinário do PCR(b). (N. Ed.) (retornar ao
texto)
(2*) Ver V I Lénine, Obras Completas, 5a Ed. Em russo, t.36, pp. 272-274 (retornar ao texto)
(3*) Nota do Autor: Também aqui é preciso fitar a verdade de frente: a implacabilidade, indispensável
para o êxito do socialismo, continua a ser insuficiente entre nós, e insuficiente não porque falte decisão. Temos
decisão suficiente. Não sabemos é apanhar suficientemente depressa uma quantidade suficiente de
especuladores, de ladrões e capitalistas, de infractores das medidas soviéticas. Porque este «saber» só se cria
com a organização do registo e do controlo. Em segundo lugar, não existe firmeza suficiente nos tribunais, que
em vez do fuzilamento dos concussionários, os condenam a meio ano de prisão. Ambos estes nossos defeitos
têm a mesma raiz social: a influência do elemento pequeno-burguês, a sua frouxidão. (retornar ao texto)
(4*) Nota do Autor: É extremamente característico que os autores das teses não digam nem uma
palavra sobre o significado da ditadura do proletariado no domínio económico da vida. Falam somente «da
organização», etc. Mas isto também o reconhece o pequeno burguês, que foge precisamente à ditadura dos
operários nas relações económicas. O revolucionário proletário nunca poderia «esquecer» num tal momento
este «âmago» da revolução proletária dirigida contra as base» económicas do capitalismo. (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N185] Liberdan: nome irónico dado aos dirigentes mencheviques Líber e Dan e aos seus partidários
depois da publicação no jornal bolchevique de Moscovo Sotsial-Demokrat de um artigo satírico de Demián
Bédni intitulado "Liberdan". (retornar ao texto)
[N305] Kommunist (O Comunista): revista semanal, órgão fraccionista dos "comunistas de esquerda"
que se publicou em Moscovo de Abril a Junho de 1918. (retornar ao texto)
[N306] Palavras citadas da obra do escritor satírico russo M.E. Saltikov-Chtchedrine Diário de um
Provinciano em Petersburgo. (retornar ao texto)
[N307] Nozdriovismo: de Nozdriov, um dos personagens da maior obra satírica do escritor russo N.
Gógol, Almas Mortas; Nozdriov personifica o tipo de indivíduo presunçoso, sem cerimónia e falso. (retornar ao
texto)
[N308] Lénine cita as palavras de Karl Marx que, por sua vez, foram expostas na obra de F. Engels A
Questão Camponesa na França e na Alemanha. (In Karl Marx / Friederich Engels, Werke, Bd. 22, S. 504)
(retornar ao texto)
[N309] Lénine tem em vista uma das teses fundamentais com que os mencheviques atacavam a
Revolução Socialista de Outubro e a ditadura do proletariado. A expressão concentrada destas concepções dos
mencheviques encontrava-se no livro de N. Sukhánov Notas sobre a Revolução, de que Lénine fez uma análise
crítica no artigo Sobre a Nossa Revolução (A propósito das Notas de N. Sukhánov) (Obras Completas de VI
Lénine, 5a Ed. Em russo, t.45, pp. 378-382). (retornar ao texto)
[N310] Lénine cita um epigrama do poeta russo V. L. Púchkine sobre um poeta medíocre que enviou os
seus versos a Febo (Apolo, na mitologia grega deus do Sol, protector das Artes). O epigrama termina assim com
as seguintes estrofes: Enquanto lia, Febo bocejava, e por fim perguntou / Quantos anos tinha o poeta / E se há
muito compunha altissonantes odes. / "Tem quinze anos" — responde Erata. / "Só quinze anos?" "Não mais." /
— "Porquê, então, com vara não o castigais?"
https://www.marxists.org/portugues/lenin/1918/05/05.htm

168
Para o Quarto Aniversário da Revolução de Outubro

V. I. Lénine

14 de Outubro de 1921

Aproxima-se o quarto aniversário do 25 de Outubro (7 de Novembro).

Quanto mais se afasta de nós esse grande dia, mais claro se torna o significado da revolução proletária
na Rússia e mais profundamente reflectimos também sobre a experiência prática do nosso trabalho, tomada no
seu conjunto.

Esse significado e essa experiência poderiam expor-se muito brevemente — e, naturalmente, de forma
muito incompleta e imprecisa — da seguinte maneira.

A tarefa imediata e directa da revolução na Rússia era uma tarefa democrático-burguesa: derrubar os
restos do medievalismo, varrê-los definitivamente, limpar a Rússia dessa barbárie, dessa vergonha, desse
enorme entrave para toda a cultura e todo o progresso no nosso país. E orgulhamo-nos justamente de ter feito
essa limpeza com muito mais decisão, rapidez, audácia, êxito, amplitude e profundidade, do ponto de vista da
influência sobre as massas do povo, sobre o grosso dessas massas, do que a grande revolução francesa há mais
de 125 anos.

Tanto os anarquistas como os democratas pequeno-burgueses (isto é, os mencheviques e os


socialistas-revolucionários como representantes russos deste tipo social internacional) disseram e dizem uma
incrível quantidade de coisas confusas sobre a questão da relação entre a revolução democrático--burguesa e a
socialista (isto é, proletária). Os quatro últimos anos confirmaram plenamente a justeza da nossa interpretação
do marxismo sobre este ponto, do nosso modo de aproveitar a experiência das revoluções anteriores. Levámos,
como ninguém, a revolução democrático-burguesa até ao fim. É de modo perfeitamente consciente, firme e
inflexível que avançamos para a revolução socialista, sabendo que ela não está separada da revolução
democrático-burguesa por uma muralha da China, sabendo que só a luta decidirá em que medida
conseguiremos (em última análise) avançar, que parte da nossa tarefa infinitamente grande cumpriremos, que
parte das nossas vitórias consolidaremos. O tempo o dirá. Mas vemos já agora que fizemos uma obra gigantesca
— tendo em conta que se trata de um pais arruinado e atrasado — na transformação socialista da sociedade.

Mas terminemos com o que se refere ao conteúdo democrático-burguês da nossa revolução. Os


marxistas devem compreender o que isto significa. Para o explicar, tomemos alguns exemplos eloquentes.

O conteúdo democrático-burguês da revolução significa depuração das relações (ordem, instituições)


sociais de um país do medievalismo, da servidão, do feudalismo.

Quais eram as principais manifestações, sobrevivências e vestígios do regime de servidão na Rússia em


1917? A monarquia, o sistema dos estados sociais, as formas de propriedade da terra e o usufruto da terra, a
situação da mulher, a religião, a opressão das nacionalidades. Tomai qualquer destes «estábulos de Augias» —
que, diga-se de passagem, todos os Estados avançados deixaram em grande parte por acabar de limpar ao
realizarem as suas revoluções democrático-burguesas há 125, 250 ou mais anos (em 1649 na Inglaterra) —,
tomai qualquer destes estábulos de Augias: vereis que os limpámos a fundo. Numas dez semanas, de 25 de
Outubro (7 de Novembro) de 1917 até à dissolução da constituinte (5 de Janeiro de 1918), fizemos neste
domínio mil vezes mais do que os democratas burgueses e liberais (democratas-constitucionalistas) e os
democratas pequeno-burgueses (mencheviques e socialistas-revolucionários), durante os oito meses do seu
poder.

Esses cobardes, charlatães, Narcisos enfatuados e pequenos Hamlets brandiam uma espada de cartão e
nem sequer destruíram a monarquia! Nós deitámos fora todo o lixo monárquico como ninguém o fez. Não
deixámos pedra sobre pedra, tijolo sobre tijolo no edifício secular do sistema dos estados sociais (os países mais
avançados, como a Inglaterra, a França e a Alemanha não se desembaraçaram ainda dos vestígios do sistema
dos estados sociais!). Arrancámos definitivamente as raízes mais profundas do sistema dos estados sociais, a
saber: os restos do feudalismo e da servidão na propriedade da terra. «Pode discutir-se» (no estrangeiro há
bastantes literatos, democratas-constitucionalistas, mencheviques e socialistas-revolucionários, para se

169
dedicarem a essas discussões) o que resultará «ao fim e ao cabo» das transformações agrárias da Grande
Revolução de Outubro. Não estamos dispostos a perder agora tempo nessas discussões, porque é pela luta que
resolvemos esta discussão e toda a quantidade de discussões que dela derivam. Mas o que não se pode
contestar é o facto de que os democratas pequeno-burgueses estiveram oito meses a «entender-se» com os
latifundiários, que conservavam as tradições da servidão, enquanto nós, em algumas semanas, varremos por
completo da face da terra russa esses latifundiários e todas as suas tradições.

Tomai a religião, ou a falta de direitos da mulher, ou a opressão e a desigualdade de direitos das


nacionalidades não russas. Tudo isso são questões da revolução democrático-burguesa. Os democratas
pequeno-burgueses vulgares passaram oito meses a falar disso; não há nem um dos Países mais avançados do
mundo onde estas questões tenham sido resolvidas até ao fim no sentido democrático-burguês. No nosso país, a
legislação da Revolução de Outubro resolveu-os até ao fim. Lutámos e continuamos a lutar seriamente contra a
religião. Demos a todas as nacionalidades não russas as suas próprias repúblicas ou regiões autónomas. Na
Rússia não existe já essa vileza, essa infâmia e ignomínia que é a falta de direitos ou a restrição dos direitos da
mulher, sobrevivência indigna da servidão e do medievalismo, renovada em todos os países do globo terrestre,
sem uma só excepção, pela burguesia egoísta e pela pequena-burguesia obtusa e assustada.

Tudo isto é o conteúdo da revolução democrático-burguesa. Há cento e cinquenta e duzentos e


cinquenta anos os chefes mais avançados dessa revolução (dessas revoluções, se falarmos de cada variedade
nacional de um tipo comum) prometeram aos povos libertar a humanidade dos privilégios medievais, da
desigualdade da mulher, das vantagens concedidas pelo Estado a uma ou outra religião (ou à «ideia de religião»,
à «religiosidade» em geral), da desigualdade de direitos das nacionalidades. Prometeram-no e não o
cumpriram. E não podiam cumprir, porque os impedia o «respeito» . . . pela «sacrossanta propriedade privada».
Na nossa revolução proletária não houve esse maldito «respeito» por esse três vezes maldito medievalismo e
por essa «sacrossanta propriedade privada».

Mas para consolidar para os povos da Rússia as conquistas da revolução democrático-burguesa, nós
devíamos ir mais longe, e fomos mais longe. Resolvemos as questões da revolução democrático-burguesa de
passagem, como um «produto acessório» do nosso trabalho principal e verdadeiro, proletário revolucionário,
socialista. Sempre dissemos que as reformas são um produto acessório da luta revolucionária de classe. As
transformações democrático-burguesas — dissemo-lo e demonstrámo-lo com factos — são um produto
acessório da revolução proletária, isto é, socialista. Digamos de passagem que todos os Kautskys, os Hilferdings,
os Mártovs, os Tchernovs, os Hillquits, os Longuets os MacDonalds, os Turatis e outros heróis do marxismo «II
1/2» não souberam compreender esta correlação entre a revolução democrático-burguesa e a revolução
proletária socialista. A primeira transforma-se na segunda. A segunda resolve de passagem os problemas da
primeira. A segunda consolida a obra da primeira. A luta, e só a luta, determina até que ponto a segunda
consegue ultrapassar a primeira.

O regime soviético é precisamente uma das confirmações ou manifestações evidentes dessa


transformação duma revolução em outra. O regime soviético é o máximo de democracia para os operários e os
camponeses e, ao mesmo tempo, significa a ruptura com a democracia burguesa e o aparecimento de um novo
tipo de democracia de importância histórica mundial: a democracia proletária ou ditadura do proletariado.

Que os cães e os porcos da moribunda burguesia e da democracia pequeno-burguesa que se arrasta


atrás dela nos cubram de maldições, de injúrias e de escárnios pelos insucessos e erros que cometemos ao
construir o nosso regime soviético. Nem por um momento esquecemos que, de facto, tivemos e temos ainda
muito insucessos e erros. E como havíamos de evitar insucessos e erros numa obra tão nova, nova para toda a
história mundial, como é a criação de um tipo de regime estatal ainda desconhecido! Lutaremos sem descanso
para corrigir os nossos insucessos e erros, para melhorar a forma como aplicamos os princípios soviéticos, que
está ainda longe, muito longe, de ser perfeita. Mas temos o direito de nos orgulharmos e orgulhamo-nos de nos
ter cabido a felicidade de iniciar a construção do Estado Soviético, de iniciar assim uma nova época da história
universal, a época do domínio duma nova classe, oprimida em todos os países capitalistas e que avança em toda
a parte para uma vida nova, para a vitória sobre a burguesia, para a ditadura do proletariado, para a libertação
da humanidade do jugo do capital e das guerras imperialistas.

