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novas direcões

introdução à
economia
"A economia politica é uma ciência singular.
política
Dificuldades e desacordos surgem logo de início
com esta pergunta elementar: qual é precisamente,
o objeto desta ciência? O operário comum, com
uma vaga ideia sobre o que a economia política
Rosa Luxemburgo
ensina, atribuirá a sua incerteza à insuficiência da
sua própria cultura geral. Contudo, neste domínio,
partilha de certa maneira o seu infortúnio com
muitos sábios e intelectuais que escrevem obras
volumosas e que dão cursos de economia política
nas universidades. No entanto, por mais incrível
que possa parecer, é um fato que a maior parte
dos especialistas em economia política apenas tem
noções confusas sobre o verdadeiro objeto do seu
saber."

Rosa Luxemburgo Martins Fontes


Rosa Luxemburgo
INTRODUÇÃO À
ECONOMIA POLÍTICA

PREFÁCIO DE
ERNEST MANDEL

,/fr „ jQútatia
1
/jKarfínsJmfps Bifvrnj&àa.
Título original
I INI Hl I l K l I N í i IN DIE NATIONALOEKONOMIE
ERSTES KAPITEL

ÍNDICE

Nota do Editor . . ...........


9

Tradução realizada sobre as versões francesa de Êditions Prefácio ..................................... 11


Anthropos, Paris, e inglesa de The Merlin Press, Londres Capítulo I
O que é a Economia Polítt( I ....... 35
Tradução: Carlos Leite
Capítulo II
A Sociedade Comunista Primitiva 121
Capítulo III
A Dissolução da Socicdiulc ('oinmiislii Primitiva 195
Capítulo IV
A Produção Mercantil .......................................... 253
Capítulo V
O Trabalho Assalariado ......................................... 295
Capítulo VI
As Tendências da Economia Capitalista ................ 341

Direitos adquiridos para o Brasil por


LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA.
Rua Conselheiro Ramalho, 340 — São Paulo
NOTA DO KiniOR

Em Novembro de 1906, O Partido Social Democra


ta Alemão inaugurou em Berlim wna i tcola Central para
a formação de quadros e militantes Ai ensinaram alguns
destacados teóricos marxistas da êp Mehring, lld-
ferding, Pannekoek e OUtrOí 4 pwttl dê Outubro le 1907,
Rosa Luxemburgo foi encarregada de ensinar economia
política e história económica e mais tarde, em 1911, também
historia do wciullsmo

A partir de 1908, R, i uxemburgo alimentou <> pro


jeto de publicar as suas conferências da Escola (durai do
Partido. Porém, a elaboração da tUQ principal obra, A
Acumulação do Capital t " tua Qtlva participação na
luta política impediram na </<• reall projeto. Só
durante o período da sua prisão tm Wronk em 1916--1917,
Rosa Luxemburgo dispo; forçosamente de tempo
para compilar as suas notas ,!<■ aula .• dai forma aos ma-
nuscritos da Introdução à Economli Política No entanto,
nunca chegou a terminar a MUI obia: no termo da
"Comuna de Berlim" foi presa e assassinada juntamente com
Karl Liebknecht. A sua casa foi saqueada e alguns dos seus
manuscritos perderam te assim definitivamente. Uma parte
apenas — talvez fl """s importante — do seu trabalho para a
Introdução ;i Economia Política foi recuperada. Paul Levi,
legatário dos manuscritos de Rosa, publicou em 1925 a parte
recuperada desta obra.

9
Através de uma caria ao seu editor, datada de 28 ,/. lullio
de 1916, conhecemos o plano de conjunto da obra, Estavam
previstos dez capítulos: 1. O que é a teonomia política? 2. O
trabalho social. 3. Elementos da história económica: a
sociedade comunista primitiva. ■I. Idem: o sistema económico
feudal. 5. Idem: a cidade medieval e as corporações de ofícios.
6. A produção mercantil. 7. O trabalho assalariado. 8. O lucro P R E F Á C I O
capitalista. 9. A crise. 10. As tendências da evolução capitalista.
Entre os manuscritos recuperados só foram encontrados os
capítulos 1, 3, 6, 7 e 10, os quais constituem o corpo da obra A Introdução à Economia Política de Rosa Luxemburgo é fruto
publicada por P. Levi. Pela sua incontestável importância direto de sua atividade de professora na Escola Central do partido
teórica e didática aqui são trazidos ao público em língua social-democrata, em Berlim. Aberta em 15 de novembro de 1906,
portuguesa. esta escola, que recebeu cerca de cinquenta alunos por semestre,
passou a contar com Rosa Luxemburgo entre seus professores desde
1.° de outubro de 1907. Ela aí substituiu Hilferding e Pannekoek, aos
quais a polícia prussiana proibira todo ensino político; seus cursos
tratavam de economia política e de história económica. A partir de
1911 deu também um curso sobre a história do socialismo, em subs-
tituição a Franz Mehring <1 >.
A ideia de publicar suas conferências surgiu-lhe, parece, em
1908. Mas, nesse período, o tema que viria a ser sua contribuição
pessoal à história da teoria económica marxista — o problema do
imperialismo ou, para usar seu próprio título, o problema da
Acumulação do Capital — absorveu-a cada vez mais, tanto material
quanto intelectualmente.
A Acumulação do Capital surgiu em 1913 e foi, sem dúvida,
somente após ter concluído seu magnun opus que Rosa retomou a
redação de sua Introdução à Economia Política. Novamente
interrompida pelo início da guerra, prosseguiu na elaboração da
Introdução durante o tempo em que esteve presa em Wronke, na
Posnânia, em 1916-1917.

1 — J. P. Nettl: "Rosa Luxemburg", London, Oxford University Press,


vol. 1, pp. 389-392.

10 11
Paul Levi, que era seu executor testamentário, queria editar 1. O que é a economia política?
as obras Completas de Rosa, mas a Introdução foi publicada como 2. O trabalho social.
uma obra à parte. Pensava ele, sem dúvida, que não se tratava de 3. Elementos de história económica: a sociedade co-
uma obra terminada. Eis o que escreveu no prefácio da edição alemã munista primitiva.
de 1925: 4. Id.: o sistema económico f e u d a l .
"Estas páginas de Rosa Luxemburgo são devidas aos 5. Id.: a cidade medieval 0 BI corporações artesanais.
cursos que ministrou na escola do partido social-de-moerata. 6. A produção mercantil.
Estão manuscritas mas o estilo trai, freqiien-Iemente, o fato de 7. O trabalho assalariado.
tratar-se de um discurso escrito. A obra também não está 8. O lucro c a p i l a l i i . i
completa. Faltam nela notadamente as partes teóricas sobre o 9. A crise.
valor, a mais valia, o lucro, etc, isto é, o que está exposto no 10. As tendências da evoluçlo capital!
"Capital" de Karl Marx sobre a função do sistema capitalista. O No verão de 1916, CM doil primeiros Capítulos esta
estado do manuscrito póstumo não permite apreender as razões vam prontos para impressão; todos os demais eram ras
dessas lacunas. Teria sido seu brusco fim de vida que impediu cunhos. Entre os manuscritos deixados por Rosa Lu
Rosa de terminar seu empreendimento? Seria devido ao fato de xemburgo entretanto foram encontrados apenas os capí
que os bandidos, guardiães da "ordem", que penetraram em sua tulos 1, 3. 6. 7 e 10. Paulo i -vi publicou os em 1925;
casa, roubaram, entre outras coisas, as partes do manuscrito infelizmente com muitos erros, modifli rbitrárias
que estão faltando? Em todo o caso, o manuscrito póstumo ofe- e omitindo observações Importantt
rece indicações certas de que o texto, como hoje se apresenta, É preciso, no entanto r e s s a l t a r que, i 01 problemas do valor e
não pode ser considerado como obra terminada" (2). da mais valia, como o afirma Paul l evi, não ião tratados de maneira
sistemática nos capítulos <i'"' chegaram até nós, eles ficam
Paul Frölich, um dos principais discípulos de Rosa Luxemburgo
esclarecidos de modo satisfatório nos capítulos relativos à produção
é, entretanto, mais preciso que Paul Levi. Na bio-grafia que escreveu
mercantil e à lei doi salário
de Rosa, diz:
"Conhecemos o plano de conjunto da obra através de uma II
carta enviada ao editor I. H. W. Dietz, escrita do presídio Conhece-se pouco sobre um assunto que mereceria mais
militar feminino de Berlim, em 28 de junho de 1916. Eis os atenção por parte de todos os que se apaixonam pela história do
capítulos que estavam previstos: marxismo, do socialismo ou mesmo, de modo geral, do movimento
operário e das lutas sociais e n t r e ISSO e I')I4: a saber, o modo pelo
qual o marxismo foi acolhido, compreendido e assimilado por
aqueles que se diziam, na época, marxistas. Está claro, hoje, que o
progresso inexorável das ideias
2 — Paul Levi. Vorwort. "Einfiihrung in die 3 — Paul Froelick: "Rosa Luxemburg-Cíedauke mui Tat", Edições
Nationaloekonomie", \ i I aub'sche Verlagsbuchhandlung, Berlin, Maspero, Paris, 1965, pp. 189-190.
1925.

/2 13
«I, Mus no seio do movimento operário internacional, que Ora, comparada com a Introdução de Rosa, a brochura de
celebrou cm termos calorosos no fim de sua vida, foi m M Kautsky choca por seu caráter esquemático e simplificador.
aparente do que real. O próprio Capital não teve senão um i Como discípulo aplicado, Kautsky se eouieuta em resumir a
difusão difícil fora da Alemanha. No que se refere à VM Bo doutrina de Marx em linguagem "'mais facilmente compreen-
alemã, enquanto se esgotava a 7.a edição do tomo I, pouco antes sível", sacrificando em parte a riqueza dialética de um pensa-
da morte de Engels, os tomos II e III só estavam difundidos, em mento ao mesmo tempo extremamente QUançado e capaz tias
1914, através de poucos milhares de exempla-(Vrtamente não mais audaciosas generalizações. Desss líntese magistral do
será exagero afirmar que a obra mestra dl Marx foi muito mais abstrato e do concreto Kautsky tiia apenâl ura encadeamento de
lida durante estes dez últimos anos do que ao longo do primeiro silogismos.
meio século que se seguiu à sua redação (4). No entanto é certo que, diante do assédio dos revisionistas
que farão avançar a ideia da atenuação progressiva das
Às dificuldades de difusão do Capital — devidas tanto ÍI
contradições económicas e sociais do capitalismo(6), Kautsky
hostilidade da ciência académica como ao nível de cultura
defenderá a ortodoxia e, durante uma década, Rosa e Lenin
a i n d a muito baixo da massa operária para poder captar esta
referir-se-ão a ele. Mas, excetuando algum lampejos de nio (7),
obra de contornos austeros — acrescente-se a morosidade da
essa ortodoxia rotineira mal encobre ura vício fundamental, que
publicação das outras obras económicas de Marx. As Teorias
virá à tona a p a i i u dl 1910 c aparecerá em toda sua extensão
da tnais-valia somente serão colocadas à venda entre 1904 I
quando da deflagração di primeira guerra num dial. Kautsky
1910. Quanto aos Manuscritos de 1844 e aos Grundrisse, Rosa
substitui a concepção materialista da história, que faz da luta de
não chegou nem mesmo a lê-los: foram publicados mui-lo
classes o motoi do processo histórico c que concebe a revolução
tempo depois de seu assassinato. Ainda hoje, centenas de
social como a s a í d a paia o c o n t i d o entre as forças produtivas e as
páginas de trabalhos económicos de Marx não foram publi-
relações de produção, poi um determinismo económico mais c
cadas. Coube sobretudo aos "vulgarizadores" satisfazer a sede
mais fatalista, no qual ai "necessidades económicas" terminam
de conhecimentos dos trabalhadores socialistas. Entre eles, Karl
por condenar ao fracasso ai lutas revolucionárias do
Kautsky ocupa o primeiro lugar. Sua brochura A Doutrina
proletariado W.
Económica de Karl Marx ("Karl Marxens õkonomische I ihe")
conheceu catorze edições em língua alemã até 1912, t
6 — Ver p. ex. Edouard Bernstein: "Socialismo Taòrlco < Social
numerosas edições em diversas línguas europeias <-5K Foi Democracia prática", Paris, Stock, 1900.
desse verdadeiro manual que duas gerações sucessivas de so- 7 — P. ex. As conclusões de "As Origem do Critianismo" Das quais
cialistas tiraram o essencial de seus conhecimentos económicos ele levanta a questão de uma degenerescência burocrática possível do
movimento operário; os artigos sobre a revolução russa de 1905, nos
marxistas. quais prevê as repercussões internacionais desta revolução, tanto para
desencadear uma série de revoluções bui omo
desempenhando o papel de "detonador" da revolução proletária n;i
4 -— O (orno II do "Capital" foi publicado por Engels em primeira . cm Europa ("Neue Zeit").
1885 e teve uma segunda edição em 1893. O tomo III foi pitlli ado por 8 — Kautsky explica, p. ex., o fracasso "inevitável" dl revolução
Engels em 1894.
proletária na Alemanha no período que segue a primeira guerra mun-
\ vigésima edição em língua alemã apareceu em 1921. dial, pela desorganização da produção, provocada pela guerra e pela
derrota.

// 75
Depois do universo árido de Kautsky, a Introdução à em Rosa? Rosa foi influenciada por Bogdanov? Existem mode-
Economia Política de Rosa Luxemburgo age como um refri- los mais antigos de exposições dos quali decorreriam essas duas
gério. Retomando o método de Marx mais do que a exposição introduções? É impossível, hoje, responder ;i essas questões.
do Capital, ela nos leva a pôr o dedo no mesmo entrelaçamento
da história e da teoria económica, do concreto e do abstrato, na Ill
mesma capacidade de análise e de generalização que sabe Certas passagens da Introdução à Economia Política sus-
evitar todo esquematismo sem cair no empirismo banal. Basta citaram críticas, umas justificadas, outra» infundadas. Toda a
comparar a brochura de Kautsky — que é uma de suas obras primeira parte consiste num esforço para respondei à questão:
mais válidas — com o livro de Rosa, para perceber todas as "o que é a economia política?". A resposta, que restringe a
diferenças de temperamento, de imaginação, de sensibilidade, de aplicação desta ciência ao modo de produção capitalista (ou,
capacidade de síntese teórica entre as duas personalidades . mais exatamente, a todas as sociedadei que apresentam uma
produção mercantil) pareceu a algum intrc 01 quais Lenin,
Foi Rosa a primeira a modificar o ensino da teoria eco- limitar demasiadamente o âmbito desi D I li m la
nómica marxista tal como foi praticado durante duas décadas
pela escola de Kautsky? Muitas pesquisas seriam necessárias No entanto, parece certo que, oom 0 enfraquecimento da
para responder a esta questão. Na Áustria, na Bélgica, na produção mercantil desaparecem todoí oi problema! ligado
Holanda, nos Estados Unidos < 9) , na Itália e na França parece tradicionalmente ao estudo dos fenômenol econômli Não
que foi a tradição inaugurada por Kautsky que triunfou e pro- há mais problemas de valor de ii Lrculação monetária,
vocou devastações na própria maneira de conceber o marxis- de equivalência, de capital ou de acumulação «Ir capitais, de
mo, inclusive na época inicial da Internacional Comunista. Em flutuações conjunturais, de termoi de câmbio ou de balança de
compensação, no que concerne à social-democracia russa, existem pagamentos: todos estes problemas decorrem, efetlvamente,
muitos indícios de que não foi assim. Sabemos, por exemplo, do desdobramento das mercadorias em valorei de uso t valores
de troca, que resulta de sua natureza SOClal particular. A
que na famosa escola de Capri da social-democracia russa,
partir do momento em que os produtos do trabalho "ao são
Bogdanov deu um curso de economia política em 1908-1909 e,
mais do que valores de uso e que os equilíbrios ;■ estabelecer
segundo o que nos comunicou nosso falecido amigo Roman
(ou a restabelecer) são apenas do naturi l (nível ali-
Rosdolsky, este curso teria revelado muitas semelhanças
mentar ótimo; ordenado físico do território; economia de ma-
metodológicas com o de Rosa. Trata-se de uma coincidência ou
térias primas, etc), a economia politica parece dissolver-se
de uma influência mútua? Bogdanov inspirou-se
em outras disciplinas científicas: a ciência da organização, a
ciência das comunicações, a cibernética, a medicina preventiva,
9 — O método de vulgarização de Kautsky era geralmente seguido, nas a fisiologia alimentar, as disciplinas politécnicas, ele.
exposições dos marxistas holandeses (Pannckoek, Gorter, H. R. Holst, etc),
belgas (De Brouckère e De Man), americano (Boudin), franceses (Rappoport,
os guedistas), italianos, etc, antes da primeira guerra mundial.
10 — Tratamos desse problema em nosso "I railé d'économie mar-
xiste", vol. IV, pp. 264-266, Pai is, 1969, Union Générale d'Editions, coleção
"10/18".

16 17
Marx e Engels, embora também restringindo a aplicação da dos índices da produção industrial); é por Indo isso que uma
economia política, e sua crítica, tal como as haviam concebido, ao disciplina científica se organiza progressivamente com o fim de
domínio exclusivo da produção mercantil (o tema do Capital é, descobrir os segredos de (ais Fenómenos.
evidentemente, a mercadoria e o modo de produção capitalista, e não
"os fenómenos económicos em geral", abstração feita a partir do Desde que os fenómenos da produção mercantil desapareçam
modo de produção específico em que esses fenómenos aparecem) para dar lugar â organização consciente da vida econô
mica baseada na satisfação de necessidade, não haverá mais
acrescentam, no entanto, que a economia do tempo de trabalho é e
permanecerá o fundamento de toda sociedade humana (11). Isto suscita "mistérios económicos" particulares a resolver. As únicas "leis" que
uma certa ambiguidade. Uma vez que a lei do valor é apenas "a forma se poderia descobrir são banalidades OU (antologias do tipo: 'a
humanidade nunca poderá consumir mais produtos do que os que
particular" sob a qual opera o equilíbrio mais geral do tempo de
possui à sua disposição (o consumo jamais poderá ultrapassar a soma
trabalho em regime de produção mercantil, não se poderia transpor as
da produção corrente e dos estoques)"; "sem a manutenção ou o
"leis da economia política" de sua forma particular própria ao modo
crescimento do parque de máquinas, a produção e o consumo
de produção capitalista, para um conteúdo mais geral aplicável a
todas as sociedades humanas? acabarão por diminuir"; "se toda a produção corrente é consumida, o
parque de máquinas não poderá ser ampliado", etc. Tão logo se
Sabemos que o próprio Marx desmentiu vigorosamente tal procure moldar essas banalidades em fórmulas baseadas em despesas
hipótese <12>. A ambiguidade referida baseia-se numa confusão. De de trabalho, esbarra-se com dificuldades insuperáveis; ou, mais
fato, como Rosa Luxemburgo assinala com razão, a própria exatamente, surge a tentação de deixar-se escorregar
necessidade da ciência económica surge da opacidade dos fenómenos imperceptivelmente para trás, rumo a "leis" inspiradas pela produção
económicos, no regime de produção mercantil . mercantil.
É porque a natureza do valor de troca não salta aos olhos
Assim, não há nenhuma proporcionalidade necessária entre a
automaticamente numa lista de preços; é porque a natureza da mais-
taxa de crescimento do produto social e a sua repartição entre fundos
valia não se manifesta automaticamente na leitura da folha de
de consumo e fundos de acumulação; uma sociedade comunista de
pagamento de um operário; é porque a explicação das crises
abundância pode, efetivamente, dispor de reservas de produtividade
conjunturais não se evidencia imediatamente da leitura das flutuações
consideráveis (de conhecimentos científicos não aplicados à produção
das cotações das ações na Bolsa (ou da leitura
corrente, em virtude de ter a coletividade deliberadamente preferido
evitar um esforço de investimento suplementar) que fazem com que
11 — Cf. Karl Marx: "Grundrisse der Kritik der politischen Oeko-
nomie" (Fundamentos da Crítica da Economia Política), tomo I, pp. 110-111, mesmo um leve acréscimo do tempo de trabalho global consagrado à
312-315. Editions Anthropos, Paris, 1967. produção de máquinas e montagem de fábricas possa aumentar muito
12 — Cf. a Introdução de Marx à segunda edição do tomo I do
"Capital" na qual ele cita, aprovando-a, a passagem do "Viestnik Evro-py" mais fortemente, a massa dos bens de consumo. E, a partir do
(Mensageiro da Europa) de maio 1872, onde é dito, explicitamente, que, para momento em que não se calcule mais cm valor, o objetivo não é
Marx, não existem leis abstraías da vida económica, aplicáveis ao passado e
ao presente. evidentemente o de "estabelecer'1 um "equilíbrio" qualquer nas
despesas de trabalho cm cada sclor, mas simples-

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mente o de atingir, com os menores dispêndios globais de tra- ção relativa do proletariado é, com razão, concebida como uma
balho, um conjunto desejado de volumes físicos de produtos. lei histórica cujo jogo apenas ;i abolição do sistema capitalista
poderia suprimir - ftO passo qut ;i organização sindical eficaz
Se Rosa Luxemburgo está certa (contra a opinião de seus pode, em determinadas circunstâncias históricas, conseguir
críticos) em sua definição do objeto da economia política, o deter a tendência a baixa dos salários reais no quadro desse
mesmo não acontece com sua elaboração da teoria marxista regime.
dos salários. Ou mais exatamente, faz concessões excessivas à
tese da pauperização absoluta, atribuída a Marx por seus Mas Rosa engana-se quando diz que o salário real apre-
críticos burgueses e revisionistas, e que o fundador do socia- senta a tendência constante de caii para mínimo absoluto, para
lismo científico nunca defendeu sob essa forma. o mínimo de existência física, Isto 6, que existe uma tendência
constante do capital para comprai i força de trabalho abaixo do
Entendamo-nos bem: permanecendo na bem estabelecida
seu valor. Somente ;i organização operária cria um contrasenso a
ortodoxia marxista, Rosa rejeita a "Férrea lei dos salários" de
essa tendência do capitar'. Sob eitfl forma absoluta e sem
Lassale, de inspiração malthusiana e ricardiana. Como Marx,
reservas, a fórmula 6 n a s a l a .
ela acentua que é a acumulação do capital, e não o movimento
demográfico, que aumenta e retrai periodicamente o exército de Poder-se-ia discutir o fato de sabei ic tal tendência existe
reserva industrial. Como Marx, distingue duas partes no valor na hipótese abstraía de uma sociedade capitalista homogénea
da força de trabalho: uma parte que deve satisfazer em escala mundial. Mas no mundo real, dominado poi enor
necessidades puramente fisiológicas, e uma parte corresponde às mes diferenças de produtividade a de nível de Industrialização
necessidades historicamente conquistadas pela classe operária, entre diversas nações capitalistas, a tendência mencionada por
estas últimas dependendo tanto de particularidades históricas Rosa não existe. Se existisse, implicaria um nivelamento num
nacionais quanto do nível de civilização material alcançado em dial de salários antes do aparecimento de poderosas organi
um determinado país e da força organizada da classe operária. zações sindicais (ou, o que vem a dai no mesmo, um nive
lamento internacional do exército de reservai Industrial, com
Rosa insiste mesmo, com toda a razão, no fato de que é
dificuldades mais ou menos equivalente para i organização dos
somente graças à organização sindical e socialista dos traba-
trabalhadores, confrontados com uma massa equivalente de
lhadores, e graças à sua luta de classes, que a força de trabalho
desempregados). Na realidade, convlanu uir n i n h a d a por
é vendida pelo seu valor (e não abaixo do seu valor) e que uma
Marx, existem evidentemente grandes diferenças de salários
série de necessidades culturais são definitivamente integradas
entre países capitalistas e, de um modo gi o nível de
no "mínimo vital" que se presume o salário satisfazer. Ela vê aí
produtividade de uma nação capi t al i st a é riu nédia superior
"o grande significado económico da social democracia' (do
ao de seus vizinhos, o nível de salários tenderá também a ser
movimento operário). E, como Marx, Rosa Luxemburgo
superior.
insiste particularmente na importância da parte relativa que
retorna aos produtores na repartição do valor novo que A explicação para isso não está no laio, como afirmam os
produziram. A redução tendencial desta parte, a pauperiza- economistas burgueses, do salário sor função do nível de
produtividade industrial. É necessário levar em conta as flu-

20 21
tuações do exército de reserva industrial para compreender esta sim uma coletividade muito ampla, uma nação, um continente,
correlação. Nos países "vazios", subpovoados, com grandes ou mesmo toda a humanidade).
reservas de terras não ocupadas, o nível elevado da pro- O encadeamento dessas tríadas é manifesto. É o desen-
dutividade não é a causa, mas sim a consequência dos altos volvimento da produção mercantil no seio da coletividade pri-
salários, função de uma penúria aguda de mão-de-obra. Nos mitiva que desagrega esta ultima, nelas acentua a diferenciação
países que foram os primeiros a se industrializarem, o nível social, nela introduz os germes da apropriação privada do
mais elevado dos salários é função da exportação de uma boa sobreproduto social e dos meios de produção. Por outro lado, é
parte da sua produção industrial, isto é, a supressão de em- o declínio da propriedade privada (em consequência da própria
pregos pela acumulação do capital acontece sobretudo no exte- concorrência capitalista), é a socialização objetiva, cada vez
rior, ao passo que os novos empregos são criados inteiramente. mais avançada, da produção no próprio capitalismo, que o
Portanto, somente no caso de países capitalistas que começam a tornam maduro para ser substituído por uma sociedade so-
se industrializar é possível falar de uma tendência do capital a cialista. Entretanto, este encadeamento não é gradual, evolutivo
fazer baixar o nível salarial ao mínimo fisiológico, porque o e fatal. Opera-se através de crises e de explosões violentas; a
exército de reserva industrial apresenta tendência a neles se ação das classes sociais desempenha aí um papel decisivo. As
conservar num nível muito elevado. Pelo mesmo motivo, a coletividades primitivas não se desagregam automaticamente. A
organização sindical dos trabalhadores enfrenta, nesses países, sua destruição opera-se, na maioria das vezes, pelo ferro e fogo
dificuldades maiores. dos conquistadores, e este caminho é traçado não só com o
sangue das vítimas mas também com o dos resistentes. As
IV referências de Rosa ao extermínio dos índios da América pelos
espanhóis, à barbárie da escravização dos negros, ao preço
Pode-se resumir toda a Introdução à Economia Política em colossal que o colonialismo impôs ao género humano, têm um
três tríades hegelianas: a produção primitiva de valores de uso eco surpreendentemente moderno. .. também aqui um universo
conduz à produção mercantil, que reproduzirá uma produção separa a Introdução, concebida em 1908, dos comentários de
para as necessidades, mas incorporando nela a expansão colossal Kautsky de 1886, onde o "terceiro mundo" (dois terços do
das necessidades e das potencialidades do homem, tornada género humano) estava praticamente ausente.
possível graças à produção mercantil; a organização *da wà

produção nas comunidades primitivas conduz à anarquia da Do mesmo modo, as contradições da sociedade mercantil
produção capitalista, que levará à planificação socialista de generalizada, isto é do capitalismo, não são descritas como
amanhã, infinitamente mais complexa e mais variada do que a levando a um desmoronamento automático deste, mas como
organização antiga; a propriedade coletiva primitiva conduz à provocadoras da reação dos explorados, dos proletários; é a sua
propriedade privada generalizada sob o capitalismo, que levará à luta de classe que pode substituir por uma sociedade socialista
propriedade coletiva de amanhã (propriedade coletiva que se a sociedade capitalista.
distinguirá, no entanto, da propriedade coletiva primitiva pelo A explicação das diferenças fundamentais entre uma eco-
fato de que a coletividade não mais será um pequeno grupo nomia baseada na produção de valores de uso, destinados a
consanguíneo, uma horda, um clã ou uma tribo, mas
23
22
satisfazer as necessidades dos produtores, e uma economia fundada téis, e do capital financeiro, já eram então bem abundantes. O Capital
sobre a produção de mercadorias, ocupa a maior parte da obra. Rosa Financeiro de Hilferding só aparecerá um ano após Rosa ter
Luxemburgo esforça-se por desenvolver a lógica diferente desses dois começado a redação da Introdução, no Natal de 1909, e apoiava-se
sistemas económicos. Naquela prevalece forçosamente a planificação, numa ampla bibliografia. As publicações teóricas da social-
a organização consciente do trabalho; nesta chega-se inevitavelmente democracia internacional, particularmente a revista Neue Zeit contêm
à concorrência, à ausência de organização planificada, à anarquia. As numerosas referências ao movimento de concentração de capitais
formas da passagem de uma para outra são dissecadas com muito cui- (,4>. Aliás, a própria Rosa não havia sublinhado esse fenómeno, em
dado, particularmente a transição da ajuda mútua para o trabalho suas polémicas com Edouard Be-rustein e Konrad Schmidt, em
gratuito fornecido por uma parte da sociedade em benefício exclusivo 1899? (15) por que então esse movimento não descrito na Introdução!
de uma outra parte (13>. É possível que a parte do manuscrito que, segundo Paul Levi,
Os leitores que compararem essas análises à evolução do não chegou até nós, contivesse, efetivamente, comentários sobre esse
capitalismo a partir do início do século XX perguntar-se-ão se Rosa tema. Um fato, porém, nos impressiona. Em A Acumulação do
Luxemburgo não terá enfraquecido sua demonstração ao esquecer-se Capital, o fenómeno dos trustes, cartéis e holdings, e a análise dos
de mencionar a expansão do "capitalismo organizado", do elementos de "organização" que esse fenómeno introduz na anarquia
capitalismo dos monopólio. Ela teria podida manter o paralelismo do capitalismo — noção que desempenha um papel tão importante na
integral da demonstração: do mesmo modo que os elementos da obra de Lenine, por exemplo, ao longo de toda a obra O
posterior produção mercantil generalizada começam por surgir no Imperialismo, estágio supremo do capitalismo — igualmente não
seio da economia baseada na produção de valores de uso, também os ocupa um lugar importante; quando muito é mencionado. Parece
primeiros elementos da futura economia planificada, fundada na verossímil supor, portanto, que este fenómeno não preocupava Rosa
satisfação das necessidades de todos, começam a desenvolver-se no Luxemburgo durante o período de 1908-1914, pelo menos do ponto
próprio seio dessa produção mercantil generalizada que é o de vista teórico.
capitalismo.
Esta falta de interesse pode ser explicada por duas razões
E da mesma forma que a produção mercantil só pôde de-
essenciais. Em primeiro lugar, o que interessa Rosa (esse será, o leit-
senvolver-se plenamente e manifestar todas as suas possibilidades ao
motiv de A Acumulação do Capital) é o funcionamento do
se desvencilhar da velha pele da comunidade da aldeia, assim também
capitalismo no seu conjunto, isto é, as características específicas do
a economia de abundância do futuro só poderá realizar-se plenamente
modo de produção capitalista que o distinguem de todos os outros
saindo do casulo no qual a produção capitalista-mercantil —
modos de produção anteriores. Generalização
produção para o lucro e não para a satisfação das necessidades ainda
a mantém prisioneira.
14 — Veja-se na "Neue Zeit" do período 1900-1910, notadamente os
Os dados empíricos de que Rosa Luxemburgo podia dispor, em antigos sobre a organização dos trustes nos Estados-Unidos, sobre a indústria
1908, quanto ao desenvolvimento dos trustes, dos car- de construção elétrica na Alemanha, etc.
15 — Rosa Luxemburgo: "Reforma soei ale ou Révolution", Pe-titte
Collection Maspero, pp. 13-58, Paris, 1969.
13 — Esforçamo-nos por examinar este mesmo fenómeno no nosso
"Traité d'Economie Marxiste", vol. I, pp. 32-34.

24 25
da produção mercantil; concorrência universal e anarquia da gunda razão da falta de interesse manifestada por Rosa para com o
produção; perequação da taxa de lucro, que distribui o capital entre fenómeno da formação dos monopólios capitalistas.
diversos setores industriais de modo a restabelecer o equilíbrio da A partir do momento em que se raciocina sobre os "grandes
divisão do trabalho; exploração cada vez mais acentuada (pelo menos conjuntos", sobre os dados macroeconómicos de rendimento global
do ponto de vista relativo) do Trabalho pelo Capital graças ao jogo do do Trabalho e de rendimento global do Capital, a questão de saber
exército de reserva industrial; crises de superprodução inevitáveis: eis como o rendimento do Capital se distribui entre as diferentes frações
como Rosa resume esse funcionamento no início do último capítulo da classe burguesa aparece novamente como secundária. A questão
desse livro. A questão que a interessa é saber como pode o de saber se o grau de concentração do capital modifica a repartição da
capitalismo funcionar apesar da anarquia da produção. Esta questão é renda não é sequer levantada porque, na teoria marxista, esta
subjacente a toda Introdução à Economia Política. No âmbito dessa modificação se realiza às custas dos setores não monopolizados da
questão o problema de saber se a concorrência opõe alguns milhares burguesia e da pequena burguesia, mais do que às custas da classe
de industriais grandes ou médios uns aos outros, ou se apenas opõe operária (só indiretamente o aparecimento dos monopólios pode
alguns trustes todo-poderosos, parece--lhe de importância secundária. reduzir a parte do Trabalho na repartição da renda, por uma
Como Marx, ela vê na própria concorrência uma condição essencial modificação das "relações de força entre os combatentes" em favor
de existência do capitalismo; mas as formas dessa concorrência e a do Capital).
amplitude das forças que põe em jogo em nada modificam o fundo do No domínio da produção, a concorrência é a lei do capitalismo;
raciocínio . no domínio da repartição de rendas (da realização da mais-valia, da
No entanto, a questão: "Como pode o capitalismo funcionar?" acumulação do capital), o problema da concentração não se coloca.
levanta logicamente uma outra: "Quais são as barreiras absolutas ao Eis o procedimento teórico de Rosa Luxemburgo, o qual parece
funcionamento do capitalismo?". Encontramos essa questão em conduzi-la a negligenciar o fenómeno dos monopólios.
conclusão da presente obra; constitui ela o tema da Acumulação do A superioridade da análise de Hilferding e da de Lenine que a
Capital. Ora, sabe-se que, para responder a essa questão, Rosa completa, é manifesta. E aqui impõe-se um comentário
Luxemburgo recorreu a uma simplificação de conceitos que, sem metodológico. O que faz justamente a força da Introdução é a
dúvida, está na ordem dos erros de análise contidos na Acumulação maneira magistral pela qual Rosa, seguindo o exemplo de Marx,
do Capital: o conceito de classe capitalista formando um todo, o distingue a evolução das estruturas de sua revolução, de sua
conceito do capitalismo reduzido a um capital único <16). Temos aqui destituição. A história só é compreensível enquanto combinação
a se- desses dois movimentos. As revoluções sociais são inconcebíveis
sem esse prévio trabalho de sapa da evolução <17). Entretanto, essas
análises minuciosas que Rosa apli-
16 — Marx precisa, em contrapartida, explicitamente, que o capitalismo
não é concebível senão enquanto "diversos capitais", ou seja, apenas 17 — Kautsky desenvolve essa mesma ideia, ainda que de maneira
enquanto comporte a concorrência ("Le Capital", tomo II, p. 16, Editions bastante mecanicista, nos seus comentários ao programa de Erfur-ter ("Das
Sociales, Paris, 1928). Apenas no quadro da concorrência as leis de Erfurter Programm", pp. 104-110, Dietz, Stutgart, 1908, 9.a ed.).
desenvolvimento do capitalismo podem ser discernidas.

26 27
ca à sociedade primitiva e à sociedade feudal, essas transforma- pode adaptar-se, retruca Rosa Luxemburgo <19>. Para sobreviver,
ções que ela descreve no seio da comunidade de aldeia, as eta- o capitalismo se adapta constantemente aos progressos da técnica
pas sucessivas da decomposição da propriedade coletiva do e às flutuações da luta de classes mas, fazendo isso, não resolve
solo que ela distingue — toda essa sutileza analítica desaparece nenhuma das suas contradições fundamentais: eis a resposta
bruscamente quando se trata de descrever a evolução do mais correta que é preciso apresentar aos revisionistas. Lenine
capitalismo. Aqui não parece haver lugar senão para contra- já a havia formulado em sua brochura sobre O Imperialismo.
dições imutáveis. O esforço de adaptação para fins de auto-- Ela se impõe hoje, com um método idêntico, na fase atual de
conservação, se não chega a ser negado, não merece sequer um evolução do capitalismo.
lugar na análise das tendências de evolução fundamentais, das Entretanto, mesmo no erro, o vigor intelectual e o fôlego
leis de desenvolvimento. No fundo, não há mais do que um revolucionário de Rosa Luxemburgo se destacam melhor ainda
único movimento essencial, o da destruição dos setores não- da mediocridade de tantos "ortodoxos" que permanecem na
verdade. Pois o que é a tentativa de simplificar ao extremo
capitalistas da economia (artesanato e pequeno e médio
senão um esforço de captar o movimento histórico a longa dis-
campesinato dos países industrializados; o conjunto dos setores
tância, ao invés de se deixar fascinar por movimentos con-
produtivos autóctones dos países não-industrializados). Quando
junturais?
este movimento estiver terminado, a máquina deve parar. Que o
Do grande debate com os revisionistas, Rosa havia tirado
próprio movimento transforme a máquina; que o capitalismo dos a conclusão de que uma atenção excessiva às flutuações a curto
monopólios funcione parcialmente de maneira diferente do prazo comportaria o risco de desviar a atenção das grandes
capitalismo da livre concorrência — conservando ao mesmo conflagrações que se anunciavam. As guerras imperialistas e as
tempo as marcas essenciais deste último e do capitalismo em revoluções — esses dois cataclismas sociais a que, no fim do
geral(,8) — eis o que Rosa não parece admitir. século passado, os economistas, mesmo "marxistas", se
referiam apenas com um dar de ombros, como a pesadelos que
A adaptação do capitalismo é a capacidade que ele tem de
a "evolução económica" havia enxotado definitivamente do
resolver as suas contradições fundamentais, haviam proclamado
domínio do possível — permanecem no centro de suas
Bernstein e os revisionistas. O capitalismo é incapaz de preocupações. Ela pressente o seu advento na descrição que faz
resolver suas contradições fundamentais, portanto ele não dos conflitos inter-imperialistas, cada vez mais agudos, do peso
cada vez maior do milifarismo, com a qual termina A
18 — No programa do P.C. submetido ao VIII Congresso, do qual ele redigiu o
Acumulação do Capital. Se não viu todas as sendas que
projeto, Lenine faz com que a descrição do imperialismo seja precedida pela do conduzem da planície ao cume, teve ela o mérito de discernir
capitalismo, contida no antigo programa do Partido e faz a introdução a esta passagem
com as seguintes palavras: "A natureza do capitalismo e da sociedade burguesa, que
estas aqui quando ainda, para a maioria dos socialistas de sua
do-i Mi na ainda na maior parte dos países civilizados e cuja evolução con-ilii/ época, estavam escondidas nas nuvens.
inevitavelmente a uma revolução comunista do proletariado, tinha definida
corretamente... nas disposições seguintes de nosso antigo programa." (Lenine: 19 — "Reforme sociale ou Révolution", pp. /48-59/, Petitte Collec-tion
"Oeuvres", tomo XXIX, pp. 115-116, Editions Maspero, Paris, 1969.
iles, Paris, 1962.) Trad. port. "Reforma social ou Revolução?" col Editor/con-traditor.

29
Dissemos que a questão "Como pode o capitalismo funcionar," Não temos a intenção de resumir aqui toda a controvérsia aberta
desemboca numa outra: "Quais são as barreiras absolutas ao por esta tese de Rosa. Em nossa opinião, Rosa enga-na-se quando
funcionamento do capitalismo?". A última parte do presente livro é afirma, com base nos esquemas de reprodução de Marx, que no
consagrada à resposta a esta questão. Encontramos aí, em resumo, a quadro da reprodução ampliada existe necessariamente um resíduo
tese que Rosa desenvolve em "A Acumulação do Capital": o invendávcl de bens de consumo. A função dos esquemas de
capitalismo atinge seu desenvolvimento último quando suprimiu todo reprodução não é analisar as leis de desenvolvimento do capitalismo,
meio não-capitalista, tanto no seio das nações ocidentais como na nem de assinalar as contradições do sistema. Devem demonstrar
superfície inteira do globo, pela integração no modo de produção porque e como o equilíbrio da produção capitalista pode ser
capitalista de todos os produtores dos países coloniais e semi- estabelecido periodicamente, apesar da anarquia da produção
coloniais. Isso, por um lado, amplia as riquezas do capital e, por capitalista. Dizem respeito à problemática do "Capital em seu
outro, aumenta a miséria das massas populares em escala mundial. conjunto", ao passo que as crises e os movimentos conjunturais
dizem respeito à problemática dos "capitais múltiplos", isto é, à
Assim se acentua a contradição entre a tendência expansionista inata
concorrência — a qual os esquemas precisamente não levam em
no capital e a possibilidade de expansão efetiva do mercado ca-
conta. A realidade do mundo de produção capitalista é a unidade des-
pitalista. Quanto mais nos aproximamos do momento em que todo o
sas duas problemáticas. Eis o que Rosa perdeu de vista, em parte
mundo estará industrializado sob o capitalismo, tanto mais o ritmo de
porque não tivera a possibilidade de estudar sistematicamente as
expansão deste se reduz. Se a humanidade inteira for dividida em
variações do plano do Capital(21).
capitalistas e trabalhadores assalariados, o capitalismo não mais
poderá funcionar. Em outros termos: Não há expansão capitalista sem Mas se a tese da impossibilidade de realizar toda a mais--valia
meio não-capitalista. Se na Introdução, a demonstração desta tese se em reprodução ampliada, sem intervenção de compradores não-
mantém ao nível de algumas fórmulas vagas (20), em A Acumulação capitalistas, é insustentável do ponto de vista teórico, em
do Capital, Rosa procurará apresentar a comprovação dessa tese, contrapartida é evidente que esses compradores desempenharam e
esforçando-se por demonstrar que a realização de toda a mais--valia é desempenham um papel essencial para explicar a expansão histórica
impossível sem um meio não capitalista e que, sem esse meio, haverá concreta pela qual passou o modo de produção capitalista desde 1750
até nossos dias. Noutros termos: o que Rosa Luxemburgo nos
sempre um resíduo de bens de consumo invendáveis em regime
forneceu não constitui uma teoria marxista das crises nem uma teoria
capitalista.
marxista dos limites internos do modo de produção capitalista, mas
sim uma teoria do crescimento capitalista <22>.
20 — Em seu Prefácio a "A Acumulação do Capital", Rosa Luxemburgo indica:
"Quando, em janeiro deste ano (1912), após as eleições para o "Reichstag", comecei
21 — Esta questão foi minuciosamente estudada por Roman Ros-dolsky: "Zur
novamente a redigir, pelo menos em esboço, es» a popularização da doutrina
Entstehungsgeschichte des Marxschen 'Kapital'", tomo I, pp. 24-78, Europaiesche
económica de Marx, deparei com uma dificuldade imprevista. Não havia conseguido
Verlagsanstalt, Frankurt, 1968.
apresenar com uma clareza suficiente o processo de conjunto da produção capitalista
em suas relações concretas, bem como com seu limite histórico obje-tivo". Foi então 22 — J. P. Nettl: "Rosa Luxemburg", tomo II, p. 839. Havíamos emitido a
que decidiu escrever "A Acumulação do Capital". mesma ideia no nosso "Traité d'economie Marxiste" desde 1962 (ver tomo III, pp.
28-29, 34-36).

30 31
Quando afirma que, sem trocas com um meio não-capita- vação tecnológica (a exploração de um avanço tecnológico),
lista, o ritmo de expansão capitalista enfraquece, revela um dos o aproveitamento de uma reserva de mão cie obra, a queda
aspectos de uma tal teoria geral do crescimento económico em brusca da composição orgânica do capital, uma brusca eleva-
modo de produção capitalista. Paradoxalmente, Lenine também, ção da taxa da mais-valia (em consequência de guerras, de des-
em sua análise, paralela à de Rosa, põe em relevo um dos truição dos sindicatos, etc.) podem constituir, todos, fontes
aspectos dessa expansão: a transferência de sobrelu-cros equivalentes de sobrelucros.
coloniais. O fato de ter colocado a questão representa em si mesmo
Em nossos trabalhos, temos insistido há vários anos sobre um grande passo à frente. A grande originalidade e o mérito de
o fato de que essas duas hipóteses não revelam senão dois Rosa está em não se ter contentado com fórmulas gerais sobre
aspectos particulares de um fenómeno muito mais geral: o as contradições inerentes ao modo de produção capitalista, que
crescimento capitalista pressupõe diferenças de taxas de lucro, Kautsky havia simplesmente copiado de Marx, mas em ter
isto é, diferentes níveis de produtividade e taxas diferentes de procurado colocar questões, lá onde Kautsky e sua escola
mais-valía nos diversos setores da economia. Pouco importa apenas viam respostas. Como essas contradições se manifestam
saber se esses setores são continentes, países, regiões ou ramos com o correr do tempo, se o regime capitalista perdura ainda
de atividade (agricultura, diferentes ramos industriais, etc). O por alguns decénios? Qual é a estrutura do sistema capitalista
essencial é que haja desnivelamento. Sem esse desnivelamento, internacional que substitui, na vida real, a abstra-ção
haveria efetivamente tendência do modo de produção capitalista metodologicamente necessária, utilizada por Marx, de um
a conhecer uma taxa de crescimento em declínio orientando-se sistema capitalista "puro"? De que maneira se operou nos fatos,
para uma estagnação secular. o crescimento do modo de produção capitalista?
Mas a própria natureza da concorrência capitalista faz com Que as respostas que ela trouxe a essas questões sejam
que uma perequação integral da taxa de lucro e de produtividade insuficiente e em parte errónea é, em definitivo, menos impor-
entre todos os setores seja uma utopia. A mesma força tante do que o fato de ela ter compreendido que havia aí
fundamental, ou seja, a concorrência (a concorrência entre questões para as quais o próprio Marx não havia dado res-
capitalistas assim como a concorrência entre o Capital e o postas. Era preciso génio para colocar essas questões, no qua-
Trabalho), que impele para a perequação tendencial da taxa de dro da problemática marxista. Mais nenhum marxista negará
lucro, impele também para a supressão tendencial dessa igualdade que Rosa Luxemburgo tivesse génio.
de taxa de lucro entre diversos setores (regiões, países). Os
investimentos capitalistas, a acumulação do capital sob o látego 1.° de dezembro de 1969.
da concorrência, procuram sistematicamente as possibilidades
de obter sobrelucros. É esta procura que comanda em última Ernest Mandei
análise o crescimento económico no capitalismo. Lenine e
Rosa Luxemburgo ressaltaram com muita razão, a exploração (Trad. de Luís L. Rivera)
das colónias (e da agricultura) como fontes de sobrelucros para
os monopólios capitalistas. Mas a íno-

32 33
CAPITULO I

O QUE É A ECONOMIA POLITICA? I

A economia política é uma ciência singular. Dificuldades


e desacordos surgem logo de início com esta pergunta elemen-
tar: qual é, precisamente, o objeto desta ciência? O operário
comum, com uma vaga ideia sobre o que a economia política
ensina, atribuirá a sua incerteza à insuficiência da sua própria
cultura geral. Contudo, neste domínio, partilha de certa
maneira o seu infortúnio com muitos sábios e intelectuais que
escrevem obras volumosas e que dão cursos de economia política
nas universidades. No entanto, por mais incrível que possa
parecer, é um fato que a maior parte dos especialistas em
economia política apenas têm noções confusas sobre o
verdadeiro objeto do seu saber.
Já que é costume entre os senhores especialistas trabalhar
a partir de definições, isto é, esgotar-se a essência das coisas
mais complicadas em poucas frases bem ordenadas, infor-memo-
nos, então, a título experimental, junto de um representante
oficial da economia política, e perguntemos-lhe o que é, no fim
de contas, essa ciência. Que diz Wilhelm Roscher, decano dos
professores alemães, autor de inúmeros e enormes manuais de
economia política e fundador da escola dita "histórica"? Na sua
primeira grande obra, Fundamentos da Eco-

35
nomia Política, Manual e Coleíânea de Leituras para Homens de coerente, os fenómenos económicos, com a condição, evidentemente,
Negócios e Estudantes, publicada em 1854 e reeditada vinte e três de antes se ter definido corretamente a economia política. No centro
vezes desde então, lemos no capítulo 2, § 16: desta ciência encontram-se os fenómenos típicos que se repetem nos
"Por economia política, entendemos a doutrina do desen- povos civilizados contemporâneos, fenómenos de divisão e de
volvimento das leis da economia nacional w, da vida económica organização do trabalho, de circulação, de repartição de rendimentos,
nacional (filosofia da história da economia nacional, segundo von de instituições económicas sociais, que apoiando-se sobre
Mangoldt). Como todas as ciências que dizem respeito à vida de uma determinadas formas do direito privado e público e dominados por
nação, liga-se, por um lado, ao estudo do indivíduo e, por outro, forças psíquicas idênticas ou semelhantes, engendram disposições ou
abarca o estudo de toda a humanidade." formas semelhantes ou idênticas e representam na sua descrição de
conjunto uma espécie de quadro estático do mundo económico
Os "homens de negócios e estudantes" compreenderam então o
civilizado atual, uma espécie de constituição média desse mundo. A
que é a economia política? É precisamente... a economia política.
partir desta base, esta ciência procurou verificar as diferenças entre
Óculos de aro de tartaruga, o que são? São óculos cujos aros são
umas e outras economias nacionais, as diversas formas de
feitos com osso de tartaruga. E uma besta de carga? É um burro sobre
organização, interrogou-se por que encadeamento e sucessão
o qual se carrega fardos. Processo dos mais simples, na verdade, para
aparecem essas diversas formas e assim chegou à ideia do de-
explicar às crianças o emprego de certas locuções t1*. A única
senvolvimento causal dessas formas, umas a partir das outras, e da
complicação disto tudo é que, se não compreendermos o sentido das
sucessão histórica das situações económicas. Desta maneira articulou
palavras em questão, colocando-as por outra ordem também não
o aspecto dinâmico com o estático. E da mesma forma que, desde as
avançamos nada.
suas origens, pôde estabelecer ideais, graças a juízos de valor ético-
Dirijamo-nos a um outro cientista alemão, luminar da ciência históricos, conservou sempre, até um certo grau, esta função prática.
oficial e que atualmente ensina economia política na Universidade de Desde sempre, ao lado da teoria, estabeleceu ensinamentos práticos
Berlim, o professor Schmoller. No Dicionário das Ciências Políticas, para a vida".
volumoso trabalho coletivo de alguns professores alemães e que foi Ufa! Respiremos fundo. Afinal, que vem a ser isto tudo?
publicado pelos seus colegas Con-rad e Lexis, Schmoller dá, num Instituições econômico-sociais — direito privado e público — forças
artigo sobre economia política, a seguinte resposta à nossa questão psíquicas — semelhante e idêntico — idêntico e semelhante —
inicial: "Eu diria que a economia política é a ciência que pretende estatística — estático — dinâmico — constituição média —
descrever, definir e explicar pelas suas causas, e compreender como desenvolvimento causal — juízos de valor ético-históricos ... Depois
um todo disto tudo, uma pessoa vulgar ficará com a impressão de que a sua
cabeça foi apanhada pela mó de um moinho e, por causa da sua
1 — O termo alemão Nationaloekonomie, correspondente a "economia obstinada sede de saber e da confiança cega na sapiência professoral,
política", significa, literalmente, "economia nacional", economia "de um
povo", "de uma nação". Donde a ironia de R. Luxemburgo: a "economia impor-se-á o sacrifício de ler duas, três vezes, este emaranhado de
política"... é a economia política — bela explicação! frases, para ver se consegue extrair daí qualquer coisa. Tememos que
seja tempo

36 37
perdido. O que se nos oferece não passa de frases vazias e linguagem cujo primeiro livro apareceu três anos mais tarde, realizando por
afetada. Este juízo é correto, pois assenta num sinal infalível: quem assim dizer o desejo expresso por Lassalle. Com isso, Marx coloca a
pensa claramente e domina a fundo aquilo de que fala, exprime-se sua obra fora da economia política, considerando esta como um todo
claramente e de maneira compreensível; quem se exprime de maneira acabado e sobre o qual vai exercer uma crítica. Ciência que para
obscura e pretensiosa, quando não se trata de puras ideias filosóficas alguns é tão antiga como a história escrita da humanidade, de que
nem de elucubrações religiosas, mostra logo que não entende muito outros dizem não datar de mais de século e meio, outros que só agora
bem o assunto em questão ou, então, que tem razões para evitar falar começa a dar os primeiros passos e ainda outros que já está
claramente. Veremos mais à frente que não é por acaso servirem--se ultrapassada e que já é tempo de destrui-la pela crítica — tudo isto é
os sábios burgueses de uma linguagem obscura e confusa para falar suficiente para se concluir que a economia política levanta problemas
da essência da economia política e que, pelo contrário, isso revela específicos e bastante complexos.
tanto a sua própria confusão como a recusa tendenciosa e encarniçada
Mas seria um erro completo pedir a um dos representantes
em clarificar realmente a questão.
oficiais desta ciência que explicasse porque é que a economia política
Pode-se compreender a impossibilidade de definição da essência apareceu tão tarde, isto é, há cerca de cento e cinquenta anos. O
da economia política, se considerarmos que sempre foram emitidas as professor Duhring explicar-nos-á, por exemplo, através de uma
opiniões mais contraditórias sobre as suas origens. Um historiador grande retórica, que os antigos gregos e romanos ainda não tinham
conhecido, antigo professor na universidade de Paris, Adolphe noções científicas das realidades da economia política, mas somente
Blanqui — irmão do célebre dirigente socialista e combatente da ideias "irresponsáveis", "superficiais", "tudo quanto há de mais
Comuna, Auguste Blanqui — começa o primeiro capítulo da sua ordinário", tiradas da experiência quotidiana, e que a Idade Média
História da Evolução Económica (1837) com o seguinte título: "A não tinha nenhuma noção científica. Mas esta sábia explicação não
economia política é mais antiga do que se pensa. Os gregos e os permite avançar nada e os lugares comuns apenas nos induzirão em
romanos já tinham a sua economia política". Outros, pelo contrário, erro.
como por exemplo o antigo professor da universidade de Berlim,
Eugen Duhring, esforçam-se em sublinhar que a economia política é Uma outra original explicação nos é dada pelo professor
mais recente do que vulgarmente se julga, que na realidade esta Schmoller. No artigo extraído do Dicionário das Ciências Políticas
ciência apareceu somente na segunda metade do século XVIII. E, já citado atrás, "regala-nos" com as considerações que se seguem:
para citar também socialistas, Lassalle nota o seguinte, no prefácio ao "Durante séculos, observaram-se e descreveram-se fatos
seu clássico escrito polémico contra Schultze-Delitzsch, Capital e particulares da economia privada e social, reconheceram-se verdades
Trabalho (1864): "A economia política é uma ciência que só agora económicas particulares e debateram-se questões económicas sobre
apareceu e que está ainda por fazer". os sistemas de moral e de direito. Estes esquemas parciais só
Pelo contrário, Karl Marx deu o subtítulo de Crítica da puderam unificar-se numa determinada ciência quando as questões
Economia Política à sua principal obra económica O Capital. económicas alcançaram um valor, in-suspeitado anteriormente, na
condução e administração dos

38 39
Estados nos séculos XVII a XIX; numerosos autores a tomaram por que em tempo de guerra prega a h i s t o r i a nacionalista contra os
objeto do seu estudo, tornou-se necessário ensiná-la à juventude povos e o canibalismo moral. Contudo, para o resto da humanidade,
estudantil e, ao mesmo tempo, o progresso do pensamento científico para todos os que não são pagos pelo Tesouro, semelhante conceito é
conduziu, de uma maneira geral, à unificação das proposições e difícil de digerir. Mas esta t eo r ia cria um novo enigma. Que teria
verdades económicas acumuladas num sistema autónomo, ligado por acontecido para que, por volta do século XVII, como afirma o
determinadas ideias fundamentais, como o dinheiro, o intercâmbio, a professor Schmoller, os governos dos Estados modernos tenham
política económica estatal, o trabalho e a divisão do trabalho — foi sentido repentinamente a necessidade de esfolar os súditos
isso que tentaram os principais autores do século XVIII. A partir respectivos segundo princípios científicos, quando tudo correra tão
desse momento, a economia política existe como ciência autónoma." bem durante séculos, segundo o costume patriarcal e sem que fossem
necessários tais princípios? Não será melhor pôr as coisas no seu
Resumindo o pouco sentido que esta longa tirada encerra, lugar? Estas novas necessidades das "Tesourarias principescas" não
extraímos esta lição: observações que ficaram durante muito tempo terão sido elas próprias uma modesta consequência da grande virada
dispersas foram reunidas em uma ciência à parte, quando a "direção e histórica da qual saiu a nova ciência da economia política, em meados
administração dos Estados", isto é, o Governo, sentiu essa do século XIX?
necessidade e quando se tornou necessário ensiná-la nas
universidades. Como esta explicação é admirável e clássica para um Seja como for, já que a corporação dos sábios não nos ensinou
professor alemão! Devido a uma "necessidade" desse estimável qual o real objeto da economia política, ficamos também sem saber
governo, cria-se uma cátedra que um professor se apressa a ocupar. quando e porquê ela apareceu.
Em seguida, é necessário criar a ciência correspondente, senão que
iria ensinar o professor? Pensamos naquele mestre de cerimónias que II
afirmava terem as monarquias de existir sempre, pois, se não, para
que serviriam os mestres de cerimónias? Poderia pensar-se, portanto, Contudo, uma coisa é certa: todas as definições citadas dos
que a economia política apareceu como ciência porque os Estados intelectuais a soldo dos capitalistas falam de "Volkswirts-chaft". Com
Modernos precisavam dela. Dir-se-ia mesmo que uma encomenda das efeito, o termo "Nationalõkonomie" não é mais do que a tradução
autoridades teria dado origem à economia política! Que as literal para o alemão de: doutrina da economia política.
necessidades financeiras dos príncipes, que uma ordem dos governos
A noção de economia política está no centro das explicações de
bastem para fazer jorrar da terra uma ciência completamente nova, eis
todos os representantes oficiais desta ciência. Ora, o que é a
a maneira de pensar deste professor, lacaio intelectual dos governos
economia política? O professor Biicher, cuja obra A Origem da
imperiais, que de boa vontade se encarrega de fazer agitação
Economia Política goza de uma grande audiência tanto na Alemanha
"científica" a favor de tal ou tal projeto de orçamento da Marinha, de
como no estrangeiro, dá a este respeito a seguinte informação:
determinada proposta de lei alfandegária ou fiscal, abutre dos
campos de batalha

40 41
"O conjunto das manifestações, instituições e fenómenos que Para viver, o homem tem necessidade de se alimentar, abrigar,
provocam a satisfação de todo um povo constitui a economia política. vestir e de todo um conjunto de utensílios domésticos. Estas coisas
Por sua vez, a economia política decompõe-se em inúmeras podem ser simples ou refinadas, escassas ou abundantes. Contudo,
economias particulares ligadas entre si pela circulação dos bens e são indispensáveis a existência em qualquer sociedade humana e por
mantendo múltiplos laços de interdependência, devido ao fato de isso precisam sei continuamente fabricadas já que em parte nenhuma
cada uma cumprir certas tarefas para todas as outras e implicar que as essas coisas nos caem do céu. Nos estados civilizados há ainda que
outras procedam reciprocamente da mesma maneira." acrescentar todo um conjunto de objetos que tornam a vida mais
agradável e que ajudam a satisfazer as necessidades morais e sociais,
Tentemos igualmente traduzir esta sábia "definição" em havendo mesmo que incluir as armas, para "defesa contra os
linguagem corrente. Quando ouvimos falar, logo de início, do inimigos". Entre os chamados selvagens são as máscaras de dança, o
conjunto das instituições e fenómenos destinados a satisfazer as arco e as flechas, as estátuas dos ídolos; entre nós são os objetos de
necessidades do povo, temos de pensar em todas as possibilidades: luxo, as igrejas, as metralhadoras e os submarinos. Para produzir
nas fábricas e oficinas, na agricultura e na pecuária, nas estradas de todos estes objetos são necessárias matérias-primas e ferramentas.
ferro e nos armazéns, mas também nos sermões religiosos e nos Estas matérias-primas, isto é, as pedras, as madeiras, os metais, as
postos de polícia, nos espetáculos de bale, nos registros civis e nos plantas, etc, exigem trabalho humano e as ferramentas utilizadas são
observatórios astronómicos, nas eleições parlamentares, nos também produtos do trabalho humano.
soberanos e nas associações de combatentes, nos clubes de xadrez, Contentando-nos provisoriamente com este quadro grosseiro,
nas exposições caninas e nos duelos — porque tudo isto e uma poderíamos apresentar a economia política mais ou menos da
infinidade de outras "instituições e fenómenos" servem atualmente maneira que se segue: qualquer povo cria, constantemente, pelo seu
para "satisfazer as necessidades de todo o povo". Mas, então, a próprio trabalho, uma quantidade de coisas necessárias para a vida —
alimentos, vestuário, casas, utensílios domésticos, adornos, armas,
economia política seria tudo o que se passa entre o céu e a terra, e a
etc, — bem como matérias e ferramentas necessárias à produção
ciência da economia política seria a ciência universal "de todas e mais
dessas coisas. A forma como um povo executa todos estes trabalhos,
algumas coisas", como diz um provérbio latino.
como reparte os produtos por todos os seus membros, como os
É evidente que se tem de limitar a generosa definição do consome e os produz novamente no eterno movimento circular da
professor de Leipzig. Talvez ele só quisesse falar de "instituições e vida, tudo isto constitui a economia do povo em questão, isto é, a
fenómenos" que servem para a satisfação das necessidades materiais "economia política". Talvez seja este, mais ou menos, o sentido da
de um povo ou, mais exatamente, para a "satisfação das necessidades primeira frase da definição do professor Bucher. Mas continuemos a
mediante coisas materiais". Mesmo assim, o "conjunto" ainda teria nossa explicação.
uma acepção demasiado ampla e poderia facilmente perder-se entre "A economia política decompõe-se, por sua vez, em inúmeras
as nuvens. No entanto, procuremos situarmo-nos nele o melhor economias particulares ligadas entre si pela circulação
possível.

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e mantendo múltiplos laços de interdependência, devido ao cisam para viver. Evidentemente que nos Estados modernos
fato de cada uma cumprir certas tarefas para todas as outras e também há numerosas famílias produzindo a domicílio diver-
implicar que as outras procedam reciprocamente da mesma sos produtos industriais como os tecelões, as costureiras e
maneira." outros trabalhadores da confecção; e há mesmo aldeias inteiras
que fabricam brinquedos ou objetos análogos. Mas, precisa-
Aqui nos defrontamos com um novo problema: o que mente neste caso, o produto do trabalho domestico pertence
serão estas "economias particulares" em que se decompõe a exclusivamente ao empresário que o encomendou c o paga, não
"economia política" que tanto trabalho nos deu para situar? À sendo senão uma parcela mínima consumida pela família que o
primeira vista, parece que vai ser mesmo necessário englobar produziu. Com o seu magro salário os trabalhadores a
nesta categoria os agregados familiares e as economias do- domicílio compram para a sua economia doméstica objetos já
mésticas. De fato, qualquer povo, nos países ditos civilizados, acabados, exatamente como as outras famílias. O que Bii-cher
existe por relação com um certo número de famílias e cada diz, isto é, que a economia se decomporia em economias
família tem, por princípio, uma vida "económica". E em que particulares, significa afinal, em outros termos, que a produção
consiste esta economia? A família tem certas receitas em di- dos meios de existência de todo um povo se "decompõe" no
nheiro, provenientes da atividade dos seus membros adultos consumo destes meios pelas famílias particulares. O que é
ou, então, de outras proveniências, com as quais faz face às absurdo.
suas necessidades de alimentação, vestuário, habitação, etc. Mas uma outra dúvida se apresenta. As "economias par-
E quando pensamos numa economia familiar, deparamos ticulares" estariam também, segundo o professor Biicher, "li-
imediatamente com a mãe de família, a cozinha, o guarda-rou- gadas entre si pela circulação" e inteiramente dependentes
pa e o quarto das crianças. A "economia política" decompor-- umas das outras, dado que "cada uma cumpre certas tarefas
se-á em "economias particulares" deste género? Na economia para as outras". De que circulação e de que dependência que-
política, tal como acabamos de a apresentar, tratava-se antes de rerá ele falar? De trocas entre famílias amigas, entre vizinhos?
mais nada da produção de todos os bens necessários à vida e ao Mas esta circulação terá alguma coisa a ver com a economia
trabalho, alimentação, vestuário, alojamento, móveis, ferramentas política e com a economia em geral? Qualquer boa dona de
e matérias-primas. Nas economias familiares, pelo contrário, casa nos dirá que quanto menos trocas e idas e vindas houver
trata-se apenas do consumo dos objetos já acabados que a entre as casas, melhor será para a economia e para a paz
família obtém com o dinheiro que possui. A maior parte das domésticas". E no que diz respeito à "dependência" ninguém
famílias, nos Estados modernos, compra quase todos os consegue ver que "tarefas" cumpriria a economia doméstica do
víveres, móveis, etc, nas lojas ou no mercado. Numa economia caseiro Meyer para a economia doméstica do professor
doméstica as refeições são preparadas a partir de víveres Schultze e "para todas as outras". Decididamente saímos do
comprados e o vestuário que ainda é confeccionado em casa rumo certo e o melhor é retomarmos a questão por outro
utiliza tecidos comprados. Apenas nas regiões muito atrasadas se ângulo.
encontram ainda famílias camponesas que obtêm dire-tamente, A "economia política" do professor Biicher não se de-
pelo seu próprio trabalho, a maior parte do que pre- compõe, portanto, em economias particulares familiares. Mas

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decompor-se-ia em fábricas, oficinas, explorações agrícolas, etc? consumido em família pelo proprietário de uma siderurgia. Além do
Um indício parece confirmar que, desta vez, estamos no bom mais, se quisermos determinar mais precisamente <> que é a
caminho. Efetivamente, é nas empresas que se produz aquilo que "economia", ser-nos-á necessário concebe-la como um todo fechado
serve para manter todo o povo e, de fato, há, entre as empresas, de uma maneira determinada, no qual se produzem e consomem os
circulação e interdependência. Uma fábrica de botões depende meios de subsistência mais importantes para a existência humana.
inteiramente dos alfaiates que são os compradores da sua mercadoria, e Mas cada empresa industrial ou agrícola atual fornece apenas um ou,
os alfaiates não podem fazer nem calças nem casacos sem utilizarem quando muito, alguns produtos que não chegariam nem de longe para
botões. Por outro lado, os alfaiates têm necessidade de matérias- manter pessoas. Grande parte das vezes mesmo, estes produtos não
primas e por isso dependem, por sua vez, das fábricas de tecidos de lã e são consumíveis, constituindo somente parte de um meio de
de algodão, e estas dependem da criação de carneiros e do comércio de subsistência, ou a matéria-prima de uma ferramenta. As empresas de
lã, e assim sucessivamente. Aqui constatamos realmente uma produção atuais não são, com efeito, senão frações de uma economia
interdependência na produção e com numerosas ramificações. e, em si próprias, do ponto de vista económico, não têm nem sentido
Certamente será um bocado pomposo falar das "tarefas" que cada nem objetivo. Esta é, precisamente, uma característica constatável
uma das empresas "cumpre para todas as outras", a propósito da mesmo para o observador mais desprevenido: cada empresa de
venda de botões aos alfaiates, da venda de lã de carneiro às tecelagens e produção é apenas uma parcela informe de uma economia e não uma
de outras operações ordinárias. Mas é com estas inevitáveis flores de "economia". Se, por conseguinte, se diz que a economia política, isto
retórica que a gíria professoral gosta de enfeitar de poesia e "juízos de é, o conjunto das instituições e fenómenos que servem para a
valor morais", como tão bem diz o professor Schmoller, os pequenos e satisfação das necessidades de um povo se decompõe em economias
lucrativos negócios do mundo dos empresários. Surgem-nos, contudo, particulares, fábricas, oficinas, minas, etc, então, poderia muito bem
neste ponto, dúvidas ainda mais graves. As diversas fábricas, as dizer-se igualmente que o conjunto das "instituições" biológicas que
explorações agrícolas e as minas de carvão seriam outras tantas servem para a realização de todas as funções do organismo humano é
"economias particulares" em que se decompõe a economia política. o próprio homem e que este, por sua vez, se decompõe em muitos
Mas a noção de "economia", implica, evidentemente, — pelo menos é organismos particulares a saber: nariz, orelhas, pernas, braços, etc. E,
assim que nós a entendemos — tanto a produção como o consumo de de fato, uma fábrica atual é tanto uma economia particular como o
meios de subsistência numa certa área. Ora, o que se faz nas fábricas, nariz é um organismo particular.
nas oficinas, nas minas, é apenas produzir, e para outros. O que lá é Portanto, seguindo este caminho, chegamos igualmente a um
consumido são apenas as matérias-primas de que são feitas as absurdo. O que prova que as engenhosas definições dos sábios
ferramentas e as próprias ferramentas. O produto acabado, esse, não é burgueses, ao apoiarem-se unicamente em aspectos exteriores e em
consumido na fábrica. Nem um só botão é consumido pelo fabricante sutilezas verbais, visam somente evitar o fundo do problema.
e pela sua família, e muito menos ainda pelos operários das fábricas; Tentemos nós mesmos submeter a noção de economia política a um
tampouco um só tubo de aço é exame mais preciso.

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III terra, Estados Unidos e índia; escórias utilizadas como adubos para a
Holanda e Áustria-Hungria; o coque para a França; cabos elétricos
Falam-nos das necessidades de um povo, da satisfação destas para a Inglaterra, Suécia e Bélgica; brinquedos para os Estados
necessidades numa economia formando um todo e, neste caso, da Unidos; a cerveja alemã, a anilina e outros corantes provenientes do
economia de um povo. A teoria da economia política deve ser, pois, a alcatrão, medicamentos, celulose, objetos de ouro, meias, tecidos,
ciência que nos explica a essência da economia de um povo, isto é, as vestuário de lã e de algodão e trilhos de estrada de ferro são
leis segundo as quais um povo cria riqueza com o trabalho, a expedidos para quase todos os países comerciantes do mundo.
aumenta, a reparte entre os indivíduos, a consome e a cria de novo. O
Mas, inversamente, o trabalho do povo alemão depende em cada
objeto do estudo deve ser, portanto, a vida económica de todo um
etapa, no consumo cotidiano, dos produtos de países e de povos
povo, por oposição à economia privada ou particular, seja qual for o
significado desta. Confirmando aparentemente esta maneira de ver, a estrangeiros. O nosso pão é feito com cereais russos, a carne provém
obra clássica publicada em 1776 do inglês Adam Smith, a quem do gado húngaro, dinamarquês, russo; o arroz vem das índias
chamam pai da economia política, tem o título de A Riqueza das Holandesas e do Brasil; recebemos o cacau da África Ocidental, a
Nações. pimenta da Índia, a banha dos Estados Unidos, o café do Brasil, da
América Central ou das índias Holandesas; os extratos de carne
Mas, na realidade, existirá alguma coisa que seja a economia de provêm-nos do Uruguai e os ovos da Rússia, Hungria e Bulgária; os
um povo? É o que é preciso saber. Terá cada povo a sua própria vida
charutos de Cuba, relógios da Suíça, vinhos espumantes da França,
económica particular e fechada sobre si mesma? A expressão
couros da Argentina, penas para colchões da China, seda da Itália e
"economia nacional" é usada com pre-dileção na Alemanha; vejamos,
da França, linho e cânhamo da Rússia, algodão dos Estados Unidos,
então, com mais atenção, o que se passa na Alemanha.
da índia, do Egito; lã fina da Inglaterra; linhita da Áustria; salitre do
As mãos dos operários e das operárias alemães produzem todos Chile; madeiras para a construção da Rússia; vimes para cestos e
os anos na agricultura e na indústria uma quantidade enorme de bens cadeiras de Portugal; cobre dos Estados Unidos; zinco da Austrália;
de consumo de todas as espécies. Serão todos estes bens produzidos alumínio da Áustria-Hungria e do Canadá; asfalto e mármore da
para o consumo interno do Império Alemão? Sabemos que uma parte Itália; chumbo da Bélgica, Estados Unidos, Austrália; grafite do
muito importante (e maior de ano para ano) dos produtos alemães é Ceilão; cal da América e da Argélia; iodo do Chile, etc.
exportada para outros povos, países e continentes. Os produtos
Dos mais simples alimentos diários aos objetos de luxo de
siderúrgicos alemães vão para diversos países europeus vizinhos e
maior procura e às matérias-primas e ferramentas mais necessárias, a
também para a América do Sul e a Austrália; o couro e os objetos de
maior parte provém direta ou indiretamente, no todo ou em parte, de
couro seguem para todos os estados europeus; vidros, açúcar e luvas
países estrangeiros e são produto do trabalho de povos estrangeiros.
para a Inglaterra; as peles para a França, Inglaterra, Áustria-Hungria;
a alizarina (matéria corante) para a Ingla-

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Para podermos viver e trabalhar na Alemanha, fazemos Mas a situação é a mesma, em proporções maiores ou menores,
trabalhar quase todos os países e povos de todos os continentes, e por para os outros países modernos, isto é, precisamente para aqueles
nossa vez trabalhamos para todos os outros países. cuja vida económica constitui o objeto exclusivo da economia
Para vermos as enormes dimensões destas trocas, lancemos uma política. Todos estes países produzem uns para os outros e em parte
olhadela às estatísticas oficiais das importações e exportações. também para os continentes mais atrasados, mas utilizam, tanto no
Segundo o Anuário Estatístico do Império Alemão de 1914, o consumo como na produção, produtos de todos os continentes.
comércio alemão, excluindo-se as mercadorias que por ele transitam Como é que, face a um tão grande desenvolvimento das trocas,
e se destinam a outros países, apre-sentava-se da seguinte maneira: se pode traçar limites entre as "economias" de dois povos, falar tanto
de "economias nacionais" como se se tratassem de domínios
A Alemanha importou em 1913: formando um todo e podendo ser considerados separadamente?
Matérias-primas .................................. 5.262 milhões de marcos É evidente que a existência das trocas internacionais e mesmo o
Produtos semi-acabados ...................... 1.246 aumento destas não são descobertas que tenham escapado aos sábios
Produtos acabados ............................... 1.776 burgueses. As estatísticas oficiais publicadas em relatórios anuais
Produtos alimentares ........................... 3.063 fazem com que estas realidades relevem do domínio público; o
Animais vivos ...................................... 289 homem de negócios, o operário fabril conhecem-nas, sobretudo
devido às suas vidas cotidia-nas. O crescimento rápido do comércio
Total .................................................... 11.638 mundial é hoje um fato tão universalmente conhecido e reconhecido
que ninguém poderá contestá-lo ou duvidar da sua existência. Mas
ou seja, quase 12 bilhões de marcos. como é que os peritos de economia o consideram? Como uma relação
puramente exterior, como a exportação daquilo a que chamam o
E exportou: "excedente" da produção de um país em relação às suas próprias
Matérias-primas .................................. 1.720 milhões de marcos necessidades e a importação do que "faltaria" à sua própria economia.
Produtos semi-acabados ...................... 1.159 Esta relação em nada os impede de continuarem a falar de "economia
Produtos acabados ............................... 6.642 política".
Produtos alimentares ........................... 1.362 " É assim que, por exemplo, o professor Biicher, o qual depois de
Animais vivos ..................................... 7 nos ter dado profundas lições da "economia política" atual, estágio
último e supremo na série das forças económicas históricas,
Total .................................................... 10.891.. " proclama:
"É um erro julgar que as facilidades introduzidas pela era liberal
ou seja, quase 11 bilhões de marcos. no comércio internacional levarão ao declínio do
O conjunto dá mais de vinte e dois bilhões de marcos para o
comércio externo anual da Alemanha.

