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ACUMULAÇÃO EM
ESCALA MUNDIAL
MULHERES
NA DIVISÃO
INTERNACIONAL
DO TRABALHO
MARIA MIES
PREFÁCIO SILVIA FEDERICI
Tradução Coletiva
MARIA MIES, socióloga e fe-
minista marxista, nasceu em
1931 na vila rural de Steffeln,
Alemanha. Conhecida mundial-
mente por sua teoria do patriar-
cado capitalista, que reconhece
as mulheres e a diferença do ter-
ceiro mundo, Mies iniciou sua
pesquisa examinando os efeitos
combinados da colonização e
subordinação das mulheres no
sistema econômico da Índia,
inspirando-se nas teses de Rosa
Luxemburgo sobre a acumula-
ção primitiva de capital. Pro-
fessora Emérita da Universidade
de Ciências Aplicadas de Co-
lônia, aposentou-se em 1993.
É militante feminista desde o
final dos anos 1960. Em 1979,
no Instituto de Estudos Sociais
em Haia, fundou o programa
Mulheres e Desenvolvimento.
É autora de importantes livros
e artigos sobre feminismo, ter-
ceiro mundo e meio ambiente.
Entre os títulos, estão The Lace
Makers of Narsapur [As rendei-
ras de Narsapur] (1982), Frauen,
die letzte Kolonie [Mulheres:
a última colônia] (1988), Die
Subsistenzperspektive [A pers-
pectiva da subsistência] (1999) e
Ecofeminismo (1993), esse últi-
mo em coautoria com Vandana
Shiva e traduzido em 2021 para
o português.
Patriarcado e acumulação em escala mundial: Mulheres na divisão internacional do trabalho foi publicado pela
primeira vez em 1986 pela Zed Books. A presente tradução tomou por base a edição publicada em 2014.
© Maria Mies, with a Foreword by Silvia Federici, 2014
A publicação da presente tradução da obra Patriarchy and Accumulation on a World Scale:Women in the
International Division of Labour, 3rd edition, resulta de tratativas com a Bloomsbury Publishing Plc.
A presente edição foi possibilitada pela Red Rock Literary Agency Ltd.
Mies, Maria
Patriarcado e acumulação em escala mundial
[livro eletrônico] : mulheres na divisão
internacional do trabalho / Maria Mies ;
prefácio Silvia Federici. -- 1. ed. -- São Paulo :
Ema Livros : Editora Timo, 2022.
PDF.
22-108897 CDD-305.42
Índices para catálogo sistemático:
EMA LIVROS Praça Marquês de Itanháem, 51, anexo, Vila Madalena, São Paulo, SP - 05447-180
www.emalivros.com.br | contato@emalivros.com.br
EDITORA TIMO Praça Tcheco, 18, Vila Ipojuca, São Paulo, SP - 05057-080
www.editoratimo.com.br | contato@editoratimo.com.br
São Paulo, 2022
Conselho Científico
Laura Patrícia Zuntini de Izarra (Universidade de São Paulo) | Luciana Carvalho Fonseca (Universidade
de São Paulo) | María Laura Spoturno (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)
Conselho Editorial
Coletivo Sycorax | Ana Basaglia | Helena Barbosa | Maria Teresa Mhereb | Marina Waquil
SUMÁRIO
41 INTRODUÇÃO
49 1 O QUE É FEMINISMO?
• Onde estamos hoje? • Feminismo de “tempo bom”? • O que há de novo
no feminismo? • Libertação das mulheres • Política do corpo • Novo
conceito de política • Trabalho feminino • Exploração ou opressão/
subordinação • Patriarcado Capitalista • Sociedades superdesenvolvidas
e subdesenvolvidas • Autonomia
409 REFERÊNCIAS
no ano passado pela Editora Luas. Hoje, portanto, graças a projetos edi-
toriais feministas, contamos com duas traduções de Maria Mies recém-
chegadas ao Brasil.
REFERÊNCIAS
Alvarenga, Ana F.; Battistam, Laura P.; Bittencourt, Juliana; Farias, Cecilia; Fonseca, Luciana
C.; Izidoro, Leila G.; Mhereb, Maria Teresa; Oliveira-Macedo, Shisleni; Rosas, Cecília;
Rosas, Elisa. “Coletivo Sycorax: desdobramentos de práticas feministas de tradução”.
Belas Infiéis, Número Especial 9th IATIS, 2022.
Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.Tradução de Coletivo
Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
VIII PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
ISABEL LOUREIRO
1 Frigga Haug, Rosa Luxemburg und die Kunst der Politik [Rosa Luxemburgo e a arte da políti-
ca]. Hamburgo: Argument, 2007.
2 Frigga Haug comenta como foi importante para o grupo a leitura de Raya Dunayevskaya,
Rosa Luxemburg, Women’s Liberation, and Marx’s Philosophy of Revolution [Rosa Luxemburgo,
libertação das mulheres e a filosofia da revolução de Marx]. Atlantic Highlands: Humanities
Press Inc., 1981.
MARI A MI ES XI
4 Claudia von Werlhof, Maria Mies e Veronika Bennholdt-Thomsen, Frauen, die letzte Kolonie
[Mulheres, a última colônia], Reinbeck, 1983.
5 Christel Neusüß, Die Kopfgeburten der Arbeiterbewegung, oder die Genossin Luxemburg bringt alles
durcheinander [O nascimento da cabeça do movimento operário, ou a camarada Luxemburgo
confunde tudo]. Hamburgo: Rasch und Röhring, 1985.
XII PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
6 Ibidem, p. 282.
MARI A MI ES XIII
7 Rosa Luxemburgo, Introdução à economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1975, p. 43, tra-
dução modificada.