A questão das guerras imperialistas, da política internacional do capital financeiro, política que hoje
domina em todo o mundo e que gera inevitavelmente novas guerras imperialistas, que gera inevitavelmente
uma intensificação sem precedentes do jugo nacional, da pilhagem, da exploração, do estrangulamento de

170
pequenas nacionalidades, fracas e atrasadas, por um punhado de potências «avançadas», é uma questão que
desde 1914 se tornou a pedra angular de toda a política de todos os países do globo terrestre. É uma questão de
vida ou de morte para dezenas de milhões de homens. Trata-se da questão de saber se na próxima guerra
imperialista, que a burguesia prepara diante dos nossos olhos, que vai surgindo do capitalismo diante dos
nossos olhos, morrerão vinte milhões de homens (em vez dos dez milhões que morreram na guerra de 1914-
1918 e nas «pequenas» guerras que vieram completá-la e que ainda não terminaram), de saber se nessa futura
guerra inevitável (se o capitalismo se mantiver) ficarão mutilados 60 milhões de homens (em vez dos 30
milhões de mutilados de 1914-1918). Também nesta questão a nossa Revolução de Outubro abriu uma nova
época da história universal. Os lacaios da burguesia e os seus bajuladores, os socialistas-revolucionários e
mencheviques, toda a democracia pequeno-burguesa pretensamente «socialista» de todo o mundo, troçaram da
palavra de ordem de «transformação da guerra imperialista em guerra civil». Mas esta palavra de ordem
revelou-se a única verdade — desagradável, brutal, nua e cruel, com efeito —, mas a verdade no meio da
multidão das mais subtis mentiras chauvinistas e pacifistas. Essas mentiras vão-se desmoronando. Foi
desmascarada a Paz de Brest. Cada novo dia desmascara mais implacavelmente o significado e as consequências
duma paz ainda pior que a de Brest, a Paz de Versalhes. E perante milhões e milhões de homens que reflectem
sobre as causas da guerra de ontem e sobre a guerra iminente de amanhã, ergue-se cada vez mais clara, nítida e
inelutavelmente esta terrível verdade: é impossível sair da guerra imperialista e do mundo imperialista que a
gera inevitavelmente (se tivéssemos a antiga ortografia eu escreveria aqui as duas palavras mir(1*) em ambos
os seus significados), é impossível sair desse inferno a não ser por uma luta bolchevique e por uma revolução
bolchevique.

Que a burguesia e os pacifistas, os generais e os pequenos burgueses, os capitalistas e os filisteus,


todos os cristãos crentes e todos os cavaleiros das Internacionais II e II 1/2 insultem furiosamente esta
revolução. Com nenhumas torrentes de raiva, de calúnias e de mentiras poderão ocultar o facto histórico
universal de que, pela primeira vez desde há séculos e milénios, os escravos responderam à guerra entre
escravistas proclamando abertamente esta palavra de ordem: transformemos essa guerra entre escravistas pela
partilha do saque numa guerra dos escravos de todas as nações contra os escravistas de todas as nações.

Pela primeira vez depois de séculos e milénios, esta palavra de ordem transformou-se de esperança
vaga e impotente num programa político claro e preciso, numa luta efectiva de milhões de oprimidos sob a
direcção do proletariado, transformou-se na primeira vitória do proletariado, na primeira vitória da causa da
supressão das guerras, da causa da aliança dos operários de todos os países, sobre a aliança da burguesia das
diversas nações, da burguesia que faz umas vezes a paz e outras a guerra à custa dos escravos do capital, à custa
dos operários assalariados, à custa dos camponeses, à custa dos trabalhadores.

Esta primeira vitória não é ainda a vitória definitiva, e a nossa Revolução de Outubro alcançou-a com
privações e dificuldades inauditas, com sofrimentos sem precedentes, com uma série de enormes insucessos e
erros da nossa parte. Como poderia um povo atrasado conseguir vencer sem insucessos e sem erros as guerras
imperialistas dos países mais poderosos e avançados do globo terrestre? Não receamos reconhecer os nossos
erros e encará-los-emos serenamente para aprender a corrigi-los. Mas os factos continuam a ser factos: pela
primeira vez depois de séculos e milénios, a promessa de «responder» à guerra entre escravistas com a
revolução dos escravos contra toda a espécie de escravistas foi cumprida até ao fim..... e é cumprida apesar de
todas as dificuldades.

Nós começámos esta obra. Quando precisamente, em que prazo os proletários de qual nação
culminarão esta obra — é uma questão não essencial. O essencial é que se quebrou o gelo, que se abriu
caminho, que se indicou a via.

Continuai a vossa hipocrisia, senhores capitalistas de todos os países, que «defendeis a pátria»
japonesa da americana, a americana da japonesa, a francesa da inglesa, etc! Continuai a «escamotear» a questão
dos meios de luta contra as guerras imperialistas com novos «manifestos de Basileia» (segundo o modelo do
Manifesto de Basileia de 1912), senhores cavaleiros das Internacionais II e II 1/2 e todos os pequenos
burgueses e filisteus pacifistas de todo o mundo! A primeira revolução bolchevique arrancou a guerra
imperialista, ao mundo imperialista, a primeira centena de milhões de homens da terra. As revoluções seguintes
arrancarão a essas guerras e a esse mundo toda a humanidade.

A última tarefa — e a mais importante, e a mais difícil e a menos acabada — é a construção económica,
o lançamento dos alicerces económicos do edifício novo, socialista, em lugar do edifício feudal destruído e do

171
edifício capitalista semidestruído. É nessa tarefa, a mais importante e a mais difícil, que temos sofrido mais
insucessos e cometido mais erros. Como se poderia começar sem insucessos e sem erros uma obra tão nova
para todo o mundo? Mas começámo-la. E continuamo-la. Precisamente agora, com a nossa «nova política
económica», corrigimos toda uma série dos nossos erros e aprendemos a prosseguir sem esses erros a
construção do edifício socialista num país de pequenos camponeses.

As dificuldades são imensas. Estamos habituados a lutar contra dificuldades imensas. Por alguma
razão os nossos inimigos nos chamaram «firmes como a rocha» e representantes de uma política de «partir
ossos». Mas aprendemos também — pelo menos aprendemos até certo ponto — outra arte necessária na
revolução: a flexibilidade, o saber mudar de táctica rápida e bruscamente, partindo das mudanças verificadas
nas condições objectivas, e escolhendo outro caminho para os nossos objectivos se o caminho anterior se
revelou inconveniente, impossível, para um período de tempo determinado.

Contávamos, levados por uma onda de entusiasmo, depois de despertar no povo um entusiasmo a
princípio político e depois militar, contávamos realizar directamente, na base desse entusiasmo, tarefas
económicas tão grandes (como as políticas, como as militares). Contávamos — ou talvez seja mais justo dizer:
supúnhamos, sem ter calculado o suficiente — que com imposições directas do Estado proletário poderíamos
organizar de maneira comunista, num país de pequenos camponeses, a produção estatal e a distribuição estatal,
dos produtos. A vida mostrou o nosso erro. Foram necessárias diversas etapas transitórias, o capitalismo de
Estado e o socialismo, para preparar — preparar com o trabalho de longos anos — a passagem ao comunismo.
Não directamente na base do entusiasmo, mas com a ajuda do entusiasmo, entusiasmo gerado pela grande
revolução, na base do interesse pessoal, na base do incentivo pessoal, na base do cálculo económico, trabalhai
para construir primeiro sólidas pontes, que conduzam num país de pequenos camponeses ao socialismo através
do capitalismo de Estado. De outro modo não vos aproximareis do comunismo, de outro modo não levareis ao
comunismo dezenas e dezenas de milhões de homens. Eis o que nos disse a vida. Eis o que nos disse o curso
objectivo do desenvolvimento da revolução.

E nós, que em três ou quatro anos aprendemos um pouco a fazer viragens bruscas (quando se exige
uma viragem brusca), pusemo-nos com zelo, atenção e afinco (embora ainda com insuficiente zelo, insuficiente
atenção e insuficiente afinco) a estudar uma nova viragem, a «nova política económica». O Estado proletário
deve tornar-se um «patrão» prudente, diligente e hábil, um consciencioso comerciante por grosso — de outro
modo não pode pôr economicamente de pé um país de pequenos camponeses; agora, nas condições actuais, ao
lado do Ocidente capitalista (ainda capitalista), não há outra passagem para o comunismo. O comerciante por
grosso parece um tipo económico tão afastado do comunismo como o céu da terra. Mas esta é precisamente
uma das contradições que na vida real conduzem da pequena exploração camponesa ao socialismo, através do
capitalismo de Estado. O incentivo pessoal eleva a produção; nós necessitamos, antes de mais nada e a todo o
custo, de aumentar a produção. O comércio por grosso une economicamente milhões de pequenos camponeses,
incentivando-os, ligando-os, conduzindo-os à etapa seguinte: às diversas formas de ligação e de união na
própria produção. Iniciámos já a necessária transformação da nossa política económica. Neste domínio temos já
alguns êxitos, é certo que pequenos, parciais, mas indubitáveis. Estamos já a terminar, neste domínio da nova
«ciência», o ano preparatório. Estudando com firmeza e perseverança, verificando com a experiência prática
cada um dos nossos passos, não receando refazer mais de uma vez aquilo que começámos nem corrigir os
nossos erros, examinando atentamente o seu significado, passaremos também nos anos seguintes. Faremos
todo o «curso», embora as circunstâncias da economia mundial e da política mundial tenham tornado isto mais
longo e difícil do que teríamos desejado. Custe o que custar, por muito penoso que sejam os sofrimentos do
período de transição, as calamidades, a fome, a ruína, não nos deixaremos abater e levaremos a nossa obra até
ao final vitorioso.

Notas:
(1*) A palavra «mir» tem em russo dois significados («mundo» e «paz») e escrevia-se de maneira
diferente na velha ortografia.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1921/10/14.htm

172
Carta ao Congresso
(Testamento Político de Lenin)

V. I. Lenine

22/12/1922 - 4/01/1923

Carta ao Congresso

Sobre a Concessão de Funções Legislativas à Gosplan.

Acerca do Problema das Nacionalidades ou Sobre a "Autodeterminação"

Ao fim de Dezembro de 1922, o já inválido Lenin começou a ditar uma Carta ao XIII Congresso do
Partido Comunista da União Soviética, onde expõe sua opinião sobre certas propostas, incluindo a de ampliar o
Comitê Central do Partido além de sua opinião sobre certos membros propostos a cargos de liderança no CC e
no Partido. Esta Carta, que se denominou o "testamento" político de Lenin, foi lida aos delegados do Congresso
realizado em Maio de 1924 por Krupskaya, companheira de Lenin, os delegados do Congresso, por vê-la como
parte da discussão interna do Congresso não a publicaram no momento. Logo, pela opinião negativa de Stalin
no que a Carta se expressa, ela foi suprimida até o XX Congresso do PCUS em 1956.

Carta ao Congresso

Eu recomendaria muito que neste Congresso se introduzissem muitas mudanças em nossa estrutura
política.

Gostaria de expor-lhes as considerações que considero mais importantes.

Em primeiro lugar coloco o aumento do número de membros do CC a várias dezenas e inclusive a uma
centena. Creio que se não empreendermos tal reforma, nosso Comitê Central se veria ameaçado de grandes
perigos, caso o curso dos acontecimentos não seja de todo favorável para nós (e não podemos contar com isso).

Também penso em propor ao Congresso que dentro de certas condições se dê caráter legislativo às
discussões da Gosplan[1N], coincidindo neste sentido com o camarada Trotsky, até certo ponto e em certas
condições.

Pelo que se refere ao primeiro ponto, ou seja, ao aumento do número de membros do CC, creio que isto
é necessário tanto para elevar o prestígio do CC como para um trabalho sério com objetivo de melhorar nosso
aparato e como para evitar que os conflitos de pequenas partes do CC possam adquirir uma importância
excessiva para todos os destinos do partido.

Opino que nosso Partido está em seu direito de pedir à classe operária de de 50 a 100 membros do CC,
e que pode receber dela sem colocar tensão demais em suas forças. Esta reforma aumentaria
consideravelmente a solidez de nosso Partido e lhe facilitaria a luta que trava, rodeado de Estados hostis, luta
que, ao meu modo de ver, pode e deve agudizar-se muito nos próximos anos. Me parece que, graças a esta
medida, a estabilidade de nosso Partido estaria mil vezes maior.

Lenin
23.12.22
Taquigrafado por M. V.

II

Continuação das notas.