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período da economia nacional e que este dará lugar ao período mente crescente para a economia política moderna. O que se
da economia mundial. Na verdade, vemos atualmente na Eu- passa é precisamente o inverso". O professor Sombart está
ropa uma série de Estados privados de autonomia nacional no convencido de que "as diferentes economias nacionais se tor-
que diz respeito ao aprovisionamento de bens, na medida em nam microcosmos cada vez mais aperfeiçoados e que em todas
que são obrigados a receber do estrangeiro grandes quantidades as indústrias o mercado interno tende a predominar sobre o
de produtos alimentares, enquanto que a sua produção industrial mercado mundial "(3>.
ultrapassou em muito as necessidades nacionais e fornece Esta brilhante inépcia, que agride sem qualquer conside-
continuamente excedentes que têm de encontrar utilização no ração todas as observações correntes da vida económica, su-
estrangeiro. Mas não se deve ver na coexistência de países blinha maravilhosamente a obstinação com que os senhores
industriais e de países fornecedores de matérias-pri-mas sábios se recusam a reconhecer a economia mundial como uma
dependendo uns dos outros, nesta "divisão internacional do nova fase da evolução da sociedade humana, recusa que nós
trabalho", um sinal de que a humanidade se encontra pronta a anotamos para lhe procurarmos as raízes escondidas.
iniciar uma nova etapa da sua evolução, etapa que se oporia às Assim, porque nas "etapas anteriores da economia", no
precedentes sob o nome de economia mundial. Porque, por um tempo do rei Nabucodonosor, por exemplo, "algumas lacunas"
lado, nenhuma etapa económica jamais garantiu a plena da vida económica eram já preenchidas pela troca, o comércio
satisfação das necessidades; todas elas deixaram subsistir certas mundial atual não significa nada e é necessário ficar na "eco-
lacunas que era necessário preencher desta ou daquela maneira.
nomia nacional". Tal é a opinião do professor Biicher.
Por outro lado, esta pretensa economia mundial nunca fez
aparecer (pelo menos até à data) fenómenos diferindo Esta opinião caracteriza bem a grosseria das concepções
essencialmente dos da economia nacional e podemos duvidar que históricas de um cientista cuja reputação assenta precisamente
apareçam num futuro previsível." w sob uma pretensa perspicácia e profundidade de visão da his-
tória económica! O professor Biicher mete no mesmo saco,
Ainda com mais audácia, Sombart, jovem colega do pro- sem quaisquer escrúpulos, em nome de um esquema absurdo, o
fessor Biicher, declara sem rodeios que não se está entrando na comércio internacional das mais diversas etapas da economia e
economia mundial, mas que, pelo contrário, nos afastamos dela da civilização abrangendo milhares de anos! É verdade que não
cada vez mais: "Afirmo que atualmente os povos civilizados houve etapas na sociedade sem trocas. As escavações pré--
não se encontram cada vez mais ligados entre si por relações históricas mais antigas, as mais grosseiras cavernas que servi-
comerciais, antes pelo contrário. Uma economia nacional ram de habitat à humanidade "antediluviana", os túmulos pré--
particular não está hoje mais integrada no mercado mundial do históricos primitivos, testemunham todos um certo tipo de
que há cem ou cinqUenta anos, mas sim menos. Entretanto, não trocas de produtos entre regiões afastadas. A troca é tão antiga
devemos admitir que as relações comerciais internacionais como a história das civilizações humanas, sempre a acompanhou
tenham adquirido uma importância relativa- e foi o mais importante motor do seu progresso. Ora,

2 — Biicher A formação da economia nacional (Die Entstehung der 3 — W. Sombart: A economia nacional alemã no século XIX, 2.a ed.,
Volkswirtschaft), 5.a ed., p. 147. 1909, pp. 339-420.

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é nesta verdade geral e, por isso mesmo, absolutamente vaga que o
todas essas concepções? (...) O senhor ignora completamente que
nosso sábio afoga todas as particularidades das diferentes épocas, as
aquilo que o trabalho social de hoje tem precisamente de
etapas da civilização, as formas económicas. Assim como de noite
característico é o fato de ninguém produzir para si próprio? Ignora
todos os gatos são pardos, também na obscuridade desta teoria
você completamente que assim é, necessariamente, a partir do
universitária, as mais diversas formas de intercâmbio se confundem
momento em que apareceu a grande indústria, que nisso reside a
numa só. A troca primitiva de uma tribo indígena do Brasil, que
forma e a essência do trabalho e que, se não tivermos em conta este
permuta ocasionalmente com outra tribo máscaras de dança por arcos e
ponto, não poderemos compreender nenhum aspecto da situação
flechas; as feéricas lojas da Babilónia onde se amontoava o esplendor
económica atual, nenhum fenómeno económico atual?
das cortes orientais; o mercado de Corinto onde se vendiam as
"Segundo o senhor, a senhora Leonor Reichenheim, de Wuste-
cambraias do Oriente em noites de Lua Nova, a cerâmica grega, o papel
Giersdor, produz primeiramente o fio de algodão de que precisa e só
de Tiro, os escravos da Síria e da Anatólia; o comércio marítimo da
depois troca o excedente que as suas filhas já não podem transformar
Veneza Medieval que fornecia objetos de luxo às cortes feudais e às
em meias ou camisolas.
casas patrícias da Europa... e o comércio capitalista mundial da
atualidade, que se ramifica tanto para Ocidente como para Oriente, para "O senhor Borsig produz em primeiro lugar máquinas para as
o Norte e para o Sul, que se efetua sobre todos os Oceanos e cantos do suas necessidades familiares. E só depois é que vende o excedente.
mundo, levando de um lado para outro, todos os anos, massas enormes "As lojas de artigos de luto trabalham tendo em vista
— desde o pão cotidiano e o fósforo do mendigo até ao objeto de arte falecimentos nas famílias dos donos. Como estes são bastante raros,
mais procurado pelo rico amador, do mais simples produto da terra até à são obrigados a utilizar o material que têm a mais nos falecimentos
ferramenta mais complicada saída das mãos do operário, fonte de toda a de pessoas estranhas à família do dono.
riqueza, até aos instrumentos mortíferos da guerra — tudo isto não passa "O senhor Wolf, proprietário do telégrafo local, recebe os
de uma única e mesma coisa para o nosso professor: o simples telegramas primeiro que tudo para sua própria informação e
"preenchimento" de certas "lacunas" em organismos económicos satisfação pessoais. Uma vez farto deles, envia-os aos agiotas da
autónomos!... Bolsa e aos redatores dos jornais que, em troca, põem ao seu serviço
Há cinquenta anos, Schultze von Delitzsch contava aos os correspondentes que têm a mais!. . .
operários alemães que cada um produz primeiro que tudo para si "O caráter distintivo do trabalho dos períodos sociais anteriores,
próprio, e que "em troca de produtos dos outros" dá aqueles "que não ao qual é necessário atermo-nos rigorosamente, consistia na produção
precisa para si próprio". Lassalle respondeu de maneira categórica a para as necessidades locais e na troca do excedente, isto é, na prática
este disparate: predominante da economia natural. Ora, o caráter distinto e
"Senhor Schultze! O senhor não faz nenhuma ideia da realidade específico do trabalho na sociedade moderna é que cada um produz
do trabalho social de hoje? Nunca saiu de Bitterfeld e de Delitzsch? não aquilo de que necessita, mas valores de troca, da mesma maneira
Em que século medieval vive o senhor com que se produziam outrora valores de uso.
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"E não compreende o senhor que esta é a forma necessá- tria alemã: ao importar anualmente 1,4 bilhões de marcos de
ria e cada vez mais espalhada do trabalho numa sociedade em
mercadorias alemãs, a Inglaterra vem largamente à frente dos
que a divisão do trabalho tomou a amplitude que tem na so-
outros países. E o Império Britânico absorve um quinto das
ciedade moderna?"
exportações alemãs. Que pensa o nosso professor deste notável
O que Lassalle tenta aqui explicar a Schultze, a propósito fenómeno?
da empresa privada capitalista, aplica-se hoje ao modo de De um lado, um estado industrial e, do outro, um estado
economia de países capitalistas tão evoluídos como a Inglaterra, agrário, tal é a ossatura rígida das relações económicas mun-
a Alemanha, Bélgica, Estados Unidos, no rastro dos quais os diais com que operam o professor Biicher e a maior parte dos
outros países se colocam, uns atrás dos outros. E a confusão seus colegas. Ora, nos anos sessenta, a Alemanha era um
que o juiz progressista de Bitterfeld provocou nos operários era estado agrário; exportava o excedente dos seus produtos agrí-
muito mais ingénua, mas não era mais grosseira do que a colas e tinha de obter da Inglaterra os bens industriais mais
controvérsia sobre o conceito de economia mundial de um indispensáveis. A partir de então tornou-se um estado indus-
Biicher ou de um Sombart. trial e é o mais poderoso rival da Inglaterra. Os Estados Unidos
O professor alemão, como é um funcionário pontual, gosta de ter da América estão em vias de ultrapassar ainda num prazo menor
ordem no seu domínio. Por amor à ordem arruma o mundo, com a mesma etapa que a Alemanha nos anos 70 e 80. Juntamente
limpeza, em compartimentos de um esquema científico. E, da com a Rússia, Canadá, Austrália e Roménia, os Estados Unidos
mesma maneira como dispõe os seus livros nas prateleiras da sua são um dos mais importantes produtores de trigo do mundo;
biblioteca, assim reparte os países: aqui, os países que produzem nas últimas estatísticas (1900), 36% da população ocupava-se
bens industriais e tendo um "excedente"; ali, os países que ainda com trabalhos agrícolas. Mas, entretanto, a sua indústria
progride com uma rapidez sem exemplo e torna-se uma perigosa
praticam a agricultura e a criação do gado e cujas matérias-
rival das indústrias inglesa e alemã. Abrimos aqui a questão
prímas faltam aos outros países. É aqui que nasce e tem as
seguinte: será necessário classificar os Estados Unidos na
suas bases o comércio internacional. A Alemanha é um dos
rubrica dos estados agrícolas ou na dos estados industriais?
países mais industrializados do mundo e, segundo este esquema, Isto, é claro, dentro dos critérios propostos pelo professor
deveria manter trocas muito desenvolvidas e ativas com um Biicher e qualquer eminente faculdade de economia política
grande país agrícola como a Rússia. Mas, então, porque é que as pode avançar a sua resposta. A Rússia caminha também,
trocas comerciais mais importantes da Alemanha se fazem com lentamente, na mesma via e logo que se tenha visto livre das
dois outros países industrializados, os Estados Unidos da estruturas estatais anacrónicas, a sua imensa população e as
América do Norte e a Inglaterra? Com efeito, as trocas da suas inesgotáveis riquezas naturais permitir-lhe--ão alcançar,
Alemanha com os Estados Unidos em 1913 subiram a 2,4 bilhões igualar ou mesmo até ultrapassar em pouco tempo o poderia
de marcos e com a Inglaterra a 2,3 bilhões; a Rússia surge só no industrial da Alemanha, da Inglaterra e dos Estados Unidos. O
terceiro lugar, E, particularmente no que diz respeito às mundo não tem, como se vê, uma ossatura rígida conforme
exportações, o primeiro estado industrial do mundo é também o proclama a sabedoria professoral; o mundo move-se, vive,
maior cliente da indús- transforma-se. A polaridade entre indústria e
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agricultura, da qual teriam nascido as trocas internacionais, é um E o comércio exterior anual (importação e exportação)
elemento fluído cada vez mais rejeitado para a periferia do mundo passava entre 1855 e 1912:
civilizado. Mas então que se passa, entretanto, com o comércio dentro
deste mundo civilizado? Segundo a teoria do professor Biieher, Inglaterra....................... de 13 para 27,4 bilhões de marcos
deveria ir-se reduzindo cada vez mais. Em vez disso — oh! milagre! Alemanha ...................... de 6,2 para 21,3 bilhões de marcos
—, torna-se cada vez mais intenso, precisamente entre os países Estados Unidos .... de 5,5 para 16,2 bilhões de marcos
industriais.
Nada mais instrutivo do que o quadro oferecido pela evolução Se tomarmos o conjunto do comércio exterior (importação e
do nosso mundo económico moderno de um quarto de século para cá. exportação) de todos os países importantes do globo, verificamos que
Se bem que assistamos desde 1880 a uma verdadeira orgia de passou de 105 bilhões de marcos em 1904 a 165 bilhões em 1912. Ou
proteção alfandegária, isto é, as "economias nacionais" fecham-se seja, um aumento de 57% em oito anos! Na verdade, é um ritmo de
artificialmente umas às outras em todos os países industriais e evolução económica sem exemplo em toda a história mundial até o
grandes estados da Europa, o desenvolvimento do comércio mundial, presente! "Os mortos andam depressa". A "economia nacional"
no mesmo intervalo de tempo, não só não parou, como também capitalista parece estar apressada em esgotar as suas capacidades de
tomou um andamento vertiginoso. Mesmo um cego pode ver a existência, abreviando o prazo de graças que lhe permite subsistir.
estreita ligação entre a industrialização crescente e o comércio Que diz de tudo isto o esquema professoral com a sua oposição
mundial, observando os três países pilotos, a Inglaterra, a Alemanha e grosseira entre estados industriais e estados agrários?
os Estados Unidos.
Na vida económica moderna há, contudo, muitos mais enigmas
O carvão e o ferro são a alma da indústria moderna. do género. Examinemos um pouco mais de perto o quadro das
importações e exportações alemãs em vez de nos contentarmos com
Ora a extração de carvão entre 1855 e 1910 variou: as somas globais de mercadorias trocadas ou com grandes categorias
gerais; passemos em revista os géneros mais importantes de
Inglaterra .................... de 162 para 269 milhões de toneladas mercadorias do comércio alemão.
Alemanha ................... de 74 para 222 milhões de toneladas
Estados Unidos ... de 101 para 455 milhões de toneladas No ano de 1913 a Alemanha:
milhões
No mesmo intervalo de tempo a produção de minérios de ferro importou de
variou: marcos

Inglaterra ................... de 7,5 para 10,2 milhões de toneladas Algodão bruto ............................................... 607
Alemanha .................. de 3,7 para 14,8 milhões de toneladas Trigo .............................................................. 417
Estados Unidos ... de 4,1 para 27,7 milhões de toneladas Lã .................................................................. 413

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Cevada .................................................... 390 Ferro em barras ..................................... 205
Cobre em bruto ....................................... 335 Artigos de seda ..................................... 202
Peles ........................................................ 322 Coque ...................................................... 147
Minérios de ferro .................................... 227 Produtos de anilina e outros deriv. do
Hulha ...................................................... 204 alcatrão ............................................ 142
Ovos ........................................................ 194 Vestuários ................................................ 132
Peles e artigos de pele ........................... 188 Objetos de cobre ..................................... 130
Salitre chileno .......................................... 172 Couros para sapatos ............................ 114
Seda bruta................................................ 158 Objetos de couro .................................. 114
Borracha .................................................. 147 Brinquedos .............................................. 103
Madeiras já serradas ................................ 135 Lâminas de aço ..................................... 102
Fio de algodão ......................................... 116 Fio de lã ................................................... 91
Fio de lã .................................................. 108 Tubos de aço ......................................... 84
Madeiras em bruto ............................... 97 Peles (bovinos) ........................................ 81
Peles de vitela ....................................... 95 Fio de aço ............................................. 76
Juta.......................................................... 94 Trilhos de estrada de ferro ................... 73
Máquinas ................................................. 80 Minérios ................................................... 65
Peles (cordeiros, cabras) ...................... 73 Fio de algodão ...................................... 61
Artigos de algodão ............................... 72 Objetos de borracha ............................ 57
Linhíta ..................................................... 69
Lã cardada ............................................... 61 Dois fatos chocam imediatamente, mesmo um observador
Artigos de lã ............................................ 43 oficial. O primeiro é que a mesma categoria de mercadorias
figura várias vezes nas duas colunas, embora em quantidades
milhões diferentes. A Alemanha exporta uma quantidade impressio-
exportou de nante de máquinas, mas importa-as igualmente pela soma não
marcos negligenciável de 80 milhões de marcos. Do mesmo modo,
exporta-se hulha a partir da Alemanha, mas, ao mesmo tempo,
Máquinas ................................................. 680 é importada hulha estrangeira e o mesmo se passa com os
Produtos de ferro ..................................... 652 artigos de algodão, a lã em fio, os artigos de lã e ainda também
Hulha ....................................................... 516 com as peles e muitas outras mercadorias que não figuram
Artigos de algodão................................... 446 neste quadro. Do ponto de vista simplista da oposição entre a
Artigos de lã ............................................ 271 indústria e a agricultura que, como a lâmpada maravilhosa de
Papel e derivados .................................... 263 Aladim, permite ao nosso professor de economia política
Peles e outros artigos .............................. 225 esclarecer todos os mistérios do comércio mundial mo-

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derno, esta notável dualidade é completamente incompreensível; alemão aparece assim, logo à primeira vista, como uma par-
é como se fosse um completo absurdo. Mas, então, a Alemanha cela de um todo maior, como uma oficina do mundo.
tem um "excedente além das suas próprias necessidades" em
máquinas ou terá só "certas lacunas"? E o que se passa com a Examinemos mais de perto esse "microcosmos" e a sua
hulha e com os artigos de algodão? E com as peles? E com autonomia "cada vez mais perfeita". Imaginemos que uma
outras mil e uma coisas! Ou, então, como é que uma catástrofe social ou política qualquer tivesse realmente cortado
"economia nacional" teria, simultaneamente e para os mesmos a "economia nacional" alemã do resto do mundo, e que esta se
produtos, um eventual "excedente" e certas "lacunas"? A visse reduzida a viver fechada em si própria. Qual seria a
lâmpada de Aladim vacila. O fato observado não pode imagem de uma tal Alemanha?
explicar-se, a não ser se admitirmos que entre a Alemanha e Comecemos pelo pão de todos os dias. A produtividade do
outros países existem relações económicas complexas e uma solo é maior duas vezes na Alemanha do que nos Estados
divisão do trabalho com numerosas ramificações sutis, em Unidos; só os países de cultura intensiva, como a Bélgica, a
função da qual certas espécies dos mesmos produtos são Irlanda e os Países Baixos é que têm uma produtividade su-
encomendadas à Alemanha pelo estrangeiro e outras no estran- perior. Há cinquenta anos, tendo uma agricultura muito menos
geiro para a Alemanha, suscitando um vaivém cotidiano no qual evoluída, a Alemanha fazia parte dos celeiros da Europa e
cada país é apenas um elemento orgânico de um conjunto mais alimentava os outros países com o seu excedente. Hoje, o solo
vasto. alemão, apesar da sua produtividade, está longe de bastar para a
alimentação da população e do gado que o trabalham; um sexto
Um outro fato ressalta igualmente à primeira vista no dos produtos alimentares tem de ser importado. Por outras
quadro: a importação e a exportação não aparecem como dois palavras, se cortarmos a "economia nacional" alemã do resto do
fenómenos separados cuja explicação possa ser dada, em uns mundo, um sexto da população alemã, isto é, mais de onze
casos, como sendo "lacunas" e, em outros, como sendo "exce- milhões de alemães ficarão privados de alimentos!
dentes" da economia do país. São, antes de qualquer outra O povo alemão consome anualmente duzentos e vinte mi-
consideração, fenómenos estreitamente ligados entre si por lhões de marcos de café, sessenta e sete milhões de marcos de
laços de causa e efeito. As enormes importações alemãs de cacau, oito milhões de marcos de chá, sessenta e um milhões de
algodão não se explicam, evidentemente, pelas necessidades marcos de arroz, absorve cerca de doze milhões de especiarias
próprias da população, mas sim pelo fato de elas permitirem as diversas e cento e trinta e quatro milhões de folhas de tabaco
importantes exportações alemãs de tecidos e vestuário de estrangeiro. Todos estes produtos, sem os quais o mais pobre de
algodão. Uma relação semelhante existe entre as importações de entre nós não pode viver hoje, e que fazem parte dos nossos
lã e as exportações de artigos de lã, entre as importações de hábitos cotidianos e do nosso nível de vida, não são (ou então
minérios estrangeiros e as exportações de mercadorias em aço de são pouco, como o tabaco) produzidos na Alemanha, por razões
todas as espécies, etc. Portanto, a Alemanha importa para poder de clima. Corte-se a Alemanha do resto do mundo e o nível de
exportar. Cria artificialmente certas "lacunas" para, em seguida, vida do povo alemão, correspondente à sua civilização atual,
poder transformá-las em "excedente". O microcosmos desmoronar-se-á.
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Depois da alimentação vem o vestuário. A roupa interior e a qiienta mil toneladas de zinco estrangeiro devem permitir cobrir as
quase totalidade do vestuário das largas massas são hoje feitas quase necessidades do país. Também só parcialmente o mi nério de zinco é
exclusivamente de algodão. A roupa interior da burguesia desafogada extraído na Alemanha. Só meio milhão de toneladas, representando
é de linho, e os seus vestuários de lã fina ou então de seda. Ora, a um valor de cinquenta milhões de marcos, provém de minas alemãs,
Alemanha não produz nem algodão nem seda, nem tão pouco esse tendo de ser importadas trezentas mil toneladas de minério de mais
têxtil tão importante que é a juta e ainda menos a lã fina de que a alta qualidade no valor de quarenta milhões de marcos. A Alemanha
Inglaterra possui o monopólio mundial; na Alemanha há um grande
importa noventa e quatro mil toneladas de chumbo e cento e vinte e
deficit de cânhamo e de linho. Corte-se então a Alemanha do resto do
três mil toneladas de minério de chumbo. Por fim, no que diz respeito
mundo, privando-a de matérias e de escoadouros estrangeiros, e
ao cobre, e sendo o consumo anual de duzentas e quarenta e uma mil
todas as camadas do povo alemão ficarão privadas do seu vestuário
toneladas, a Alemanha vê-se obrigada a importar duzentas e seis mil
mais indispensável; a indústria têxtil alemã que, juntamente com a
toneladas. Quanto ao estanho, este provém inteiramente do exterior.
indústria das confecções, alimenta hoje um milhão e quatrocentos mil
Corte-se então a Alemanha do resto do mundo e a sua produção de
trabalhadores e trabalhadoras, adultos e jovens, estará arruinada.
metais de grande qualidade, por um lado, e os escoadouros
Mas vamos um pouco mais longe. Aquilo a que se chama estrangeiros para os produtos de aço e máquinas alemãs, por outro,
indústria pesada, a produção de máquinas e a transformação de desaparecerão e, com eles, os fundamentos da indústria alemã de
metais, constitui a estrutura da grande indústria de hoje; a Alemanha transformação de metais, que emprega seiscentos e sessenta e dois
consome anualmente (em 1913) cerca de 17 milhões de toneladas de mil trabalhadores, e a indústria das máquinas, que faz viver um
ferro fundido e produz igualmente 17 milhões de toneladas. À milhão e cento e trinta mil operários e operárias .-Outros ramos da
primeira vista, poder-se-ia pensar que a "economia nacional" alemã indústria, que dos precedentes recebem as matérias-primas e as
cobre assim as suas próprias necessidades de ferro fundido. Mas o ferramentas, e os que lhes fornecem ma-térias-primas e matérias
ferro fundido fabrica-se a partir de minério de ferro. Ora, a Alemanha anexas, as minas em particular, e, enfim, os que produzem alimentos
apenas extrai cerca de vinte e sete milhões de toneladas com um valor para os poderosos exércitos operários desapareceriam.
de mais de cento e dez milhões de marcos, enquanto que doze milhões
Mencionemos ainda a indústria química com os seus cento e
de toneladas de minério de qualidade superior, representando
sessenta e oito mil trabalhadores produzindo para o mundo inteiro. E
duzentos milhões de marcos e indispensáveis à siderurgia alemã, vêm
da Suécia, França e Espanha. também a indústria da madeira, que emprega hoje quatrocentos e
cinquenta mil trabalhadores, e que sem as madeiras estrangeiras seria
A situação é mais ou menos a mesma no que diz respeito a obrigada a parar; e a indústria do couro que com os seus cento e
outros metais. A Alemanha consome anualmente duzentas e vinte mil dezessete mil trabalhadores ficaria paralisada sem as peles
toneladas de zinco e produz duzentas e setenta mil toneladas das estrangeiras e os grandes mercados estrangeiros. O ouro e a prata,
quais exporta cem mil, enquanto que cin- que servem para fazer

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moedas e como tal são a base indispensável de toda a vida eco- mento do povo alemão, "acrescida" por toda a superfície das
nómica atual, e que a Alemanha não produz. Imaginemos uma regiões ocupadas da Bélgica e do Norte da França, e no se-
tal situação e em seguida poderemos pôr a questão: o que é a gundo ano de guerra com a parte ocidental do Império Russo,
"economia nacional" alemã? Por outras palavras, supondo que cujos produtos agrícolas cobriam uma grande parte das impor-
a Alemanha possa ser cortada do resto do mundo de uma tacões que agora não eram feitas. A chocante subalimentação
maneira real e duradoura e que a sua economia deva bastar a si «las populações das regiões ocupadas era o reverso da imagem
própria, como é que evoluiria a vida económica atual e, do "microcosmos". Essas populações eram socorridas, por sua
consequentemente, toda a civilização alemã? A produção vez — como por exemplo a Bélgica —, pelo auxílio americano
desmoronar-se-ia setor após setor, arrastando-se uns aos outros; cm produtos agrícolas. O segundo aspecto complementar con-
uma enorme massa proletária ficaria desocupada; toda a sistia, na Alemanha, no encarecimento de todos os produtos
população ficaria privada dos alimentos indispensáveis e de alimentares de cem a duzentos por cento e na terrível subali-
vestuário; o comércio perderia a sua base e toda a "economia mentação das mais vastas camadas da população.
nacional" não seria mais do que um amontoado de ruínas.
Vemos bem agora o que são essas "certas lacunas" na vida E as engrenagens da indústria? Como puderam permanecer
económica alemã e esse "microcosmos cada vez mais perfeito" em movimento sem a contribuição em matérias-primas e outros
planando no éter azulado da teoria professoral. meios de produção, provenientes do estrangeiro e que vimos
serem de extrema importância? Como é que tal milagre se pôde
Um momento! E a guerra mundial em 1914, essa provação
produzir? O mistério explica-se da maneira mais simples e sem
da "economia nacional"? Não deu razão aos Biicher e aos
ser preciso milagres. A indústria pôde continuar em atividade,
Sombart? Não mostrou aos invejosos que o "microcosmos"
alemão pode subsistir perfeitamente, forte e vigoroso, num mas apenas porque foi constantemente alimentada em matérias-
isolamento hermético em relação ao comércio mundial, graças primas estrangeiras indispensáveis por três canais:
à sua organização estatal rigorosa e ao seu alto rendimento? A primeiramente, pelos grandes estoques de algodão, lã e cobre
alimentação da população foi suficiente sem ter de precisar que a Alemanha já possuía e que era só tirar dos esconderijos;
recorrer à agricultura estrangeira? E as engrenagens da em segundo lugar, pelos estoques requisitados aos países
indústria não continuaram a girar alegremente sem nenhuma ocupados, à Bélgica, ao Norte da França e em parte à Lituânia e
contribuição do estrangeiro e sem mercados externos? à Polónia; em terceiro lugar, pelas importações do estrangeiro,
Passemos ao exame dos fatos e comecemos pelo setor do através dos países neutros e do Luxemburgo, as quais nunca
abastecimento alimentar. A agricultura alemã esteve longe de abrandaram durante toda a guerra. Se acrescentarmos que
poder satisfazer todas as necessidades. Vários milhões de adul- estoques enormes de metais preciosos estrangeiros (condição
tos engajados no exército foram mantidos durante quase toda a indispensável de toda a economia de guerra) se encontravam
gueira por países estrangeiros: pela Bélgica, pela França do acumulados nos bancos alemães, verificamos que o isolamento
hermético da indústria e do comércio alemão não passa de uma
Norte e em parte pela Polónia e pela Lituânia. A "economia
lenda, bem como a alimentação da população alemã pela
nacional" viu-se, portanto, no que diz respeito ao abasteci-
agricultura do país, e que a pretensa

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auto-suficiência do "microcosmos" alemão durante a guerra excedente em relação às próprias necessidades" c das "cernis
mundial é uma "história para embalar criancinhas". lacunas"?
Quanto aos escoadouros da indústria alemã, tão importantes e Se as relações económicas entre as diferentes "economias
espalhados por todas as regiões do mundo, como vimos atrás, foram nacionais" se reduzem, como diz o professor, ao simples fato das
substituídos pelas necessidades de guerra do próprio Estado alemão.
"economias nacionais" passarem umas às outras os seus "excedentes"
Em outros termos, os ramos industriais mais importantes, as indústrias
como no tempo de Nabucodonosor, se a simples troca de mercadorias
de metais, têxteis, couros e os produtos químicos foram convertidas
é a única ponte que atravessa o éter azul que isola estes
em indústrias fornecedoras exclusivas do exército. Como o custo da
"microcosmos" uns dos outros, é claro, então, que um país só pode
guerra recaía sobre os contribuintes alemães, esta conversão da indús-
importar precisamente o mesmo volume que exporta. Porque na troca
tria em indústria de guerra significava que a "economia nacional"
mercantil simples a moeda é apenas um intermediário, cada qual paga
alemã, em vez de enviar uma grande parte dos seus produtos para o
a mercadoria estrangeira, em última análise, com a sua própria mer-
estrangeiro e trocá-los, abandonava-os à destruição contínua e estas
cadoria. Como é que uma "economia nacional" pode realizar,
perdas iriam sobrecarregar durante os decénios futuros os resultados
da economia, graças ao sistema do crédito público. portanto, esta proeza de importar de maneira permanente mais do que
exporta? Aqui o professor vai talvez exclamar e sorrir conosco: mas a
Em resumo, é claro que a maravilhosa prosperidade do solução é simplicíssima! O país importador não tem mais que fazer
"microcosmos" durante a guerra representava, sob todos os aspectos,
do que cobrir o excedente líquido. Mas, perdão! Deitar assim,
uma experiência sobre a qual apenas faltava saber quanto tempo
conforme os anos, para a voragem do comércio exterior, uma
poderia continuar sem que todo este edifício artificial viesse abaixo
quantidade importante de dinheiro líquido é um luxo que só um país
como um castelo de cartas.
cujo subsolo fosse rico em ouro ou prata poderia permitir-se, mas não
Vejamos agora um fenómeno notável. Se reparamos nos é esse o caso nem da Alemanha, nem da França, nem da Bélgica, nem
números globais do comércio exterior alemão ficaremos chocados dos Países Baixos. Além disso, temos — oh! maravilha! — outra
pela clara superioridade das importações sobre as exportações: em surpresa: a Alemanha não somente importa mais mercadorias, mas
1913 as primeiras iam até 11,6 bilhões de marcos, as segundas até também mais moeda do que exporta! As importações alemãs em ouro
10,9 bilhões. E 1913 não constitui uma exceção, pois a mesma e prata subiram assim em 1913 a 441,3 milhões de marcos, enquanto
relação se verifica durante uma longa série de anos. E o mesmo se que as exportações eram 102,8 milhões de marcos, mantendo-se esta
passa com a Inglaterra, a qual, em 1913, realizou importações no proporção já há anos. E sobre este mistério, que nos diz o professor
valor de 13 bilhões de marcos e exportações no valor de 10 bilhões. A Bucher? A lâmpada maravilhosa vacila tristemente.
situação é a mesma para a França, Bélgica, Holanda. Como é possível
Começamos a pressentir que, por detrás destes mistérios do
um tal fenómeno? O professor Bucher não quererá esclarecer-nos
comércio mundial, devem existir entre as várias "economias
sobre isto, com a sua teoria do
nacionais" relações económicas diferentes das simples trocas
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mercantis. É evidente que só um país que tivesse, por exemplo,
ceses, a Rússia tem de vender todos os anos quantidades enormes de
direitos económicos sobre outros poderia de maneira permanente
trigo, madeira, linho, cânhamo, gado e aves à Inglaterra, à Alemanha
receber deles mais produtos do que os que lhes dá. Estes direitos não
e à Holanda. O enorme excedente das exportações russas representa
têm nada a ver com trocas entre parceiros iguais. Tais direitos e
assim o tributo do devedor ao seu credor, situação que corresponde,
relações de dependência existem efetiva-mente entre os países, embora
para a França, a um largo excedente das importações. Mas na própria
as teorias professorais os ignorem. As relações das chamadas
Rússia, o encadeamento das relações económicas vai ainda mais
metrópoles com as suas colónias representam tais relações de
longe. Os capitais franceses servem, já há algumas dezenas de anos,
dependência na sua forma mais simples. A Grã-Bretanha retira
principalmente, para realizar dois objetivos: construção de estradas de
anualmente, sob diversas formas, um tributo de mais de um bilhão de
ferro com garantia do Estado e para as despesas militares. Para
marcos às Índias Britânicas. E as exportações da Índia ultrapassam
cumprir estes dois objetivos, uma grande e poderosa indústria nasceu
em 1,2 bilhão por ano estas importações. Este "excedente" é apenas a
na Rússia depois dos anos setenta, ao abrigo de um sistema de
expressão económica da exploração colonial da índia pelo capitalismo
proteções alfandegárias reforçadas. O capital francês fez surgir na
inglês, não importando que as mercadorias se destinem diretamente à
Rússia um jovem capitalismo que tem necessidade, por sua vez, de
Inglaterra ou que a Índia as exporte para poder pagar o imposto ao
ser constantemente apoiado por vultosas importações de máquinas e
explorador inglês. Há outras relações de dependência que não se
outros meios de produção, junto dos países industriais mais
fundam na opressão política. As exportações anuais da Rússia
avançados, Inglaterra e Alemanha. Tecem-se assim entre a Rússia, a
ultrapassaram em um bilhão de marcos as suas importações de
França, a Alemanha e a Inglaterra relações económicas em que a
mercadorias. Será o grande "excedente" dos produtos do solo sobre as
troca de mercadorias é apenas a conclusão lógica.
necessidades da economia nacional que conduz anualmente esta po-
derosa corrente de mercadorias para fora do império russo? Contudo, Isto não esgota a diversidade das relações económicas entre os
sabe-se que o mujique russo, cujo trigo parte assim para o estrangeiro, países. Um país como a Turquia ou como a China representa um
sofre de escorbuto devido à subalimentação e come pão ao qual novo enigma para o esquema professoral; estes países, ao contrário
acrescentou casca de árvores. A exportação maciça de cereais, da Rússia, e da mesma maneira que a Alemanha e a França, têm
controlada no interior por um sistema financeiro e fiscal apropriado, é importações largamente excedentes, representando (em alguns anos)
de fato uma necessidade vital para o Estado russo, a fim de fazer face mais do que o dobro das exportações. Como é que a Turquia ou a
às obrigações nascidas dos empréstimos estrangeiros. China podem dar-se ao luxo de preencher as "lacunas" das suas
Depois da crise da guerra da Criméia e da sua modernização "economias nacionais" sabendo que não poderão ceder os
através de reformas, o aparelho de Estado russo man-tém-se em parte "correspondentes excedentes"? Doarão as potências da Europa
apenas graças aos capitais estrangeiros, franceses no essencial. Para Ocidental, de presente, por caridade cristã, um ano por outro, ao
pagar os juros destes capitais fran- Crescente ou ao Celeste Império, várias centenas de milhões de
marcos de mercadorias de todos os géneros? Toda a gente sabe, pelo
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contrário, que tanto a Turquia como a China estão nas garras do chineses pelos capitalistas europeus, graças a um sistema fiscal
usuário europeu e têm de pagar juros enormes aos bancos ingleses, apropriado, controlado pelos financistas europeus. Por detrás dos
alemães e franceses. Conforme o exemplo russo, a Turquia e a China números das importações turcas ou chinesas excedentes e das
teriam, portanto de ter um excedente de exportações em produtos exportações europeias correspondentes, dissimulam-se, portanto,
agrícolas, para poderem pagar os juros aos seus benfeitores da Europa singulares relações entre o Ocidente capitalista rico e o Oriente pobre
Ocidental. Mas, tanto na Turquia como na China, a "economia e retardatário a quem aquele oprime ao equipá-lo com os mais
nacional" é fundamentalmente diferente da russa. Os empréstimos modernos e os mais poderosos meios de comunicação e instalações
estrangeiros servem certamente para o essencial da construção de militares... ao mesmo tempo que arruínam a velha "economia
estradas de ferro, de instalações portuárias e para as despesas nacional" camponesa.
militares. Mas a Turquia não tem praticamente indústria própria e não
Com os Estados Unidos, encontramo-nos ainda perante um
pode fazê-la surgir de repente, a partir de uma economia camponesa
outro caso. Como na Rússia, as exportações encontram-se à frente das
natural e medieval, com os seus métodos primitivos de cultura e as
importações: em 1913 estas eram no valor de 7,4 bilhões e aquelas
suas rendas. Sob diferentes formas, a situação é mais ou menos
semelhante na China. É por isso que não somente todas as orçavam em 10,2 bilhões de marcos, se bem que as causas deste
necessidades da população em produtos industriais, mas também tudo fenómeno não sejam de maneira nenhuma as mesmas nos dois países.
o que é necessário para os meios de comunicação e para o Certamente que os Estados Unidos absorvem também enormes
equipamento do exército e da marinha tem de ser importado da quantidades de capitais europeus. Desde o início do século XIX, a
Europa Ocidental e da sua realização têm de encarregar-se Bolsa de Londres acumula enormes quantidades de ações e títulos de
empresários, técnicos e engenheiros europeus. empréstimos americanos. A especulação sobre títulos e papéis ameri-
canos indicou como um termómetro, até aos anos sessenta, a
Muitas vezes mesmo, os empréstimos só são concebidos em aproximação de grandes crises industriais e comerciais na Inglaterra.
ligação com estas encomendas. O capital bancário alemão, por A partir de então, o afluxo de capitais ingleses nunca diminuiu. Esses
exemplo, não concede empréstimos à China, a não ser que esta faça capitais partem sob a forma de empréstimos às cidades e às
encomendas de armas numa determinada importância às fábricas sociedades privadas, mas sobretudo como capitais industriais: ou
Skoda e à Krupp; outros empréstimos estão ligados a concessões para porque são comprados na Bolsa de Londres títulos de estradas de
a construção de estradas de ferro. Desta maneira, os capitais europeus ferro ou da indústria americana ou então porque os cartéis e
vão para a Turquia ou para a China, a maior parte das vezes, apenas industriais ingleses fundam nos Estados Unidos as suas próprias
sob a forma de mercadorias (armas) ou de capital industrial na forma filiais, para se furtarem às barreiras alfandegárias, ou, então, ainda,
de máquinas, aço, etc. Estas mercadorias não circulam para serem porque se apropriam de empresas americanas comprando ações
trocadas mas para produzirem mais lucro. Os juros destes capitais e dessas empresas, para se desembaraçarem da concorrência que lhes
os lucros são extorquidos aos camponeses turcos ou faziam no mercado mundial. Estes movimentos de capitais, e as
formas que adotam, compreendem-se uma vez que os Estados Unidos

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possuem hoje uma indústria altamente desenvolvida, progredindo feria: na China, Pérsia, na Ásia Central; participa já na construção de
rapidamente e exportando já em quantidades crescentes capital estradas de ferro na China. Por detrás dos áridos hieróglifos do
industrial — máquinas, carvão — para o Canadá, México e outros comércio mundial, descobrimos toda uma rede de conexões
países da América Central e do Sul, enquanto 0 capital financeiro económicas que não têm nada a ver com a simples troca de
europeu continua a afluir. Os Estados Unidos combinam, assim, mercadorias, única realidade para a ciência professoral .
enormes exportações de produtos brutos — algodão, cobre, cereais,
Descobrimos que a distinção do sábio Biicher entre países com
madeira, petróleo —, para os velhos países capitalistas, com
produção industrial e países fornecedores de produtos brutos não é
exportações industriais crescentes, para os jovens países em vias de
mais que um produto bruto do esquematismo professoral. Os
industrialização. O que se reflete no grande excedente das
perfumes, os artigos de algodão e as máquinas são todos, igualmente,
exportações dos Estados Unidos é o estado original de transição de
produtos fabricados. As exportações francesas de perfumes provam
país agrícola, que recebe capitais, para o de um país exportador de
somente que a França é o país que produz os artigos de luxo para a
capitais; desempenham um papel de intermediário entre a velha
diminuta camada da rica burguesia mundial; as exportações japonesas
Europa capitalista e o jovem continente americano retardatário.
de artigos de algodão provam que o Japão rivaliza com a Europa
Abarcando o conjunto desta grande migração de capitais que Ocidental para arruinar em todo o Extremo Oriente a produção
abandonam os velhos países industriais em direção aos jovens países camponesa e artesanal tradicional e substituí-la pelo comércio de
industriais e o correspondente retorno dos rendimentos destes capitais mercadorias; as exportações inglesas, alemãs e americanas de
que afluem anualmente como tributo dos países jovens para os países máquinas e ferramentas mostram que estes três países introduzem a
velhos, podemos observar três grandes correntes principais. Segundo grande indústria em todas as regiões do mundo.
as estimativas de 1906, a Inglaterra já nessa época investira nas suas Descobrimos, afinal, que hoje se importa e exporta uma
colónias e no estrangeiro 54 bilhões de marcos de juro. O capital "mercadoria" desconhecida no tempo de Nabucodonosor, bem como
francês no estrangeiro subia na mesma época a 32 bilhões de marcos, durante toda a Antiguidade e Idade Média, e que se chama capital.
que rendiam anualmente, pelo menos, 1,3 bilhões de marcos. A Esta "mercadoria" não serve para preencher "certas lacunas" das
Alemanha investira no estrangeiro, há dez anos já, 26 bilhões de "economias nacionais" estrangeiras, mas, sim, pelo contrário, para
marcos, que rendiam anualmente cerca de 1,24 bilhões de marcos. A "criar lacunas", abrir falhas e rupturas na muralha das "economias
partir de então, estes investimentos e os seus lucros aumentaram nacionais" envelhecidas, para penetrar e agir nelas como um barril de
rapidamente. Contudo, as grandes correntes principais dividem-se em pólvora, e transformá-las, num prazo mais ou menos longo, em
correntes menos largas. Assim como os Estados Unidos propagam o montões de ruínas. Com esta "mercadoria", outras "mercadorias"
capitalismo no continente americano, a própria Rússia — ainda ainda mais notáveis se espalham em massa, a partir de alguns países
inteiramente alimentada pelos capitais franceses e pela indústria ditos civilizados para todo o mundo: meios de comunicação
inglesa e alemã — introduz já capitais e produtos industriais na sua modernos, exterminação total de populações indígenas; economia
peri- monetá-

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ria e endividamento do campesinato; riqueza e pobreza, pro- e de poder" que se acumulara nas mãos da burguesia inglesa,
letariado e exploração; insegurança da existência e crises, anar- sem que a classe operária tivesse recebido o que quer que fosse.
quia e revoluções. As "economias nacionais" europeias esten- A indústria algodoeira inglesa recebia as suas matérias--
dem os seus tentáculos para todos os países e todos os povos da primas da América do Norte. O desenvolvimento das fábricas
terra, tentando sufocá-las nas malhas da grande rede de no Lancashire fez nascer plantações de algodão gigantescas no
exploração capitalista. sul dos Estados Unidos. Mandaram vir negros da África, mão-
de-obra barata para um trabalho assassino nas plantações de
IV algodão, cana-de-açúcar, arroz e tabaco. Na África, o comércio
de escravos tomava uma extensão sem precedentes e povos
O professor Biicher continua a não acreditar numa eco- inteiros são perseguidos no interior do "continente negro",
nomia política mundial? Não. Porque, após ter examinado vendidos pelos chefes e transportados por terra e por mar para
atentamente todas as regiões do mundo e nada ter descoberto, serem vendidos na América. Assiste-se a uma verdadeira
declara: nada posso fazer, pois não vejo nenhum "fenómeno "migração dos povos" negros. Em fins do século XVIII, havia
particular" "diferindo essencialmente" dos de uma economia somente seiscentos e noventa e sete mil negros na América; em
nacional, "e podemos duvidar que existam num futuro pre- 1861, eram quatro milhões.
visível" . A extensão colossal do tráfico de negros e do trabalho
Pois bem! Abandonemos o comércio e as estatísticas co- escravo no Sul da União provocou uma cruzada dos estados do
merciais e viremo-nos diretamente para a vida, para a história Norte contra este atentado abominável aos princípios cristãos.
das relações económicas modernas. Prestemos um pouco de Com efeito, a chegada maciça de capitais ingleses durante os
atenção a uma pequena parcela desse quadro gigantesco e anos 1825-1860 suscitou no Norte dos Estados Unidos uma
variado. grande atividade, tanto na construção de estradas de ferro como
na criação de uma indústria moderna e, por isso mesmo, de
Em 1768, Cartwright construiu em Nottingham, na Ingla- uma burguesia adepta convicta de uma forma mais moderna de
terra, as primeiras fiações mecânicas de algodão; em 1785, exploração: a escravatura salarial capitalista. Os negócios
inventou o tear mecânico. Como primeira consequência desta fabulosos dos plantadores do Sul, cujos escravos morriam ao fim
inovação desapareceu na Inglaterra o tear manual e a fabrica- de seis ou sete anos de trabalho, suscitaram, da parte dos
ção mecânica estendeu-se rapidamente. No início do século piedosos puritanos do Norte, uma reprovação tanto mais viva
XIX havia na Inglaterra, segundo uma estimativa da época, quanto o clima não lhes permitia erigir o mesmo paraíso nos
cerca de meio milhão de artesãos tecelões; presentemente, estão seus estados: foi por isso que, por instigação dos estados do
em vias de extinção e, por volta de 1860, restavam alguns Norte, a escravatura foi abolida legalmente em 1861 em todo o
milhares em todo o Reino Unido; em contrapartida, meio mi- território da União. Os plantadores sulistas, afetados nos seus
lhão de operários fabris estavam contratados pela indústria do mais profundos interesses, reagiram pela revolta aberta. Os
algodão. Em 1863, o presidente do Conselho, Gladstone, falava estados do Sul separaram-se e rebentou a guerra civil.
na Câmara sobre "um aumento embriagante de riqueza

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A devastação e a ruína económica dos estados do Sul foram a preços e a fome imperam no Sul do distrito de Orissa, no Norte de
primeira grande consequência da guerra. A produção e o comércio Bengala, atingindo mais de um milhão de homens.
cessaram e a exportação de algodão foi interrompida. A indústria É feita no Egito uma segunda experiência. Para aproveitar a
inglesa viu-se assim privada de maté-rias-primas e uma crise terrível, conjuntura nascida da Guerra da Secessão, o vice-rei do Egito, Ismael
a que se chamou "fome de algodão", rebentou na Inglaterra em 1863. Pachá, cria às pressas plantações de algodão. Produz-se uma
No Lancashire, duzentos e cinquenta mil operários ficaram verdadeira revolução nas relações de propriedade nos campos
desempregados, cento e sessenta e seis mil operários parcialmente egípcios. Aos camponeses é roubada uma grande parte das suas
desempregados, e somente cento e vinte mil conseguiram manter terras, declarada domínio real e transformada em vastas plantações.
emprego a tempo inteiro, se bem que com salários diminuídos de dez Milhares de camponeses são conduzidos pelo chicote para as
a vinte por cento. Uma miséria terrível reinou entre a população do plantações, a fim de erguer diques, cavar canais, puxar à charrua. Mas
distrito e, numa petição ao Parlamento, cinquenta mil operários o vice-rei endivi-da-se ainda mais junto aos banqueiros ingleses e
pediram uma subvenção que lhes permitisse emigrar juntamente com franceses, com a aquisição de charruas a vapor e outras instalações
as famílias. O desenvolvimento capitalista nascente dos Estados ultra--modernas provenientes da Inglaterra. Ao fim de um ano, esta
Australianos exigia uma mão-de--obra abundante — já que os grandiosa especulação terminaria na falência, no momento em que,
emigrantes europeus tinham exterminado quase completamente a concluída a paz nos Estados Unidos fez cair no espaço de dias o preço
população indígena — e por isso a Austrália declarou-se pronta a do algodão para um quarto do seu nível anterior. Resultados para o
acolher os proletários ingleses desempregados. Contudo, os industriais Egito: ruína acelerada da economia camponesa, afundamento
ingleses protestaram violentamente contra a fuga das suas "máquinas acelerado das finanças, e finalmente, ocupação acelerada do Egito
vivas", pois poderiam vir a precisar delas de novo, logo que a pelos exércitos ingleses.
indústria se pudesse desenvolver novamente. Foram recusados aos Entretanto, a indústria algodoeira fazia novas conquistas. Em
operários os meios para emigrarem e estes tiveram de suportar até ao 1855, devido à guerra da Criméia, a interrupção das exportações
fim todos os horrores da crise. russas de cânhamo e de linho, provoca na Europa Ocidental uma
A fonte americana esgotou-se e a indústria inglesa teve de grave crise na fabricação de têxteis; a indústria algodoeira
procurar em outros sítios as suas matérias-primas. Os seus olhares desenvolve-se cada vez mais à custa do linho. Ao mesmo tempo, com
o desmoronar do antigo sistema, durante a guerra da Criméia, produz-
dirigiram-se para as Índias Orientais. Febrilmente, procede-se à
se na Rússia uma alteração política: a servidão é abolida, reformas
criação de plantações de algodão e, para isso, a cultura de bens de
liberais são avançadas, o livre câmbio introduzido e as estradas de
subsistência, que há milénios alimentava a população local e
ferro desenvolvem--se rapidamente. Novos e imensos escoadouros
constituía a base da sua existência, é forçada, em vastas regiões, a
abrem-se assim aos produtos industriais no vasto Império Russo e a
ceder o passo às esperanças de lucro dos especuladores. A cultura do
indústria algodoeira inglesa é a primeira a penetrar neste mercado.
arroz é restringida e poucos anos depois, em 1866, uma inflação
Igualmente nos anos 1860 uma série de guerras sangrentas abrem
extraordinária dos

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a China ao comércio inglês. A Inglaterra domina o mercado mais tarde, em Junho de 1905, no terceiro centro da indústria
mundial e a indústria algodoeira representa metade das suas algodoeira, Lodz, cem mil operários, sendo os alemães os mais
exportações. O período dos anos 1860-1870 é para os capi- combativos, levantam as primeiras barricadas da grande re-
talistas ingleses o dos negócios mais brilhantes; é também a volução russa.
época em que eles estão mais dispostos a assegurar, por con- Esboçamos a traços largos cento e quarenta anos da his-
cessões aos operários, a livre disposição dos "braços" operários tória de uma indústria moderna, história que se desenrola em
e a "paz industrial". É neste período que as "Trade-Unions, com cinco continentes, que abarca milhões de vidas humanas, re-
os fiandeiros e tecelões do algodão à cabeça, conhecem os seus benta aqui em crise, ali em fome, arde ora em guerra, ora em
mais importantes sucessos; ao mesmo tempo, as tradições revolução e deixa por todo o lado, à sua passagem, montanhas
revolucionárias do cartismo e as ideias de Owen extin-guem-se de riquezas e abismos de miséria — vasto rio de suor e de
no proletariado inglês, o qual cristaliza num sindicalismo sangue de trabalho humano.
conservador. São os sobressaltos da vida, os efeitos à distância que
Mas em breve os tempos mudariam. No continente, em atingem os povos mais profundamente, mas os números áridos
todos os sítios para onde a Inglaterra exportava os seus pro- das estatísticas do comércio internacional nunca dão a menor
dutos de algodão, nasce, por sua vez, uma indústria algodoeira. ideia disso. Em todo o século e meio que vem desde o
Logo em 1844 as revoltas da fome dos tecelões da Silésia e da aparecimento da indústria moderna na Inglaterra, a economia
Boémia anunciam a Revolução de Março de 1848. Nas próprias mundial capitalista cresceu sobre os sofrimentos e as
colónias da Inglaterra desenvolve-se uma indústria; as fábricas convulsões de toda a humanidade. Atingiu setor de produção
de algodão de Bombaim começam a fazer concorrência às após setor, apoderou-se dos países uns após outros. Através do
fábricas inglesas e contribuem durante os anos oitenta para vapor e da eletricidade, pelo fogo e com a espada, penetrou nas
quebrar o monopólio da Inglaterra sobre o mercado mundial. regiões mais recuadas, fez cair todas as muralhas da China e,
através das crises mundiais e das catástrofes co-letivas
Enfim, na Rússia, o desenvolvimento da indústria algo- periódicas, criou a solidariedade económica da humanidade
doeira inaugura nos anos setenta a era da grande indústria e das proletária atual. O proletariado italiano, que emigra para a
barreiras alfandegárias. Para se furtarem a estas barreiras, Argentina e para o Canadá, pois o capitalismo o expulsa da sua
fábricas inteiras são transportadas, com o seu pessoal do Saxe e pátria, vai encontrar um novo jugo capitalista já acabado,
do Vogtland, para a Polónia russa, onde novos centros industriais importado dos Estados Unidos ou da Inglaterra.
Lodz, Zgierz, surgem com uma "rapidez california-na". Pouco E o proletário alemão, que fica no seu país e que se quer
depois de 1880, a agitação operária no distrito algodoeiro de alimentar honestamente, depende constantemente, para o me-
Moscou-Vladimir arranca as primeiras leis de proteção dos lhor e o pior, do desenvolvimento da produção e do comércio
operários no Império Russo. Em 1896, sessenta mil operários
em todo o mundo. Terá ou não trabalho? O seu salário bastará
das fábricas de algodão de Petersburgo organizam a primeira
para saciar mulher e filhos? Estará condenado vários dias por
greve de massas na Rússia. E nove anos
semana a tempos livres forçados ou ao inferno do

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trabalho suplementar de dia e de noite? A sua vida é uma
oscilação contínua, dependente da colheita de algodão nos Es- ousasse afirmar publicamente o seu caráter erróneo arrisca-va-
tados Unidos, da ceifa do trigo na Rússia, da descoberta de se a acabar na fogueira. Nessa época, a Igreja Católicn tinha
novas minas de ouro ou de diamantes na África, das pertur- um interesse primordial em fazer acreditar que no movimento
bações revolucionárias do Brasil, dos conflitos alfandegários, dos astros a Terra era o centro do mundo, e qualquer atentado à
das perturbações diplomáticas e das guerras nos cinco conti- imaginária soberania do globo terrestre no espaço cósmico era,
nentes. Nada é mais chocante hoje, nada tem uma importância ao mesmo tempo, um atentado à tirania espiritual da Igreja e
tão decisiva, para a vida política e social atual, do que a con- aos seus interesses sobre a superfície da Terra. As ciências da
tradição entre este fundamento económico comum, que cada dia natureza eram, portanto, o ponto nevrálgico do sistema social
que passa une mais solidamente e mais estreitamente todos os dominante e a mistificação neste campo do saber era um
povos numa grande totalidade, e a superestrutura política dos instrumento indispensável de dominação. Atualmente, sob o
Estados, que procura dividir artificialmente os povos em outras domínio do capital, o ponto nevrálgico do sistema social já não
tantas frações estrangeiras e hostis umas às outras, por reside na crença na missão da Terra no seio do azul celeste,
intermédios dos postos fronteiriços, das barreiras alfandegárias mas na crença na missão do Estado burguês sobre a Terra. E
e do militarismo. como agora, sobre as poderosas vagas da economia mundial,
graves aborrecimentos começam já a surgir e a avolumar-se, e
E nada disto existe para os Bucher, Sombart e companhia!
Para eles, só existe o "microcosmos cada vez mais perfeito"! preparam-se tempestades que varrerão da superfície da Terra,
Em parte nenhuma vêem "fenómenos particulares" "diferindo como se fora uma simples pena, o "microcosmos" do Estado
burguês, a "guarda suíça" científica da dominação capitalista
essencialmente" dos de uma economia nacional! Enigma? Po-der-
se-á conceber, em qualquer outro domínio que não o da precipita-se para as portas do castelo, isto é, do "estado
nacional" para o defender até o último momento. O
economia política, uma tal cegueira por parte de representantes
fundamento da economia política atual não é mais do que uma
oficiais da ciência, face a fenómenos cuja abundância e clareza
rebentam com os olhos de qualquer observador? Se, apesar de mistificação científica correspondendo aos interesses da
burguesia.
tudo, nas ciências da natureza, um sábio reputado defendesse a
tese de que não é a Terra que gira à volta do Sol, mas sim o Sol
V
e todos os astros que giram à volta da Terra, se afirmasse "não
conhecer nenhum fenómeno" que contradissesse Por vezes, dá-se de economia política, simplesmente, a se-
"essencialmente" a sua tese, um tal sábio poderia estar certo que guinte definição: esta seria "a ciência das relações económicas
iria provocar gargalhadas homéricas em toda a gente de cultura entre os homens". Aqueles que utilizam uma tal formulação
e seria (por instigação da sua inquieta família) submetido a um julgam evitar desta maneira os escolhos da "economia nacional"
exame psiquiátrico. no seio da economia mundial, generalizando o problema de
É certo que, há uns quatro séculos, não somente teses maneira vaga e referindo-se-lhe indiretamente através de
semelhantes eram impunemente divulgadas, mas, também, quem fórmulas do género: "economia dos homens". Perden-do-se
assim no vago, as coisas não ficam claras, tornam-se,
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pelo contrário, mais confusas, se ainda é possível; pois, então,
levanta-se a seguinte questão: haverá necessidade, e porquê, de ma no governo de Smolensk) cultiva, forncce-lhe os alimentos,
uma ciência das relações económicas "dos homens", de todos o vestuário e quase tudo quanto é necessário à sua existência:
os homens, em todos os tempos e em todas as circunstâncias? pão, batatas, leite, carne, ovos, linho, peles de carneiro e lã para
Tomemos um exemplo qualquer de relações económicas os vestuários quentes... Por dinheiro, obtém apenas as botas e
humanas, tão simples e tão claro quanto possível. Transpor- alguns outros artigos, tais como o cinto, barrete, luvas e também
temo-nos para a época em que a economia mundial atual ainda alguns utensílios domésticos indispensáveis: pratos de barro ou
não exista e o comércio mercantil florescia apenas nas cidades, de madeira, o panelão e outras coisas semelhantes" (5).
enquanto que nos campos a economia natural, isto é, a
Ainda hoje existem tais economias camponesas na Bósnia,
produção para as necessidades imediatas, dominava tanto nos
na Herzegóvia, na Suécia e na Dalmácia. Se quiséssemos expor
grandes domínios como nas pequenas explorações camponesas.
Tomemos, por exemplo, a situação na Alta Escócia, nos anos a um camponês da Alta Escócia, da Rússia, da Bósnia ou da
cinquenta do século XIX, tal como Dugald Stewart a descreve: Sérvia as habituais questões professorais da economia política
sobre o "objetivo da economia", o "nascimento e repartição da
"Segundo o "Statiscal Account" chegou outrora a alguns riqueza", ele ficaria com certeza de boca aberta. Porque é que,
sítios da Alta Escócia um grande número de pastores e pe- e com que objetivo, eu e a minha família trabalhamos, ou de
quenos camponeses juntamente com as famílias. Calçavam uma maneira erudita, quais são as "molas" que nos incitam a
sapatos feitos por eles próprios, depois de terem curtido o couro; ocuparmo-nos com a "economia'?, exclamaria eles. Pois bem! a
vestiam roupa que nenhuma outra mão, a não ser a deles, gente tem de viver e não é descansando que nos caem pombos
tocara, feita de lã por eles mesmos tosquiada dos carneiros ou assados no prato. Se não trabalhássemos, morreríamos de fome.
de linho que eles próprios tinham cultivado. Na confecção dos
Portanto, nós trabalhamos para conseguirmos manter-nos, para
vestuários não entrava nenhum artigo comprado a não ser as
comer quando temos fome, para nos vestirmos e termos um teto
sovelas, agulhas, dedais e algumas das partes em ferro dos
que nos proteja. Que produzimos, "qual a direção" que damos
instrumentos usados na tecelagem. As mulheres tinham extraí-
ao nosso trabalho? Mais uma questão idiota! A gente produz
do as tintas que serviram para tingir os tecidos, de arbustos e de
aquilo de que necessita, aquilo de que qualquer família
outras plantas indígenas, etc."(4).
camponesa precisa para viver. Cultivamos trigo e centeio, aveia
Ou, então, tomemos outro exemplo. Seja este na Rússia, e cevada, plantamos batatas, criamos vacas, carneiros, galinhas
onde até há relativamente pouco tempo ainda, isto é, nos fins e patos. No inverno fia-se, mas isso as mulheres fazem e nós,
dos anos setenta, reinava uma economia camponesa do mesmo
os homens, arranjamos aquilo que é preciso para a casa com o
género: "O solo que ele (o camponês do distrito de Viaz-
serrote e o martelo. Chame-lhe como quiser, "economia
4 — Citado por Marx em, O Capital, tomo 2, pp. 163-164, Edi-tions
agrícola" ou "artesanal" mas de qualquer maneira a gente
Sociales, Paris, 1948. precisa de fazer um pouco
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5 — Prof. Nikolai Sieber: David Ricardo e Karl Marx, Moscou, 1879.
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de tudo, pois tanto em casa como no campo se esta sempre rejo camponês da Alta Escócia ou da Bósnia, conseguisse che-
precisando. Como "dividimos" estes trabalhos? Essa pergunta é gar a metade das suas perguntas, já o teriam posto fora da porta
como as outras! Os homens fazem, é claro, aquilo que exigir e do povoado. Na realidade, todas as condições de uma tal
força masculina, as mulheres ocupam-se da casa, do gado e das economia camponesa são tão simples e claras que a sua análise
galinhas e as crianças ajudam numa ou em outra tarefa. Ou com o escalpelo da economia política dá a impressão de ser um
pensa o senhor que deveria mandar a mulher cortar madeira e jogo estéril e vão.
eu é que ia ordenhar a vaca? (O bom homem não sabe —
acrescentamos nós, pelo nosso lado — que entre muitos povos Podem, evidentemente, retorquir-nos que escolhemos mal
primitivos, por exemplo, entre os índios do Brasil, é o exemplo, tomando uma minúscula economia camponesa, que
precisamente a mulher que vai buscar lenha à floresta, basta a si própria e cuja extrema simplicidade resulta da pobreza
desenterrar raízes e colher frutos, enquanto que entre os povos dos meios e das dimensões. Tomemos, portanto, um outro
pastores de África e da Ásia não somente os homens guardam o exemplo: abandonemos a pequena exploração camponesa que
gado, mas também o ordenham. Mesmo atualmen-te, ainda se vegeta num lugarejo perdido e dirijamos a nossa atenção para o
pode ver na Dalmácia a mulher carregar fardos pesados às auge de um poderoso Império, o de Carlos Magno. Este
costas, enquanto que o homem, vigoroso, caminha ao lado ou imperador que fez do Império Alemão, no início do século IX,
em cima do burro, a fumar tranquilamente cachimbo. Esta o mais poderoso Império da Europa, e que, para o aumentar e
"divisão do trabalho" parece a esses povos tão natural como consolidar, fez nada menos de cinquenta e três expedições
para o nosso homem é natural ele ir cortar lenha e a mulher militares, juntando sob o seu cetro, além da atual Alemanha, a
ordenhar as vacas). E agora: o que é a minha riqueza? Mas França, a Itália, a Suíça, o Norte da Espanha, a Irlanda e a
qualquer criança daqui da aldeia sabe qual é! É rico o Bélgica, este imperador seguia, contudo, muito âr perto, a
camponês cujos celeiros estão cheios, que tem o estábulo bem situação económica dos seus domínios e das suas terras.
provido, um rebanho de carneiros imponente e um galinheiro à Redigiu pela sua própria mão um texto de lei em setenta
altura; pobre é aquele que não tem farinha na Páscoa e a quem parágrafos sobre as normas económicas das suas terras: o
chove em casa. De que é que depende o "aumento da minha célebre Capitulare de villis, ou seja, a lei sobre o domínios,
riqueza"? Mas para que é essa pergunta? Se eu tivesse mais um documento que foi conservado como uma jóia preciosa, trans-
pouco de terra, é evidente que seria mais rico, mas, se no Verão mitido pela história através da poeira dos arquivos. Este do-
cair um granizo forte, — que o Diabo não nos ouça —, cumento merece toda a nossa atenção por duas razões. Em
ficaremos todos pobres aqui na aldeia em vinte e quatro horas. primeiro lugar, a maior parte dos senhorios de Carlos Magno
vieram a tornar-se poderosas cidades imperiais; Aix, Colónia,
Fizemos o camponês responder, aqui, pacientemente, às Munique, Bale, Estrasburgo e muitas outras grandes cidades
sábias questões da economia política, mas temos a certeza de são antigos senhorios do imperador Carlos. Em segundo lugar,
que, antes que o professor, de caderno de apontamento e caneta as instituições económicas de Carlos Magno serviram de
na mão e a fazer investigação científica em qualquer luga- modelo a todos os grandes domínios laicos ou religiosos do
início da Idade Média; os senhorios de Carlos Magno retoma-
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vam as tradições da antiga Roma e da vida refinada dos seus tes, e enumera de novo em pormenor as diferentes espécies de
nobres rurais, para as transplantar para o meio mais grosseiro artesãos. Além disso, fixa o dia de Natal como o último dia para
dos nobres guerreiros germânicos — e suas prescrições sobre a lhe entregarem as contas anuais das suas riquezas, e o mais
cultura da vinha, da fruta e dos legumes, sobre horticultura, modesto camponês não era menos vigilante no estabelecimento
criação de aves, etc, eram um ato histórico da civilização. da quantidade exata de gado ou de ovos do seu senhorio do que o
grande imperador. O parágrafo 62 do documento afirma: "É
Examinemos, portanto, este documento. O grande impe- importante sabermos aquilo que temos de todas as coisas e em
rador exige, antes de tudo, que o sirvam honestamente e que os que quantidade". E de novo enumera: bois, moinhos, madeiras,
seus súditos sejam protegidos para que fiquem abrigados da barcos, videiras, legumes, lã, linho, cânhamo, frutas, abelhas,
miséria; se trabalharem pela noite a dentro, devem ser com- peixes, peles, cera e mel, vinhos antigos e novos e outras coisas a
pensados. Mas o súditos, pela sua parte, devem cuidar leal- entregar ao imperador. E acrescenta, cordialmente, para
mente da vinha e engarrafar o vinho para que este não se reconfortar aos caros súditos, obrigados a esses tributos:
estrague. Se faltarem às suas obrigações, serão castigados "nas "Esperamos que tudo isto não vos pareça demasiado duro, pois
costas ou de outra maneira". Além disso, o imperador pres- vós podeis exigi-lo igualmente, já que cada um de vós é senhor
creve que nos seus domínios se faça criação de abelhas e de do seu domínio". Encontramos ainda outras prescrições exatas
patos; as aves de criação devem estar em bom estado e re- sobre a maneira de embalar e transportar vinho, e que
produzir-se; deve, também, prestar-se o maior cuidado ao au- aparentemente constituíam uma preocupação particular do grande
mento numérico das vacas, jumentos e dos carneiros. imperador: "O vinho deve ser transportado em toneis com
sólidos aros de ferro e nunca em odres. No que diz respeito à
Queremos, além disso, escrevia o Imperador, que as nos- farinha, esta deve ser transportada em carros duplos e revestidos
sas florestas sejam exploradas razoavelmente, que não haja de couro, de maneira a poder atravessar os rios sem sofrer
abate de árvores e que nelas sejam criados falcões e gaviões. nenhum dano. Quero também que me sejam prestadas contas
Devem existir, sempre, à nossa disposição, patos gordos e fran- exatas dos cornos dos meus bodes e das minhas cabras, assim
gos; devem ser vendidos no mercado os ovos não consumidos. como das peles dos lobos abatidos durante o ano. Durante o mês
Em cada uma das nossas propriedades deve haver provisão de de Maio não se deve deixar de fazer uma guerra impiedosa aos
bons acolchoados, colchões, cobertores, cremalheiras, machados, jovens lobos". Por fim, no último parágrafo, Carlos Magno
verrumas, etc, para não ser preciso pedir nada a ninguém. enumera ainda todas as flores, todas as árvores e todas as ervas
Prescreve ainda o imperador que se lhe faça um relatório de que quer ver cultivadas nos seus domínios, tais como rosas,
contas exato do rendimento dos seus domínios, enumerando lírios, rosmaninho, pepinos, cebolas, etc, etc O célebre
quanto foi produzido de cada coisa: legumes, manteiga, queijo, documento termina com a enumeração das diversas espécies de
mel, azeite, vinagre, "e outras pequenas coisas", como está maçãs.
escrito no célebre documento. Além disso prescreve o Eis a imagem da economia imperial no século IX e, se
imperador que haja em cada um dos seus domínios um número bem que se tratasse de um dos mais ricos e poderosos prínci-
suficiente de diferentes artesãos, peritos em todas as ar-
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pes da Idade Média, teremos que admitir que esta economia e ferro procedem da mesma autoridade e são redigidos com o
estes princípios lembram de maneira surpreendente os da mesmo estilo que, por exemplo, as exortações aos religiosos na
pequena exploração camponesa que consideramos em primeiro "Capitula Episcoporum", "Lei Episcopal", na qual Carlos
lugar. Aqui também, o intendente imperial, se quiséssemos pôr- Magno puxa as orelhas aos servidores do Senhor e os exorta
lhe as famosas questões sobre economia política, sobre a energicamente a não praguejarem, a não se embebedarem, a não
essência da riqueza o objetivo da produção, a divisão do frequentarem locais de má fama, a não manterem mulheres e a
trabalho, etc, enviar-nos-ia com um augusto gesto de mão às não venderem demasiado caro os santos sacramentos. Podemos
montanhas de cereais, de lã e de cânhamo, aos tonéis de vinho, procurar onde quisermos em toda a Idade Média e não
de azeite e de vinagre, aos estábulos cheios de vacas, bois e encontraremos em parte nenhuma uma empresa económica que
carneiros. E, na verdade, não saberíamos que misteriosas "leis" não tenha por modelo a de Carlos Magno, quer se trate de
da ciência e da economia política teríamos de estudar e decifrar grandes domínios nobres, quer da pequena exploração camponesa
nesta economia em que todas as causas e efeitos, o trabalho e os acima descrita, de famílias camponesas isoladas trabalhando para
resultados, são claros como o dia. si, ou de comunidades cooperativas.