24 de Dezembro de 22

173
Pela estabilidade do Comitê Central, da qual falava mais acima, entendo as medidas contra a ruptura
ao passo em que tais medidas possam, em geral, adotar-se. Porque, naturalmente, teria razão o guarda branco
de Rússkaya Mysl (creio que era S. F. Oldenbourg) quando, o primeiro, no jogo dessas gentes contra a Rússia
Soviética colocava suas esperanças na cisão de nosso Partido e quando, o segundo, as esperanças de que iria a
provocar esta divisão as cifrava em gravíssimas discrepâncias no seio do Partido.

Nosso Partido se apóia em duas classes[2N], e por isso é possível sua instabilidade e seria inevitável
sua queda se estas duas classes não pudessem chegar a um acordo. Seria inútil adotar umas ou outras medidas
com vistas a esta eventualidade e, em geral, fazer considerações acerca da estabilidade de nosso CC. Nenhuma
medida seria capaz, neste caso, de evitar a divisão. Mas eu confio que isto se refere a um futuro longínquo e é
um acontecimento improvável demais para falar do mesmo.

Me refiro à estabilidade como garantia contra a ruptura em um futuro próximo, e tenho a proposta de
colocar aqui várias considerações de índole puramente pessoal. Creio que o fundamental no problema da
estabilidade, desde este ponto de vista, são tais membros do CC como Stálin e Trotsky. As relações entre eles, a
meu modo de ver, encerram mais da metade do perigo desta divisão que se poderia evitar, e a cujo objetivo
deveria servir entre outras coisas, segundo meu critério, a ampliação do CC a 50 ou até 100 membros.

O camarada Stálin, tendo chegado ao Secretariado Geral, tem concentrado em suas mãos um poder
enorme, e não estou seguro que sempre irá utilizá-lo com suficiente prudência. Por outro lado, o camarada
Trotsky, segundo demonstra sua luta contra o CC em razão do problema do Comissariado do Povo de Vias de
Comunicação, não se distingue apenas por sua grande capacidade. Pessoalmente, embora seja o homem mais
capaz do atual CC, está demasiado ensoberbecido e atraído pelo aspecto puramente administrativo dos
assuntos.

Estas características de dois destacados dirigentes do atual CC podem levar sem querer-lo à ruptura, e
se nosso Partido não toma medidas para impedir-lo, a divisão pode vir sem que se espere.

Não seguirei caracterizando aos demais membros do CC por suas características pessoais. Recordarei
apenas que o episódio de Zinoviev e Kamenev em Outubro[3N] não é, naturalmente, uma casualidade, e que se
disto não se pode culpar pessoalmente, tão pouco a Trotsky pelo seu não bolchevismo[4N].

Quanto aos jovens membros do CC, direi algumas palavras sobre Bukharin e Piatakov. São, a meu juízo
os que mais se destacam (entre os mais jovens), e neles deveria se levar em conta o seguinte: Bukharin não é só
um valiosíssimo e notabilíssimo teórico do Partido, senão que, ademais, se lhe considera legitimamente o
favorito de todo o Partido; porém suas concepções teóricas muito dificilmente podem qualificar-se de
inteiramente marxistas, pois há nele algo escolástico (jamais estudou e creio que jamais compreendeu por
completo a dialética).

25.XII. Depois vemos Piatakov, homem sem dúvida de grande vontade e grande capacidade, porém a
quem atrai demais a administração e o aspecto administrativo dos assuntos para que se possa confiar nele um
problema político sério.

Naturalmente, uma ou outra observação são válidas apenas para o presente, supondo que estes dois
destacados e fiéis militantes não consigam completar seus conhecimentos e corrigir sua formação unilateral.

Lenin
25.12.22
Taquigrafado por M. V.

Suplemento à Carta de 24 de Dezembro de 1922

Stálin é brusco demais, e este defeito, plenamente tolerável em nosso meio e entre nós, os comunistas,
se coloca intolerável no cargo de Secretário Geral. Por isso proponho aos camaradas que pensem a forma de
passar Stálin a outro posto e nomear a este cargo outro homem que se diferencie do camarada Stálin em todos
os demais aspectos apenas por uma vantagem a saber: que seja mais tolerante, mais leal, mais correto e mais
atento com os camaradas, menos caprichoso, etc. Esta circunstância pode parecer fútil tolice. Porém eu creio

174
que, desde o ponto de vista de prevenir a divisão e desde o ponto de vista do que escrevi anteriormente sobre
as relações entre Stálin e Trotsky, não é uma tolice, ou se trata de uma tolice que pode adquirir importância
decisiva.

Lenin
04.01.23
Taquigrafado por L. F.

III

Continuação das notas.

26 de dezembro de 1922

A ampliação do CC até 50 ou inclusive 100 membros deve seguir, ao meu modo de ver, um fim duplo
ou até triplo: quanto maior seja o número de membros do CC, mais pessoas aprenderão a realizar o trabalho
deste e tanto menor será o perigo de divisão devido a qualquer imprudência. A incorporação de muitos
operários ao CC ajudará aos operários a melhorar nosso aparato, que é péssimo. No fundo temos herdado do
velho regime, posto que tem sido absolutamente impossível refazê-lo em um prazo tão curto, sobre tudo com a
guerra, com a fome, etc. Por isso podemos contestar tranquilamente aos "críticos" um sorriso sarcástico ou com
malícia nos assinalam os defeitos de nosso aparato, que são pessoas que não compreendem nada as condições
de nossa revolução. Em cinco anos é possível reformar o aparato em medida suficiente, sobretudo atendidas as
condições em que foi gerada nossa revolução. Bastante é se em cinco anos termos criado um novo tipo de
Estado em que os operários se colocam a frente dos camponeses contra a burguesia, o que, considerando as
condições da hostil situação internacional, é uma obra gigantesca. Mas a consciência de que isto acontece não
deve em modo algum fechar-nos os olhos ante o feito de que, em essência, tomamos o velho aparato do czar e
da burguesia e que agora, ao vir a paz e cobrir o grau mínimo de necessidades relacionadas com a fome, todo o
trabalho deve orientar-se à melhoria do aparato.

Segundo, imagino eu, algumas dezenas de operários inclusos no CC podem, melhor que quaisquer
outros, entregarem-se à atividade de revisar, melhorar e refazer nosso aparato. A inspeção Operária e
Camponesa, a quem pertencia em princípio esta função, tem sido incapaz de cumpri-la e unicamente pode ser
empregada como "apêndice" ou como auxiliar, em determinadas condições, destes membros do CC. Os
operários que passem a formar parte do CC devem ser preferivelmente, segundo meu critério, os que tem
atuado um longo tempo nas organizações soviéticas (nesta parte da carta, o que digo dos operários se refere
também por completo aos camponeses), porque neles estão arraigados já certas tradições e certos prejuízos
com os que é desejável precisamente lutar.

Os operários que se incorporem ao CC devem ser, de preferência, pessoas que se encontrem por
debaixo da capa dos que nos cinco anos passaram a ser funcionários soviéticos, e devem aliar-se mais com os
simples operários e camponeses que, sem embargo, não entrem, direta ou indiretamente, na categoria dos
exploradores. Creio que estes operários, que assistirão a todas as reuniões do CC e do Birô Político[5N], e que
lerão todos os documentos do CC, podem ser quadros fiéis ao regime soviético, capazes, em primeiro lugar, de
dar estabilidade ao próprio CC e, em segundo, de trabalhar realmente na renovação e melhoramento do
aparato.

Lenin
26.11.22.
Taquigrafado por L. F.

IV

Continuação das notas.

Sobre a Concessão de Funções Legislativas à Gosplan.

175
27 de dezembro de 1922

Esta idéia foi sugerida pelo camarada Trotsky, me parece, já faz tempo. Eu me manifestei contra,
porque estimava que, em tal caso, se produziria uma falta de concordância fundamental no sistema de nossas
instituições legislativas. Porém um exame atento do problema me leva à conclusão de que, no fundo, há aqui
uma sã idéia: a Gosplan tem agido às margens de nossas instituições legislativas, apesar de que, como conjunto
de pessoas competentes, especialistas, de homens da ciência e da técnica, se encontra, no fundo, nas melhores
condições para emitir juízos acertados.

Sem embargo, até agora partíamos do ponto de vista de que a Gosplan deve apresentar ao Governo um
material analisado criticamente, e que as instituições governamentais devem ser as encarregadas de resolver os
assuntos públicos. Creio que na situação atual, quando os assuntos públicos tem se complicado
extraordinariamente, quando a cada passo há que resolver assim como vem os problemas em que se necessita o
ditame dos membros da Gosplan sem separá-los dos problemas em que não se necessita, e inclusive mais ainda,
resolver assuntos nos quais uns pontos requerem a indicação da Gosplan enquanto outros pontos não
requerem-no, deve dar-se um passo no sentido de aumentar a competência da Gosplan.

Concebo este passo de tal maneira que as decisões da Gosplan não possam ser rechaçadas segundo o
procedimento corrente nos organismo soviéticos, senão que para modificá-las condicione-se um procedimento
especial; por exemplo, levá-las à reunião do CEC de toda a Rússia, preparar o assunto cuja decisão deva ser
modificada segundo instruções especiais, relatando-se, segundo regras especiais, informes por escrito com
objetivo de ponderar se dita decisão da Gosplan deve ser anulada; marcar enfim, prazos especiais para
modificar as decisões da Gosplan, etc.

Neste sentido creio que se pode e deve concordar com o camarada Trotsky, porém não de que a
presidência da Gosplan deve ser ocupada por uma personalidade destacada, um de nossos dirigentes políticos,
ou o Presidente do Conselho Supremo da Economia Nacional, etc. Me parece que neste assunto o fator pessoal
se combina hoje em dia demasiado intimamente com o problema de princípio. Creio que os ataques que agora
se escutam contra o Presidente da Gosplan, camarada Krzhizhanovski, e o vice-presidente, camarada Piatakov, e
que se lançam contra os dois, de tal maneira que por um lado escutamos acusações de extrema suavidade, de
falta de independência e de caráter, apesar que, por outro lado, escutamos acusações de grosseria, de trato
rude, de falta de uma sólida preparação científica, etc., creio que estes ataques são expressão dos dois aspectos
do problema, exagerando-los até o extremos, e o que nós necessitamos na Gosplan é de uma acertada
combinação dos dois tipos de caráter, modelo de um dos quais pode ser Piatakov e do outro Krzhizhanovski.

Creio que à cabeça da Gosplan deve haver uma pessoa com preparação científica no sentido técnico ou
agrônomico, que possua uma larga experiência, de muitas dezenas de anos de trabalho prático, bem na técnica,
bem na agronomia. Creio que essa pessoa deve possuir não tanta atitude administrativa como ampla
experiência e capacidade para atrair-se as pessoas.

Lenin
27.12.22
Taquigrafado por M. V.

Continuação da carta acerca do caráter legislativo das decisões da Gosplan.

28.12.22

Tenho advertido que certos camaradas nossos, capazes de influir decisivamente na orientação dos
assuntos públicos, exageram o aspecto administrativo, no qual, naturalmente, é necessário em seu tempo e
lugar, mas que não se deve confundir com o aspecto científico, com a ampla compreensão da realidade, com a
capacidade de se atrair pessoas, etc.

Em toda instituição pública, particularmente na Gosplan, necessita-se a união destas duas qualidades,
e quando o camarada Krzhizhanovski me disse que havia incorporado à Gosplan Piatakov e havia concordado
com ele acerca do trabalho, eu dei meu consentimento, reservando-me, por um lado, certas dúvidas, e confiando

176
às vezes, por outro lado que contaríamos neste caso com a combinação de ambos tipos de homem de Estado.
Esta esperança se concretizou? Agora temos que aguardar e ver em mais algum tempo o resultado na prática,
mas em princípio eu creio que não se pode pôr em dúvida que esta união de características e tipos (de pessoas,
qualidades) é sem dúvida necessária para o bom funcionamento das instituições públicas. Me parece que neste
ponto o exagero do "zelo administrativo" é tão nocivo como todo exagero em geral. O dirigente de uma
instituição pública deve colocar-se no mais alto grau a capacidade de atrair-se pessoas e alguns conhecimentos
científicos e técnicos bastante sólidos para controlar seu trabalho. Isto é o fundamental. Sem ele o trabalho não
pode ir por bons caminhos. Por outro lado, é muito importante que possa administrar e tenha um digno auxiliar
ou auxiliares neste terreno. É duvidoso que estas duas qualidades possam encontrar-se unidas em uma só
pessoa, e é duvidoso que isso seja necessário.

Lenin
28.12.22
Taquigrafado por L. F.

VI

Continuação das notas sobre a Gosplan.

29 de dezembro de 1922.