Talvez o leitor nos replique que, mais uma vez, escolhemos O que há de mais impressionante nos dois exemplos é que são as
mal o nosso exemplo. No fim de contas, ressalta do documento necessidades da existência humana que tão diretamente guiam e
de Carlos Magno que nele não se trata da economia pública do ditam o trabalho, e que o resultado corresponde tão exatamente
Império Alemão, mas da economia privada do imperador. Mas, às intenções e necessidades quanto as condições o exigem, em
ao opormos essas duas noções, cometeríamos certamente um erro grande ou em pequena escala. O pequeno camponês na sua
histórico, no que diz respeito à Idade Média. É certo que as terra, assim como o monarca nos seus domínios, sabem
"Capitulares" abrangiam a economia dos senhorios e dos exatamente o que querem obter com a produção. Aliás, não há
domínios do imperador Carlos, mas era como príncipe que ele as nada de mágico nesse saber. Ambos querem satisfazer as
dirigia e não como particular. Ou mais exatamente, o necessidades naturais do homem em alimentos, vestuário e
imperador era proprietário fundiário das suas terras, mas outras comodidades da vida. A única diferença é que o cam-
qualquer grande proprietário fundiário nobre era na Idade ponês bebe à mesa cerveja ou hidromel e o grande proprietário
Média, principalmente no tempo de Carlos Magno, um pequeno finos vinhos. A única diferença reside na quantidade e na
imperador, isto é, devido à sua propriedade livre e nobre do solo, qualidade de bem produzidos. Mas o fundamento da economia
legislava, cobrava impostos e fazia justiça so-> bre toda a e o seu objetivo, a satisfação das necessidades humanas,
população dos seus domínios. As disposições económicas permanecem os mesmos. Ao trabalho, que procede deste obje-
tomadas por Carlos Magno eram efetivamente atos de governo, tivo natural, corresponde com a mesma evidência, o resultado.
como o prova a sua própria força: constituem uma das 65 Aqui, também no processo de trabalho há diferenças. O cam-
"Capitulares" redigidas pelo imperador e publicadas quando das ponês trabalha com os membros da sua família e obtém como
Assembleias anuais dos Grandes do Império. E as disposições fruto do seu trabalho apenas quanto lhe possa fornecer a faixa de
sobre rabanetes e tonéis com aros de terra e a sua parte do terreno comunal, ou melhor — já

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memos, por exemplo, um dos fenómenos mais notáveis c de efeitos
que falamos do camponês medieval sujeito à corvéia(6) e à gleba —, mais visíveis: a crise comercial. Todos nós vivemos já várias grandes
quanto lhe deixam o senhor e a Igreja depois de pagos os impostos e crises comerciais e industriais e sabemos, por experiência, como se
as corvéias. Mas quer cada camponês trabalhe para si juntamente com desenvolvem. Friedrich Engeis fez a seguinte descrição clássica: "O
a sua família quer trabalhem todos para o senhor feudal, conduzidos comércio pára, os mercados ficam atravancados de produtos em
pelo chefe da aldeia ou pelo bailio, o resultado desse trabalho não é quantidades tão grandes que se tornam invendáveis, o dinheiro fresco
outro senão uma certa quantidade de meios de subsistência no sentido torna-se invisível, o crédito desaparece, as fábricas param, as massas
largo, isto é, exatamente aquilo de que têm necessidade e apro- trabalhadoras ficam sem meios de subsistência por terem produzido
ximadamente à medida do que precisam. demasiados meios de subsistência, as falências sucedem-se, as vendas
Podemos virar uma tal economia em todos os sentidos e ver que forçadas multiplicam-se. Esta situação de bloqueio dura anos, forças
não há mistério nenhum; a sua compreensão não exige nenhuma produtivas e produtos são dilapidados e destruídos em massa até que
ciência especial nem investigações profundas. O camponês mais o excesso de mercadorias acumuladas acabe por se esgotar com uma
limitado da Idade Média sabia muito bem do que dependia a sua depreciação mais ou menos forte, até que a produção e troca retomem
riqueza, ou antes, a sua pobreza, afora as catástrofes naturais que pouco a pouco a sua marcha. Progressivamente, aumenta o
atingiam as terras, tanto as dele como as do senhor. Sabia demasiado andamento, passa ao trote, o trote industrial torna-se galope e este
bem que a sua miséria tinha uma causa muito simples e muito direta: galope aumenta por sua vez, transforma-se em corrida à rédea solta,
em primeiro lugar, a extorsão sem limites de corvéias e impostos pelos num "steeple chase" (*) de toda a indústria, do comércio, do crédito e
senhores feudais; em segundo lugar, o roubo, pelos mesmos senhores, da especulação, para acabar, depois dos mais perigosos saltos, no
do terreno comunal, da floresta, dos prados, da água. E isso, que o fosso do Krach (**) (7>.
camponês sabia, proclamou-o ele bem alto por todo o mundo nas Todos sabemos, também, que uma tal crise é o terror de
guerras camponesas, mostrou-o, incendiando o galo vermelho nas tetos qualquer país moderno. E mesmo a maneira como uma crise se
dos que lhe sugavam o sangue. O que aqui exigiria um estudo aproxima é significativa. Depois de alguns anos de prosperidade e de
científico seria apenas a origem histórica e a evolução desta situação, a bons negócios, murmúrios confusos começam a surgir na imprensa,
investigação das razões por que em toda a Europa as antigas na Bolsa circulam alguns inquietantes rumores de falência; em
propriedades rurais camponesas livres se transformaram em domínios seguida, estes sinais definem-se melhor na imprensa, a Bolsa torna-se
senhoriais nobres, com impostos e juros, e o antigo campesinato livre cada vez mais inquieta, o banco do Estado aumenta a taxa de juros,
numa massa de súditos "corveáveis" e, mesmo, mais tarde, vinculados isto é, torna o crédito mais difícil e limitado, até que começam a
à gleba. chover as notícias de falência. E uma vez a crise desencadeada,
Contudo, as coisas são inteiramente diferentes, quando se trata de guerreia-
um fenómeno qualquer da vida económica atual. To-
* — N. T.: Steeple Chase — Corrida de obstáculos. ** — N. T.: Krach —
Brecha, derrocada. 7 — Engeis: "Anti-Diihring", Editions Sociales, 1950, p.
6 — Vide nota 48 na pág. 201. 315.
93
92
-se toda a gente para saber quem é o responsável. Os homens ção e impotência face a uma dura provação. Mas, se bem que a
de negócios responsabilizam os bancos pela sua recusa total de fome e a peste sejam, em última análise, fenómenos sociais, são,
crédito e os homens da Bolsa pela sua especulação ávida; estes em primeiro lugar, os resultados imediatos de fenómenos
responsabilizam os industriais, os industriais dizem que há naturais: má colheita, difusão de germes patogêni-cos, etc. A
falta de moeda no país, etc. tempestade é um acontecimento elementar de natureza física, e
ninguém pode, pelo menos no atual estado das ciências da
Quando, enfim, os negócios retomam o seu ritmo, a Bolsa natureza e das técnicas, provocar ou impedir uma tempestade.
e os jornais logo dão conta, com alívio, dos primeiros sinais de Mas, em contrapartida, o que é uma crise moderna? Como
uma melhoria, até que a esperança, a calma e a segurança se sabemos, uma crise consiste na produção em demasia de
instalam de novo por algum tempo. O que há de mais notável mercadorias que já não encontram por onde se escoar e que
em tudo isto é que todos os interessados, toda a sociedade, acabam por bloquear o comércio e a indústria. Mas a produção
consideram e tratam a crise como qualquer coisa que escapa à de mercadorias, a venda, o comércio, a indústria. . ., tudo isto
vontade e aos cálculos humanos, como um golpe do destino são relações puramente humanas. São os próprios homens que
dado por um poder invisível, como uma provação do céu, produzem as mercadorias, que as compram, o comércio pratica-
semelhante, por exemplo, a uma trovoada, a um terremoto ou a se de homem para homem. Não se encontra nas circunstâncias
uma inundação. Os próprios termos que os jornais comerciais que constituem a crise moderna um único elemento que esteja
costumam usar para falar das crises são tomados com fora da atividade humana. É a sociedade humana que
predileção neste domínio: "O céu do mundo dos negócios, que periodicamente provoca as crises.
se manteve sereno até esta data, começa a cobrir-se com nuvens
sombrias" ou, quando se trata de anunciar uma brusca subida da E no entanto, sabemos ao mesmo tempo que a crise é um
taxa de juros, o título é inevitavelmente o seguinte: "Prenúncios verdadeiro flagelo para a sociedade moderna, que provoca o
de tempestade", da mesma maneira que mais tarde lemos: "A terror e se suporta com desespero, que ninguém a quer, nem
trovoada dissipou-se e o horizonte en-contra-se limpo". Esta deseja. Com efeito, à parte alguns especuladores da Bolsa, que
maneira de se exprimir não significa falta de imaginação por procuram tirar lucro das crises, enriquecendo-se rapidamente à
parte dos observadores do mundo de negócios, ela é típica do custa dos outros, mas que caem muitas vezes nas próprias
curioso efeito, por assim dizer, natural, produzido por uma armadilhas, a crise é para toda a gente um perigo, senão um
crise. A sociedade moderna nota com temor a aproximação da mal. Ninguém quer crises, no entanto elas ocorrem. Os homens
crise, curva a espinha a tremer sob os seus golpes, espera pelo criam-nas com as próprias mãos e, no entanto, não as querem
fim da borrasca; em seguida, levanta a cabeça, primeiro com por nada deste mundo. Este é verdadeiramente o enigma da vida
hesitação e incerteza até que, por fim, acaba por ficar económica que nenhum dos interessados poderá explicar-nos. O
tranquilizada. camponês medieval, na sua terra, produzia, por um lado, tudo o
Na Idade Média, o povo tinha sem dúvida idêntica atitude que o senhor feudal queria e precisava e, por outro, o que ele
face à fome e à peste, o mesmo acontecendo ainda hoje com os próprio queria e precisava: cereais e gado, víveres para ele e
camponeses face a uma tempestade: a mesma desorienta- para a família. O grande proprie-

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tário medieval obrigava-o a produzir também tudo o que ne- No início do século XIX, o pastor anglicano Mali luís,
cessitava: cereais e gado, bons vinhos e roupas ricas, alimentos grande profeta da burguesia inglesa, fizera unia proclamação
e objetos de luxo para ele e para a sua corte. A sociedade atual acompanhada de uma brutalidade reconfortante: "Quem nas
produz o que não quer e o que não precisa: crises; produz de ceu numa sociedade já superpovoada, não tem — se a família
tempos a tempos meios de subsistência que não utiliza, sofre não lhe puder fornecer os poucos meios de existência que ele
periodicamente de fomes, enquanto enormes reservas de tem o direito de exigir, e no caso de a sociedade não ter ne-
produtos não são vendidas. A necessidade e a satisfação, a nhuma necessidade do seu trabalho — qualquer direito à menor
finalidade e o resultado do trabalho já não se conjugam mais, há quantidade de alimentos, e realmente nada tem que fazer neste
entre eles qualquer coisa de obscuro, de misterioso. mundo. No grande banquete da natureza nenhuma mesa foi
Tomemos um outro exemplo, universalmente conhecido, posta para ele. A natureza faz-lhe ver que tem de retirar-se, e
demasiado conhecido mesmo, pelos trabalhadores de todos os executa rapidamente a sua própria ordem". A atual sociedade
países: o desemprego. oficial, com a hipocrisia das suas "reformas sociais", reprova
essa franqueza brutal. Mas, na realidade, o proletário
O desemprego não é, como a crise, um cataclisma que se
desempregado vê-se, no fim de tudo, obrigado, já que a socie-
abate de tempos a tempos sobre a sociedade: atualmente é, em
dade "não tem necessidade do seu trabalho", a "retirar-se"
maior ou menor grau, um fenómeno permanente da vida
deste mundo, de qualquer maneira, rápida ou lentamente, como,
económica. As categorias de trabalhadores melhor organiza-
afinal, testemunham, durante todas as grandes crises, os
das e melhor pagas registram todos os anos, todos os meses e
números referentes ao aumento de doenças, à mortalidade in-
todas as semanas nas suas listas de desempregados uma série
fantil, aos crimes contra a propriedade.
ininterrupta de números; estes números estão submetidos a
grandes variações, mas nunca desaparecem completamente. A A própria comparação a que recorremos, entre o desem-
impotência da sociedade moderna perante o desemprego, esse prego e uma inundação, mostra que somos de fato menos im-
terrível flagelo da classe operária, manifesta-se todas as vezes potentes perante acontecimentos elementares da natureza física
em que a amplitude do mal atinge proporções tais que obriga os do que perante os nossos próprios problemas puramente sociais,
órgãos legislativos a ocupar-se dele. E, regularmente, tudo puramente humanos! As inundações periódicas que na
termina, após longas discussões, pela decisão de proceder a Primavera causam numerosos danos no Leste da Alemanha
um inquérito sobre o número de desempregados. No essencial, não são, em última análise, senão uma consequência da nossa
os governos contentam-se em medir o nível atingido pelo mal imperícia em matéria de hidrografia. No estado atual da téc-
— como se fosse uma inundação — e, no melhor dos casos, em nica, existem já meios suficientes para proteger a agricultura do
atenuar-lhe um pouco os efeitos, através de fracos paliativos, poder das águas e aproveitar esta energia, mas estes meios não
sob a forma de subsídios de desemprego — em geral à custa podem ser aplicados senão em grande escala, por uma or-
dos trabalhadores não desempregados — sem fazer a mínima ganização racional e coerente que teria de transformar toda a
tentativa para eliminar o próprio desemprego. região atingida, modificar consequentemente a repartição das
terras aráveis e dos prados, construir diques, regularizar o

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curso dos rios. Esta grande reforma não será empreendida, privados ou do Estado, na Bolsa dos valores. As variações de
evidentemente, em parte porque nem os capitais privados nem preço são um fenómeno incessante, cotidiano, completamente
o Estado querem fornecer os meios necessários a um tal em- "normal" da vida económica contemporânea. Mas estas variações
preendimento, em parte, porque chocaria com os mais variados provocam todos os dias, todas as horas, modificações na
direitos da propriedade privada do solo. Mas a sociedade atual situação dos possuidores de todos estes títulos. Sobem os
dispõe já de meios para fazer face aos perigos das águas e de preços do algodão e de repente todos os comerciantes e
dominar o elemento desencadeado, mesmo se não está ainda á fabricantes que têm estoques de algodão nos seus armazéns
altura de aplicar esses meios. Em contrapartida, a sociedade vêem a sua fortuna crescer; baixam os preços e as fortunas
atual ainda não inventou meios para lutar contra o desemprego. caem proporcionalmente. Os preços do cobre estão em alta e os
E no entanto, não se trata aqui de um elemento, nem de um possuidores de ações de minas enriquecem; se caem ficam
fenómeno natural ou de uma potência sobre-humana. O pobres.
desemprego é um produto puramente humano das condições
É desta maneira que, por efeito de simples variações de
económicas. E encontramo-nos de novo perante um enigma
preços, à base de telegramas, na Bolsa, pessoas podem tornar--
económico, perante um fenómeno com que ninguém conta, que
se milionárias no espaço de horas ou, então, mendigos, e é
ninguém procura conscientemente provocar e que, no entanto,
precisamente neste aspecto que assenta a especulação na Bolsa
se repete com a regularidade de um fenómeno natural, por assim
e as suas vigarices. O proprietário fundiário medieval podia
dizer acima da cabeça dos homens.
ficar rico ou pobre conforme a colheita fosse boa ou má; ou,
Mas nem mesmo é necessário ir procurar fenómenos tão então, poderia enriquecer caso fosse cavaleiro-salteador e fi-
flagrantes da vida atual, como a crise económica e o desem- zesse um bom assalto na pessoa de um mercador e da sua
prego, isto é, calamidades ou casos de natureza extraordinária e caravana; ou, então, ainda — e este era, afinal, o meio mais
que constituem, segundo a opinião corrente, exceções no curso seguro e mais apreciado — aumentava a riqueza quando podia
habitual das coisas. Tomemos o exemplo mais comum da vida extorquir mais do que o costume aos seus servos, agravando as
cotidiana: as variações de preços das mercadorias. Qualquer corvéias e aumentando os impostos. Hoje, um homem pode
criança sabe que os preços de todas as mercadorias não são tornar-se rico ou pobre sem mexer uma palha, sem a inter-
coisas fixas e imutáveis, mas sobem ou baixam quase todos os venção do mínimo acontecimento natural, sem que alguém lhe
dias, às vezes mesmo de hora para hora. Tomemos um jornal tenha dado presentes ou o tenha roubado. As variações dos
ao acaso e vamos abrir na página económica, para vermos o preços são como um movimento misterioso ao qual presidiria,
movimento dos preços do dia precedente. Trigo: durante a por detrás dos homens, um poder invisível, operando uma con-
manhã ambiente fraco, ao meio-dia um pouco mais animado e tínua deslocação na repartição da riqueza social. Apercebe-mo-
quando se aproxima a hora do fechamento, então, os preços nos deste movimento e registramo-lo como quem lê a temperatura
sobem; mas, por vezes, é o contrário. Igualmente para o cobre e ou a pressão atmosférica. E no entanto, os preços das
o ferro, o açúcar e o óleo. Igualmente para as ações das mercadorias e o seu movimento são claramente um assunto
diferentes empresas industriais, para os valores puramente humano, e não de magia. Ninguém mais, além

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dos próprios homens, fabrica mercadorias e lhes fixa os preços;
só que, mais uma vez, resulta desta ação humana qualquer por um buraco aberto ao meio enfiavam a cabeça c traziam-no
coisa com que ninguém contava e que ninguém pretendia; uma como os gaúchos trazem o poncho. Levaram a gordura da
vez mais, as necessidades, o objetivo e o resultado da atividade baleia para uma cabana e imediatamente um velho começou a
económica dos homens, estão em desacordo uns com os outros. cortar fatias delgadas, enquanto murmurava algumas palavras
E de onde vem isto? E que leis obscuras se combinam nas rituais. Em seguida grelhou-as durante um minuto e dis-tribuiu-
costas dos homens para que a sua própria vida económica tenha as ao grupo esfomeado, que durante todo este tempo se
tão estranhos resultados? Só um estudo científico poderá trazer manteve num profundo silêncio" <8>.
alguma luz. Tornam-se necessárias investigações rigorosas, Esta é a vida de um dos povos mais miseráveis da Terra.
reflexão, análises, comparações aprofundadas, para resolver Os limites entre os quais a vontade e a organização consciente
todos estes enigmas e descobrir as conexões escondidas que da economia se podem exercer são extremamente estreitos. Os
fazem com que os resultados da atividade económica dos homens encontram-se ainda inteiramente submetidos à tutela
homens já não coincidam com as suas intenções, com a sua da natureza exterior e dependem dos seus favores ou dos seus
vontade, numa palavra: com a sua consciência. A tarefa da rigores. Mas no interior destes estreitos limites, a organização
investigação científica consiste em descobrir a falta de consciência do conjunto afirma-se já nesta sociedade de cerca de cento e
de que sofre a economia da sociedade e aqui atingimos cinquenta indivíduos. A previdência do futuro mani-festa-se
diretamente a raiz da economia política. logo de início sob a forma bem humilde do aprovisionamento da
gordura rançosa. Mas a magra provisão é repartida entre todos
Na sua viagem à volta do mundo, Darwin conta o seguinte com um certo cerimonial e todos tomam igualmente parte no
sobre os habitantes da Terra do Fogo: "Eles sofrem muitas trabalho de procura de alimentos, sob uma di-reção planificada.
vezes de fome; numa conversa com o capitão de um estabele- Vejamos agora um oikos grego, economia doméstica anti-
cimento de caça às focas, Mister Low, que conhecia muito bem ga, com escravos, e que constituía efetivamente um "microcos-
os indígenas deste país, este fez-me uma descrição notável do mos", um pequeno universo em si. Reina aqui já a maior de-
estado em que se encontrava na costa oeste um grupo de cento sigualdade social. A penúria primitiva deu lugar a uma con-
e cinquenta indígenas de uma magreza extrema e em condições fortável abundância, resultado dos frutos do trabalho humano.
de grande penúria. Uma série de tempestades impediu as Mas o trabalho manual transformou-se em maldição para uns;
mulheres de apanhar moluscos nas rochas. Os homens também o tempo livre, num privilégio reservado a outros; o próprio
não podiam sair para o mar nas canoas e apanhar focas. Numa trabalhador tornou-se propriedade daquele que não trabalha.
manhã, um pequeno grupo pôs-se a caminho e os outros índios Contudo, estas relações de dominação desembocam também na
explicaram a Mister Low que iam fazer uma viagem de quatro planificação e organização rigorosa da economia, do processo
dias à procura de comida. Low foi visitá-los quando chegavam e de trabalho, da repartição dos bens. A vontade do senhor serve
encontrou-os esgotados pela fadiga; cada um deles tinha um de lei, o chicote do capataz é a sanção.
grande quadrado de gordura de baleia putrefata;
8 — Darwin: Voyage of an naturalist round the world.
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Na corte do senhor feudal, na Idade Média, a organização trabalho desenvolvidíssima, a mais refinada planificação ba-leada nos
despótica da economia tomou demasiado cedo o aspecto de um código conhecimentos científicos. Tudo marcha sobre todas, sob a direção de
pormenorizado, estabelecido de antemão, traçando clara e firmemente uma vontade, de uma consciência. Mas mal saímos das fábricas ou da
o plano de trabalho, impondo a di-' visão do trabalho, as obrigações e "farm", mergulhamos logo no caos. Enquanto as inúmeras peças
os direitos individuais. No limiar, deste período histórico há esse belo isoladas — e uma empresa privada atual, mesmo a mais gigantesca, é
documento já citado, o Capitulare de villis de Carlos Magno, apenas uma ínfima parcela destes grandes conjuntos económicos que
iluminado pela abundância da satisfação material, único objetivo da se estendem pela terra toda — são organizadas rigorosamente, o
economia. No fim deste mesmo período, encontramos o código conjunto daquilo que se chama "economia política", isto é, a
sombrio das corvéias e dos impostos, ditado pela cupidez desenfreada economia capitalista mundial, está completamente desorganizada. No
dos senhores feudais, e que termina no século XV pela guerra dos conjunto que abarca oceanos e continentes não há plano, nem
camponeses alemães; o feudalismo e todos os seus códigos consciência, nem regulamentação que se afirmem; forças cegas
corporificados, que transformaram, alguns séculos mais tarde, o desconhecidas, indomáveis, brincam com o destino económico dos
camponês francês nesse ser miserável reduzido ao estado de animal homens. Também hoje, é verdade, um senhor todo poderoso governa
que só o toque a rebate da Grande Revolução irá sacudir, chamando-o a humanidade trabalhadora: é o capital. Mas a sua forma de governo
para a luta pelos seus direitos de homem e de cidadão. Mas, enquanto não é o despotismo, é a anarquia.
a revolução não varreu a corte feudal, foi, mesmo nesta miséria toda, a É ela que faz com que a economia social produza resultados
relação imediata de dominação que determinou clara e firmemente o inesperados e enigmáticos para os próprios interessados. É ela que
conjunto da economia feudal como um destino imutável. faz com que a economia social se tenha tornado para nós um
Hoje, já não conhecemos nem senhores, nem escravos, nem fenómeno estranho, alienado, independente de nós, do qual
barões feudais, nem servos. A liberdade e a igualdade perante a lei precisamos investigar as leis, da mesma maneira que estudamos os
eliminaram formalmente todas as relações despóticas, pelo menos nos fenómenos da natureza exterior e procuramos as leis que regem a
velhos Estados burgueses; sabe-se que nas colónias foram muitas vida do reino vegetal e do reino animal, as alterações na crosta
vezes estes mesmos Estados os primeiros a introduzir a escravatura. terrestre e os movimentos dos corpos celestes. O conhecimento
científico tem de descobrir a posteriori o sentido e a regra da
Mas nos sítios onde a burguesia está no poder, a única lei que preside
economia social que nenhum plano consciente lhe ditou de antemão.
às relações económicas é a da livre concorrência. Com isto,
desapareceram da economia todos os planos, toda a organização. É Vê-se agora por que razão é impossível aos economistas
claro que se examinarmos uma empresa privada isolada, uma fábrica burgueses deduzir claramente a essência da sua ciência, pôr o dedo
moderna ou um poderoso complexo de fábricas como o de Krupp ou nas chagas da sua ordem social, denunciar a sua decrepitude.
uma empresa agrícola da América do Norte, encontraremos a mais Reconhecer que a anarquia é o elemento vital para a dominação do
rigorosa organização, uma divisão do capital, é pronunciar a sua sentença de morte. É dizer que a burguesia
é um morto adiado. Compreende-se

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agora por que razão os advogados científicos oficiais do capitalismo burguês a noção de "economia política" não é mais do que uma
tentam mascarar a realidade por todos os artifícios do verbo, desviar o mistificação recobrindo a produção capitalista — "é essencialmente
olhar do coração do problema para o seu invólucro exterior, isto é, fruto da centralização política começada no fim da Idade Média com
"passar" da economia mundial para a "economia nacional". Dado o o nascimento de estruturas estatais territoriais e encontra a sua
primeiro passo no limiar do conhecimento da economia política, a coroação no presente com a criação do Estado nacional unificado. A
partir da primeira questão fundamental sobre o que realmente é a unificação económica caminha paralelamente com a submissão dos
economia política e qual o seu problema fundamental, as vias do interesses políticos particulares aos objetivos mais elevados da
conhecimento burguês e do conhecimento proletário divergem. Logo coletividade. Na Alemanha são os príncipes territoriais, mais
desde esta primeira questão, tão abstrata e indiferente às lutas sociais poderosos, que procuram exprimir a ideia estatal moderna,
do presente quanto possa parecer à primeira vista, um laço particular combatendo a nobreza rural e as cidades".
se estabelece entre a economia política como ciência e o proletariado No resto da Europa, em Espanha, Portugal, Inglaterra, França,
moderno como classe revolucionária. Países Baixos, o poder dos príncipes realizou os mesmos feitos. "Em
todos estes países se desenvolveu, se bem que com uma intensidade
VI variável, a mesma luta contra os poderes particulares da Idade Média,
contra a grande nobreza, is cidades, as províncias, as corporações
Se nos colocarmos neste ponto de vista que acabamos de religiosas e laicas. Trata-se, primeiro, seguramente, de aniquilar os
atingir, então, um certo número de coisas que parecem problemáticas círculos autónomos que entravam a unificação política. Mas nas
poderão ficar esclarecidas. Antes de tudo, a idade da economia profundezas do movimento que conduz à formação do absolutismo
política já não é um problema. Uma ciência que tem por tarefa dos príncipes, dormia, contudo, o seguinte princípio histórico
descobrir as leis do modo anárquico da produção capitalista não pode universal: a amplitude das novas tarefas civilizadoras da humanidade
nascer, evidentemente, antes deste modo de produção, antes de as exigiam uma organização que unisse os povos inteiros, uma grande
condições históricas que permitiram a dominação de classe da comunidade viva dos interesses e essa comunidade não podia
burguesia moderna terem sido progressivamente reunidas por um desenvolver-se senão sobre o terreno de uma economia comum".
trabalho de deslocamentos políticos e económicos ao longo de
Temos aqui a mais bela jóia desse servilismo de pensamento,
séculos.
que já encontramos em outros professores alemães de economia
É verdade que, para o professor Bucher, o nascimento da ordem política. Segundo o professor Schmoller, a ciência da economia
social atual se processou da maneira mais simples que se pode política nasceu sob a égide do absolutismo iluminado. Segundo o
imaginar, pouco tendo a ver com a evolução económica anterior. De professor Bucher, o modo de produção capitalista na sua totalidade é
fato, para ele, a ordem social existente é simplesmente o fruto da apenas o fruto da vontade soberana e dos planos ambiciosos dos
vontade eminente e da sublime sabedoria de monarcas absolutos. "A príncipes absolutos. Ora, é
formação da economia política", diz Bucher — e sabemos já que para
um professor

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conceder demasiadas honras, tanto aos grandes déspotas espanhóis e mentar burguesa, que, no entanto, tão indispensável era ao
franceses como aos pequenos déspotas alemães, admitir que eles se desenvolvimento sem entraves da dominação capitalista como a
preocuparam com qualquer "princípio histórico universal" e com unidade política e os grandes estados centralizados.
"tarefas civilizadoras da humanidade" nas suas querelas com os Na realidade, outras forças, grandes mutações se preparavam no
insolentes senhores feudais no final da Idade Média ou nas final da Idade Média na vida económica dos povos europeus que
sangrentas expedições contra as cidades dos Países Baixos. É mesmo permitiriam a instauração do novo modo de produção. A descoberta
virar a realidade histórica de cabeça para baixo. da América e do caminho marítimo para a índia contornando a África
Certamente que a instauração de grandes Estados burocráticos provocaram um desenvolvimento inesperado e uma transformação do
centralizados era uma condição indispensável do modo de produção comércio que aceleraram fortemente a dissolução do feudalismo e do
capitalista, não sendo mais do que uma consequência das novas regime das corporações urbanas. As conquistas, as aquisições de
necessidades económicas, de maneira que estamos muito mais perto terra, a pilhagem das regiões descobertas, o afluxo repentino de me-
da verdade se invertermos a frase de BUcher: a centralização política tais preciosos provenientes do novo continente, o comércio por
é "essencialmente" um fruto da maturação da "economia política", atacado de especiarias indianas, o importante tráfico de negros, que
isto é, da produção capitalista. fornecia escravos africanos às plantações americanas, tudo isso criou
em pouco tempo na Europa novas riquezas e novas necessidades. A
O absolutismo também teve a sua parte incontestável neste
pequena oficina do artesão, membro de uma corporação e sujeito a
processo de maturação histórica, mas desempenhou esse papel como
mil obrigações, revelou-se ser um entrave ao necessário alargamento
instrumento cego das tendências históricas, com a mesma ausência
da produção e ao seu rápido progresso. Os grandes comerciantes
total de ideias que igualmente o fez opor-se a essas tendências
encontraram uma solução agrupando os artesãos em grandes
quando a ocasião se apresentou. Assim ocorreu, por exemplo, quando
manufaturas na periferia das cidades, obrigando-os desta maneira a
os déspotas medievais, pela graça de Deus, tratavam as cidades, suas
produzir mais depressa e melhor, sob as suas ordens, sem se
aliadas contra os senhores feudais, como simples objetos de pressão
preocuparem com as prescrições acanhadas das corporações.
que à menor ocasião traíam de novo em favor dos feudais. O mesmo
acontecia, também, quando consideravam o continente recém- Na Inglaterra, o novo modo de produção foi introduzido por
descoberto e toda a sua população e cultura, como simples e mero uma revolução na agricultura. O desenvolvimento da indústria de lã
terreno da pilhagem mais brutal, mais hipócrita, mais cruel, com o na Flandres provocou uma grande procura desta e incitou a nobreza
único e "superior objetivo" de encher os "tesouros principescos" de feudal inglesa a transformar uma grande parte das terras aráveis em
lingotes de ouro no mais curto espaço de tempo. E também, ainda, pastagens de carneiros, expulsando os camponeses dos seus domínios
quando mais tarde, se opuseram obstinadamente a introduzir entre o e das suas terras. Uma grande massa de trabalhadores que nada
poder de direito divino e os seus "fiéis súditos", a filha de papel possuíam, proletários, encontrou-se assim à disposição da primeira
chamada constituição parla- indústria capitalista. A Reforma agiu no mesmo sentido, arrastando
consigo

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cas mais importantes da burguesia na sua luta contra o Estado
a confiscação dos bens da Igreja, que em grande parte foram feudal da Idade Média, em prol do Estado Capitalista moderno.
dados, e outros vendidos ao abandono, à nobreza e aos espe- A ordem económica nascente apresentou-se primeiramente sob a
culadores, e onde a população camponesa foi escorraçada na forma de uma nova riqueza rapidamente surgida a der-ramar-se
sua maior parte. Os manufatureiros e os proprietários fundiários sobre a sociedade da Europa Ocidental, proveniente de fontes
capitalistas encontraram assim uma população pobre, completamente diferentes, na aparência inesgotáveis e
proletarizada, fugindo às regulamentações feudais e corporati- infinitamente mais abundantes do que os métodos patriarcais
vas e que, após o longo martírio de uma vida errante, o duro de exploração dos camponeses no feudalismo, os quais, de
trabalho nas Workhouses, as cruéis perseguições da lei e dos resto, já tinham esgotado todas as suas possibilidades. A
esbirros da polícia, via um porto de salvação na escravatura origem mais flagrante da nova riqueza não foi, de início, o
salarial, ao serviço da nova classe de exploradores. Em seguida, próprio modo de produção, mas aquele que lhe abriu a via — o
já nas manufaturas, vieram as grandes revoluções técnicas que poderoso desenvolvimento do comércio. Foi nas ricas repú-
permitiram colocar ao lado ou em lugar do artesão qualificado, o blicas italianas das margens do Mediterrâneo e na Espanha,
proletário assalariado sem qualificação. que eram os mais importantes centros do comércio mundial
O desenvolvimento destas novas condições chocava por nos fins da Idade Média, que surgiram as primeiras questões
todo o lado com as barreiras feudais e com uma sociedade no sobre a economia política e as primeiras tentativas de resposta.
auge da derrocada. A economia natural, ligada por essência ao O que é a riqueza? De onde provém a riqueza ou a po-
feudalismo, e a pauperização das massas populares submetidas à breza dos Estados? Era este o novo problema, depois das velhas
exploração da servidão sem limites limitavam o mercado interior noções da sociedade feudal terem perdido o seu valor tradicional
das mercadorias manufaturadas, enquanto que nas cidades as no turbilhão das novas relações. A riqueza é o ouro com o qual
corporações continuavam a reter nas suas malhas o mais tudo se pode comprar. Portanto, o comércio cria riqueza. E os
importante fator da produção, a força de trabalho. O aparelho Estados que têm possibilidades e as capacidades necessárias
de Estado, com a sua fragmentação política infinita, a falta de para importar muito ouro, e não deixar sair nenhum,
segurança pública, o amontoado de absurdos alfandegários e enriquecem. Portanto, o comércio mundial, as conquistas
comerciais entravava e perturbava a cada passo o novo
coloniais, as manufaturas que produzem artigos de exportação
comércio e a nova produção.
devem ser encorajadas pelo Estado, enquanto que a importação
Faltava apenas, com toda a evidência, que a burguesia de produtos estrangeiros, porque faz sair ouro do país, deve ser
ascendente da Europa Ocidental e porta-voz do livre comércio limitada. Foi esta a doutrina a económica que surgiu na Itália a
mundial e da indústria, se desembaraçasse de qualquer maneira partir dos fins do século XVI e que se impôs largamente na
de todos estes obstáculos, caso não renunciasse por completo à Inglaterra e na França no século XVII. E por muito grosseira
sua missão histórica. Antes de ter destroçado o feudalismo que fosse ainda, esta doutrina constituía uma ruptura brutal com
durante a Grande Revolução Francesa, a burguesia atirou-se a a concepção feudal da economia natural. Avança
ele pela crítica, e a nova ciência da economia política nasceu audaciosamente a primeira crítica da economia
assim para se tornar uma das armas ideológi-
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natural, constitui a primeira idealização do comércio, da produção rava de novo o capitalista para com as suas barbas). Basta libertar a
mercantil e — sob esta forma — do capital. É, enfim, o primeiro agricultura dos entraves do feudalismo, c as fontes da riqueza
programa de intervenção política do Estado, satisfazendo já a jovem jorrarão com toda a sua abundância natural sobre o povo e o Estado,
burguesia ascendente. e a felicidade da humanidade instaurar-se-á por si própria na
O capitalista produtor de mercadorias torna-se em pouco tempo o harmonia universal!
centro nervoso da economia, em vez do comerciante, mas faz ainda Nestas doutrinas dos racionalistas do século XVIII ou-via-se já
prudentemente, sob a máscara do Trabalhador diligente nas claramente o rugir iminente da tomada da Bastilha. E pouco tempo
antecâmaras dos senhores feudais. A riqueza não é de maneira depois, a burguesia capitalista achou-se suficientemente forte para
nenhuma o ouro. Este é só o intermediário no comércio das tirar a máscara da submissão, para se colocar vigorosamente na
mercadorias, proclamam os racionalistas franceses do século XVIII. primeira fila e exigir sem rodeios que o Estado fosse completamente
Que cegueira pueril ver no metal brilhante a garantia da felicidade dos remodelado conforme os seus desejos. A agricultura não é de maneira
povos e dos Estados! É verdade que o metal me pode saciar quando nenhuma a única fonte de riqueza, explica Adam Smith na Inglaterra
tenho fome, pro-teger-me do frio quando estou despido? O rei nos finais do século XVIII. A riqueza é todo o trabalho assalariado
Dário, com todos os seus tesouros, não sofreu na guerra todos os aplicado na produção de mercadorias, quer seja na agricultura quer na
tormentos da sede, e não daria todo o seu ouro por um gole de água? indústria. (É todo o trabalho, dizia Adam Smith, mas tanto para ele
Não, a riqueza são todos os presentes da natureza que satisfazem as como para os seus sucessores, já reduzidos ao papel de porta-vozes
necessidades de todos, reis ou escravos. Quanto mais largamente a da burguesia ascendente, o homem que trabalha era por natureza o
população satisfizer as suas necessidades tanto mais o Estado será assalariado capitalista!). Porque, além do trabalho necessário à
rico, porque mais impostos pode exigir. Quem é que arranca à natureza manutenção do próprio trabalhador, todo o trabalho assalariado cria
o trigo com que se faz o pão, a fibra para os tecidos, a madeira e os também a renda necessária à manutenção do proprietário fundiário e
minérios que servem para fabricar as casas c as ferramentas? A o lucro, que é a riqueza do possuidor de capital, do patrão. A riqueza
agricultura! É ela, e não o comércio, a verdadeira fonte da riqueza! é tanto maior quanto mais vastas forem as massas de trabalhadores
Portanto, a população agrícola, os camponeses, cujos braços criam a ri- comandados pelo capital nas oficinas, e quanto mais precisa e
queza de todos, devem estar a salvo da miséria, protegidos da rigorosa for a divisão do trabalho entre eles. Esta é a verdadeira
exploração feudal e atingir o bem-estar! (O que irá fornecer--me harmonia natural, a verdadeira riqueza das nações: do trabalho
mercados para as minhas mercadorias, acrescentava baixinho o provém, para os que trabalham, um salário que os mantém vivos e os
capitalista manufatureiro). Portanto, os grandes proprietários constrange a continuar o seu trabalho assalariado; para os
fundiários, os barões feudais em cujas mãos se concentra a riqueza proprietários fundiários, uma renda que lhes permite uma vida sem
agrícola, devem ser os únicos a pagar impostos e a manter o Estado! preocupações; para o chefe de empresa, um lucro que lhe faça sentir o
(E eu que, como se diz, não crio nenhuma riqueza, não tenho nada que desejo de prosseguir com a empresa. Desta maneira, toda a gente
pagar imposto, murmu- fica satisfei-

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ta, sem haver que recorrer aos velhos e grosseiros métodos do Iena, inspiraram-se nas doutrinas dos economistas clássicos
feudalismo. Encorajar a riqueza do empresário capiatlista, que ingleses, a ponto do jovem economista alemão Marwitz escre-
mantém o conjunto em movimento e explora o trabalho ver em 1810: Adam Smith é o mais poderoso soberano europeu
assalariado, filão de ouro da riqueza, significa fomentar a "ri- ao lado de Napoleão.
queza das nações". Que desapareçam os entraves e os obs-
táculos dos bons velhos tempos, bem como os novos métodos Compreendemos agora porque é que a economia polític:i
paternalistas inventados pelo Estado e que pretendiam dar a veio à luz do dia somente há um século e meio. O seu destino
felicidade ao povo: livre concorrência, livre desenvolvimento ulterior esclarece-se a partir do mesmo ponto de vista: sendo a
do capital privado, todo o aparelho fiscal e estatal ao serviço da economia política uma ciência das leis particulares do modo de
empresa capitalista — e tudo caminhará pelo melhor, no produção capitalista, a sua existência e a sua função dependem
melhor dos mundos. deste modo de produção, e perdem toda a base quando este
deixar de existir. Em outros termos: o papel da economia
Tal era, sem disfarces, o evangelho económico da bur- anárquica do capitalismo deu lugar a uma ordem económica
guesia, e a economia política recebia definitivamente o batis- planificada, organizada e dirigida conscientemente pela
mo, agora com o seu verdadeiro rosto. É certo que as propo- sociedade trabalhadora. A vitória da classe operária moderna e
sições de reformas práticas, as advertências da burocracia do a realização do socialismo significam o fim da economia política
Estado feudal falharam tão lamentavelmente como falharam as como ciência. É aqui que se estabelece a relação particular
tentativas históricas de deitar vinho novo em odres velhos. O entre a economia política e a luta de classe do proletariado
martelo da revolução fez em vinte e quatro horas o que um moderno.
meio século de compromissos e boas intenções reformistas não
pôde fazer. Foi a conquista do poder político que deu à Se a economia política tem por tarefa e objeto explicar as
burguesia as condições para a sua dominação. A economia leis da formação, do desenvolvimento e da expansão do modo de
política foi — juntamente com as teorias filosóficas, sociais e produção capitalista, então, será obrigada inelutavelmente a
do direito natural, elaboradas no século das Luzes, — um meio desvendar as leis do declínio do capitalismo, porque tal como
de tomada de consciência da classe burguesa e, como tal, a as formas económicas anteriores, este não é eterno, representa
condição prévia e o aguilhão da ação revolucionária. Mesmo somente uma fase histórica passageira, um degrau na escala
nas suas mais ténues ramificações, a obra burguesa de renovação infinita da evolução social. A teoria da ascensão do capitalismo
mundial foi alimentada na Europa pelas ideias da economia transforma-se logicamente em teoria da decadência do
nacional clássica. Na Inglaterra, a burguesia foi ao arsenal de capitalismo, a ciência do modo de produção do capital em
Smith-Ricardo buscar armas para a luta pelo livre câmbio que fundamento científico do socialismo, o meio teórico da
inaugurou a sua dominação sobre o mercado mundial. E mesmo dominação da burguesia em arma teórica da luta da classe re-
as reformas dos Stein, Hardenberg e Schar-nhorst na Prússia, volucionária pela libertação do proletariado.
ao procurarem tornar um pouco mais moderna e viável a velha
Evidentemente que nem os sábios franceses, nem os in-
carcaça feudal depois da derrota de
gleses, e muito menos os alemães, da burguesia resolveram esta

112 113
segunda parte do problema geral da economia política. Apenas um repetição monótona de acusações contra a injustiça reinante, Contra
homem levou às últimas consequências a teoria do modo de produção os sofrimentos e os tormentos, a miséria e a degradarão dos
capitalista ao situar-se logo de início do ponto de vista do trabalhadores, à custa dos quais um punhado de ociosos enriquece e
proletariano revolucionário: Karl Marx. Pela primeira vez, o domina. Basta, segundo ele, que a ordem soeial existente mereça a
socialismo e o movimento operário moderno colocaram-se no terreno sua queda para que possa ser derrubada por um grupo de homens
inquebrantável do conhecimento científico. resolutos que conquiste o poder e instaure o regime da igualdade
como fizeram os Jacobinos em 1973 tomando o poder político e
Como ideal de uma ordem social assente sobre a igualdade e a
instaurando a república.
fraternidade entre os homens, como ideal de uma sociedade
comunista, o socialismo datava já de milhares de anos. Entre os Se bem que tendo essencialmente os mesmos fundamentos, mas
primeiros apóstolos do cristianismo e, diversas seitas religiosas da métodos completamente diferentes, as ideias socialistas foram
Idade Média, durante as guerras camponesas, a ideia socialista nunca defendidas com mais génio e brilho nos anos trinta do século passado
deixou de brilhar como expressão mais radical da revolta contra a por três grandes pensadores, Saint-Simon e Fourier na França, e
ordem existente. Mas precisamente porque é um ideal válido em Owen na Inglaterra. Nenhum dos três encarava a possibilidade da
todos os tempos e em todos os lugares históricos, o socialismo não tomada revolucionária do poder para realizar o socialismo; pelo
podia deixar de ser mais do que o belo sonho de alguns exaltados, contrário, como toda a geração que se seguiu à grande revolução,
dourado e inalcansável, como o arco-íris nas nuvens. estavam afastados de toda a agitação social e política e eram
partidários resolutos da propaganda puramente pacífica. Em todos
Em fins do século XVIII e inícios do século XIX, a ideia eles, contudo, a base da ideia socialista era a mesma: simples projeto,
socialista aparece com força e insistência, desembaraçada das invenção de uma cabeça genial que recomendava a sua realização à
fantasias das seitas religiosas, como reflexo dos horrores e das razias humanidade atormentada, para a salvar do inferno da ordem social
provocadas na sociedade pelo capitalismo nescente. Mesmo nessa burguesa.
altura, o socialismo é ainda, no fundo, um sonho, invenção de
Apesar de todo o vigor das suas críticas e do fascínio dos seus
algumas cabeças audaciosas. Ao ouvirmos o primeiro precursor dos
ideais, estas teorias socialistas ficaram sem qualquer ; influência no
levantamentos revolucionários do proletariado, Gracchus Babeuf, que
movimento e nas lutas reais da história. Babeuf e o seu pequeno grupo
tentou, durante a Grande Revolução Francesa, através de um golpe de
de amigos pereceram na tormenta con-tra-revolucionária, como um
mão, introduzir violentamente a igualdade social, verificamos que o
barco em alto mar, sem deixarem outro vestígio que não fosse uma
único fato sobre o qual fundava as suas aspirações comunistas era a
breve linha luminosa nas páginas da história revolucionária. Saint-
injustiça gritante da ordem social existente. Ele não se cansa de pintá-
Simon e Fourier só conseguiram agrupar algumas seitas de partidários
la com as cores mais sombrias em artigos e panfletos apaixonados e
entusiastas e dotados, que se dispersaram a seguir, depois de terem
na sua defesa perante o tribunal que o condenou à morte. O
espalhado os germes ricos e fecundos das ideias, críticas e experiências
evangelho do socialismo de Babeuf é uma
sociais. Foi Owen quem mais influência teve sobre o

114 115
proletariado, influência que se perde sem deixar traços depois de ter
Dização do trabalho". Para aplicar este programa, o proletariado
entusiasmado uma pequena elite de operários ingleses nos anos 1830
concedeu ao Governo Provisório o célebre prazo de três meses,
e 40.
durante os quais os operários esperaram e passaram fome, enquanto
Uma nova geração de dirigentes socialistas apareceu por volta que a burguesia e a pequena burguesia se armavam em segredo e
de 1940: Weitling na Alemanha, Proudhon, Louis Blanc e Blanqui na preparavam o esmagamento dos operá-rio. O prazo acabou com as
França. A classe operária, pelo seu lado, iniciara já a luta contra a memoráveis batalhas de Junho nas quais o ideal de uma "República
dominação do capital. As revoltas elementares dos tecelões leoneses Social realizável em qualquer momento" foi afogado no sangue do
na França, do movimento cartista na Inglaterra tinham dado o sinal da proletariado parisiense. A revolução de 1848 não trouxe consigo o
luta de classes. Contudo, não havia nenhum laço direto entre estes reino da igualdade social, mas sim a dominação política da burguesia
movimentos elementares dos explorados e as diversas teorias e o desenvolvimento sem precedentes do capitalismo sob o Segundo
socialistas. Os operários revoltados não tinham em vista nenhum Império.
objeto socialista e os teóricos socialistas não procuravam assentar as
No próprio momento em que o socialismo das antigas escolas
suas ideias em qualquer luta política da classe operária. O seu
parecia ter ficado enterrado para sempre debaixo das barricadas da
socialismo deveria realizar-se graças a certas instituições astuciosas,
insurreição de Junho, Marx e Engels fundavam a ideia socialista
tais como o banco popular de Proudhon, que pretendia uma justa
sobre uma base inteiramente nova. Estes não procuravam os pontos
troca de mercadorias, ou as associações de produtores de Louis
de apoio do socialismo nem da condenação moral da ordem social
Blanc. O único socialista a contar com a luta política como meio de
existente nem na descoberta de processos engenhosos e sedutores,
realizar a revolução social era Auguste Blanqui: era o único
para introduzir sorrateiramente a igualdade social no regime
verdadeiro defensor do proletariado e dos seus interesses
existente. Vi-raram-se para o estudo das relações económicas na
revolucionários de classe, neste período. Contudo, o seu socialismo
sociedade contemporânea. Foi aqui, nas leis da anarquia capitalista,
não passava no fundo de um projeto de república social realizável em
que Marx descobriu a verdadeira alavanca das aspirações socialistas.
qualquer momento pela vontade resoluta de uma minoria
Os clássicos franceses e ingleses da economia política tinham
revolucionária.
descoberto as leis segundo as quais a economia capitalista vive e se
No ano de 1848 verificou-se o ponto culminante e, ao mesmo desenvolve; meio século mais tarde, Marx retomou a sua obra
tempo, a crise do antigo socialismo em todas as suas variantes. O exatamente onde eles a deixaram. Descobriu assim que as leis da
proletariado parisiense, influenciado pela tradição das lutas ordem económica contemporânea trabalhavam para a perda desta,
revolucionárias anteriores e agitado por diversos sistemas socialistas, ameaçando cada vez mais a existência da sociedade, pelo
apegava-se apaixonadamente a ideias confusas de justiça social. desenvolvimento da anarquia e por um encadeamento de catástrofes
Depois da deposição do rei-burguês Louis-Phillippe, os operários económicas e políticas. Como Marx demonstrou, são as tendências
parisienses utilizaram a sua posição de força para exigir desta vez, a evolutivas da dominação do capital que, chegadas a um certo ponto
uma burguesia aterrorizada, a realização da "República Social" e uma de ma-
nova "orga-

116
117
turação, tornam necessária a passagem a um modo de economia como ciência é uma ação histórica de alcance mundial: a tradução na
conscientemente planificado e organizado pelo conjunto da sociedade prática de uma economia mundial organizada segundo um plano. O
trabalhadora, para que toda a sociedade e a civilização humanas não último capítulo da doutrina da economia política é a revolução social
soçobrem nas convulsões de uma anarquia desenfreada. É o próprio do proletariado mundial.
capital que precipita inexoravelmente a hora do seu destino, ao juntar,
em massas cada vez maiores, os seus futuros coveiros: os proletários; O laço específico próprio à economia política e à classe operária
ao alar-gar-se a todos os países da terra, através da instauração de moderna baseia-se numa reciprocidade. Se, por um lado, a economia
uma economia mundial anárquica, com a consequente criação das política, tal como Marx a desenvolveu é, mais do que qualquer outra
bases para uma unificação dos proletários de todos os países numa ciência, o fundamento insubstituível da educação proletária, o
potência revolucionária mundial que acabará com a dominação da proletariado consciente constitui, por outro lado, o único auditor
classe capitalista. Desta maneira, o socialismo deixava de ser um receptivo e capaz de compreender a teoria económica. Conservando
projeto, um fantasma maravilhoso ou sequer a experiência adquirida a ainda sob os olhos os escombros da velha sociedade feudal, os
pulso por alguns grupos de operários isolados em diferentes países. O Quesnay e Bois-guillebert na França, os Adam Smith e Ricardo na
socialismo, programa comum de ação política do proletariado Inglaterra, perscrutavam outrora com orgulho e entusiasmo a jovem
internacional, é uma necessidade histórica, pois é o fruto das sociedade burguesa, fortalecidos com a confiança que tinham no
tendências evolutivas da economia capitalista. reino milenar da burguesia e da sua harmonia social "natural",
mergulhavam sem medo os seus olhares de águias nas profundezas
Compreende-se agora porque é que Marx colocou a sua própria das leis capitalistas.
doutrina económica fora da economia política oficial e lhe chamou
"Crítica da Economia Política". Certamente que as leis da anarquia A partir de então, a luta da classe proletária, ampliando-se cada
capitalista e a sua ruína, tal como Marx as desenvolveu, não são mais vez mais, e particularmente durante a insurreição de Junho de 1848
do que a continuação da economia política, tal como os sábios do proletariado parisiense, destruiu a confiança da sociedade
burgueses a criaram. Mas são uma continuação cujos resultados finais burguesa no seu caráter divino. A partir do momento em que foi
estão em completa contradição com os pontos de partida desses beber à fonte do conhecimento das contradições modernas entre as
mesmos sábios burgueses, mas o seu nascimento matou a mãe. Na classes, a burguesia tem horror da nudez clássica com que outrora os
teoria de Marx, a economia política encontrou o seu acabamento e a criadores da sua própria economia política fizeram aparecer o
sua conclusão. As consequências não podem deixar de ser — à parte universo. Não 6, hoje, claro, que os porta-vozes do proletariado
alguns desenvolvimentos de pormenor da teoria de Marx — a moderno fabricaram as suas armas mortais a partir destas descobertas
transposição desta teoria para a ação, isto é, para a luta do científicas?
proletariado internacional e para a realização da ordem económica
Assim se explica que, desde há decénios, a economia política,
socialista. O fim da economia política
não somente a socialista como também a burguesa (na medida em
que esta era outrora uma verdadeira ciência), não

118 119
encontre entre as classes dominantes senão ouvidos surdos.
Incapazes de compreender as doutrinas dos seus antepassados e
ainda menos de aceitar a doutrina de Marx, que saiu daquelas e
anuncia o fim da sociedade burguesa, os nossos doutos burgueses
expõem, sob o nome de economia política, um caldo informe feito
de resíduos de todas as espécies de ideias científicas e de
confusões interessadas, e por este fato não procuram de maneira CAPITULO II
nenhuma estudar os objetivos reais do capitalismo, mas, pelo
contrário, pretendem mascará-los, para defender o capitalismo
como sendo a melhor, a única, a eterna ordem social possível. A SOCIEDADE COMUNISTA PRIMITIVA I

Esquecida e traída pela sociedade burguesa, a economia Os nossos conhecimentos das mais antigas e primitivas
política científica já não procura os seus auditores, a não ser formas económicas são de data muito recente. Marx e Engels já
entre os proletários conscientes, para encontrar neles, não so- escreviam, em 1847, no primeiro texto clássico do socialismo
mente uma compreensão teórica, mas uma realização prática. A científico, o Manifesto Comunista: "A história de todas as
célebre frase de Lassalle aplica-se em primeiro lugar à sociedades até aos nossos dias, é a história da luta de classe."
economia política: "Quando a ciência e os trabalhadores, estes Ora, precisamente no momento em que os criadores do
dois pólos opostos da sociedade, se estreitarem, sufocarão nos socialismo científico enunciavam este princípio, ele começava
seus braços todos os obstáculos à civilização". a ser desacreditado em toda a parte por novas descobertas. Em
quase todos os anos se revelavam, sobre o estado económico
das mais antigas sociedades humanas, descobertas até então
desconhecidas; o que levava a concluir que deviam ter existido
no passado períodos extremamente longos em que não havia
ainda luta de classes, porque não havia distinção de classes
sociais, nem distinção entre ricos e pobres, nem propriedade
privada.
Entre 1851 e 1853, publicou-se em Erlangen a primeira
das obras de Georg Ludwig von Maurer, a Einleitung zur Ges-
chichte der Mark —, Hof —, Dor] —, und Stadtverfassung
und der oeffentlichen Gwealt <9). Estas obras fizeram época

9 —■ Introdução à história da constituição do mercado, do senhorio, da aldeia e


da cidade e dos poderes públicos. (N. T.)

120 121
projetando uma nova luz sobre o passado germânico e sobre a estrutura
dois mil anos portanto, e até antes, que, nesses tempos recuados dos
social e económica da Idade Média. Já há algumas décadas, se haviam
povos germânicos de que a história escrita nada sabe .linda, reinava
encontrado em alguns locais, na Alemanha, nos países nórdicos, na
entre os germanos um estado de coisas essencialmente diferente da
Islândia, curiosos vestígios de instalações rurais que levam a pensar que
situação atual. Não havia Estado com leis escritas e coercivas, não
outrora tinha existido nesses lugares uma propriedade comum da terra,
havia divisão entre ricos e po-bres, entre senhores e trabalhadores. Os
um comunismo agrário. Inicialmente não se soube como interpretar
germanos formavam tribos e clãs livres que se deslocaram durante
estes vestígios. Segundo uma opinião universalmente divulgada
muito tempo na Europa antes de se fixarem primeiro temporária e
sobretudo depois de Moeser e de Kindlinger, a cultura da terra na
depois definitivamente. O cultivo da terra na Europa começou na
Europa devia ter sido feita a partir de senhorios isolados, estando cada
Alemanha, como von Maurer o demonstrou, não a partir de indi-
um rodeado por uma extensão de terreno que era propriedade privada
MCIUOS, mas de clãs e de tribos inteiras, tal como na Islândia partiu
do possuidor do senhorio. Pensa-se que só no fim da Idade Média é
de agrupamentos humanos bastante consideráveis, chamados
que as habitações, até então dispersas, foram agrupadas, como medida
fraendalid e skulldalid (, 0 >.
de segurança, em aldeias; os diferentes territórios dos senhorios
Os dados antigos que temos sobre os germanos provém dos
incorporaram-se no território da aldeia. Observada mais atentamente,
romanos; e o exame das instituições transmitidas pela tradição
esta concepção era bastante inverossímil, porque era preciso supor que
confirma a exatidão desta concepção. Foram tribos de pastores
as habitações, por vezes muito afastadas umas das outras, tivessem sido
nómades que inicialmente povoaram a Alemanha. Tal como para
demolidas para serem reconstruídas em outro lugar e que cada um
outros nómades, a criação de gado — e consequentemente a posse de
tivesse renunciado livremente à disposição vantajosa dos seus campos à
pastos extensos — era o essencial. No entanto, tal como os outros
volta do seu senhorio, a uma total liberdade na gestão das suas terras,
povos migratórios dos tempos antigos ou modernos, não podiam
para os reagrupar em estreitas faixas espalhadas e sujeitos a uma gestão
subsistir muito tempo sem cultivar a terra. E é precisamente neste
inteiramente dependente das outras aldeias. Por muito inverossímil
estado de economia nómade conjugada com o cultivo da terra, sendo
que esta teoria fosse, prevaleceu até meados do século passado.
esta no entanto secundária relativamente ao essencial, isto é, a criação
de gado, que viviam na época de Júlio César, há cerca de dois mil
Von Maurer reuniu pela primeira vez todas as descobertas
anos, os suevos ou suavos, povos germânicos de que este indica a
isoladas numa grande e audaciosa teoria e demonstrou, apoiando-se
existência. Constatou-se uma situação, costumes e instituições
numa enorme documentação, em investigações muito aprofundadas
análogas entre os francos, alamanos, vândalos e outras tribos
sobre antigos documentos e textos jurídicos, que a propriedade
germânicas. Todos os povos germânicos se instalaram, por tempo a
comum da terra não tinha surgido no fim da Idade Média, mas era a
princípio, agrupados em tribos e clãs; cultivavam a terra, e logo
forma primitiva típica e geral das colónias germânicas na Europa
voltavam a partir, assim que tribos mais poderosas os repeliam ou as
desde a sua origem. Há
pastagens já não eram suficientes.

10 — A tradução aproximada destes termos é, respectivamente,


companhia e séquito. (N. T.)
122
123
Só quando as tribos nómades se estabilizaram e umas já não lenhorios, as aldeias e as cidades feudais se formaram por diversas
repeliam as outras, é que elas se fixaram durante muito mais tempo e se modificações a partir destas comunidades, de que nos nossos dias
tornaram pouco a pouco sedentárias. Para que a colonização se ainda se encontram vestígios em certas regiões da Europa Central e
desenvolvesse mais ou menos depressa, sobre uma terra livre ou sobre Nórdica.
antigas possessões romanas ou eslavas, efetuou-se sempre por tribos
Logo que se conheceram estas primeiras descobertas da
e clãs inteiras. Cada tribo e, em cada tribo cada clã, tomava posse de
piopriedade comum primitiva da terra na Alemanha e nos países
um determinado território que pertencia então em comum a todos os
nórdicos, surgiu a teoria de que se seguia a pista de tima instituição
interessados. Os antigos germanos não conheciam propriedade
especificamente germânica e que só as particularidades de caráter do
individual da terra. O indivíduo recebia por sorteio uma porção de
terra por um período de tempo limitado e no respeito por uma igualdade povo germânico a podiam explicar. Ainda que o próprio Maurer não
rigorosa. Todos os assuntos económicos, jurídicos e gerais, de uma tal tivesse exatamente esta con-cepção nacional do comunismo agrário
comunidade, que constituía na maioria dos casos uma centúria de dos germanos e tenha mencionado exemplos análogos entre outros
homens de armas, solucionavam-se no decorrer da assembleia dos seus povos, continuou I ser no essencial, um princípio admitido na
membros onde também eram eleitos o chefe e os demais funcionários Alemanha, segundo o qual a antiga comunidade rural era uma
públicos. particularidade das relações públicas e jurídicas germânicas, uma
manifestação do "espírito germânico".
Apenas nas montanhas, florestas ou regiões costeiras baixas em
No entanto, quase no mesmo momento em que se publicava a
que a falta de espaço ou de terra cultivável tornava impossível a
primeira obra de Maurer sobre o comunismo primitivo de aldeia dos
instalação de uma colónia importante, por exemplo no Odenwald, em
germanos, novas descobertas, sobre toda uma parte completamente
Westfalia, nos Alpes, onde os germanos se instalavam em senhorios
individuais formando entre eles, apesar disso, uma comunidade em diferente do continente europeu, foram conhecidas. De 1847 a 1852, o
que, a não ser os campos, pelo menos os prados, a floresta e as barão westefaliano von Hax-thausen, que tinha visitado a Rússia no
pastagens, constituíam a propriedade comum da aldeia, e a começo dos anos de 1840 a convite do czar Nicolau I, publicou em
comunidade ocupava-se de todos os assuntos públicos. Berlim os seus Studien ueber die mineren Zustaende, das Volksleben
und ins-besondere die laendlichen Einrichtungen Russlands W). O
A tribo, reagrupando várias comunidades, em geral uma centena,
mundo espantado soube que no leste da Europa existiam ainda em
praticamente apenas intervinha como instância jurídica e militar
nossos dias instituições análogas. O comunismo primitivo de aldeia,
suprema. Esta organização comunitária constituía, como von Maurer
do qual era preciso penosamente esclarecer os vestígios encobertos
o demonstrou nos doze volumes da sua grande obra, o fundamento e
pelos séculos e milénios seguintes na Alemanha, estava ainda vivo em
ao mesmo tempo a mais pequena célula da textura social desde os
primórdios da Idade Média, até muito antes da época moderna, de carne e osso em um gigantesco im-
modo que os
11 — Estudos sobre a situação interna, a vida do povo e em particular
as instituições rurais na Rússia. (N. T.)
124 125
pério vizinho, a leste. Na obra citada, como numa obra posterior assim diretamente pela Europa Ocidental adentro, na Terra Prometida
sobre a Die laendlich Verfassung Russlands (12>, publicada em do socialismo. Os dois pólos opostos tia eslavofilia estavam no
Leipzig em 1866, von Haxthausen demonstra que os camponeses entanto, completamente de acordo na sua concep ção da comunidade
russos não conheciam a propriedade privada dos campos, dos prados e camponesa russa como fenómeno especificamente eslavo, que não se
das florestas, de que toda a aldeia era considerada proprietária, e que as explicava senão pelo caráter próprio do povo eslavo.
famílias camponesas apenas recebiam parcelas de campos para
Entretanto, um outro fator interveio na história das nações
utilização temporária e que, tal como entre os antigos germanos, isso
europeias: entraram em contato com outras partes do mundo, o que
se fazia por sorteio. Na época em que Haxthausen visitou e estudou a
lhes fez tomar consciência de maneira muito tangível das instituições
Rússia, a servidão ali reinava em sua plenitude; era tanto mais impres-
públicas e das formas de civilização primitiva entre outros povos, que
sionante à primeira vista como sob a capa de chumbo de uma dura
nem eram germânicos nem eslavos. Já não se tratava de estudos
servidão e de um mecanismo de Estado despótico, a aldeia russa
constitui um pequeno mundo fechado sobre si mesmo vivendo científicos e de hábeis descobertas, mas dos interesses mais materiais
segundo um comunismo agrário e decidindo comunitariamente sobre dos Estados capitalistas da Europa e da sua política colonial.
todos os assuntos públicos na assembleia da aldeia, o Mir. O autor No século XIX, na era do capitalismo, a política colonial
alemão desta descoberta explicava-a como o produto da comunidade europeia tinha-se orientado por novas vias. Já não se tratava, como no
familiar primitiva eslava, tal como ainda se confirma indubitavelmente século XVI, por ocasião do primeiro assalto feito ao Novo Mundo, de
nos documentos jurídicos do século XII e seguintes. pilhar o mais rapidamente possível os tesouros e as riquezas naturais
A descoberta de Haxthausen foi acolhida com júbilo por toda em metais nobres, em especiarias, em pedras preciosas ou em
uma corrente intelectual e política na Rússia, a eslavofilia. Esta escravos, nos países tropicais recentemente descobertos, atividade em
corrente, orientada no sentido da glorificação do mundo eslavo e das que espanhóis e portugueses se distinguiam particularmente. Já não
suas particularidades, da sua "força pura" em oposição ao "Ocidente se tratava somente de formidáveis negócios comerciais pelos quais se
corrupto" com a sua cultura germânica russa o seu mais sólido apoio transportava, dos países de além-mar para os entrepostos europeus,
durante as duas ou três décadas seguintes. Segundo a diversidade, diversas matérias-primas, e se impunha aos indígenas desses países
reacionária ou revolucionária, da eslavofilia, a comuma rural foi toda uma quinquilharia sem valor, negócios iniciados pelos
elogiada quer como uma das três instituições fundamentais holandeses no século XVII e que serviram de exemplo aos ingleses.
autenticamente eslavas do mundo russo: a fé ortodoxa grega, o Trata-se agora de acrescentar a estes métodos mais antigos de
absolutismo czarista e o comunismo de aldeia patriarcal; quer, pelo colonização que ainda florescem nos nossos dias e jamais deixaram
contrário, como o ponto de apoio apropriado para a revolução de ser praticados, um novo método mais persistente e mais
socialista, iminente na Rússia, que permitiria evitar o capitalismo e sistemático de exploração das populações coloniais para o
entrar enriquecimento da "metrópole". Dois fatores deviam servir
12 — A constituição rural na Rússia. (N. T.)

126 127
para isso: por um lado a apropriação efetiva da terra, a mais gadas umas às outras e os laços de sangue eram tudo para elas.
importante fonte material da riqueza de cada país; por outro Em contrapartida, a propriedade individual não lhes dizia nada.
lado, a imposição permanente de contribuições à população. Para seu grande espanto, os ingleses descobriram nas margens
Neste duplo esforço, as potências coloniais europeias chocaram do Ganges e do Indo modelos de comunismo agrário tais, que os
com um obstáculo tão notável quanto sólido: as relações de costumes comunistas das antigas comunidades germânicas ou das
propriedades particulares dos autóctones opunham à pilhagem comunas de aldeia eslavas constituem, em comparação, quase o
dos europeus a mais tenaz resistência. Para extorquir a terra aos efeito de um pecado na propriedade privada.
seus proprietários, era necessário estabelecer primeiro quem
era o seu proprietário. Para fazer cobrar os impostos — e não Lê-se num relatório da administração inglesa dos impostos
somente estabelecê-los — era necessário poder apanhar os nas índias, que data de 1845: "Não vemos nenhuma divisão
contribuintes recalcitrantes. Ora foi aqui que os europeus permanente em parcelas. Cada um só possui a parcela cultivada
chocaram, nas suas colónias, com relações que lhes eram o tempo que duram os trabalhos do campo. Se uma parcela é
completamente estranhas e destruíam todas as suas noções abandonada sem estar cultivada, é integrada na terra comum e
sobre o caráter sagrado da propriedade privada. Os ingleses na pode ser entregue a quem quer que seja, na condi-ção de a
Ásia do Sul e os franceses na África do Norte tiveram a mesma cultivar". -J+*
experiência. Pela mesma época, um relatório governamental sobre a
Iniciada no começo do século XVII, a conquista das índias administração do Punjab para o período de 1849 a 1851 refere:
^Ê extraordinariamente interessante observar nesta sociedade a
pelos ingleses apenas terminou no século XIX, após a ocupação
força dos laços de sangue e da consciência de descender de um
progressiva de toda a coisa e do Bengala, com a submissão da
antepassado comum. A opinião pública está tão fortemente ligada
importante região do Punjab no Norte. Mas não foi senão após a
à conservação deste sistema que não é raro ver pessoas, cujos
submissão política que começou o difícil empreendimento da
descendentes depois de uma ou mesmo duas gerações não tenham
exploração sistemática das índias. A cada passo, os ingleses
participado totalmente na propriedade comum, terem acesso a
tiveram as maiores surpresas: encontraram as mais variadas
ela."
comunidades rurais, grandes e pequenas, instaladas desde
milénios, cultivando o arroz e vivendo na calma e na ordem, "Esta forma de propriedade da terra — escrevia o con-
mas em nenhuma parte — espantosamente! — existia nessas selheiro de Estado inglês no seu relatório sobre a comuna in-
aldeias propriedade privada da terra. Mesmo que se chegasse às diana — não permite a um membro do clã provar a propriedade
desta ou daquela parte da terra comum, nem mesmo da que lhe
vias de fato, ninguém podia declarar sua a parcela de terra que
pertence temporariamente. Os produtos de exploração comum
cultivava, nem a podia vender, nem arrendá-la, nem hipotecá-la
vão para uma arca comum que pode satisfazer as necessidades de
para pagar impostos atrasados. Todos os membros destas
todos". Assim pois, não temos neste caso repartição dos
comunas que englobavam por vezes grandes famílias inteiras e
campos a não ser por uma estação; os camponeses da comuna
por vezes algumas pequenas famílias descendentes de uma
possuem e cultivam o seu campo em comum
maior, estavam obstinada e fielmente li-
128 129
sem partilha, levam a colheita ao celeiro comum da aldeia (que nidades primitivas cuja existência tinha sido estabelecida por
naturalmente devia ter aspecto de "caixa" na opinião capitalista dos von Maurer para a Alemanha e por Nasse para a Inglaterra,
ingleses) e satisfazem fraternalmente as suas modestas como instituições primitivas com o mesmo caráter das comu-
necessidades com o fruto do seu trabalho comum. No noroeste do nidades agrárias germânicas.
Punjab, na fronteira do Afeganistão, encontram-se outros costumes
A antiguidade histórica, digna de considerações, destas
extremamente notáveis que desafiam qualquer noção de
instituições comunistas devia ser sensível aos ingleses, surpre-
propriedade privada. Aí, partilhavam-se efetivamen-te os campos
endidos por outro lado com a resistência tenaz que essas ins-
e trocavam-se periodicamente, mas — Oh! maravilha — a troca
tituições opuseram ao talento fiscal e administrativo dos ingle-
dos lotes efetuava-se, não entre famílias camponesas, tomadas uma
ses. Foi-lhes necessária uma luta de várias décadas, numerosos
por uma, mas entre aldeias inteiras que trocavam os seus campos
golpes de força, desonestidades, intervenções sem escrúpulos
todos os cinco anos e se deslocavam então em conjunto. "Não
contra antigos direitos e contra as noções de direito em vigor
devo ocultar — escrevia das Índias, em 1852, o comissário dos
entre esse povo, para conseguirem provocar uma confusão
impostos James aos seus superiores^ da
irremediável em todas as relações de propriedade, uma
administragãp_jovernamental — um ..costume, extremamente»
insegurança geral e a ruína dos camponeses. Os antigos laços
singular que se^ conservou até agora em certas regiões: que-ro-
foram quebrados, o isolamento pacífico do comunismo afas-
me referir à troca periódica de terras entre—as~ aldeias e às—*
tado do mundo foi rompido e substituído por querelas, discór-
suas subdivisões^ Em certos distritos apenas__se__..troçam os—>
dia, desigualdade e exploração. Daí resultaram, por um lado,
campos, noutros as próprias habitações".
enormes latifúndios, por outro, milhões de arrendatários sem
Estava-se uma vez mais perante uma particularidade de recursos. A propriedade privada fez a sua entrada nas Índias e
um certo grupo de povos, desta vez perante uma particularidade com ela o tifo, a fome e o escorbuto tornaram-se os hóspedes
"indiana". As instituições comunistas da comuna de aldeia permanentes das planícies do Ganges.
indiana denotavam no entanto, tanto pela sua situação
Se, após as descobertas dos colonizadores ingleses nas
geográfica como pela força dos seus laços de sangue e das re- Índias, o antigo comunismo agrário, já descoberto em três
lações de parentesco, um caráter tradicional, original e muito ramos da grande família dos povos indo-germânicos — os ger-
antigo. O fato das mais antigas formas de comunismo se terem manos, os eslavos e os indianos — podia ainda passar por uma
conservado nas regiões mais antigas, habitadas pelos indianos do particularidade dos povos indo-germânicos, por mais certo que
noroeste, mostrava claramente que a propriedade comum, bem seja este conceito etnográfico, as descobertas simultâneas dos
como a força dos laços de parentesco, remontavam a milénios, franceses na África ultrapassaram já esse âmbito. Trata-va-se
às primeiras colónias de imigrantes indianos na sua nova pátria, com efeito aqui de descobertas que constatavam a existência,
a Índia atual. O professor de direito comparado em Oxford, entre os árabes e os berberes da África do Norte, de instituições
antigo membro do governo das Índias, Sir Henry Maine, adotou exatamente semelhantes às que existiam no coração da Europa
desde 1871 as comunas agrárias indianas como tema dos seus e no continente asiático. Entre os nómades árabes, criadores de
cursos e colocou-as em paralelo com as comu- gado, a terra era propriedade das famílias.