Pelo visto, a Gosplan vem convertendo-se em todos os sentidos em uma comissão de especialistas. À
cabeça de tal instituição não pode por menos figurar uma pessoa de grande experiência e de amplos
conhecimentos científicos no terreno da técnica. A capacidade administrativa deve ser no fundo uma coisa
secundária. A Gosplan deve gozar de certa independência e autonomia desde o ponto de vista do prestígio desta
instituição científica e existe um motivo para ser assim: a honestidade de seu pessoal e sincero desejo de fazer
com que se cumpra nosso plano de construção econômica e social.

Esta última qualidade, naturalmente, agora só se pode encontrar como exceção, porque a imensa
maioria dos homens da ciência, dos que como é lógico compõem a Gosplan, se hajam inevitavelmente
contagiados de opiniões e juízos burgueses. Controlar seu trabalho neste aspecto deve ser tarefa de umas
quantas pessoas, que podem formar a direção da Gosplan, que devem ser comunistas e seguir a cada dia, em
toda marcha do trabalho, o grau de fidelidade dos homens da ciência burgueses e como abandonam os juízos
burgueses, assim como seu passo gradual ao ponto de vista do socialismo. Este trabalho duplo, de controle
científico e de gestão puramente administrativa, deveria ser o ideal dos dirigentes da Gosplan em nossa
República.

Lenin
29.12.22
Taquigrafado por M. V.

É racional a divisão de tarefas soltas, o trabalho que leva a cabo a Gosplan? Ou ao contrário, não deve
tender-se a formar um círculo de especialistas permanentes que controle sistematicamente a direção da
Gosplan e que possam resolver todo o conjunto de problemas que são de sua incumbência? Eu creio que é mais
racional o último, e que deve-se procurar a diminuição do número de tarefas soltas temporárias e urgentes.

Lenin
28.12.22
Taquigrafado por M. V.

VII

Continuação das notas.

(Relativo ao Aumento do Número de Membros do CC)

29 de dez. de 1922

177
Ao mesmo tempo que aumenta-se o número de membros do CC, deveremos, ao meu modo de ver,
dedicarmo-nos também, e eu diria que principalmente, à tarefa de revisar e melhorar nosso aparato, que não
serve para nada. Para este objetivo devemos valermo-nos dos serviços de especialistas muito qualificados, e a
tarefa de proporcionar estes especialistas deve recair sobre a IOC (Inspeção Operária e Camponesa).

A tarefa de combinar a estes especialistas da revisão com conhecimentos suficientes e a estes novos
membros do CC deve ser resolvido na prática.

Me parece que a IOC (como resultado de seu desenvolvimento e de nossas perplexidades acerca de seu
desenvolvimento) tem dado em resumo no que agora observamos: um estado de transição de um Comissariado
do Povo especial a uma função especial dos membros do CC; de uma instituição que o revida tudo por completo
a um conjunto de revisores, escassos em número, porém excelentes, que devem estar bem pagos (isto é
particularmente necessário em nosso tempo, em que as coisas se pagam, e atendendo a que os revisores se
colocam onde melhor lhes pagam).

Se o número de membros do CC é devidamente aumentado e um ano atrás outros se capacitam na


direção dos assuntos públicos com a ajuda destes especialistas altamente qualificados e de membros do CC é
devidamente aumentado e um ano atrás outros se capacitam na direção dos assuntos públicos com a ajuda
destes especialistas altamente qualificados e dos membros da IOC, prestigiosos em todos os terrenos, eu creio
que daremos uma solução acertada a este problema que durante tanto tempo não podíamos resolver.

Em resumo: até 100 membros do CC e todo o mais de 400 a 500 auxiliares seus, membros da IOC, que
revisem segundo as indicações dos primeiros.

Lenin
29.12.22
Taquigrafado por M. V.

Continuação das notas.

Acerca do Problema das Nacionalidades ou Sobre a "Autodeterminação"

30 de dezembro de 1922.

Acho que incorri numa grave culpa perante os operários da Rússia por não ter intervido com energia e
dureza no decantado problema da autodeterminação, que oficialmente se denomina, cuido, problema da união
das repúblicas socialistas soviéticas.

Neste verão, quando o problema surgiu, e estava doente, e mais tarde, no outono, confiei de mais na
minha cura e em que os plenos de Outubro e Dezembro me dariam a oportunidade de intervir no problema. Mas
não pude assistir ao Pleno de Outubro (dedicado a este problema) nem ao de Dezembro, pelo que não cheguei a
tocá-lo quase em absoluto.

Pude apenas conversar com o camarada Dzerzhinski, que tornou do Cáucaso e contou-me como se
acha este problema na Geórgia. Também pude trocar um par de palavras com o camarada Zinoviev e exprimir-
lhe os meus temores sobre o particular. O que me disse o camarada Dzerzhinski, que presidia a comissão
enviada pelo Comitê Central para "investigar" o que diz respeito ao incidente da Geórgia, não pode deixar-me
mais que com temores acrescentados. Se as coisas se puseram de tal jeito que Ordzhonikidze pôde chegar ao
emprego da violência física, segundo me manifestou o camarada Dzerzhinski, podemos imaginar em que
atoleiro temos caído. Pelos vistos, toda esta empresa da "autodeterminação" era falsa e intempestiva em
absoluto.

Diz-se que era necessária a unidade do aparato. Donde partiram tais afirmações? Não será desse
mesmo aparato russo que, como indicava já num dos anteriores números do meu diário, tomamos do czarismo,
tendo-nos limitado a untá-lo com óleo soviético?

É indubitável que se deveria demorar a aplicação desta medida até podermos dizer que respondemos
do nosso aparato como algo próprio. Mas agora, em consciência, devemos dizer o contrário, que nós chamamos

178
nosso a um aparato que na verdade nos é ainda alheio por completo e constitui um misto burguês e czarista que
não houve qualquer hipótese de ultrapassar em cinco anos, sem ajuda de outros países e nuns momentos em
que predominavam as "ocupações" militares e a luta contra a fome.

Nestas condições é muito natural que a "liberdade de separar-se da união", com que nós nos
justificamos, seja um papel molhado incapaz de defender os não russos da invasão do russo genuíno,
chauvinista, no fundo um homem miserável e dado à violência como é o típico burocrata russo. Não há qualquer
dúvida de que a insignificante percentagem de operários soviéticos e sovietizados afundaria nesse mar de
imundície chauvinista russa como a mosca no leite.

Em defesa desta medida diz-se que foram segregados os Comissariados do Povo que se relacionam
diretamente com a psicologia das nacionalidades, com a instrução nas nacionalidades. Mas a respeito disto
ocorre-nos uma pergunta, a de se é possível segregar estes Comissariados por completo, e uma segunda
pergunta, a de se temos tomado medidas com a suficiente solicitude para protegermos realmente os não russos
do esbirro genuinamente russo. Eu acho que não as tomamos, embora pudéssemos e devêssemos tê-lo feito.

Eu acho que neste assunto exerceram uma influência fatal as pressas e os afãs administrativos de
Stalin, bem como a sua aversão contra o decantado "social-nacionalismo". Via de regra, a aversão sempre exerce
em política o pior papel.

Temo igualmente que o camarada Dzerzhinski, que foi ao Cáucaso investigar o assunto dos "delitos"
desses "social-nacionais", se tenha distinguido neste caso também só pelas suas tendências puramente russas
(sabe-se que os não russos russificados sempre exageram quanto às suas tendências puramente russas), e que a
imparcialidade de toda a sua comissão a caracterize suficientemente a "pancada" de Ordzhonikidze. Acho que
nenhuma provocação, mesmo nenhuma ofensa, pode justificar esta pancada russa, e que o camarada
Dzerzhinski é irremediavelmente culpável de ter reagido ante isso com ligeireza.

Ordzhonikidze era uma autoridade para todos os demais cidadãos do Cáucaso. Ordzhonikidze não
tinha direito a deixar-se levar pela irritação a que ele e Dzerdhinski se remetem. Ao contrário, Ordzhonikidze
estava na obrigação de se comportar com uma sobriedade que não se pode pedir a nenhum cidadão ordinário,
tanto mais se este for acusado de um delito "político". E a realidade é que os social-nacionais eram cidadãos
acusados de um delito político, e todo o ambiente em que se produziu esta acusação apenas assim podia
qualificá-lo.

Relativamente a este assunto, coloca-se já um importante problema de princípio: como compreender o


internacionalismo.

Lenin
30.12.22
Taquigrafado por M. V.

(Continuação)

Nas minhas obras a respeito do problema nacional tenho já escrito que a formulação abstrata do
problema do nacionalismo em geral não serve para nada. Cumpre distinguirmos entre o nacionalismo da nação
opressora do nacionalismo da nação oprimida, entre o nacionalismo da nação grande e o nacionalismo da nação
pequena.

No que diz respeito ao segundo nacionalismo, nós, os integrantes de uma nação grande, quase sempre
somos culpáveis no terreno prático histórico de infinitos atos de violência; e mesmo mais: sem dar-nos conta,
cometemos infinito número de atos de violência e ofensas. Não tenho mais do que evocar as minhas lembranças
de como nas regiões do Volga tratam desrespeitosamente os não russos, de como a única maneira de chamar os
polacos é "poliáchishka", de que para burlar-se dos tártaros sempre os chamam "príncipes", o ucraniano
chamam-no "jojol", e o georgiano e os demais naturais do Cáucaso chamam-nos "homens do Capciosa".

Por isso, o internacionalismo por parte da nação opressora ou da chamada nação grande (embora seja
só grande pelas suas violências, só como o é um esbirro) não deve reduzir-se a observar a igualdade formal das

179
nações, quanto também a observar uma desigualdade que de parte da nação opressora, da nação grande,
compense a desigualdade que praticamente se produz na vida. Quem não tenha compreendido isto, não tem
compreendido a posição verdadeiramente proletária face ao problema nacional; no fundo, continua a manter o
ponto de vista pequeno-burguês, e por isso não pode evitar escorregar a cada instante ao ponto de vista
burguês.

O quê é importante para o proletário? Para o proletário é não só importante, mas uma necessidade
essencial, gozar, na luta proletária de classe, do máximo de confiança pela parte dos componentes de outras
nacionalidades. O que faz falta para isso? Para isso cumpre mais algo do que a igualdade formal. Para isso,
cumpre compensar de uma maneira ou de outra, com o seu trato ou com as suas concessões às outras
nacionalidades, a desconfiança, o receio, as ofensas que no passado histórico lhes produziu o governo da nação
dominante.

Acho que não cumprem mais explicações nem entrarmos em mais pormenores tratando-se de
bolcheviques, de comunistas, e creio que neste caso, no que atinge à nação georgiana, temos um exemplo típico
de como é que a atitude verdadeiramente proletária exige da nossa parte extremada cautela, delicadeza e
transigência. O georgiano que desdenha este aspecto do problema, que lança desdenhosamente acusações de
"social-nacionalismo" (quando ele próprio é não apenas um "social-nacional", autêntico e verdadeiro, senão um
basto esbirro russo), esse geórgico magoa, em essência, os interesses da solidariedade proletária de classe,
porque nada demora tanto o desenvolvimento e a consolidação desta solidariedade como a injustiça no terreno
nacional, e para nada são tão sensíveis os "ofendidos" componentes de uma nacionalidade como para o
sentimento da igualdade e o desprezo dessa igualdade pela parte dos seus camaradas proletários, embora o
façam por negligência, embora a coisa semelhe uma brincadeira. E isso, neste caso, é preferível exagerar quanto
às concessões e a suavidade com as minorias nacionais, do que pecar por defeito. Por isso, neste caso, o
interesse vital da solidariedade proletária e portanto da luta proletária de classe, requer que jamais olhemos
formalmente o problema nacional, senão que sempre levemos em conta a diferença obrigatória na atitude do
proletário da nação oprimida (ou pequena) para a nação opressora (ou grande).

Lenin
31.12.22
Taquigrafado por M. V.

Continuação das notas.

31 de dezembro de 1922.

Que medidas práticas se devem tomar nesta situação?

Primeiro, cumpre manter e fortalecer a união das repúblicas socialistas; sobre isto não pode haver
dúvida. Necessitamo-lo nós o mesmo que o necessita o proletariado comunista mundial para lutar contra a
burguesia mundial e para defender-se das suas intrigas.

Segundo, cumpre manter a união das repúblicas socialistas no que atinge ao aparato diplomático, que,
dito seja de passagem, é uma exceção no conjunto do nosso aparato estatal. Não deixamos entrar nele nem uma
só pessoa de certa influência procedente do velho aparato czarista. Todo ele, considerando os cargos de alguma
importância, compõem-se de comunistas. Por isso, este aparato tem ganhado já (podemos dizê-lo
rotundamente) o título de aparato comunista provado, limpo, em grau incomparavelmente maior, dos
elementos do velho aparato czarista, burguês e pequeno-burguês, a que nos vemos na obrigação de recorrer
nos outros Comissariados do Povo.

Terceiro, cumpre punir exemplarmente o camarada Ordzhonikidze (digo isto com grande sentimento,
porque somos amigos e trabalhei com ele no estrangeiro, na emigração) e também terminar de revisar ou
revisar de novo todos os materiais da comissão de Dzerzhinski, com o fim de corrigir o cúmulo de erros e de
juízos parcelares que sem dúvida ali há. A responsabilidade política de toda esta campanha de verdadeiro
nacionalismo russo deve fazer-se recair, é claro, sobre Stalin e Dzerzhinski.

Quarta, cumpre implantar as normas mais severas no pertinente ao emprego do idioma nacional nas
repúblicas de outras nacionalidades que fazem parte da nossa União, e comprovarmos o seu cumprimento com

180
particular cuidado. Sem qualquer dúvida, com o pretexto de unidade do serviço do caminho-de-ferro, com o
pretexto da unidade fiscal, etc., tal como agora é o nosso aparato, escorregará um grande número de abusos de
caráter puramente russo. Para combatermos esses abusos, precisa-se de um especial espírito de inventiva, sem
falarmos já da particular sinceridade de quem se encarregar de fazê-lo. Cumprirá um código detalhado, que
apenas terá qualquer perfeição se redigido por pessoas da nacionalidade em questão e que morem na sua
república. A respeito disto, de maneira nenhuma devemos afirmar-nos de antemão na idéia de que, como
resultado de todo este trabalho, não haja que recuar no seguinte Congresso dos Sovietes, quer dizer, de que não
cumpra manter a união das repúblicas soviéticas apenas no senso militar e diplomático, e em todos os restantes
aspectos restabelecermos a autonomia completa dos distintos Comissariados do Povo.

Deve ter-se presente que o fracionamento dos Comissariados do Povo e a falta de concordância do seu
labor relativamente a Moscou e os outros centros, podem ser paralisados suficientemente pela autoridade do
Partido, se esta for empregue com a necessária discrição e imparcialidade; o dano que o nosso Estado puder
sofrer pela falta de aparatos nacionais unificados com o aparato russo é incalculavelmente, infinitamente menor
do que o dano que representaria não só para nós, quanto para todo o movimento internacional, para os centos
de milhões de seres da Ásia, que deve avançar ao primeiro plano da história num próximo futuro, depois de nós.
Seria um oportunismo imperdoável se em vésperas desta ação do Oriente, e ao princípio do seu despertar,
quebrássemos o nosso prestígio nele embora só fosse com a mais pequena aspereza e injustiça a respeito das
nossas próprias nacionalidades não russas. Uma coisa é a necessidade de se agrupar contra os imperialistas do
Ocidente, que defendem o mundo capitalista. Neste caso não pode haver dúvidas, e nem cumpre dizer que
aprovo incondicionalmente estas medidas. Outra coisa é quando nós mesmos caímos, ainda que seja em
miudezas, em atitudes imperialistas com as nações oprimidas, quebrando destarte por completo toda a nossa
sinceridade de princípios, toda a defesa que, consoante com os princípios, fazemos da luta contra o
imperialismo. E a manhã da história universal será o dia em que despertem de vez o povos oprimidos pelo
imperialismo, que já abriram os olhos, e que comece já a longa e dura batalha final pela sua emancipação.

Lenin
31.12.22
Taquigrafado por M. V.

Notas:
[1N] A Gosplan (Comissão do Plano Geral do Estado) foi o grupo de trabalho responsável pela
planificação e centralização da economia, criada em 1921. (retornar ao texto)
[2N] O Proletariado e campesinato. (retornar ao texto)
[3N] Zinoviev e Kamenev colocaram-se contra a tentativa de insurreição que resultaria na Revolução
de Outubro de 1917 nas instâncias do Partido Bolchevique. (retornar ao texto)
[4N] Até 1917 Trotsky não ingressara nas fileiras do Partido Bolchevique, e conservava profundas
divergências pré-revolucionárias com os mesmos, principalmente quanto a forma de organização do partido
revolucionário. (retornar ao texto)
[5N] Birô Político (ou Politiburo) era o organismo do Partido que tratava de encaminhar as decisões
do CC, em 1922-23 era formado pelo triunvirato Kamenev—Zinoviev—Stálin, Trotsky, Bukhárin e Piatakov.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1923/01/04.htm

181
Sobre a Nossa Revolução
(A Propósito das Notas de N. Sukhánov)

V. I. Lénine

16 e 17 de Janeiro de 1923

I
Folheei nestes dias as notas de Sukhánov sobre a revolução. O que salta sobretudo à vista é o
pedantismo de todos os nossos democratas pequeno-burgueses, bem como de todos os heróis da II
Internacional. Sem falar já de que são extraordinariamente cobardes e de que mesmo os melhores deles se
enchem de reservas quando se trata do menor desvio relativamente ao modelo alemão, sem falar já desta
qualidade de todos os democratas pequeno-burgueses, suficientemente manifestada durante toda a revolução,
salta à vista a sua servil imitação do passado.

Todos eles se dizem marxistas, mas entendem o marxismo duma maneira extremamente pedante. Não
compreenderam de modo nenhum aquilo que é decisivo no marxismo: precisamente a sua dialéctica
revolucionária. Não compreenderam em absoluto nem mesmo as indicações directas de Marx, dizendo que nos
momentos de revolução é necessária a máxima flexibilidade[N333], e nem sequer notaram, por exemplo, as
indicações de Marx na sua correspondência, referente, se bem me recordo, a 1856, na qual expressava a
esperança de que a guerra camponesa na Alemanha, capaz de criar uma situação revolucionária, se unisse ao
movimento operário[N334] — eludem mesmo esta indicação directa, dando voltas em volta dela como o gato
em volta do leite quente.

Em toda a sua conduta revelam-se uns reformistas cobardes que temem afastar-se da burguesia e,
mais ainda, romper com ela, e ao mesmo tempo ocultam a sua cobardia com a fraseologia e a jactância mais
descarada. Mas, mesmo do ponto de vista puramente teórico, salta à vista em todos eles a sua plena
incapacidade de compreender a seguinte ideia do marxismo: viram até agora um caminho determinado de
desenvolvimento do capitalismo e da democracia burguesa na Europa Ocidental. E eis que eles não são capazes
de imaginar que este caminho só pode ser considerado como modelo mutatis mutandis(1*), só com algumas
correcções (absolutamente insignificantes, do ponto de vista do curso geral da história universal).

Primeiro — uma revolução ligada à primeira guerra imperialista mundial. Numa tal revolução deviam
manifestar-se traços novos ou modificados Precisamente em consequência da guerra, porque nunca houve no
mundo tal guerra em tal situação. Vemos que até agora a burguesia dos países mais ricos não pode organizar
relações burguesas «normais» depois dessa guerra, enquanto os nossos reformistas, pequenos burgueses que
se armam em revolucionários, consideravam e consideram como um limite (além disso insuperável) as relações
burguesas normais, compreendendo esta «norma» duma maneira extremamente estereotipada e estreita.

Segundo — é-lhes completamente alheia qualquer ideia de que dentro das leis gerais do
desenvolvimento em toda a história mundial não estão de modo nenhum excluídas, mas, pelo contrário,
pressupõem-se determinadas etapas de desenvolvimento que apresentam peculiaridades, quer na forma quer
na ordem desse desenvolvimento. Nem sequer lhes passa pela cabeça, por exemplo, que a Rússia, situada na
fronteira entre os países civilizados e os países que pela primeira vez são arrastados definitivamente por esta
guerra para o caminho da civilização, os países de todo o Oriente, os países não europeus, que a Rússia podia e
devia, por isso, revelar certas peculiaridades, que naturalmente estão na linha geral do desenvolvimento
mundial, mas que distinguem a sua revolução de todas as revoluções anteriores dos países da Europa Ocidental
e que introduzem algumas inovações parciais ao deslocar-se para os países orientais.

Por exemplo, não pode ser mais estereotipada a argumentação por eles usada, que aprenderam de
memória na época do desenvolvimento da social-democracia da Europa Ocidental, e que consiste no facto de
que nós não estamos maduros para o socialismo, de que não existem no nosso país, segundo a expressão de
vários «doutos» senhores dentre eles, as premissas económicas objectivas para o socialismo. E não passa pela
cabeça de nenhum deles perguntar: não podia um povo que se encontrou numa situação revolucionária como a
que se criou durante a primeira guerra imperialista, não podia ele, sob a influência da sua situação sem saída,
lançar-se numa luta que lhe abrisse pelo menos algumas possibilidades de conquistar para si condições que não
são de todo habituais para o crescimento ulterior da civilização?

182
«A Rússia não atingiu um nível de desenvolvimento das forças produtivas que torne possível o
socialismo. »Todos os heróis da II Internacional, e entre eles, naturalmente, Sukhánov, se comportam como se
tivessem descoberto a pólvora. Ruminam esta tese indiscutível de mil maneiras e parece-lhes que é decisiva
para apreciar a nossa revolução.

Mas que fazer, se uma situação peculiar levou a Rússia, primeiro à guerra imperialista mundial, na qual
intervieram todos os países mais ou menos influentes da Europa Ocidental, e colocou o seu desenvolvimento no
limite das revoluções do Oriente, que estão a começar e em parte já começaram, em condições que nos
permitiram levar à prática precisamente essa aliança da «guerra camponesa» com o movimento operário sobre
as quais escreveu um «marxista» como Marx em 1856 como uma das perspectivas possíveis em relação à
Prússia?

Que fazer se uma situação absolutamente sem saída, decuplicando as forças dos operários e
camponeses, abria perante nós a possibilidade de passar de maneira diferente de todos os outros países da
Europa Ocidental criação das premissas fundamentais da civilização? Alterou-se por isso a linha geral de
desenvolvimento da história universal? Alteraram-se por isso as correlações fundamentais das classes
fundamentais em cada país que se integra e integrou já no curso geral da história mundial?

Se para criar o socialismo é necessário um determinado nível de cultura (ainda que ninguém possa
dizer qual é precisamente esse determinado «nível de cultura», pois ele é diferente em cada um dos Estados da
Europa Ocidental), porque é que não podemos começar primeiro pela conquista, por via revolucionária, das
premissas para esse determinado nível, e já depois, com base no poder operário e camponês e no regime
soviético, pôr-nos em marcha para alcançar os outros povos?

16 de Janeiro de 1923.

II

Para criar o socialismo, dizeis, é necessária civilização. Muito bem. Mas então, porque não havíamos de
criar primeiro no nosso país premissas da civilização como a expulsão dos latifundiários e a expulsão dos
capitalistas russos e, depois, iniciar um movimento para o socialismo? Em que livros lestes que semelhantes
alterações da ordem histórica habitual são inadmissísseis ou impossíveis?

Lembro que Napoleão escreveu: «On s'engage et puis . . . on voit.» Traduzido livremente para russo isto
quer dizer: .«Primeiro lançamo-nos no combate sério e depois logo vemos.» E nós, em Outubro de 1917,
iniciámos primeiro o combate sério e depois logo vimos os pormenores do desenvolvimento (do ponto de vista
da história universal trata-se indubitavelmente de pormenores), tais como a Paz de Brest ou a NEP, etc. E hoje
não há dúvida de que, no fundamental, alcançámos a vitória.

Os nossos Sukhánov, sem falar já daqueles sociaís-democratas que estão mais à direita, nem sonham
sequer que as revoluções em geral não se podem fazer doutra maneira. Os nossos filisteus europeus não
sonham sequer que as futuras revoluções nos países do Oriente, com uma população incomparavelmente mais
numerosa e que se diferenciam muito mais pela diversidade das condições sociais, apresentarão sem dúvida
mais peculiaridades do que a revolução russa.

Nem é preciso dizer que o manual redigido segundo Kautsky foi, na sua época, uma coisa muito útil.
Mas já é tempo de renunciar à ideia de que esse manual tinha previsto todas as formas de desenvolvimento
ulterior da história mundial. Àqueles que pensam desse modo é tempo já de os declarar simplesmente imbecis.

17 de Janeiro de 1923.