130 131
Esta propriedade familiar, escrevia o investigador francês Da-reste no Novo Mundo. Nas velhas crónicas dos arquivos de listado dos
em 1852, transmite-se de geração em geração; nenhum árabe pode conventos espanhóis conservava-se há séculos a estranha narrativa de
mostrar uma porção de terra e dizer: é minha. uma América do Sul maravilhosa onde, desde ;'. época dos grandes
Entre os Kabyles, completamente arabizados, os agrupamentos descobrimentos, os conquistadores espanhóis haviam encontrado as
familiares tinham-se já decomposto em ramificações distintas, mas o instituições mais curiosas. A notícia da existência dessa América do
poderio das famílias continuava a ser grande: eram solidariamente Sul maravilhosa espalha-va-se já confusamente nos séculos XVII e
responsáveis pelos impostos, compravam em conjunto o gado XVIII na literatura europeia, a notícia da existência de um Império
destinado a ser repartido entre as rami°i-cações da família como Inca, encontrado pelos espanhóis no atual Peru, e em que o povo
alimento; em qualquer litígio concernente à propriedade da terra, o vivia numa completa comunidade de bens, sob o governo teocrata e
conselho da família era o juiz supremo; para se instalar entre os paternalista de déspotas indulgentes. Os temas fantásticos de um reino
Kabyles era necessária a autorização das famílias; o conselho das comunista lendário no Peru mantiveram-se tão persistentemente que
famílias dispunha mesmo de terras não cultivadas. Mas a regra era a ainda em 1875, um escritor alemão podia falar do Império Inca como
propriedade indivisível da família que não incluía, no sentido europeu de uma monarquia social de base teocrática "quase única na história
atual, um único lar mas era uma família patriarcal típica, tal como é da humanidade", na qual praticamente era realizada "a maior parte
descrita na Bíblia pelos antigos israelitas, um grande círculo de daquilo que os so-cial-democratas aspiram idealmente no presente,
parentes, composto pelo pai, pela mãe, pelos filhos e suas mulheres, mas que jamais alcançaram"(13). Entretanto, informações mais exatas
pelos filhos, netos, tios, tias, sobrinhos e primos. Neste círculo, diz sobre curioso país e seus costumes chegavam ao conhecimento do
em 1870 um outro francês, Letourne, a propriedade indivisível está público.
à disposição do membro da família mais velho que é eleito nestas Em 1840, foi publicado em tradução francesa um impor tante
funções e deve consultar o conselho de família em todos os casos relatório original de Alonso Zurita, antigo auditor do Conselho Real
importantes, em particular para a venda e compra de terreno. Tal era
do México, sobre a administração e as relações agrárias nas antigas
a situação da população na Argélia quando os franceses fizeram dela
colónias espanholas do Novo Mundo. E em meados do século XIX, o
sua colónia. Aconteceu à França no Norte da África o que aconteceu
governo espanhol fez sair dos arquivos os antigos documentos sobre
à Inglaterra nas Índias. Por toda a parte, o poderio colonial europeu
a conquista e a administração das possessões espanholas na América.
chocou com a resistência tenaz dos antigos laços sociais e das
Isto trazia uma nova e importante contribuição dos documentos sobre
instituições comunistas que protegiam o indivíduo da violência da
a situação social das antigas civilizações pré-capitalistas nos países
exploração capitalista europeia e da sua política financeira.
de além-mar.
Estas novas experiências iluminaram de forma completamente Já, na base dos relatórios de Zurita, o sábio russo Máximo
nova as recordações em parte esquecidas dos primeiros tempos da Kovalevsky chegou, nos anos de 1870, à conclusão de que
política colonial europeia e dos seus vandalismos
13 — Citado por Cunow, p. 6.
132
133
o legendário Império Inca do Peru tinha sido simplesmente um país a destruir completamente. Após se ter visto, no comunismo agrário,
onde reinava esse comunismo agrário primitivo que Maurer tinha já uma particularidade dos povos germânicos, depois tios povos
referido entre os antigos germanos, e que esse comunismo era eslavos, indianos, árabes, kabyles, mexicanos, além do
predominante não só no Peru, mas também no México e em todo o maravilhoso Estado dos Incas do Peru e de muitos outros tipos de
continente recentemente conquistado pelos espanhóis. Publicações povos "específicos", chega-se forçosamente à conclusão que este
posteriores permitem um estudo mais aprofundado das antigas comunismo de aldeia não era uma "particularidade étnica" de uma
relações agrárias no Peru e puseram a descoberto uma nova imagem raça ou de um continente, mas a forma geral da sociedade humana
do comunismo rural primitivo, num novo continente, entre uma raça numa determinada época do desenvolvimento da civilização. A
completamente diferente, num nível de civilização e numa época ciência burguesa oficial, a economia política em particular, começou
completamente diferente daquela das descobertas precedentes. por opor uma resistência feroz a este princípio. A escola inglesa de
Smith-Ricardo, predominante em toda a Europa durante a primeira
Tratava-se de uma estrutura comunista agrária muito antiga —
metade do século XIX, negava firmemente a possibilidade de uma
predominante entre as tribos peruanas desde tempos imemoriais —
propriedade comum da terra. Os maiores génios da ciência eco-
que se encontrava ainda cheia de força e vigor no século XVI, por
nómica na época do "racionalismo" burguês comportaram-se
ocasião da invasão espanhola. Uma associação fundada nos laços de
exatamente como os primeiros conquistadores espanhóis, portugueses,
parentesco, a família, era a única proprietária da terra em cada aldeia
franceses e holandeses que, pela sua grotesca ignorância, eram
ou grupo de aldeias, os campos eram repartidos em lotes e sorteados
totalmente incapazes, na América recentemente descoberta, de
anualmente pelos membros de aldeia; os assuntos públicos eram
compreender as relações agrárias dos autóctones e, na ausência de
regulados pela assembleia da aldeia que elegia também o seu chefe.
propriedades privadas, declaravam simplesmente todo o país
Encontramos mesmo neste longínquo país sul-americano, entre os
"propriedade do Imperador", terreno fiscal. No século XVII, o
índios, traços vivos de um comunismo ainda mais desenvolvido do
missionário francês Dubois, por exemplo, escrevia a propósito
que na Europa: enormes casas coletivas onde famílias inteiras viviam
das índias: "Os indianos não conhecem a propriedade da
em comum, com sepulturas comuns. Fala-se de uma dessas
terra. Os campos que cultivam são propriedade do governo
habitações coletivas onde moravam mais de 4.000 homens e
mongol." E um médico da faculdade de Montpellier, François
mulheres. A residência principal do imperador Inca, a cidade de
Bernier, que viajou pela Ásia nos países do Grão-Mongol e publicou
Cuzco, compunha-se particularmente de várias dessas habitações
em 1699, em Ams-terdam, uma descrição muito conhecida desses
coletivas que tinham cada uma o nome da família.
países, bradava indignado: "Estes três Estados, a Turquia, a Pérsia e a
Assim, em meados do século XIX, foi publicada uma abundante índia, aniquilaram a própria noção do teu e do meu aplicada à posse da
documentação que punha seriamente em questão a velha noção do terra, noção que é o fundamento de tudo o que há de bom e de belo no
caráter eterno da propriedade privada e da sua existência desde o mundo".
começo do mundo, para pouco depois É da mesma ignorância e grotesca incompreensão para tudo o
que não se parecia com a civilização capitalista que

134 135
(lava provas no século XIX o sábio James Mill, pai do célebre
John Stuart Mill, quando escrevia na sua história das índias glês Henry Maine, professor de direito e conselheiro de Estado
britânicas: "Na base de todos os fatos por nós observados, não para as índias, quem primeiro fizeram reconhecer DO co-
podemos chegar à conclusão senão de que a propriedade da terra munismo agrário uma forma primitiva internacional c válida
nas índias pertence ao soberano; porque se não admitíssemos que para todos os continentes e todas as raças. Estava reservada a
é ele o proprietário da terra, ser-nos-ia impossível dizer quem era um sociólogo de formação jurídica, o americano Morgan, a
o seu proprietário. Que a terra pôde muito simplesmente honra de descobrir que a base necessária a esta forma eco-
pertencer às comunidades camponeses que a cultivavam desde nómica de desenvolvimento residia na estrutura social da socie-
há milénios, que pôde existir um país, uma grande sociedade dade primitiva. O importante papel dos laços de parentesco
civilizada, em que a terra não era um meio de explorar o trabalho nas comunas de aldeia comunistas primitivas havia impressio-
de outrem, mas simplesmente a base da existência das próprias nado os investigadores, tanto nas índias como na Argélia e
pessoas que nela trabalhavam, é o que não podia de modo algum entre os eslavos. Para os germanos, as investigações de von
entrar na cabeça de um grande sábio da burguesia inglesa. Esta Maurer estabeleceram que a colonização da Europa fora rea-
limitação, quase chocante, do horizonte intelectual aos limites lizada pelos grupos aparentados, a família. A história dos po-
da economia capitalista, demonstrava simplesmente que a vos da antiguidade, a dos gregos e dos romanos, mostrou a cada
ciência oficial do século dos génios burgueses tinha uma visão e instante que a família tinha sempre desempenhado entre eles o
uma compreensão históricas infinitamente mais restritas do que, papel mais relevante, como grupo social, como unidade
perto de dois mi' anos antes, os romanos de quem generais como económica, como instituição jurídica, como círculo fechado
César, e historiadores como Tácito, nos transmitiram pontos de de prática religiosa. Finalmente, todas as notícias trazidas pe-
vista e descrições extremamente preciosas das relações los viajantes sobre os chamados países selvagens confirmavam
económicas e sociais entre os seus vizinhos germânicos, porém com um notável acordo que quanto mais primitivo era um
completamente diferentes das suas. povo tanto mais os laços de parentesco desempenhavam um
relevante papel, tanto mais dominavam todas as relações e no-
Outrora, como atualmente, a economia política burguesa ções económicas, sociais e religiosas.
foi, de todas as ciências, a que, como defesa da forma domi-
nante de exploração, mostrou a menor compreensão em relação Um novo problema, extremamente importante, colocava--
às outras formas de civilização e economia, e estava reservado a se assim à investigação científica. Quais eram precisamente
outros ramos da ciência, um pouco mais afastados das esses agrupamentos familiares que tinham uma tal importância
oposições diretas de interesses e do campo de batalha entre o nos tempos primitivos, como se tinham constituído, que laço os
capital e o trabalho, reconhecer nas instituições comunistas dos unia, em que consistia o comunismo económico e a evolução
tempos antigos a forma geralmente predominante do de- económica em geral? A todas estas questões, Morgan deu, pela
senvolvimento da economia e da civilização numa determinada primeira vez, esclarecimentos que fizeram época em 1877, na
etapa. Foram juristas como von Maurer, Kovalevsky e o in- sua Sociedade Primitiva. Morgan, que passou uma grande parte
da sua vida entre os índios de uma tribo iroquesa, no Estado de
136 Nova Iorque, e estudou em profundi-
137
dade a situação desse povo primitivo de caçadores, concebeu uma longa série de enganos na procura da verdadeira religião, assim
nova e vasta teoria das formas de evolução da sociedade humana também para os economistas em particular todas as formas primitivas
nesses longos períodos de tempo que precederam todo o de economia não eram senão tentativas desastrosas anteriores à
conhecimento histórico, comparando o resultado das suas descoberta da única forma económica verdadeira: a da propriedade
investigações com os fatos conhecidos em relação a outros povos privada e da exploração com as quais começam a história escrita e a
primitivos. Estas ideias, que fazem de Morgan um pioneiro e que se civilização.
mantém plenamente válidas mesmo hoje apesar de um abundante
contributo de novos materiais que permitem corrigir certos detalhes, Morgan trouxe a esta concepção uma contribuição decisiva
podem resumir-se nos pontos seguintes: apresentando a história primitiva da civilização como uma parte
infinitamente mais importante na evolução ininterrupta da
1. Morgan foi o primeiro a introduzir uma ordem científica na humanidade, mais importante tanto pela duração infinitamente mais
história das civilizações pré-históricas, distinguindo nelas, por um longa que ela ocupa em relação ao minúsculo período da história
lado diferentes etapas de evolução e tornando público, por outro lado, o escrita, como pelas conquistas capitais da civilização que tiveram
motor fundamental. Até então, o imenso período da vida social que lugar precisamente durante esta longa penumbra, até à aurora da
precede toda a história escrita e ao mesmo tempo as relações sociais existência social da humanidade. Dando um conteúdo positivo às
entre os povos primitivos que ainda hoje vivem com toda a variedade "denominações" de estado selvagem, de barbárie, de civilização,
de formas e etapas, formavam mais ou menos um caos de que este ou Morgan fez delas noções científicas exatas e utilizou-as como
aquele capítulo ou fragmento era aqui e ali arrancado das trevas pela instrumentos da investigação científica. O estado selvagem, a
investigação científica. As noções de "estado selvagem" e de barbárie e a civilização são, em Morgan, três etapas da evolução da
"barbárie" que se aplicavam sumariamente a estes estados da humanidade que se diferenciam entre si por distintos sinais materiais
humanidade não tinham senão um valor negativo, caracterizando a completamente determinados e se decompõem cada uma em três ní-
ausência de tudo o que se considerava como o sinal da civilização veis: inferior, médio e superior, que conquistas e progressos concretos
segundo as concepções de então. De fato, segundo este ponto de e determinados da civilização permitem distinguir. Alguns
vista, a vida propriamente civilizada e humana da sociedade começava pretensiosos que tudo crêm saber podem atualmente concluir que o
com a história escrita. Tudo o que dependia do "estado selvagem" e da nível médio do estado selvagem não começou pela pesca, como
"barbárie" constituía por assim dizer uma etapa inferior e vergonhosa, Morgan pensava, nem o nível superior pela invenção do arco e da
anterior à civilização, uma existência quase animal sobra a qual a flecha, porque em muitos casos a ordem teria sido inversa e noutros
humanidade culta de hoje apenas podia lançar um olhar de desprezo casos etapas inteiras faltaram por consequência de circunstâncias
condescendente. Do mesmo modo que para os representantes oficiais naturais; estão neste caso críticas que podem de resto ser feitas a toda
da Igreja cristã todas as religiões primitivas e anteriores ao a classificação histórica se a tomarmos como um esquema rígido com
Cristianismo não são senão uma valor absoluto, como uma cadeia de escravos do conhecimento, e não
como um fio condutor vivo e flexível. O maior mérito histó-

138
139
rico de Morgan é ter criado com a sua primeira classificação científica
às aquisições das ciências sociais. Morgan não só enriqueceu este
as condições prévias ao estudo da pré-história, exa-tamente como
domínio pela sua sistematização, mas também por uma ideia
Linneu tem o mérito de ter fornecido a primeira classificação científica
fundamental e genial sobre os laços entre as relações familiares numa
das plantas. Porém, com uma grande diferença. Como se sabe,
Linneu tomou como base da sua sistematização das plantas um sinal sociedade e o sistema de parentesco que nela prevalece. Morgan
muito prático, mas puramente exterior — os órgãos de reprodução das chamou a atenção pela primeira vez para o fato surpreendente de que
plantas — e foi necessário por conseguinte, como o próprio Linneu o entre muitos povos primitivos as verdadeiras relações de parentesco e
reconheceu, substituir este primeiro recurso por uma classificação de descendência, quer dizer a verdadeira família, não coincidem com
natural mais expressiva do ponto de vista da história da evolução do os títulos de parentesco que os homens se atribuem mutuamente, nem
mundo vegetal. Pelo contrário, é justamente pela escolha do princípio com as obrigações mútuas que daí lhes advém. Foi o primeiro a
fundamental sobre o qual ele fundou a sua sistematização que Morgan encontrar para este misterioso fenómeno uma explicação puramente
mais fecundou a investigação: tomou como ponto de partida da sua materialista dialética. "A família — diz Morgan — é o elemento
classificação o princípio segundo o qual é o modo do trabalho social, a ativo, não é estacionária, progride de uma forma inferior para uma
produção, que em cada época histórica, desde os primórdios da forma mais elevada, na medida em que a sociedade evolui de uma
civilização, determina, em primeiro lugar, as relações sociais forma inferior para uma forma mais elevada. Pelo contrário, os
entre os homens e cujos progressos decisivos são igualmente marcos sistemas de parentesco são passivos, não registram senão em
milenários dessa evolução. intervalos muito longos os progressos que a família realizou ao longo
dos tempos e não conhecem modificações radicais senão quando a
2. O segundo grande mérito de Morgan diz respeito às relações família se modificou radicalmente". Daqui resulta que, entre os povos
familiares na sociedade primitiva. Aqui também, na base de um vasto primitivos, sistemas de parentesco que correspondem a uma forma
material que se conseguiu com uma investigação internacional, anterior e já ultrapassada da família, estão ainda em vigor, como de
estabeleceu a primeira sucessão cientificamente fundada nas formas de uma maneira geral as ideias dos homens se ligam muito tempo a
evolução da família, desde as formas mais remotas da sociedade situações que estão já ultrapassadas pela evolução material efetiva da
primitiva até à monogamia atualmente dominante, ou seja até ao sociedade.
casamento estável legalizado pelo Estado e onde o homem ocupa a
posição dominante. Na verdade, o material descoberto desde então 3. Com base na história da evolução das relações familiares,
trouxe várias correções ao esquema da evolução da família segundo Morgan apresentou o primeiro estudo exaustivo desses antigos
Morgan. Entretanto, os traços fundamentais do seu sistema como agrupamentos familiares que, entre todos os povos civilizados, entre
primeira escala das formas da família humana, desde as trevas da Pré- os gregos e os romanos, entre os celtas e os germanos, entre os
História até ao presente, guiada rigorosamente pela ideia da evolução, antigos israelitas, estão na origem da tradição histórica e se
continua a ser uma contribuição durável reconhecem na maior parte dos povos primitivos que ainda hoje
existem. Ele mostrou que estes agrupamentos, baseados nos laços de
sangue e na ascendência comum, não
140
141
lio senão, por um lado, uma etapa elevada na evolução da mem sobre a mulher no Estado, no direito de propriedade e na
família e, por outro lado, o fundamento de toda a vida social — família. É ao longo deste período histórico relativamente curto
no extenso período em que ainda não havia Estado na moderna que se realizam os mais importantes e rápidos progressos da
acepção da palavra, quer dizer organização política coercitiva produção, da ciência, da arte, mas também as profundas
com base no critério territorial. Cada tribo, que se compunha de divisões da sociedade pelas oposições de classes, a miséria dos
um certo número de famílias ou de gentes, como os romanos lhes povos e a sua escravatura. Eis o próprio juízo de Morgan sobre
chamavam, tinha o seu próprio território que lhe pertencia em a nossa civilização atual, pelo qual conclui os resultados do seu
comum, e em cada tribo, o agrupamento familiar era a unidade estudo clássico:
que se governava de maneira comunista, onde não havia ricos
nem pobres, ociosos e trabalhadores, senhores e escravos, e onde "Desde o advento da civilização, o crescimento da riqueza
todos os assuntos públicos se resolviam pela livre escolha e livre tornou-se tão formidável, as suas formas tão diversas, a sua
decisão de todos. Como exemplo vivo destas relações, pelas aplicação tão vasta e a sua administração tão habilmente cana-
quais passaram outrora todos os povos da civilização atual, lizada no interesse dos proprietários que essa riqueza se tornou,
Morgan esmiuçava em detalhe a organização dos índios da face ao povo, uma força insuperável. O espírito humano en-
América, florescente como estava quando os europeus a contra-se desamparado e fascinado perante a sua própria cria-
conquistaram. ção. Contudo, virá o tempo em que a razão humana se forti-
ficará para dominar a riqueza, em que ela estabelecerá a cons-
"Todos os seus membros — diz — são pessoas livres que
tante das relações do Estado com a riqueza que protege, bem
têm o direito de proteger a liberdade de outrem; iguais em
como os limites dos direitos dos proprietários. Os interesses da
direitos — nem o chefe em tempo de paz, nem o chefe de guerra
sociedade são mais importantes do que os interesses individuais
podem reivindicar algum privilégio, qualquer que seja; formam
uma fraternidade ligada por laços de sangue. Liberdade, e devem estabelecer-se entre ambos relações justas e harmoniosas.
igualdade, fraternidade, se bem que nunca formuladas, eram os A simples procura da riqueza não é o destino da humanidade se
princípios fundamentais da Gens, e esta, por sua vez, era a o progresso deve continuar a ser a lei do futuro como foi no
unidade de todo o sistema social, o fundamento da sociedade passado. O tempo decorrido desde os primórdios da civilização
indígena organizada. Isto explica o sentido irredutível da sua não é senão uma pequena fração da vida que ainda está perante
independência e da dignidade pessoal na conduta que todos ela. A dissolução da sociedade pesa como uma ameaça sobre nós
reconhecem aos índios. como conclusão de uma carreira histórica cujo único fim é a
riqueza; porque uma tal carreira contém nela mesma os
4. A organização gentílica levou a evolução social ao elementos do seu próprio aniquilamento. A democracia na
início da civilização que Morgan caracteriza como esse curto administração, a fraternidade na sociedade, a igualdade de
período mais recente da história da civilização no qual, sobre as direitos, a educação universal, consagração a próxima etapa
ruínas do comunismo e da antiga democracia, surgiram a superior da sociedade, para o advento da qual a experiência, a
propriedade privada e com ela, a exploração, uma instituição razão e a ciência contribuem permanentemente. Esta etapa fará
pública coercitiva, o Estado, e a dominação exclusiva do ho- reviver — mas sob uma forma

142 143
mais elevada — a liberdade, a igualdade e a fraternidade das antigas ria universal, não era mais do que uma minúscula etapa transitória na
gentes".
grande marcha em frente da humanidade.
A contribuição de Morgan para o conhecimento da história da
economia revestiu-se de um importante significado. Ele apresentou a II
economia comunista primitiva, que até então apenas era conhecida
como uma série de exceções, como a regra geral de uma evolução O livro de Morgan sobre a Sociedade Primitiva constituiu por
lógica das civilizações, e em particular a constituição em gentes. assim dizer uma introdução tardia ao Manifesto Comunista de Marx e
Estava assim demonstrado que o comunismo primitivo com a Engels. As condições estavam reunidas para forçar a ciência burguesa
democracia e a igualdade social correspondentes é o berço da evolução a reagir. No espaço de duas ou três décadas após a metade do século,
social. Alargando o horizonte do passado pré-histórico, ele situou toda a noção de comunismo primitivo tínha-se introduzido por todos os
a civilização atual com a sua propriedade privada, a sua dominação de lados na ciência. Enquanto só se tratava de distintas "antiguidades do
classe, a sua dominação masculina, o seu Estado e o seu casamento direito germânico", de "particularidades das tribos eslavas", do
coercitivos, como uma curta etapa transitória, originada pela dissolução Estado Inca do Peru, exumado pelos historiadores, etc, estas
da sociedade comunista primitiva e que, por sua vez, deve dar lugar, no descobertas conservavam o caráter de curiosidades científicas
futuro, a formas sociais superiores. Assim, Morgan forneceu ao inofensivas, sem interesse atual, sem ligação direta com os interesses
socialismo científico um novo e poderoso apoio. Enquanto Marx e e as lutas cotidianas da sociedade burguesa. A tal ponto que os
Engels tinham, pela via da análise económica do capitalismo, conservadores convictos ou políticos liberais moderados como Lud-
demonstrado para o futuro próximo a inevitável passagem da sociedade wig von Maurer e Sir Henry Maine puderam conquistar os maiores
à economia comunista mundial e dado assim às aspirações socialistas méritos ao fazer tais descobertas. Em breve, contudo, essa ligação
um fundamento científico sólido, Morgan forneceu em certa medida à com a atualidade ia dar-se em duas direções ao mesmo tempo. Desde
obra de Marx e Engels todo o seu poderoso alicerce, demonstrando que então, como vimos, a política colonial havia levado a um choque
a sociedade democrática comunista engloba, ainda que sob formas entre os interesses materiais tangíveis do mundo burguês e as
primitivas, todo o longo passado da história da humanidade antes da condições de vida do comunismo primitivo. Quanto mais o regime
civilização atual. A nobre tradição do passado longínquo estendia capitalista impunha toda a sua força na Europa Ocidental desde
deste modo a mão às aspirações revolucionárias do futuro, o círculo do meados do século XIX, após as tempestades da revolução de 1848,
conhecimento fechava-se harmoniosamente e nesta perspectiva o mais esse choque se tornava brutal. Ao mesmo tempo, e precisamente
mundo atual da dominação de classe e da exploração, que pretendia ser depois da revolução de 1848, um outro inimigo desempenhava um
a nec plus ultra <14) da civilização, o objetivo supremo da hístó- papel cada vez maior no interior da sociedade burguesa: o movimento
operário revolucionário. Desde as jornadas de Junho de 1848 em
14 — Locução latina que se aplica para designar um limite inul- Paris, o "espectro vermelho" não mais desaparecia da sua política, e
trapassável. (N. T.)
ressurgiu em 1871 na efervescência obstinada das lutas da Comuna,
144 para grande horror da bur-

145
guesia francesa e internacional. Ora, à luz destas lutas de classes
brutais, a mais recente descoberta da investigação científica — rano da constituição familiar com a sua igualdade de sexos e I
o comunismo primitivo — revelava o seu aspecto perigoso. A sua democracia geral. Starcke, por exemplo, na sua Primitivem
burguesia, tocada no ponto sensível dos seus interesses de classe, FamilieW, de 1888, considera as hipóteses de Morgan sobre os
pressentia uma ligação obscura entre as velhas tradições sistemas de parentesco, como um "sonho selvagem", "para não
comunistas, que nos países coloniais opunham resistência tenaz à dizer um delírk>"(,6>.
procura do lucro e aos progressos de uma "europeização" dos
indígenas, e o novo evangelho suscitado pela impetuosidade Mesmo sábios mais honestos, como o melhor historiador
revolucionária das massas proletárias nos velhos países que possuímos de civilizações, Lippert, lançam-se em luta con-
capitalistas. tra Morgan. Baseando-se nas narrações superficiais e antigas de
missionários do século XVIII, sem qualquer formação económica
Quando em 1873, na Assembleia Nacional Francesa se e etnológica, ignorando completamente os prodigiosos estudos
decidiu do destino dos desditosos árabes da Argélia por uma lei de Morgan, Lippert descreveu as relações económicas entre os
que instaurava à força a propriedade privada, não se cessou de índios da América do Norte, os mesmos em cuja vida e
repetir, nesta assembleia onde ainda vibravam a infâmia e a fúria organização social Morgan, melhor que ninguém, penetrou.
destruidoras dos vencedores da Comuna, que a propriedade Assim tenta provar que entre os povos caçadores em geral não
comum primitiva dos árabes devia ser destruída a todo o custo há nenhuma organização comum da produção, nenhuma
"como forma que conserva nos espíritos as tendências preocupação da totalidade e do futuro, e que, ao contrário, aí
comunistas". Na Alemanha, durante esse tempo, os esplendores não impera senão a ausência de qualquer regra e de qualquer
do novo império alemão, a especulação da era da fundação e a pensamento.
primeira crise capitalista dos anos 70, o regime feroz e Lippert adota, sem crítica alguma, a estúpida deformação
sanguinário de Bismarck, com a sua lei contra os socialistas, iriam que faz com que os comunistas que efetivamente existem entre
intensificar ao máximo as lutas de classes e banir toda a os índios suportem a limitada visão europeia dos missionários; é
complacência, inclusive na investigação científica. O desen- assim, por exemplo, quando cita a história da missão dos
volvimento sem igual da "social-democracia", encarnação das irmãos evangelistas entre os índios da América do Norte, obra
teorias de Marx e de Engels, aguçou extraordinariamente o de Loskiek, que data de 1789: "Muitos dentre
instinto de classe da ciência burguesa na Alemanha. E foi assim
que se desencadeou a mais vigorosa reação contra as teorias sobre 15 — Família primitiva. (N. T.)
o comunismo primitivo. Historiadores da civilização como 16 — As críticas e as teorias de Starcke e de Westermarck foram submetidas
por Cunow, na sua obra de 1894 sobre as Verwandts-chaftsorganisationen der
Lippert e Schurtz, teóricos de economia política como Buecher, Australneggcr (Organização de parentesco entre os negros das regiões austrais), a um
exame apofundado e implacável ao qual, segundo o nosso conhecimento, estes dois
sociólogos como Starcke, Westermarck e Gros-se são unânimes senhores não responderam até à data. Isto não impede que sociólogos mais recentes,
hoje em dia em combater com ardor a teoria do comunismo como Grosse, continuem a considerá-los como autoridades eminentes, como aqueles
que destruíram Morgan. Com os críticos de Morgan acontece o mesmo que com os
primitivo e em particular as ideias de Morgan sobre a evolução da críticos de Marx: à ciência burguesa basta que as suas opiniões sirvam contra os
família e sobre o reinado outrora sobe- odiados revolucionários e a sua boa vontade substitua aqui os resultados científicos.

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eles (os índios da América) — diz o nosso missionário notavelmente yas(17). O porta-voz mais representativo e enérgico da rea-| Io contra
informado — são tão negligentes que não plantam nada, confiantes que as perigosas teorias do comunismo primitivo, contra 0 "pai da Igreja
os outros não podem recusar partilhar as suas provisões com eles. da social-democracia alemã", Morgan, é o lenhor Ernst Grosse. À
Como deste modo os mais trabalhadores não se aproveitam do seu primeira vista, o próprio Grosse é partidário da concepção
trabalho mais do que os ociosos, plantam cada vez menos, com o materialista da história; ele explica, com efeito, diversas formas de
tempo. Quando sobrevêm um inverno rigoroso, a neve densa impede- direito, de relações entre os sexos e de pensamento social remontando
os de caçar e grassa facilmente uma fome geral, acarretando às relações de produção, fator determinante dessas formas. "Poucos
frequentemente a morte de muitos homens. A miséria ensina-os então historiadores das civilizações, diz no seu Anfaenge der Kunst (18>
a alímentarem-se de raízes e de cascas de árvores, particularmente de publicado em 1894, parecem ter compreendido toda a importância da
carvalhos jovens". E Lippert acrescenta às palavras do seu mestre: produção. É, além disso, mais fácil subestimá-la de que superestimá-
"Assim, por um encadeamento natural, o regresso à negligência la. A economia é, por assim dizer, o centro vital de qualquer forma de
anterior implicou o regresso ao modo de vida anterior". Nesta civilização; ela exerce a mais profunda e irresistível influência sobre
sociedade indígena onde ninguém "pode recusar" partilhar as suas todos os outros fatores de civilização, enquanto que ela própria não é
provisões com outros e na qual o "irmão evangelista" construiu senão determinada por fatores naturais — geográficos e
totalmente e com um arbítrio manifesto a inevitável divisão em metereológicos. Poder-se-ia muito justamente afirmar que a forma de
"trabalhadores" e "ociosos" segundo o modelo europeu, Lippert produção é o fenómeno primário de civilização, junto do qual todos
pretende encontrar a melhor prova contra o comunismo primitivo: "A os outros aspectos da civilização não são senão derivados e
um tal nível, a geração idosa preocupa-se ainda menos em preparar a secundários — evidentemente não no sentido em que os outros ramos
jovem geração para a vida. O índio já está muito afastado do homem teriam nascido desse tronco, mas porque, ainda que nascido de
primitivo. Desde que o homem tem um instrumento tem a noção de maneira independente, desenvolveram-se e formaram-se cons-
posse, mas limitada a esse utensílio. Desde o mais baixo nível, o índio tantemente sob pressão do fator económico dominante".
tem esta noção; nesta possessão primitiva, está ausente qualquer Parece à primeira vista que o próprio Grosse extraiu as suas
elemento de comunismo; a evolução começa pelo contrário". principais ideias dos "pais da Igreja da social-democracia alemã", se
bem que na verdade se acautele evidentemente
O professor Biicher opôs à economia comunista primitiva a sua
17 — O professor Ed. Meyer escreveu também, na sua introdução de 1907 à
"teoria da procura individual do alimento" entre os povos primitivos e Geschichtc des Altertums (História da Antiguidade), p. 67: "A hipótese estabelecida
dos "períodos de tempo incomensuráveis" nos quais "o homem por G. Hansen e geralmente aceita, segundo a qual a propriedade privada do solo foi
originária e universalmente precedida de uma propriedade comum com distribuição,
existiu sem trabalhar". Ora, para o historiador das civilizações, periódica, como César e Tácito a descrevem entre os germanos, foi fortemente contes-
Schurtz, o professor Biicher, com o seu "golpe de vista genial", é um tada nos últimos tempos; em todo o caso, o Mir iusso, que passa como típico desta
propriedade comum, só data do século XVII". O professar Meyer retoma aliás esta
profeta que é preciso seguir cegamente quando se trata da economia última afirmação, sem a analisar, das antigas teorias do professor russo Tchitcherin.
das épocas primiti- 18 — Os começos da arte. (N. T.)

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de deixar suspeitar, ainda que por uma só palavra, a fonte
pria teoria — apenas faz aparecer as organizações cm linha-s,
científica na qual bebeu, completamente, a sua superioridade
quadros da economia comunista, numa etapa determinada da
sobre a "maior parte dos historiadores das civilizações". Ele é
evolução: ao nível da agricultura inferior, para rapidamente a
mesmo, no que respeita à concepção materialista da história,
fazer entrar em dissolução ao nível da agricultura superior e
"mais papista do que o papa". Ao passo que Engels — criador,
ceder de novo o lugar à "propriedade individual". Deste modo,
juntamente com Marx, da concepção materialista da história —
Grosse destrói triunfalmente a perspectiva histórica de Marx e
admitia para a evolução da família desde os tempos primitivos
Morgan. Nesta perspectiva o comunismo era o berço da
até ao casamento atual sancionado pelo Estado, uma sucessão
humanidade, evoluindo no sentido da civilização, a forma das
independente das relações económicas baseada somente na
relações económicas que tinha acompanhado essa evolução
perpetuação do género humano, Grosse vai muito mais longe.
durante períodos de tempo incomensuráveis, para somente se
Estabelece a teoria segundo a qual a forma da família não é
dissolver com a civilização e dar lugar à propriedade privada; e a
senão em cada época o produto direto das relações económicas
própria civilização, por um rápido processo de dissolução,
vigentes. "Em nenhum lado. .. — escreve — o significado da
caminhava em direção ao regresso do comunismo, sob a forma
produção para a civilização ressalta tão claramente como na
mais elevada da sociedade socialista.
história da família. As estranhas formas da família humana que
levaram os sociólogos a hipóteses ainda mais estranhas, Segundo Grosse, era a propriedade privada que tinha
tornam-se surpreendentemente compreensíveis desde que se acompanhado o nascimento e o progresso da civilização, para
considerem em relação com as formas da produção". só dar lugar ao comunismo temporariamente e numa etapa bem
determinada, a da agricultura inferior. Segundo Marx-Engels e
O seu livro, publicado em 1896, Sie jormen der Familie
Morgan, o início e o fim da história da civilização é a pro-
und Die Formen der Wirtschaft(}9^ é inteiramente consagrado a
demonstrar a exatidão desta ideia. Ao mesmo tempo Grosse é priedade comum, a solidariedade social: segundo Grosse e seus
um adversário decidido da teoria do comunismo primitivo. Ele discípulos da ciência burguesa é o "indivíduo" com a propriedade
próprio procura demonstrar que a evolução histórica da privada. Isto não é suficiente. Grosse é inimigo declarado não
humanidade não começou na realidade pela propriedade só de Morgan e do comunismo primitivo, mas de toda a teoria
comum, mas pela propriedade privada; com Lippert e Biicher, da evolução no domínio da vida social e ironiza duramente os
esforça-se por expor, do seu ponto de vista, que quanto mais se espíritos pueris que querem alinhar todos os fenómenos da vida
retrocede na Pré-História mais "o indivíduo" com a sua social numa série evolutiva e concebê-los como um processo
"propriedade individual" domina exclusivamente. Certamente, único, como um progresso da humanidade de formas inferiores a
não se pode contestar as descobertas feitas em todas as partes formas mais elevadas da vida. Grosse combate com toda a força
do mundo sobre as comunidades comunistas de aldeia e sobre de que dispõe, como típico sábio burguês, esta ideia
as tribos. Mas Grosse — e aí reside a sua pró- fundamental que serve de base a toda a ciência social moderna
em geral e, em particular, à concepção da história e à teoria do
19 — As formas da família e as formas da economia. (N. T.) socialismo científico. "A humanidade — proclama ele — não
se move de maneira alguma segundo uma
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151
linha única e numa direção única; pelo contrário, à diversidade das presunção de Grosse relativamente à "maior parte dos historiadores
condições de vida dos povos corresponde a diversidade de seus das civilizações" se baseia nesta magra descoberta, está desprovida de
rumos e dos seus objetivos". Assim, na pessoa de Grosse, a ciência qualquer fundamento. A ideia de que a fonte principal na qual um
social burguesa chegou, na sua reação contra as consequências povo baseia a sua alimentação é de uma extraordinária importância
revolucionárias das suas próprias descobertas, ao ponto em que a para o desenvolvimento da sua civilização, não é uma descoberta
economia burguesa vulgar tinha chegado na sua reação contra a inédita de Grosse, mas antes pelo contrário um conhecimento muito
economia clássica: à negação de toda e qualquer lei da evolução antigo de todos os historiadores das civilizações. Esta constatação
social(20). Examinemos mais de perto este curioso "materialismo" levou à classificação corrente dos povos em caçadores, criadores de
histórico do mais recente "demolidor" de Marx, Engels e Morgan. gado e agricultores, tal qual se repete em todas as histórias das civi-
lizações e tal qual o próprio Grosse a aplica após várias hesitações .
Grosse fala muito de "produção", fala constantemente do
Esta ideia não é só muito antiga, como também é — na vulgar
"caráter da produção", como fator determinante que influencia o
interpretação de Grosse — completamente falsa. Que saibamos
conjunto da civilização. O que é que ele entende por produção e
simplesmente que um povo viva de caça, da criação de gado ou da
caráter da produção? "A forma económica que domina ou predomina
agricultura, nada nos dá a conhecer das suas relações de produção e
num grupo social, o modo como os membros do grupo providenciam
da sua civilização. Os atuais Hoten-totes do Sudoeste Africano a
a sua subsistência, são fatos que se observam diretamente e se
quem os alemães privaram da sua fonte de existência roubando-lhes
constatam por toda a parte nos seus traços principais com uma certeza
os seus rebanhos e mu-nindo-os de espingardas em troca, tornaram-se
suficiente. Podemos ter as mais sérias dúvidas sobre as concepções
forçosamente caçadores. Mas as relações de produção deste "povo de
religiosas e sociais dos australianos; mas nenhuma dúvida se pode
caçadores" não têm absolutamente nada em comum com as dos
levantar sobre o caráter da sua produção: os australianos vivem da
caçadores índios da Califórnia que ainda vivem no seu isolamento
caça e da colheita das plantas. Talvez seja impossível penetrar na
primitivo, e estes últimos por sua vez não têm quase nenhuma
cultura e nas ideias dos antigos peruanos; mas o fato dos cidadãos do
semelhança com as companhias de caçadores do Canadá que
Império Inca serem um povo de agricultores é manifesto".
abastecem industrialmente de peles os capitalistas americanos e
Por "produção" e pelo seu "caráter", Grosse entende pois pura e europeus. Os criadores de gado peruanos que antes da Invasão
simplesmente a fonte principal da alimentação de um povo. A caça, a espanhola criavam os seus lhamas na Cordilheira em economia
pesca, a criação de gado, a agricultura, tais são as "relações de comunista sob a dominação Inca, os nómades árabes com os seus
produção" que exercem uma ação determinante sobre todas as outras rebanhos na África ou na Arábia, os atuais camponeses nos Alpes
relações de civilização entre um povo. É-nos, antes de mais nada, suíços, bávaros e tiroleses, que conservam os seus costumes
necessário notar que se a tradicionais no meio do mundo capitalista, os escravos romanos
20 — Nota de Rosa Luxemburgo a lápis: reunir simplesmente o material e os parcialmente regressados ao estado selvagem que guardavam os
"fatos observados" como a Associação de política social e as monografias. enormes rebanhos dos seus

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_

amos na Apúlia, os "farmers" da Argentina atual que engordam quando apenas sabe que os incas do Peru eram agricultores, um
inumeráveis rebanhos para os matadouros e as fábricas de sábio honesto, Sir Henry Maine, escreveu: "O erro ca-
conserva do Ohio — são todos exemplos de "criadores de racterístico do observador direto das realidades sociais ou ju-
gado" que representam outros tantos tipos totalmente diferentes rídicas estrangeiras consiste em compará-las apressadamente
de produção e de civilização. Enfim, a "agricultura" engloba com as realidades por ele conhecidas que aparentemente são da
uma tal variedade de modos de economia e de níveis de mesma natureza".
civilização, desde a comunidade indiana primitiva até aos mo-
O laço entre as formas da família e as "formas de pro-
dernos latifúndios, desde a minúscula exploração até aos gran-
dução" assim compreendidas, apresenta-se do seguinte modo
des domínios dos senhores bálticos, desde a rent inglesa até à
na obra de Grosse: "No nível mais baixo, o homem alimen-ta-
jobagieW* romena, desde a horticultura chinesa até à plantação
se da caça — no sentido mais amplo — e da colheita de
brasileira e ao trabalho dos escravos, desde a monda (22> feminina
vegetais. Esta forma primitiva de produção acompanha-se da
no Haiti até às fazendas da América do Norte acio-nadas a
forma mais primitiva de divisão do trabalho, a divisão fisio-
eletricidade e a vapor.
lógica do trabalho entre os dois sexos. Enquanto o homem se
Na realidade, as revelações de Grosse sobre a importância reserva aos cuidados da alimentação animal, a recolha das
da produção apenas nos mostram a sua admirável incompreensão raízes e dos frutos é tarefa da mulher. Nestas condições, é no
do que realmente é a "produção". Marx e Engels combateram homem que se encontra quase sempre o centro de gravidade da
precisamente este "materialismo" grosseiro que só considera as vida económica, em consequência do que a forma primitiva da
condições naturais e exteriores da produção e da civilização e de família reveste por toda a parte um caráter patriarcal ine-
que o sociólogo inglês Buckle é o mais legítimo representante. quívoco. Quaisquer que sejam as ideias sobre o parentesco do
O que é decisivo para as relações económicas e culturais dos sangue, o homem primitivo é de fato o chefe e o proprietário
homens não é a fonte natural exterior da sua alimentação mas as entre as suas mulheres e os seus filhos, mesmo que não seja
relações que os homens têm entre si no seu trabalho. As considerado como parente de sangue dos seus descendentes. A
relações sociais de produção determinam a forma de produção partir deste nível mais baixo, a produção pode progredir em
dominante num dado povo. Só compreenderemos as relações duas direções, conforme seja a economia feminina ou masculina
familiares, as noções de direito, as ideias religiosas, o a tomar a dianteira. Estas são, antes de mais nada, as condições
desenvolvimento das artes entre um povo, quando percebermos naturais nas quais vive o grupo primitivo, que transformam um
profundamente este aspecto fundamental da produção. Mas, ou outro dos dois ramos em tronco principal. Quando a flora e o
para a maior parte dos observadores europeus, é extremamente clima do país incitam a formar reservas e, mais tarde, a cultivar
difícil penetrar nas relações sociais que se estabelecem na plantas úteis, é a economia feminina que se desenvolve, a
produção entre os povos ditos selvagens. Ao contrário de colheita torna-se pouco a pouco em cultivo das plantas. De
Grosse, que acredita que já conhece tudo fato, entre os povos primitivos de agricultores, é sempre a
mulher que se ocupa destes trabalhos. O centro de gravidade da
21 — Não foi possível efetuar a tradução deste termo. (N. T.) vida económica desloca-se assim para o lado da mulher, em
22 — Monda: ato de arrancar a erva que nasce entre os cereais não os
deixando medrar. (N. R.) consequência do que encontramos
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nas sociedades primitivas que assentam sobretudo na agricultura uma pacíficos de agricultores em que a mulher, sustentáculo da família,
forma de família matriarcal, ou pelo menos traços de uma tal forma. reina ou pelo menos goza em parte de uma posição mais livre, caem
A mulher, principal sustentáculo da família e senhora da terra, frequentemente sob a dominação dos povos guerreiros criadores de
encontra-se no centro da família. Na verdade, esta evolução não gado e adotam os seus costumes: a dominação despótica do homem
conduziu senão raramente a um matriarcado em sentido próprio, a na família: "E é assim que hoje todas as nações civilizadas vivem sob
uma verdadeira dominação da mulher, a não ser onde o grupo social o signo de uma forma patriarcal mais ou menos marcado da família"
(24>
estava ao abrigo dos ataques de inimigos externos. Em todos os .
outros casos, o homem reconquistou, como protetor, a predominância Os estranhos destinos históricos da família humana descritos
que tinha perdido como sustentáculo da família. É deste modo que se aqui na sua dependência em relação às formas de produção resumem-
constituem as diferentes formas de família que reinam na maior parte se pois ao esquema seguinte: era da caça — família conjugal com
destes povos de agricultores e que representam um compromisso dominação masculina; era da criação de gado — família conjugal
entre a tendência para o matriarcado ou para o patriarcado. com dominação masculina ainda de maior; era da agricultura inferior
"Uma grande parte da humanidade conheceu entretanto uma — família conjugal com dominação da mulher em certos locais,
evolução completamente diferente. Os povos de caçadores que depois submissão dos agricultores aos criadores de gado, e aí também
viviam nas regiões pouco propícias à agricultura, onde entretanto a família conjugal com dominação masculina, e para rematar o
domesticação de certos animais era possível e rentável, não se conjunto: era da agricultura superior — família conjugal com
desenvolveram na cultura das plantas, mas na criação de gado. Ora, a dominação masculina. Como se vê, Grosse toma a sério a sua
criação de gado, que a pouco e pouco se desenvolveu a partir da caça, negação da teoria moderna da evolução. Para ele, não há evolução na
é, na origem, um privilégio do homem tal como a caça. Assim, a constituição da célula familiar. A história começa e acaba pela família
predominância económica do homem, já existente, reforça-se ainda e conjugal com dominação masculina. Deste modo, Grosse não se
encontra a sua expressão lógica no fato de a forma patriarcal da preocupa que após se ter vangloriado de explicar o aparecimento das
família reinar entre todos os povos que vivem prioritariamente da formas familiares a partir das formas de produção, pressupõe a
criação de gado. Por outro lado, a posição predominante do homem constituição da família como qualquer coisa de dado, acabado, isto é,
nas sociedades de criação de gado é ainda acrescida pelo fato dos a família conjugal, o lar moderno e insere-o sem nenhuma
povos pastores forçados pela guerra serem obrigados a constituirem- modificação em todas as formas de produção. O que ele segue na
se em organizações guerreiras centralizadas. Daqui resulta uma forma realidade através do tempo não são as "células familiares" mas
extrema do patriarcado em que a mulher não tem nenhum direito e simplesmente as relações entre sexos. Dominação do homem ou
vive como escrava de um marido e senhor revestido de poder
dominação da mulher — eis, segundo Grosse, o germe da célula
despótico" <23> Os povos
familiar que ele reduz a um sinal exterior tão grosseiramente como

23 — Grosse Anfaenge da Kunst (Os começos da arte), pp. 36-38.


24 — Ibidem.

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tinha reduzido a "forma de produção" à questão: caça, criação de sobre as águas da história económica. Como as formas da família que
gado ou agricultura.
levaram os sociólogos a "estranhas hipóteses" são
Ele é coerente consigo próprio nas suas simplificações. Que a "surpreendentemente compreensíveis", desde que se considerem "em
"dominação masculina" ou a "dominação feminina" possam ligação com as formas de produção"!
englobar dúzias de formas diferentes de famílias, que no interior do
O mais impressionante, entretanto, nesta história das "formas da
nível de civilização dos "caçadores" possam existir dúzias de sistemas
família", é o modo como é tratada a associação de parentesco, ou o
de parentesco diferentes — é o que Grosse não considera como não
clã como diz Grosse. Vimos o enorme papel desempenhado pelas
considera a questão das relações sociais no interior de um género de
associações de parentesco na vida social nas primeiras etapas da
produção. A relação recíproca entre formas de família e formas de
civilização. Sobretudo depois das investigações de Morgan, que
produção resu-me-se então ao muito espiritual "materialismo"
fizeram época, sabe-se que eram antes da formação do Estado
seguinte: con-sidera-se desde o início os dois sexos como concorrentes
territorial a forma própria da sociedade humana, e continuaram a ser
em negócios. Quem é sustentáculo da família é senhor da família,
durante muito tempo ainda a unidade económica e a comunidade
pensa o filisteu, assim como, aliás, o código civil burguês. A
religiosa. Como situar a curiosa história das "formas da família" de
infelicidade do sexo feminino pretende que foi apenas uma única
Grosse relativamente a estes fatos? Grosse não pode de modo algum
vez, excepcionalmente, sustentáculo da família na história, na época da
negar a existência de clãs em todos os povos primitivos. Mas como
agricultura inferior; apesar disso triunfou a maior parte das vezes face
ela está em contradição com o seu esquema da família conjugal e da
ao sexo guerreiro masculino. A história da família não é senão, no
dominação da propriedade privada, esforça-se por lhe reduzir a
fundo, a história da escravatura da mulher, em todas as "formas de
importância ao mínimo, exceto no período da agricultura inferior. "O
produção" e apesar de todas as formas de produção.
poder do clã surgiu com a economia agrícola inferior e desapareceu
O único laço entre as formas de famílias e as formas de também com ela: entre todos os agricultores superiores, quer já tenha
economia não é finalmente senão a ligeira diferença entre formas um desaparecido ou esteja em vias de desaparecer" (26). Assim Grosse faz
pouco mais suaves ou um pouco mais duras da dominação masculina. surgir o "poder do clã" com a sua economia comunista mesmo no
Para terminar, a primeira mensagem de redenção na história da meio da história da economia e da história da família, para logo o
civilização humana é levada à mulher escravizada... pela Igreja cristã fazer dissolver-se imediatamente. Como explicar a origem, a
que se não sobre a terra, pelo menos no Céu, não conhece distinção existência e as funções dos clãs durante os milénios da evolução da
entre os sexos. "Através desta doutrina a cristandade outorgou à civilização antes da agricultura inferior, ainda que segundo Grosse
mulher uma dignidade diante da qual o capricho do homem se deve não tenham nem função económica nem significação social em
inclinar" (25), conclui Grosse ancorando no porto da Igreja cristã após relação à família conjugal nesse tempo? O que são em geral esses
ter vagueado durante muito tempo clãs que levam uma existência obs-
26 — Grosse, Formen der Familie (Formas da Família), pp. 238, 207,
25 — Grosse, Formen der Familie (Formas da Família), p. 128. 215.
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cura ao último plano das famílias individuais com a sua economia Laveleye e atualmente, Kaufmann demonstra a existência do
privada, entre os caçadores e os criadores de gado? É o próprio mesmo fenómeno entre os Kirghises e os Yakutes.
segredo de Grosse. Ele não se preocupa sequer com a contradição
flagrante entre a sua pequena história e alguns fatos universalmente Notemos finalmente que Grosse reconhece não ter, do seu ponto
reconhecidos. Os clãs somente adquiriram importância na de vista, a mínima explicação a dar para os fenómenos mais
agricultura inferior; ora os clãs estão a maior parte do tempo ligados à importantes dependentes do domínio das relações familiares
vendeta, ao culto religioso e muito frequentemente também à primitivas, como o matriarcado, e, encolhendo os ombros, contenta-
designação de um animal to-têmico; todas estas coisas são bem mais se em chamar ao matriarcado "a mais rara curiosidade da sociologia".
antigas que a agricultura; é preciso portanto, segundo a própria teoria Ele chega à afirmação incrível de que entre os australianos as ideias
de Grosse, que obtenham o seu poder de relações de produção de de consanguinidade não teriam tido nenhuma influência nos sistemas
períodos bem mais longínquos. Grosse explica a existência de clãs familiares, e mesmo, coisa ainda mais incrível, que não havia vestígio
entre agricultores superiores germanos, celtas, índios, como uma de clãs entre os antigos peruanos; julga a civilização agrária dos ger-
herança do período da agricultura inferior onde os clãs têm as suas manos segundo o material envelhecido e discutível de Laveleye e
raízes na economia rural feminina. Ora a agricultura superior dos retoma finalmente por sua conta, por exemplo, esta fabulosa
povos civilizados não surgiu da agricultura feminina por monda, mas afirmação de Laveleye, segundo a qual "ainda hoje" a comunidade de
da criação de gado que já era praticada pelos homens e onde, aldeia russa composta por cerca de 35 milhões de Grandes-russos
segundo Grosse, o clã não tinha alguma importância em relação à constitui um reagrupamento de clã por consanguinidade; uma
exploração familiar patriarcal. Ainda segundo Grosse, a organização "comunidade familiar", o que é quase tão exato como a afirmação
em clãs não tem importância entre os pastores nómades, ela não segundo a qual o conjunto da população de Berlim formaria "ainda
adquire poder senão durante algum tempo quando o grupo se fixa e hoje" uma grande comunidade familiar. Tudo isto habilita
passa à agricultura. particularmente Grosse a tratar como cão morto o "pai da igreja da
Segundo os melhores especialistas das civilizações agrárias, a social-democracia alemã", Morgan. Os exemplos dados acima da
evolução real operou-se em sentido inverso: enquanto os criadores de forma como Grosse trata as formas da família e do clã dão uma ideia
gado levavam uma vida nómade, as associações de parentesco tinham da maneira como trata as "formas da economia". Toda a sua
sob todos os aspectos os maiores poderes; com a vida sedentária e a argumentação dirigida contra o comunismo primitivo repousa numa
agricultura, a coesão do clã começa a enfraquecer e a recuar perante o série de "na verdade" e "mas"; admite os fatos incontestáveis, mas
opõe-lhes outros de modo a demonstrar o que não lhe convém, a
reagrupamento local dos agricultores cuja comunidade de interesses é
enfunar o que lhe convém e a obter o resultado desejado.
mais forte que a tradição dos laços de sangue, a comunidade familiar
transforma-se numa comunidade de vizinhança. Tal é a opinião de O próprio Grosse se refere aos caçadores inferiores do seguinte
Ludwig von Maurer, Kovalevsky, Henry Maine, modo: "A propriedade individual, que em todas as sociedades
inferiores consiste antes de tudo ou exclusivamente
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em bens móveis, não tem aqui quase nenhuma importância; a este nível casas coletivas onde os clãs habitam cm comum (p.
mas a parte mais preciosa da propriedade, o cão de caça, per- 84); na verdade, ensina-nos, "os diques c os trabalhos de
tence em comum a todos os homens da tribo. Por conseguinte, produção importantes que Mackenzie viu nos rios de Haida e
a presa deve ser também por vezes repartida entre todos os que, segundo a sua estimativa, devem ter exigido o trabalho do
membros da horda. É por exemplo o que se diz a respeito dos conjunto da tribo, estavam sob a vigilância do chefe sem a
Botocudos (Enhrenreich, Zeitschrift fuer Ethnologie) <27>. Tais autorização do qual ninguém podia pescar. Eram pois provavel-
costumes existem em certas partes da Austrália. Todos os mente considerados como a propriedade do conjunto da comu-
membros de um grupo primitivo são e permanecem igualmente nidade de aldeia à qual pertenciam também sem partilha as
pobres. Como não há diferenças importantes de riqueza, falta a águas abundantes em peixe e os terrenos de caça" (p. 87).
principal causa da formação de diferentes castas. Em geral,
todos os homens adultos no interior de uma tribo têm os Mas, "os bens móveis adquiriram aqui uma tal extensão e
mesmos direitos", (p. 55-56). Do mesmo modo, "a dependência uma tal importância que, apesar da igualdade na posse do solo,
ao clã tem em certos (!) aspectos uma influência importante na pode-se desenvolver uma grande desigualdade de riqueza" (p.
vida do caçador inferior. Ela dá-lhe o direito de se servir de tal 69) e "em geral, o alimento, tanto quanto possamos imaginar,
cão de caça e o direito e o dever de proteçao e de vingança" (p. não se considera mais propriedade comum do que o resto dos
64). Do mesmo modo, Grosse reconhece a possibilidade de um bens móveis. Não se pode caracterizar os clãs domésticos co-
comunismo de clã entre os caçadores inferiores da Califórnia. mo comunidades económicas senão num sentido muito limi-
tado" (p. 88).
Os laços de clã são no entanto aqui muito frágeis; não há
comunidade económica. "O modo de produção dos caçadores Voltemo-nos agora para o nível de civilização diretamente
árticos é portanto tão individualista que a coesão do clã não superior, os criadores de gado nómade. Também sobre eles
resiste quase nada às tendências centrífugas,\ Do mesmo modo Grosse refere o que se segue: na verdade, "mesmo os nómades
entre os australianos, "a caça e a colheita no terreno comum mais instáveis não passam além de determinados limites, mo-
não são geralmente praticadas de modo algum em comum; vem-se todos no interior de um território estritamente delimi-
cada família tem a sua exploração separada". Em geral "a tado, que passa pela propriedade da sua tribo e que é por sua
escassez de alimentos não tolera nenhuma unificação duradoura vez frequentemente repartido entre as diferentes famílias indi-
em grupos maiores, pelo contrário, obriga à dispersão" (p. 63). viduais e clãs". E mais adiante: "O solo é, em quase todo o
Passemos aos caçadores superiores. Na verdade "entre ca- domínio da criação de gado, propriedade comum da tribo ou do
çadores superiores o solo é também, em geral, a propriedade clã" (p. 91) "A terra é efetivamente o bem comum de todos os
comum da tribo ou do clã" (p. 69); na verdade encontramos membros do clã e é repartida como tal pelo clã ou pelo seu
chefe entre as diferentes famílias que o exploram" (p. 128).
27 — Enhrenreich, Revista de etnologia. (N. T.) Mas "a terra não é a possessão mais preciosa do nómade.
O seu bem supremo é o seu rebanho e o gado é sempre (!) a
propriedade particular das famílias individuais. O clã de cria-
162
163
dores de gado jamais (!) se tornou uma comunidade económica ou de antiga forma de economia. A África encena uma multltude de povos
propriedade". caçadores de pequena estatura: infelizmente, ate agora só temos
Vêm em seguida os agricultores inferiores. Aqui, na verdade, o informações sobre um único dentre eles, os Boxi-manes do deserto
clã é pela primeira vez reconhecido como uma comunidade do Kalahari (no sudoeste africano alemão). As outras tribos de
completamente comunista. Mas — também neste caso um "mas" se pigmeus ocultam-se na obscuridade das florestas virgens centrais.
segue imediatamente — aqui também "a indústria mina a igualdade Troquemos a África pelo Oriente. Encontraremos na ilha do
social" (Grosse fala de indústria mas pensa naturalmente na produção Ceilão (na ponta meridional da península indiana) o povo anão de
de mercadorias que não consegue distinguir da outra) e cria uma caçadores Veddahs. Mais adiante, no arquipélago An-daman, os
propriedade particular móvel que tem prioridade sobre a propriedade Mincopies, no interior de Samantra os Kubus, e nas montanhas
coletiva do solo e a destrói (p. 136-137). Apesar da comunidade do selvagens das Filipinas os Aetas, três tribos que pertencem
solo, "a separação entre rico e pobre também já existe aqui". O igualmente às raças anãs. Antes da colonização europeia o continente
comunismo fica reduzido a um breve interlúdio na história da australiano estava povoado por tribos de caçadores inferiores, e se os
economia que começa com a propriedade privada para terminar com indígenas foram apanhados na maior parte das regiões costeiras pelos
a propriedade privada. O que era preciso demonstrar! colonos da segunda metade do século XIX, continuam a viver nos
desertos do interior.
III
Na América, podemos seguir toda uma série de grupos humanos
Para verificar o valor do esquema de Grosse, voltemo-nos cuja civilização é das mais pobres, dispersos desde o extremo sul até
diretamente para os fatos. Examinemos — mesmo num rápido relance ao extremo norte. Nos desertos montanhosos do cabo Horn (ponta
— o tipo de economia dos povos de nível mais baixo. Qual é ele? meridional da América do Sul) batidos pela chuva e pela tempestade,
Grosse chama-lhes os "caçadores inferiores" e diz a seu respeito: "os há os habitantes da Terra do Fogo que vários observadores
povos de caçadores inferiores não constituem hoje senão uma ínfima declararam serem os mais miseráveis e os mais grosseiros de todos os
fração da humanidade. Condenados à debilidade numérica e à humanos. Através das florestas brasileiras erram, além dos
pobreza, pela sua forma de produção imperfeita e pouco rentável, Botocudos, de má reputação, outras hordas de caçadores, entre as
recuaram por toda a parte perante os povos mais numerosos e mais quais os Bororós, que conhecemos graças às investigações de von der
fortes, de modo que atualmente não vegetam senão em florestas Steinen. "A Califórnia central (na costa oeste da América do Norte)
virgens impenetráveis e desertos nada hospitaleiros. Uma grande oculta diversas tribos que não estão nada abaixo dos muito miseráveis
parte destas tribos miseráveis pertence a raças anãs. São exatamente australianos" (28>. Sem poder continuar a seguir Grosse, que
os mais fracos que na luta pela existência foram empurrados pelos curiosamente situa os esquimós entre os povos de nível mais baixo,
mais fortes para as regiões mais hostis e foram condenados à estagna- vamos agora passar em revista algumas das tribos acima
ção. Em qualquer dos casos, encontramos ainda hoje em todos os
28 — Grosse, Die Formen der familie und die Formen der Wirts-chaft
continentes, com exceção da Europa, representantes da mais
(As formas da família e as formas da economia), p. 30.

164 165
enumeradas procurando nelas os traços de uma organização o nome de um animal ou de uma planta que adora, e possui uma
socialmente planificada do trabalho. porção de território limitado ao interior do território da tribo. Um
Voltemo-nos em primeiro lugar para os antropófagos aus- território pertence por exemplo aos homens do Canguru, um outro aos
tralianos que, segundo vários cientistas, se encontram no nível mais homens da Ema — grande pássaro semelhante ao avestruz — um
baixo de civilização que o género humano pode apresentar sobre a terceiro aos homens da Serpente (os australianos também comem
Terra. Entre os negros da Austrália encontramos antes de tudo a serpentes), etc. Estes "Totens" são quase todos, segundo as últimas
divisão primitiva do trabalho já mencionado entre homens e descobertas científicas, animais e plantas que servem de alimentos aos
mulheres: estas ocupam-se principalmente da alimentação vegetal, da negros australianos. Cada um destes grupos tem o seu chefe que dirige
lenha e da água; os homens vão à caça e fornecem a carne. a caça. Ora o nome da planta ou do animal e o culto correspondente
não são uma forma vazia, cada grupo tem com efeito a obrigação de
Além disso, encontramos aqui um quadro do trabalho social se ocupar da alimentação cujo nome usa, de velar pela manutenção e
completamente oposto à "procura individual do alimento" que nos dá perpetuação desta fonte alimentar. E cada grupo não o faz para ele
ao mesmo tempo uma prova da maneira como a aplicação necessária mesmo, mas antes de mais nada para os outros grupos da tribo. Os
de toda a força de trabalho é assegurada nas sociedades mais "homens-canguru" têm a obrigação de abastecer de carne de canguru
primitivas. Por exemplo: "Na tribo Che-para, espera-se de todos os os outros membros da tribo, os "ho-mens-serpente" de fornecer as
homens válidos que se ocupem da alimentação. Se um homem é serpentes, os "homens-lagarto" de procurar uma espécie de lagarto
indolente e fica no acampamento, os outros zombam dele e insultam- que passa por uma guloseima, etc. É característico que tudo isto seja
no. Homens, mulheres e crianças deixam o acampamento muito cedo, acompanhado por rigorosos costumes religiosos e de grandes
pela manhã, para irem procurar alimento. Logo que tenham caçado o cerimónias. Segundo uma regra quase geral, as pessoas de cada grupo
suficiente, homens e mulheres levam a sua presa até ao ponto de água não podem comer do seu próprio animal ou "planta-totem", ou fa-
mais próximo onde se acende uma fogueira e a caça é assada. Ho- zem-no muito moderadamente, devendo no entanto abastecer os
mens, mulheres e crianças comem todos em conjunto num clima de outros. Um homem do grupo das serpentes deve, quando apanha uma
bom entendimento, após os velhos terem repartido equitativamente o serpente, abster-se de a comer, salvo em caso de grande fome, e levá-
alimento por todos. Após a refeição, as mulheres levam os restos para la ao acampamento para os outros. Do mesmo modo, um "homem-
o acampamento, e os homens caçam pelo caminho" <29). ema" apenas poderá comer muito pouca carne de ema e
absolutamente nada de ovos nem de gordura do animal, utilizada
Eis alguns pormenores no plano da produção entre os negros como medicamento, mas deverá entregá-los aos membros da sua
australianos. É com efeito extremamente complicado e elaborado até tribo. Por outro lado, os outros grupos não podem caçar, recolher ou
o último detalhe. Cada tribo australiana com-põem-se de um certo comer um animal ou uma planta sem a autorização dos homens do
número de grupos dos quais cada um usa totem correspondente.

29 — Somló, segundo Howitt, p. 45. Cada grupo celebra todos os anos uma cerimónia solene cuja
finalidade é assegurar (com cânticos, música e diversas

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cerimónias culturais) a perpetuação do animal ou da "planta--totem", sociedade totêmica; misturam-se e exercem as suas forças mágicas
cerimónia após a qual somente é permitido aos outros grupos comê- para o bem comum. No sistema primitivo, os "homens-can-guru" — se
los. A data da cerimónia é fixada para cada grudo pelo seu chefe, que não nos enganamos — caçavam e matavam cangurus quer para
também a dirige. E esta data está em relação direta com as condições consumo de todos os outros grupos totêmicos quer para seu próprio
de produção. Há na Austrália central uma longa estação seca na qual consumo, e o mesmo se poderá dizer sem dúvida para o "o totem-
os animais e as plantas sofrem bastante e uma curta estação das lagarto", o "totem-falcão" e outros totens. No novo sistema de forma
chuvas que leva a uma proliferação da vida animal e a uma vegetação religiosa onde era proibido aos homens matar e comer os animais
abundante. Ora, a maior parte das cerimónias têm lugar ao aproximar- totens, os "homens-cangu-ru" continuaram a caçar cangurus, mas já
se a boa estação. Todavia, Ratzel via um "mal-entendido cómico" na não era para seu próprio consumo; os "homens-ema" continuaram a
afirmação de que os australianos têm o nome dos seus principais criar emas ainda que já não tivessem o direito de comer carne de ema;
alimentos <30>. No entanto, no sistema dos grupos totêmicos os "ho-mens-lagarto" continuaram a aplicar as suas artes mágicas na
resumidamente indicado acima, apenas se pode reconhecer à primeira perpetuação dos lagartos ainda que estas guloseimas estivessem agora
vista uma organização desenvolvida da produção social. Os diferentes reservadas a outros estômagos". Numa palavra: o que se nos
grupos totêmicos não são manifestamente senão os elementos de um apresenta como um sistema de culto era, nos tempos mais recuados,
vasto sistema da divisão do trabalho. Todos os grupos, em conjunto, um simples sistema de produção social organizado com uma divisão
formam um todo ordenado e planificado e cada grupo procede para de trabalho muito ampla.
ele mesmo de maneira organizada e planificada sob uma direção Se nos voltarmos agora para a repartição dos produtos entre os
única. O fato deste sistema de produção assumir uma forma religiosa, negros australianos, encontramos, se possível, um sistema ainda mais
a forma de todas as espécies de proibições alimentares, de pormenorizado e complexo. Cada peça de caça abatida, cada ovo de
cerimónias, etc, prova apenas que este plano de produção é de data pássaro encontrado, cada punhado de frutos recolhido é atribuído a
muito remota, que esta organização já existia entre os negros tais ou tais membros da sociedade segundo as regras e um plano
australianos há séculos e mesmo milénios; de tal modo que teve rigoroso. Os alimentos vegetais, por exemplo, que as mulheres
tempo para se solidificar em fórmulas rígidas e, o que era na origem recolheram, pertence a elas e às crianças. As presas de caça dos
simplesmente útil do ponto de vista da produção e do abastecimento homens são repartidas segundo regras diferentes em cada tribo, mas
em alimento, converteu-se numa série de artigos de fé, na crença em muito minuciosas em todas elas. Foi assim, por exemplo, que o
relações misteriosas. cientista inglês Howitt observou o modo de repartição seguinte entre
Estas relações, descobertas pelos ingleses Spencer e Gillen, os povos do Sudoeste australiano, principalmente na região de
foram confirmadas também por um outro sábio, Frazer. Este último Vitória.
afirma expressamente: "Não devemos esquecer que os diversos "Um homem mata um canguru a uma certa distância do
grupos totêmicos não vivem isolados uns dos outros na acampamento. Dois outros homens acompanham-no mas não vêm
para o ajudar a matar o animal. A distância do acampamento é
30 — Fr. Ratzel: Voelkeikuzer (Etnologia), 1887, vol. II, p. 64. considerável, pelo que o canguru é assado antes de ser levado para lá.
O primeiro homem acende o fogo, os outros

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portantes são o grupo do pelicano e o grupo da tartaruga. Os bem organizado — o seu caráter cerimonial é disso a garantia
costumes, usos e regras destes grupos no que diz respeito aos seus suficiente. A planificação da caça é acompanhada de uma rigorosa
animais totens são mantidos rigorosamente em segredo e foi muito regulamentação da repartição e do consumo. A refeição comum
difícil conhecê-los. Quando constatamos que a alimentação destes segue uma ordem determinada: primeiro vem o chefe da tribo (e
índios consiste principalmente em carne de pelicano, de tartarugas ou condutor da caça), depois os outros guerreiros por ordem de idade,
de peixes e outros animais marinhos, e quando nos lembramos do depois as crianças igualmente por ordem de idade e as raparigas
sistema acima descrito dos grupos totêmicos entre os negros (sobretudo as que estão próximas da puberdade) desfrutam de
australianos, podemos admitir com um certo grau de certeza que entre grandes vantagens, graças à indulgência das mulheres. "Todo o
os índios da Califórnia o culto misterioso dos animais totens e a membro da família ou do clã pode reivindicar o alimento e o
divisão da tribo em grupos correspondentes são apenas os vestígios de vestuário necessários, e é tarefa dos demais velar para que estas
um sistema de produção muito antigo e rigorosamente organizado necessidades sejam satisfeitas. O grau desta obrigação é por um lado
com divisão do trabalho, que se petrificou em símbolos religiosos. O função da proximidade, da categoria e do grau de responsabilidade no
que nos reforça esta ideia é que o pelicano é o espírito protetor grupo (habitualmente em função da idade). A primeira pessoa tem
supremo dos índios Seri. Esta ave constitui ao mesmo tempo a base obrigação de velar para que a comida seja suficiente para aqueles que
da existência económica da tribo. A carne de pelicano é o alimento estão abaixo dela e esta obrigação escalona-se de tal modo que pro-
essencial, a pele de pelicano serve de vestuário, de leito, de escudo e videncia mesmo as necessidades das crianças incapazes de se
de artigo de troca com os estrangeiros. satisfazerem por si sós" (35).
A ocupação mais importante dos Seri, a caça, está submetida a Para a América do Sul, temos o testemunho do professor von
regras rigorosas. A caça ao pelicano é uma tarefa comum bem der Steinen referente à tribo selvagem dos Bororós no Brasil. Aqui
organizada, "com caráter pelo menos semi-cerimonial"; a caça ao também reina acima de tudo a divisão típica do trabalho: as mulheres
pelicano não pode ter lugar senão em certos períodos, de modo que as ocupam-se da alimentação vegetal, procuram raízes com um pau
aves sejam poupadas durante o período da criação, a fim de que a sua
pontiagudo, trepam com grande agilidade às palmeiras, apanham os
sobrevivência seja assegurada. "Ao abate (operado maciçamente sem
cocos, cortam as folhas comestíveis das palmeiras, procuram frutos e
alguma dificuldade, atendendo ao peso e lentidão destas aves) sucede
outras coisas semelhantes. Preparam os alimentos vegetais e fabricam
um grande banquete em que as famílias meio esfomeadas devoram
cerâmica. Quando regressam dão aos homens os frutos e recebem em
ruidosamente na escuridão os pedaços mais tenros, até que o sono se
troca o que ainda restar de carne. A repartição e o consumo são
apodere delas. No dia seguinte, as mulheres procuram os cadáveres
regulamentados rigorosamente.
cujas plumagens ficaram menos danificadas e retiram-lhes cuidadosa-
mente a pele". A festa dura vários dias e sucedem-se diferentes "Se a etiqueta dos Bororós não os impede de modo algum de
cerimónias. Este "grande banquete" que decorre na escuridão e no comer em comum — diz von der Steinen — tinham pelo
barulho e em que o professor Biicher veria seguramente o sinal de um
comportamento animalesco, é na realidade muito 35 — Somló, segundo Mac Gree, p. 128.

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contrário outros costumes estranhos que mostram claramente que as falecido" (37). Um plano e uma organização completamente precisos
tribos que dependem de uma colheita de um modo geral pobre devem presidem pois tanto na produção como na repartição.
encontrar meios para prevenir as querelas e as disputas na altura da Se percorrermos o continente americano até ao extremo
repartição". Havia por exemplo uma regra extremamente meridional, encontramos na Terra do Fogo povos do mais baixo
surpreendente: Ninguém podia assar a caça abatida por ele mesmo, nível. Este grupo habita ilhas inóspitas situadas na ponta meridional
mas dava-a a assar a outro! São tomadas as mesmas medidas de da América do Sul, e foi no século XVII que tivemos as primeiras
precaução para as peles e presas dos animais. Quando se mata um informações deles. Em 1698, por iniciativa de piratas franceses que
jaguar, celebra-se uma grande festa; come-se a carne. Mas não é o seviciavam há muitos anos nos mares austrais, o governo francês
caçador que recebe a pele e os dentes, é o parente mais próximo do enviara aí uma expedição. Um dos exploradores que nela participou
índio (ou da índia) falecido mais recentemente. Em honra do caçador deixou-nos um diário que contém as seguintes breves informações
todos lhe dão como presente plumas de arara (o ornamento mais sobre os habitantes da Terra do Fogo:
distinto dos Bororós) e o arco é ornamentado com fitas de oassu (36).
"Toda a família, quer dizer, o pai, a mãe e os filhos que não
Mas a norma mais importante para impedir a discórdia está ligada ao
estão ainda casados, tem a sua piroga (de casca de árvore). Guardam
médico, ou, como os europeus têm o costume de dizer em tais casos,
nela tudo aquilo de que têm necessidade. Onde a noite os surpreende
ao feiticeiro ou ao sacerdote. Ele deve estar presente logo que se abate
deitam-se e dormem. Se não têm cabana construída, fazem uma.
um animal e autorizar a distribuição de todo o animal abatido ou de
Acendem uma pequena fogueira no centro à volta da qual se deitam
toda a comida vegetal por determinadas cerimónias. A caça
sobre um monte de ervas. Se têm fome comem moluscos que o mais
desenvolve-se por iniciativa e sob a direção do chefe. Os homens
velho reparte em partes iguais. A ocupação principal e a tarefa dos
novos e solteiros habitam em comum na "casa dos homens", onde
homens consistem na construção da cabana, na caça e na pesca; as
trabalham, fabricam armas, utensílios, ornamentos, tecem, praticam
mulheres devem cuidar das canoas e apanhar os moluscos... Caçam a
luta, tudo isto em comum, e onde comem em comum na mais estrita
baleia do modo seguinte: vão para o mar em cinco ou seis canoas e
ordem e disciplina, como já mencionamos mais acima. "A família em
quando encontram uma perseguem-na, arpoam-na com grandes
que morre um membro — diz von der Steinen — sofre uma grande
flechas com pontas em osso ou em pedra habilmente talhadas...
perda pois queima-se tudo aquilo de que o morto se servia; ou atira-se
Quando abatem um animal ou uma ave ou apanham peixes e
ao rio, metido juntamente com os seus ossos para que não tenha
moluscos, que constituem a sua alimentação habitual, repar-tem-nos
nenhum motivo para regressar. A cabana é em seguida
entre todas as famílias e têm sobre nós a superioridade de possuírem
completamente limpa. Os que continuam vivos recebem novas
quase todos os seus víveres em comum" <38>.
dádivas, executam-se para eles arcos e flechas e o costume diz que
quando um jaguar é abatido a pele seja dada ao irmão da última
37 — Karl von der Steinen: Unter den Naturvoelkem Brasiliens (Entre os
mulher falecida ou ao tio do último homem povos naturais do Brasil), pp. 378-389.
38 — Relatório à 8.a sessão do Congresso Internacional dos Ameri-canistas em
Paris, 1890; elaborado por M. C. Mareei, Paris, 1892, p. 491.
36 — Não foi possível encontrar tradução para este termo. (N. T.)

174 175
Da América voltemo-nos para a Ásia. Aqui, o cientista inglês E. suas refeições à parte — os rapazes de jm lado, as raparigas do outro.
H. Man, que viveu onze anos entre as tribos anãs dos Mincopies, no
"A preparação da comida é habitualmente t a r e f a das mulheres;
arquipélago Andaman (no golfo do Bengala), e adquiriu um
geralmente entregam-se a essa tarefa durante a ausência dos homens.
conhecimento mais preciso que qualquer europeu, relata-nos sobre
Se estiverem excepcionalmente ocupadas a transportar madeira ou
eles os seguintes fatos:
água, como nos dias de festa ou depois de uma caçada
"Os Mincopies decompõem-se em nove tribos e cada tribo num particularmente abundante, é um homem que se ocupa da cozinha e
grande número de pequenos grupos de 30, 50 e por vezes 300 pessoas. que uma vez a refeição quase pronta, a distribui entre os presentes e
Cada um destes grupos tem o seu chefe; a tribo inteira tem também um deixa a preparação ulterior aos cuidados de cada um nos seus
chefe que está acima dos chefes das diferentes comunidades. A sua próprios lares. Se o chefe está presente, recebe a primeira parte, a
autoridade é muito limitada; consiste essencialmente em organizar as parte de leão, depois vêm os homens e em seguida as mulheres e as
reuniões de todas as comunidades que fazem parte da sua tribo. É ele crianças; o que resta pertence ao que fez a distribuição.
que dirige a caça, a pesca e as expedições, julgando também os
"No fabrico das suas armas, dos seus utensílios e outros objetos,
conflitos. Dentro de cada comunidade, o trabalho é comum, com uma
os Mincopies manifestam habitualmente uma notável perseverança
divisão do trabalho entre homens e mulheres. Os homens
passando horas a talhar laboriosamente um pedaço de ferro com um
ocupam-se da caça, da pesca, da coleta do mel, da construção das
martelo de pedra para lhe dar a forma de uma ponta de lança ou de
canoas, dos arcos, das flechas e outros utensílios; as mulheres
uma flecha, ou a melhorar a forma de um arco, etc. Entregam-se a
fornecem a madeira e a água bem como os alimentos vegetais,
estes trabalhos mesmo quando nenhuma necessidade imediata ou
fabricam as jóias e cozinham, É tarefa de todos os homens e de todas
previsível os obriga a tais esforços. Não se pode acusá-los de
as mulheres que ficam em casa cuidar das crianças, dos doentes e dos
egoísmo — como se diz — porque oferecem (naturalmente trata-se
velhos e manter o fogo nas diferentes cabanas; todo aquele que está
de uma expressão europeia proveniente de um mal entendido por
apto para trabalhar tem obrigação de trabalhar para ele mesmo e para a
"distribuir") frequentemente o melhor do que possuem e não guardam
comunidade; é costume cuidar para que tenham sempre reservas de
para o seu próprio uso os objetos melhor executados, tampouco os
alimentos para alimentarem os amigos de passagem. As criancinhas,
fazem melhor para eles próprios" (39>.
os fracos e os velhos são objeto dos cuidados de todos e estão melhor
instalados que os restantes membros da sociedade, no que diz respeito Vamos concluir a série de exemplos anteriores com um modelo
às suas necessidades cotidianas. da vida dos selvagens africanos. Os pequenos Boxima-nes do deserto
do Kalahari oferecem habitualmente o exemplo do maior atraso e do
"Para o consumo dos alimentos existem regras determinadas.
mais baixo nível de civilização humana. Cientistas alemães, ingleses
Um homem casado só pode comer em comum com os outros homens
e franceses, são unânimes em rela-
casados ou solteiros, e nunca com outras mulheres que não as
pertencentes ao seu próprio lar, salvo se for já de idade avançada. As 39 — Somló, segundo Man, pp. 96-99.
pessoas que não são casadas tomam as

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lar que os Boximanes vivem em grupos (hordas) que levam uma vida
lioqueses, tal como Morgan o descreveu pormenorizadamente. basta-
económica em comum. Nos seus pequenos grupos reina uma perfeita
nos. Mas os criadores de gado proporcionam também um material
igualdade no que diz respeito aos víveres, às armas, etc. Os víveres
suficiente para desmentir as audaciosas afirmações de (írosse (41).
que encontram nas suas expedições são recolhidos em sacos que se
esvaziam no acampamento. "Então — relata o alemão Passarge — o A comunidade agrícola da Marca <42> não é pois a única, mas
espólio do dia aparece: raízes, bulbos, lagartos, pássaros, rãs, simplesmente a mais evoluída, não a primeira, mas a última das
tartarugas, gafanhotos e mesmo cobras e iguanas". Depois reparte-se organizações comunistas primitivas que encontraremos na história
a colheita entre todos. ''A recolha sistemática de vegetais, como por económica. Esta organização comunista primitiva não é um produto
exemplo frutos, raízes, bulbos, etc, assim como pequenos pássaros, é da agricultura, mas de tradições muito anti-
tarefa das mulheres. Elas devem, com a ajuda das crianças, fazer a de comunismo: nascido no seio da organização gentílica,
provisão destes víveres para a horda. O homem também traz o que aplicado finalmente à agricultura, o comunismo atingiu aí um nível
encontra por acaso, mas esta coleta é completamente secundária para tal que apressou o seu próprio declínio. Os fatos não confirmam de
ele. A tarefa do homem é acima de tudo a caça". O espólio da caça é modo algum o esquema de Grosse. Se lhe pedirmos a explicação
consumido em comum pela horda. Para os Boximanes errantes e para deste comunismo, fenómeno notável que surgiu mesmo no meio da
as hordas amigas, oferece-se também um lugar e alimento junto do história económica, para desaparecer pouco depois, dá-nos uma das
fogo comum. Passarge, como bom europeu seguidor da concepção da suas espirituais explicações "materialistas"': "Vimos de fato que se o
sociedade burguesa, vê mesmo uma causa da incapacidade dos clã adquiriu mais solidez e poder entre os agricultores inferiores do
Boximanes para se civilizarem a "virtude exagerada" com que que entre os povos que têm outras formas de civilização, foi antes de
partilham tudo com os outros até ao último bocado (40)! tudo porque ele intervém como comunidade de habitat, de posse e de
economia. Que tenha alcançado aqui um tal desenvolvimento, é o que
Vemos assim que, na medida em que nos são dados a conhecer explica por sua vez a natureza da agricultura inferior que uniu os ho-
pela observação direta os povos mais primitivos, e precisamente os mens, enquanto a caça e a criação de gado os dispersou (p. 158)".
que estão mais afastados do estado sedentário e da agricultura, que se Dito de outro modo, a "reunião" ou a "dispersão" espaciais dos
encontram por assim dizer no ponto de partida da cadeia da evolução, homens decidem da predominância do comunismo ou da propriedade
apresentam-nos uma imagem completamente diferente da sua situação privada. É pena que o senhor Grosse se tenha esquecido de nos
da que é dada pelo esquema de Grosse. Encontramos por toda a parte explicar como é que as florestas e os prados — onde as pessoas se
comunidades económicas estritamente regulamentadas com traços "dispersam" mais voluntariamente —
típicos de organização comunista, e não "dispersão" e "explorações
separadas". Isto refere-se aos "caçadores inferiores". Para os 41 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): Os peruanos, mas estes não
são nómades, na verdade — Os árabes, os Kabyles, os Kirghises, os Yakutes.
"caçadores superiores", o quadro da economia de clã entre os 42 — Marca (germ. marka). Terras coletivas e mais ou menos incultas dos
povos germânicos, situadas na orla das terras dos clãs. Nos carolíngios, distrito
40 — Somló, p. 116. territorial que desmpenhava o papel de zona de proteção militar na proximidade de
uma fronteira ou numa região mal pacificada. (N. T.)
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tenham permanecido durante mais tempo — mesmo até hoje em raiz" e, como os bens móveis, os alimentos, por exemplo, são
certos casos — propriedade coletiva, enquanto os campos, onde as propriedade privada; Grosse não reconhece uma economia comunista
pessoas se "reuniam", tomaram-se muito depressa propriedade apesar da propriedade comum do solo.
privada. Só é pena que não nos explique porque é que a forma de
produção que em toda a história económica "reuniu" a maior parte Ora, tais distinções segundo um sinal puramente exterior — bem
dos homens, a grande indústria, não produziu de modo algum móvel ou imóvel — não têm o menor significado para a produção e
propriedade coletiva, mas pelo contrário a forma mais desenvolvida estão quase ao mesmo nível das outras distinções estabelecidas por
da propriedade privada, a propriedade capitalista. Grosse entre as formas da família, segundo a dominação masculina
ou feminina, ou entre as formas de produção segundo os seus efeitos
Vê-se que o "materialismo" de Grosse é uma nova prova de que de dispersão ou de unificação. Os "bens móveis" podem consistir em
não é suficiente falar da "produção" e da sua significação para o víveres, matérias primas, ornamentos e objetos culturais, ou em
conjunto da vida social para ter uma concepção materialista da utensílios. Podem ser fabricados para uso próprio ou para troca.
história; o que o materialismo histórico tem de particular, separado da Conforme o caso, terão uma importância muito diferente para as
concepção revolucionária da evolução, é que se torna uma grosseira e relações de produção. Grosse aprecia as relações de produção e de
pesada muleta de madeira em lugar de ser, como em Marx, o bater de propriedade dos povos segundo os víveres e outros objetos de
asas genial do espírito. consumo no sentido mais alto — no que é um representante típico da
O que é manifestamente evidente é que mesmo a discursar tão ciência burguesa atual. Se o que encontra são indivíduos que tomam
abundantemente da produção e das suas formas, o senhor Grosse não posse dos objetos de consumo e os consomem, o reino da propriedade
compreende os conceitos mais fundamentais que dizem respeito às privada está para ele estabelecido entre o povo em questão. É
relações de produção. Já vimos que ele entende primeiramente por tipicamente o modo como se refuta hoje "cientificamente" o
formas de produção categorias puramente exteriores como a caça, a comunismo primitivo <43). Segundo este profundo ponto de vista,
criação de gado ou a agricultura. Para responder então no interior de uma comunidade de pedintes, tal como se encontra com frequência no
cada uma destas "formas de produção" à questão da forma de Oriente, e que reúne em comum e consome em comum as esmolas, ou
propriedade — propriedade comum, propriedade familiar ou privada, um bando de ladrões que tira proveito solidariamente do produto dos
seus roubos, representa uma "coletividade económica comunista" no
e quem é possuidor — ele distingue categorias como "a propriedade
estado puro. Pelo contrário, uma comunidade agrária que possui e
de bens de raízes" e os "bens móveis". Se encontra proprietários
cultiva em comum o solo, mas consome os frutos dele por famílias,
diferentes para estas diferentes propriedades, interroga-se sobre qual é
não pode ser considerada como uma "comunidade económica senão
a "mais importante". O que ao senhor Grosse parece "o mais
num sentido muito limitado". Em resumo, o que decide do ca-ráter da
importante", passa a ser a forma de propriedade dominante da
produção, segundo esta concepção, é o direito de propriedade no que
sociedade. Decreta por exemplo que entre os caçadores superiores "os
diz respeito aos bens de consumo, e não os
bens móveis adquiriram já uma importância tal" que são mais
importantes do que a propriedade "de bens de 43 — Somló.
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bens de produção, isto é, as condições da repartição e não as da as relações dos homens entre si no trabalho, isto é, a organiza-
produção. Chegamos aqui a um ponto central da economia ção social da produção e a técnica da produção. Se sabemos que
política que é de uma importância fundamental para compreen- um povo primitivo conhece a roda do oleiro e fabrica cerâmica,
der toda a história económica. Abandonando daqui em diante o está aí uma coisa muito característica do grau de civilização
senhor Grosse à sua sorte, vamos concentrar a nossa atenção alcançado por esse povo. Morgan faz desse progresso muito
nesta questão. importante da técnica o sinal significativo de todo um período da
civilização que ele caracteriza como a passagem do estado
IV selvagem à barbárie. Mas nós quase não podemos avaliar ainda
a forma da produção entre esse povo por esse fato. Para isso ser-
Quem quer que aborde o estudo da história económica e nos-ia necessário conhecer toda uma série de circunstâncias, saber
queira conhecer as diferentes formas assumidas pelas relações quem nessa sociedade pratica a arte da olaria, se todos os
económicas da sociedade na sua evolução histórica deve em membros da sociedade ou apenas uma fração, uma família por
primeiro lugar saber claramente qual o caráter distintivo dessas exemplo, ou as mulheres, que abastecem a comunidade de vasos;
relações económicas que deve tomar como pedra de toque e se os produtos da olaria apenas são utilizados pela própria
unidade de medida dessa evolução. Para poder orientar-se na comunidade, por exemplo a aldeia, para seu próprio uso, ou se
multiplicidade dos fenómenos correspondentes a uma esfera de- servem para a troca com outros; se os produtos de cada pessoa
terminada e, em particular, para descobrir a sua ordem de su- que fabrica cerâmica são utilizados unicamente por ela ou se
cessão histórica, é preciso saber muito claramente qual o fator e, todos os membros da coletividade.
por assim dizer, o eixo interno à volta do qual giram os fe- As relações sociais que podem determinar o caráter da
nómenos. Morgan tomou para medida da história das civili- forma de produção numa sociedade são múltiplas e diversas:
zações e para pedra de toque do nível por elas alcançado um divisão do trabalho, repartição dos produtos entre os consumi-
fator rigorosamente preciso — o desenvolvimento da técnica de dores, troca. Estes aspectos da vida económica estão por sua
produção. Com isto tomou, por assim dizer, toda a civilização vez determinados por um fator decisivo da produção. É claro
humana pela raiz, pôs a nu essa raiz. Para a história económica, que à primeira vista a repartição dos produtos e a troca apenas
o critério de Morgan não é suficiente. A técnica do trabalho podem ser fenómenos derivados. Para que os produtos possam
social mostra exatamente o nível alcançado pelos homens na ser repartidos ou trocados entre consumidores é preciso antes
dominação da natureza exterior. Todo o passo em frente no de tudo que sejam fabricados. A produção é pois o primeiro e o
aperfeiçoamento da técnica de produção é ao mesmo tempo um mais importante fator da vida económica da sociedade. O que é
passo em frente na submissão da natureza física ao espírito decisivo no processo da produção é a questão seguinte: quais
humano, um passo em frente na evolução da civilização humana são as relações entre os que trabalham e os seus meios de
universal. No entanto, se queremos estudar especialmente as produção. Todo o trabalho exige certas matérias-primas, um local
formas de produção na sociedade, então as relações do homem de trabalho determinado e logo. . . certos utensílios. Sabemos já
com a natureza não nos bastam, o que nos interessa em primeiro qual é a importância atribuída aos utensílios do trabalho e ao
lugar é um outro aspecto do trabalho humano: são seu fabrico na vida da sociedade humana. A força

182 75.?
de trabalho humano incorpora-se aí para efetuar o trabalho com esses uma interação contínua entre todos estes aspectos da vida económica
utensílios e os outros meios de produção e produzir os bens de da sociedade. Não só as relações da força de trabalho com os meios
consumo necessários à vida da sociedade. Ora, a primeira questão da de produção influem na divisão do trabalho, na repartição dos
produção, e o seu fator decisivo, são as relações dos homens que produtos, na troca, como também estes fatores influenciam por sua vez
trabalham com os seus meios de produção. Não nos referimos às nas relações de produção. Entretanto, a maneira de influir é diferente.
relações técnicas, ao caráter mais ou menos aperfeiçoado dos meios O modo, dominante em cada etapa económica, de divisão do trabalho,
de produção com os quais os homens trabalham, nem ao modo como a repartição das riquezas, a troca em particular podem minar pouco a
executam o seu trabalho. Referimo-nos às relações sociais entre a pouco as relações entre força de trabalho e meios de produção de onde
força de trabalho humano e os meios de produção inertes, e à questão: eles próprios saíram. Mas a sua forma só se modifica quando uma
a quem pertencem os meios de produção? Estas relações sofreram transformação radical, uma revolução, se produzir nas relações
numerosas modificações ao longo dos tempos. Cada vez se modifi- ultrapassadas entre força de trabalho e meios de produção.
caram mais o caráter da produção, a repartição dos produtos, a forma Constituirão as transformações nas relações entre força de trabalho e
assumida pela divisão do trabalho, a tendência e a amplitude da troca, meios de produção as grandes pedras milenares no caminho da história
enfim toda a vida material e intelectual da sociedade. Conforme os económica? Delimitarão elas as épocas naturais na transformação
que trabalham possuam em comum os seus meios de produção, cada económica da sociedade? Até que ponto é importante para
um os possua para si próprio, pelo contrário os que trabalham sejam compreender a história económica saber distinguir claramente o
ao mesmo tempo que os meios de produção, e como meios de essencial do não-essencial, é o que mostra um exame do método mais
produção eles próprios, propriedade dos que não trabalham, estejam apreciado atualmente na Alemanha pela economia política burguesa e
ligados como escravos aos meios de produção, como homens livres o mais correntemente ado-tado para dividir a história económica.
não possuindo meios de produção se vejam forçados a vender a sua
Referimo-nos à divisão do professor Biicher. Na sua Entstehung der
força de trabalho como meio de produção — teremos uma economia
Volkwirtschaft (M\ o professor Biicher expõe a importância de uma
comunista, uma economia de pequenos camponeses e artesãos, uma
divisão correta em épocas para compreender a história económica.
economia escravagista, uma economia feudal ou, finalmente, uma
Segundo o seu costume, ele não aborda simplesmente a questão para
economia capitalista baseada no trabalho assalariado.
nos apresentar o resultado das suas investigações racionais, mas
Cada uma destas formas de economia tem a sua forma particular começa por nos preparar para uma correta apreciação da sua obra
de divisão do trabalho, de repartição dos produtos, de troca, de vida estendendo-se longamente sobre as influências de todos os seus
social, jurídica ou intelectual. Bastou que na história económica dos predecessores.
homens as relações entre aqueles que trabalham e os meios de
"A primeira questão — afirma ele — que deve colocar o
produção se modificassem radicalmente para que todos os outros
especialista de economia política que quer compreender a economia
aspectos da vida económica, política e intelectual se modificassem
também radicalmente, para que nascesse uma sociedade de um povo numa época recuada, será esta: é a sua
completamente nova. Há evidentemente
44 — Fomação da economia nacional. (N. T.)

184 185
economia uma economia nacional? São os seus fenómenos da que os bens percorrem desde o produtor até ao consumidor. Deste
mesma essência que os da nossa economia de troca atual, ou são ponto de vista, chegamos à seguinte divisão em três etapas de toda a
essencialmente diferentes? Não se pode responder a esta questão se evolução económica, pelo menos para os povos da Europa Central e
não se renunciar a estudar os fenómenos económicos do passado com Ocidental onde ela pode ser seguida historicamente com uma
os mesmos métodos de análise conceituai e de dedução psicológica precisão suficiente:
que deram brilhantes resultados nas mãos dos mestres da antiga
economia política 'abstraía' para o estudo da economia do presente. 1.° — A etapa da economia doméstica fechada (produção só para si,
sem troca), etapa na qual os bens são consumidos na mesma
Não se pode perdoar à escola 'histórica' moderna a falta de ter
economia em que foram elaborados.
transposto, no passado, quase sem examinar, as categorias habituais
abstratas dos fenómenos da economia nacional moderna, em vez de 2.° — A etapa da economia urbana (produção para os clientes, troca
penetrar na essência das épocas económicas anteriores ou então ter direta), etapa na qual os bens passam direta-mente da
manipulado os conceitos da economia de troca até ao ponto em que economia produtora para a economia de consumo.
parecem, bem ou mal, adapta-rem-se a todas as épocas económicas.. . 3.° — A etapa da economia nacional (produção de mercadorias,
Em nenhum lado se nota isto tão bem como no modo como se circulação dos bens), etapa na qual os bens devem em geral
caracterizam as diferenças entre a economia atual dos povos passar por uma série de economias antes de chegarem a ser
civilizados e a economia das épocas passadas ou dos povos de consumidos" <46).
civilização pobre. Isto produz-se pela enumeração de pretensas etapas
de evolução na designação das quais se resume num slogan toda a Este esquema da história económica é a princípio interessante
marcha da evolução histórica da economia. .. Todas as tentativas por aquilo que não contém. Para o professor Biicher, a história
anteriores deste género apresentam o inconveniente de não condu- económica começa pela comunidade agrária dos povos civilizados
zirem à essência das coisas, mas permanecem à superfície" <45>. europeus, logo pela agricultura superior. Todo o período, ao longo de
vários milénios, em que reinavam relações de produção anteriores à
Que divisão da história económica nos propõe agora o professor
agricultura superior, relações nas quais ainda vivem numerosos
Biicher? Escutemo-lo: "Se queremos compreender toda esta evolução
povos, Biicher, como sabemos, carac-teriza-o como "não-economia",
de um único ponto de vista, não pode ser senão um ponto de vista que
como período da famosa "procura individual do alimento" e do "não-
nos permita chegar aos fenómenos essenciais da economia nacional e
trabalho". O professor Biicher começa a história da economia com a
que nos revele ao mesmo tempo o fator organizador dos períodos
forma mais tardia do comunismo primitivo que, com a vida
económicos anteriores. Este não pode ser outro senão a relação entre
sedentária e a agricultura superior, contém já os germes da sua
a produção dos bens e o seu consumo, ou mais exatamente: a
dissolução inevitável e da passagem à desigualdade, à exploração e à
extensão do caminho
sociedade de classes. Grosse contesta o comunismo em todo o
período que
45 — Biicher, Entstehung der Volkwirtschaft {Formação da economia
nacional, p. 54.
46 — Ibidem.

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"■%

precede o comunismo agrário; Biicher risca completamente este dades medievais, o fato de terem sido o centro da produção
período da história da economia. mercantil, tornada pela primeira vez — ainda que num território
restrito — a forma de produção dominante. Pelo contrário, a
A segunda etapa da "economia urbana" fechada é uma outra produção mercantil começa para ele com a "economia nacional" —
descoberta sensacional que devemos ao "genial golpe de vista" do sabe-se que a economia política burguesa costuma designar assim o
professor Leipzig, como dizia Schurtz. Se por exemplo a "economia sistema atual da economia capitalista, quer dizer, uma "etapa" da vida
doméstica fechada" de uma comunidade agrária se caracteriza pelo fato económica cuja característica é precisamente não ser uma produção
de englobar um círculo de pessoas em que todas satisfaziam as suas mercantil mas uma produção capitalista. Grosse chama simplesmente
necessidades económicas no interior dessa economia doméstica, é "indústria" à produção mercantil, ao passo que o professor Bucher
exatamente o inverso para as cidades medievais da Europa Central e transforma simplesmente a indústria em "produção mercantil" para
Ocidental — pois elas, só por si, constituem para Biicher a "economia demonstrar a superioridade de um professor de economia sobre um
urbana". Na cidade medieval não há uma "economia" comum mas — pobre sociólogo.
empregar a gíria própria do professor Biicher — tantas "economias"
com oficinas e casas de artesãos das corporações, em que cada um Passemos destas bagatelas à questão fundamental. O professor
produz, vende e consome para si mesmo — ainda que segundo as regras Bucher apresenta a "economia doméstica fechada" como a primeira
gerais da corporação e da cidade. A cidade medieval da Alemanha ou "etapa" da sua história económica. O que é que ele entende por isso?
da França não constituía um domínio económico "fechado", porque a Assinalamos que esta etapa começa com a comunidade agrícola de
sua existência se apoiava diretamente na troca com o campo do qual aldeia. Independentemente da comunidade agrária primitiva, o
recebia alimentos e matérias-primas e para o qual fabricava os produtos professor Bucher inclui outras formas históricas entre as "economias
industriais. Biicher constrói à volta de cada cidade um perímetro rural domésticas fechadas", a saber, a economia escravagista dos antigos
que incorporava na sua "economia urbana", reduzindo por comodidade a gregos e romanos e a corte feudal. Toda a história económica da
troca entre a cidade e o campo à troca com os camponeses do povoado humanidade desde o obscurantismo da Pré-História, passando pela
mais próximo. As cortes dos ricos senhores feudais que constituíam os Antiguidade Clássica e pela Idade Média até ao início dos tempos
melhores clientes do comércio urbano e que estavam em parte dispersos modernos encontra-se incluída na "etapa" da produção à qual se opõe,
pelo campo longe da cidade, e em parte tinham a sua sede no centro da como segunda etapa da cidade medieval europeia, e, como terceira
cidade — em particular nas cidades imperiais e episcopais — e que for- etapa, a economia capitalista atual. Na história económica do
mava o seu próprio domínio económico, foram completamente postas de professor Bucher, a comunidade comunista de aldeia que vegeta
lado. Do mesmo modo, Biicher abstrai-se do comércio externo que teve passivamente algures num vale da montanha do Punjab nas índias, a
a maior importância para a vida económica medieval, e em particular economia doméstica de Péricles no apogeu da civilização ateniense, a
para o destino das cidades. O professor Biicher ignora o que há de mais corte feudal do bispo de Bamberg na Idade Média, aparecem
característico para as ci- incluídas na mesma "etapa económica". Qualquer criança que
adquiriu nos manuais escolares alguns conhe-
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cimentos históricos superficiais reconhecerá que se trata de fe- e fundido com o produtor numa mesma pessoa ou constitui uma
nómenos completamente diferentes uns dos outros. Nas comunidades pessoa separada e distinta. Perdoemos ao professor, mo-
agrárias comunistas, igualdade da massa camponesa em direitos e mentaneamente, a sua "economia sem troca"; é uma fantasia
possessões; na Grécia e Roma antigas, como na Europa feudal, a mais professoral que ainda não se descobriu em nenhum lado desta terra e
brutal oposição das castas sociais, homens livres e escravos, que, aplicada à Grécia ou Roma antigas, ou à Idade Média feudal
privilegiados e pessoas privadas de qualquer direito, senhores e depois do século X, constitui uma fantasia histórica de uma audácia
servos, riqueza e pobreza ou miséria. Aí tem-se a obrigação geral de extraordinária. Tomar como critério do desenvolvimento da produção
trabalhar, aqui precisamente a oposição entre a massa dos em geral não as relações de produção, mas as relações de troca,
trabalhadores escravizados e a minoria dos senhores que não colocar o comerciante no centro do sistema económico e fazer dele a
trabalham. Entre a economia escravagis-ta dos gregos ou dos romanos medida de todas as coisas, onde nem sequer ainda existe, eis o
e a economia feudal da Idade Média, por sua vez, havia uma tão brilhante resultado da "análise conceituai e da dedução psicológica" e
grande diferença que a antiga escravatura provocou finalmente a ruína sobretudo eis como "se penetra na essência das coisas" em vez de
da civilização greco--romana, enquanto o feudalismo medieval "ficar à superfície"! O antigo esquema sem pretensão da "escola
engendrou no seu seio o artesanato das corporações com o comércio histórica": a divisão da história económica em três épocas, "a eco-
urbano e nesta via, em última instância, o capitalismo atual. nomia natural, a economia monetária e a economia de crédito" não é
muito melhor e mais próximo da verdade do que este produto
Quem agrupar estas formas económicas e sociais tão afastadas
pretensioso da ingenuidade do professor Bucher, que começa por
umas das outras e estas épocas históricas num só conceito e num torcer o nariz perante todas as "antigas tentativas deste género" para
único esquema, deve aplicar um critério verdadeiramente original às tomar em seguida como fundamento exatamente esta mesma ideia de
épocas económicas. O próprio professor Búcher ex-plica-nos qual o troca que "fica à superfície" das coisas e simplesmente deformá-la
critério que aplica para criar a sua noite da "economia doméstica por argumentos pretensiosos e fazer dela um esquema completamente
fechada" onde todos os gatos são pardos, acorrendo amavelmente, falso.
com parênteses, em socorro da nossa incompreensão. "Economia sem
Não é por acaso que a ciência burguesa "fica à superfície".
troca", tal é o nome desta primeira 'etapa" que vai desde o começo da
Entre os sábios burgueses, uns, como Friedricht List, dividem a
história escrita até aos tempos modernos e à qual sucedem a cidade
história segundo a natureza exterior das principais fontes de
medieval, "etapa da troca direta", e o sistema económico atual, "etapa
alimentação e distinguem épocas de caça, de criação de gado, de
da circulação dos bens". Dito de outro modo: não-troca, troca simples
agricultura e de indústria — divisões que não bastam mesmo a uma
e troca complexa — em termos um pouco mais simples: ausência de
história das civilizações feita do exterior. Outros, como o professor
comércio, comércio simples, comércio desenvolvido — tal é o
Hildebrand, dividem a história económica segundo a forma exterior
critério que o professor Bucher aplica às épocas económicas. O
da troca, em economias natural, monetária e de crédito ou, como
problema fundamental da história económica consiste em discernir se
Bucher, em economia sem troca, economia de troca direta e
o comerciante já existe, ou ainda não, se
economia com circulação de mercadorias. Ou-

190 191
tios ainda, como Grosse, tomam a distribuição dos bens como ponto
Os ideólogos das massas exploradas, os mais antigos defensores
de partida da sua caracterização das formas económicas. Numa
do socialismo, os primeiros comunistas erravam nas trevas e
palavra, os sábios burgueses colocam no primeiro plano das suas
permaneciam suspensos no ar quando proclamavam a igualdade entre
considerações históricas a troca, a distribuição ou o consumo, exceto
os homens, dirigindo completamente as suas acusações e a sua luta
a forma social da produção, quer dizer exceto o que justamente em
principalmente contra a distribuição injusta ou — como alguns
cada época histórica é decisivo e de que resultam a troca e as suas
socialistas do século XIX — contra as formas modernas da troca.
formas: a repartição e o consumo no seu aspecto particular.
Quando os melhores dirigentes da classe operária compreenderam que
Por que é que é assim? Pela mesma razão que os leva a ver na a distribuição e a própria troca dependem, na sua forma, da
economia capitalista a etapa suprema e última da história humana e a organização da produção e o que é decisivo nesta são as relações entre
negar a sua evolução económica mundial ulterior e as suas tendências trabalhadores e meios de produção, as aspirações socialistas
revolucionárias. A forma social da produção, isto é, a questão das encontraram então um sólido fundamento científico. A partir desta
relações entre aqueles que trabalham e os meios de produção, é a concepção unificada, a posição científica do proletariado é
questão central de qualquer época económica, é o ponto sensível de diferenciada da posição burguesa quanto à compreensão da história
toda a sociedade de classes onde os meios de produção escapam económica, tal como se diferenciava quanto à compreensão da
àqueles que trabalham. Tal é, sob uma forma ou outra, a base destas economia política. Se é do interesse da classe burguesa encobrir a
sociedades que constitui a condição fundamental de toda a exploração questão central da história económica nas suas transformações
e de toda a dominação de classe. Desviar a atenção deste ponto históricas — a forma tomada pelas relações entre a força de trabalho e
os meios de produção — o interesse do proletariado exige que estas
sensível e concentrar-se nos aspectos exteriores e secundários, não é
relações sejam consideradas em primeiro plano, que se tornem o
sem dúvida a aspiração consciente do sábio burguês, mas a
critério da estrutura económica da sociedade. Para os trabalhadores é
repugnância instintiva da classe que ele representa intelectualmente
necessário considerar as grandes mudanças da história que delimitam
ao apreciar o perigoso fruto da árvore do conhecimento. Um
a sociedade comunista primitiva, da sociedade de classe posterior,
professor completamente moderno e célebre, como Biicher, manifesta
assim como as distinções entre as diversas formas históricas da
este instinto de classe com um "golpe de vista genial", quando
própria sociedade de classes. Só quem se apercebe das
introduz alegremente num pequeno compartimento do seu esquema
particularidades económicas da sociedade comunista primitiva, e as
extensos períodos históricos como o comunismo primitivo, a
próprias características da antiga economia escravagista e da
escravatura, a servidão, com os seus tipos fundamentalmente distintos economia medieval de servidão, pode perceber verdadeiramente
de relações entre a força de trabalho e os meios de produção, porque é que a sociedade capitalista oferece, pela primeira vez, uma
enquanto se espraia em numerosas e su-tis distinções no que respeita possibilidade de realizar o socialismo e compreender a diferença
à história da indústria, separando pretensiosamente o "trabalho fundamental entre a economia socialista mundial do futuro e os
doméstico", o "trabalho assalariado", o "trabalho artesanal", etc. grupos comunistas primitivos da Pré-História.

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CAPÍTULO III

A DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE COMUNISTA


PRIMITIVA

Examinemos as instituições internas da comunidade ger-


mânica da Marka, aquela que melhor foi estudada. Os
germanos fixaram-se por tribos e linhagens (Geschlechter). Em
cada linhagem, cada pai de família recebia um terreno para
construir a sua casa e a sua granja. Em seguida, uma parte do
terreno era utilizado para o cultivo, e cada família recebia um
lote. Segundo o testemunho de César, havia no início da era
cristã uma tribo alemã (os suevos) que cultivava os campos em
comum sem os ter inicialmente repartido entre as famílias, mas
a redistribuição anual dos lotes era já uma prática corrente, em
particular na época do historiador romano Tácito, isto é, no
século II. Em certas regiões, como na comuna de Frickho-fen,
em Nassau, as redistribuições anuais eram ainda frequentes nos
séculos XVII e XVIII. Ainda no século XIX, em certas
comunas do Palatinado bávaro e na margem do Reno, fa-zia-se
um sorteio, ainda que em intervalos mais espaçados: todos os
três, quatro, nove, doze, catorze e dezoito anos. Estes campos só
se tornaram definitivamente propriedades privadas em meados
do século XVII. Também em algumas regiões da Escócia
subsistiram redistribuições de campos até estes últimos tempos. A
princípio, todos os lotes eram iguais e a sua extensão correspondia
às necessidades médias de uma família, à fertilida-

195
de do solo e à produtividade do trabalho. Mediam, segundo a seguidos, perdia-a sem outras formalidades e a comunidade podia dá-
qualidade do solo, quinze, trinta e quarenta jeiras ou mais, nas la a cultivar a outros dos seus membros; o trabalho decorria sob a
diferentes regiões. Na maior parte da Europa, os lotes sorteados direção da comunidade. Nos primeiros tempos da colonização
transformaram-se desde os séculos V e VI em bens hereditários das germana, a criação de gado estava no centro da vida económica e
famílias conjugais, os sorteios tornaram-se cada vez mais espaçados, praticava-se nos prados e pastagens comuns sob a direção de pastores
para finalmente serem completamente suprimidos. Isto dizia respeito comunais. Utilizava-se como pastagem os terrenos em repouso e os
aos campos. Todo o resto do território: florestas, prados, águas e campos depois da colheita. Disto resultava já que as épocas de
terrenos incultos, continuavam como propriedade indivisa de Marka. semeadeira e colheita, a alternância das culturas e dos repousos para
O que as florestas proporcionavam, por exemplo, ajudava a cobrir as cada parte do território comum, a sucessão das semeadeiras eram
necessidades coletivas e as despesas públicas, sendo dividido o que reguladas em comum e cada um devia submeter-se às disposições
restava. As pastagens eram utilizadas em comum. Estas pastagens ou gerais. Cada talhão era rodeado por uma cerca com armadilhas e
terrenos comunais mantiveram-se por muito tempo e ainda existem ficava fechado desde as semeadeiras até a colheita; as datas do fecha-
mento e abertura eram decididas por toda a aldeia. Cada talhão estava
nos Alpes bávaros, tiroleses e suíços, na França (na Vendée), na
sob a direção de um vigilante que era um funcionário público da
Noruega e na Suécia.
comunidade e devia aplicar a ordem prescrita; a delimitação dos
Para garantir uma igualdade completa na distribuição dos talhões dava lugar a uma festa na qual participavam as aldeias
campos, começava-se por dividir o território segundo a qualidade do inteiras, incluindo as crianças, que eram esbofeteadas para que
solo e a sua situação em alguns talhões (também chamados Oesch ou fixassem os limites e mais tarde pudessem testemunhá-los .
Gewann), e cada um destes talhões era então dividido em tantos lotes A criação de gado era praticada em comum; era interdito aos
quantos os membros com direito na Marka. Se um dentre eles tinha membros da Marka guardar os seus rebanhos à parte. Todos os
dúvidas acerca da igualdade do seu lote em relação aos outros, podia animais da aldeia eram distribuídos em rebanhos comuns segundo as
em qualquer momento pedir uma nova medição de todo o território e espécies animais; cada rebanho tinha os seus pastores e um animal
quem o quizesse impedir era punido. condutor; estava prescrito que os rebanhos deviam ter chocalhos. O
direito de caça e de pesca era comum no território da comunidade.
Quando o sorteio e a redistribuição periódicas caíram com- Ninguém podia colocar laços ou armadilhas na sua parcela sem avisar
pletamente em desuso, o trabalho de todos os membros da co- os outros membros. Os minerais e tudo o que se encontrava na terra,
munidade nos campos permaneceu inteiramente comum e submetido a uma profundidade maior do que a que o arado podia alcançar, per-
às regras rigorosas da coletividade. Daí resultava para todo o membro tenciam à comunidade e não a quem os encontrava. Em cada
a obrigação do trabalho em geral. Logo, não bastava estar instalado comunidade, era preciso que se instalassem os artesãos necessários.
no território para ser verdadeiramente membro da Marka. Era ainda No entanto, as próprias famílias camponesas confeccio-vam a maior
necessário habitá-la e cultivar ele próprio a terra. Quem não parte dos utensílios da vida cotidiana. Cozia-se
cultivasse a sua parte vários anos

196 197
no forno, fabricava-se a cerveja, fiava-se e tecia-se em casa. Cedo, e Centener. Era eleito pelos membros da comunidade. Esta eleição
entretanto, alguns ofícios se especializaram, em particular aqueles que não constituía apenas uma honra para o eleito, mas também uma
diziam respeito ao fabrico dos instrumentos agrários. Assim, na obrigação: ninguém tinha o direito de recusar a eleição, sob pena de
Marka florestal de Woelpe, na Baixa-Sa-xônia, os membros deviam ser castigado. Na verdade, com o tempo, este cargo veio a tornar-se
"ter um homem de cada ofício na floresta que pudesse fazer coisa útil hereditário em certas famílias. Daí não ia um passo para que se
da madeira". Por todo o lado estava prescrito aos artesãos o tipo de tornasse venal — por causa do poder e dos rendimentos que trazia — e
madeira que podiam utilizar e a quantidade tolerada, isto para que pudesse ser transmitido, transformando-se assim, de função
conservar a floresta e não fabricar senão os objetos necessários aos puramente democrática e eletiva, num instrumento de dominação da
membros da Marka. Os artesãos recebiam da comunidade aquilo de comunidade. No apogeu da comuniâade, entretanto, o chefe da
que tinham necessidade para viverem e, em geral, tinham exatamente Marka era apenas o executor das vontades da coletividade. Todos os
assuntos comuns eram regulados pela assembleia de todos os membros
a mesma situação que a massa dos camponeses, mas não tinham os
da Marka que arbitrava as querelas e impunha as sanções. Toda a
mesmos direitos — em parte porque eram itinerantes, em parte, o que
organização dos trabalhos dos campos, as estradas e as construções, a
equivale ao mesmo, porque não tinham a agricultura por principal
polícia dos campos e da aldeia, eram decididos pela assembleia, e a
ocupação, a qual se encontrava então no centro da vida económica.
esta se enviavam também as contas inscritas nos "livros da comuna".
Toda a vida pública, os direitos e as obrigações dos membros da
A justiça era exercida, oral e publicamente, pelos assistentes, sob a
comunidade giravam à volta dela (47). É por isso que não penetrava presidência do chefe da Marka. Só os membros da comunidade
quem quisesse na comunidade. Para a admissão de um estranho, era podiam assistir às audiências do tribunal, estando o acesso a estas
preciso a autorização unânime de todos os membros. E ninguém podia interdito aos estranhos. Os membros da comunidade eram obrigados a
ceder o seu lote a um estranho, mas somente a um membro da Marka, testemunhar uns pelos outros, tal como tinham o dever de se ajudar fiel
e perante o tribunal da Marka. e fraternalmente em caso de incêndio, ataque inimigo, etc. No exército,
os membros de uma comunidade formavam a sua própria seção e
À cabeça da Marka, encontrava-se o alcaide da aldeia, chamado combatiam lado a lado. Em caso de crimes ou danos cometidos na
Dorfgraf ou Schultheiss, e em outros locais Markmeister Marka ou por um dos seus membros fora dela, toda a comunidade era
solidariamente responsável. Os membros tinham a obrigação de dar
hospedagem aos viajantes e ajudar os necessitados. Toda a Marka
47 — O artesão tinha exatamente a mesma posição na comuna grega da
época homérica: "Todas estas pessoas (ferreiros, carpinteiros, músicos, médicos) são os formava originariamente uma comunidade religiosa e, após a
'Demiurgos' (de 'Demos = povo), isto é, os que trabalham para os membros da comuna introdução do Cristianismo — que teve lugar tardiamente, somente no
e não para si próprios; são pessoalmente livres, mas não membros plenos, situam-se
abaixo dos membros propriamente ditos da comunidade, os pequenos camponeses. Em século IX, entre uma parte dos germanos e entre os saxões por
geral não são sedentários, vão daqui para ali e se são chamados de novo, são obrigados exemplo — uma congregação eclesiástica. Finalmente, a Marka
a regressar de longe". Ed. Meyer, Die Vlirtschaftliche Enttwicklung des Ahertums (A
evolução económica da Antiguidade), p. 17. mantinha geralmente um mestre-escola para a juventude da aldeia.
i

198 199
Não se pode imaginar nada de mais simples e de mais l i i i i i o da importância das suas necessidades. O chefe da aldeia cuja
harmonioso do que este sistema económico das antigas Markas função, na época da formação do Império, isto é, por volta dos
germânicas. Todo o mecanismo da vida social é como um céu aberto. séculos X e XI, já não era eletiva mas hereditária, recebia 0 maior
Um plano rigoroso e uma organização robusta envolvem aqui a lote. No norte do Peru, cada família não cultivava
atividade de cada um e integram-no como um elemento do todo. As 0 seu lote isoladamente, trabalhava-se em grupos de dez sob
necessidades imediatas da vida cotidiana e a sua igual satisfação para 1 direção de um chefe — instituição de que certos fatos indicam
todos, tal é o ponto de partida e o resultado desta organização. Todos também a existência entre os antigos germanos. O grupo de dez
trabalham em conjunto para todos e decidem em conjunto sobre tudo. cultivava sucessivamente as parcelas de todos os seus membros, sem
De onde provém e em que se fundamenta esta organização e o poder excluir as dos ausentes que estavam em serviço militar ou nas
da coleti-vidade sobre o indivíduo? No comunismo do solo, quer dizer corvéias (48> para os Incas. Cada família recebia os frutos do que
na possessão em comum do mais importante meio de produção. No tinha cultivado no seu lote. Só tinha direito a um lote quem habitava
entanto, os traços típicos da organização económica do comunismo no território da Marca e fazia parte do clã. Cada um devia cultivar ele
agrário aparecem melhor se os estudarmos de maneira comparativa à próprio a sua parte. Quem a deixasse inculta durante vários anos (no
escala internacional, para a concebermos assim como força mundial México durante 3 anos) perdia o direito a ela. As partes não podiam
da produção na sua diversidade e flexibilidade internacionais. ser nem vendidas nem dadas. Era rigorosamente interdito abandonar a
sua própria Marca e instalar-se noutra, o que estava sem dúvida
Voltemo-nos para o antigo Império Inca da América do Sul. O relacionado com a força dos laços de sangue dos clãs da aldeia. A
território deste Império, que cobre as atuais repúblicas do Peru, da cultura dos campos nas regiões costeiras onde as chuvas não caem
Bolívia e do Chile, isto é um território com cerca de 3.364.600 km e senão periodicamente, exigiu desde sempre uma irrigação artificial
uma população atual de 12 milhões de habitantes, era administrado na por canais que a comunidade construia coletivamente. Existiam
época da conquista por Pizarro, da mesma maneira que durante os regras restritas para a utilização da água e a sua distribuição entre as
séculos anteriores. Encontramos aí as mesmas instituições que entre diferentes aldeias e no interior delas. Cada aldeia tinha também
os antigos germanos. Cada comunidade familiar, que forma ao "campos dos pobres" cultivados por todos os membros da
mesmo tempo uma centúria de homens capazes de manejar armas, comunidade e cuja colheita era distribuída pelo
ocupa um certo território que lhe pertence e, fato curioso, tem até o
mesmo nome que entre os germanos, a Marca. Os terrenos cultiváveis 48 — Jornadas de trabalho devidas pelos camponeses ao seu senhor e que
estavam separados do território da Marca, divididos em lotes e permitiam a este assegurar gratuitamente a conservação e exploração dos seus bens e
domínios. As corvéias constituíam, juntamente com os censos e os pagamentos em
sorteados anualmente entre as famílias antes das semeadeiras. A géneros, um dos três modos com que os camponeses retribuíam o senhor pelas terras
que este lhes concedia para exploração.
dimensão dos lotes dependia da dimensão das famílias, por- Inicialmente muito pesadas (um dia em cada dois na época franca), foram sendo
fixadas pouco a pouco pelo uso e pelo costume e reduzidas a alguns dias por ano. (N.
T.)

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chefe da aldeia entre os velhos, viúvas e outros necessitados. Todo o dígenas, mas submeteram as tribos pacíficas e sedentárias dos
resto do território, fora dos campos, constituía a Marca-pacha, Vechua, precisamente porque viviam isoladas do mundo c cada aldeia
território comunal. só se ocupava dela mesma, sem ligações com territórios maiores, sem
interesse por tudo o que se pudesse passar fora do território da Marca.
Na parte montanhosa do país, onde a cultura dos campos não Os Incas deixaram em geral intata esta organização particularizante
prosperava, uma modesta criação de gado, quase exclusivamente de
que lhe tinha facilitado a conquista. Montaram aí um refinado sistema
lhamas, constituía a base da existência dos habitantes que levavam de
de exploração económica e de dominação política. Cada Marca
tempos a tempos ao vale o seu produto principal — a lã — para o
conquistada devia pôr de parte alguns campos, chamados "campos
trocar com os camponeses por milho, pimentões e feijões. Na
dos Incas" ou "campos do Sol" que lhe continuavam a pertencer, mas
montanha havia, desde a época da conquista, rebanhos privados e
cujos frutos pertenciam aos Incas assim como à sua casta de
significativas diferenças de riqueza. Um membro ordinário da Marca
sacerdotes. Do mesmo modo, as tribos de pastores das montanhas
possuía de três a dez lhamas, enquanto o chefe podia ter de cinquenta
deviam reservar uma parte dos seus rebanhos como "rebanho dos
a cem. O solo, as florestas e as pastagens eram propriedade comum e,
Senhores". A guarda destes rebanhos, tal como a cultura dos campos
além dos rebanhos privados, havia rebanhos de aldeia que não
dos incas e dos sacerdotes, era "a corvéia" comum dos membros da
podiam ser alienados. Em datas determinadas uma parte dos rebanhos
comunidade. A esta acrescentavam-se as corvéias do trabalho nas
comuns era abatida e a carne e a lã eram distribuídas entre as
minas e dos trabalhos públicos, construção de caminhos e de pontes,
famílias. Não havia artesãos; cada família fabricava tudo o que
de que os senhores tomavam a direção, um serviço militar de rigorosa
necessitava para o lar. Havia aldeias que se mostravam parti-
cularmente hábeis nesta ou naquela atividade: tecelagem, olaria ou disciplina e finalmente um tributo de jovens raparigas que serviam
trabalho do metal. À frente de cada aldeia havia um chefe, a princípio quer de vítimas para os sacrifícios rituais, quer de concubinas para os
eleito, depois hereditário, que orientava a cultura dos campos; para incas.
todo o assunto importante certificava-se dos conselhos da assembleia Este rigoroso sistema de exploração deixava no entanto intata a
dos adultos que convocava ao som do búzio. vida interior das comunidades e as suas instituições comunistas
Até aqui, a velha Marca peruana tem todos os traços essenciais democráticas; as corvéias e os próprios censos eram suportados
da Marca germânica. Naquilo que ela difere da imagem típica que coletivamente pela Marca. O mais notável é que a organização
conhecemos permite penetrar melhor na natureza deste sistema comunista de aldeia não era só, como tão frequentemente ao longo da
social. O que havia de particular no antigo Império Inca, é que se história, a base segura e paciente de um secular sistema de
tratava de um país conquistado onde se tinha estabelecido uma exploração e de servidão; este próprio sistema tinha uma organização
dominação estrangeira. Os conquistadores, os Incas, também faziam comunista. Com efeito, os incas que se instalaram confortavelmente
certamente parte das tribos in- nas costas das submissas tribos peruanas, eles próprios, viviam em
associações de linhagem e

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sob o regime da Marca. A sua residência principal, a cidade de Cuzco, tas primitivas tinham na realidade pouca coisa a ver com alguns
não era mais do que uma dúzia e meia de habitações, sendo cada uma princípios de igualdade e de liberdade universais. Estes "princípios"
o centro da vida coletiva de todo um clã, com o túmulo comum no aplicados na sua validade universal para todos os países, pelo menos
interior, bem como um culto comum. À volta destas grandes para os países "civilizados", quer dizer para os países de civilização
residências de clãs estendiam-se os territórios dos clãs incas com capitalista, ao "homem" abstrato, portanto a todos os homens, são um
florestas e pastagens indivisas e campos distribuídos, cultivados em produto tardio da sociedade burguesa moderna cujas revoluções —
comum. Como povo primitivo, estes dominadores e exploradores não tanto na América como na França — aliás os proclamaram pela
tinham ainda renunciado ao trabalho, serviam-se apenas da sua primeira vez. A sociedade comunista primitiva ignorava os princípios
situação de senhores para viverem melhor do que os seus dominados e gerais válidos para todos os homens; a sua igualdade e a sua
levar sacrifícios mais abundantes ao seu culto. A arte moderna de se solidariedade surgiam das tradições comuns de laços de sangue e da
alimentar exclusivamente do trabalho de outrem e fazer do ócio o atri- propriedade comum dos meios de produção. A igualdade de direitos
buto do poder era estranho a esta organização social em que a e a solidariedade dos interesses não iam mais longe do que esses laços
propriedade comum e a obrigação geral de trabalhar constituíam de sangue e essa propriedade. Tudo o que se encontrava fora destes
costumes populares profundamente enraizados. O próprio exercício limites — que não ia além das quatro estacas da aldeia ou, mais
do poder político estava organizado como uma função comum das frequentemente, das fronteiras do território de uma tribo — era
famílias incas. Os administradores incas estabelecidos nas províncias estranho e podia mesmo ser inimigo. As comunidades, baseadas
do Peru, cuja função era análoga à dos residentes holandeses no internamente na solidariedade económica, podiam e deviam
arquipélago malaio, eram considerados como delegados dos seus clãs mesmo ser levadas periodicamente, pelo baixo nível de
em Cuzco onde guardavam o seu lugar nas habitações coletivas e desenvolvimento da produção, pelo rendimento medíocre ou pelo
participavam na vida da sua própria comunidade. Estes delegados esgotamento da fonte de alimentos e pelo crescimento da população,
regressavam a Cuzco todos os anos para a festa do Verão, e prestavam a entrarem em conflito mortal de interesses com outras comunidades
contas de como tinham exercido a sua função, celebrando a grande do mesmo género. Era preciso então que a luta cruel que é a guerra,
festa religiosa com os outros membros da sua tribo. decidisse do resultado do conflito, exterminação de um dos campos ou
— mais frequentemente — estabelecimento de relações de exploração.
Temos aqui, em certa medida, duas camadas sociais, so-
Não era a abnegação aos princípios abstratos de igualdade e de
brepostas, ambas organizadas internamente segundo um modo
liberdade que estava na base do comunismo primitivo; era a
comunista, e havendo entre elas uma relação de exploradores para
necessidade férrea do baixo nível de desenvolvimento da civilização
explorados. Este fenómeno pode parecer incompreensível à primeira humana, da impotência humana face à natureza, que lhe impunha
vista porque está em brutal contradição com os princípios de como uma condição absoluta de existência associar-se solidamente
igualdade, de fraternidade e de democracia, que serviam de base à em grupos importantes e atuar de maneira unida e simplificada
organização das comunidades agrárias. Temos precisamente aqui a no seu trabalho, na sua luta pela existência.
viva prova de que as instituições comunis-

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Esta mesma dominação muito limitada da natureza restringia Quando a história escrita nos informa resumidamente que
o plano comum e o trabalho comum a um território relativamente na ilha de Creta, dominada pelos dórios, as populações subju-
reduzido de pradarias naturais ou campos arroteados à volta da gadas deviam entregar à comuna todo o produto dos seus
aldeia, e tornava-os completamente impróprios à ação comum campos, retirando somente o necessário para o seu sustento e o
numa maior escala. O nível primitivo da agricultura não da sua família, com o qual os homens livres (isto é, os
permitia culturas que ultrapassassem o território da aldeia e fixava dominadores dórios) cobriam os gastos das suas refeições co-
assim limites muito restritos à solidariedade de interesses. Este muns; ou então como em Esparta, igualmente cidade dória,
baixo nível da produtividade do trabalho provocava onde havia "escravos do Estado", os Ilotas, que o Estado cedia
periodicamente conflitos de interesses entre os diferentes grupos aos indivíduos para cultivarem os seus lotes, estas situações são
sociais e a violência brutal era o único meio de resolver esses em princípio um enigma para nós. Um sábio burguês, como o
conflitos. A guerra continuou a ser o método permanente para professor de Heidelberg, Max Weber, adianta, para explicar
resolver os conflitos de interesses entre comunidades sociais até estas curiosas tradições da história, as mais estranhas hipóteses do
ao momento em que o mais alto nível de desenvolvimento da ponto de vista da situação e das noções atuais. "A população
produtividade do trabalho, quer dizer o domínio perfeito dos subjugada é tratada aqui, em Esparta, como escrava do Estado;
homens sobre a natureza, pôs um fim aos seus conflitos de as suas contribuições em géneros servem para a manutenção
interesses materiais. Mas se o choque entre as diversas dos guerreiros, em parte de modo comum, em parte de tal
comunidades primitivas era um dado permanente, o resultado era modo que o indivíduo vive do produto de certos campos
decidido por sua vez pelo desenvolvimento da produtividade do cultivados por escravos de que se apropria de diversas formas,
trabalho. Tratar-se-ia de um conflito entre dois povos nómades cada vez mais hereditariamente. Novas atribuições dos lotes e
criadores de gado grosso que disputavam as pastagens? Só a uma nova distribuição destes eram tidos por possíveis na época
violência brutal podia decidir quem ficaria dono do terreno e histórica e parecem terem-se verificado. Naturalmente não se
quem devia retroceder para regiões inóspitas e áridas ou ser tratava de redistribuições dos campos {"naturalmente", caso
exterminado. Aonde a agricultura era já bastante próspera para possa, um professor burguês não pode admitir nada disto), mas
poder assegurar uma boa alimentação sem absorver toda a força de qualquer modo redistribuição de rendas de propriedades.
de trabalho e toda a vida dos interessados, também aí existia o Considerações militares, em particular uma política militar de
fundamento de uma exploração sistemática desses camponeses povoamento, decidem de todos os detalhes. . . O caráter de
feudalismo urbano desta política manifesta-se sob uma forma
por conquistadores estrangeiros, Ê assim que vemos instalar-se
característica pelo fato dos campos de um homem livre,
uma situação como a do Peru onde uma sociedade comunista
cultivado por um escravo, estarem, em Gortyn, submetidos a
explora uma outra sociedade comunista. Esta estrutura
este direito militar especial: constituem o Klaros que está
original do Império Inca é importante; ela permite-nos
submetido ao interesse do sustento da família do guerreiro
compreender uma série de formações semelhantes na
(traduzido da linguagem professoral para uma linguagem clara:
Antiguidade Clássica, em particular no seio da história grega.
as parcelas de campos são a propriedade do conjunto da cidade,
por isso não podem ser ven-
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didas nem repartidas após a morte do possuidor do lote, o que c transmitidas sobre Creta pela tradição mostram que a comunidade
professor Weber explica algures como uma sábia medida "para camponesa explorada devia entregar todo o produto do seu trabalho,
impedir a dispersão da riqueza" e "no interesse da manutenção de com exceção do que era necessário para a sua subsistência; a
lotes dignos da classe dos guerreiros"). A organização culmina na comunidade dominante não vivia do seu próprio trabalho dos campos
instituição da mesa comum para os guerreiros, à maneira de uma mas do que lhe entregava a co-letividade explorada, e no entanto
agremiação de oficiais, os 'Syssiíies', e pela educação comum das consumia segundo um modo comunista. Um pouco mais longe na
crianças pelo Estado com vista a fazer delas guerreiros, à maneira de evolução, encontramos Esparta onde o solo já não é a propriedade da
escola de cadetes" <49>. E eis os gregos do tempo dos heróis, dos comunidade subjugada, mas dos senhores que a sorteiam e a repartem
Heitores e dos Aquiles, transformados em "fideicomissos" prussianos entre eles. A perda deste fundamento, o direito à propriedade do solo,
nas agremiações de oficiais com as suas orgias no acampamento, fez explodir a organização social da comunidade subjugada dos
"dignas da sua classe", e os jovens e raparigas nus de Esparta que senhores, e são uma força de trabalho cuja distribuição comunista
tinham tido uma educação popular comum, tornados pensionistas de entre os senhores está organizada "em nome do Estado". Os senhores
uma escola de cadetes, como a de Grosse-Lichter-felde, perto de espartanos vivem ainda segundo um modo estritamente comunitário.
Berlim, verdadeira prisão. Uma situação semelhante parece ter existido, sob uma forma ou
outra, na Tessália onde os habitantes primitivos, os Penastas ou
Para quem conhece a estrutura interna do Império Inca, a
"gente pobre", foram subjugados pelos Eólios, ou em Bitínia, onde os
situação acima descrita não apresenta dificuldades. Ela é
Mariandins foram colocados na mesma situação por tribos trácias.
indubitavelmente o produto da existência de duas formações sociais
comunistas em que uma é uma sociedade agrária explorada pela Esta existência parasitária introduziu inevitavelmente o germe
outra. Até que ponto os fundamentos comunistas se perpetuam nos da dissolução na própria comunidade dominante. Já a conquista e a
costumes dos senhores e na situação dos oprimidos, isso depende do necessidade de fazer da exploração uma instituição permanente
grau de evolução, da duração e do ambiente destas formações, que conduz a um forte desenvolvimento do aparelho militar, fenómeno
podem apresentar todas as gradações. O Império Inca, onde os que constatamos tanto no Império Inca como nos Estados espartanos.
próprios senhores trabalham, onde a propriedade do solo dos É a base da desigualdade, da formação de castas privilegiadas no seio
oprimidos está inta-ta e onde cada camada social está organizada de de uma massa de camponeses originariamente iguais e livres. Basta
maneira fechada, pode sem dúvida considerar-se como a forma mais então que as circunstâncias geográficas e históricas sejam favoráveis,
antiga de tais relações de exploração que não puderam conser-var-se que o choque com os povos de civilização mais elevada suscite
senão graças ao nível relativamente primitivo de civilização e ao necessidades mais refinadas e estimule as trocas, para que a
isolamento do mundo que este país conheceu durante séculos. Num desigualdade faça rápidos progressos entre os senhores, que a coesão
estágio mais avançado, as informações comunista se enfraqueça e dê lugar à propriedade privada com a sua
cisão entre ricos e pobres. Os princípios da história grega após o
49 — Handwoerterbuecher der Staatswissenschaften {Léxico das choque com as antigas civilizações do
ciências politicas), Tomo I: Agrarveáhaellnisse im Altertum (Relações
agrárias na Antiguidade), 2,a edição, p. 69.

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Oriente fornecem um exemplo clássico destes fenómenos. O Contrário, adquiriram bárbaros (não-gregos) como escravos pelos
resultado da submissão de uma comunidade comunista primitiva por quais pagaram o preço". "E a razão desta diferença — acrescenta com
outra é, com o tempo, sempre o mesmo: os laços comunistas razão Ciccotti — são os diferentes graus de evolução dos povos do
tradicionais desagregam-se tanto entre dominantes como entre interior por um lado, e os povos insulares por outro. A ausência total
dominados e forma-se uma nova sociedade em que a propriedade ou a insignificância da riqueza acumulada e o desenvolvimento
privada, a exploração e a desigualdade se engendram reciprocamente. insuficiente das trocas comerciais excluíam num caso uma produção
A história das comunidades agrárias na Antiguidade Clássica direta e cres-cente dos proprietários bem como a utilização direta de
desemboca por um lado na oposição entre uma massa de pequenos escravos e conduziam à forma mais rudimentar do tributo, a uma
camponeses empenhados e a nobreza que se reserva ao serviço divisão do trabalho e a uma formação de classes que faziam da classe
militar, às funções públicas e ao comércio e se apropria das terras dominante um exército armado e da classe dominada uma massa
comuns, e por outro lado na oposição entre esta sociedade de homens camponesa'^51' .
livres como um todo e os escravos explorados.
A organização interna do Império Inca revelou-nos um
Destas múltiplas formas de exploração natural de homens importante aspecto da sociedade primitiva e mostrou-nos ao mesmo
submetidos militarmente por uma comunidade, à aquisição de tempo uma das vias do seu declínio. Ao estudar o capítulo seguinte
escravos pelos indivíduos, não vai senão um passo. Este passo foi na história dos índios do Peru e das outras colónias espanholas da
rapidamente percorrido na Grécia graças às trocas marítimas e ao América, veremos uma outra via tomada por esta forma de sociedade.
comércio internacional com as suas consequências nos Estados Temos sobretudo aí um outro método de conquista, desconhecido da
insulares e costeiros. Também Ciccotti distingue dois tipos de dominação Inca. A dominação dos espanhóis, primeiros europeus no
escravatura: "A forma mais antiga, a mais importante e a mais Novo Mundo, começou imediatamente pela exterminação impiedosa
difundida de servidão económica — diz ele — que encontramos no das populações submetidas. Segundo testemunhos dos próprios es-
seio da história grega, não é a escravatura mas uma forma de servidão panhóis, o número de índios exterminados por eles em alguns anos,
que se poderia quase chamar de vassalagem". E Theopompus após a descoberta da América, atingia de 12 a 15 milhões. "Estamos
observava: "Depois dos tessálios e lacedemônios, foram os habitantes autorizados a afirmar — diz Las Casas — que os espanhóis, pelos
da ilha de Quios <50> os primeiros entre os helenos a servirem-se de seus tratamentos monstruosos e desumanos, exterminaram 12
escravos, mas não os adquiriam do mesmo modo que aqueles. . . milhões de homens, incluindo mulheres e crianças; na minha opinião
Podemos ver que os lacedemônios e os tessálios formaram a sua pessoal, o número de indígenas desaparecidos nesta época ultrapassa
classe de escravos a partir dos helenos que habitavam antes deles o mesmo os 15 milhões".(52). "Na ilha de Haiti, afirma Handelmann, o
país que atualmente possuem, forçando os aqueus, os tessálios, os número
perrebes, os magnetos, a colocarem-se ao seu serviço e cha-mando-os
Ilotas ou Penastas. Os habitantes de Quios, pelo 51 — Ciccotti: Untergang der Sklaverei im Altertum (O declínio da
escravatura na Antiguidade), pp. 37-38.
52 — Bnevísima relación de la destinación de los incas {Breve relação do
50 — Ilha da Ásia Menor. (N. T.) destino dos incas), Sevilla 1552, citado por Kovalevsky.

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de indígenas encontrados pelos espanhóis ascendia em 1492 a um mercadoria por vinho, farinha, açúcar e outros artigos de necessidade
milhão, em 1508 não havia mais do que 60.000 e nove anos mais corrente, transportavam os escravos para as regiões das colónias
tarde 14.000, de modo que os espanhóis tiveram que recorrer à espanholas onde a procura é maior. Durante o transporte, uma parte
importação de índios das ilhas vizinhas para conseguirem a mão-de- destes infelizes morre em consequência da falta de água e do ar
obra necessária. Só em 1508, 40.000 indígenas das ilhas Bahamas viciado das cabinas, dado que os mercadores amontoam todos os
foram transportados para o Haiti e transformados em escravos" (53>. escravos no fundo do navio, sem lhes deixar espaço suficiente para se
Os espanhóis efetuaram uma verdadeira caça aos peles-- sentarem ou ar suficiente para respirarem" <54>. Para evitar no
vermelhas que uma testemunha participante, o italiano Giro-lamo entanto a fadiga de caçar os peles-vermelhas e a despesa da sua
Benzoni, nos descreveu: "Em parte por falta de alimento, em parte aquisição, os espanhóis instauraram nas ilhas e no continente
pelo desgosto de ficarem separados dos seus pais, mães e filhos — diz americano o sistema dos chamados repartimientos, isto é a divisão da
Benzoni após uma destas caçadas na ilha de Kumagna onde foram terra. Todo o território conquistado era dividido em porções cujos
capturados 4.000 índios — a maior parte dos escravos indígenas chefes, os "caciques", viam-se simplesmente obrigados a arranjar o
morreram durante o tra-jeto para o porto de Kumani. Cada vez que número de escravos exigidos pelos espanhóis. Todo o colono
um escravo demasiado fatigado para andar tão depressa quanto os espanhol recebia periodicamente do governador um certo número de
seus camaradas, os espanhóis, com medo que ao ficarem para trás os escravos com a condição de "velar pela sua conversão ao
atacassem pelas costas, atravessavam-nos traiçoeiramente com os seus Cristianismo" <55>. Os maus tratos infligidos aos escravos pelos
punhais e assassinavam-nos desumanamente. Era um espetáculo de colonos ultrapassavam tudo o que se pode conceber. O próprio
cortar o coração ver estes infelizes seres, completamente nus, assassinato constituía uma libertação para os índios. "Todos os
extenuados, feridos e tão enfraquecidos pela fome que mal podiam indígenas capturados pelos espanhóis — diz um contemporâneo —
segurar-se de pé. Cadeias de ferro rodeavam o seu pescoço, as suas são obrigados por eles a trabalhos fatigantes e penosos nas minas,
mãos e os seus pés. Não havia uma só mulher entre eles que não longe do seu país natal e da sua família e sob a ameaça de
tivesse sido violada por esses bandidos (os espanhóis) que se permanentes castigos corporais. Não é de estranhar que milhares de
entregavam então a uma libertinagem tão repugnante que muitas delas escravos que não viam outra possibilidade de escapar ao seu cruel
ficavam para sempre corroídas pela sífilis. . . Todos os indígenas
destino, não só pusessem fim aos seus dias, enforcando-se, afogando-
submetidos à escravatura eram marcados com ferros em brasa. Os
se ou de outro modo, mas também matassem primeiro as suas mulhe-
capitães punham uma parte de lado para eles e repartiam o resto pelos
res e os seus filhos, para acabar de uma vez por todas com o seu mal-
soldados. Estes últimos disputavam-nos entre si ou vendiam--nos aos
estar comum e sem remédio. Por outro lado, as
colonos espanhóis. Os mercadores que trocavam esta

54 — Storia dei mundo nuovo di Girolatno Benzoni, Venezia 1565,


53 — Heinrich Handelmann, Geschidite der Insel Haiti (História •da citado por Kovalevsky.
ilha de Haiti), Kiel 1856, p. 6. 55 — Charleroix, Histoire de 1'lsle Espagnole ou de St. Dominique
(História da Ilha Espanhola ou de S. Domingos), Paris 1730, citado por
Kovalevsky, p. 50.

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mulheres recorrem ao aborto ou evitam a prostituição para O que libertou os índios da escravatura não foi a piedosa
não darem origem a escravos" <56>. ação dos religiosos católicos nem os protestos dos reis espa-
Os colonos conseguiram por intermédio do confessor im- nhóis, mas o simples fato de tanto a sua constituição psíquica
perial, o padre Garcia de Loyosa, de piedosa memória, que um como física os tornar completamente inaptos para o duro tra-
decreto de Carlos V declarasse sumariamente os índios escravos balho da escravatura. Com o tempo, as piores atrocidades dos
hereditários dos colonos espanhóis. Benzoni pretende que o espanhóis nada puderam contra esta impossibilidade; os peles-
decreto apenas se referia aos antropófagos das Caraíbas. No vermelhas sob a escravatura morriam como moscas, fugiam ou
entanto foi interpretado e aplicado como válido para todos os suicidavam-se; em poucas palavras, o negócio não era
índios. Para justificarem as suas atrocidades, os colonos completamente rentável. Foi só quando o caloroso e infatigável
espanhóis espalhavam sistematicamente as histórias mais ter- defensor dos índios, o bispo Las Casas, teve a ideia de substituir
ríveis sobre a antropofagia e outros crimes dos índios, de modo os índios inaptos por negros mais robustos importados da
que um historiador francês da época, Marly de Chatel, pôde África, que foi posto fim às inúteis experiências feitas com os
narrar na sua Histoire general des Indes ocidentales (57) (Paris, índios. Esta descoberta prática teve um efeito mais rápido e
1569): "Deus castigou-os com a escravatura pela sua maldade e
mais decisivo do que todos os panfletos de Las Casas sobre as
pelos seus vícios, pois o próprio Caim não pecou contra o seu
atrocidades espanholas. Após algumas décadas, os índios foram
pai Noé tão gravemente como os índios para com Deus". No
libertados da escravatura e inicia-se a escravatura dos negros
entanto, quase na mesma época, um espanhol, Acosta,
que durou quatro séculos. No fim do século XVIII, um alemão
escrevia na sua História natural y moral de las índias (Barce-
honesto, o "bravo velho Nettelbeck" de Kelberg, capitão de
lona, 1591) que estes mesmos índios eram um "povo bondoso,
sempre pronto a prestar serviços aos europeus, um povo que navio, levou da Guiné para as Guianas, onde outros "bravos
manifesta no seu comportamento uma inocência tão comovente e prussianos" exploravam plantações, centenas de escravos negros
uma tal sinceridade que se não se está desprovido de toda a que comprara na África, com outras mercadorias, e que tinha
qualidade humana é impossível tratá-los de outro modo que não amontoado no porão do seu navio, tal como os capitães
seja com ternura e amor". espanhóis do século XVI. O progresso do século das luzes e a
sua humanidade manifestam-se em Nettelbeck que, para
Houve evidentemente tentativas de oposição a estas atro-
remediar a melancolia e a morte dos escravos, todas as noites
cidades. Em 1531, o Papa Paulo III publica uma Bula em que
os fazia dançar sobre a coberta do navio entre música e ao som
declarava que os índios faziam parte do género humano e não
do batuque, ideia que os grosseiros mercadores espanhóis de
deviam ser reduzidos à escravatura. Também o Conselho
escravos ainda não tinham tido. E no fim do século XIX, em
Imperial Espanhol para as índias ocidentais se pronunciou mais
tarde contra a escravatura. Estes decretos reiterados testemunham 1871, o nobre David Livingstone, que tinha passado trinta anos
mais o insucesso do que a sinceridade destes esforços. na África à procura das nascentes do Nilo, escrevia na sua
célebre carta ao americano Gordon Bennett: "Se as minhas
56 — Acosta, História natural y moral de las índias, citado por revelações sobre a situação em Udjidji pusessem fim ao terrível
Kovalevsky.
comércio de escravos na África oriental, daria mais apreço a este
57 — História geral das índias ocidentais. (N. T.)
resultado do que à descoberta de todas as nas-
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centes do Nilo. Entre nós, a escravatura foi abolida por todo o lado; este sistema, os espanhóis estenderam de tal modo as suas possessões
estendei-nos a vossa mão generosa e poderosa para obterdes também em algumas províncias que já não resta aos índios mais terra para
esse resultado. Esse belo país está afetado por uma praga ou pela cultivar"(58). Ao mesmo tempo os "encomenderos" aumentaram de tal
maldição do Todo-Poderoso..." modo os "moderados" tributos que os índios ficaram esmagados pelo
Todavia, a sorte dos índios nas colónias espanholas não foi por seu peso. "Todos os bens do índio — diz o mesmo Zurita — não lhe
isso melhorada. Um novo sistema de colonização substituiu chegavam para pagar os impostos. Encontram-se entre os Peles-
simplesmente o precedente. Em vez dos Repartimientos, que visavam Vermelhas muitos cuja fortuna não ultrapassa mais do que um "peso"
diretamente a escravatura da população, instau-raram-se as e que vivem do seu trabalho assalariado; não fica mesmo o suficiente
Encomiendas. Formalmente reconhecia-se aos habitantes a liberdade para os infelizes manterem a sua família. É por isso que muito
pessoal e a plena propriedade do solo. Só que os territórios foram frequentemente as jovens preferem as relações ilegítimas, sobretudo
colocados sob a direção administrativa dos colonos espanhóis, na maior quando os seus pais não dispõem sequer de quatro ou cinco "reais".
parte descendentes dos primeiros conquistadores que deviam, Dificilmente os índios podem dar-se ao luxo de usar vestuário;
como "Encomenderos", exercer uma tutela sobre os índios declarados muitos, não tendo meios para se vestirem, não estão em estado de
inferiores e, especialmente, difundir o Cristianismo entre eles. Para assistir ao ofício divino. Não é de estranhar que muitos caiam no
cobrir as despesas da construção de igrejas, bem como para os recom- desespero não encontrando os meios de proporcionar o alimento
pensar do seu próprio trabalho no exercício da sua tutela, os necessário às suas famílias. . . Tomei conhecimento nas minhas
"Encomenderos" tinham o direito legal de cobrar da população últimas viagens que muitos índios se enforcaram por desespero
"impostos moderados em dinheiro e em mercadoria". Estas disposições depois de terem explicado às suas mulheres e aos seus filhos que o
bastaram para transformar rapidamente as "encomiendas" num inferno faziam porque não podiam pagar os impostos que lhes eram exi-
para os índios. Deixava-se-lhes a terra como propriedade indivisível gidos" <59>.
das tribos. Por tal terra os espanhóis entendiam, ou queriam apenas Para completar o saque das terras e a pressão dos impostos, veio
entender, a terra arável. As terras utilizáveis, ou mesmo o trabalho forçado. No início do século XVII, os espanhóis
frequentemente as que estavam em repouso, foram apropriadas como regressaram ao sistema formalmente abandonado no século XVI. A
"terra deserta" de modo tão sistemático e desavergonhado que Zurita escravatura foi abolida para os índios; foi substituída por um sistema
escreve a este respeito: "Não há uma parcela de terra ou uma granja particular de trabalho forçado que quase não se distingue dela. Desde
que não tenha sido declarada propriedade dos europeus, sem meados do século XVI, eis qual é, segundo a descrição de Zurita, a
consideração pelo prejuízo assim causado aos interesses e aos direitos situação dos índios assalariados que trabalham para os espanhóis:
de propriedade dos indígenas que deste modo se viram forçados a "Durante todo este tempo os índios não têm outro alimento que não
abandonar os territórios habitados por eles desde tempos imemoriais. seja pão de milho... O "encomendero" f á-los trabalhar de manhã à
Não é raro que se lhes tome mesmo terras cultivadas por eles próprios
sob o pretexto de as terem semeado para impedir os europeus de se 58 — Zurita, pp. 57-59 (Kovalevsky, p. 62).
59 — Zurita, p. 329 (Kovalevsky, p. 63).
apropriarem delas. Graças a
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noite, deixando-os nus no gelo da manhã e da noite, sob tempestades e
deserta". O declínio da agricultura indiana oferecia naturalmente um
tormentas, sem lhes dar outro alimento que não fosse pão borolento...
terreno propício à usura. "Sob a dominação indígena, os índios não
Os índios passam a noite ao ar livre. Como só se lhes entrega o salário
conheciam usurários, diz Zurita". Os espanhóis fizeram com que eles
no fim do período de trabalho forçado, os índios não têm os meios para
os conhecessem a fundo com este belo produto da economia
comprarem os vestuários quentes necessários. Não é de estranhar
monetária e da pressão fiscal. Sobrecarregadas de dívidas, as terras
que em tais condições o trabalho ao serviço dos "encomenderos" fosse
dos índios que não foram extorquidas passaram maciçamente para as
extremamente fatigante; pode ser considerado como uma das causas da
mãos dos capitalistas espanhóis e a avaliação dessas terras constituiria
sua rápida extinção" (60\ Ora este sistema de trabalho assalariado
ainda um capítulo à parte na vileza europeia. O roubo das terras, os
forçado foi legalmente instaurado pela Coroa espanhola no início do
impostos, o trabalho forçado e a usura formavam uma corrente que
século XVII. A lei explica que os índios não queriam trabalhar
quebrou a existência das comunidades agrárias indígenas. O
voluntariamente mas que sem eles as minas só dificilmente poderiam
desmoronamento dos fundamentos económicos foi suficiente para
ser exploradas, apesar da presença dos negros. As aldeias indígenas
desagregar a ordem pública tradicional e os laços sociais entre os
vêm-se então obrigadas a fornecerem o número de trabalhadores
índios. Estes fundamentos económicos foram, por sua vez,
exigido (um sétimo da população no Peru e um quarto na Nova Es-
sistematicamente destruídos pelos espanhóis ao desmantelarem as
panha), que foram postos à mercê dos "encomenderos"'. Cedo
autoridades tradicionais. Os chefes de aldeia e os chefes das tribos
apareceram as consequências mortais do sistema. Num escrito
deviam ser confirmados na sua função pelos "encomenderos",
anónimo, dirigido a Filipe IV e intitulado Relatório sobre a perigosa
aproveitando-se estes para colocar em tais cargos as suas criaturas, os
situação do Reino do Chile do ponto de vista temporal e espiritual,
indivíduos mais depravados da sociedade indígena. Um meio favorito
pode ler-se: "A diminuição rápida do número de indígenas tem por
dos espanhóis consistia também em lançar sistematicamente os índios
causa bem conhecida o sistema do trabalho forçado nas minas e nos
contra os seus chefes. Sob o pretexto cristão de proteger os indígenas
campos dos "encomenderos". Ainda que os espanhóis disponham de
da exploração pelos seus chefes, libertavam-nos da obrigação de
uma enorme quantidade de negros, ainda que tenham submetido os
pagar os tributos tradicionais a esses chefes. "Os espanhóis — diz
índios a impostos infinitamente mais pesados do que os que pagavam
Zurita — consideravam, baseando-se no que atualmente se passa na
aos seus chefes antes da conquista, consideravam no entanto impossí-
Espanha, que os chefes espoliavam as suas tribos, mas são eles
vel renunciar ao sistema dos trabalhos forçados" (61).
próprios os responsáveis dessas extorsões, porque foram eles que
Os trabalhos forçados tinham além disso por consequência que
privaram os antigos chefes da sua posição e dos seus rendimentos e os
os índios não estavam frequentemente em condições de cultivarem os
substituíram por novos, escolhidos entre as suas criaturas" <62).
seus campos, o que oferecia de novo aos espanhóis um pretexto para
se apropriarem deles como "terra Procuravam igualmente provocar motins quando os chefes de
aldeia ou de tribo protestavam contra a alienação ilegal de
60 — Zurita, XI, p. 295 (Kovalevsky, 65).
61 — Citado por Kovalevsky, p. 66,
62 — Zurita, p. 87, citado por Kovalevsky.
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lerias deste ou daquele membro de comunidade em proveito dos a incrível resistência do povo índio e das instituições comunistas
espanhóis. O resultado disso foram revoltas crónicas e uma sucessão agrárias de que, apesar destas condições, se conservaram vestígios até
de disputas entre índios acerca de transmissões ilegais de terras. À ao século XIX.
miséria, à fome e à escravatura vinha-se juntar a anarquia para A grande colónia inglesa das Índias mostra-nos os destinos da
fazerem da existência dos índios um verdadeiro inferno. O balanço antiga comunidade agrária sob um outro aspecto. Aqui, melhor do que
desta tutela espanhola e cristã podia resumir-se assim: passagem das em qualquer outro canto do mundo, podem-se estudar as formas mais
terras para as mãos dos espanhóis e extinção dos índios. "Em todos os diversas da propriedade do solo que representam, como que projetada
territórios espanhóis das Índias — diz Zurita — as tribos indígenas sobre uma superfície plana, a história de milénios. Comunidades de
desapareceram completamente ou ficaram reduzidas, ainda que certas aldeia ao lado de comunidades de linhagem, redistribuição periódica
pessoas pretendessem o contrário. Os indígenas deixam as suas casas de parcelas iguais de terra ao lado da atribuição vitalícia de parcelas
e as suas terras que para eles perderam o seu valor, em virtude dos desiguais, cultura do solo em comum ao lado da exploração individual
enormes tributos em produtos e em dinheiro; emigram para outras privada, igualdade de todos os habitantes da aldeia nos seus direitos
sobre as terras da comuna, ao lado de privilégios concedidos a certos
regiões, deslocam-se continuamente de uma para outra, ou ocultam-se
grupos, enfim, ao lado de todas estas formas de propriedade comum, a
nas florestas, com o risco de mais tarde ou mais cedo se tornarem
pura propriedade privada do solo, quer sob a forma de minifúndios
vítimas dos animais selvagens. Muitos põem termo à sua vida
camponeses, quer na de terras arrendadas por um curto período, quer
suicidando-se, como muitas vezes eu próprio pude constatar por
da ne imensos latifúndios — eis tudo o que se podia estudar em tama-
observação pessoal ou interrogando os habitantes do lugar" (63>. Meio
nho natural nas Índias ainda há poucas décadas. Que as comunidades
século mais tarde, outro alto funcionário do governo espanhol no agrárias são uma instituição muito antiga nas Índias, é o que
Peru, Juan, Orter de Cervantes, informa que "a população indígena testemunham os documentos jurídicos indianos — bem como o mais
nas colónias espanholas reduz-se cada vez mais, abandona as suas antigo direito consuetudinário codificado, o Manu, que data do século
habitações, deixa a terra inculta, de modo que os espanhóis têm IX A. C. e contém numerosas prescrições relativas às questões de
dificuldade em encontrar agricultores e pastores. Os Mi-tayos, tribo limites entre as terras das comunidades, instalações de novas
sem a qual a exploração das minas de ouro e de prata é impossível, comunidades nas terras indivisas de antigas comunidades. Este código
abandonam completamente as cidades habitadas pelos espanhóis ou, só conhece a propriedade fundada no trabalho pessoal; menciona
se ficam nelas, extinguem-se com uma rapidez assombrosa"'64). É ainda o artesanato como ocupação subsidiária da agricultura; procura
preciso admirar na realidade pôr fim ao poder económico dos brâmanes, quer dizer dos sacerdotes,
só lhes permitindo receber como ofertas bens móveis. Os futuros
príncipes indígenas, os "rajás", não figuravam neste código senão
63 — Zurita, p. 341.
64 — "Memorial que presenta a su Majestad el licenciado Juan Orter de como chefes eleitos de tribos. Os dois códigos mais recentes, o
Cervantes Abogado y Procurador general dei Reyno dei Peru y Yadjnavalkia e o Narada, do século V, con-
encomenderos, sobre pedir remédio dei danno y disminución de los indios",
Anno MDCXIX (1619), citado por Kovalevsky, p. 61.

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sideram também a organização social na associação de linhagem e a fenómeno foi característico do destino de todas as sociedades
força pública, tal como a justiça, estão aqui nas mãos da assembleia Orientais.
da comunidade. Esta é responsável solidariamente pelos delitos e
<65) A questão vital para toda a agricultura um pouco avançada,
crimes dos seus membros. À cabeça da aldeia está um chefe eleito.
na maior parte das regiões do Oriente, é a irrigação artificial. Também
Esses dois códigos aconselham a escolher, para exercerem esta
na Índia, como no Egito, vemos temporariamente, como fundamento
função, os homens mais justos e mais pacíficos e a prestar-lhes
sólido da agricultura, grandiosas obras de irrigação, canais,
obediência incondicional. O código Narada distingue duas espécies de
perfurações ou medidas sistemáticas para adaptarem a agricultura às
comunidades: os "parentes", isto é as comunidades baseadas na
cheias periódicas. Estes grandes empreendimentos ultrapassavam de
linhagem, e os "co-habitantcs", isto é as comunidades de vizinhança.
antemão as forças, a iniciativa e o plano económico das comunidades
Os dois códigos só reconhecem a propriedade fundada no trabalho
agrárias isoladas. Para as dirigir e levar a cabo era necessária uma
pessoal: uma terra abandonada pertence a quem a toma para cultivo;
autoridade situada acima das comunidades de aldeia e que pudesse
um possessão ilegítima não é reconhecida, mesmo após três gerações,
unificar a mão-de-obra; também aí era necessário um domínio da
a menos que aí tenha havido trabalho pessoal.
natureza superior ao que podiam ter os camponeses cercados pelos
Até aqui, vimos pois o povo indiano viver nos mesmos laços limites das suas aldeias. Destas necessidades nasceu o papel
sociais e nas mesmas relações económicas primitivas durante milénios importante dos sacerdotes no Oriente: observando a natureza que
no território Hindu e seguidamente na época heróica da conquista do acompanha qualquer religião natural, liber-tando-se da participação
território dos Ganges, narrada nas grandes epopeias populares do direta nos trabalhos agrícolas, eram os mais aptos para dirigir os
Ramayana e do Mahabharata. Não é senão com os comentários destes grandes trabalhos públicos de irrigação. Este papel puramente
velhos códigos, comentários que são sempre o sintoma característico económico conduziu naturalmente e com o tempo a um poder social
de modificações sociais e do esforço para rebater e interpretar antigas particular dos sacerdotes; a especialização de uma fração da
concepções jurídicas em função de novos interesses, não é senão pois sociedade, resultante da divisão do trabalho, transformou-se numa
com os comentários que datam do século XIV que se pode provar que casta hereditária à parte, com os seus privilégios e os seus interesses
nesta época a sociedade indiana passara por profundas transformações de exploradores face à massa camponesa. Este processo realizou-se
sociais. Entretanto, formou-se uma influente casta de sacerdotes que mais ou menos depressa, mais ou menos radicalmente segundo os
se eleva material e juridicamente da massa camponesa. Os povos, permanecendo no estado embrionário, como entre os índios
comentadores — tal como os seus colegas cristãos no Ocidente feudal peruanos, ou dando origem a uma teocracia, como entre os antigos
— trataram de interpretar a linguagem clara dos antigos códigos para hebreus e no Egito, de acordo com as circunstâncias geográficas e
justificarem a propriedade de bens de raiz dos sacerdotes, encorajarem históricas particulares, de acordo com as lutas com os povos
as dádivas de terras aos brâmanes e estimularem assim a divisão das circunvizinhos fazendo desenvolver-se,
terras das comunidades e a formação da grande propriedade dos
sacerdotes à custa da massa camponesa. Este 65 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): 1) Construção .

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ao lado da casta dos sacerdotes, uma poderosa casta guerreira rival na índia ainda por meados do século XIX dispõcm-sc pela ordem
dos sacerdotes. Em todos os casos, os limites específicos da antiga histórica seguinte:
comunidade comunista, cuja organização era inapta para as
1. A forma mais antiga é a pura comunidade de linhagem que
importantes tarefas de natureza económica ou política, obrigavam-na
engloba o conjunto dos parentes consanguíneos (um clã), possui em
a aceitar, fora ou por cima dela, a dominação de poderes que
comum o solo e cultiva-o também em comum. Os campos também
assumiam estas funções. Estas funções abriam tão seguramente a via
são, portanto, indivisíveis e somente são repartidos os frutos das
à dominação política e à exploração económica das massas
colheitas reunidos em celeiros comunitários. Este tipo de comunidade
camponesas que os conquistadores bárbaros do Oriente — quer
de aldeia, o mais primitivo, apenas se manteve em poucas regiões da
fossem os mongóis, os persas ou os árabes — sempre se apoderaram
índia; os seus habitantes estavam entretanto limitados mais
no país conquistado, além do poder militar, da direção dos grandes
frequentemente a alguns ramos (putíi) da antiga gens. Kovalevsky vê
trabalhos públicos, condição vital da agricultura. Tal como os incas
aí, por analogia com a Zadruga de Bósnia-Herzegovina, o produto da
no Peru consideravam seu privilégio, mas também seu dever, ter a
dissolução dos laços de sangue que, por causa do crescimento da
orientação dos trabalhos de irrigação e da construção das estradas e
população, se dividiram em algumas grandes famílias que se
pontes, as dinastias de déspotas asiáticos que se sucederam na índia
separaram com as suas terras. Em meados do século passado, havia
no decorrer dos séculos também tiveram essa preocupação .
importantes comunidades de aldeia deste tipo, algumas das quais
Apesar da formação de castas, apesar da dominação estrangeira tinham 150 membros, outras 400 membros. O que predominava,
que se instaurava no país, apesar das convulsões políticas, a aldeia entretanto, eram as pequenas comunidades de aldeia que só se
indiana continuava a levar a sua existência tranquila e modesta. No reuniam em mais amplas comunidades, do tamanho da antiga gens,
interior de cada aldeia, as regras tradicionais continuavam a reger a em casos excepcionais, por exemplo para cederem uma parte da sua
comunidade; sob as tempestades da história política, tinham a sua propriedade de bens de raiz. Normalmente levavam uma vida isolada
própria história interior imperceptível, aboliam antigas formas, e estritamente regulamentada que Marx descreve brevemente em O
passavam pela prosperidade, pelo declínio, pela dissolução e pelo Capital, segundo fontes inglesas <66>.
renascimento. Nenhum cronista registrou estes fenómenos; enquanto "Estas pequenas comunidades indianas, cujos traços podemos
a história universal descreve a audaciosa expedição de Alexandre, da seguir até aos tempos mais recuados, e que ainda existem em parte,
Macedónia às fontes do Indo, e faz evocar o barulho das armas do são fundadas na possessão comum do solo, na ligação direta entre a
cruel Tamerlão e dos mongóis, cala-se sobre a história económica agricultura e o artesanato e numa rigorosa divisão do trabalho que
interna do povo indiano. Só alguns vestígios nos permitem reconstruir serve de plano e de modelo sempre que se formam novas
o esquema hipotético desta evolução da comuna indiana e comunidades. Estabelecidas num terreno que compreende de um a
Kovalevsky tem o mérito de ter resolvido esta importante tarefa alguns milhares de acres <67),
científica. Segundo Kovalevsky, os diferentes tipos de comunidades
agrárias observados
66 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): James Mill!
67 — 1 acre = 40,5 ares = 4.050 m?.