Notas de rodapé:
(1*) Com as correspondentes mudanças. (N. Ed.) (retornar ao texto)
Notas de fim de tomo:
[N332] O artigo de Lénine Sobre a Nossa Revolução foi escrito a propósito do terceiro e do quarto
livros de Notas Sobre a Revolução, do menchevique N. Sukhánov. O artigo foi entregue à redacção do Pravda por
N. K. Krúpskaia sem título; o título foi dado pela redacção do jornal. (retornar ao texto)

183
[N333] Lénine refere-se aparentemente à caracterização da Comuna de Paris como «uma forma
política altamente maleável» na obra de K. Marx A Guerra Civil em França e à apreciação feita por Marx da
«flexibilidade dos parisienses» na sua carta a L. Kugelmann de 12 de Abril. In Karl Marx und Friedrich Engels,
Ausgewãhlte Scbriften in zwei Bänden, Bd. I, Berlin, 1960, S. 494, e Bd. II, Berlin, 1960, S. 435/436. (retornar ao
texto)
[N334] Lénine refere-se à seguinte passagem da carta de K. Marx a F. Engels de 16 de Abril de 1856:
«Tudo na Alemanha dependerá da possibilidade de apoiar a revolução proletária por qualquer segunda edição
da guerra camponesa. Nesse caso, tudo correrá maravilhosamente.» In Karl Marx und Friedrich Engels,
Ausgewãhlte Scbriften in zwei Bänden, Bd. II, Berlin, 1960, S. 425/426.

https://www.marxists.org/portugues/lenin/1923/01/17.htm

184
A. ANTONIO GRAMSCI
Notas Sobre a Revolução Russa
António Gramsci
29 de Abril de 1917

Porque é que a Revolução russa é uma revolução proletária?


Pola leitura dos jornais, pola leitura do conjunto de notícias que a censura deixa publicar, não se
compreende muito bem. Sabemos que a revolução foi feita por proletários (obreiros e soldados), sabemos que
existe um comitê de delegados operários que controla o trabalho das entidades administratrivas que foi
necessário manter para solução dos assuntos ordinários. Mas, basta que uma revolução seja feita por
proletários para ser uma revolução proletária? A guerra é feita também por proletários e não por isso se
considera um facto proletário. Para que tal aconteça é necessário, portanto que intervenham outros factores,
factores de ordem espiritual. É preciso que o facto revolucionário demonstre ser, além de fenómeno de poder,
de fenómeno de costumes, um facto moral. Os jornais burgueses têm insistido sobre o fenómeno do poder, têm-
nos dito que o poder da autocracia foi substituído por outra poder, ainda não bem definido e que eles esperam
seja o poder burguês. E imediatamente fizeram o paralelismo: Revolução russa, Revolução francesa, concluindo
que os factos se assemelham. Mas só superficialmente os factos se assemelham, tal como um acto de violência
se assemelha a outro acto de violência e uma destruição se assemelha a outra destruição.
Entretanto, nós estamos convencidos que a Revolução russa é, além dum facto, um acto proletário, que
irá desembocar naturalmente no regime socialista. As poucas notícias realmente concretas, não permitem uma
demonstração exaustiva. Todavia, temos alguns elementos que nos permitem chegar a esta conclusão.
A Revolução russa não conheceu o jacobinismo. A revolução tinha de liquidar a autocracia; não teve de
conquistar a maioria pola violência. O jacobinismo é um fenómeno puramente burguês, que caracteriza a
revolução burguesa da França. A burguesia quando fez a revolução não possuía um programa universal; servia
interesses particularistas, os interesses da sua classe, e servia-os com uma mentalidade fechada e mesquinha, a
dos que tendem a conquistar fins particulares. O facto violento das revoluções burguesas é duplamente
violento: destrói a velha ordem e impõe a ordem nova. A burguesia impõe a sua força e as suas idéias não só à
casta que dominava antes, mas também ao povo que se prepara para dominar. É um regime autoritário que vem
substituir outro regime autoritário.
A Revolução Russa destruiu o autoritarismo e substituiu-o polo sufrágio universal, estendendo-o
também às mulheres. Substituiu o autoritarismo pola liberdade, a Constituição pola voz livre da consciência
universal. Porque é que os revolucionários russos não são jacobinos, isto é, não substituem a ditadura dum só
pola ditadura duma minoria audaciosa e decidida a tudo para fazer triunfar o seu programa? Porque eles têm
um ideal que não poder ser só dum pequeno número, pois têm a certeza de que ao interrogarem todo o
proletariado a resposta não pode ser dúbia: ela está na consciência de todos e transformar-se-á em decisão
irrevogável logo que se possa exprimir num ambiente de liberdade espiritual absoluta, sem que o sufrágio seja
pervertido pola intervenção da polícia e pola ameaça da força ou do exílio. O proletariado industrial está
preparado para a passagem, mesmo culturalmente; o proletariado agrícola, que conhece as formas tradicionais
do comunismo comunal, está também preparado para passar a uma nova forma de sociedade. Os
revolucionários socialistas não podem ser jacobinos. Têm hoje na Rússia a missão que controlar os organismos
burgueses (a Duma, os Zemtsvos) para evitar que actuem jacobinamente e tornem equívoca a resposta do
sufrágio universal e para evitar que o facto violento reverta a favor dos seus interesses.
Os jornais burgueses não deram qualquer importância a este outro facto. Os revolucionários russos
abriram os cárceres não só aos presos políticos, mas também aos condenados por delitos comuns. Numa prisão,
os condenados por delitos comuns, quando lhes comunicaram que estavam livres, responderam que não tinham
o direito de aceitar a liberdade porque tinham de expiar as suas culpas. Em Odessa reuniram-se no pátio da
prisão e voluntariamente juraram que iam ser honestos e viver do seu trabalho. Esta notícia tem mais
importância para os objectivos da revolução do que a expulsão do czar e dos grão-duques. É que o czar foi
também expulso polos burgueses, enquanto para os burgueses estes condenados por delitos comuns foram
sempre os adversários da sua ordem, os pérfidos inimigos das suas riquezas, da sua tranqüilidade. A sua
libertação tem para nós este significado: a revolução criou na Rússia um novo tipo de comportamento. Não só
substituiu o poder polo poder, mas um tipo de comportamento por outro, criou uma nova atmosfera moral,
instaurou além da liberdade do corpo a liberdade de espírito. Os revolucionários não tiveram medo de pôr em
circulação homens que a justiça burguesa marcara com o selo infame de criminosos, que a ciência burguesa
catalogara nos vários tipos de criminosos e delinqüentes. Só numa apaixonada atmosfera social, quando os
costumes as atitudes mudam, pode acontecer semelhante cousa. A liberdade faz livres aos homens, alarga o
horizonte moral, faz do pior malfeitor em regime autoritário um mártir do dever, um herói da honestidade.
185
Dizem num jornal que numa prisão os malfeitores recusaram a liberdade e elegeram entre eles os seus guardas.
Porque é que nunca fizeram isto antes? Porque é que as prisões estavam rodeadas de grandes muros e as
janelas com grades? Os que foram libertá-los deviam ser muito diferentes dos juízes dos tribunais e dos
carcereiros, e devem ter ouvido aqueles malfeitores palavras muito diferentes das habituais, para que tal
transformação se processasse nas suas consciências, para que se tornassem tão livres, a ponto de poderem
proferir a segregação à liberdade e impor-se a si próprios, voluntariamente, uma expiação. Devem ter sentido
que o mundo mudara, que também eles, os recusados da sociedade, eram qualquer cousa, que também eles, os
segregados, podiam escolher.
Este é o fenômeno mais grandioso jamais produzido pola actividade humana. O homem malfeitor
comum transformou-se na revolução russa, no homem de Emmanuel Kant, teorizador da moral absoluta, tinha
anunciado, o homem que diz: a imensidade do céu para além de mim, o imperativo da minha consciência dentro
de mim. É a liberdade dos espíritos, a instauração duma nova consciência moral que estas pequenas notícias
nos revelam. É o advento duma ordem nova, que coincide com tudo o que os nossos mestres nos tinham
ensinado. E mais uma vez a luz vem do Oriente e irradia sobre o velho mundo ocidental, o qual fica assombrado
e não sabe opor-lhe senão as banais e tolas anedotas dos seus escribas venais.

186
A Revolução Contra o Capital(1*)
António Gramsci
24 de Abril de 1917

A revolução dos bolcheviques inseriu-se definitivamente na revolução geral do povo russo. Os


maximalistas(2*) que até há dous meses foram o fermento necessário para que os acontecimentos não se
detiveram, para que a marcha em direcção ao futuro não terminasse, dando lugar a uma forma definitiva de
organização — que seria uma organização burguesa —, apoderaram-se do poder, estabeleceram a sua ditadura
e estão a elaborar as formas socialistas em que a revolução deverá enquadrar-se para continuar a desenvolver-
se harmoniosamente, sem excesso de grandes choques, partindo das grandes conquistas já realizadas.
A revolução dos bolcheviques é feita mais de ideologias do que de factos. (Por isso, no fundo, importa-
nos pouco saber mais do que já sabemos). É a revolução contra O Capital de Karl Marx. O Capital de Marx era, na
Rússia, mais o livro dos burgueses que dos proletários. Era a demonstração crítica da necessidade inevitável
que na Rússia se formasse uma burguesia, se iniciasse uma era capitalista, se instaurasse uma civilização de tipo
ocidental, antes que o proletariado pudesse sequer pensar na sua insurreição, nas suas reivindicações de classe,
na sua revolução. Os factos ultrapassaram as ideologias. Os factos rebentaram os esquemas críticos de acordo
com os quais a história da Rússia devia desenrolar-se segundo os cânones do materialismo histórico. Os
bolcheviques renegam Karl Marx quando afirmam, com o testemunho da acção concreta, das conquistas
alcançadas, que os cânones do materialismo histórico não são tão férreos como se poderia pensar e se pensou.
No entanto há mesmo uma fatalidade nestes acontecimentos e se os bolcheviques renegam algumas
afirmações de O Capital, não renegam o seu pensamento imanente, vivificador. Eles não são marxistas, é tudo;
não retiraram das obras do Mestre uma doutrina exterior feita de afirmações dogmáticas e indiscutíveis. Vivem
o pensamento marxista e que não morre, a continuação do pensamento idealista italiano e alemão e que se
contaminou em Marx de incrustações positivistas e naturalistas. E este pensamento coloca sempre como factor
máximo da história, não os factos económicos, inertes, mas o homem, a sociedade dos homens, dos homens que
se aproximam uns dos outros, se entendem entre si, desenvolvem através destes contactos (civilização) uma
vontade social, colectiva, e compreendem os factos económicos, julgam-nos e adequam-nos à sua vontade, até
ela se transformar no motor da economia, na plasmadora da realidade objectiva, que vive, se move e adquire
carácter de matéria telúrica em ebulição que pode ser canalizada para onde a vontade quiser e como a vontade
quiser.
Marx previu o previsível. Não podia prever a guerra européia, ou melhor, não podia prever que esta
guerra duraria o tempo que durou e os efeitos que esta guerra teve. Não podia prever que esta guerra, em três
anos de sofrimento e miséria indescritíveis, suscitaria na Rússia a vontade colectiva popular que suscitou. Uma
vontade deste tipo precisanormalmente, para se formar, dum longo processo de infiltrações capilares, duma
longa série de experiências de classe. Os homens são preguiçosos, precisam de se organizar, primeiro,
exteriormente, em corporações, em ligas; depois internamente, no pensamento, nas vontades (...)(3*) duma
incessante continuidade e multiplicidade de estímulos exteriores. Eis por que, normalmente, os cânones da
crítica histórica do marxismo captam a realidade, colhem-na e tornam-na evidente,
compreensível. Normalmente as duas classes do mundo capitalista criam a história através da luita de classes,
cada vez mais intensa. O proletariado sente a sua miséria actual, está continuamente em estado de dificuldade e
pressiona a burguesia para melhorar as suas condições de existência. Luita, obriga a burguesia a melhorar a
técnica da produção, a fazê-la mais útil para que seja possível a satisfação das suas necessidades mais urgentes.
É uma apressada corrida para o melhor, que acelera o ritmo de produção, que incrementa continuamente a
soma dos bens que servirão à colectividade. E nesta corrida caem muitos, tornando mais compulsório o desejo
dos que ficaram. A massa está sempre em ebulição, e do caos-povo surge sempre mais ordem no pensamento,
torna-se mais cada vez consciente da sua própria força, da sua capacidade para assumir a responsabilidade
social, para ser o árbitro do seu próprio destino.
Isto normalmente. Quando os factos repetem com certo ritmo. Quando a história se desenvolve por
momentos cada vez mais complexos e ricos de significado e valor, mas em conclusão, semelhantes. Mas, na
Rússia a guerra serviu para despertar as vontades. Estas, através dos sofrimentos acumulados ao longo de três
anos, unificaram-se com muita rapidez. A carestia estava iminente, a fame, a morte de fame podia tocar a todos,
esmagando dum momento para o outro milhões de homens. As vontades unificaram-se, mecanicamente
primeiro, activamente, espiritualmente, depois da primeira revolução.(4*)
As prédicas socialistas puseram o povo russo em contacto com as experiências dos outros proletários.
A prédica socialista faz reviver num instante, dramaticamente, a história do proletariado, a sua luita contra o
capitalismo, a prolongada série de esforços que tem de fazer para se emancipar idealmente dos vínculos do
servilismo que o tornavam abjecto, para ser uma consciência nova, testemunho actual do mundo futuro. A