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constituem organismos de produção completos, que suprem a si Uma nova comunidade segundo o modelo das antigas e estala ilccc-
próprios. A maior parte do produto é destinada ao consumo imediato se num terreno não cultivado. . . A lei que regula a divisão do
da comunidade; ela não se torna de modo algum mercadoria, porque, trabalho da comunidade, age com a autoridade inviolável de uma lei
a produção é independente da divisão do trabalho ocasionado pela física... A simplicidade do organismo as comunidades auto-
troca no conjunto da sociedade indiana. Somente o excedente dos suficientes, que se reproduzem constantemente sob a mesma forma e,
produtos se transforma em mercadoria e vai em primeiro lugar para as uma vez destruídas aciden-tilmente, se reconstituem no mesmo lugar
mãos do Estado ao qual, desde os tempos mais recuados, pertence e com o mesmo nome, dá-nos a chave da "imutabilidade das
uma certa parte a título de renda em produtos agrícolas. Estas sociedades asiá-licas", imutabilidade que contrasta de uma maneira
comunidades revestem diversas formas em diferentes partes da Índia. tão estranha com a dissolução e reconstrução incessantes dos "Esta-
Sob a forma mais simples, a comunidade cultiva o solo em comum e dos" asiáticos e as mudanças violentas das suas dinastias. A
distribui os produtos entre os seus membros, enquanto cada família se i s i m t u r a dos elementos económicos fundamentais da sociedade
ocupa dos trabalhos domésticos, tais como fiação, tecelagem, etc. Ao fica fora dos ataques de todas as tormentas políticas" (68).
lado desta massa ocupada de maneira uniforme, encontramos o 2. Na época da conquista inglesa, a comunidade pri-miiiva de
habitante principal, juiz, chefe de polícia e cobrador de impostos, linhagem com as suas terras indivisíveis estava em grande parte
tudo reunido numa mesma pessoa; o contabilista, que regula as contas dissolvida. Da sua dissolução tinha surgido uma lomunidade fundada
da agricultura e do cadastro e registra tudo o que se relaciona com ela; no parentesco em que os campos estavam distribuídos em lotes
um terceiro empregado, que persegue os criminosos e protege os familiares desiguais cuja dimensão dependia do grau de parentesco
viajantes estrangeiros que acompanha de uma aldeia a outra; o guarda com os antepassados primitivos. Esta forma estava difundida no
da fronteira que impede as invasões das comunidades vizinhas; o noroeste da Índia e no Punia b. As parcelas não são distribuídas nem
inspetor das águas que distribui a água dos reservatórios comuns vitalícia nem here-dilariamente, permanecem na posse das famílias
segundo as necessidades da agricultura; o brâmane, que executa as até que o cres-eimento da população ou a necessidade que delas têm
funções do culto; o mestre-escola, que ensina as crianças da os parentes ausentes temporariamente não obrigue a uma nova dis-
comunidade a ler e a escrever na areia; o brâmane-calendário que, na tribuição. Frequentemente, não se satisfaziam novos pedidos de
qualidade de astrólogo, indica as épocas das semeaduras e das redistribuição não atribuindo senão novas parcelas da parte não
colheitas assim como as horas favoráveis ou funestas aos diversos cultivada do território. Deste modo, as parcelas familiares tornaram-
trabalhos agrícolas; um ferreiro e um carpinteiro que fabricam e se — se não por direito, pelo menos de fato — parcelas vitalícias ou
reparam todos os instrumentos da agricultura; o oleiro que faz toda a mesmo hereditárias. Ao lado destes campos distribuídos
louça da aldeia; o barbeiro, o tintureiro, o ourives, e por vezes, o desigualmente, as florestas, os pântanos, os prados, as terras incultas
poeta que, em algumas comunidades, substitui o ourives e, em outras, permanecem propriedade comum de todas as famílias e estas
o mestre-escola. Esta dúzia de personagens manteve-se a expensas da utilizam-nas em comum. Esta curiosa
comunidade. Se a população cresce, funda-se

68 — Karl Marx, O Capital, Livro I p. 321.


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organização comunista baseada na desigualdade entrou com o tempo Iganização económica comunista que entra cm conflito com
em contradição com novos interesses. Com cada nova geração, capitalismo europeu. O nosso quadro dos destinos agitados
tornou-se cada vez mais difícil determinar o grau de parentesco de a comunidade agrária não estaria completo se não tomássemos em
cada um, a tradição dos laços de sangue enfra-queceu-se e a consideração, para terminar, o exemplo notável de um país em que a
desigualdade entre as parcelas familiares mos-trou-se cada vez mais história seguiu aparentemente um caminho completamente diferente,
como uma injustiça para aqueles que estavam em desvantagem. Por em que o Estado, com efeito, não se esforçou por destruir pela
outro lado, em muitas regiões, a emigração de uma parte dos parentes, violência a comunidade camponesa, mas pelo contrário por a salvar e
as guerras e o extermínio de uma outra parte da população por a conservar por iodos os meios. Este país é a Rússia czarista.
estabelecida, a instalação e a incorporação de novos recém-chegados Não nos ocupamos aqui da grande questão teórica que se
conduziram inevitavelmente a uma mistura da população. Apesar da prolongou durante décadas a propósito da origem da comunidade
aparente imutabilidade das relações, as terras são divididas em camponesa russa. Era absolutamente natural e está completamente de
diferentes categorias segundo a sua qualidade e cada família recebe acordo com a mentalidade geral da ciência burguesa atual, hostil ao
diferentes parcelas, tanto das melhores irrigadas <69> como das piores comunismo primitivo, que a descoberta f e i t a em 1858 pelo professor
(70
>. Inicialmente, pelo menos antes da conquista inglesa, não se russo Tchitcherin e segundo a qual a comunidade agrária na Rússia
procedia periodicamente a uma nova distribuição por sorteio, mas não é um produto histórico originário, mas um produto artificial da
somente quando o crescimento natural da população tinha conduzido a política fiscal dos czares, encontra um acolhimento favorável entre os
uma desigualdade efe-tiva na situação económica das famílias. Era o cientistas alemães e descobre a sua aprovação. Tchitcherin, que nos
caso, em particular, nas comunidades que tinham reservas de terras prova mais uma vez que os sábios liberais são frequentemente muito
cultiváveis. Nas comunidades menores procedia-se a uma redistri- mais inaptos como historiadores do que os seus colegas reacionários,
buição todos os dez, oito ou cinco anos, muitas vezes todos os anos. A admite para os russos a teoria, definitivamente abandonada desde
redistribuição tinha lugar anualmente, sobretudo onde a falta de terras Maurer para a Europa Ocidental, segundo a qual as comunidades só se
boas tornava impossível uma distribuição igual entre todos os formaram nos séculos XVI e XVII a partir de explorações individuais
membros, onde uma equalização não podia portanto resultar senão da isoladas. Tchitcherin faz derivar a exploração comum dos campos da
rotação na utilização das terras. A comunidade indiana de linhagem mistura das terras, a propriedade comum dos conflitos de limites, os
em vias de decomposição termina na forma de que se reveste poderes públicos exercidos pela comunidade da sua responsabilidade
historicamente a comunidade germânica nas suas origens. fiscal coletiva para os impostos pessoais introduzidos no século XVI;
Vimos nas Índias britânicas e na América <71' dois exemplos coloca pois praticamente, com o maior liberalismo, de cabeça para
clássicos da luta desesperada e do trágico fim da velha baixo todas as relações históricas de causa a efeito.
Pense o que se pensar da antiguidade e da origem da co-
69 — Sholgwa. (N. T.) munidade camponesa na Rússia, o certo é que esta sobrevive
70 — Culmee. (N. T.)
71 — No original encontra-se Argélia o que é evidentemente um erro.
(N. T.)
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até estes últimos tempos a toda a longa história da servidão e à sua na Alemanha como na África, nas margens do Ganges ou no Peru. Os
abolição. Apenas nos interessamos aqui dos seus destinos no século campos eram distribuídos enquanto a floresta, os piados e as águas
XIX. constituíam o território comum indivisível. Com o predomínio
Quando o czar Alexandre II levou a cabo a sua "libertação dos generalizado do ajolhamento <72) trienal, ;is terras do Inverno e de
camponeses", os senhores venderam-lhes as suas próprias terras — Verão eram distribuídas segundo a qualidade do solo, e estas
todavia segundo o modelo prussiano — pelo que os senhores foram categorias por sua vez divididas em faixas. Distribuía-se por hábito os
largamente indenizados em títulos pelo fisco pelas piores partes das campos de Verão em Abril e os de Inverno em Junho. A observação
supostas terras senhoriais e impuseram aos camponeses, para a terra meticulosa da igualdade na distribuição levou a uma tal confusão que,
"emprestada", uma dívida (de 900 milhões de rublos) que devia por exemplo no governo de Moscou, havia em média onze espécies
amortizar-se em 49 anos em amortizações de 6%. Estas terras não de campos de Verão e onze de Inverno e cada camponês tinha de
foram atribuídas, como na Prússia, como propriedade privada às famí- cultivar pelo menos vinte e duas parcelas dispersas. A comuna punha
lias; foram entregues a comunidades inteiras como propriedade coletiva de parte terras que se cultivavam em caso de necessidades coletivas
inalienável. As comunas eram solidariamente responsáveis pelo excepcionais, ou então armazenavam-se provisões em entrepostos de
pagamento da dívida e pelo pagamento de todos os impostos e tributos reserva aos quais cada um devia entregar a colheita. Velava-se pelo
e eram livres de os repartir entre os seus diferentes membros. No progresso técnico da exploração autorizando-se cada família
começo da década de 1890, a distribuição do conjunto das terras na camponesa a conservar a sua parte durante dez anos com a condição
Rússia europeia (sem a Polónia, a Finlândia e o território dos cossacos de a adubar, ou então punha-se de parte parcelas que se adubavam e
do Don) era a seguinte: os domínios do Estado que se compunham que não eram distribuídas senão cada dez anos. Frequentemente, os
essencialmente das imensas florestas do Norte e de terras desérticas, campos de linho, os pomares e hor-las estavam submetidos à mesma
englobam 150 milhões de deciatines (1 deciatine = 1,09 hectares), os regra.
privilégios imperiais 7 milhões, a Igreja e as cidades não possuíam
menos de 9 milhões, 93 milhões eram propriedade privada, dos Distribuir os rebanhos da comuna pelos diferentes prados OU
quais somente 5% pertencia aos camponeses e o restante à nobreza; pastagens, contratar pastores, cercar as pastagens, proteger os
mas 131 milhões de deciatines eram propriedade camponesa campos, fixar a data dos diferentes trabalhos, o modo de distribuição
coletiva. Ainda em 1900, 122 milhões de hectares eram propriedade e a sua data, tudo isto era assunto da comuna, quer dizer da
coletiva dos camponeses e somente 22 milhões propriedade assembleia da aldeia. No que respeita à frequência das redistribuições
camponesa individual. reinava a maior diversidade. Em 1877, num só governo, o de Saratov
Se examinarmos o modo como o campesinato russo explorou por exemplo, de 278 comunidades de aldeia estudadas, perto de
esse enorme território até estes últimos tempos e mesmo, em parte, metade procedia anualmente ao sorteio, as outras cada dois, três,
ainda hoje, reconhece-se facilmente as instituições típicas da cinco, seis, oito
comunidade agrária tal como eram correntes tanto
72 — Divisão do terreno em folhas ou porções para alternar as Culturas.
(N. R.)

230 231
ou onze anos, enquanto 38 comunidades que praticavam a adu-bagem linde fiscal assim calculada. A distribuição do solo na Rús-I.I linha
tinham renunciado completamente às redistribuições <73>. por fundamento desde 1861 o pagamento dos impos-toa e não a
alimentação dos camponeses; não era um benefício IO qual cada
O modo de distribuição do solo é o que há de mais notável na
propriedade tinha direito, mas uma obrigação iiiiposta a cada membro
comunidade agrária russa. Não temos aqui nem o princípio de lotes
da comunidade, como um serviço de l stado. Em consequência, nada
iguais como entre os germanos, nem o da importância das
de mais original que uma as-icmbléia de aldeia russa que procedia à
necessidades familiares como entre os peruanos, mas unicamente o
repartição do solo. Podiam-se ouvir protestos de todos os lados contra
princípio do poder fiscal. Os problemas fiscais dominavam toda a
vida da comunidade camponesa desde a "libertação dos camponeses"; a atribui-de tão grandes lotes; as famílias pobres, sem verdadeira
todas as instituições da aldeia giravam à volta dos impostos. Na m;n)-de-obra e cujos membros eram sobretudo mulheres e crianças
verdade, para o governo czarista, o único fundamento da imposição pequenas, viam-se completamente dispensadas de lo-tes c dada a
eram as "almas recenseadas", quer dizer todos os habitantes varões da massa dos camponeses pobres, os maiores lotes eram distribuídos aos
comunidade sem distinção de idade, tal como eram determinados ricos. O encargo fiscal que está no centro da vida das comunidades
quase todos os 20 anos pelos célebres "Recenseamentos", desde o russas é além disso enorme. \ dívida a resgatar, juntava-se o imposto
primeiro recenseamento camponês de Pedro o Grande; estes per capita, o impos-to comunal, o imposto de igreja, o imposto sobre
"recenseamentos" eram o terror do povo russo; aldeias inteiras o sal, etc. Nos anos 1880, aboliram-se o imposto per capita e o
punham-se em fuga perante eles <74>. imposto lobre o sal, mas a massa fiscal nem por isso ficou menos pe-
gada de modo que absorvia todos os recursos do campesinato.
O governo lançava impostos às aldeias segundo o número de
Segundo uma estatística dos anos 1890, 70% dos campone-ies
"almas" recenseadas. A comuna distribuía a soma global entre as
tiravam da sua parcela menos do mínimo vital, 20% estavam em
diferentes propriedades segundo a mão-de-obra e a porção de terra de
condições de se alimentarem a si próprios, mas não podiam criar
cada propriedade era medida pela capaci-
gado, e apenas 9% podiam vender um excedente Os atrasos de
impostos eram um fenómeno constante da aldeia russa, imediatamente
73 — Trirogov, p. 49. após a "libertação dos camponeses". Desde os anos 1870, uma
74 — O primeiro "Recenseamento", efetuado por disposição de um ukase (do
russo ukar, decreto — uma das categorias de leis dos séculos XVIII e XIX. Estes cobrança anual de impostos per capita de 50 milhões era
decretos distinguiam-se pelo fato de respeitarem um assunto determinado, tendo sido acompanhada por um atraso anual de 11 milhões de rublos. A miséria
muitas vezes a expressão do despo'ismo czarista. (N. T.) de Pedro em 1719, foi
organizado como uma espécie de expedição punitiva em país inimigo. Os militares da aldeia russa não cessou de aumentar após a supressão do imposto
foram instruídos no sentido de prenderem os governadores negligentes, detê--los nas per capita porque os impostos indiretos tornaram-se cada vez mais
suas próprias chancelarias até que se corrigissem. Os popes, que estavam encarregados
de efetuar as listas de camponeses, quando deixavam escapar "almas" deviam ser pesados. Em 1904, os atrasos de impostos ascendiam a 127 milhões
suspensos das suas funções e "após um castigo corporal impiedoso, deviam ser de rublos por causa da quase total impossibilidade de fazer com que
submefidos a uma pena de prisão qualquer que fosse a sua idade". As pessoas suspeitas
de esconderem "almas" eram submetidas à tortura. Posteriormente, os recenseamentos os camponeses os pagassem e ainda por causa da fermentação
foram conduzidos de maneira também sanguinária, ainda que com menos rigor. revolucionária.

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Depressa os impostos absorveram não tó todos os ganhos gemidos e o pranto das vítimas — a maior parte das vezes
da economia camponesa, mas também forçaram os camponeses chefes de família e até velhos de cabelos brancos — acompa-
a procurar ganhos à parte. Eram por um lado os trabalhos na nhavam as altas autoridades que, uma vez cumprida a punição,
época das colheitas que ainha hoje provocam na Rússia montavam na sua troika <75> para recomeçarem a mesma coisa
verdadeiras migrações de povos, em que os mais vigorosos em outra aldeia. Não era raro que camponeses se suicidassem
varões da aldeia vão empregar-se como jornaleiros nos grandes para escaparem a esta execução pública. Uma outra vantagem
domínios senhoriais, enquanto abandonam as suas próprias desta situação era a "mendicidade fiscal" de velhos camponeses
parcelas aos braços menos vigorosos da mão-de-obra feminina, pobres que partiam com o bastão de mendigo para juntarem as
das crianças ou dos velhos. Por outro lado, a cidade e a somas dos impostos exigidos e as entregar à aldeia. O Estado
indústria exerciam a sua atração. Formou-se nos centros vigiava com severidade e tenacidade a instituição das
industriais uma camada de trabalhadores eventuais que só vi- comunidades agrárias assim transformada em máquina de
nham às cidades no Inverno, sobretudo às fábricas têxteis, para extorquir impostos. A lei de 1881 dispõe que a terra camponesa
regressarem aos trabalhos dos campos da sua aldeia na não pode ser alienada por comunidades senão se dois terços dos
Primavera, levando para lá os seus ganhos. Em muitas regiões, camponeses assim o determinarem e é preciso ainda o
havia o trabalho industrial à domicílio ou os trabalhos agrícolas consentimento do Ministro do Interior, das Finanças e dos
anexos ocasionais como carregadores ou lenhadores. Apesar de Domínios. Os camponeses só podiam vender os seus bens
tudo isto, a massa dos camponeses mal podia subsistir. Não só adquiridos por herança a membros da sua comunidade; era
os frutos da agricultura, como também os ganhos industriais interdito hipotecar a terra camponesa. Sob o regime de
anexos, eram devorados pelos impostos. O Estado tinha Alexandre III, a comunidade de aldeia foi privada de toda a
fornecido meios coercitivos muito rigorosos para a comunidade autonomia e colocada sob a tutela dos "capitães rurais" —
que era solidariamente responsável pelos impostos dos seus instituição semelhante à dos conselheiros rurais na Prússia.
membros. Ela podia assalariar no exterior os membros que Qualquer decisão da assembleia de aldeia devia ter o
estavam em atraso e embolsar o dinheiro ganho; concedia ou assentimento destes funcionários. As distribuições de terras
recusava aos seus membros o passaporte sem o qual o faziam-se sob a sua vigilância, bem como a repartição dos
camponês não se podia afastar da sua aldeia. Ela tinha o direito impostos e a sua cobrança. A lei de 1893 fez algumas con-
de castigar fisicamente os recalcitrantes. cessões não autorizando as repartições de terras senão de doze
A aldeia russa oferecia periodicamente em todo o vasto em doze anos. Ao mesmo tempo, apenas se podia deixar a
território russo um quadro muito peculiar. À chegada dos co- comunidade com o assentimento da comuna e com a condição
bradores de impostos à aldeia iniciava-se um procedimento para de ter pago completamente a sua dívida.
o qual a Rússia czarista inventou um termo técnico significando Apesar destes vínculos criados artificialmente pela lei à
"extorsão de impostos atrasados através dos golpes". A assem- volta da comunidade de aldeia, apesar da tutela de três mi-
bleia de aldeia reunia-se e os "retardatários" deviam tirar as nistérios e de um enxame de tchinovniks (76) já não era possí-
calças, deitar-se no banco e os seus próprios companheiros de
aldeia chicoteavam-nos até sangrarem, um após outro. Os 75 — Veículo russo puxado por três cavalos. (N. T.)
76 — Funcionários russos. (N. T.)

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vel impedir a desagregação da comunidade de aldeia. O encargo fiscal
bres. Mesmo onde não saíam formalmente da comunidade, os
asfixiante, o declínio da economia camponesa por causa dos ganhos
camponeses ricos — que eram numa grande parle lambem os
anexos agrícolas e industriais, a falta de terras, em particular de
usurários — formavam na comunidade, face aos camponeses pobres,
pastagens e de florestas que a nobreza frequentemente tinha anexado
o poder dominante que sabia contornar as resoluções adotadas pelos
desde a distribuição, a falta de campos cultiváveis, agora que a
camponeses endividados e dependentes.
população crescia, tudo isto engendrou dois tipos de fenómenos
Constituia-se assim no seio da comunidade, fundada for-
decisivos na vida da aldeia: a fuga para a cidade e o aparecimento da
malmente na igualdade e na propriedade comum, uma nítida
usura na aldeia. Na medida em que a porção de terra e os ganhos
separação em classes: de um lado uma burguesia de aldeia pouco
anexos industriais ou outros só serviam cada vez mais para pagar os
numerosa mas influente e do outro uma massa de camponeses
impostos sem nunca os saldar verdadeiramente e sem poder prover as
dependentes e, de fato, proletarizados. O declínio interno da
necessidades mais elementares, o fazer parte da comunidade
comunidade de aldeia que sufoca sob o peso dos impostos, devorada
converteu-se numa corrente à volta do pescoço do camponês
pelo usurário, internamente dividida, acabou por se manifestar à luz
esfomeado. E a aspiração natural para os mais pobres era
do dia. Fomes e revoltas camponesas converteram-se na Rússia nos
escapar a esta corrente. A polícia interceptava como vagabundos sem
anos de 1880 em fenómenos periódicos que afligiam os governos do
passaporte centenas de fugitivos, entre-gando-os à sua comunidade
interior de modo tão inexorável como os cobradores de impostos e o
cujos membros os fustigavam imediatamente como exemplo. As varas
exército encarregado de "acalmar" a aldeia. Os campos russos
e o passaporte obrigatório eram impotentes contra o êxodo maciço dos
tornaram--se o palco de fomes horrorosas e de lutas sangrentas. O
camponeses que fugiam durante a noite e entre o nevoeiro do inferno
mu-jique russo conhecia a mesma sorte que o camponês indiano e
do "comunismo de aldeia" para irem para a cidade e aí desaparecerem
Orissa chamou-se aqui Saratov, Samara, e assim por diante ao longo
definitivamente no oceano do proletariado industrial. Outros, cujos
do Volga w. Quando finalmente em 1904 e 1905 a revolução do
vínculos familiares ou outras circunstâncias tornavam a fuga
proletariado urbano rebentou na Rússia, os tumultos camponeses
impossível, procuravam sair da comunidade por meios legais. Era
caóticos caíram pela primeira vez com todo o seu peso na balança da
preciso para isso pagar a sua dívida, e aí. . . o usuário vinha em socorro.
revolução e a questão agrária tornou-se a questão central da
Muito cedo os impostos e a venda forçada do seu trigo nas piores
revolução. Agora que os camponeses penetravam como uma vaga
condições fizeram o camponês russo recorrer ao usurário. Toda a
irresistível nos domínios nobres e ateavam fogo aos refúgios dos
catástrofe, toda a má colheita tornavam inevitável o recurso ao
nobres, agora que o partido dos trabalhadores exprimia a miséria do
usurário. Para se libertar do jugo da comunidade, não havia outro
campesinato formulando a reivindicação revolucionária da
meio senão submeter-se ao jugo do usurário. Enquanto os
expropriação dos grandes domínios sem indenização e da sua entrega
camponeses pobres procuravam escapar da comunidade, os
aos camponeses, o czarismo abandonou finalmente a política agrária
camponeses ricos voltavam-lhe frequentemente as costas e saíam para
que praticava obstinadamente desde há séculos. A comunidade
escaparem à penosa responsabilidade coletiva do imposto dos po-
agrária já não podia ser salva da ruína; era preciso renunciar a ela.
77 — Porvus e Lehmann.
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Desde 1902 que se tinha dado uma machadada nas próprias prosperidade material e intelectual da sociedade, a comunidade
agrária tornou-se um instrumento de atraso político e económico. O
raízes da comunidade de aldeia especificamente russa: a
camponês russo vergastado pelos membros tia sua própria
responsabilidade coletiva para os impostos tinha sido abolida. Na
comunidade ao serviço do absolutismo czarista, constitui a mais cruel
verdade, esta medida tinha sido preparada ativamente pela política
crítica histórica dos estreitos limites do comunismo primitivo e a
financeira do próprio czarismo. O fisco podia facilmente renunciar à
expressão mais evidente de que a forma social está também
responsabilidade coletiva para os impostos diretos, tendo os impostos
submetida à regra dialética: a razão tor-na-se contra-senso e o
indiretos atingidos tais proporções que no orçamento de 1906, por
benefício toma-se calamidade.
exemplo, sobre uma entrada global de 2.030 milhões de rublos, 148
milhões provenientes somente dos impostos diretos e 1.100 milhões Quando se examina atentamente os destinos da comunidade
dos impostos indiretos, dos quais só 558 milhões correspondiam ao agrária nos diferentes países e continentes, dois fatos saltam à vista.
monopólio dos espirituosos, introduzido pelo ministro "liberal" Witte Longe de ser um modelo imutável e rígido, esta forma última e mais
para combater o alcoolismo. Uma entrada pontual destes impostos era elevada do sistema económico comunista primitivo manifesta antes de
assegurada pela miséria, desprezo e ignorância das massas tudo uma infinita diversidade, flexibilidade e capacidade de adaptação
camponesas. Em 1905 e 1906, a dívida camponesa para o resgate das ao meio histórico. Em cada meio e em todas as circunstâncias, ela
terras foi reduzida à metade, e em 1907 foi completamente liquidada. passa por um insensível processo de transformação que se opera tão
lentamente que de início não se evidencia no exterior; ele substitui no
A "reforma agrária" de 1907 fixava-se abertamente com o objetivo da
interior da sociedade as velhas estruturas por novas sob todas as
criação da pequena propriedade privada camponesa. O meio devia ser
superestruturas políticas das instituições estatais indígenas ou
o parcelamento dos domínios e privilégios do Estado e de uma parte
estrangeiras, na vida económica e social e está permanentemente
da grande propriedade latifundiária. Assim, a revolução proletária do
nascendo ou desaparecendo,, desenvolvendo ou sucumbindo .
século XX liquidou ela própria na sua primeira fase inacabada, e ao
mesmo tempo, os últimos restos da servidão e a comunidade agrária Graças à sua elasticidade e à sua capacidade de adaptação, esta
artificialmente mantida pelo czarismo. forma de sociedade é de uma tenacidade e de uma rigidez
extraordinária. Ela desafia todas as tempestades da história política,
ou antes suporta a todas, deixa-as passar sobre ela e sofre
II pacientemente durante séculos a pressão das conquistas, dos
despotismos, das dominações estrangeiras, das explorações. Só há um
Com a comunidade de aldeia russa, o destino movimentado do contato que ela não suporta e ao qual não sobrevive: o da civilização
comunismo agrário primitivo completa-se, o círculo volta a fechar-se. europeia, isto é do capitalismo. Por todo o lado, sem exceção, o
Inicialmente, produto natural da evolução social, como a melhor choque com este último é mortal à antiga sociedade e conduz ao que
garantia do progresso económico e da milenários e selvagens conquistadores orientais não puderam realizar:
dissol-
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ver desde o interior esta estrutura social, romper os laços tradicionais
restas e as pastagens permanecem durante mais tempo l e i r a s
e transformar a sociedade num montão de ruínas informes. comunais enquanto os campos cultivados mais intensivamente, abrem
O sopro mortal do capitalismo europeu é apenas o último fator, a via à distribuição do território comum e ao bem hereditário. A
não o único, que torna inevitável, mais ou menos a longo prazo, o propriedade privada das parcelas de terra arável não elimina portanto
declínio da sociedade primitiva. Os germes estão presentes no interior a organização coletiva da economia, man-tém-se durante muito
desta sociedade. Se resumirmos as diferentes vias do seu declínio, tal tempo pelo entrelaçamento das parcelas e a comunidade das florestas
como as estudamos em diferentes exemplos, daí resulta uma certa e das pastagens. A igualdade económica e social não é eliminada na
sucessão histórica. A propriedade comunista dos meios de produção, antiga sociedade. Cons-titui-se inicialmente uma massa de pequenos
fundamento de uma economia rigorosamente organizada, assegurou camponeses que têm as mesmas condições de vida e podem viver e
durante longas épocas a maior produtividade do trabalho e a melhor trabalhar durante séculos segundo as antigas tradições. A porta está
segurança material à sociedade. O lento mas seguro progresso da no entanto aberta à desigualdade pelo caráter hereditário dos bens,
produtividade do trabalho devia necessariamente entrar em conflito pelo morgadio e pela possibilidade de alienar os bens dos
com a organização comunista. Logo que se realizou no seio desta camponeses.
organização o progresso decisivo da passagem à agricultura superior Não foi senão muito lentamente que este processo minou a
— ao uso da charrua — e a comunidade agrária adquiriu sobre esta organização tradicional da sociedade. Encontram-se em ação outros
base formas estáveis, o progresso na evolução da técnica de produção fatores históricos que agem muito mais rápida e radicalmente: são as
exigia uma cultura mais intensiva do solo; esta, por sua vez, não despesas públicas cada vez mais importantes que ultrapassam os
podia ser obtida neste estágio da técnica agrícola senão pela pequena estreitos limites naturais da comunidade agrária. Vimos já a
exploração intensiva, por uma ligação mais estreita e mais sólida da importância decisiva da irrigação artificial para a cultura dos campos
força de trabalho pessoal com o solo. A utilização mais durável de no Oriente. Esta intensificação do trabalho e este poderoso
uma mesma parcela só por uma mesma família camponesa converteu- crescimento da produtividade tiveram resultados muito maiores que a
se na condição de uma cultura mais cuidada. A adubagem em introdução da adubagem no Ocidente. Os trabalhos de irrigação
implicam, à partida, o trabalho em grande escala, a grande empresa.
particular é uma causa reconhecida de redistribuições menos
Os organismos correspondentes não existem no seio da comunidade
frequentes das terras tanto na Alemanha como na Rússia. De um
agrária, é preciso para isso criar organismos especiais, acima dessa
modo geral, a tendência para as redistribuições cada vez mais
comunidade. Sabemos que a direção dos trabalhos públicos de
espaçadas aparece por todo o lado nas comunidades agrárias o que
condução da água foi a raiz mais profunda da dominação dos
tinha por consequência a substituição do sorteio pela transmissão
sacerdotes e de todas as dominações orientais. Também no Ocidente
hereditária. A passagem da propriedade coletiva à propriedade
há diversos assuntos públicos que, por muito simples que sejam em
privada dá-se paralelamente a intensificação do trabalho, e por todo o
comparação com a organização atual do Estado, devem no entanto
lado as flo-
ser solucionados na sociedade primitiva, multiplicam-se com a
evolução e o

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progresso desta sociedade e exigem por consequência, com o tempo, A divisão do trabalho no seio da sociedade primitiva conduziu
organismos especiais. Por todo o lado — na Alemanha ou no Peru, mais ou menos depressa à inevitável ruptura cia igualdade política e
nas Índias ou na Argélia — constatamos que a passagem da económica. Uma função de carátei público que desempenha neste
eletividade à hereditariedade das funções públicas na sociedade processo um papel particularmente re-lrvante e realiza esta obra
primitiva é um traço geral da evolução. muito mais energicamente do que as funções públicas de caráter
pacífico: é a condução da guerra. A princípio é uma função de toda a
Esta transformação, que se produz lenta e imperceptivel-mente,
sociedade, mas com 0 lempo, e como resultado dos progressos da
não representa uma ruptura com os fundamentos da sociedade
produção, torna se a especialidade de certos meios da sociedade
comunista. A transmissão hereditária das funções públicas resulta
primitiva. Quanto mais desenvolvido, regular e planificado é o
inicialmente de forma natural da circunstância de na sociedade
processo de trabalho da sociedade tanto menos suporta a
primitiva, a tradição e a experiência pessoal assegurarem melhor a
irregularidade t as perdas de tempo e de energia ligadas à vida militar.
boa execução do trabalho. Com o tempo, a transmissão hereditária
Se as expedições guerreiras periódicas são um resultado direto do
das funções em certas famílias conduz inevitavelmente à formação de
uma pequena aristocracia indígena, cujos membros se convertem de sistema económico entre os povos caçadores e criadores de rado, a
servidores da comunidade em seus dominadores. As terras não di- agricultura, ligada a uma grande passividade da sociedade, exige
vidida, o ager publicus dos romanos, de cujos poderes públicos são tanto mais a existência de uma casta particular de guerreiro para a sua
diretamente responsáveis, serviram em particular de fundamento defesa. A vida guerreira — expressão dos estreitos limites da
económico à formação desta nobreza. O roubo das terras não produtividade do trabalho — desempenha um grande papel entre
divididas ou incultas é o método regularmente utilizado pelos todos os povos primitivos e acarreta um novo tipo de divisão do
dominadores indígenas ou estrangeiros que se elevam acima da massa trabalho. A segregação de uma nobreza guerreira ou de chefes
dos camponeses e os subjugam. Quando se trata de um povo que vive guerreiros constitui 0 c hoque mais forte ao qual a igualdade social
à margem das grandes vias da civilização, a nobreza primitiva mal tem de fazer Pace na sociedade primitiva. Por todo o lado onde
pode distinguir-se da massa no seu modo de vida, no entanto deve encontramos sociedades primitivas, não encontramos quase nunca
participar no processo de produção e mascarar a diferença da riqueza estas relações de homens iguais e livres que Morgan pôde descrever-
com uma certa simplicidade democrática: a aristocracia Yakute, por nos entre os Iroqueses. A desigualdade e a exploração, tais são os
exemplo, é somente mais rica em cabeças de gado e mais influente caracteres das sociedades primi-livas que se nos apresentam como
nos assuntos públicos. Se a isso for acrescentado um contato com produto de uma longa época de decomposição, quer se trate das
povos mais civilizados e trocas ativas, as necessidades da nobreza castas dominantes ilo Oriente ou da aristocracia Yakute, dos "grandes
tomam-se mais refinadas, desabitua-se do trabalho e opera-se uma clãs" ( V i l a s escoceses, ou da nobreza guerreira dos gregos, dos ro-
verdadeira diferenciação de castas na sociedade. A Grécia dos tempos manos, dos germanos da época das grandes migrações ou dos
pós-homéricos é disso o exemplo mais típico. pequenos déspotas dos reinos negros da África.

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Consideremos por exemplo o célebre Império de Muata "O funeral dos chefes é acompanhado entre os Chewa l>oi
Kasembe, no centro da África do Sul, no Leste do Império cerimónias extremamente bárbaras. As mulheres do de-liiiilo
Lunda, onde os portugueses penetravam no início do século são fechadas na mesma cubata que o cadáver até que nulo
esteja pronto para o funeral. Em seguida, o cortejo fúnebre põe-
XIX; encontramos aqui, mesmo neste território onde os euro-
se em marcha... até à sepultura e, chegado aí, a mulher preferida
peus mal penetraram, relações sociais que não deixam muito
do defunto desce até à sepultura com sete outras mulheres que
lugar à igualdade e à liberdade. A expedição do Major Mon-
se deitam aí com as pernas escondidas. ( obre-se esta base viva
teiro e do Capitão Gamitto, empreendida em 1831, a partir do
com trapos, põe-se por cima o cadáver e deitam-se na sepultura
Zambeze em direção ao interior, com fins comerciais e cien-
seis outras mulheres a quem ante-IÍOI mente se tinha cortado o
tíficos, descreve-nos a situação como se segue. A expedição
pescoço. Recobre-se então a sepultura e termina-se esta
chegou primeiramente ao país dos Malawi que praticavam uma pavorosa cerimónia empalando-se dois jovens, sendo um
agricultura primitiva de monda, habitavam em cubatas crónicas colocado com um tambor à cabeceira da sepultura e o outro
e só traziam uma tira de pano à volta dos quadris. Na época em com um arco e uma flecha aos pés. O Major Monteiro foi
que Monteiro e Gamitto atravessaram o país dos Malawi, estes testemunha de um tal funeral durante a tua estadia no país dos
eram dirigidos por um chefe despótico que ostentava o título de Chewa". Daí, a viagem continuou para as montanhas do centro
Nede. Arbitrava todas as querelas na sua capital, Mutzienda, e do Império. Os portugueses chega-ram "a uma região elevada,
ninguém podia contestar esta arbitragem. Por simples desértica e quase completamente desprovida de alimentos; via-se
formalidade, reunia um conselho de anciãos, mas era preciso os traços de destroços causados por expedições militares
que fossem sempre da sua opinião. O país com-punha-se de anteriores e a fome ameaçava a expedição. Enviaram-se
províncias dirigidas por Mambos, e estas províncias eram por mensageiros com alguns presentes ao Mambo mais próximo
sua vez divididas em distritos à cabeça dos quais se encontram para lhe pedir um guia, mas os enviados regressaram com a
Funos. Todas estas dignidades eram hereditárias.. "Em 8 de aterradora notícia de que tinham encontrado o Mambo e a sua
Agosto, atingiu-se a residência do Mukanda, o mais poderoso famíila sós na aldeia e quase a morrer de fome... Antes de ter
chefe dos Chewa. Este, a quem tinha sido enviado um presente alcançado o coração do reino, viram-se provas de bárbara justiça
de diversos tecidos de algodão, tecido vermelho, pérolas, sal e que aí se exercia; frequentemente encontravam-se jovens a quem
cauri <78> chegou no dia seguinte ao acampamento a cavalo num se tinham cortado as orelhas, as mãos, o nariz e outros
negro. Mukanda era um homem de sessenta a setenta anos, de membros, como punição de qualquer falta perdoável. . . Em 19
aspecto agradável e majestoso. O seu único vestuário era uma de Novembro pudemos finalmente entrar na capital e o burro que
tira de pano sujo à volta dos quadris. Demorou-se cerca de duas o capitão Gamitto montava fez grande sensação. Depressa se
horas e ao despedir-se pe-diu-nos a cada um, um presente de chegou a uma rua cercada de cada lado por uma paliçada de
maneira enternecedora e irresistível. dois ou nes metros de altura, feita de varas entrelaçadas tão
regularmente que parecia uma parede. Dos dois lados, viam-se
nessas paliçadas, em intervalos regulares, pequenas portas aber-
78 — Pequeno búzio branco usado como moeda, entre os negros
africanos e no golfo de Bengala. (N. R.)

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ta braseiros folhas aromáticas. As duas mulheres principais, as quais a
tas. No fim da rua encontra-se uma pequena barraca quadrangular que primeira estava vestida de modo semelhante ao 'nata, ocupavam o
só se abre para oeste e no centro da qual se encontra sobre um lugar de honra. Em último plano esten-I;I se o harém completo, 400
pedestal de madeira uma figura humana de 70 centímetros de altura mulheres; mas estas mulheres siavam completamente nuas, apenas com
grosseiramente esculpida. Do lado aberto, havia um montão de mais uma tanga. Além isso, 200 mulheres negras estavam prontas a
de 300 crânios. A rua transforma-se aqui numa grande praça responder à mínima ordem. No interior do quadrado formado pelas
quadrangular no fim da qual se estende uma grande floresta que mulhe-Nss, os mais altos dignatários do rei, os Kilolo, estavam sen-
apenas se separa dela por uma paliçada. No exterior desta, dos dois lailos sobre peles de leão e leopardo, cada um com um guar-da-sol e
lados da porta, estão fixadas, como decoração, 30 cabeças alinhadas vestido como o Muata; várias orquestras que faziam iiin ruído
de mortos. .. Vem em seguida a recepção por Muata que se ensurdecedor com instrumentos de formas singulares e alguns bobos
apresentou aos portugueses com toda a sua ostentação bárbara, que corriam de lá para cá, vestidos de peles e cornos de animais,
rodeado de todo o seu poderio guerreiro, composto de 5.000 a 6.000 completavam o séquito de Kazembe que esperava com este digno
homens. Estava sentado numa cadeira coberta de trapos verdes e aparato a chegada dos portugueses. O Muata, cujo título significa
colocada em cima de peles de leopardo e de leão. O seu chapéu era sensivelmente "senhor", exerce uma soberania absoluta sobre o seu
um gorro cónico escarlate feito de penas de 50 cm. Tinha na testa um povo. Diretamente abaixo dele, há primeiro os Kilolo, ou a nobreza,
diadema de pedras brilhantes; uma espécie de colar feito de caracóis, que se compõem por sua vez de duas classes. Fazem parte dos nobres
pedaços de espelho quadrado e falsas pedras preciosas cobriam o seu mais distintos o príncipe herdeiro, os parentes mais próximos do
pescoço e os seus ombros. Em volta de cada braço tinha enrolado um Muata e o comandante supremo da força guerreira. O Muata tem um
pedaço de pano azul guarnecido de pele; além disso o antebraço poder ilimitado, mesmo sobre a vida e a propriedade dos seus nobres.
estava decorado com pulseiras de pedras azuis. O abdómen estava "Se o tirano está de mau humor, obriga imediatamente a cortar as
envolvido por pano amarelo bordado de vermelho e azul seguro por orelhas a quem, por exemplo, não compreendeu bem uma ordem e lhe
um cinturão. As pernas, tal como os braços, estavam decoradas com pede para a repetir, "para que ele aprenda a ouvir melhor". Todo o
pedras azuis. roubo cometido na sua propriedade é punido com a amputação das
"Protegido do sol por sete guarda-sóis multicores, o monarca orelhas e das mãos; quem se encontra ou fala com uma das suas
estava aí sentado orgulhosamente; como cetro, brandia um rabo de mulheres, é morto ou sofre a amputação de todos os seus membros. O
gnu e doze negros munidos de escovas estavam ocupados em afastar soberano goza de uma tal consideração entre este povo supersticioso
da sua presença sagrada a menor poeira, a menor impureza. Uma que acredita que ninguém lhe pode tocar sem morrer pela sua ma-gia.
corte muito complicada manifestava--se à volta do soberano. Mas como um tal contato nem sempre pode ser evitado, ele inventou
Inicialmente duas filas de estátuas de 40 cm de altura que um remédio contra essa morte. Aquele que tocou o soberano ajoelha-
representavam bustos de negros adornados com cornos de animais se diante dele, este aplica-lhe misteriosa-
protegiam o seu trono e, entre essas estátuas, havia uma jaula que
continha uma estátua menor. Diante das estátuas, dois negros 247
sentados queimavam
246
mente a palma da sua mão contra a do homem ajoelhado e li-berta-o
vontade, porque ele mesmo e o seu povo estão firmemente l
assim do encanto mortal" {79K Eis o quadro de uma sociedade que está
onvencidos de que é um poderoso mágico, ou então esse "Prfn-
bastante afastada dos fundamentos originários de toda a comunidade
< ipe Kazongo" das margens do rio Lomani que, quarenta
primitiva, da igualdade e da democracia. Não está excluído que tenha
anos
subsistido sob esta forma de despotismo relações comunistas, a
nuis tarde, executou, para saudar o inglês Cameron, uma dan-
propriedade co-letiva do solo e a organização comum do trabalho. Os
laltitante, em traje de mulher, com duas peles de macaco I um
portugueses que observaram com precisão o falso brilho exterior dos
lenço sujo na cabeça, dignamente acompanhado das suas duas filhas
costumes e das audiências não tinham, como todos os europeus, nenhum
nuas, dos seus Grandes e do seu povo são em si fenómenos bem
sentido, nenhum interesse e nenhum crédito para entenderem relações
menos absurdos que a dominação pela "graça de Deus" de um
económicas, sobretudo quando iam de encontro à propriedade
homem, de quem mesmo o seu pior inimigo ii.ío pode dizer que é um
privada europeia. Em todo o caso, a desigualdade social e o
mágico, sobre um povo de 67 milhões de almas, que produziu um
despotismo das sociedades primitivas distinguiam-se fundamentalmente
Kant, um Helmholtz (80), um
dos que reinam nas sociedades civilizadas e que foram introduzidas
< loethe.
nas sociedades primitivas. A elevação da nobreza primitiva, o poder
despótico do chefe primitivo são produtos naturais desta sociedade, tal Pela sua própria evolução, a sociedade comunista primi-tiva
como as suas outras condições de vida. Não são mais do que outra conduz à desigualdade e ao despotismo. Porém não desaparece com
expressão da impotência da sociedade face à natureza circundante e às ela; ela pode pelo contrário perpetuar-se durante milénios.
suas próprias relações sociais; esta impotência manifesta-se nas práticas Regularmente, tais sociedades tornaram-se, tarde ou Cedo, a presa de
mágicas do culto e nas fomes periódicas em que os chefes despóticos conquistadores estrangeiros ou sofrem mais ou menos grandes
desaparecem parcial ou completamente, tal como os seus súditos. É transformações sociais. A dominação islâmica é aqui particularmente
por isso que esta dominação da nobreza e dos chefes se encontra em importante porque tem, em muitos locais, precedido a dominação
completa harmonia com os outros aspectos materiais e intelectuais da europeia na Ásia e na África. Por todo o lado onde os povos nómades
vida social, o que se torna perceptível no significativo fato do poder muçulmanos — árabes OU mongóis — instauraram e consolidaram a
político dos chefes primitivos estar sempre estreitamente ligado à sua dominação num país conquistado, desenvolveu-se um processo
religião natural primitiva, ao culto dos mortos. Deste ponto de vista, o que Henry Maine e Máximo Kovalevsky chamaram "feudalização".
Muata Kazembe dos negros Lunda, que catorze mulheres Sem ie apropriarem eles próprios do solo, os conquistadores prendia
acompanhavam vivas na sua sepultura e que dispõe da vida e da morte m-se a dois objetivos: a liquidação de foros e a consolidação militar
dos seus súditos conforme a sua da sua dominação no país. Uma organização militar e administrativa
precisa servia estes dois objetivos: o país r . i a v a dividido em vários
79 — Staneys und Camerous Reisen durch Afrika {Viagens de Staney e governos, dados, por assim dizer, Como feudos a funcionários
Cameron através da África), segundo Ríchard Oberlaender, Leipzig, 1879,
p. 68 (74-80). muçulmanos que eram ao mesmo lempo cobradores de impostos e
administradores militares, (irandes porções de terras incultas serviam
assim para fundar

80 — Físico e filósofo alemão do século XIX.


248
249
colónias militares. Estas instituições, assim como a difusão do Islão, se tal serve aos objetivos do capital, quando não a extermina. Vimos
operavam uma profunda mudança nas condições gerais de existência este método nas colónias espanholas, inglesas c france-perante o
das sociedades primitivas. As suas condições económicas estavam avanço do capitalismo, a sociedade primitiva que sobreviveu a todas
pouco modificadas neste aspecto. Os fundamentos e a organização da as fases históricas anteriores, c a p i t u l a. < )s seus últimos vestígios
produção permaneciam no mesmo estado e perpetuavam-se durante foram banidos da superfície da terra | os seus elementos — força de
séculos — apesar da exploração e da pressão militares. A dominação trabalho e meios de produção — foram absorvidos pelo capitalismo.
muçulmana não teve por toda a parte tanta consideração pelas A sociedade comunista primitiva desapareceu — porque, em última
condições de vida dos indígenas. Na costa Oriental da África, os análise, fora ultrapassada pelo progresso económico — e deu lugar a
árabes praticaram durante séculos, a partir do Sultanato de Zanzibar, novas perspectivas de desenvolvimento. Este desenvolvimento e este
um vasto comércio de escravos negros que conduziu a uma progresso vão ser representados, durante muito tempo, pelos métodos
verdadeira caça aos escravos no interior da África, ao despovoamento ignóbeis de uma sociedade de classes até que esta seja por sua vez
e à destruição de aldeias negras inteiras e ao crescimento do ultrapassada e afastada pelo progresso. Também aqui, a violência está
despotismo dos chefes indígenas que faziam negócios vendendo aos ao serviço da evolução económica.
árabes os seus próprios súditos ou os das tribos vizinhas subjugadas.
Esta transformação, que teve tais consequências para o destino da
sociedade africana, não era mais do que a consequência indireta das
influências europeias: o comércio dos escravos negros só se tornou
florescente com as descobertas e conquistas dos europeus no século
XVI, e quando tiveram necessidade deles nas plantações e minas que
exploravam na América e na Ásia.
Sob qualquer ponto de vista, o que é fatal para as relações
sociais primitivas é a penetração da civilização europeia. Os
conquistadores europeus são os primeiros que não visam apenas a
subjugação e a exploração económica dos indígenas, mas também
lançam mão dos meios de produção e do solo. Assim sendo, o
capitalismo europeu priva a ordem social primitiva do seu
fundamento. Pior que toda a opressão e toda a exploração é a
anarquia total e um fenómeno especificamente europeu: a
insegurança da existência social. O capitalismo europeu trata a
população subjugada, a quem priva dos seus meios de produção,
como simples força de trabalho, e escraviza-a

250 251
CAPÍTULO IV

A PRODUÇÃO MERCANTIL

A questão que nos impomos como tarefa a resolver é a uinte: uma


sociedade não pode existir sem trabalho comum, quer dizer sem um
trabalho planificado e organizado. Mesmo assim temos encontrado as
formas mais diversas em todas as épocas. . . Na sociedade atual, não
encontramos nenhuma: nem dominação, nem lei, nem democracia,
nem vestígios de plano ou de organização' só a anarquia. Como I
possível a sociedade capitalista?

Para descobrir como é que a Torre de Babel capitalista está


construída, imaginemos de novo, por um instante, uma sociedade em
que o trabalho está planificado e organizado. Seja uma sociedade em
que a divisão do trabalho está altamente desenvolvida, em que não só
a indústria e a agricultura são distintas, mas também em que (8,), no
interior de cada uma, cada ramo particular se tornou a especialidade
de grupos particulares de trabalhadores. Nesta sociedade, há portanto
agricultores e lenhadores, pescadores e jardineiros, sapateiros e
alfaiates, serralheiros e ferreiros, fiandeiros e tecelãos, etc. A

81 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): Examina-


remos mais adiante se uma tal hipótese é admissível e em qm medida.

253
sociedade no seu conjunto está portanto provida de todos os géneros A comunidade, que formava um todo, decompôs-se em pequenas
de trabalhos e de produtos. Estes produtos beneficiam em maior ou partículas como um espelho quebrado em mil bocados. Cada homem
menor proporção todos os membros da sociedade porque o trabalho é está suspenso no ar como um grão de pó Independente e tem que se
um trabalho comum, está de antemão repartido e organizado de desembaraçar. Que vai acontecer .1 comunidade que chegou de
maneira planificada por alguma autoridade — quer seja a lei repente a uma tal catástrofe? < fue vão fazer todos os homens assim
despótica do governo, ou a servidão ou qualquer outra forma de abandonados à sua sorte? lima coisa é certa: logo após essa catástrofe,
organização. Para simplificar, imaginemos que é uma comunidade eles vão antes dl indo... trabalhar, exatamente como antes. Visto que
comunista com a sua propriedade comum, tal como a vimos no as ssidades humanas não poderão ser satisfeitas sem trabalho, ioda a
exemplo indiano. Suponhamos, por um instante, que a divisão do sociedade humana deverá trabalhar. Quaisquer que lejam as revoluções
trabalho nesta comunidade esteja muito mais desenvolvida do que de e transformações que a sociedade sofra, o trabalho não pode cessar um
fato esteve historicamente e admitamos que uma parte dos membros só instante. Os antigos membros dl sociedade comunista continuariam
da comunidade se consagra exclusivamente à agricultura enquanto portanto antes de tudo .1 trabalhar, depois que os laços entre eles
artesãos especializados executam os outros trabalhos. A economia tivessem sido rompidos e tivessem sido abandonados à sua sorte, e como
desta comunidade apresenta-se-nos completamente clara: são os supu-li MIOS que cada trabalho é já especializado, cada um não po-iK iia
membros da comunidade que possuem em comum o solo e todos os continuar a fazer senão o trabalho que se tornou a sua ei pecialidade e de
meios de produção, a sua vontade comum decide da criação destes ou que ele tem os meios de produção: o sapata ro faria sapatos, o padeiro
daqueles produtos, na época tal e na quantidade tal. A massa dos cozeria pão, o tecelão confeccion a r i a tecidos, o agricultor faria crescer
produtos acabados, pertencentes a todos, é repartida entre todos a semente, etc. Uma dificuldade depressa surgiu: cada um destes
segundo as necessidades. Imaginemos agora que uma bela manhã, produtores fabrica ■ Tctivamente objetos extremamente importantes e
nesta comunidade comunista, a propriedade comum deixa de existir diretamente Ateis; cada um destes especialistas, o sapateiro, o padeiro, o
bem como o trabalho comum e a vontade comum que regulava a ferreiro, o tecelão, eram ainda ontem todos membros igualmente Úteis e
produção. A divisão do trabalho muito desenvolvida permaneceu, considerados pela comunidade que não podia passar sem eles. Cada
bem entendido. O sapateiro está perante a sua forma, o padeiro apenas um tinha o seu lugar importante no todo. Agora, o todo já não existe,
conhece o seu forno, o ferreiro só tem a forja e apenas sabe brandir o cada um existe por si. Nenhum ilentre eles pode viver apenas dos
martelo, etc. A cadeia que antes ligava todos estes trabalhos produtos do seu trabalho. O sapateiro não pode consumir os seus
especializados num trabalho comum, numa economia social, quebrou- sapatos, o padeiro não pode satisfazer as suas necessidades com pão, o
se. Cada qual não depende senão de si mesmo: o agricultor, o agricultor pode morrer de frio e de fome com o celeiro completamente
sapateiro, o padeiro, o serralheiro, o tecelão, etc. Cada um é livre e cheio se não tem mais do que cereal. Cada um tem uma multiplicidade
independente. A comunidade não tem mais nada a dizer-lhe, ninguém de necessidade e por si só não pode senão satisfazer uma delas. Cada
lhe pode mandar trabalhar para a comunidade, ninguém se preocupa um tem necessidade de uma certa quantidade
das suas necessidades.

254 255
dos produtos dos outros. Dependem portanto uns dos outros. Como >i novo iii in de particular. Também na comunidade coimmis-CION
operar se, como sabemos, já não existe nenhum vínculo entre os trabalhavam uns para os outros. O que há de parti-Cllliu < que
diferentes produtores individuais? O sapateiro tem uma urgente cada um não dá o seu produto a outros senão li-" ,i c só pode obter os
necessidade de pão do padeiro mas não pode forçar a entregar-lhe pão, produtos dos outros pela mesma 11 i Pnra conseguir os produtos de
visto que são ambos igualmente livres e independentes. Se ele quer tirar que necessita é preciso que um fabrique com o seu próprio trabalho
proveito dos frutos do trabalho do padeiro, isso não pode assentar senão produtos des-||mulos i iroca. O sapateiro deve produzir
na reciprocidade, dito de outro modo, ele mesmo deve entregar ao continuamente sa-dc que não tem necessidade em absoluto, que são
padeiro um produto que seja útil a este último. Ora, o padeiro tem tam- para ||( completamente inúteis. Eles não têm para ele outra utili-
bém necessidade dos produtos do sapateiro e encontra-se exa-tamente iliulc c outro fim senão poderem ser trocados por outros produ-de que
na mesma situação. Existe portanto o fundamento da reciprocidade. O tem necessidade. Ele produz portanto antecipada-mente os seus
sapateiro dá sapatos ao padeiro para receber pão. Sapateiro e padeiro sapatos para a troca, quer dizer que os produz como mercadoria (82).
trocam os seus produtos e assim podem ambos satisfazer as suas Cada um só pode agora satisfazer as necessidades, quer dizer obter
necessidades. Assim resulta que com a divisão do trabalho altamente os produtos fabricados por OUtros, se apresentar por seu lado um
desenvolvida, com independência total dos produtores entre si e na produto de que os outros i< in necessidade e que não fabricou senão
ausência de toda a organização entre eles, a única via para que todos para esse fim, dito '!• outro modo cada um não tem senão a sua parte
tenham acesso aos produtos dos diversos trabalhos, é. . . a troca. O sa- dos produtos dos outros, do produto social, a não ser que ele também
pateiro, o padeiro, o agricultor, o fiandeiro, o tecelão, o serralheiro, ipresente com uma mercadoria. O produto que ele confeccionou
trocam os seus produtos e satisfazem assim as suas múltiplas para a troca dá-lhe o direito de reivindicar uma parte do produto
necessidades. A troca criou assim um novo laço entre os produtores social. Este último já não existe sob a sua forma interior, a que
privados, atomizados, isolados e separados uns dos outros, o trabalho e existia na sociedade comunista em que, antes dl ser distribuído,
o consumo; a vida da comunidade destruída pode continuar novamente, representava diretamente, na sua massa, na sua integridade, a
porque a troca lhes deu a possibilidade de trabalhar de novo uns para os riqueza da comunidade. Ele era elaborado em comum por todos por
outros, quer dizer que se tornou de novo possível a cooperação social, a conta da comunidade e sob a sua direção e o que era produzido
produção social, mesmo sob a forma de produção privada atomizada . constituía desde o início produto entre os indivíduos e somente então
os membros da
Trata-se de um género novo e singular de cooperação social que
nos é necessário examinar mais de perto. Cada indivíduo trabalha 82 — Parece oportuno salientar que em economia mercantil os produtos
agora por sua própria conta; produz por sua conta segundo a sua assumem simultaneamente duas características: serem valores dê uso, por um lado, e
valores de troca por outro. Com efeito, são valores de uso uma vez que satisfazem
vontade. Para viver tem de produzir objetos de que não tem uma necessidade e valores de troca na medida em que se destinam a ser trocados no
necessidade mas que outros têm. Cada um trabalha assim para os mercado.
Ao capitalista interessa exclusivamente o valor de troca. É precisamente
outros. Em si, não há aqui nada enquanto valores de troca que os valores de uso são produzidos.
Na sua Contribuição para a crítica da economia política Marx observou que
"Ainda que objeto de necessidades sociais (...), o valor de uso não exprime qualquer
relação social de produção". (N. T.)
256 257
comunidade entravam, a título individual, na posse do produto
destinado ao seu consumo. Desde então o processo é inverso: lililmlc mantinha um sapateiro porque tinha necessidade de
cada um produz como entidade privada e são os produtos aca- O número de sapatos que devia fabricar era-lhe indi-las
bados que constituem no conjunto a riqueza social. A parte de autoridades competentes da comunidade, trabalhava i i como
cada um, quer sob o ponto de vista do trabalho social ou da servidor da comunidade, como empregado da comunidade, c
riqueza social, é representada pela mercadoria particular que todos estavam na mesma situação. Se a comuni-mantinha um
produziu pelo seu próprio trabalho e levou para a trocar com sapateiro, devia naturalmente alimentá-lo. I le obtinha, como
outras. A participação de cada um no trabalho social já não é cada um, a sua participação na riqueza tom um, c esta
pois representada por uma certa quantidade de trabalho <83) que é participação não tinha relação direta com a ii i participação no
fixada antecipadamente, mas pelo produto acabado, pela trabalho. Evidentemente que ele devia Irubnlhar e era
mercadoria que ele entrega segundo a sua livre vontade. Do alimentado porque era um membro útil da co-munidade. Que
contrário, não tem necessidade de trabalhar em absoluto, pode ir tivesse precisamente nesse mês mais ou menos npnlos para
passear, ninguém o reprovará ou o punirá por isso, como se fazia fabricar, ou nenhum, não recebia menos víveres, ii participação
para os membros recalcitrantes da comunidade comunista em que nos meios comuns de subsistência não era ■fctnda. Agora, só
os preguiçosos eram severamente repreendidos pelo chefe da os tem na medida em que se tem necessi-do seu trabalho, quer
comunidade ou votados ao desprezo público na assembleia da dizer na medida em que o seu pro duto é aceito em troca por
comunidade. Além disso, cada homem é senhor de si próprio, a outros. Cada um trabalha como quer, quanto quer e no que
comunidade já não existe como autoridade. Todavia, se não quer. Só o fato de o seu produto aceito pelos outros lhe
trabalha não pode obter nada em troca dos produtos dos outros. confirma que produz o que a so-i ledade necessita, que executou
Por outro lado, o indivíduo não tem já qualquer garantia, mesmo efetivamente um trabalho so-l lalmente útil. Um trabalho, por
se trabalha com ardor, de possuir os meios de subsistência que muito sério e sólido que seja, ii.i" tem desde o início um fim e
lhe são necessários; porque ninguém é obrigado a dar-lhos, um valor do ponto de vista locial, só o produto que se pode
mesmo em troca dos seus produtos. A troca só tem lugar se trocar tem valor; um produto que ninguém aceita em troca não
existe uma necessidade recíproca. Se não há, momentaneamente, tem valor, é trabalho per-dldo, por muito sólido e bom que seja.
necessidade de sapatos na comunidade, o sapateiro se escusa de Para participar nos frutos da produção social(84) e no tra-
trabalhar com maior ardor e confeccionar a mais bela mercadoria, balho social, é preciso por conseguinte produzir mercadorias.
ninguém a aceitará para lhe dar em troca pão, carne, etc, e então Mis ninguém diz a quem quer que seja que o seu trabalho é
encon-trar-se-á sem o mínimo necessário para viver. reconhecido como socialmente necessário; o indivíduo verifi-
Eis que aparece de novo uma impressionante diferença
com as relações na comunidade comunista primitiva. A comu- 84 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: I. Trabalho social I ) como
soma dos trabalhos dos membros da sociedade uns para os Outros, 2) no
83 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): Agora a co- sentido de que o produto de cada indivíduo é ele mesmo o resultado da
munidade já não é como um todo com o qual tem relação e que tem cooperação de um grande número de indivíduos (matéria-prima, utensílios),
necessidade de um produto, mas os membros individuais da comunidade. e até de toda a sociedade (ciência, necessidade). Em ambos os casos, o
caráter social foi mediatizado pela troca. 0 Baber na comunidade
258 comunista, na escravatura e agora.

259
ca-o quando a sua mercadoria é aceita em troca. A sua participação .... i do trabalho social e do produto social a que se chegou
no trabalho e no produto da comunidade só está assegurada se estes equivale à soma de todos os trabalhos e de todos os produtos dos
produtos estão marcados com o selo do trabalho socialmente membros da sociedade, como acontecia anteriormen-|l n i economia
necessário, do valor de troca. Se o seu produto não pode ser trocado, comunista primitiva. Agora qualquer pessoa trabalhar com ardor e
ele criou um produto sem valor, o seu trabalho é portanto socialmente entretanto o seu produto não é muls tio que um produto perdido, que
supérfluo. Ele não é então mais do que um sapateiro privado que não conta, se não en-m n i i . i comprador. Só a troca determina os
cortou o couro e desperdiçou sapatos para passar o tempo, um trabalhos e os pro-dutos i|iic são úteis e que contam socialmente. É
sapateiro que se situa fora da sociedade; porque a sociedade ignora o como se iiin trabalhasse em sua casa, cega e honestamente perante
seu produto e os produtos da sociedade são-lhe, em consequência, levasse os seus próprios produtos acabados a uma praça onde se
inacessíveis. Se o nosso sapateiro trocou, por sorte, os seus sapatos e examinariam os objetos e depois se lhes colocaria um para este, para
obteve víveres em troca, pode entrar em sua casa satisfeito, vestido aquele, o trabalho foi socialmente neces-ii 10, foram aceitos em troca;
e... orgulhoso: foi reconhecido como membro útil da sociedade, o seu agora para estes últimos cujo trabalho não era necessário, eles são
trabalho é um trabalho necessário (85). Se volta com os seus sapatos inúteis e desprezados. i i selo quer dizer: este tem um valor,
porque ninguém os pretendeu comprar, tem toda a razão para se sentir aquele não tem e resta 0 prazer ou a tristeza privada do interessado.
infeliz porque não poderá jantar. Fizeram-lhe ver por outro lado, Resumamos estes diferentes elementos: parece que a simples
ainda que com um frio silêncio: "A sociedade não tem necessidade de troca das mercadorias, sem qualquer outra intervenção ou
ti, meu amigo o teu trabalho não era absolutamente necessário, és regulamentação, determina três relações importantes:
portanto um homem supérfluo que pode enforcar-se tranquilamente!" 1. A parte do trabalho social que cabe a cada
O nosso sapateiro só estabeleceu contato com a sociedade por meio membro da sociedade. Esta participação, qualitativa e quan-
de um par de sapatos trocável ou, mais genericamente, por uma tltativamente, já não lhe é atribuída antecipadamente pela co
mercadoria que tem valor de troca. O padeiro, o tecelão, o agricultor,
munidade; ele participa ou não, mais tarde, no produto acaba
todos se encontram na mesma situação que o nosso sapateiro. A
do. Anteriormente cada par de sapatos que o nosso sapateiro
sociedade, que ora reconhece o sapateiro, ora o repudia friamente,
confeccionava era trabalho social. Agora os seus sapatos não
não é mais do que a soma de todos estes produtores individuais de
io senão trabalho privado que não diz respeito a ninguém. Ih pois
mercadorias que trabalham para a troca recíproca. É por isso que a
eles são examinados no mercado de troca e o trabalho investido pelo
sapateiro só é reconhecido como trabalho social na medida em que
85 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: N. B. Mercadorias produzidas em
excesso, impossíveis de serem trocadas e estoques incon-sumíveis numa sociedade são aceitos em troca. De outro modo, con-tinuam a ser trabalho
organizada: Comunidade comunista (o arroz indiano), a economia escravagista, de privado e não têm valor.
servidão (os conventos da Idade Média). Diferença: as primeiras não são trabalho
social, as segundas são-no sem dúvida. Relação com a necessidade (necessidade
insolvente por um lado e sobreprodução de mercadorias invendáveis por outro),
2. A parte da riqueza social que cabe a cada membro.
sobreprodução na sociedade socialista. Anteriormente, o sapateiro recebia a sua parte dos produtos
inicialmente pelo bem-estar geral, pelo estado da fortuna co-

260 261
mum e em seguida pelas necessidades dos membros. Uma fa- zelar para que os diferentes ofícios fossem exercidos numa justa
mília numerosa recebia mais do que uma família menos nu- proporção e os artesãos que faltavam serem convidados a vir do
merosa. Na distribuição das terras conquistadas entre as tribos exterior). Quando a livre troca não tem limite, é regulada pela
germânicas que chegaram à Europa por ocasião das grandes própria troca. Ninguém pede ao nosso sapateiro para fazer o seu
migrações e se instalaram nas ruínas do Império Romano, a trabalho de sapateiro. Se quiser, pode fazer bolas de sabão ou
dimensão das famílias desempenhava um papel importante. A papagaios de papel. Pode, se assim o desejar, em vez de
comunidade russa que procedia aqui e ali, nos anos de 1880, a fabricar sapatos, dedicar-se à tecelagem, à fiação ou à
redistribuição da propriedade comum, tinha em conta o número ourivesaria. Ninguém lhe diz que a sociedade tem necessidade
de cabeças ou de "bocas" em cada lar (86). Com a generalização da dele em geral, e particularmente como sapateiro. Evidentemente
troca, toda a relação desaparecia entre as necessidades de tal que a sociedade tem necessidade de sapatos, mas ninguém
membro da sociedade e a sua participação na riqueza, assim determina o número de sapateiros que podem satisfazer esta
como entre esta participação e o volume da riqueza comum da necessidade. Ninguém diz ao nosso sapateiro se e'e é necessário
sociedade. A única coisa determinante para a participação na ou se não haverá mais necessidade de um tecelão ou de um
riqueza social que pertence a um membro, é o produto ferreiro. Do que ninguém lhe diz, ele só pode tomar
apresentado por este último no mercado, e unicamente na conhecimento no mercado. Se os seus sapatos são aceitos em
medida em que é aceito em troca como produto socialmente troca, sabe que a sociedade tem necessidade dele como sapateiro.
necessário. Mesmo que confeccione a melhor mercadoria do mundo, se os
3. Finalmente o mecanismo da troca regula também a outros sapateiros cobrirem já as necessidades, a sua mercadoria
divisão social do trabalho. Anteriormente, a comunidade decidia é supérflua. Se isto se repete, lhe é necessário renunciar ao seu
que tinha necessidade de tantos lavradores, de tantos sapateiros, ofício. O sapateiro em excesso é eliminado pela sociedade tão
padeiros, serralheiros, ferreiros, etc. A justa proporção entre os mecanicamente como o corpo elimina as substâncias supérfluas:
diferentes ofícios era assunto da comunidade que zelava para ela não aceita o seu trabalho como trabalho social e condena-o à
que todos os trabalhos necessários fossem executados. É ruína. A mesma coação que o força a produzir, como condição
conhecido o caso daquele sapateiro condenado à morte que os de existência, produtos trocáveis por outros, conduzirá
representantes da comunidade de aldeia se fizeram de rogados finalmente o nosso sapateiro desnecessário a escolher um outro
em libertar para colocar em seu lugar um ferreiro, porque havia ofício em que exista uma necessidade insuficientemente
dois na aldeia. É um belo exemplo do cuidado com que a coberta, por exemplo a tecelagem ou a fabricação de carros, e
comunidade zelava por uma boa divisão do trabalho. (Vimos, assim a falta de mão-de-obra nesse setor será satisfeita.
na Idade Média, Carlos Magno prescrever exa-tamente os tipos Não é só a justa proporção que é mantida assim entre os
e o número de artesãos nos seus domínios. Vimos nas cidades ofícios; desta maneira desaparecem ofícios e criam-se também
medievais (87) o regulamento das corporações outros. Quando uma necessidade deixa de se fazer sentir na
sociedade ou está coberta por outros produtos, não são, como
na antiga comunidade comunista, os membros desta última que
86 — Rosa Luxemburgo anotou ao lado desta frase: N. B.
87 — O capítulo sobre as corporações não foi encontrado. (N.E.)

262 263
o constatam e, por consequência, retiram os trabalhadores de um toda a planificação do trabalho, de todo o vínculo entre os seus
ofício para os empregar de outro modo. Isto manifesta-se membros. Isto fez-se de maneira completamente automática. Sem
simplesmente pela impossibilidade de trocar os produtos não nenhum entendimento entre os membros, sem intervenção de
necessários. No século XVII, os cabeleireiros formavam uma qualquer força superior, os diferentes fragmentos foram, bem ou mal,
corporação que não devia faltar numa cidade. Uma vez que a moda reunidos num todo. A própria troca regula agora toda a economia de
mudou e deixou de se usar perucas, o ofício morreu naturalmente maneira automática, como uma espécie de bomba hidráulica:
porque as perucas já não se vendiam. As canalizações e os condutos estabelece um vínculo entre os produtores individuais, regula a
de água que abastecem todas as casas propagaram-se por todas as divisão do trabalho entre eles, determina a sua riqueza e a distribuição
cidades e fizeram desaparecer pouco a pouco o ofício de mercador de desta riqueza. A troca governa a sociedade. Foi, na realidade, uma
água. Tomemos agora um caso inverso. Suponhamos que o nosso ordem um pouco estranha que surgiu. A sociedade toma agora um
sapateiro a quem a sociedade fez sentir sem equívoco, recusando aspecto totalmente diferente do que tinha anteriormente na
sistematicamente a sua mercadoria, que ele não é socialmente comunidade comunista. Ela formava então um todo compacto, uma
necessário, esteja tão imbuído dele mesmo que acredite apesar disso espécie de grande família cujos membros aderiam uns aos outros e
ser um membro indispensável à humanidade e quer incontestavel-
conservavam uma firme solidariedade, um organismo sólido, e até um
mente viver. Para viver, deve, como nós sabemos e ele também,
pouco rígido e ossificado. Agora, ela tem uma estrutura extremamente
produzir mercadorias. Ele inventa então um produto completamente
flexível em que os diferentes membros se separam e voltam a juntar-
novo, por exemplo uma bigodeira (88> ou uma pomada para calçados
se a cada momento. Ninguém diz ao nosso sapateiro que deve
maravilhosa. Criou ele uma nova ati-vidade socialmente necessária,
trabalhar, que trabalho deve fazer e em que quantidade. Ninguém lhe
ou vai íicar incompreendido como tantos outros inventores? Ninguém
pergunta se tem necessidade de meios de subsistência, de quais e em
lho diz, só o verifica no mercado. Se o seu novo produto é aceito em
que quantidade. Ninguém se preocupa com ele, ele não existe para a
troca, o novo ramo de produção foi reconhecido como socialmente
sociedade. Anuncia a sua existência à sociedade apresentando-se no
necessário a divisão social do trabalho sofre uma nova ampliação <89'.
mercado com o produto do seu trabalho. A sua existência é aceita se a
Fizemos pouco a pouco renascer uma certa coesão, uma certa sua mercadoria é aceita. O seu trabalho não é reconhecido
ordem na nossa comunidade que parecia estar numa situação socialmente necessário e até ele mesmo só é reconhecido como
desesperada após o desmoronamento do regime comunista, da trabalhador na medida em que os seus sapatos são aceitos em troca.
propriedade comum, após o desaparecimento de toda a autoridade na Ele só obtém meios de subsistência da riqueza social se os seus
vida económica, de toda a organização e de sapatos são aceitos como mercadorias. Enquanto pessoa privada, não
é portanto um membro da sociedade, tal como o seu trabalho,
enquanto trabalho privado, não é um trabalho social. Ele só se torna
88 — Bolsa antiga de pano ou couro utilizada para resguardar e
compor barbas e bigodes; prendia-se nas orelhas. (N. R.) um membro da sociedade na medida em que fabrica produtos
89 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: o algodão suplantou o trocáveis, mercadorias, e na medida em que as tem e pode vender.
linho no século XIX.
Cada par

264 265
de sapatos trocado faz dele um membro da sociedade e cada tem necessidade, com efeito, não da Palavra de Deus mas de
par invendável exclui-o dessa sociedade. O sapateiro não tem, vez em quando de sapatos. Como aqui há reciprocidade, a
como tal, nenhum vínculo com a sociedade, os seus sapatos Moca opera-se facilmente; o pão passa das mãos do padeiro,
apenas o põem em contato com a sociedade, e isso somente na que não tem necessidade dele, para as do sapateiro; os sapatos
medida em que eles têm um valor de troca, são vendáveis passam da oficina do sapateiro para a padaria. Ambos satis-
como mercadorias. Não é portanto um contato permanente, fizeram as suas necessidades e as duas atividades privadas fo-
mas um contato constantemente renovado e constantemente em ram reconhecidas como socialmente necessárias. O mesmo se
vias de se dissolver. Todos os membros produtores de mer- verifica não só entre o sapateiro e o padeiro, mas entre todos os
cadorias estão na mesma situação que o nosso sapateiro. Na membros da sociedade, quer dizer entre todos os produtores de
sociedade não há senão produtores de mercadorias, porque não
mercadorias. Temos o direito de o admitir, somos mesmo
é senão na troca que se obtêm os meios para se viver; para os
obrigados a fazê-lo. Visto que todos os membros da socie-dade
obter, toda a gente se deve apresentar com mercadorias.
devem viver, têm que satisfazer múltiplas necessidades. A
Produzir mercadorias, tal é a condição da existência. Daí resulta
uma sociedade em que todos os homens conduzem a sua produção da sociedade nunca pode parar porque o consumo
existência como indivíduos completamente isolados; não nunca pára. É-nos necessário agora acrescentar: como a pro-
existem uns para os outros e só através das suas mercadorias dução está a partir de agora dividida em atividades privadas
entram em contato, permanentemente variável, com a socie- independentes, nenhuma das quais pode por si só bastar ao
dade ou se desligam novamente dela. Esta é uma sociedade homem, se o consumo não se interromper, a troca não pode
extremamente frouxa e móvel cujos membros se encontram su- parar um só instante. Todos trocam pois continuamente os seus
jeitos a um turbilhão incessante. A abolição da economia pla- produtos. Como é que isto se passa? Voltemos ao nosso
nificada e a introdução da troca provocou uma profunda trans- exemplo. O sapateiro não tem só necessidade do produto do
formação nas relações sociais e transformou a sociedade de padeiro, quereria ter uma certa quantidade de outras merca-
cima a baixo. dorias. Para além do pão tem necessidade de carne do açou-
gueiro, de uma capa do alfaiate, de tecido para uma camisa do
II tecelão de linho, de um chapéu do chapeleiro, etc. Ele não pode
obter estas mercadorias senão através da troca; e apenas pode
A troca, único laço económico entre os membros da so- oferecer em troca sapatos. Para o sapateiro, os produtos de que
ciedade, apresenta grandes dificuldades e não se dá tão facil- tem necessidade para viver têm portanto inicialmente, por
mente como temos suposto até aqui. Examinemos o assunto conseguinte, a forma de sapatos; se tem necessidade de uma
mais de perto. Enquanto considerávamos a troca apenas entre camisa fabrica sapatos; quer um chapéu ou cigarros fabrica de
dois produtores individuais, entre o sapateiro e o padeiro, o novo sapatos. Na sua atividade especial, para ele pessoalmente,
assunto era muito simples. O sapateiro não pode viver apenas toda a riqueza social que lhe é acessível tem a forma de
de sapatos e tem necessidade de pão; o padeiro não pode viver sapatos. Não é senão pela troca no mercado que a sua atividade
apenas de pão, como se diz nas Sagradas Escrituras, e pode sair da sua estreita forma de sa-

266 267
fiomo relação universal permanente, a satisfação de todas as
patos e se transformar em meios de subsistência multiformes de sidades é impossível, o trabalho universal é impossível I a
que ele tem necessidade. existência da sociedade é impossível. Estaríamos de novo no
impasse e não poderíamos explicar como é que uma coope-ração
Para que esta transformação se opere efetivamente, para que
social e uma economia podem apesar disso nascer a partir «Ir
todo o trabalho do sapateiro, de que este espera todas as alegrias produtores privados isolados e atomizados que não pos-luem nem
da existência, não fique encerrado na forma dos sapatos, é plano de trabalho comum, nem organização, nem vínculo entre
necessária uma condição importante, que já conhecemos: é eles. A troca aparece-nos como um meio para regular tudo isto,
preciso que os outros produtores tenham necessidade dos seus ainda que por vias estranhas. É preciso entretanto que a troca
sapatos e queiram aceitá-los em troca. O sapateiro só obteria possa efetivamente funcionar como um mecanismo regulador.
outras mercadorias na quantidade correspondente ao seu Ora, desde os primeiros passos, encontramos tais dificuldades que
trabalho, supondo que os seus sapatos fossem uma mercadoria não compreendemos como é que ele poderia agir de maneira
desejada pelos outros produtores. Ele não obteria dos outros permanente e universal.
mercadores senão a quantidade correspondente ao seu trabalho, Ora bem, inventou-se o meio de ultrapassar esta dificuldade e
supondo que os seus sapatos eram uma mercadoria desejada por de tornar possível a troca social. Não foi certamente Cristóvão
todos e em qualquer altura, desejada sem limites por conseguinte. Colombo que o descobriu; a experiência social e o hábito
Seria já, por parte do sapateiro, uma enorme pretensão e um encontraram insensivelmente na própria troca o meio, ou como se
otimismo irracional acreditar que a sua mercadoria é de uma diz, a própria "vida" resolveu o problema. A vida social criou
necessidade absoluta e ilimitada para o género humano. A sempre ao mesmo tempo que as dificuldades, os meios para as
questão agrava-se pelo fato de os outros produtores individuais se resolver, É impossível que todas as mercadorias sejam desejadas
por todos a cada momento, quer dizer em quantidade ilimitada.
encontrarem na mesma situação do sapateiro: o padeiro, o
Houve sempre, em toda a sociedade, uma mercadoria importante,
serralheiro, o tecelão, o açougueiro, o chapeleiro, o agricultor,
necessária, útil a todos, desejada por todos. Não deve ser muito
etc. Cada um deseja os produtos mais diversos de que tem
provável que os sapatos tenham desempenhado esse papel. Mas
necessidade, mas só pode dar em troca um único produto. Cada o gado por exemplo pode ter sido esse produto. O homem não se
um só poderia satisfazer plenamente as suas necessidades se a sua pode desenvolver simplesmente com sapatos, nem com roupas,
mercadoria particular fosse desejada a cada momento por toda a nem com chapéus ou cereais. Mas o gado, fundamento da
gente e aceita em troca. Uma curta reflexão permite ver que é economia, assegura em qualquer caso a existência da sociedade;
pura e simplesmente impossível. Cada um não pode desejar a fornece carne, leite, peles, força de trabalho, etc. Não consiste
todo o momento todos os produtos. Cada um não pode a todo o toda a riqueza, entre muitos povos nómades, em rebanhos?
momento encontrar de maneira ilimitada comprador para sapatos, Ainda hoje as tribos negras da África vivem, ou viviam ainda há
pão, vestuário e fechaduras, fio e camisas, chapéus e bigodei-ras, pouco, exclusivamente da criação de gado. Suponhamos que na
etc. No entanto, os produtos não podem a todo o momento nossa comunidade o gado seja um elemento muito procurado,
trocar-se por todos os outros. Se a troca é impossível ainda que
269
268
seja um produto privilegiado entre muitos outros na sociedade, e dorias. Quanto mais frequentemente o gado passa de mão em
não o único. O criador de gado aplica aqui o seu trabalho mão e serve de intermediário nas trocas, tanto mais é apre-
privado na produção de gado, como o sapateiro na produção de ciado, tanto mais se torna a única mercadoria trocável e de-
sapatos, o tecelão na de tecido, etc. Simplesmente, segundo a sejada em todos os momentos, a mercadoria universal.
nossa hipótese, o produto do criador de gado goza de uma Numa sociedade de produtores privados atomizados, sem
preferência geral e ilimitada porque parece a todos o mais de- plano de trabalho comum, todo o produto do trabalho é ini-
sejado e o mais importante. O gado constitui portanto um cialmente um trabalho privado. Só o fato de esse produto ser
enriquecimento aceito por todos. Como nós continuamos a aceito em troca mostra que o trabalho é socialmente necessário,
supor que na nossa sociedade tudo se obtém através da troca, só que o seu produto tem um valor e assegura ao trabalhador uma
se pode obter do criador de gado, o gado tão desejado tro-cando- participação nos produtos da comunidade, de con-l iá rio seria
o por outro produto de trabalho. Como toda a gente, segundo a trabalho perdido. Ora agora, todos os produtos apenas são
hipótese, gostaria de ter gado, todos cederão voluntariamente a trocados por gado. Um produto só passa por socialmente
todo o momento os seus produtos por gado. Com o gado pode-se necessário se trocado por gado. O selo do trabalho socialmente
pois obter a todo o momento qualquer outro produto. Quem tem necessário não lhe é imprimido senão pela sua aptidão em ser
gado só tem que escolher; tudo está à sua disposição. É por isso trocado por gado, pelo fato de ter tanto valor como o gado. É-
que toda a gente já não quer trocar o seu produto particular senão nos necessário agora precisar: pela sua troca por gado. O gado
por gado; porque se tendo gado se tem tudo, visto que com gado é de agora em diante a encarnação do trabalho social e é por
se obtém tudo em qualquer momento. Uma vez que isto surgiu conseguinte o único laço social entre os homens.
claramente e se tornou um hábito, o gado tornou-se pouco a Aqui, vocês têm certamente a impressão de que estamos
pouco uma mercadoria universal, quer dizer a única mercadoria eirados. Até agora, tudo era mais ou menos compreensível;
desejada e trocável de maneira ilimitada. Enquanto mercadoria para terminar, este gado, mercadoria universal, encarnação do
universal, o gado serve de intermediário de troca de todas as trabalho social, único laço da sociedade humana, é uma inven-
outras mercadorias particulares. O sapateiro, por exemplo, não ção insensata e, além disso, ultrajante para o género humano!
recebe dire-tamente pão do padeiro em troca dos seus sapatos, Portanto vós teríeis na realidade o direito de vos sentirdes ofen-
mas gado; porque com gado pode comprar pão e tudo o que didos. Qualquer que seja o vosso desprezo por este pobre gado,
quiser e quando quiser. E o padeiro pode também agora
é claro que em qualquer caso ele estará bastante mais próximo
pagar-lhe os seus sapatos em gado porque também ele recebeu
do homem, e até, num certo sentido, lhe é muito mais
gado por parte dos outros — do serralheiro, do criador de gado,
semelhante que por exemplo um bocado de argila arrancado da
do açougueiro — pelo seu próprio produto, o pão. Cada um re-
terra, um calhau ou um bocado de ferro. Deveis reconhecer que
cebe gado pelo seu próprio produto e paga de novo com esse
o gado seria mais digno de servir como laço social vivo entre
mesmo gado quando quer ter os produtos dos outros. O gado
os homens do que um bocado de metal inanimado. No entanto,
passa assim de mão em mão, serve de intermediário em todas as
neste caso, a humanidade deu preferência preci-
trocas, é o laço entre os produtores individuais de merca-

270 271
sãmente ao metal. Porque o gado, desempenhando o papel era desejado universalmente e a todo o momento? Porque era
supracitado na troca, não é mais do que... o dinheiro! Se não um produto extremamente útil que, enquanto meio de sub-
podeis representar o dinheiro de outro modo senão sob a forma sistência muito variado, podia assegurar a existência. Sim,
de pedaços de ouro ou de prata ou mesmo notas de banco, e se inicialmente isto é verdade. Em seguida, quanto mais o gado foi
descobris que esse dinheiro metálico ou de papel, intermediário utilizado como intermediário da troca geral, tanto mais o leu
universal das relações entre os homens, força social, é qualquer uso imediato como meio de subsistência passou a último plano.
coisa que é evidente, que pelo contrário a descrição em que o Quem recebe gado em troca do seu produto, abster--se-á então
gado desempenhava esse papel é uma loucura, isto prova de o abater e de o comer ou de o atrelar ao seu arado; o gado é-
simplesmente até que ponto a vossa mentalidade está prisioneira lhe mais precioso como meio de comprar em qualquer momento
das ideias do mundo capitalista atual <90>. O quadro de relações não importa que mercadoria. Abster-se-á portanto de o utilizar
sociais que têm qualquer coisa de razoável é completamente como meio de subsistência e conservá-lo--á como meio de
absurdo e o que é um absurdo acabado parece ser evidente. De troca. Com a divisão altamente desenvolvida do trabalho que
fato, o dinheiro sob a forma de gado, tem exatamente as supusemos, a utilização imediata do gado seria bastante
mesmas funções que o dinheiro metálico, e só considerações de incómoda. Que pode fazer o sapateiro com o gado como tal? Ou
comodidade nos levaram a aceitar o metal como dinheiro. Não o serralheiro, o tecelão, o chapeleiro que não praticam a
se pode evidentemente trocar o gado tão bem, nem medir tão agricultura? A utilidade imediata do gado como meio de
precisamente o seu valor, como os pequenos discos metálicos, subsistência foi portanto cada vez mais esquecida e o gado já
além do que seria preciso para conservar o "dinheiro-gado" um não é desejado por todos porque é útil ao corte, à leiteria ou à
porta-moedas um pouco grande, que se assemelharia a um lavoura, mas porque dá a todo o momento uma possibilidade de
estábulo. Antes que a humanidade tivesse a ideia de fazer troca não importa com que mercadoria. A utilidade específica, a
dinheiro com metal, o dinheiro, como intermediário indispensável missão do gado, converte-se cada vez mais em possibilitar a
da troca, existia há muito tempo. Porque o dinheiro, mercadoria troca, quer dizer, servir a todo o momento para a transformação
universal, é exatamente este meio insubstituível sem o qual a dos produtos privados em produto social, dos trabalhos privados
troca universal não poderia pôr-se em movimento, sem o qual a em trabalho social. Como o gado perde assim cada vez mais o
economia social não planificada e composta por produtores seu uso privado, que é servir de meio de subsistência ao
individuais não poderia existir. homem, e se consagra exclusivamente à sua função de
intermediário permanente entre os diferentes membros da
Quais são os múltiplos papéis do gado na troca, e o que é sociedade, deixa também progressivamente de ser um produto
que, na sociedade que estudamos, transformou o gado em privado como os outros, transformando-se imediatamente num
dinheiro? Foi o fato de ser um produto do trabalho desejado produto social, e o trabalho do criador de gado transforma-se,
universalmente e a todo o momento? Por que é que o gado contrariamente a todos os outros trabalhos, no único trabalho
diretamente social. Então, o gado já não é criado para servir de
90 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Aristóteles sobre a meio de subsistência, mas com o fim de desempenhar o papel
escravatura.
de produto social, de mercado-

272 273
ria universal, de dinheiro. Continua-se, numa proporção mínima, a etc? Os objetos de uso corrente deterioram-se c tornam-■ mesmo
abater gado ou a atrelá-lo ao arado. Este caráter privado do gado inutilizáveis se estiverem armazenados durante mui-h i, mpo. Agora,
desaparece cada vez mais face ao seu caráter oficial de dinheiro. o sapateiro pode conservar o gado que reee-i. pelos produtos do seu
Como tal, desempenha um papel eminente e múltiplo na vida da trabalho como meio destinado a servi lo no futuro. Desperta nele o
sociedade. desejo de economizar, procura vender o mais possível, abstém-se de
1. Torna-se definitivamente meio de troca universal e dispender tão de-sa o gado recebido; pelo contrário, procura acumulá-
oficialmente reconhecido. Ninguém troca mais sapatos por pão ou lo, porque o gado sendo bom para tudo e em qualquer momento,
camisas por ferraduras. Quem o quisesse fazer seria afastado com um ICOnomiza-o, junta-o para o futuro e deixa os frutos do seu trabalho
encolher de ombros. Não se pode obter nada senão com gado. A como herança para os seus filhos.
antiga troca bilateral decompõe-se por conseguinte em duas 3. O gado torna-se ao mesmo tempo a medida de todos
operações distintas: venda e compra. Anteriormente, quando o valores e de todos os trabalhos. Quando o sapateiro quer
serralheiro e o padeiro queriam trocar os seus produtos, cada um laber o que a troca de um par de sapatos lhe trará, o que vale «» seu
vendia a sua mercadoria e comprava a do outro fazendo-as produto, diz por exemplo: queria um meio-boi por par, o meu par de
simplesmente trocar de mãos. Compra e venda era uma só a mesma
sapatos vale meio-boi.
operação. Agora, quando o sapateiro vende os seus sapatos só obtém
e só aceita gado em troca. Começou por vender o seu próprio produto. 4. O gado torna-se a quinta-essência da riqueza. Já
Quando comprará ele alguma coisa, que comprará, comprará mesmo nao se diz: fulano é rico porque tem muito cereal, rebanhos,
alguma coisa? Isso é um assunto à parte. Basta que òe tenha roupas, jóias, criados, mas porque tem muito gado. Diz-se:
desembaraçado do seu produto, que tenha transformado o seu ile chapéu na mão perante este homem; "vale" mil bois. Ou
trabalho, da forma sapatos na forma de gado. A forma gado é a forma eu tão diz-se: pobre homem, não tem uma cabeça de gado!
social oficial do trabalho e, sob esta forma, o sapateiro pode conservá-
Com a difusão do gado como meio universal de troca, a
la por tanto tempo quanto quiser; porque ele sabe que pode em
sociedade só pode pensar em formas de gado. Fala-se e so-nlia-se
qualquer momento transformar o produto do seu trabalho, de forma
gado em qualquer outra forma, quer dizer efetuar uma compra. com gado. Seguiu-se uma verdadeira adoração e veneração pelo
gado; desposa-se de preferência uma rapariga a quem um dote
2. O gado torna-se também o meio de economizar e composto de grandes rebanhos de gado realça os seus encantos,
acumular a riqueza, torna-se um meio de entesourar. Enquanto o mesmo se o pretendente é um professor, um eclesiástico ou um poeta,
sapateiro não podia trocar os seus produtos senão por meios de e não um criador de porcos. O gado é a quinta-essência da felicidade
subsistência, só trabalhava na medida em que tinha necessidade de humana. Dedicam-se poemas em honra do gado e da sua força
satisfazer as suas necessidades cotidianas. Pois, para que é que lhe maravilhosa, comete m-se crimes e assassinatos por causa dele. Os
servia ter sapatos de reserva ou até mesmo fazer grandes reservas de homens repetem sacudindo a cabeça: "O gado governa o mundo". Se
pão, de carne, de camisas, de cha- este provérbio vos é desconhecido, traduzi-o em latim; a velha

274 275
palavra romana pecunia = dinheiro, provém de pecus =
gado<9'>. Estado europeu ou até a instalação de colónias comerciais eu-
ropeias nesses países, teve muito depressa por consequência ;i
III abolição violenta da propriedade comum do solo, a fragmentação
desta em propriedade privada, o roubo dos rebanhos, o
O nosso exame das formas assumidas pelas relações na aniquilamento de todas as relações tradicionais na sociedade. O
antiga comunidade comunista, após o súbito desmoronamento resultado não foi a maior parte das vezes o que nós supuse mos,
da propriedade coletiva e do plano de trabalho comum, pare- isto é, a transformação da comunidade comunista numa
ceu-vos ser uma lucubração puramente teórica, um passeio nas sociedade de produtores privados livres com troca de merca-
nuvens. Na realidade, não se tratava senão de uma exposição dorias. Porque a propriedade comum desagregada não se trans-
um pouco simplificada e abreviada da maneira como se formou forma propriedade privada dos indígenas, é roubada e saqueada
a economia mercantil, exposição rigorosamente conforme à pelos intrusos europeus e os próprios indígenas, privados das
verdade histórica nos seus traços fundamentais. suas antigas formas de subsistência e dos seus meios de viela,
foram quer transformados em escravos assalariados, ou
A nossa exposição exige, na realidade, algumas correçoes:
simplesmente em escravos de mercadores europeus, quer, quando
1. O processo que descrevemos como uma súbita catás- isso é incómodo. .. exterminados, como o fazem atual-mente os
trofe que destruiu numa noite a sociedade comunista e a trans- alemães com os negros do Sudoeste Africano (92). Para todos os
formou numa sociedade de produtores privados, demorou mi- povos primitivos nos países coloniais, a passagem do seu
lénios. É verdade que a ideia de uma catástrofe violenta e Estado comunista primitivo ao capitalismo moderno processou-
súbita não é pura fantasia. Ela corresponde à realidade por todo se como uma súbita catástrofe, como uma des-graça inefável
o lado em que os povos que viviam no comunismo primitivo cheia dos mais horríveis sofrimentos. Entre as populações
entram em contato com povos que já estão num alto nível de europeias, não foi uma catástrofe, mas um processo lento,
desenvolvimento capitalista. É o caso para a maior parte dos progressivo e insensível, que durou séculos. Os gregos e os
países ditos selvagens ou semicivilizados, descobertos e con- romanos surgem na história com a propriedade comum. Os
quistados pelos europeus: descoberta da América pelos espa- antigos germanos que vieram do Norte no início ila era cristã e
nhóis, conquista da Índia pelos holandeses, das Índias Orientais penetraram no Sul, destruindo o Império Romano e instalando-
pelos ingleses; ao mesmo tempo que os ingleses, os holandeses e se na Europa, trouxeram com eles a comunidade comunista
os alemães tomaram posse da África. Na maior parte destes primitiva e mantiveram-na durante algum tempo. A economia
casos a penetração súbita dos europeus nestes países foi mercantil dos povos europeus, plenamente formada, só aparece
acompanhada de uma catástrofe na vida dos povos primitivos no fim da Idade Média, nos séculos XV e XVI.
que aí viviam. O que, na nossa hipótese, durava 24 horas, 2. A segunda correção que é necessário fazer à nossa ex-
durou por vezes dezenas de anos. A conquista do país por um
\
91 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: No dinheiro metálico, posição precedente resulta da primeira. Supusemos que, no
desaparece completamente a capa do valor de uso!
92 — No manuscrito esta oração subordinada encontra-se riscada ;i
276 lápis.
277
guir à troca e à especialização das atividades. A formação de
seio da comunidade comunista, todos os ramos possíveis de
ofícios especializados, isto é, uma divisão do trabalho desen-
atividade se tinham já especializado e separado, quer dizer que
volvida, só é possível com a propriedade privada e as trocas
a divisão do trabalho no interior da sociedade tinha atingido um
desenvolvidas. A própria troca só é possível se a divisão do
alto nível de desenvolvimento, de modo que quando ocorreu a
trabalho já existe; com efeito, que sentido teria a troca entre
catástrofe que aboliu a propriedade comum e introduziu a
produtores que produziam todos a mesma coisa? Só quando X,
produção privada e a troca, a divisão do trabalho estava já aí,
por exemplo, produz unicamente sapatos, enquanto Y coze
completamente pronta, para servir de fundamento à troca. Esta
unicamente pão, tem sentido que ambos troquem os seus pro-
suposição é historicamente inexata. No interior da sociedade
dutos. Chegamos portanto a uma estranha contradição: a
primitiva, a divisão do trabalho está pouco desenvolvida, em-
troca só é possível com a propriedade privada e uma divisão do
brionária, enquanto subsiste a propriedade comum. Vimo-lo na
trabalho desenvolvida; a divisão do trabalho, por seu lado, só
comunidade de aldeia indiana. Cerca de doze pessoas somente
pode surgir em consequência da troca e na base da propriedade
se distinguiam da massa dos habitantes e se entregavam a
privada; a propriedade privada, por seu lado, só surge através da
profissões particulares, das quais seis eram artesãos, pro-
troca. Se observardes atentamente, existe mesmo uma dupla
priamente falando: o ferreiro, o carpinteiro, o oleiro, o bar-
contradição: a divisão do trabalho deve existir já antes da troca,
beiro, o tintureiro e o ourives. A maior parte dos trabalhos
e a troca deve existir simultaneamente com a divisão do trabalho.
artesanais, tais como a fiação, a tecelagem, a confeção de
Além disso a propriedade privada é a condição prévia da divisão
roupas, a padaria, o açougue, a salsicharia, etc, eram executa-
do trabalho e da troca e só se pode desenvolver a partir da divisão
dos pelas famílias, como ocupações anexas ao lado dos traba-
do trabalho e da troca. Como é possível uma tal complicação?
lhos agrícolas. É o caso de muitas aldeias russas, na medida em
Movemo-nos manifestamente em círculo, e já o primeiro passo
que a população não foi integrada nas trocas e no comércio. A
para sair da sociedade comunista primitiva se nos apresenta como
divisão do trabalho, isto é a individualização de certas
uma impossibilidade.
atividades sob a forma de profissões especiais e exclusivas, só
Aparentemente, a humanidade tinha sido levada a uma
se pode desenvolver verdadeiramente quando a propriedade
contradição que era preciso resolver para que a evolução pu-
privada e a troca já o estiverem. Um produtor não pode
desse prosseguir. Ora, o impasse não é senão aparente. Uma
consagrar-se a uma produção especializada senão quando puder
contradição é, na realidade, qualquer coisa intransponível para
esperar trocar regularmente os seus produtos por outros. Só o
o indivíduo na vida corrente. Na vida da sociedade, se obser-
dinheiro dá a cada produtor a possibilidade de conservar e de
varmos de mais perto, surgem a cada passo tais contradições. O
acumular o fruto do seu trabalho, e o incita a uma produção
que surge hoje como a causa de um fenómeno é amanhã o seu
regular o mais abundante possível para o mercado. Por outro
efeito, e inversamente, sem que esta contínua mudança das
lado, o produtor não terá interesse em produzir para o mercado
relações impeça a vida da sociedade. O indivíduo, que se
e em juntar dinheiro senão se o seu produto e o lucro que daí
encontra perante uma contradição na sua vida privada, não
tira sejam sua propriedade privada. Na comunidade comunista
pode dar mais nenhum passo. Admite-se de tal modo, mesmo
primitiva, a propriedade privada é excluída e a história mostra-
na vida cotidiana, que a contradição é qualquer coisa de im-
nos que a propriedade privada só apareceu a se-
279
278
possível, que um acusado que se contradiz perante o tribunal passa do milénios a aparecer. A história inicialmente só conhece o comércio
mesmo modo por convicto de falsidade e as contradições podem entre tribos e povos. "Os povos selvagens — diz Laffiteau na sua obra
conduzi-lo à prisão ou à forca. Mas se a soc!c dade humana, no seu sobre os selvagens da América — praticam continuamente a troca
conjunto, se envolve continuamente em contradições, não caminha entre si. O seu comércio tem de comum com o comércio da
por isso para o seu fim, pelo con trário, são as contradições que a Antiguidade o fato de ser uma troca direta de produtos por outros
fazem avançar. A contradição na vida da sociedade resolve-se sempre produtos. Cada um destes povos possui qualquer coisa que os outros
em evolução, em novos progressos da civilização. O grande filósofo não têm, e o comércio faz passar todas estas coisas de um povo para o
Hegel disse: "A contradição é o que faz avançar". Este movimento outro. Tal é o caso do trigo, da olaria, das peles, do tabaco, das
por contradições é o verdadeiro modo como a história humana evolui. mantas, das canoas, do gado selvagem, dos utensílios domésticos, dos
No caso que nos interessa, isto é a passagem da sociedade comunista amuletos, do algodão, numa palavra de tudo o que é necessário para a
à propriedade privada com divisão do trabalho e troca, a contradição sobrevivência humana. . . O seu comércio é levado a cabo pelo chefe
que encontramos resolve-se através de um longo processo histórico. da tribo que representa o povo inteiro" (93).
Esse processo correspondeu na sua essência à descrição que fizemos,
Quando, na nossa exposição precedente, começamos a troca por
com exceção de algumas correções que efetuamos.
um caso isolado — a troca entre o sapateiro e o padeiro — e a
A troca começa efetivamente desde o estágio mais primitivo da
abordamos como qualquer coisa de ocasional, isso correspondia à
comunidade fundada na propriedade comum, e na forma em que
estrita verdade histórica. Inicialmente, a troca entre as diferentes
propusemos, a da troca, quer dizer produto por produto. Encontramos
tribos é puramente ocasional, irregular; depende dos encontros ou
a troca desde as primeiras etapas da civilização. Tal como a
contatos entre eles (94>. É por isso que a primeira troca regular
propriedade privada é uma das condições da troca entre ambas as
aparece entre os povos nómades, porque as suas frequentes
partes e como é desconhecida na propriedade primitiva, a primeira
deslocações os colocam em contato com outros povos. Enquanto a
troca não se efetuou no interior da comunidade ou da tribo, mas no
exterior, não entre os membros de uma mesma tribo, de uma mesma troca é ocasional, só os produtos em excedente, o que sobra uma vez
comunidade, mas entre diferentes comunidades e tribos, onde satisfeitas as necessidades próprias da tribo, são oferecidos em troca.
entraram em contato. Não é tal membro de uma tribo quem negocia Com o tempo, as trocas ocasionais, repetindo-se com mais frequência,
com um estranho à tribo, são os seus chefes quem negociam. Esta tornaram-se um hábito, depois uma regra e pouco a pouco co-meçou-
imagem, difundida entre os sábios economistas burgueses, de um se a fabricar produtos diretamente para a troca. As
caçador e de um pescador primitivos que trocam entre si o peixe e a
carne nas florestas virgens da América, na aurora da civilização, é
portanto uma imagem duplamente falsa. Não havia na Pré-História 93 — Laffiteau: Moeurs des sauvages américans compaiées aux
indivíduos isolados vivendo e trabalhando para eles mesmos, a troca moeurs des premiers temps, 1724, Vol. II, p. 322-323.
94 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): N. B. Escavações
de homem para homem demorou pré-históricas! Anteriores a quaisquer nómades.

280 281
tribos e os povos especializaram-se num ou em vários ramos da com a ocupação particular de cada tribo. Entre os povos de
sua produção com vista à troca. A divisão do trabalho entre as caçadores, a carne é a "mercadoria universal" que propõem em
tribos e comunidades desenvolve-se. O comércio permaneceu troca de todos os produtos possíveis. No comércio da companhia
durante muito tempo uma troca, produto por produto. Em da baía de Hudson, as peles de castor desempenharam esse
muitas regiões dos Estados Unidos, a troca estava espalhada no papel. Entre as tribos de pescadores os peixes são o intermediário
fim do século XVII. Em Maryland, a Assembleia Legislativa natural de todas as operações de troca. Nas ilhas Shetland,
fixava as proporções nas quais se devia trocar o tabaco, o segundo o relato de um viajante francês, mesmo a compra de
azeite, a carne de porco e o pão. Em Comentes, em 1815, um bilhete de teatro se efetua com peixe (96). A necessidade de
jovens mercadores percorriam as ruas gritando: "Sal por velas, possuir uma tal mercadoria apreciada por todos, para servir
tabaco por pão!" Nas aldeias russas, precisamente nos anos de como meio universal das trocas, faz-se por vezes sentir
1890, vendedores ambulantes, chamados Prasols, praticavam a vivamente. Eis por exemplo como Samuel Baker (97), viajante
troca simples com os camponeses. Trocavam todas es espécies bem conhecido, descreveu a sua troca com as tribos negras no
de pequenos objetos, como agulhas, dedais, cintos, botões, pipas, coração da África: "Tornou-se cada vez mais difícil procurar os
sabões, etc, por escovas, penugem, peles de lebre e outros alimentos. Os indígenas só vendem a farinha em troca de carne.
objetos semelhantes. Os louceiros, os funi-leiros, etc, É por isso que a procuramos de seguinte modo: compramos aos
percorriam a Rússia com o seu carro e praticavam um comércio mercadores turcos "martelos" (enxadas) de ferro em troca de
semelhante, trocando os seus produtos por trigo, cânhamo, linho, vestuário e calçado; com os martelos compramos um boi; este é
tela, etc. <95>. levado a uma aldeia afastada e abatido, sendo a carne dividida
Na medida em que as ocasiões de troca se multiplicam e em cerca de cem bocados. Os meus homens sentam-se com esta
se tornam mais regulares, a mercadoria que é mais fácil de carne e com três grandes cestas e os indígenas vêm então e
fabricar e pode mais frequentemente ser trocada destaca-se deixam um pequeno cesto de farinha por bocado de carne. Eis
perfeitamente das outras, em cada região, em cada tribo, ou um exemplo do penoso comércio da farinha na África central".
pelo contrário, aquela que mais falta e que é a mais desejada. O Com a passagem à criação de gado, este tornou-se a mer
sal, por exemplo, e as tâmaras desempenham esse papel no cadoria universal na troca, e a medida universal de valor. Era
deserto do Saara, o açúcar nas índias Ocidentais Inglesas, o o caso dos antigos gregos, conforme a descrição de Homero.
tabaco na Virgínia e em Maryland, o chamado "chá de mo- Quando descreve a armadura de cada herói, diz que a armadu
saico" (uma mistura de folhas de chá e de banha em forma de ra de Glaucus custava cem bois, a de Diomede 9 bois. Mas
mosaico) na Sibéria, o marfim entre os negros de África, os ao lado do gado, alguns outros produtos serviam de moeda
grãos de cacau no antigo México. As particularidades do clima aos gregos dessa época. O mesmo Homero diz que, por altura
e do solo levam, nas diferentes regiões, a pôr de parte uma do cerco de Tróia, pagava-se o vinho de Lemnos quer em bois,
"mercadoria universal" capaz de servir para todo o comércio e
de intermediária nas trocas. A mesma coisa acontece ^
96 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Sieb, p. 247.
95 — "Sieb" p. 246 (sem dúvida Nikolaie Sieber, David Ricardo e 97 — Samuel Baker: Reisezuden Elquellen {Viagem às nascentes
Karl Marx, Moscou, 1879). do Nilo), pp. 221-222.
282
283
III A.C. (99). Com as peças de moeda em ouro e prata, a longa
quer em cobre ou em ferro. Entre os antigos romanos, já o
história milenar da evolução da troca adquiriu a sua forma
dissemos, a noção de "dinheiro" era idêntica à de gado; de resto,
acabada e definitiva.
entre os antigos germanos, o gado era a mercadoria universal.
Com a passagem à agricultura, os metais, o ferro e o cobre O dinheiro, a mercadoria universal, estava já formado
adquiriram uma importância primordial na economia, em parte antes mesmo de se utilizarem os metais para a sua fabricação.
Sob a forma gado, o dinheiro tem já as mesmas funções na
como matéria com que se fabricam as armas e os utensílios
troca que atualmente as moedas de prata: intermediário para as
agrícolas. O metal, produto mais abundante e de um uso mais
operações de troca, medida de valor, meio de entesourar,
generalizado, tornou-se a mercadoria universal e substitui cada
encarnação da riqueza. Não é senão sob a forma metálica que o
vez mais o gado. Torna-se mercadoria universal, em primeiro
destino do dinheiro aparece também sob o seu aspecto exterior.
lugar porque a sua utilidade natural — como matéria de todas as
A troca começa pela troca simples entre dois produtos do
espécies de utensílios — o torna universalmente desejável.
trabalho. Realiza-se porque um dos produtores — uma das
Neste estágio é utilizado no comércio também no estado bruto, comunidades ou tribos — carece dos produtos do outro.
em barras e em pesos. Entre os gregos, o ferro era objeto de uso Ajudam-se mutuamente trocando os produtos do seu trabalho.
geral, entre os romanos o cobre, entre os chineses uma mistura de Com a regularidade de tais operações de troca, um produto
cobre e chumbo. Bem mais tarde, os metais ditos nobres, a prata detém a preferência, porque desejado por todos, torna-se o
e o ouro, foram utilizados para as trocas. Mas também foram intermediário de todas as trocas, a mercadoria universal. Em si,
utilizados no estado bruto em pesos. A origem da mercadoria todo o produto do trabalho poderia tornar-se moeda: os sapatos
universal, da moeda, simples produto útil para qualquer uso, é ou os chapéus, o linho ou a lã, o gado ou o trigo. As
ainda visível(98). O simples bocado de prata que se dava um dia mercadorias mais diversas desempenharam este papel durante
em troca de farinha, podia servir no dia seguinte para fabricar um um certo tempo. A escolha só depende das necessidades
refulgente escudo de cavaleiro. O uso exclusivo dos metais particulares e da ocupação particular dos povos. O gado é
nobres como moeda, quer dizer sob a forma de moedas, era universalmente apreciado como produto útil, como meio de
desconhecido dos hindus, dos egípcios e até dos chineses. Os subsistência. Com o tempo, é desejado como moeda e aceito
antigos judeus só conheciam as peças de metal em peso. Assim, como tal. Porque serve a cada um como tal para conservar os
segundo consta no Antigo Testamento, quando Abraão comprou frutos do seu trabalho sob uma forma trocável a todo o
a Efron o sepulcro para Sara, pagou 400 siclos de prata bem momento, não importa por que produto do trabalho. O gado, ao
pesados. Supõe-se que só se começou a cunhar moeda no século contrário dos outros produtos privados, é o único produto
X ou mesmo no século VIII A.C., e foram os gregos os diretamente social, porque é trocável a todo momento. No gado,
iniciadores. Os romanos aprenderam com os gregos; cunharam exprime-se ainda a dupla natureza da moeda: o gado, facilmente
as primeiras peças de prata e de ouro no século se constata, ainda que mercadoria universal, produto social, é
ao mesmo tempo um simples meio de subsistên-
98 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Por que é que os metais
nobres continuaram a exercer esse papel?
99 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Sieb, p. 248.
284
285
cia que se pode abater e consumir, um produto ordinário do tuário, os utensílios domésticos e até o grão para as semeaduras.
trabalho humano, do trabalho de um povo de pastores. Na peça A Rússia das últimas décadas deu-nos o exemplo de uma tal
de prata a recordação da origem da moeda como simples produto transformação da exploração camponesa, de uma exploração que
já desapareceu. O pequeno disco de ouro cunhado não tem produz para as suas próprias necessidades em uma exploração
outro uso senão o de servir como meio de troca, de mercadoria que produz para o mercado e que caminha para a ruína completa.
universal. Só é mercadoria na medida em que, como qualquer Na antiga escravatura, o comércio trouxe profundas
outra mercadoria, é o produto do trabalho humano, do trabalho transformações. Enquanto os escravos só serviam para a
do pesquisador de ouro e do ourives, mas perdeu todo o uso economia doméstica, para os trabalhos agrícolas ou artesanais,
privado como meio de subsistência, não é mais do que um para as necessidades do senhor e da sua família, a escravatura
bocado de trabalho humano sem qualquer forma útil ou tinha um caráter patriarcal. Só quando os gregos e, mais tarde,
utilizável para a vida privada, já não tem uso a!f;um como meio os romanos adquiriram o gosto pelo dinheiro e começaram a
de subsistência privado, como alimento, vestuário ou adorno ou o produzir para o comércio, é que se iniciou uma desumana
que quer que seja, já não tem por obje-tivo senão o uso exploração dos escravos (102> que finalmente, deu lugar aos
puramente social: serve de intermediário para a troca de outras levantes maciços que, ainda que em si mesmos sem esperança,
mercadorias. É no objeto em si mais desprovido de sentido e de eram presságios e nítidos sinais de que a escravatura era já um
fim, a peça de ouro, que o caráter puramente social do dinheiro, vestígio e se havia tornado um regime insustentável. A mesma
da mercadoria universal, encontra a sua expressão mais pura e coisa se repete com a servidão na Idade Média. Era inicialmente
mais acabada. uma forma de proteção concedida ao campesinato pelos senhores
nobres aos quais os camponeses deviam um tributo determinado
A adoção definitiva do dinheiro (100> sob a sua forma me- em produtos ou em trabalho, tributo que cobria as próprias
tálica tem por consequência uma forte expansão do comércio e necessidades dos senhores. Mais tarde, quando a nobreza
o declínio das relações sociais que visavam anteriormente não descobriu as atrações do dinheiro, os tributos e as prestações em
o comércio, mas o consumo pessoal. O comércio desagrega a trabalho aumentaram incessantemente com fins comerciais, as
velha comunidade comunista, acelera a desigualdade de fortuna corvéias (103> tornaram-se servidão, o camponês foi explorado até
entre os seus membros, o desmoronamento da propriedade à medula (104). A expansão do comércio e a dominação do
comum e finalmente o declínio da própria comunidade (10,). A dinheiro levaram a substituir as prestações em produtos dos
pequena exploração camponesa livre, que apenas produz para ela servos por impostos em dinheiro. A última hora de todas as
própria e só vende o supérfluo para fazer um "pé-de-meia", foi relações feudais soou. O comércio da Idade Média traz força e
pouco a pouco forçada, em particular com a introdução do riqueza às cidades e produz também a decadência e a dissolução
imposto em dinheiro, a vender finalmente toda a sua produção, das antigas corporações. O aparecimento do dinheiro-metal dá
para comprar em seguida os alimentos, o ves- origem ao comércio mundial.
100 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: N. B. Substituição
dos metais correntes por metais preciosos, ouro. 102 — Karl Marx: O Capitai, t. I, p. 197.
101 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Fornecer mais de- 103 — Cf. nota 2, pág. 84, volume II da presente obra. (N. T.)
talhes . 104 — Karl Marx: O Capital, t. I, p. 234-235.

286 287
Desde a Antiguidade, alguns povos, como os fenícios, consa- IV
graram-se ao papel de mercadores entre os povos para adqui- Uma vez que a economia mercantil se converteu na forma
rirem deste modo somas de dinheiro e acumularem riquezas sob dominante da produção na Europa, pelo menos nas cidades, no
a forma de dinheiro. Na Idade Média, este papel cabe às século XVIII, os cientistas começaram a interrogar-se sobre os
fundamentos desta economia. A troca só se faz por intermédio
cidades, sobretudo às cidades italianas. Depois da descoberta
do dinheiro e o valor de cada mercadoria na troca exprime-se em
da América e do caminho marítimo para as Índias Orientais no
dinheiro. Que pode então significar esta expressão do valor em
fim do século XV, o comércio mundial sofre uma súbita dinheiro e em que assenta o valor de cada mercadoria no
expansão: os novos países ofereciam ao mesmo tempo novos comércio? Tais são as primeiras questões que a economia
produtos e novas minas de ouro, quer dizer a matéria-prima do política estudou. Na segunda metade do século XVIII e no
dinheiro. Após as enormes importações de ouro provenientes da início do século XIX, os ingleses Adam Smith e David Ricardo
América, no século XVI, as cidades do Norte da Alemanha — fizeram esta grande descoberta de que o valor de uma mercadoria
principalmente as cidades da Hansa — obtêm enormes riquezas; é o trabalho humano incorporado nela, que na troca de
depois é a vez da Holanda e da Inglaterra. Nas cidades mercadorias se trocam quantidades iguais de trabalho diferente.
europeias e, em grande parte, no campo, a economia mercantil, O dinheiro não é mais do que o intermediário e só exprime a
quantidade de trabalho incorporado em cada mercadoria. É
quer dizer a produção com vista à troca, tornou-se a forma
surpreendente que se possa falar de uma grande descoberta,
dominante da vida económica. A troca começa nas trevas da porque se poderia acreditar que não há nada de mais claro e que
Pré-História, nas fronteiras das tribos comunistas selvagens, é mais evidente dizer que a troca das mercadorias repousa no
cresce e desenvolve-se à margem de todas as sucessivas trabalho incorporado nelas. O habite geral e exclusivo que levou
organizações económicas planificadas (,05), simples economia a expressar o valor das mercadorias em outro tinha encoberto
camponesa livre, despotismo oriental, escravatura antiga, esta evidência. Quando o sapateiro e o padeiro trocam os seus
servidão e feudalismo da Idade Média, corporações urbanas, produtos, concebe-se claramente que a troca se produz porque
depois devora-as uma após outra, contribui para o seu apesar do seu uso diferente cada um dos produtos exigiu
desmoronamento (106) e estabelece finalmente a dominação da trabalho, que um tem o mesmo valor que o outro na medida em
que exigiram o mesmo tempo de trabalho. Se digo que um par
economia de produtores privados isolados, completamente anár-
de sapatos custa dez marcos, esta expressão é a princípio
quica, e sem planificação como forma única da economia do- completamente misteriosa. Que têm em comum um par de
minante . sapatos e 10 marcos? Em que é que são idênticos e se podem
trocar? Como é que se podem comparar coisas tão diferentes,
Como é que se pode aceitar em troca de um produto útil como
105 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: N. B. Despesas extraordinárias da sapatos um objeto tão inútil e desprovido de sentido como os
sociedade sem plano: tem que reproduzir toda a sua riqueza no dinheiro.
pequenos discos de ouro ou prata cunhados? Como se faz
106 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: N. B. Significado do comércio
para a civilização depois... (ilegível). Ligação internacional. finalmente com que
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estes pequenos discos de metal tenham o poder mágico de se Esta concepção ingénua significa que os fundadores da
trocar por tudo no mundo? economia política estavam persuadidos de que a ordem capi-
Os fundadores da economia política, os Smith, os Ricardo, talista na qual tudo é mercadoria e tudo é apenas produto para
não chegaram a responder a todas estas questões. Descobrir que ti comércio, é a única ordem social possível e eterna, que du-
no valor de troca de toda a mercadoria, e no dinheiro também, há rará tanto tempo quanto o género humano viver sobre a terra.
simplesmente trabalho humano, e que assim o valor de Karl Marx que, como socialista, não considerava a ordem
qualquer mercadoria é tanto maior quanto maior o tempo de Capitalista como a única ordem eternamente possível mas como
trabalho exigido na sua produção e inversamente, é apenas Uma forma social histórica e passageira, foi o primeiro a esta-
reconhecer metade da verdade. A outra metade da verdade belecer comparações entre a situação atual e a das épocas ante-
consiste em explicar como e porque é que o trabalho humano riores. Ficou assim demonstrado que os homens viveram e tra-
assume a forma estranha do valor de troca e a forma misteriosa balharam durante milénios desconhecendo completamente o
do dinheiro. Os fundadores ingleses da economia política não
dinheiro e a troca. Não é senão na medida em que todo o tra-
se interrogaram sobre esta questão porque consideravam o fato
balho comum e planificado cessou na sociedade e que a socie-
de criar as mercadorias para a troca e para o dinheiro como uma
dade se desagregou numa massa informe e anárquica de pro-
propriedade natural do trabalho humano. Por outras palavras,
duiores livres e independentes, assente na propriedade privada,
admitiam que o homem deve produzir por suas mãos
que a troca se tornou o único meio de unir os indivíduos
mercadorias para o comércio tão naturalmente como comer e
beber, como ter cabelos na cabeça e um nariz no meio da cara. aiomizados e as suas atividades em uma economia social coe-
Acreditavam nisto tão firmemente que Adam Smith se rente. O plano económico comum que precede a produção foi
interrogou se os animais não comerciavam entre eles e só substituído pelo dinheiro que se tornou o único vínculo social
responde negativamente porque não se observaram tais exemplos direto porque é a única realidade comum aos numerosos tra-
entre os animais. Diz ele: "Ela (a divisão do trabalho) é a balhos privados, porção de trabalho humano sem qualquer uti-
consequência necessária, ainda que lenta e progressiva, duma lidade, produto desprovido de sentido e inapto para qualquer
certa tendência da natureza humana (...) a tendência para trocar, uso na vida privada. Esta invenção desprovida de sentido é
para a ajuda recíproca e para negociar uma coisa por outra. Não pois uma necessidade sem a qual a troca e, por conseguinte,
cabe aqui estudar se esta tendência é um desses instintos ioda a história da civilização depois da dissolução do comu-
inerentes à natureza humana, que não se pode explicar ou, o que nismo primitivo seria impossível. Os teóricos da economia
é mais provável, se é a consequência necessária da razão e da política burguesa consideram o dinheiro como uma coisa im-
linguagem. É comum a todos os homens e não se encontra em portante e indispensável, mas unicamente do ponto de vista da
nenhuma outra espécie animal que parece não conhecer nem este conveniência puramente exterior das trocas. Na realidade Dão
género de contrato nem nenhum outro" (107). se pode dizer isto do dinheiro a não ser no sentido em que se diz
por exemplo que a humanidade inventou a religião por
107 - Adam Smith: Wealth of Nations {Riqueza das Nações). comodidade. O dinheiro e a religião são dois prodigiosos pro-
dutos da civilização humana, têm a sua origem em situações
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muito precisas e passageiras e, tal como apareceram à luz do se corretamente a troca das mercadorias, a igualdade e a jus-tiça
dia, tornar-se-ão um dia supérfluos. As enormes despesas integrais deviam reinar na sociedade. Porque se trocando
anuais com a produção de ouro, com as despesas do culto, tal lempre trabalho por trabalho em quantidades iguais, é impos-
como as despesas consagradas às prisões, ao militarismo, à sível que se produza uma desigualdade das riquezas, salvo a,
assistência pública, que pesam gravemente na economia social bem merecida, entre o trabalhador laborioso e o preguiçoso, t
e são despesas necessárias desta forma de economia, desapare- ioda a riqueza social deve pertencer necessariamente aos que
cerão elas próprias com o desaparecimento da economia mer- trabalham, à classe operária. Se mesmo assim vemos <108) na
cantil . sociedade atual grandes diferenças na situação dos homens, a
A economia mercantil, no seu mecanismo interno, pare-ce- riqueza ao lado da miséria (e a riqueza precisamente entre
nos uma ordem económica maravilhosamente harmoniosa e que aqueles que não trabalham), a miséria entre aqueles cujo tra-
assenta nos mais elevados princípios da moral. Porque, balho criou todos os valores, é necessário que isso resulte ma-
primeiramente, reina uma perfeita liberdade individual; cada nifestamente de alguma desonestidade na troca, devido ao fato
um trabalha no que quer, como quer, quando quer e a seu bel- do dinheiro intervir como intermediário na troca dos produtos do
prazer; cada um é senhor de si próprio e só se deve preocupar trabalho. O dinheiro encobre o fato da verdadeira origem de
com a sua própria vida. Em segundo lugar, uns trocam as suas todas as riquezas ser o trabalho; provoca contínuas oscilações
mercadorias, isto é o produto do seu trabalho, pelos produtos dos preços e dá a possibilidade de preços arbitrários, fraudes e
dos outros, o trabalho troca-se por trabalho, em quantidades acumulações de riquezas à custa de outros. Suprimamos pois o
iguais em média. Reina pois uma igualdade e uma reciprocidade dinheiro! Este socialismo que visa a supressão do dinheiro
total de interesses. Em terceiro lugar, na economia mercantil, só apareceu inicialmente na Inglaterra onde, desde os anos 20 e 30
existe mercadoria por mercadoria, produto do trabalho por do século passado, muitos autores talentosos, como Thompson,
produto do trabalho. Existe pois a maior equidade. Bray e outros, o defendiam; depois o "gentleman" conservador
Efetivamente, os filósofos e os homens políticos do século pomeraniano e brilhante economista Rodbertus reinventou este
XVIII que lutavam pelo triunfo da igualdade económica, pela tipo de socialismo na Prússia e, em terceiro lugar, Proudhon
abolição dos últimos vestígios das antigas relações de dominação, reinventou este socialismo na França em 1849. Fizeram-se
dos regulamentos das corporações e da servidão feudal, os mesmo ensaios práticos. Sob a influência de Bray criaram-se
homens da Grande Revolução Francesa prometiam à em Londres e em outras cidades inglesas "Bazares para a justa
humanidade o paraíso na terra, o reino da liberdade, da igualdade troca do trabalho" onde as mercadorias eram levadas e trocadas
e da fraternidade. rigorosamente segundo o tempo de trabalho nelas contido, sem
intermédio do dinheiro. Proudhon propôs também para este
Eminentes socialistas eram da mesma opinião na primeira efeito a fundação do seu "banco popular". Estas tentativas e a
metade do século XIX. Quando a economia política científica própria teoria depressa abriram falência. Na realidade, a troca de
foi fundada e Smith e Ricardo fizeram esta grande descoberta mercadorias sem dinhei-
de que todo o valor das mercadorias assenta no trabalho huma-
no, alguns amigos da classe operária pensaram que ao operar- 108 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): Cf. John
Bellers, Bernstein, Eng. Rev., p. 354.
292 293
ro é impensável e as variações de preço que se queriam suprimir são o
único meio de indicar aos produtores se produzem muito ou muito
pouco uma mercadoria, se empregam na sua produção mais ou menos
trabalho do que o necessário, se fabricam ou não as mercadorias
necessárias. Se suprimido este único meio de entendimento entre
produtores de mercadorias isolados numa economia anárquica, estes CAPITULO V
estarão completamente perdidos pois além de surdos-mudos serão
também cegos. Então a produção tem que parar, e a Torre de Babel
capitalista cai. Os planos socialistas que queriam fazer da produção O TRABALHO ASSALARIADO
mercantil capitalista uma produção socialista com simples supressão
do dinheiro são portanto uma pura utopia. I
Que há então, na realidade, de liberdade, de igualdade e de Todas as mercadorias se trocam pelo seu valor, quer dizei segundo o
fraternidade na produção mercantil Como se pode formar uma tempo de trabalho socialmente necessário nelas imitido. Se o dinheiro
desigualdade de riquezas nesta produção mercantil em que cada um desempenha o papel de intermediário, nem por isso se altera este
não pode obter o que quer que seja senão por um produto do trabalho fundamento da troca: o dinheiro Dfto é mais do que a expressão do
e em que os valores iguais se trocam por valores iguais. A economia trabalho social, e a quantidade de valor contido em cada mercadoria
capitalista caracteriza-se no entanto pela extrema desigualdade exprime-se pela quantidade de dinheiro pela qual a mercadoria é
existente na situação material dos homens, pela acumulação de vendida. Na base desta lei do valor, reina uma igualdade completa entre
riquezas em algumas mãos e pela miséria crescente das massas. A as mercadorias no mercado. Reinaria também uma igualdade completa
questão que logicamente resulta do que até aqui se disse, é portanto a entre os vendedores de mercadorias se não houvesse ia ire os milhões de
seguinte: Como é que a economia mercantil e a troca das mer- diferentes mercadorias que se trocam no mercado, uma mercadoria de
cadorias pelo seu valor tornam possível o capitalismo? natureza completamente particular: a força de trabalho. Esta
mercadoria é levada ao mercado por aqueles que não possuem meios
de produção que permitam produzir outras mercadorias. Numa
sociedade que assenta na troca de mercadorias, não se obtém nada por
outra via que não seja a da troca. Quem não leva mercadorias ao
mercado não tem meios de subsistência. A mercadoria é o único título
que dá ao homem acesso a uma parte do produto social, e ao mesmo
tempo é a medida dessa participação. Todo o homem obtém em
mercadorias da sua escolha uma parte que corresponde à quantidade de
trabalho socialmente neces-
295
294
sário que ele forneceu sob a forma de mercadoria. Para viver, todo o Cadoria, o valor da força de trabalho traduz-se no mercado por um
homem deve pois fornecer e vender uma mercadoria. A produção e a preço, isto é, em dinheiro. A expressão monetária, quer dizer o preço
venda de mercadorias tornou-se a condição da existência humana. da mercadoria "força de trabalho", cha-ma-se salário. Para qualquer
Para produzir, não importa que mercadoria, são necessários meios de outra mercadoria, o preço sobe quando a procura aumenta mais
trabalho, utensílios, maté-rias-primas, um local de trabalho, uma rapidamente que a oferta, c baixa quando pelo contrário, a oferta é
oficina com as condições necessárias de trabalho, iluminação, etc, maior que a procura. Passa-se a mesma coisa no que diz respeito à
enfim uma certa quantidade de alimentos para viver durante a duração mercadoria "força de trabalho": quando a procura de trabalhadores
da produção e até à venda da mercadoria. Somente algumas mer- aumenta, os salários têm tendência a subir; se a procura diminui ou se
cadorias insignificantes podem ser produzidas sem meios de 0 mercado de trabalho está saturado de mercadoria fresca, os salários
produção, por exemplo os cogumelos ou os frutos apanhados na têm tendência a baixar. Como para qualquer outra mercadoria, o valor
floresta, os moluscos que os habitantes das zonas próximas do mar da força de trabalho e, portanto, o seu preço, aumentam se a
apanham na praia. Mesmo aqui, são precisos alguns meios de
quantidade de trabalho necessária à sua produção, no caso presente os
produção, cestos por exemplo, e em todo o caso víveres que permitam
meios de subsistência, exigem mais trabalho para a sua própria
subsistir durante este trabalho. A maior parte das mercadorias exigem
produção. Inversamente, toda a economia de trabalho na fabricação
gastos importantes, por vezes enormes, em meios de produção, em
dos meios de subsistência do trabalhador provoca uma baixa do valor
toda a sociedade de produção mercantil desenvolvida. A quem não
da força de trabalho, assim como do seu preço, o salário. "Diminuí o
tem estes meios de produção, a quem não pode produzir mercadorias,
custo de produção dos chapéus, escrevia Ricardo em 1817, e o seu
não resta mais do que levar a si mesmo, quer dizer a sua própria força
preço descerá finalmente ao seu novo preço natural, mesmo se a
de trabalho, como mercadoria ao mercado.
procura se multiplicar por dois, três ou quatro. Diminuí os gastos de
Como qualquer outra mercadoria, a mercadoria "força de manutenção dos homens baixando o preço natural dos víveres e do
trabalho" tem o seu valor determinado. O valor de toda a mercadoria vestuário necessários para viver, e vereis que os salários baixarão,
pela quantidade de trabalho necessária à sua produção. Para produzir mesmo se a procura de trabalhadores subir consideravelmente".
a mercadoria "força de trabalho", é igualmente necessária uma A mercadoria "força de trabalho" não se distingue em nada das
determinada quantidade de trabalho, o trabalho que produz a outras mercadorias no mercado, senão pelo fato de ser inseparável do
alimentação, o vestuário, etc, para o trabalhador. A força de trabalho seu vendedor, o trabalhador, e não supor-lar esperar bastante tempo o
de um homem vale o trabalho que é necessário para o manter em comprador, porque morrerá com o seu portador, o trabalhador, por
estado de trabalhar, para conservar a sua força de trabalho. O valor da falta de víveres, ao passo que a maior parte das mercadorias pode
mercadoria "força de trabalho" é portanto representada pela quantida- esperar mais ou menos algum tempo a sua venda. A particularidade
de de trabalho necessária à produção dos meios de subsistência para o da mercadoria "força de trabalho" não se manifesta pois no mercado
trabalhador. Por outro lado, como para toda a mer- onde

296 297
só o valor de troca desempenha um papel. Esta particularidade reside por outro lado sobretrabalho^^ ao comprador. A força de Irabalho
no valor de uso dessa mercadoria. Toda a mercadoria é tem efetivamente esta propriedade. Mas que significa isso? É uma
comprada pelas vantagens que o seu uso pode trazer. propriedade natural do homem ou do trabalhador poder fornecer
Compra-se sapatos para proteger os pés, uma chávena para sobretrabalho'] Pois bem, na época em que o homem tinha
beber chá. Para que pode servir a força de trabalho que se necessidade de um ano para confeccionar um machado de pedra,
compra? Evidentemente, para trabalhar. Não estamos mais vários meses para fabricar um arco, ou [azia fogo esfregando durante
adiantados. Em todos os tempos, os homens puderam e tiveram horas dois bocados de madeira tiin contra o outro, o empresário mais
que trabalhar, desde que a humanidade existe, e no entanto passaram- vivo e desprovido de escrúpulos não poderia extorquir de um
se milénios em que a sua força de trabalho só pudesse produzir meios homem o mínimo sobretrabalho. É necessário um certo nível de
produtividade do trabalho para que o homem possa fornecer
de subsistência para ele próprio, a compra de uma tal força de trabalho,
sobretrabalho. É preciso que os utensílios, a habilidade, o saber, o
logo a força de trabalho como mercadoria, não teria nenhum sentido.
domínio das forças da natureza tenham já atingido um nível suficiente
Porque se alguém compra e paga a força de trabalho, depois a faz
para que a força de um homem esteja em estado de produzir os meios
trabalhar com os seus próprios meios de produção e se só obtém como
de subsistência necessários não só a ele mesmo, mas eventualmente a
resultado com que manter o portador da mercadoria comprada, o
outros. Este aperfeiçoamento dos utensílios, este saber, este
trabalhador, isso quereria dizer que o trabalhador, ao vender a sua força domínio da natureza só se adquirem através da experiência dolorosa e
de trabalho, obtém os meios de produção de outrem e, com eles, milenária da sociedade humana. A distância que existe entre os
trabalha para ele mesmo. Tal negócio seria tão absurdo do ponto de primeiros utensílios de pedra grosseiramente talhados, a descoberta do
vista da troca de mercadorias como se alguém comprasse sapatos para fogo, e as atuais maquiei ninas a vapor e elétricas, é toda a evolução
oferecer, em seguida, ao sapateiro. Se a força de trabalho humano social da humanidade, evolução que só foi possível no interior da
não permitisse outro uso, não teria nenhuma vantagem para o sociedade, pela vida em comum e pela cooperação entre os homens.
comprador e não poderia aparecer como mercadoria. Pois só os Esta produtividade do trabalho que confere à força do trabalho do
produtos que trazem certas vantagens podem figurar como atual trabalhador assalariado a propriedade de fornecer sobretrabalho
mercadorias. Para que a força de trabalho pudesse ser uma não é uma particularidade fisiológica inata do homem, é um fenómeno
mercadoria, não bastaria que o homem pudesse trabalhar quando se lhe social, o fruto de uma longa evolução. O sobretrabalho da mercadoria
dá meios de produção, é necessário que possa trabalhar mais do que o "força de trabalho" não é mais do que um outro nome da
necessário à sua própria manutenção. É preciso que possa trabalhar produtividade do trabalho social que permite ao trabalho de um
não só para a sua manutenção mas para o seu amo, o comprador da sua homem manter vários.
força de trabalho. É preciso que a mercadoria "força de trabalho"
109 — O trabalho necessário é o tempo de trabalho durante o qual o operário
possa substituir, pelo uso que se faz dela, quer dizer pelo trabalho, o reproduz o valor da sua força de tabalho. O trabalho desenvolvido para além disso, que
produz a mais-valia para o capitalista, é o sobretrabalho. O dia de trabalho é
seu próprio preço, o salário, e fornecer precisamente a soma do trabalho necessário e do sobretrabalho. (N. T.)

298 299
de apatia em que permanecem desde há séculos, enquanto as
A produtividade do trabalho, sobretudo quando as condi-
bananeiras não tiverem sido cortados por ordem do rei". Esta
ções naturais a favorecem, num nível primitivo de civilização,
"apatia", do ponto de vista capitalista europeu, é precisamente o
não conduz sempre e em todo o lado à venda da força d:
trabalho e à sua exploração capitalista. Vejamos essas regiões estado de espírito dos povos que ainda vivem no comunismo
tropicais da América Central e do Sul, que foram desde a des- primitivo em que o princípio do trabalho humano é a satisfação
coberta da América e até ao início do século XIX colónias das necessidades naturais do homem, e não a acumulação de
espanholas, regiões de clima quente e de solo fértil onde as riquezas. Enquanto estas relações predominam, não se pode
bananas são o principal alimento das populações. "Duvido — pensar na exploração dos homens por outros homens, por maior
escreveu Humboldt — que exista algures na Terra uma planta que seja a produtividade do trabalho, nem na utilização da força
que produza uma tal quantidade de matéria nutritiva numa de trabalho humano para a produção de sobre-Irabalho.
superfície de terra tão pequena". "Meio hectare, plantado de O empresário moderno não foi o primeiro a descobrir esta
bananas da espécie grande, calcula Humboldt, pode produzir propriedade da força de trabalho. Desde os tempos antigos que
alimento para mais de cinquenta pessoas, enquanto na Europa, encontramos a exploração do sobretrabalho por aqueles que
o mesmo meio hectare forneceria apenas 576 kg de farinha num trabalham. A escravatura na Antiguidade e a servidão na Idade
ano — quantidade que seria insuficiente para alimentar duas Média repousam ambas no nível já atingido da produtividade,
pessoas". Ora a banana exige poucos cuidados; basta remover isto é, sobre a capacidade do trabalho humano para manter mais
uma ou duas vezes a terra à volta da raiz. "Na base das do que um homem. Ambas são a expressão diferente da
Cordilheiras, nos vales úmidos de Veracruz, Valladolid e maneira como uma classe da sociedade tira proveito desta
Guadalajara, continua Humboldt, um homem que só consagra produtividade fazendo-se manter por outra classe. Nesse
dois dias de trabalho leve por semana, pode produzir víveres sentido, o escravo antigo e o servo medieval são os antepassados
para toda a sua família". É evidente que em si a produtividade diretos do atual operário assalariado. Nem na Antiguidade nem
do trabalho permite aqui a exploração, e um sábio de alma na Idade Média a força de trabalho se tornou uma mercadoria
autenticamente capitalista, Malthus, exclama, chorando, ao apesar da sua produtividade e da sua exploração. O que há de
descrever este paraíso terrestre: "Que enormes meios para a particular nas relações atuais do trabalhador assalariado com o
produção de riquezas infinitas!" Por outras palavras: que mina
empresário, o que as distingue da escravatura e da servidão, é a
de ouro seria o trabalho destes comedores de bananas para
liberdade pessoal do trabalhador. A venda da força de trabalho é
empresários audaciosos se pudessem pôr estes preguiçosos a
um negócio privado do homem, é voluntária e assenta na total
trabalhar! Na realidade, os habitantes destas regiões benditas não
liberdade individual. Põe como condição ao trabalhador não
pensavam em esforçar-se para acumular dinheiro, observavam um
possuir meios de produção. Se os tivesse, produziria ele próprio
pouco as árvores de tempo a tempos, comiam as suas bananas
as mercadorias e não venderia a sua força de trabalho. A
com bom apetite e passavam o seu tempo livre ao sol a gozar a
vida. Humboldt diz de maneira muito característica: "Nas separação da força de trabalho e dos meios de produção é o que,
colónias espanholas, ouve-se frequentemente dizer que os ao lado da liberdade
habitantes da zona tropical não sairão do estado
301
300
força de trabalho do que a necessária para a sua própria
pessoal, faz da força de trabalho uma mercadoria. Na economia
vida e para o seu luxo, porque o fim da produção pelos escravos
escravagista, a força de trabalho não está separada dos meios de
era o consumo e não a venda de mercadorias. Era interdito aos
produção, constitui ela mesma um meio de produção, e pertence
proletários romanos viver do seu trabalho, não lhe restando senão viver
como propriedade privada ao senhor, tal como os utensílios, as
da mendicidade estatal, da distribuição periódica de víveres. Em vez
matérias-primas, etc. O escravo não é mais do que uma parte da
do trabalho assalariado, surgiu na Roma antiga a sustentação dos
massa indistinta dos meios de produção para o seu proprietário. Na
homens livres à custa do Estado. O economista francês Sismondi disse
servidão, a força de trabalho está ligada ao meio de produção; a gleba
a este propósito: "Na Roma antiga, a sociedade mantinha os seus
não é mais do que um acessório do meio de produção. As corvéias e
proletários, hoje os proletários mantêm a sociedade". Se hoje o
os tributos não são fornecidos por pessoas, mas pela terra; se a terra
trabalho dos proletários para o seu próprio sustento e para o de outras
passa para outras mãos de trabalhadores por herança, ou de outro
pessoas, se a venda da sua força de trabalho é possível, é porque o
modo, o mesmo acontece com os tributos.
trabalho livre é a única forma da produção c porque, como produção
Agora, o trabalhador é pessoalmente livre, não é propriedade de
mercantil, não tem por fim o consumo direto, mas a venda. O
ninguém, já não está ligado aos meios de produção. Os meios de
proprietário de escravos comprava escravos para a sua comodidade e
produção estão numa mão, a força de trabalho noutra; os dois
para o seu luxo, o senhor feudal extorquia corvéias e tributos aos seus
proprietários encontram-se frente a frente como compradores e como
servos com o mesmo fim: viver faustosamente com a sua família. O
vendedores livres e autónomos — o capitalista como comprador, o
empresário moderno não faz os trabalhadores produzir víveres, estuário,
trabalhador como vendedor da força de trabalho. A liberdade pessoal
objetos de luxo para o seu consumo; os faz produzir mercadorias para as
e a separação entre a força de trabalho e os meios de produção não
vender, o que faz dele um capitalista e do trabalhador um assalariado.
levam sempre ao trabalho assalariado, à venda da força de trabalho,
mesmo quando a produtividade do trabalho é elevada. Vimos um A venda da força de trabalho como mercadoria implica ioda
exemplo na antiga Roma, quando a massa dos pequenos camponeses uma série de relações históricas e sociais determinadas. O
livres foi expulsa das suas terras com a formação de grandes domí-
aparecimento da mercadoria "força de trabalho" no mercado indica:
nios nobres que exploravam os escravos. Permaneceram pes-
1) que o trabalhador é pessoalmente livre; 2) que está separado dos
soalmente homens livres mas não possuindo terras, logo meios de
meios de produção e que estes estão concentrados nas mãos daqueles
produção, afluíram a Roma como proletários livres. Entretanto, não
que não trabalham; 3) que ;i produtividade do trabalho tem um nível
podiam vender aí a sua força de trabalho porque não teriam
encontrado compradores; os proprietários ricos e os capitalistas não elevado; é possível fornecer sobretrabalho; 4) que a economia
tinham necessidade de comprar força de trabalho livre porque eram mercantil é dominante, quer dizer que a criação de sobretrabalho sob
mantidos pelos seus escravos. O trabalho dos escravos bastava agora a forni i de mercadorias para a venda é o objetivo da compra da força
plenamente para satisfazer as necessidades dos grandes proprietários de trabalho.
que os faziam fabricar todas as coisas possíveis. Ora eles não podiam
303
utilizar mar.

302


$
Do ponto de vista do mercado, a compra e a venda da trabalho de todo o operário compõe-se de duas partes: uma parle
mercadoria força de trabalho é um assunto completamente comum, paga, em que o operário não faz mais do que restituir 0 valor da sua
como milhares de outros, como quem compra botas ou cebolas. O subsistência, em que ele trabalha por assim dizer para ele mesmo, e
valor da mercadoria e as suas variações, o seu preço e as suas uma parte não paga, na qual faz trabalho gratuito ou sobretrabalho
oscilações, a igualdade e a independência do comprador e do para o capitalista.
vendedor no mercado, o caráter livre do negócio — tudo isto é A situação era semelhante para as formas anteriores de
exatamente idêntico a qualquer outra operação de compra. Entretanto, exploração social. Na época da servidão, o trabalho do servo para ele
o valor de uso particular desta mercadoria, as relações particulares que próprio e o seu trabalho para o senhor eram mesmo distintos no
este valor de uso cria, fazem desta operação cotidiana do universo tempo e no espaço. O camponês sabia exatamente quando e em que
mercantil uma relação social particular. Vejamos o que se desenvolve quantidade trabalhava para ele próprio e em que quantidade
a partir desta operação de mercado. trabalhava para a sustentação do seu senhor nobre ou religioso. Ele
trabalhava alguns dias no seu próprio campo, depois alguns dias nas
II terras senhoriais. Ou então trabalhava de manhã no seu campo e à
O empregado compra a força de trabalho e, como todo o tarde no do senhor, ou então ainda algumas semanas no seu, e segui-
comprador, paga o seu valor, quer dizer os gastos de produção, pagando damente algumas no campo senhorial. Numa aldeia da Aba-di;i de
ao operário um preço em salário que cobre a sua manutenção. A força Maurusmuenster, na AIsácia, em meados do século XII, is corveias
de trabalho comprada é capaz, com os meios de produção utilizados em estavam por exemplo fixadas como se segue: de meados de Abril a
média na sociedade, de produzir mais que os simples custos de meados de Maio, cada família camponesa fornecia um homem três
manutenção. Isto constitui já uma condição de toda a operação que, de dias completos por semana, de Maio Bté o dia de S. João uma tarde
outro modo, não teria sentido; nisto reside o valor de uso da mercadoria por semana, do dia de S. João Bté à ceifa, dois dias por semana, na
"força de trabalho". Dado que o valor da subsistência da força de época da colheita três tardes por semana e, do S. Martinho ao Natal,
trabalho é determinado, como qualquer outra mercadoria, pela três dias completos por semana. No fim da Idade Média, com os
quantidade de trabalho necessária à sua produção, podemos admitir que progres-BOS da servidão, as corveias aumentaram tanto, na
a alimentação, o vestuário, etc, que permitem manter cotidianamente o realidade. que quase todos os dias da semana e todas as semanas do
trabalhador em estado de trabalhar, exigem por exemplo seis horas de ano lhes correspondiam, de modo que o camponês não tinha quase
trabalho. O preço de mercadoria "força de trabalho", quer dizer o mais tempo para cultivar o seu próprio campo. Mesmo então, sabia
salário, deve representar em dinheiro seis horas de trabalho. O operário que não trabalhava para ele, mas para os outros. A este respeito não
não trabalha seis horas para o seu patrão, trabalha mais tempo, digamos era possível enganar o mais tonto dos camponeses.
por exemplo onze horas. Nestas onze horas, restitui ao patrão nas No trabalho assalariado moderno, a situação é completamente
primeiras seis o salário recebido, acrescentando depois cinco horas de diferente. O operário não produz durante a primeira parte da sua
trabalho gratuito. A jornada de jornada de trabalho os objetos de que tem neces-

304
305
sidade: alimentos, vestuário, etc, e seguidamente outras coisas para o OU o servo forneciam o seu trabalho para as necessidades pri-,, para
patrão. O operário fabril produz todo o dia o mesmo objeto, um consumo do senhor. Produziam para ele víveres, vestuário, móveis,
objeto de que ele próprio só tem necessidade numa pequena parte ou objetos de luxos, etc. Isto era normal antes que a escravatura e a
até em nenhuma: molas de aço, correias de borracha, tecidos de seda servidão degenerassem e declinassem sob I Influência do comércio.
ou tubos de ferro fundido. Na sua massa indistinta, as molas de aço, As capacidades de consumo do homem, mesmo o luxo da vida
as correias ou o tecido que produz ao longo da jornada de trabalho, privada, têm os seus limites em coda época. O antigo proprietário de
são todas parecidas, não se nota nelas a mínima diferença, se uma escravos ou o nobre da Idade Média não podia ter mais do que
parte representa trabalho pago ou não pago, se uma parte é para o celeiros cheios, estábulos cheios, ricos vestuários, uma vida opulenta
trabalhador e outra para o patrão. Pelo contrário, o produto no qual o para eles e para o seu séquito, mansões luxuosamente mobiliadas.
operário trabalha não tem para ele qualquer utilidade e não lhe Não • possível conservar em grandes reservas os objetos de uso
pertence a mínima parcela; tudo o que o operário produz pertence ao i o i i d i a n o senão eles se deterioram: o cereal entra facilmente cm
empresário. Eis uma grande diferença exterior entre o trabalho putrefação ou os ratos podem comê-lo, as reservas de feno I de palha
assalariado e a servidão. O servo tinha pouco tempo para trabalhar no incendeiam-se facilmente, os vestuários estragam-se, Itc, os produtos
seu próprio campo e o trabalho que fazia para ele mesmo pertencia- lácteos, as frutas e os legumes dificilmente onservam. O consumo
lhe. No caso do trabalhador assalariado moderno, todo o produto per- tinha, mesmo em caso de vida mui-io opulenta, os seus limites
tence ao patrão e o seu trabalho na fábrica parece não ter nada de nautrais na economia de servidão ou de escravatura e, por isso
comum com a sua sustentação. Ele recebeu o seu salário e pode fazer mesmo, a exploração do escravo ou do servo tinha os seus limites. O
dele o que quiser. Em troca, deve executar o trabalho que o patrão lhe mesmo acontece para
indica e tudo o que produz pertence ao patrão. A diferença, invisível 0 empresário que compra a força de trabalho para produzir
para o trabalhador, aparece nos cálculos do patrão quando calcula o mercadorias. Na maior parte do tempo, o que o trabalhador pioduz na
que lhe acrescenta a produção dos seus operários. O que lhe resta fábrica não é útil, nem a ele nem ao patrão. Este Último não faz
como lucro é precisamente o valor criado pelo trabalho não pago, isto produzir vestuário ou alimento para ele, mas uma mercadoria de que
é a mais-valia criada pelos operários. Todo o trabalhador produz não tem necessidade alguma. Faz produzir os tecidos de seda, os
inicialmente o seu próprio salário, depois a mais-valia com que tubos ou os caixões para se desembaraçar deles o mais depressa
presenteia o capitalista, mesmo se ele só produz correias de borracha, possível, para os vender. Faz produzir para ganhar dinheiro. As suas
tecidos de seda ou tubos de chumbo. Se teceu onze metros de seda em despesas lhe lio restituídas, o sobretrahalho lhe é dado sob a forma
onze horas, seis metros desse tecido contêm o valor do seu salário e mone-tária. É com este objetivo, para ganhar dinheiro com o trabalho
cinco são a mais-valia para o patrão. não pago dos trabalhadores, que ele faz todo o negócio
1 compra a força de trabalho. Ora nós sabemos que o dinhei-10 é o
A diferença entre o regime de salários e a servidão ou a
meio de acumulação de riquezas sem limites. Sob a forma monetária,
escravatura tem outras consequências importantes. O escravo
a riqueza nada perde do seu valor, mesmo se Uca depositada durante
muito tempo. Pelo contrário, como
306

307
veremos, a riqueza acumulada sob a forma monetária parece
mesmo aumentar. Sob a forma monetária, a riqueza não co- 'ii"»» sete vezes 24 horas se puder. Por outro lado, o traba-
nhece nenhum limite, pode aumentar até ao infinito. Conse- lhador enquanto vendedor da mercadoria, tem um ponto de
quentemente a sede de sobretrabalho no capitalista moderno já inverso. Embora o uso da força de trabalho pertença
não tem limites. Quanto mais trabalho não pago tirar dos seus apitalista, esse uso encontra os seus limites na força física
trabalhadores, tanto melhor será. Extorquir mais-valia, e I Intelectual do operário. Um cavalo pode trabalhar oito ho-
extorquí-la ilimitadamente, tal é o objetivo e o papel da compra i i por dia sem ficar arruinado. Um homem deve, para re-
da força de trabalho. - uperar a força usada no trabalho, ter um certo tempo para
A tendência natural do capitalista para aumentar a mais-- t ilimcntar, para se vestir, para repousar, etc. Se não o tem, i lua
valia que arranca aos trabalhadores encontra antes de tudo duas força de trabalho não só se desgasta, mas destrói-se. Mm
vias simples que se oferecem por elas próprias, considerando o trabalho excessivo enfraquece-a e abrevia a vida do trabalhador.
modo como é composto o dia de trabalho. O dia de trabalho de Se, por um uso imoderado da força de trabalho, o > apitalista
todo o operário assalariado compõe-se normalmente de duas reduziu a vida do trabalhador de duas semanas em Uma
partes: uma parte em que o operário restitui o seu próprio semana, é como se se tivesse apropriado de três semanas pelo
salário e uma parte em que ele fornece trabalho não pago, mais- salário de uma semana. Sempre do ponto de vista do co-nHIcio
valia. Para aumentar ao máximo a segunda parte, o empresário de mercadorias, isto significa que o capitalista rouba D
pode proceder de duas maneiras: ou prolongando o dia de operário. No que diz respeito à duração do dia de trabalho, "
trabalho, ou reduzindo a primeira parte, a parte paga do dia de capitalista e o trabalhador defendem, no mercado, dois pon-tos
trabalho, baixando o salário do operário. Efetivamente, o de vista opostos, e a duração efetiva do dia de trabalho pode
capitalista recorre simultaneamente aos dois métodos, de onde decidir como uma questão de relação de forças, pela luta entre a
resulta uma dupla tendência no sistema salarial: uma tendência classe capitalista e a classe operária <110). Em si, o dia de
para o prolongamento do dia de trabalho e uma tendência para a trabalho não tem nenhum limite determinado; encon-
redução dos salários. II Hinos, segundo as épocas e os locais, dias de trabalho de
Quando o capitalista compra a mercadoria "força de tra- <>ilo, dez, catorze, dezesseis e dezoito horas. O dia de tra
balho", ele a compra, como qualquer outra mercadoria, para balho é objeto de uma luta secular. Nesta luta, distinguimos
dela tirar um lucro. Qualquer comprador de mercadoria procura dois períodos importantes. O primeiro começa desde o fim
tirar o máximo uso possível das suas mercadorias. O pleno uso dfl Idade Média, no século XIV, quando o capitalismo deu os
e todas as vantagens da mercadoria pertencem ao comprador. O léus primeiros passos tímidos e começou a sacudir as cadeias
capitalista que comprou a força de trabalho tem, do ponto de das corporações. Na época mais florescente do artesanato,
vista da compra de mercadorias, o direito de exigir que a a duração normal do dia de trabalho era habitualmente cerca
mercadoria comprada lhe sirva tanto tempo quanto possível. Se ile dez horas, guardando-se plácida e cerimoniosamente o tem
pagou a força de trabalho para uma semana, o uso dela po das refeições, o sono, o repouso, os domingos e dias de
pertence-lhe durante uma semana e, do seu ponto de vista de festa. Isto bastava ao antigo artesanato com os seus métodos
comprador, tem o direito de fazer trabalhar o ope-
110 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo: Interesses da propila
308 produção capitalista?