187
prédica socialista criou a vontade social do povo russo. Porque deveria esperar esse povo que a história de
Inglaterra se repetisse na Rússia, que na Rússia se formasse uma burguesia, que surgisse a luita de classes para
que nascesse a consciência de classe e se desse finalmente a catástrofe do mundo capitalista? O povo russo
passou por estas magníficas experiências com o pensamento, embora polo pensamento duma minoria.
Ultrapassou estas experiências. Serve-se delas para se afirmar, como se servirá das experiências capitalistas
ocidentais para se pôr rapidamente à altura da produção do mundo ocidental. A América do Norte é, sob o
ponto de vista capitalista, mais evoluída do que a Inglaterra, porque na América do Norte os anglo-saxões
começaram imediatamente no estádio a que a Inglaterra chegara depois duma longa evolução. O proletariado
russo, educado socialisticamente começará a sua história no estádio máximo de produção a que chegou a
Inglaterra de hoje, porque tendo de começar, fá-lo-á a partir da perfeição já atingida noutros lados, e dessa
perfeição receberá o impulso para atingir a maturidade económica que, segundo Marx, é condição necessária do
colectivismo. Foram revolucionários que criaram as condições necessárias para a realização completa e
plena do seu ideal. Criaram-nas em menos tempo de que o teria feito o capitalismo.
***
As críticas que os socialistas têm feito e farão ao sistema burguês, para pôr em evidência as
imperfeições, o esbanjamento de riquezas, serviram aos revolucionários para fazer melhor, para evitar esse
esbanjamento, para não caírem naquelas deficiências. Será em princípio o colectivismo da miséria, do
sofrimento. Mas as mesmas condições de miséria e de sofrimento seriam herdadas dum regime burguês.
O capitalismo não poderia fazer jamais imediatamente na Rússia mais do que poderá fazer o
colectivismo. Faria hoje muito menos, porque teria imediatamente contra ele um proletariado descontente,
frenético, incapaz de suportar por mais tempo e para outros as dores e as amarguras que o mal-estar
económico traz consigo. Mesmo dum ponto de vista absoluto, humano, o socialismo imediato tem na Rússia a
sua justificação. Os sofrimentos que virão após a paz só poderão ser suportados se os proletários sentirem que
está na sua vontade e na sua tenacidade polo trabalho o meio de o suprimir no menor espaço de tempo possível.
Tem-se a impressão que os maximalistas são neste momento a expressão
espontânea, biologicamente necessária, para que a humanidade russa não caia no abismo, para que, entregando-
se completamente ao trabalho gigantesco, autónomo, da sua própria regeneração, possa ser menos solicitada
polos estímulos do lobo esfameado de modo a que a Rússia não venha a ser uma enorme carnificina de feras
que se devoram umas às outras.

(1*) Assinado António Gramsci, Avanti, edição milanesa, 24 de Novembro de 1917; foi reproduzido por
Il Grido del Popolo em 5 de Novembro de 1918, com a nota: A censura torinesa já uma vez mutilou
completamente este artigo em Il Grido. Reproduzimo-lo agora do Avanti, passando polo crivo das censuras de
Milão e Roma. (retornar ao texto)
(2*) Desta forma eram chamados, na altura, os comunistas. (retornar ao texto)
(3*) Lacuna no texto. (retornar ao texto)
(4*) A revolução de Fevereiro (Março) de 1917.

188
Os Maximalistas Russos(1*)
António Gramsci
28 de Junho de 1917

Os maximalistas russos são a própria Revolução Russa.


Kerenski, Zeretelli e Cernov são o estancamento da revolução, são os realizadores dum primeiro
equilíbrio social, a resultante de forças em que os moderados têm muita importância ainda. Os maximalistas são
a continuidade da revolução, são o ritmo da revolução: por isso são a própria revolução.
Eles encarnam a idéia-límite do socialismo: querem o socialismo total. E têm esta missão: impedir que
se chegue a um compromisso definitivo entre o passado milenário e a idéia, isto é, ser o símbolo vivo da última
meta a alcançar; impedir que o problema imediato do hoje a resolver se dilate até ocupar toda a consciência e se
transforme na única preocupação, em frenesi espasmódico que levanta grades intrasponíveis a ulteriores
possibilidades de realização.
Este é o maior perigo de todas as revoluções: formar-se a convicção que um momento determinado da
nova vida é definitiva, que é preciso parar para olhar para trás, para consolidar o já feito, para desfrutar
finalmente do êxito alcançado. Para descansar. Uma crise revolucionária consume rapidamente os homens.
Cansa rapidamente. E compreende-se bem este estado de espírito. Mas a Rússia teve esta sorte: ignorou o
jacobinismo. Por isso foi possível a propaganda fulminante de todas as idéias, e por isso se formaram
numerosos grupos políticos, cada qual o mais ousado e sem querer deter-se, cada qual acreditando que o
momento definitivo a atingir está mais além, ainda está distante. Os maximalistas, os extremistas, são o último
elo lógico deste devir revolucionário. Por isso se continua na luita, se avança porque sempre há polo menos um
grupo que quer avançar, que trabalha na massa, que desperta novas energias proletárias e organiza novas
forças sociais que ameaçam os cansados, que os controlam e se mostram capazes de substituí-los, de eliminá-los
se não se renovarem, se não se reanimarem para avançar. Por isso a revolução não para, não fecha o seu ciclo.
Devoras os seus homens, substitui um grupo por outro mais audacioso e devido a esta instabilidade, a esta
perfeição nunca alcançada é que é verdadeira e tão-somente revolução.
Os maximalistas são os inimigos dos poltrões na Rússia. São o aguilhão dos preguiçosos: têm
desmantelado até agora todas as tentativas para pôr diques à torrente revolucionária, impediram a formação de
pântanos estagnantes, de mortes por desgaste. Por isso são odiados polas burguesias ocidentais, por isso os
jornais da Itália, da França e da Inglaterra os difamam, tentam desacreditá-los, sufocá-los sob um a alude de
calúnias. As burguesias ocidentais aguardavam que o enorme esforço de pensamento e de acção que foi o preço
da vinda à luz da nova vida sucedesse uma crise de preguiça mental, um recuo da dinâmica actividade dos
revolucionários que fosse o começo dum assentamento definitivo do novo estado de cousas.
Mas na Rússia não há jacobinos. O grupo dos socialistas moderados, que teve o poder nas mãos, não
destruiu, não tentou sufocar em sangue os vanguardistas. Lenine, na revolução socialista não teve o destino
de Babeuf. Teve possibilidades de transformar o seu pensamento em força actuante na história. Suscitou
energias que já não morrerão. Ele e os seus companheiros bolcheviques estão persuadidos que é possível
realizar o socialismo em qualquer momento. Estão alimentados polo pensamento marxista. São revolucionários,
não evolucionistas. E o pensamento revolucionário nega o tempo como factor de progresso. Nega que todas as
experiências intermédias entre a concepção do socialismo e a sua realização devam ter uma comprovação
absoluta e integral no tempo e no espaço. Chega que estas experiências actuem no pensamento para poderem
ser superadas e ir-se mais além. Mas é preciso despertar as consciências, conquistá-las. E Lenine com os seus
companheiros tem despertado as consciências e têm-nas conquistado. A sua persuasão não se ficou pola
ousadia do pensamento, encarnou-se nos indivíduos, em muitos indivíduos, originou proveitosas obras. Criou
esse grupo que era necessário para se opor aos compromissos definitivos, a tudo o que se pudesse tornar
definitivo. E a revolução continua. Toda a vida tornou-se verdadeiramente revolucionária; é uma actividade
sempre actual, é um contínuo intercâmbio, uma escavação contínua no bloco amorfo do povo. Novas energias
foram criadas, novas idéias-força espalhadas. Assim, os homens, todos os homens são finalmente os artífices do
seu destino. É impossível a formação de minorias despóticas. O controle é sempre vivo e eficaz. Agora há um
fermento já que decompõe e recompõe sem parar os agregados sociais, e que impede à vida se acomodar ao
êxito momentâneo.
Lenine e os seus companheiros mais conhecidos poder ser arrastados polo desencadear dos furacões
que eles próprios originaram, mas não desaparecerão todos os seus seguidores, são já numerosos demais. O
incêndio revolucionário propaga-se, queima corações e cérebros novos, faz brasas ardentes de luz nova, de
novas chamas, devoradoras de preguiças e de cansaços. A revolução continua, até a sua completa realização.
Ainda está longe o tempo em que será possível um repouso relativo. E a vida é sempre revolução.

189
A Utopia Russa(1*)
António Gramsci
25 de Julho de 1918

As Constituições política dependem necessariamente da estrutura económica, das formas de produção


e de troca. Com simplesmente proclamar este fórmula muita gente acredita ter resolvido todos os problemas
políticos e históricos e ficar apta a distribuir lições à direita e à esquerda e a poder julgar os acontecimentos e
concluir, por exemplo:Lenine é um utopista, os pobres proletários russos vivem uma profunda utopia e espera-
os implacável um terrível despertar.
A verdade é que não existem duas Constituições políticas iguais entre si, tal como não existem duas
estruturas económicas iguais. A verdade é que a fórmula não é, de maneira nenhuma, a seca expressão duma lei
natural que salte aos olhos e a consequência (Constituição política), as relações não são nada simples e directas:
a história dum povo não é documentada apenas polos factos económicos. O deslindar das causas e os efeitos é
complexo e embrulhado, e para destrinçá-lo só serve o estudo aprofundado e generalizado de todas as
actividades espirituais e práticas, um este estudo só é possível depois dos acontecimentos se situarem numa
linha de continuidade, isto é, muito, mas muito tempo depois dos factos terem acontecido. O estudioso pode
afirmar com segurança que determinada Constituição política só sairá vitoriosa (não durará sempre), se aderir
indissoluvelmente e intrinsecamente a uma determinada estrutura económica, mas a sua afirmação apenas tem
o valor de indicação genérica; enquanto os factos estão a acontecer como poderá ela saber de que maneira
precisa se vai estabelecer esta dependência? As incógnitas são mais numerosas do que os dados certos e
controláveis, e qualquer destas incógnitas pode destruir uma dedução aventurada. A história não é um cálculo
matemático, não tem sistema métrico decimal, nem uma numeração progressiva de quantidades iguais que
permita as quatro operações, as equações e a extracção de raízes: a quantidade (estrutura económica)
transforma-se em qualidade na medida em que é instrumento de acção nas mãos dos homens, dos homens que
não valem só polo seu peso, pola sua estatura, pola energia mecánica que podem desenvolver os músculos e os
nervos, mas valem essencialmente enquanto são espírito, enquanto sofrem, compreendem, desfrutam, querem
ou rejeitam. Numa revolução proletária a incógnita “humanidade” é mais obscura do que em qualquer outro
acontecimento: a espiritualidade difusa do proletariado russo, como dos outros proletariados em geral, nunca
foi estudada e quiçá seja impossível estudá-la. O sucesso ou insucesso da revolução poderá dar-nos os meios
fiáveis para considerar a sua a capacidade para criar história, mas por ora não há nada a fazer se não esperar.
Quem não espera e quer fazer imediatamente um juízo definitivo, tem, na realidade, outros propósitos:
propósitos políticos imediatos a conseguir dos homens a quem se dirige a sua propaganda. Afirmar
que Lenine é um utopista não é um facto cultural, não é um juízo histórico; é um acto político imediato. Afirmar
secamente que as Constituições políticas, etc., etc., não é uma posição doutrina, é uma tentativa para criar uma
certa mentalidade para que a acção se dirija dum rumo e não de outro.
Nenhum acto deixa de ter resultados na vida, e acreditar numa teoria em vez de acreditar noutra tem
os seus reflexos particulares sobre a acção; até o erro deixa pegadas e se divulgado e aceite pode retardar (mas
não impedir) a consecução dum fim.
Esta é uma proba de que não é a estrutura económica que determina directamente a acção política,
mas a interpretação que se faz dela e das chamadas leis que governam a sua evolução. Estas leis não têm nada
de comum com as leis naturais, embora estas também não sejam dados objectivos, mas tão-somente construção
do nosso pensamento, esquemas úteis na prática para a comodidade do estudo e do ensino.
Os acontecimentos não dependem do arbítrio dum indivíduo, nem sequer do arbítrio dum grupo,
ainda que numeroso, dependem das vontades de muitos, as quais se revelam por fazer ou não fazer
determinados actos e nas atitudes espirituais correspondentes, e dependem da consciência que uma minoria
tem destas vontades e da maior ou menor sabedoria de sabê-las dirigir mais ou menos para um fim comum
depois de tê-las enquadrado nos poderes do Estado.
Porque é que os indivíduos, na sua maioria, realizam apenas determinados actos? Porque não têm
outro fim social senão a conservação da sua própria integridade fisiológica e moral; por isso se adaptam às
circunstâncias, repetem mecanicamente alguns gestos, os quais, por experiência ou pola educação recebida
(resultado da experiência alheia), demonstraram a sua idoneidade para alcançar o fim desejado: poder viver.
Esta semelhança na acção da maioria engendra uma semelhança de efeitos, dá à actividade económica uma
determinada estrutura: nasce o conceito de lei. Só a persecução dum fim maior corrói esta adaptação ao
ambiente, pois, se o objectivo humano não é já o do puro viver, mas o viver qualificado, fazem-se esforços
maiores, e em conseqüência da difusão do objectivo humano superior consegue-se transformar o ambiente,
instauram-se novas hierarquias, diferentes das existentes, para regular as relações entre os indivíduos e o
Estado, tendentes a substituir-se a estas para a generalizada realização do objectivo humano superior.