309
de trabalho bastante lentos, mas não às empresas que come- OOiti mercúrio e na panificação ou tal como reina na confecção c
çavam a tomar a forma de fábricas. na indústria domiciliária. Foi a indústria capitalista mo-dcma a
A primeira coisa que os capitalistas arrancaram aos go- primeira a inventar o trabalho noturno. Em todas ociedades
vernos foram leis constrangedoras para prolongar a duração do anteriores, a noite era considerada como um período reservado
dia de trabalho. Do século XIV até o fim do século XVII, por natureza ao repouso do homem. A empresa capitalista
vemos na Inglaterra, como na França e na Alemanha, leis sobre descobriu que a mais-valia extorquida de noite 101 operários não
o dia de trabalho mínimo, isto é a interdição feita aos operários se distingue em nada da que se extorque <l> dia e instaurou
e companheiros de trabalhar menos que um determinado equipes diurnas e noturnas. Do mesmo Bodo, o domingo,
número de horas, geralmente doze horas por dia. A luta contra a rigorosamente respeitado pelas corporações n.: Idade Média, caiu
preguiça dos trabalhadores, eis o grande grito desde a Idade vítima da sede capitalista de mais-valia «• aerescenta-se aos
Média até ao século XVIII. Desde que o poder das antigas outros dias de trabalho. Dúzias de outras ptquenas invenções
corporações artesanais foi destruído e que uma massa proletária permitiram alongar o dia de trabalho: a tomada das refeições
sem qualquer meio de trabalho não tem senão a venda da sua durante o trabalho, sem qualquer intervalo, a limpeza das
força de trabalho, desde que por outro lado as grandes máquinas após o fim do trabalho, duran-ie o tempo de repouso, e
manufaturas surgiram com a sua febril produção em massa, não durante o tempo de trabalho normal, etc.
produz-se uma mudança. Começa-se a oprimir os tra- Esta prática dos capitalistas, que se aplicou livre e desen-
balhadores de todas as idades e de ambos os sexos de maneira freadamente nas primeiras décadas, tornou em breve necessá-iiD
tão desenfreada que as populações operárias são ceifadas em uma nova série de leis sobre o dia de trabalho, desta vez iia<>
alguns anos como que pela peste. Em 1863, um deputado para o alongar, mas para a encurtar. Estas primeiras pres-Crições
declarava no Parlamento inglês: "A indústria algodoeira tem legais sobre a duração máxima do dia de trabalho foram
noventa anos.. . Em três gerações da raça inglesa, devorou impostas, não tanto sob a pressão dos trabalhadores mas pelo
nove gerações de operários algodoeiros"(111). E um escritor simples instinto de conservação da sociedade capitalista. As
burguês inglês, John Wade, escreveu na sua obra sobre a His- primeiras décadas da grande indústria tiveram efeitos tão
tória da classe média e da classe operária: "A ambição dos fa- devastadores sobre a saúde e as condições de vida dos traba-
bricantes fez com que cometessem, na procura do lucro, cruel- lhadores, provocaram uma mortalidade e uma morbidez tão
dades que os espanhóis, por altura da conquista da América, rspetaculares, tais deformações físicas, um tal abandono moral,
apenas ultrapassaram na sua procura do ouro" (,12>. Na Ingla- epidemias, a inaptidão para o serviço militar, que a própria
terra, nos anos de 1860, no século XIX, empregavam-se em existência da sociedade parecia profundamente ameaçada (m)
certos ramos da indústria, como a fabricação de rendas, crianças
de 9 a 10 anos desde as 2, 3 e 4 horas da manhã até às 10, 11 e 113 — Depois da introdução do serviço militar obrigatório, a esta-
12 horas da noite. Conhece-se a situação na Alemanha, tal i n i i i média dos homens adultos e, por conseguinte, a estatura legalmente
prescrita para o recrutamento, não deixou de diminuir. Antes da Grande
como reinava há pouco na estanhagem dos espelhos Revolução, a estatura mínima na infantaria francesa era de 1,65 cm.; após a
lei de 1818, era 1,57; a partir de 1852, 1,56; na França
111 -- Karl Marx: O Capital, t. I. p. 229. 311
112 — Karl Marx: O Capital, t. I. p. 239.

310
Era evidente que se o Estado não punha um freio à tendência ... movimento geral dos trabalhadores pela jornada de oito
natural do capital para a mais-valia, este último transformaria horas que se estendeu em seguida ao continente europeu. Na
mais ou menos a longo prazo, Estados inteiros em vastos cemi- Rússia, as primeiras leis para a proteção das mulheres e das i
térios onde se veria mais do que as ossadas dos trabalhadores. rianças nasceram da agitação nas fábricas do distrito de Mos-l
Ora, sem trabalhadores não há exploração de trabalhadores. Era ou em 1882, e o dia de trabalho de onze horas e meia para 01
preciso portanto que, no seu próprio interesse, para permitir a homens nasceu das primeiras greves gerais dos 60.000 ope-
exploração futura, o capital impusesse alguns limites à i.nios têxteis de Petersburgo de 1896 e 1897. A Alemanha,
exploração presente. Era preciso poupar um pouco a força do Com as suas leis que apenas protegem as mulheres e as crian-
povo para garantir a continuação da sua exploração. Era preciso está agora a reboque dos outros grandes Estados modernos.
passar de uma economia de pilhagem não rentável a uma
exploração racional. Daí nasceram as primeiras leis sobre o dia Não falamos senão de um aspecto do trabalho assalaria-•
de trabalho máximo, como de resto nasceram todas as reformas I": a duração do dia de trabalho, e vemos que a simples com-pra
sociais burguesas. As leis sobre a caça são uma réplica disto. e venda da mercadoria "força de trabalho" origina fenómenos
Tal como as leis fixam um período proibido para a caça, a fim singulares. É preciso citar aqui as palavras de Marx: "<) nosso
de que ela possa multiplicar-se racionalmente e ser caçada com trabalhador, é preciso reconhecê-lo, não sai do pro-CCsso de
regularidade, as reformas sociais asseguram um tempo proibido produção tal como entrou. Ele tinha-se apresentado DO
para a força de trabalho do proletariado, para que ela possa servir mercado como possuidor da mercadoria "força de trabalho",
racionalmente à exploração capitalista. Ou como afirma Marx: frente a possuidores de outras mercadorias, mercador frente a
a limitação do trabalho na fábrica era ditada pela mesma mercador. O contrato pelo qual ele vendia a sua força de
necessidade que força o agricultor a adubar os seus campos. A trabalho parecia resultar de um acordo entre duas vontades
legislação das fábricas nasce passo a passo, inicialmente para as livres, a do vendedor e a do comprador. Uma vez concluído 0
crianças e mulheres, na tenaz luta de dezenas de anos contra a negócio descobre-se que já não é um agente livre; que o tempo
resistência dos capitalistas individualistas. Depois seguiu-se a pelo qual é livre de vender a sua força de trabalho é o tempo
França, a Revolução de Fevereiro de 1848 proclamou o dia de pelo qual é obrigado a vendê-la, e que na realidade o vampiro
trabalho de doze horas sob a pressão do proletariado parisiense que o suga não o larga enquanto lhe restar um músculo, um
vitorioso, e foi a primeira lei geral sobre a duração do dia de nervo, uma gota de sangue a explorar. Para se defenderem
trabalho de todos os trabalhadores, mesmo dos adultos, em todos contra as "serpentes dos seus tormentos", é necessário que os
os ramos da indústria. Nos Estados Unidos, em 1861, operários se unam como uma só cabeça e um só coração; que
imediatamente após o fim da guerra civil que aboliu a com um grande esforço coletivo, com uma pressão de classe,
escravatura, iniciou-se ergam uma barreira intransponível, um obstáculo social que os
impeça de se venderem ao capital por um contraio livre, a si e à
há em média metade de dispensados do serviço militar por estatura sua descendência, até à escravatura e até à morte" í114).
insuficiente ou outro defeito. Na Saxônia, em 1780, a estatura média dos
soldados era de 1,78 cm.; nos anos de 1860, não ultrapassava 1,55 cm.; na
Prússia, era de 1,57 cm. Em 1858, não pôde fornecer o seu contingente de 114 _ Karl Marx: O Capital, livro I, p. 836.
substituição; faltavam 156 homens.
312 313
<) operário inglês melhor remunerado considera o consumo co-
As leis de proteção do trabalho são, na realidade, o pri-
tldiano de carne de bife como necessário à vida, ao passo que Q
meiro reconhecimento oficial da sociedade atual de que a igual-
coolie chinês vive com um punhado de arroz. Dada a flexi-
dade e a liberdade formais que servem de base à produção e à
bllidade do conceito de "meios de subsistência necessários",
troca de mercadorias abriram falência, que se transformaram dcscnrola-se entre o capitalista e o trabalhador, a propósito dl
em desigualdade e ausência de liberdade, desde que a força de importância do salário, uma luta semelhante à da duração di- dia
trabalho aparece como mercadoria. de trabalho. O capitalista situa-se no seu ponto de vis-iii ilc
III comprador de mercadorias, declarando: está muito bem que eu
tenha que pagar a mercadoria "força de trabalho" pelo <II valor,
O segundo método do capitalista para incrementar a mais-- como qualquer comprador honesto, mas qual é o Vtlor da força de
valia consiste na redução do salário. O salário, tal como o dia trabalho? Muito bem! Dou ao meu operá-iii» cxatamente o
de trabalho, não tem limites determinados. Quando falamos necessário para viver; mas o que é absolutamente necessário para
de salário, é-nos necessário antes de tudo distinguir o dinheiro manter a vida de um homem, é indicado inicialmente pela
que o trabalhador recebe do empresário e a quantidade de meios ciência, a fisiologia, e em seguida pela experiência universal. E
de subsistência que obtém com esse dinheiro. Se sabemos que o compreende-se mesmo que eu entregue cxatamente esse mínimo;
trabalhador recebe um salário de dois marcos por dia, é como se porque se eu desse uma moeda ;i mais, já não seria um comprador
nada soubéssemos. Porque com esses dois marcos, pode-se honesto, mas um imbecil, ti IH filantropo que dá presentes do seu
comprar muito menos num período de carestia de vida do que bolso àquele a quem comprou uma mercadoria; tampouco ofereço
em tempo de fartura; num país, a moeda de dois marcos implica uma só moeda ao iiKU sapateiro ou ao meu vendedor de cigarros e
um diferente nível de vida do que em um outro; isso varia tento comprar a sua mercadoria tão barato quanto me seja
mesmo de uma região para outra em um mesmo país. O possível. W) mesmo modo, procuro comprar a força de trabalho
trabalhador pode também receber um salário maior do que tão ba-rata quanto possível e ficamos perfeitamente pagos se dou
anteriormente e não viver melhor, senão pior. O salário real é a ao Bieu trabalhador o mínimo necessário para viver.
soma dos meios de subsistência que o trabalhador obtém, O capitalista tem inteira razão do ponto de vista da produção
enquanto o salário em dinheiro não é mais do que o salário mercantil. O operário não tem menos razão quando lhe
nominal. Se o salário não é mais do que a expressão monetária responde, enquanto vendedor de mercadoria: eu não posso
do valor da força de trabalho, este valor é representado pela reclamar mais do que o valor efetivo da minha mercadoria "Torça
quantidade de trabalho empregada para produzir os meios de de trabalho". Exijo justamente que me pagues o valor Completo
subsistência necessários ao trabalhador. Que se entende por da minha mercadoria. Não desejo portanto mais do que os meios
"meios de subsistência necessários'? Independentemente das de subsistência necessários? Mas, quais são os meios de
diferenças individuais de um trabalhador para outro, que aqui subsistência necessários? Tu dizes que a fisiologia I a
não desempenham nenhum papel, as diferenças de nível de experiência dão a resposta mostrando o mínimo de que um
vida da classe operária nos diferentes países e nas diferentes homem tem necessidade para viver. Entendes pois por
épocas mostram que o conceito de "meios de subsistência" é
muito variável e flexível.
315
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tendência dos capitalistas a baixar a subsistência ao mínimo
"meios de subsistência necessários" a necessidade absoluta, fisiológico, animal por assim dizer, isto é a pagar constantemente
fisiológica. Isso é contra a lei da troca de mercadorias. Tu sabes a força de trabalho abaixo do seu valor. Nos tempos ini que a
tão bem como eu que o que determina o valor de uma mercadoria coligação e as organizações operárias não opunham linda a sua
no mercado é o trabalho socialmente necessário para a sua resistência à dominação desenfreada do capital Conduziram à
produção. Se o teu sapateiro te leva por um par de botas e exige mesma degradação bárbara da classe operária no que respeita à
vinte marcos por elas porque trabalhou nelas quatro dias, tu dir- duração do período de trabalho antes das leis sobre as fábricas.
lhe-ás: "Tenho as mesmas botas na fábrica por 12 marcos, Trata-se de uma cruzada do capital con-ii ;i todo o vestígio de
porque aí o par é fabricado num dia, com máquinas. O vosso luxo, de conforto, de bem-estar, que u ria podido restar ao
trabalho de quatro dias não era socialmente necessário — porque trabalhador nos tempos do artesanato I da economia camponesa.
é já corrente produzir botas mecanicamente —, mesmo se fosse É um esforço para reduzir o consumo do trabalhador à simples
necessário para vós que não tendes máquinas. Não tenho nada a absorção do mínimo de alimento, tal como se alimenta o gado, tal
ver com isso e pago-vos o trabalho socialmente necessário, ou como se lubrifica uma máquina. Os operários que têm o mais
seja doze marcos". Procederias assim para a compra das botas, é baixo nível e o mínimo de necessidades são citados como exemplo
preciso portanto que tu me pagues os gastos socialmente aos operários melhor "situados". Esta cruzada contra o nível de
necessários à manutenção da minha força de trabalho, quando a vida dos trabalhadores começou, como o próprio capitalismo, na
compras. É-me socialmente necessário para viver tudo o que, no Ingla-terra. Um escritor inglês do século XVIII lamentava:
nosso país e na nossa época, é considerado como tal para um "Con-sidere-se somente a quantidade assombrosa de coisas
homem da minha classe. Numa palavra, tu não deves dar-me o supér-IIuas que os nossos operários de manufaturas consomem,
mínimo fisiologicamente necessário, o que me mantém apenas como sejam: aguardente, gim, chá, açúcar, frutos exóticos,
com vida, como a um animal, deves dar-me o mínimo socialmente cerveja forte, tecidos estampados, tabaco, rapé, etc". Citava-se
corrente, que me assegure o meu nível de vida habitual. So- então os operários franceses, holandeses e alemães aos operários
mente então, como comprador honesto, pagaste o valor da ingleses como modelos de sobriedade. Um fabricante inglês podia
mercadoria; do contrário a compras abaixo do seu valor. escrever: "O trabalho é um terço mais barato na França do que na
Inglaterra: porque os pobres (é assim que se chamava os
Vemos que do ponto de vista puramente mercantil, o operários) franceses trabalhavam duro e são económicos em
operário tem pelo menos tanta razão como o capitalista. Não é alimento e vestuário, consomem principalmente pão, frutos,
senão com o tempo que ele impõe este ponto de vista; porque ervas, raízes e peixe seco; raramente comem carne e muito pouco
não pode impô-lo... senão como classe social, como pão quando o trigo é caro.
coletividade, como organização. É com a formação dos sin- No início do século XIX, um americano, o conde Rum-
dicatos e do partido operário que o assalariado começa a impor íord, redigiu um livro de cozinha para operários com receitas
a venda da sua força de trabalho pelo seu valor, isto é a impor o para tornar a alimentação menos cara. Eis uma receita extraída
seu nível de vida como uma necessidade social. Antes do desse célebre livro que recebeu um acolhimento entusiásti-
aparecimento dos sindicatos em tal país e em tal ramo de
atividade, o que é determinante para os salários é a 317
316
co da burguesia de vários países: "Cinco libras de cevada, cinco IV
libras de farinha de milho, 30 centavos de arenque, 10 centavos
de sal, 10 centavos de vinagre, 20 centavos de pimenta e ervas
A FORMAÇÃO DO EXÉRCITO DE RESERVA
— total: 2,08 marcos — dão uma sopa para 64 pessoas, e o
preço por cabeça pode ainda ser baixado de 3 centavos, dado o
Quando a carga do trabalho aumenta e diminui o nível de
preço médio do cereal". Os trabalhadores das minas da América
vida dos trabalhadores até ao limite fisiologicamente possível, a
do Sul têm sem dúvida o mais duro trabalho do mundo porque
exploração capitalista assemelha-se à exploração da escravatura e
consiste em trazer para cima, todos os dias, sobre os seus
da servidão no momento da pior degenerescência destas duas
ombros, uma carga de 90 a 100 Kg de mineral, de uma
formas de economia, por conseguinte quando rias estavam
profundidade de 450 pés até à superfície; ora Justus Liebig conta
quase a desmoronar-se. Mas o que só a produção capitalista
que eles só vivem de pão e favas. Eles preferiam alímentar-se
engendrou e que era completamente desconhecido de Iodas as
somente de pão, mas os seus mestres descobriram que
épocas anteriores, é o "não-emprego" e por conseg u i n t e o
trabalhavam menos duro com pão e então tratavam-nos como os
"não-consumo" dos trabalhadores, como fenómeno l>r
cavalos forçando-os a comer favas porque elas contribuíam mais
imanente, aquilo que denominamos o exército de reserva dos
do que o pão para a formação dos ossos. Na França, a primeira
trabalhadores. A produção capitalista depende do mercado e
revolta da fome teve lugar em 1831; foi a revolta dos operários
deve seguir a procura. Esta última muda constantemente,
das fábricas de seda de Lyon. Foi sob o Segundo Império, logo
engendrando alternativamente o que se chama os anos,
que a maquinaria propriamente dito fez a sua entrada na França,
stações, os meses de bons e de maus negócios. O capital
que o capital se entregou às maiores orgias na redução dos
deve adaptar-se constantemente a essa alteração da conjuntura
salários. Os empresários desertaram das cidades para o campo
8 em consequência ocupar ora mais, ora menos trabalhadores. I
onde os braços são menos caros. Eles levaram a coisa tão longe
)eve, para ter constantemente à sua disposição a quantidade
que havia mulheres que trabalhavam por um salário diário de
necessária de força de trabalho que responda mesmo às exi-
uma moeda, isto é, 4 centavos. Todavia esses tempos felizes não
gências mais elevadas do mercado, manter em reserva um nú-
duraram muito tempo; porque tais salários não permitiam mesmo
mero importante de trabalhadores desempregados ao lado dos
a existência animal. Na Alemanha, o capital introduziu
que estão empregados. Os trabalhadores desempregados não
inicialmente condições semelhantes na indústria têxtil onde
têm salário, uma vez que a sua força de trabalho não se vende,
os salários reduzidos mesmo abaixo do mínimo fisiológico
está somente em reserva e "não-consumo" de uma parte da
provocaram nos anos de 1840 as revoltas da fome dos tece-lãos
forca de trabalho faz parte integrante da lei dos salários na
da Sílésia e da Boémia. Atualmente o mínimo animal constitui
produção capitalista.
a regra para os salários, em todo o lado onde os sindicatos não
exercem a sua ação sobre o nível de vida, entre os operários Ao capital não interessa como é que os desempregados
agrícolas na Alemanha na confecção, nos diferentes ramos da conseguem viver e repele qualquer tentativa de suprimir o
indústria à domicílio. exército de reserva como uma ameaça contra os seus próprios
Interesses vitais. A crise inglesa do algodão em 1863 fornece
n-nos um exemplo notável disso. Quando a falta de algo-
318
319
dão bruto americano forçou subitamente as fábricas de fiação e lários ao mínimo. Marx distingue no exército de reserva quatro
tecelagem inglesas a interromper a sua produção e quase um camadas cuja função é diferente para o capital e cujas condições
milhão de trabalhadores se encontrou sem pão, uma parte desses de vida diferem. A camada superior, são os operários da
desempregados decidiu emigrar para a Austrália para fugir à indústria periodicamente desempregados que existem mesmo
fome. Solicitaram ao Parlamento a concessão de dois milhões de nas profissões melhor remuneradas. O seu pessoal muda por-
libras esterlinas para permitir a emigração de 50.000 operários que cada trabalhador fica desempregado por um certo período
sem trabalho. Esta petição operária provocou a maior de tempo, depois empregado durante outros períodos; o seu
indignação dos fabricantes de algodão. A indústria não podia número varia muito de acordo com o ritmo dos negócios; tor-
viver sem máquinas e os operários são como as máquinas, é na-se muito grande em período de crise e fraco quando a con-
necessário tê-los em reserva. "O país" sofreria uma perda de juntura é boa; eles nunca desaparecem completamente e au-
quatro milhões de libras esterlinas se os desempregados mentam com o progresso da indústria. A segunda camada, t a
esfomeados partissem subitamente. O Parlamento recusou por massa dos proletários sem qualificação que afluem do campo
consequência o fundo de emigração e os desempregados para as cidades; eles apresentam-se no mercado com as mais
continuaram agarrados à sua faminta miséria, para constituir a modestas exigências e não estão ligados a nenhum ramo
reserva necessária ao capital. Um outro exemplo flagrante foi industrial particular; estão à espera de uma ocupação, formando
fornecido, em 1871, pelos capitalistas franceses. Após a derrota uma reserva de mão-de-obra para todas as indústrias. A
da Comuna, o massacre dos operários parisienses, sob formas terceira categoria, são os proletários de baixo nível que não têm
legais e fora delas, tomou tais proporções que dezenas de ocupação regular e andam constantemente à procura de um
milhares de proletários, frequentemente os melhores e os mais trabalho ocasional. É aí que encontramos os dias de
trabalhadores, a elite da classe operária, foram assassinados; trabalho mais longo e os mais baixos salários e é por
então o patronato, que tinha saciado a sua sede de vingança, que esta camada é tão útil, e tão diretamente indispensável ao
ficou mesmo assim preocupado com a ideia de que a falta de capital como a do mais alto nível. Esta camada recru-la se
"braços" em reserva pudesse ser cruelmente ressentida pelo constantemente entre os trabalhadores excedentes da
capital; a indústria caminhava, nessa época, depois do fim da indústria e da agricultura, em particular no artesanato em
guerra, para uma expansão importante dos negócios. Também vias de desaparecimento e nas profissões subalternas em vias de
vários empresários parisienses se empenharam junto dos extinção. Esta camada constitui o fundamento da indústria
tribunais para moderar as perseguições contra os communards e domiciliária e atua nos bastidores, por detrás da cena oficial da
salvar os braços operários do braço secular para os devolver ao indústria. Não tem tendência a desaparecer, pelo contrário,
braço do capital. cresce porque os efeitos da indústria na cidade e no campo
O exército de reserva tem uma dupla função para o ca- caminham nesse sentido e porque tem uma forte natalidade.
pital: por um lado, fornece a força de trabalho em caso de A quarta camada do exército de reserva proletário, são os
desenvolvimento súbito dos negócios; por outro lado, a con- verdadeiros "pobres", que estão em parte aptos para o trabalho
corrência dos desempregados exerce uma pressão contínua so- c que a indústria ou o comércio empregam parcialmente em
bre os trabalhadores empregados e faz baixar os seus sa- períodos de bons negócios; em parte inaptos para o tra-
320 321
balho: velhos trabalhadores que a indústria já não pode empregar, na sociedade, é desconhecida. A tribo primitiva conhece a fome, de
viúvas de proletários, intermediários de proletários, vítimas tempos a tempos ou frequentemente, quando as condições naturais
estropiadas e inválidas da grande indústria, das minas, etc, enfim os lhe são desfavoráveis; a sua miséria 6 a da sociedade como tal, a
que perderam o hábito de trabalhar, os vagabundos, etc. Esta camada miséria de uma parte dos seus membros lace à opulência de uma
desemboca diretamente no lumpen--proletariado: criminosos, outra parte é impensável; na medida em que os víveres são
prostitutas. O pauperismo, diz Marx, constitui o hotel dos inválidos assegurados ao conjunto da sociedade, asseguram-nos a cada um dos
da classe operária e o peso morto do seu exército de reserva. A sua seus membros.
existência resulta tão inevitavelmente do exército de reserva como
Na escravatura oriental e antiga, passa-se a mesma coisa. Por
este resulta do desenvolvimento da indústria. A pobreza e o lum-pen-
muito explorado que estivesse o escravo público egípcio ou o escravo
proletariado fazem parte das condições de existência do capitalismo e
privado grego, por maior que fosse o abismo entre o seu magro nível
aumentam com ele: quanto maior é a riqueza social, o capital em
de vida e a opulência do seu senhor, a sua situação de escravo
circulação e a massa de operários empregados, tanto maior é a
assegurava-lhe mesmo assim a existência. Não se deixava que os
camada de desempregados em reserva, o exército de reserva. Quanto
escravos morressem de inanição, tal como ninguém deixa morrer o
maior é o exército de reserva em relação à massa dos operários
seu cavalo ou o seu gado. É a mesma coisa nos tempos da servidão
empregados, tanto maior é a camada inferior da pobreza, do
medieval: todo o sistema de dependência feudal em que o camponês
pauperismo e do crime. A massa dos trabalhadores desempregados e
estava agregado à gleba, e em que cada um era senhor de outros
portanto não remunerados, e com ela a camada dos "Lázaros" da
homens ou servidor de um outro, ou ambas as coisas, atribuía a cada
classe operária — a pobreza oficial — aumentam ao mesmo tempo
um, um lugar determinado. Por mais pressionados que fossem os
que c capital e a riqueza. "Eis, diz Marx, a lei geral, absoluta, da
servos, nenhum senhor tinha o direito de os expulsar da gleba, logo
acumulação capitalista" ^U5K
de os privar dos seus meios de subsistência. As relações feudais
A formação de uma camada permanente e crescente de
obrigavam o senhor a ajudar os camponeses em caso de catástrofes,
desempregados era desconhecida de todas as formas anteriores de
incêndios, inundação, temporal, etc. Só no fim da Idade Média,
sociedade. Na comunidade comunista primitiva toda a gente trabalha
quando o feudalismo começou a desmoronar-se e o capitalismo
o necessário para prover a sua manutenção, em parte por necessidade
moderno a fazer o seu aparecimento, é que a situação muda. Na Idade
imediata, em parte sob a pressão e a autoridade moral e social da
Média, a existência da massa dos trabalhadores estava assegurada. E
tribo, da comunidade. Todos os membros da sociedade estão providos
então formou-se desde essa época um pequeno contingente de pobres
em meios de subsistência. O modo de vida do grupo comunista
c de mendigos devido às numerosas guerras ou ao desaparecimento
primitivo é bastante baixo e bastante simples, as condições são
de fortunas individuais. A manutenção destes pobres passava por uma
primitivas. Na medida em que há meios, estes são iguais para todos, e
obrigação da sociedade. Já o imperador Carlos Magno prescrevia
a pobreza no sentido atual, a privação dos meios que existem
expressamente nos seus Capitulares: "No que diz respeito aos
mendigos que erram pelo país, queremos que cada um dos nossos
115 — Karl Marx: O Capital, t. III, p. 87. 322
vassalos alimente os pobres,

323
quer no seu feudo, quer na sua própria casa, e que não os deixe ir acerca disto, no início do século XIX, a sua célebre teoria da
mendigar a outros sítios". Mais tarde, foi vocação particular dos superpopulação, segundo a qual a pobreza tem por origem o mau
conventos albergar os pobres e dar-lhes trabalho se fossem aptos. Na hábito que a humanidade tem de aumentar mais rapidamente que os
Idade Média, todo o necessitado tinha a certeza de encontrar seus meios de subsistência.
acolhimento em cada casa, a manutenção dos pobres era um dever e Estes resultados são devidos à produção mercantil e à troca das
não implicava o desprezo que se associa ao mendigo de hoje. mercadorias. Esta lei da mercadoria que assenta formalmente na
A história conhece um único caso em que uma larga camada da igualdade e na liberdade totais, leva automaticamente, sem
população foi privada de ocupação e de pão. É o caso já mencionado intervenção das leis ou da força, por uma necessidade férrea, a uma
do campesinato da Roma antiga expulso das suas terras e pavorosa desigualdade social que era desconhecida em todas as
proletarizado, para o qual não restava nenhum emprego. Esta situações anteriores que assentavam na dominação direta de um
proletarização dos camponeses era a consequência da formação de homem sobre os outros. Pela primeira vez, a fome tornou-se um
grandes latifúndios e da exploração da escravatura. Ela não era flagelo que se abate cotidia-namente sobre a vida das massas
necessária à exigência da escravatura e da grande propriedade. O laboriosas. Pretende-se ver aí uma lei natural. O padre anglicano
proletariado romano desempregado era simplesmente uma desgraça, Towsend escreveu, já em 1786: "Uma lei natural parece querer que os
uma nova carga para a sociedade que procurava remediar isso pobres tenham um certo grau de negligência, de tal modo que os haja
distribuindo periodicamente terras e víveres, organizando sempre para desempenhar as funções mais servis, mais sujas c mais
importações maciças de trigo e fazendo baixar os preços dos cereais. vulgares da comunidade. O campo da felicidade humana aumentou
No fim de contas, este proletariado era, bem ou mal, mantido pelo muito com isso, as pessoas mais delicadas foram libertadas desse
Estado na Roma antiga. duro trabalho e podem dedicar-se sem serem incomodadas a tarefas
A produção mercantil capitalista é, na história da humanidade, a mais elevadas. A lei sobre os pobres tende a destruir a harmonia e a
primeira forma de economia em que a ausência de ocupação e de beleza, a simetria e a ordem deste sistema que Deus e a natureza
meios para uma camada importante e crescente da população e a instauraram no mundo".
pobreza de uma outra camada, igualmente crescente, não são apenas a Os "delicados" que vivem à custa dos outros viram sempre em
consequência, mas também uma necessidade, uma condição de toda a forma de sociedade que lhes assegura as alegrias da existência
existência da economia. A insegurança da existência de toda a massa de explorador, o dedo de Deus e uma lei da natureza. Os maiores
de trabalhadores e a miséria crónica ou a pobreza de largas camadas espíritos não escapam a esta ilusão histórica. Vários milénios antes
determinadas foram pela primeira vez um fenómeno normal da do padre inglês, o grande pensador grego Aristóteles escreveu: "Foi a
sociedade. Os sábios da burguesia, que não podem imaginar outra própria natureza que criou a escravatura. Os animais dividem-se em
forma de sociedade, estão de tal modo imbuídos da necessidade na- machos e fêmeas. O macho é um animal mais perfeito e comanda, a
tural dos desempregados e dos miseráveis que vêem nisso uma lei fêmea é um animal menos perfeito e obedece. Existem do mesmo
natural desejada por Deus. O inglês Malthus estruturou modo no género humano homens que são tão inferiores aos outros
como o corpo frente à alma ou o animal frente

324 325
ao homem: são seres que não são bons senão para trabalhos físicos c
va e meio selvagem ou bárbara, na África, pode ler um nível de vida
que são incapazes de cumprir qualquer coisa de mais perfeito. Estes
mais baixo, uma habitação mais simples, vestimentas inferiores, uma
indivíduos são destinados pela natureza à escravatura porque não há
alimentação mais grosseira que o operário de uma fábrica média na
nada melhor para eles do que obedecer aos outros.. . Haverá
Alemanha. Este príncipe vive no entanto "principescamente" em
finalmente uma grande diferença entre o escravo e o animal? Os
relação aos meios e às exigências da sua tribo, enquanto o operário
seus trabalhos assemelham-se, só os seus corpos nos são úteis.
alemão vive pobremente, comparado ao luxo da rica burguesia e às
Concluímos destes princípios que a natureza criou certos homens para
necessidades atuais. Para ajuizar corretamente a posição dos
a liberdade e outros para a escravatura, que é útil e justo que o escravo
operários na sociedade atual, é portanto necessário estudar não só o
se submeta". A "natureza" que foi responsabilizada por qualquer for-
salário absoluto, isto é, a grandeza do salário, mas também o salário
ma de exploração deve em todo o caso ter-se corrompido for temente
relativo, ou seja a parte que o salário representa no produto total do
com o tempo. Porque mesmo que valesse a pena impor a vergonha
seu trabalho. Supusemos no nosso exemplo precedente que o
da escravatura a uma massa popular para fazer elevar-se sobre o seu
trabalhador devia, num dia de trabalho de onze horas, recuperar o seu
dorso um povo livre de filósofos e de génios como Aristóteles, o
salário, isto é a sua manutenção, durante as seis primeiras horas,
desprezo atual de milhões de proletários para fazer crescer vulgares
produzindo depois gratuitamente durante cinco horas mais-valia para
fabricantes e padres gordos é um objetivo pouco fascinante.
o capitalista. Nesse exemplo, admitimos que a produção de meios de
subsistência custa seis horas de trabalho ao operário. Vimos que o
V capitalismo procura por todos os meios baixar o nível de vida
operário para aumentar o mais possível o trabalho não pago, a mais-
Estudamos até agora o nível de vida que a economia mercantil valia. Supusemos que o nível de vida do trabalhador não se altera,
capitalista assegura à classe operária e às suas diferentes camadas. que está sempre em condições de procurar a mesma quantidade de
Não sabemos ainda nada de preciso sobre as relações entre este nível alimento, de vestuário, de roupa, de móveis, etc. Supusemos que o
de vida operário e a riqueza social no seu conjunto. Os trabalhadores salário, considerado em absoluto, não diminui. Se, portanto, a
podem ter por vezes mais meios, uma alimentação mais abundante, produção destes meios de subsistência se tornou mais barata graças
melhor vestuário do que antes, enquanto a riqueza das outras classes aos progressos da técnica e requer menos tempo, o operário terá
aumentou ainda mais rapidamente, diminuindo a parte do produto necessidade de menos tempo para recuperar o seu salário.
Suponhamos que a quantidade de alimento, de vestuário, de móveis,
social que pertence aos trabalhadores. O nível de vida dos operários
etc, de que o operário tem necessidade diariamente, não exige mais
pode subir em absoluto e baixar relativamente às outras classes. O
do que cinco horas de trabalho em vez de seis. Num dia de trabalho
nível de vida de qualquer homem e de qualquer classe não pode ser
de onze horas, o trabalhador já não trabalhará seis horas, mas apenas
analisado corretamente senão quando se aprecia em relação à situação
cinco para repor o seu salário e restam seis horas para o trabalho não
da época dada e das outras camadas da mesma sociedade. O príncipe pago, para produzir mais-valia para o capitalista.
de uma tribo negra primitivo"
327
A parte do produto que pertence ao trabalhador diminuiu um sexto e a Ora, o progresso contínuo e ininterrupto da técnica é uma
do capitalista aumentou um quinto. Ora, o salário absoluto não necessidade vital para os capitalistas. A concorrência entre os
registrou qualquer baixa. Pode mesmo acontecer que o nível de vida empresários individuais força cada um deles a vender os •eus produtos
do operário se eleve, isto é que o salário absoluto aumente, por tão baratos quanto possível, isto é, economizando ao máximo o
exemplo de 10%, não só o salário em dinheiro, mas os meios de trabalho humano. Se um capitalista introduziu na sua fábrica um novo
subsistência reais do operário. Se a produtividade do trabalho melhoramento, a concorrência força os outros empresários do mesmo
aumenta, ao mesmo tempo ou pouco depois, de 15%, a parte do ramo a melhorar a técnica para não serem eliminados do mercado.
produto que pertence ao trabalhador, o seu salário relativo, baixou, Isto exprime-se no exterior pela introdução da maquinaria em
ainda que o salário real tenha subido. A parte do produto que pertence substituição do trabalho manual e pela introdução cada vez mais
ao trabalhador depende portanto da produtividade do trabalho. Quanto rápida de novas máquinas mais aperfeiçoadas em substituição das
menos trabalho é necessário para produzir os seus meios de antigas. As invenções técnicas tornaram-se o pão de cada dia em
subsistência, tanto mais o seu salário relativo diminui. Se as camisas, todos os domínios da produção. A revolução técnica, tanto na
os sapatos e os bonés que ele usa se fabricam com menos trabalho produção propriamente dita como nos meios de transporte é um
graças ao progresso do fabrico, pode-se procurar a mesma quantidade fenómeno incessante, uma lei vital da produção mercantil capitalista.
de camisas, de sapatos e de bonés que anteriormente com o seu Todo o progresso na produtividade do trabalho se manifesta na
salário; recebe mesmo assim uma fração menor da riqueza social, do diminuição da quantidade de trabalho necessária à manutenção do
trabalho social global. Todos os produtos e matérias-primas possíveis operário. A produção capitalista não pode dar um passo em frente sem
entram em determinadas quantidades no consumo cotidiano do diminuir a participação que pertence aos trabalhadores no produto
trabalhador. Não é só a fabricação de camisas que torna a manutenção social. A cada nova invenção da técnica, a cada aperfeiçoamento das
do operário mais barata, mas também o fabrico do algodão que máquinas, a cada nova aplicação do vapor e da eletricidade na
fornece o tecido das camisas e a indústria das máquinas de costura e a indústria e nos transportes, a participação do trabalhador no produto
indústria de fiação que fornece o fio. Já não são só os progressos na torna-se menor e a do capitalista maior. O salário relativo desce cada
panificação que tornam a manutenção do operário mais barata, mas vez mais, de maneira irresistível e ininterrupta, a mais-valia, isto é, a
também a agricultura americana que fornece os cereais e o progresso riqueza não paga extorquida aos trabalhadores pelos capitalistas,
das estradas de ferro e da navegação a vapor que transportam os aumenta irresistível e constantemente.
cereais para a Europa, etc. Todo o progresso da indústria, todo o Vemos de novo aqui uma notável diferença entre a produção
aumento da produtividade do trabalho humano levou a que a mercantil capitalista e todas as formas anteriores de economias. Na
manutenção dos operários custe cada vez menos trabalho. O operário sociedade comunista primitiva, divide-se o produto diretamente após
deve consagrar uma fração sempre menor do seu dia de trabalho para a produção, de forma equitativa entre todos os trabalhadores, isto é,
repor o seu salário e uma fração cada vez maior do trabalho não pago entre todos os membros, porque não há praticamente ociosos. Na
na produção de mais-valia para o capitalista. servidão, não é a igualdade, mas a exploração daqueles que
trabalham por aqueles que não

328 329
trabalham, que é determinante. Apesar disso não se determina a grau de produtividade do trabalho, pelo nível da técnica; não í o
participação daqueles que trabalham, dos servos, no fruto do seu arbítrio dos exploradores, mas o progresso ila técnica que reduz
trabalho; fixa-se exatamente a participação do explorador, do senhor impiedosamente e sem parar a participação do trabalhador. É uma
feudal, sob a forma de corvéias e de impostos determinados que força invisível, um simples efeito mecânico da concorrência e da
recebe dos camponeses. O que resta como tempo de trabalho e como produção mercantil que extorque ao trabalhador uma porção sempre
produto é a participação do camponês, de tal modo que antes da maior do seu produto e lhe deixa nina cada vez menor, uma força que
degenerescência extrema da servidão, o camponês tem até um certo atua sem ruído, nas cosias dos trabalhadores e contra a qual a luta é
ponto a possibilidade de aumentar a sua própria participação impossível. O papel pessoal do explorador é visível quando se trata
redobrando os esforços. Na verdade, esta participação do camponês do salário absoluto, isto é, do nível de vida real. Uma redução de
diminui durante a Idade Média porque os nobres e a Igreja exigiam salário que leva a uma descida do nível de vida real dos operários é
sempre mais corvéias e impostos. Há, no entanto, sempre normas um atentado visível dos capitalistas contra os trabalhadores e estes
precisas, ainda que arbitrariamente fixadas, normas visíveis, respondem imediatamente pela luta onde existir um sindicato e, nos
estabelecidas pelos homens, mesmo se estes homens são desumanos, casos favoráveis, impedem-no. A descida do salário relativo opera-se
que determinam a participação tanto do servo como do seu senhor e sem a mínima intervenção pessoal do capitalista e contra ela os
explorador no produto. É por isso que o camponês medieval vê e trabalhadores não têm possibilidade de luta e de defesa no interior do
sente precisamente quando cargas maiores lhe são impostas e sistema salarial, Isto é, no campo da produção mercantil. Contra o
quando a sua participação diminui. Por isso é possível uma luta progresso ice nico da produção, contra as invenções, contra a
contra essa diminuição, e ela rebenta efetivamente, onde é introdução das máquinas, contra o vapor e a eletricidade, contra os
possível, sob a forma de uma luta aberta do camponês explorado aperfeiçoamentos dos transportes, os operários não podem lutar. Ora,
contra a redução da sua participação no produto do seu trabalho. Em a ação destes progressos sobre o salário relativo dos operários resulta
certas condições, esta luta é coroada de sucesso: a liberdade da automaticamente da produção mercantil e do caráter de mercadoria
burguesia urbana não tem outra origem senão na luta dos artesãos, que da força de trabalho. É por isso que os sindicatos mais poderosos são
inicialmente eram servos, para se desembaraçarem pouco a pouco de impotentes contra esta tendência para o abaixamento rápido do salário
todas as corvéias, e prestações múltiplas da época feudal, até que eles relativo. A luta contra a redução do salário relativo é a luta contra o
arranquem o resto — a plena liberdade individual de propriedade (1,6> caráter de mercadoria da força de trabalho, contra toda a produção
— na luta aberta. capitalista. A luta contra a redução do salário relativo já não c uma
No sistema salarial, não há prescrições legais ou consue- luta no campo da economia mercantil, mas um assalto revolucionário
contra essa economia; é o movimento socialista do proletariado.
tudinárias, ou mesmo arbitrárias que fixem a participação do
trabalhador no seu produto. Esta participação é fixada pelo Donde as simpatias da classe capitalista pelos sindicatos que
tinha de início combatido furiosamente, uma vez que a
116 — A expressão "a plena liberdade individual de propriedade" foi riscada a
lápis no manuscrito e substituída na margem pela expressão "os direitos políticos".

330 331
luta socialista começou e na medida em que os sindicatos se deixaram ência contínua do capital para pagar a força de trabalho abaixo do
opor ao socialismo. Na França, as lutas operárias para a obtenção do seu valor. Só a organização dos trabalhadores cria um contrapeso a
direito de coalizão foram infrutíferas até aos anos de 1870 e os essa tendência do capital. A principal função dos sindicatos consiste,
sindicatos eram perseguidos e fustigados com medidas draconianas. pelo aumento das necessidades dos trabalhadores, pela sua elevação
Entretanto, pouco depois da Comuna ter inspirado à burguesia um moral, em substituir o mínimo fisiológico pelo n.ínimo social, isto é
medo pavoroso do espectro vermelho, operou-se uma brusca mudança por um nível de vida e de cultura determinado dos trabalhadores
na opinião pública. O órgão do presidente Gambetta, A República abaixo do qual os salários não podem descer sem provocar
Francesa, e todo o partido governamental dos "republicanos imediatamente uma rea-ao de defesa. íi aí que reside a grande
satisfeitos" começam a encorajar o movimento sindical, a fazer-lhe importância económica da "social-democracia": agitando política e
uma ativa propaganda. Aos operários ingleses, citava-se como moralmente as massas operárias, eleva o seu nível cultural e, com ele,
exemplo no início do século XIX a sobriedade dos operários alemães; as suas necessidades económicas. Adquirindo o hábito de assinar um
e o operário inglês, pelo contrário, não sóbrio, mas "ávido", o "trade- jornal, comprar livros, o trabalhador eleva o seu nível de vida e por
unionista" comedor de bife, é recomendado como modelo ao consequência o seu salário. A ação da "social-democracia" tem um
operário alemão. É tão verdadeiro como para a burguesia a luta duplo alcance, na medida em que os sindicatos de um dado país
mais encarniçada pelo aumento do salário absoluto é uma futilidade realizam uma aliança aberta com a "social--democracia", porque a
inofensiva em relação ao atentado contra o "santo dos santos", contra hostilidade das camadas burguesas contra a "social-democracia"
a lei do capitalismo que tende para a redução contínua do salário leva-as a criar sindicatos rivais que por sua vez propagam a influência
relativo. educadora da organização e a elevação do nível cultural em novas
camadas do proletariado. Na Alemanha, além dos sindicatos
VI livres ligados à "social-democracia", numerosos sindicatos cristãos,
Não podemos representar a lei capitalista dos salários que católicos e liberais, exercem a sua ação. Do mesmo modo, cria-ram-se
determina as condições materiais de existência do operário senão na França sindicatos amarelos para combater os sindicatos soi
recapitulando todas as consequências, acima expostas, da relação valistas; na Rússia as mais violentas explosões nas atuais greves
salarial. É necessário distinguir o salário absoluto do salário relativo. revolucionárias de massas partiram de sindicatos "amarelos" e
O salário absoluto apresenta-se por sua vez sob uma dupla forma: por governamentais. Na Inglaterra, onde os sindicatos mantêm as suas
um lado como uma soma de dinheiro, um salário nominal; por outro, distâncias em relação ao socialismo, a burguesia não se dá ao trabalho
como a soma dos meios de subsistência que o trabalhador pode de introduzir ela própria a ideia de coalizão nas camadas proletárias.
adquirir com esse dinheiro, como salário real. O salário do trabalhador O sindicato desempenha um papel orgânico indispensável no
em dinheiro pode permanecer constante ou até subir, e o seu nível de sistema salarial atual. Só o sindicato permite à força de trabalho
vida, isto é o seu salário real, diminuir ao mesmo tempo. O salário real vend^r-se pelo seu valor. A lei capitalista da mercadoria não é
tende constantemente para o mínimo absoluto, para o mínimo suprimida pelos sindicatos no que diz respeito à
fisiológico; dito de outro modo, há uma ten-
332
333
força de trabalho, como Lassalle o admitiu erroneamente; pelo empregados na profissão correspondente. A ação sindical aumenta a
contrário, só pode realizar-se por eles. O capitalista procura comprar diferenciação no seio das massas proletárias elevan-do-as acima da
a força de trabalho por baixo preço e a ação sindical impõe mais ou miséria, reagrupando e consolidando as camadas superiores, a
menos o preço real. vanguarda organizável dos operários da indústria. O afastamento
Os sindicatos exercem a sua função sob a pressão das leis entre a camada superior e as camadas inferiores da classe operária
mecânicas da produção capitalista que são, em primeiro lugar, o aumenta. Em nenhum país é tão grande como na Inglaterra em que a
exército de reserva permanente dos trabalhadores desempregados e, em ação civilizadora complementar da "social-democracia" sobre as
segundo lugar, a alternância contínua de altos e baixos da conjuntura. camadas mais profundas e menos capazes de se organizar está
Estas duas leis impõem limites intrans-posíveis à ação sindical. As ausente, enquanto na Alemanha ela é importante.
alterações contínuas da conjuntura industrial forçam os sindicatos, em Quando se examina o nível dos salários em regime capitalista, é
cada baixa, a defender as antigas conquistas contra os ataques do capital errado considerar somente os salários efetivamente pagos aos
e, em cada alta, a lutar para poder elevar o nível dos salários ao nível operários da indústria que têm um emprego, como é hábito mesmo
correspondente à situação favorável. Os sindicatos estão sempre entre os operários, hábito tomado à burguesia e aos autores a seu
mergulhados na defensiva. O exército de reserva industrial limita a soldo. O exército de reserva dos desempregados, desde os
ação sindical no espaço: não é acessível à organização e à sua trabalhadores qualificados provisoriamente sem trabalho até à mais
influência, exceto a camada superior dos operários da indústria melhor profunda pobreza e ao pauperismo oficial, deve entrar em linha de
situados, entre os quais o desemprego não é senão periódico e conta quando se determine o nível dos salários. As camadas mais
"flutuante" segundo uma expressão de Marx. A camada inferior de baixas de miseráveis e de marginalizados de ocupação insignificante
proletários rurais sem qualificação que aflui às cidades, profissões ou nula não são uma excrescência que não contaria na "sociedade
semi-rurais irregulares como a fabricação de tijolos, etc, presta-se muito oficial", como, bem entendido, a burguesia os apresenta; elas estão li-
menos à organização sindical, atendendo às suas condições espaciais e gadas por laços íntimos à camada superior dos operários da indústria
temporais de trabalho e ao seu meio social. As vastas camadas melhor situados, através de todos os membros intermediários do
inferiores do exército de reserva, os desempregados com ocupação exército de reserva. Este laço interno manifes-ta-se nos números pelo
irregular, a indústria domiciliária, os pobres ocupados aumento súbito do exército de reserva todas as vezes que a conjuntura
ocasionalmente, escapam à organização. Quanto maior é a miséria se deteriora e pela sua diminuição quando ela melhora, manifesta-se
numa camada proletária, tanto menor é a influência sindical que aí se pela diminuição relativa daqueles que se refugiam na assistência
pode exercer. A ação sindical atua superficialmente nas pública, à medida que a luta de classes se desenvolve, aumentando a
profundezas do proletariado; age preferencialmente estendendo-se, consciência do proletariado. Todo o trabalhador que o seu trabalho
mesmo quando os sindicatos não englobam senão uma fração da transformou em inválido ou que tem a infelicidade de ter sessenta
camada superior do proletariado: a sua influência estende-se a toda a anos, tem cinquenta probabilidades em cem de desaparecer na
camada porque as suas conquistas beneficiam a massa dos camada inferior da amarga pobreza, na "ca-
trabalhadores

334 335
mada de Lázaro" do proletariado. A existência das camadas mais negócios e a concorrência não permitem à grande indústria l jperar
baixas do proletariado é regulada pelas mesmas leis da produção que os salários baixem, que os trabalhadores se casem mais
capitalista, amplia-se e diminui de acordo com elas, e, juntamente frequentemente devido à abundância, que tragam muitas crianças ao
com os operários rurais e o exército de desempregados com todas as mundo, que estas crianças tenham crescido e se apresentem no
suas camadas, desde a mais alta até às mais baixas, o proletariado mercado do trabalho, para finalmente provocarem aí a saturação
constitui um todo orgânico, uma classe social em cujos graus de desejada. O movimento dos salários, como 0 pulso da indústria, não
miséria e opressão se pode apreender a lei capitalista dos salários no tem o ritmo de um pêndulo cujas oscilações correspondem a uma
seu conjunto. É apreender apenas metade da lei dos salários, quando geração, ou seja vinte e cinco anos; os salários seguem um
se conhecem apenas os movimentos do salário absoluto. A lei da movimento agitado de modo que nem a classe operária tem
baixa automática do salário relativo com o progresso da produtividade possibilidade de adaptar a sua posteridade ao nível dos salários, nem
do trabalho completa a lei capitalista dos salários e dá-lhe todo o a indústria pode esperar a pos-icridade dos trabalhadores para
alcance real. satisfazer a sua procura. As dimensões do mercado do trabalho da
Desde o século XVIII que os fundadores franceses e ingleses da indústria não são determinadas pela posteridade natural dos
economia política observaram que os salários operários têm tendência trabalhadores, mas pela relação contínua das camadas proletárias que
vêm do campo, do artesanato e da pequena indústria, e pelas
a se reduzirem ao mínimo vital. Eles explicavam este mecanismo de
mulheres e filhos dos próprios trabalhadores. A saturação do mercado
uma maneira original, isto é, pelas variações na oferta da força de
do trabalho, sob a forma de um exército de reserva, é um fenómeno
trabalho. Quando os trabalhadores têm salários superiores aos
constante e uma necessidade vital para a indústria moderna.
estritamente necessários para viver, explicavam esses sábios, casam-se
Consequentemente, não é a alteração na oferta da força de trabalho,
com mais frequência e dão mais filhos ao mundo. O mercado do
nem o movimento da classe operária que é determinante para o nível
trabalho está tão saturado que ultrapassa a procura do capital. O
dos salários, mas a alteração na procura tio capital, o movimento do
capital faz baixar os salários utilizando a concorrência entre os
capital. A força de trabalho, mercadoria sempre excedente, está em
trabalhadores. Se os salários não são suficientes para viver, os
reserva, é mais ou menos bem remunerada conforme convenha ao
operários morrem em massa, as suas fileiras desbastam-se até ficarem capital absorvê-la em grande escala em período de alta conjuntura ou
tantos quantos o capital necessita, e os salários voltam a subir. Por esta recusá-la maciçamente em período de crise.
oscilação pendular entre uma proliferação e uma mortalidade
O mecanismo dos salários não é o que os economistas
excessivas da classe operária, os salários são incessantemente
burgueses e Lassalle supõem. O resultado, a situação efetiva que daí
reconduzidos ao mínimo vital. Las-salle retomou esta teoria que
resulta para os salários, é bem pior do que nessa hipótese. A lei
reinou até aos anos 60 e cha-mou-a "a lei de bronze"...
capitalista dos salários não é uma lei "de bronze"; é ainda mais
Hoje, com o desenvolvimento da produção capitalista, as implacável e cruel porque é uma lei "elástica" que procura reduzir os
fraquezas desta teoria são manifestas. A marcha febril dos salários dos operários empregados ao mínimo vital, mantendo ao
mesmo tempo uma vasta ca-

336
337
mada de desempregados, entre o ser e o não ser, na extremi- é necessário já um proletário assalariado sem meios de pro-
dade de uma corda elástica. dução e um capitalista que os possua suficientemente para fun-
Só nos inícios da economia política burguesa é que foi dar uma empresa moderna. De onde é que eles vieram para
possível imaginar a "lei de bronze dos salários" com o seu aparecerem no mercado do trabalho? Na exposição anterior,
caráter revolucionário. A partir do momento em que Lassalle não tínhamos senão em vista os produtores de mercadorias, isto
fez desta lei o eixo da sua agitação na Alemanha, os é, pessoas que tinham os seus próprios meios de produção, que
economistas, esses lacaios da burguesia, apressaram-se a produziam elas mesmas as suas mercadorias e as trocavam.
recusar a "lei de bronze", a condená-la como falsa e errada. Como é que a troca de mercadorias de igual valor pode dar
Toda uma matilha de agentes a soldo do patronato, como origem por um lado ao capital e por outro à miséri completa? A
Faucher, Schultze-Delitzsch, Max Wirth, desencadearam uma compra da mercadoria "força de trabalho", me mo pelo seu
cruzada contra Lassalle e a "lei de bronze" e aca-biunharam os valor, conduz, pelo uso dessa mercadoria, à fo mação de
seus próprios antepassados, os Adam Smith, Ricardo e outros trabalho não pago ou mais valia, isto é de capital. A formação
fundadores da economia política burguesa. Depois que Marx, de capital e de desigualdade aclara-se se considerarmos o
em 1867, explicou e demonstrou a lei elástica dos salários em trabalho assalariado e os seus efeitos. Para isso é preciso que o
regime capitalista sob a ação do exército de reserva industrial, capital e os proletários já existam! A questão é portanto a
os economistas burgueses ficaram completamente calados. A seguinte: de onde provêm os primeiros proletários e os
ciência professoral oficial da burguesia não tem nenhuma lei primeiros capitalistas? Como é que se operou o primeiro salto
do salário, prefere evitar esse delicado assunto e perder-se em da produção mercantil simples para a produção capitalista? Em
lengalengas incoerentes sobre o caráter deplorável do outros termos: como é que se processou a passagem do
desemprego e a utilidade de sindicatos moderados e modestos. artesanato medieval para o capitalismo moderno?
O mesmo espetáculo se oferece no que diz respeito a outra A história da dissolução do feudalismo esclarece-nos so-
importante questão da economia política: como se forma e de bre a formação do primeiro proletariado moderno. Para que o
onde provém o lucro do capitalista? Sobre a participação na trabalhador possa aparecer no mercado como trabalhador
riqueza da sociedade que cabe ao operário e sobre a assalariado era preciso que tivesse obtido a liberdade pessoal.
participação do capitalista já os fundadores da economia po- A primeira condição era, portanto, a abolição da servidão e das
lítica do século XVIII deram a primeira resposta científica. Foi corporações. Era necessário também que o trabalhador perdesse
Ricardo que deu a forma mais clara a essa teoria, explicando todo o meio de produção. Isto verificou-se no início dos
com lógica e perspicácia que o lucro capitalista é o trabalho não tempos modernos quando a nobreza latifundiária constituiu os
pago ao operário. seus domínios atuais. Os camponeses foram expulsos aos
milhares das terras que lhes pertenciam há séculos e as terras
VII
comunais transformaram-se em terras senhoriais. A nobreza
Começamos o nosso estudo sobre a lei dos salários pela inglesa o fez quando a extensão do comércio na Idade Média e o
compra e venda da mercadoria "força de trabalho". Para isso, aparecimento das manufaturas de lã na Flandres lhe
apresentaram a criação de carneiros para a indústria dos

338 339
lanifícios como um negócio interessante. Para transformar as
terras aráveis em pastagens para carneiros, expulsaram-s os
camponeses das suas terras e das suas propriedades. Isto
processou-se na Inglaterra do século XV até ao século XIX.
Nos anos 1814 a 1820, nos domínios da condessa de Suther-
land, por exemplo, foram expulsos quinze mil habitantes, as
suas aldeias incendiadas e os seus campos transformados em CAPÍTULO VI
pastagens nas quais cento e trinta e um mil carneiros substi-
tuíram os camponeses. A brochura Os mil milhões silesianos,
de Wolf, dá uma ideia do que se fez na Alemanha, em parti- AS TENDÊNCIAS DA ECONOMIA CAPITALISTA
cular pela nobreza prussiana, a essa fabricação de "livres" pro-
letários a partir de camponeses. Os camponeses livres como o I
ar e sem meios não tinham mais do que a liberdade de morrer
de fome ou, livres que eram, de se venderem por um salário de
Vimos nascer a produção mercantil depois de todas as
fome ("7).
formas de sociedade em que a produção estava organizada e
planificada —a sociedade comunista primitiva, a economia
cscravagista, a economia medieval de servidão — terem sido
desenvolvidas gradualmente. Depois vimos nascer da simples
produção mercantil, isto é da produção artesanal urbana do fim
da Idade Média, a economia capitalista atual de uma maneira
inteiramente mecânica, sem que o homem o quisesse ou tivesse
consciência disso. No início, levantamos a questão: como é
possível a economia capitalista? Esta é a questão fundamental
da economia política enquanto ciência. Ora bem, a ciência dá-
nos a esse respeito uma resposta suficiente. Ela mostra-nos que a
economia capitalista é à primeira vista uma impossibilidade, um
regime insolúvel, dada a ausência de qualquer organização
consciente. E, apesar disso, ela ordena-se num todo e existe:
— pela troca das mercadorias e a economia monetária,
que liga economicamente entre elas todos os produtores de
117 — No fim deste capítulo foram escritas a lápis, no manuscrito, as mercadorias e as regiões mais recuadas da terra e impõe a
palavras seguintes: A reforma: BI. 293 ss. Formação do tipo psicológico do
moderno escravo assalariado a partir dos mendigos perseguidos. BI. 350. divisão do trabalho mundial;

340 341
— pela livre concorrência que assegura o progresso téc- As relações sociais não têm formas rígidas e imutáveis.
nico e, ao mesmo tempo, transforma constantemente os pe- Elas conhecem ao longo do tempo numerosas alterações e estão
quenos produtores em proletários, proporcionando ao capital a submetidas a uma transformação contínua que trava o caminho
força de trabalho que ele pode comprar. ao progresso da civilização, à evolução. Os longos milénios da
economia comunista primitiva que conduzem a sociedade
— pela lei capitalista dos salários que, por um lado, zela
humana desde os primeiros começos de uma existência ainda
automaticamente para que os assalariados jamais se elevem
semi-animal até a um alto nível de desenvolvimento da cultura,
acima do seu estado de proletários e não escapem ao trabalho
à formação da linguagem e da religião, à criação de gado e à
sob as ordens do capital, e que, por outro lado, permite uma
agricultura, à vida sedentária e à formação de aldeias, seguiram-
acumulação sempre maior de trabalho não pago que se trans-
se a gradual decomposição do comunismo primitivo, a
forma em capital, uma acumulação e uma expansão cada vez
formação da antiga escravatura, que por sua vez traz novos e
maiores dos meios de produção;
grandes progressos na vida social, por conduzir ela mesma ao
— pelo exército de reserva industrial que permite à pro- declínio do mundo antigo. Da sociedade comunista dos
dução capitalista estender-se livremente e adaptar-se às neces- germanos na Europa central sai, sobre as ruínas do mundo
sidades da sociedade; antigo, uma nova forma de economia, a servidão, na qual
— pelas variações de preço e pelas crises que conduzem, assenta o feudalismo medieval.
quer diária quer periodicamente, a um equilíbrio entre a pro- A evolução continua a sua marcha ininterrupta: no seio da
dução cega e caótica e as necessidades da sociedade. sociedade feudal da Idade Média, formam-se nas cidades os
É assim, pela ação mecânica das leis económicas acima germes de uma nova forma económica e social: as corporações
enumeradas, que se constituíram por elas mesmas, sem nenhu- artesanais, a produção mercantil e um comércio regular
ma intervenção consciente da sociedade, que a economia ca- desenvolvem-se para finalmente desagregarem a sociedade feu-
pitalista existe. Ainda que falte entre os produtores individuais dal. Esta desmoronou-se para dar lugar à produção capitalista
que se desenvolveu a partir da produção mercantil artesanal,
toda a coesão económica organizada, ainda que não exista
graças ao comércio mundial, à descoberta da América e da rota
qualquer plano na atividade económica dos homens, a produção
marítima para as Índias.
social pode assim desenrolar-se e ligar-se ao consumo, as
necessidades da sociedade podem ser bem ou mal satisfeitas e O próprio modo de produção capitalista não é imutável e
o progresso económico, o desenvolvimento da produtividade eterno se o considerarmos na gigantesca perspectiva do pro-
do trabalho humano, fundamento de todo o progresso da civi- gresso histórico; é também uma simples fase transitória, um
lização, estão assegurados. escalão na colossal escala da evolução humana, como todas as
Estas são as condições fundamentais da existência de toda formas de sociedade que o precederam. Examinada mais de
a sociedade humana e enquanto uma forma histórica de econo- perto, a evolução do capitalismo leva-o ao seu próprio declínio,
mia satisfaz a essas condições, pode existir, é uma necessidade leva-o além do capitalismo. Até aqui investigamos o que torna
histórica. possível o capitalismo; é tempo agora de ver o

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que o torna impossível. Para isso basta seguir as leis internas da ponesa e artesanal. Ao mesmo tempo, integra na economia mundial
dominação do capital nos seus efeitos ulteriores. São estas leis que todos os países atrasados da Europa, todos os países da América, da
elevadas a um certo nível de desenvolvimento se voltam contra as Ásia, da África e da Austrália. Isto passa-se de duas maneiras: através
condições fundamentais sem as quais a sociedade humana não pode do comércio mundial e das conquistas coloniais. Uma e outra
existir. O que distingue o modo de produção capitalista dos modos de iniciaram-se simultaneamente, desde a descoberta da América até o
produção anteriores, é a sua tendência interna a estender-se a toda a fim do século XV, esten-dendo-se depois ao longo dos séculos
terra e a expulsar qualquer outra forma de sociedade mais antiga. No seguintes; atingiram o seu máximo desenvolvimento sobretudo no
tempo do comunismo primitivo, o mundo acessível à investigação século XIX e continuam a estender-se. Ambos — o comércio mundial
histórica estava igualmente coberto de economias comunistas. Entre e as conquistas coloniais — atuam simultaneamente. Colocam em
as diferentes comunidades comunistas não existia qualquer espécie de contato os países industriais capitalistas da Europa com todas as
relação ou então existiam relações muito superficiais. Cada espécies de formas de sociedades noutras partes do mundo, com
comunidade ou tribo vivia fechada sobre si própria e se encontramos formas de economia e de civilização mais antigas, economias
fatos tão supreendentes como a semelhança de nome entre a antiga escravagistas rurais, economias feudais e sobretudo economias
comunistas primitivas. O comércio no qual estas economias são
comunidade peruana na América do Sul, a Marca<-m\ e a comunidade
incorporadas decompõe-nas e desagre-ga-as rapidamente. A fundação
germânica medieval, a Marka, é um enigma ainda inexplicável, ou um
de companhias comerciais coloniais em terra estrangeira faz passar o
simples acaso. Encontraremos, mesmo no tempo da expansão da an-
solo, a base mais importante da produção, bem como os rebanhos de
tiga escravatura, semelhanças maiores ou menores na organização e
gado aonde existam, para as mãos dos Estados europeus ou das
na situação das diversas economias escravagistas e dos Estados
companhias comerciais. Isto destrói por todo o lado as relações so-
escravagistas da Antiguidade, mas não uma semelhança de vida
ciais naturais e o modo de economia indígena; povos inteiros foram,
económica. Do mesmo modo, na Idade Média, a história das
por um lado, exterminados e, por outro, proletariza-dos e colocados
corporações artesanais repetiu-se mais ou menos na maioria das
sob uma forma ou outra como escravos ou como trabalhadores
cidades da Itália, da Alemanha, da Holanda, da Inglaterra, etc. assalariados sob as ordens do capital industrial e comercial. A história
Todavia, tratava-se a maior parte das vezes da história de cada cidade das décadas de guerras coloniais durante todo o século XIX, os
separadamente. A produção capitalista estende-se a todos os países, levantes contra a Franç a Itália, a Inglaterra, a Holanda e os Estados
dando-lhes a mesma forma económica e unindo-os numa só e grande Unidos na Ásia, contra a Espanha e a França na América, são a
economia capitalista mundial. história da longa e tenaz resistência oposta pelas velhas sociedades
No interior de cada país europeu industrial, a produção indígenas à sua eliminação e à sua proletarização pelo capital mo-
capitalista reprime incessantemente a pequena produção cam- derno, luta que o capital venceu em toda a parte. Isto significa uma
enorme expansão da dominação do capital, a formação do mercado
mundial e da economia mundial em que todos os
118 — Cf. nota 15, p. 61, volume II da presente obra. (N. B.)

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países habitados da terra são uns para os outros produtores e cias da introdução do capital europeu que esmagou a antiga economia
compradores de produtos que trabalham conjuntamente, camponesa e artesanal. A entrada do capitalismo europeu nos Estados
companheiros de uma só e mesma economia que engloba toda a terra. Unidos foi acompanhada inicialmente pelo extermínio dos índios da
América e do roubo das suas terras pelos imigrantes ingleses, depois
O outro aspecto consiste na pauperização crescente de camadas
da introdução no início do século XIX de uma brutal produção
cada vez mais vastas da humanidade e na insegurança crescente da
capitalista para a indústria inglesa e da redução à escravatura de
sua existência. Com o regresso das antigas relações comunistas,
quatro milhões de negros africanos, vendidos na América por
camponesas ou feudais às forças produtivas limitadas, ao bem-estar
mercadores de escravos europeus para serem colocados sob as ordens
reduzido e às condições de existência sólidas e asseguradas para
do capital nas plantações de algodão, de açúcar e de tabaco.
todos, perante as relações coloniais capitalistas, a proletarização e a
escravatura salarial, a miséria brutal, um trabalho insuportável e Assim, um continente após outro, e em cada continente, um país
inusitado e, além disso, a insegurança total da existência, instauraram- após outro, uma raça após a outra, passam ineluta-velmente sob a
se em todos os povos da América, da Ásia, da Austrália e da África. dominação do capital <120). Iinumeráveis milhões de homens foram
Depois que o Brasil, país rico e fértil, foi, pelas necessidades do consagrados à proletarização, à escravatura, a uma existência incerta,
capitalismo europeu e norte-americano, transformado num gigantesco em suma à pauperização. A instauração da economia capitalista
deserto e numa vasta plantação de café, depois que os indígenas foram mundial conduz a uma miséria cada vez maior, a uma carga de
transformados em escravos assalariados e proletarizados nas trabalho insuportável e a uma insegurança crescente da existência
plantações, estes escravos assalariados foram subitamente sobre a superfície do globo, à qual corresponde a concentração do
abandonados por longos períodos ao desemprego e à fome por um capital. A economia capitalista mundial implica que toda a
fenómeno puramente capitalista, a "crise do café". Após uma humanidade se ligue sempre a um duro trabalho e sofra de privação e
resistência desesperada de várias décadas, a imensa e rica Índia foi de males inumeráveis, que seja abandonada à degenerescência física e
submetida à dominação do capital pela política colonial inglesa; desde moral para servir a acumulação do capital. O modo de produção
então a fome e o tifo, que ceifaram de uma só vez milhões de homens, capitalista tem a particularidade de que o consumo humano que, em
são os hóspedes periódicos da região do Ganges. No interior da todas as economias anteriores, era o fim, não é mais do que um meio
África, a política colonial inglesa e alemã transformou, em vinte anos, ao serviço do fim propriamente dito: a acumulação capitalista. O
populações inteiras em escravos assalariados, ou então deixou-as crescimento do capital aparece como o princípio e o fim, o fim em si e
morrer de fome; as suas ossadas estão dispersas por todas as regiões. o sentido de toda a produção. O absurdo de tais relações só aparece na
Os levantes desesperados <119> e as epidemias devidas à fome no medida em que a produção capitalista se tornou mundial. Aqui, à
imenso Império chinês foram as consequên- escala mundial, o absurdo da economia capitalista atinge a sua

119 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): tifo famélico 120 — Nota marginal de Rosa Luxemburgo (a lápis): extermínio dos
. povos primitivos.

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expressão no quadro de uma humanidade inteira que geme sob o jugo Nas índias, o capitalismo inglês vê-se confrontado com um perigoso
terrível de uma força social cega, que ela mesma criou concorrente na indústria indígena, têxtil e de outros ramos. A
inconscientemente: o capital. O objetivo fundamental de toda a forma Austrália seguiu o mesmo caminho, transformando-se de país colonial
social de produção, a manutenção da sociedade pelo trabalho, a em país capitalista industrial. No Japão, desde a primeira etapa, o
satisfação das necessidades, aparece aqui completamente alterado e choque com o comércio mundial fez surgir uma indústria própria, o
colocado de cabeça para baixo visto que a produção para o lucro e já que preservou o Japão da partilha colonial. Na China, o processo de
não para o homem se tornou a lei sobre toda a terra e que o sub- desmembramento e de pilhagem do país pelo capitalismo europeu
consumo, a insegurança permanente do consumo e, por momentos, o complica-se devido aos esforços do país para criar a sua própria
não consumo da grande maioria da humanidade, tornaram-se a regra. produção capitalista com a ajuda do Japão, a fim de se defender da
Ao mesmo tempo, a evolução da economia mundial arrasta produção capitalista europeia, o que redobra os sofrimentos da po-
outros fenómenos importantes para a própria produção capitalista. A pulação. A dominação e o poder do capital espalham-se por toda a
irrupção da dominação do capital europeu nos países extra-europeus terra pela criação de um mercado mundial, o modo de produção
passa por duas etapas: inicialmente a penetração do comércio e a capitalista espalha-se também pouco a pouco sobre todo o globo. Ora,
integração dos indígenas na troca de mercadorias e em parte também a as necessidades de expansão da produção e o território onde ela se
transformação das formas pré-existentes de produção indígena em pode estender, isto é, as suas exportações, estão numa relação cada
produção mercantil; depois a expropriação das terras dos indígenas e vez mais tensa. E uma necessidade inerente e uma lei vital da
em seguida os seus meios de produção, sob esta ou aquela forma. Estes produção capitalista não permanecer estável, expandir-se sempre cada
meios de produção transformam-se em capital nas mãos dos europeus, vez mais depressa, quer dizer, produzir cada vez mais depressa
enquanto os indígenas se transformam em proletários. Uma terceira enormes quantidades de mercadorias em empresas cada vez maiores,
etapa sucede, regra geral, às duas primeiras: a criação de uma com meios técnicos cada vez mais aperfeiçoados.
produção capitalista própria no país colonial, quer pelos europeus Esta capacidade de expansão da produção capitalista não
emigrados, quer pelos indígenas enriquecidos. Os Estados Unidos da conhece limites, porque o progresso técnico, e por conseguinte as
América, que inicialmente foram povoados pelo ingleses e por outros forças produtivas da terra, não têm limites. Entretanto, esta
imigrantes europeus após o extermínio dos Peles-Vermelhas indígenas, necessidade de expansão choca com limites completamente de-
constituíram de início um atrasado país agrícola para a Europa terminados, como por exemplo o lucro do capital. A produção e a sua
capitalista, fornecendo à Inglaterra as matérias-primas, tais como o expansão não têm sentido senão na medida em que delas sai, pelo
algodão e o trigo, e absorvendo todas as espécies de produtos menos, o lucro médio "normal". Este depende do mercado, isto é, da
industriais. Na segunda metade do século XIX for-mou-se nos relação entre a procura solvente por parte do consumidor e a
Estados Unidos uma indústria que não só repeliu as importações da quantidade de mercadorias produzidas bem como dos seus preços. O
Europa como opôs uma dura concorrência ao capitalismo europeu na interesse do capital que exige uma produção cada vez mais rápida e
Europa e nos outros continentes. maior, cria a cada passo os limites do seu mercado que colocam um
obstáculo

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à impetuosa tendência da produção para o alargamento. Daqui que imensas regiões não chegaram ainda sequer à produção
resulta que as crises industriais e comerciais são inevitáveis; mercantil simples. A vida económica destas camadas sociais e
elas restabelecem periodicamente o equilíbrio entre a tendência destes países da Europa, e fora da Europa, que não produzem
capitalista para a produção, em si ilimitada, e os limites do segundo o modo capitalista está dominada pelo capitalismo. O
consumo, permitindo ao capital perpetuar-se e de-senvolver-se. camponês europeu pode muito bem praticar a mais primitiva
Quanto mais numerosos são os países que desenvolvem a exploração parcelada; depende da economia capitalista e do
sua própria indústria capitalista, e maior é a necessidade de mercado mundial com o qual o comércio e a política fiscal dos
expansão e as capacidades de expansão da produção por um Estados capitalistas o puseram em contato. Do mesmo modo,
lado, tanto menores as capacidades de expansão do mercado se os países extra-europeus mais primitivos encon-tram-se
tornam em relação com as primeiras. Se compararmos os submetidos ao domínio do capitalismo europeu ou norte-
progressos da indústria inglesa nos anos de 1860 e 1870, quando americano pelo comércio mundial e pela política colonial. O
a Inglaterra dominava ainda o mercado mundial, com o seu modo de produção capitalista poderia ter uma forte expansão se
crescimento nas duas últimas décadas, depois que a Alemanha e reprimisse por todo o lado as formas atrasadas de produção. A
os Estados Unidos da América fizeram recuar conside- evolução caminha nesse sentido. Entretanto, esta evolução
ravelmente a Inglaterra no mercado mundial, verifica-se que o envolve o capitalismo na contradição fundamental: quanto mais
crescimento foi muito mais lento do que anteriormente. O a produção capitalista substitui os modos de produção mais
destino da indústria inglesa atinge também a indústria alemã, a atrasados, tanto mais estreitos se tornam os limites do mercado
indústria norte-americana e finalmente toda a indústria do criado pela procura do lucro, em relação à necessidade de
mundo. A cada passo do seu próprio desenvolvimento, a pro- expansão das empresas capitalistas existentes. A coisa torna-se
dução capitalista aproxima-se irresistivelmente da época em completamente clara se imaginarmos por um instante que o
que ela não poderá desenvolver-se senão cada vez mais lenta e desenvolvimento do capitalismo está tão adiantado que em toda
dificilmente. O desenvolvimento capitalista em si tem diante a superfície do globo tudo é produzido de maneira capitalista,
dele um longo caminho porque a produção capitalista como tal isto é, unicamente por empresários capitalistas privados, em
não representa senão uma ínfima fração da produção mundial. grandes empresas, com operários assalariados modernos. A
Mesmo nos mais antigos países industriais da Europa, há impossibilidade do capitalismo manifestasse então claramente.
ainda, ao lado das grandes empresas industriais, muitas
pequenas empresas artesanais atrasadas, a maior parte da pro-
dução agrícola e a produção camponesa não são capitalistas. Ao
lado disto, há na Europa países inteiros em que a grande
indústria ainda mal se desenvolveu, em que a produção local
tem um caráter camponês e artesanal. Nos outros continentes,
com exceção da América do Norte, as empresas capitalistas não
constituem mais do que pequenas ilhas dispersas ao passo

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