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Quem coloca estas pseudoleis como qualquer cousa de absoluto, de alheio às vontades individuais, e
não como uma adaptação psicológica ao ambiente, devido à debilidade dos indivíduos (ao facto de não estarem
organizados e, portanto, à incerteza quanto ao futuro), não pode conceber que a psicologia poda mudar, que a
fraqueza se poda transformar em força. E, no entanto, isso acontece. E a lei, a pseudolei quebra-se. Os
indivíduos saem da sua solidão e associam-se. Mas como é que decorre este processo associativo? Até não é
possível concebê-lo a não ser ao nível da lei absoluta, ao nível da normalidade, e quando – pola lentidão de
entendimento ou polo preconceito – a lei não salta imediatamente aos olhos, julga-se e diz-se: utopia, utopistas.
Lenine é, portanto, um utopista, o proletariado russo, desde o primeiro dia da revolução bolchevique
até hoje, vive em plena utopia e espera-o, implacável, um terrível despertar.
Se aplicarem à história russa esquemas abstractos, genéricos, construídos para poder seguir os
capítulos do desenvolvimento normal da actividade económica e política do mundo ocidental, a ilação só pode
ser esta. Mas qualquer fenómeno histórico é “individualizado”; o desenvolvimento é governado polo ritmo da
liberdade; a investigação não deve ser de necessidade genérica, mas de necessidade particular. O processo de
causalidade deve ser estudado intrinsecamente aos acontecimentos russos, não de um ponto de vista genérico e
abstracto.
Nos acontecimentos da Rússia existe indubitavelmente a relação de necessidade, uma relação de
necessidade capitalista; a guerra foi a condição económica, o sistema de vida prática que determinou o novo
Estado, que tornou essencialmente necessária a ditadura do proletariado: a guerra que a Rússia atrasada teve de
travar nas mesmas formas que os Estados capitalistas mais adiantados.
Na Rússia patriarcal não podia haver a concentração de seres humanos que existem num país
industrializado, e que são condição para que os proletários se conheçam uns aos outros, se organizem e
adquiram consciência da sua força de classe a pôr ao serviço dum objectivo humano universal. Um país com
uma agricultura extensiva isola os indivíduos, torna impossível uma consciência igual e generalizada, torna
impossível a unidade social proletária, a consciência concreta de classe que dá a medida da sua força e a
vontade de instaurar um regime permanentemente legitimado por essa força.
A guerra é a máxima concentração da actividade económica nas mãos de poucos (os dirigentes do
Estado); a que corresponde a máxima concentração de indivíduos nos quartéis e nas trincheiras. A Rússia em
guerra era realmente o país da utopia: com homens do tempo das invasões bárbaras o Estado julgou poder
fazer uma guerra de organização, técnica, de resistência espiritual, como só seria capaz uma humanidade
temperada pola fábrica e pola máquina. A guerra era a utopia e a Rússia czarista patriarcal desintegrou-se sob a
altíssima tensão do esforço que impôs a si própria e que lhe impôs o belicoso inimigo. Mas as condições
provocadas polo imenso poder do Estado despótico, produziram as conseqüências necessárias: as grandes
massas de indivíduos socialmente isolados, juntos, reunidos num pequeno espaço geográfico, desenvolveram
sentimentos novos, desenvolveram uma inaudita solidariedade humana. Quanto mais débeis se sentiam antes,
no isolamento, e se curvavam ao despotismo, tanto maior foi a revelação da força colectiva existente, tanto mais
prepotente e tenaz o desejo de conservá-la e de construir sobre ela a sociedade nova.
A disciplina despótica liquefez-se e deu entrada a um período de caos. Os homens procuravam
organizar-se, mas como? E como conservar a unidade humana criada no sofrimento?
O filisteu avança e responde: a burguesia devia restabelecer a ordem no caos, porque assim sucedeu
sempre, porque à economia patriarcal e feudal sucede sempre a burguesia e a Constituição política burguesa. O
filisteu não vê salvação fora dos esquemas preestabelecidos; concebe a história apenas como um organismo
natural que atravessa momentos fixos e previsíveis de desenvolvimento. Se semeias uma bolota, sabes que não
pode nascer outra cousa senão um rebento de carvalho, que cresce lentamente e só passados alguns anos dá
frutos. Mas a história não é um carvalho e os homens não são bolotas.
Onde estava na Rússia a burguesia capaz de assumir esta tarefa? E se o seu domínio é uma lei natural,
porque é que a lei não funcionou?
A burguesia não apareceu; os poucos burgueses que procuraram impor-se foram abatidos. E como
vencer, como impor-se se eram poucos, incapazes e fracos? Com que santo crisma deviam estar ungidos os
infelizes para ainda terem que vencer ao serem derrotados? O materialismo histórico será apenas uma
reencarnação do legitismo, do direito divino?
Quem considera Lenine utopista, quem afirma que a tentativa da ditadura do proletariado na Rússia é
uma tentativa utópica, não pode ser um socialista consciente enquanto não construiu a sua cultura estudando a
doutrina do materialismo histórico: é um católico, afundado no Silabo. Ele é o único e autêntico utopista.
É que a utopia consiste em não ser capaz de conceber a história como desenvolvimento livre, em ver o
futuro como sólido já traçado, em acreditar em planos preestabelecidos. A utopia é o filisteísmo, tal como foi
escarnecido por Henrique Heine: os reformistas são os filisteus e os utopistas do socialismo, como os
proteccionistas e os nacionalistas são os filisteus e os utopistas da burguesia capitalista. Henrique von
Treitschke é o expoente máximo do filisteísmo alemão (os estatolatras alemães são os seus filhos espirituais),

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comoAugusto Comte e Hipólito Taine representam o filisteísmo francês e Vicenzo Goberti o italiano. São aqueles
que predicam as missões históricas nacionais ou acreditam nas vocações individuais; são todos aqueles que
hipotecam o futuro e pensam aprisioná-lo nos seus esquemas preestabelecidos, que não são quem de conceber
a divina liberdade e laiam continuamente o passado porque os acontecimentos seguiram um mau curso.
Não concebem a história como desenvolvimento livre — de energias livres, que nascem e se integram
livremente — diferente da evolução natural, tal como os homens e as associações humanas são diferentes das
moléculas e dos agregados de moléculas. Não aprendem que a liberdade é a foca imanente da história, que
rebenta todo esquema preestabelecido. Os filisteus do socialismo reduziram a doutrina socialista a um esfregão
do pensamente, emporcalharam-na e enfurecem-se contra quem, na sua opinião, não a respeita.
Na Rússia a livre afirmação das energias individuais e associadas esmagou os obstáculos das palavras
e dos planos preestabelecidos. A burguesia procurou impor o seu domínio e falhou. O proletariado assumiu a
direcção da vida política e económica e realiza a sua ordem. A sua ordem, não o socialismo, porque o socialismo
não se impõe num fiatmágico. O socialismo é um devir, um desenrolar de momentos sociais cada vez mais ricos
de valores colectivos. O proletariado constrói a sua ordem criando instituições políticas que garantem a
liberdade deste desenvolvimento, que assegurem a permanência do seu poder.
A ditadura é a instituição fundamente que garante a liberdade, que impede os golpes-de-mão das
minorias facciosas. É garantia de liberdade porque não é um método a perpetuar, mas permite criar e
consolidar os organismos permanentes em que a ditadura se há-de dissolver depois de ter cumprido a sua
missão.
Após a revolução a Rússia não era livre, porque não existiam as garantias da liberdade, porque a
liberdade não estava organizada ainda.
O problema estava em levantar uma hierarquia, mas que fosse aberta, que não se pudesse cristalizar
em ordem de casta ou de classe.
Da massa e do número devia-se chegar ao uno, de modo a haver uma unidade social, que a autoridade
ser unicamente uma autoridade espiritual.
Os núcleos vivos dessa hierarquia são os Sovietes e os partidos populares. Os Sovietes são a
organização primordial a integrar e desenvolver, e os bolcheviques são o partido do governo porque sustentam
que os poderes do Estado devem depender dos Sovietes e ser controlados por eles.
O caos russo organiza-se em torno destes elementos de ordem: começa a ordem nova. Constitui-se
uma hierarquia: da massa organizada e sofredora passa-se aos obreiros e camponeses organizados, aos
Sovietes, ao partido bolchevique e a um homem: Lenine. É a gradação hierárquica do prestígio e da confiança,
que se formou espontaneamente e que se mantém por livre eleição.
Onde está a utopia nesta espontaneidade? Utopia é a autoridade, não a espontaneidade, e é utopia
quando se transforma em carreirismo, quando se transforma em casta, e se presume eterna: a liberdade não é
utopia porque é a aspiração primordial, porque toda a história dos homens é luita e trabalho para criar
instituições sociais que garantam o máximo de liberdade.
Uma vez formada, essa hierarquia desenvolve a sua própria lógica. Os Sovietes e o partido bolchevique
não são organismos fechados: integram-se continuamente. Eis o domínio da liberdade, eis as garantias da
liberdade. Não são castas, são organismos em desenvolvimento constante. Representam a progressão da
consciência, representam a capacidade de organização da sociedade russa.
Todos os trabalhadores podem fazer parte dos Sovietes, todos os trabalhadores podem influir para
modificá-los e torná-los mais expressivos das suas vontades e dos seus desejos. A vida política russa orienta-se
de maneira a coincidir com a vida moral, com o espírito universal da humanidade russa. Há uma contínua troca
entre essas fases hierárquicas: um indivíduo rude educa-se na discussão para a eleição do seu representante no
Soviete, e ele próprio pode ser esse representante; ele controla esses organismos porque os tem sob a sua
observação, a beira dele num mesmo território. Adquire assim o sentido da responsabilidade social, torna-se
cidadão activo ao decidir os destinos do seu país. E o poder e a consciência estendem-se através desta
hierarquia de um a muitos, e a sociedade é como nunca foi na história.
Este é o ímpeto vital da nova história russa. Que há nele de utópico? Onde está o plano preestabelecido
que se quer realizar contra as condições da economia e da política? A revolução russa é o domínio da liberdade:
a organização funda-se espontaneamente, não polo arbítrio dum “herói” que se impõe pola violência. É uma
elevação humana contínua e sistemática, que segue uma hierarquia, que cria os organismos necessários da nova
vida social.
Mas então, não é socialismo?... Não, não é socialismo no estúpido sentido que os filisteus construtores
de projectos mastodónticos dão à palavra; é a sociedade humana que se desenvolve sob o controle do
proletariado. Quando ele estiver organizado na sua maioria, a vida social será mais rica de conteúdo socialista
do que é agora, e o processo de socialização intensificar-se-á e aperfeiçoar-se-á continuamente. Porque o

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socialismo não se instaura em data fixa, mas é um devir contínuo, um desenvolvimento infinito em regime de
liberdade organizada e controlada pola maioria dos cidadãos, isto é, polo proletariado.

Notas:
(1*) Assinado A. G., Avanti, edição piemontesa, 25 de Julho de 1918. O artigo, com o título A
utopia russa, foi reproduzido em Il Grido del Popolo em 27 de Julho, precedido das seguintes linhas: A censura
turinesa sabotou este artigo no número precedente de Il Grido, reduzindo-o a umas poucas linhas sem fio.
Reproduzimo-lo agora integramente do Avanti, com o consentimento da censura milanesa e romana a fim de os
leitores possam julgar os critérios (duas linhas censuradas) que regulamentam a actividade jornalística de Turim,
e porque o artigo acha-se relacionado com os outros sobre a revolução russa postos em Il Grido.

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