8 Maria Mies, “‘Akkumulation des Kapitals’ und die Notwendigkeit einer neuen Ökonomie
[“A acumulação de capital” e a necessidade de uma nova economia], Rosa Luxemburg Konferen-
zen 98/99, Berlim,Verlag, 8, maio de 1999.
XIV PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
9 Esse termo traduz a palavra alemã Hausfrauisierung, originária de Hausfrau (dona de casa).
Para uma análise crítica desse conceito, ver “Tradução do verbete Hausfrauisierung”, de Frigga
Haug, traduzido por Mylene N. Teixeira e Victor Strazzeri, em: Revista Estudos Feministas, Flo-
rianópolis, 26 (2), 2018. Aqui, como em todo este livro, o substantivo alemão é traduzido por
“donadecasificação” (ver “Prefácio à edição brasileira”).
poder lógico de seu argumento não deve ser menosprezado, pois nos desafia
a explicar a presença generalizada da violência masculina contra as mulheres
e confronta, inclusive, as pessoas “céticas” quanto ao gênero ao apresentar-
-lhes uma inegável base comum para suas posições. Desmistifica também o
suposto caráter inovador e criativo do capitalismo, “última manifestação do
patriarcado”, evidenciando sua dependência parasitária da livre apropriação
da natureza e do corpo e do trabalho das mulheres.
Como Mies demonstra, somente com o advento do capitalismo o uso
da violência como força econômica foi universalizado e intensificado para
além do que havia sido exercido em qualquer sistema anterior. Pois, como
ela argumenta, a formação de um sistema mundial permitiu ao capitalis-
mo externalizar a exploração, multiplicar suas divisões coloniais e acelerar
a destruição da riqueza natural do planeta. Nesse contexto, uma das partes
mais potentes de Patriarcado e acumulação é a análise que a autora faz da con-
tinuidade entre os processos que caracterizaram a primeira fase do desen-
volvimento capitalista – caça às bruxas, tráfico de escravos, colonização – e
aqueles que caracterizaram a reestruturação da economia mundial em nosso
tempo, mostrando que o “desenvolvimento em um polo sempre represen-
tou subdesenvolvimento no outro” e que acumulação primitiva não pode
ser confinada às origens da sociedade capitalista, pois tem sido um aspecto
essencial de todas as fases do desenvolvimento capitalista e agora se tornou
um processo permanente.
Essa é uma “verdade” que os desenvolvimentos sociais e políticos desde a
primeira publicação de Patriarcado e acumulação têm verificado repetidamente.
O mesmo acontece com a afirmação do livro em relação à conexão causal
direta entre a extensão global das relações capitalistas e a escalada da violência
contra as mulheres, como punição contra sua resistência à apropriação de
seus corpos e trabalho. Não só milhares de mulheres, como também muitos
homens jovens, continuam a ser escravizados e a morrer nas “zonas de franca
exportação”, as workhouses do nosso tempo.11 A violência contra as mulheres
aumentou tanto nos últimos anos que o termo “feminicídio” agora é comu-
mente empregado até mesmo em relatórios governamentais; na Itália, em
11 Na história britânica, as workhouses eram estabelecimentos onde pessoas pobres que não
possuíam meios de subsistências trabalhavam em troca de abrigo e alimentação. [N. das T.]
20 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
zação, mas as milhões de mulheres que com menos de “um dólar por dia” têm
lutado para manter suas comunidades vivas, principalmente por meio de seu
trabalho de subsistência e da criação de formas cooperativas de reprodução
social. É a presença implícita delas – e a presença das muitas mulheres que
lutam diariamente para criar formas de existência e relações sociais não regi-
das pela lógica da acumulação capitalista – que dá poder ao trabalho de Mies.
É por isso que, apesar do retrato rigoroso que traça dos poderes destrutivos
do capitalismo, Patriarcado e acumulação não estimula nenhum tipo de pessi-
mismo histórico, pois expressa a confiança de que o capitalismo ameaça tão
profundamente a reprodução da vida que nossa revolta contra ele não pode
ser domada e ressurgirá reiteradamente na agenda da humanidade até que ele
chegue ao fim.
PREFÁCIO
MARIA MIES
ESTOU MUITO feliz que meu livro Patriarcado e acumulação em escala mundial,
publicado pela primeira vez pela Zed Books em 1986, esteja sendo publicado
novamente. No entanto, eu me pergunto: será que o livro ainda é relevante?
Se sim, por quê? Minha análise e minhas conclusões ainda são as mesmas em
um mundo em que uma crise vem seguida de outra e em que há uma guerra
após a outra? O que mudou desde 1986?
Minhas primeiras perguntas são: os conceitos de patriarcado e capitalismo
ainda são válidos em um mundo onde o livre comércio está dominando toda
a vida econômica, política e social? E, conforme escrevi em 1986, o capita-
lismo e o patriarcado continuam interligados? Minha análise do trabalho das
mulheres sob o patriarcado capitalista mudou? A violência contra as mulheres,
a natureza e outras colônias não desapareceu de nossa sociedade civilizada?
Antes de responder a essas perguntas, quero ilustrar como descobri con-
ceitos como patriarcado, capitalismo e exploração das mulheres, da natureza e
das colônias. Uma coisa era nítida desde o início: minhas ideias não surgiram
enquanto eu estava sentada na Biblioteca Britânica, lendo livros sobre econo-
mia política, mas sim participando de uma série de movimentos sócio-polí-
ticos, particularmente do movimento feminista, mas também do movimento
estudantil, do movimento ambientalista, do movimento pela paz e, mais tarde,
do movimento antiglobalização. Na verdade, escrever e ler livros veio durante
e após essas lutas. Isso significa que a prática veio antes da teorização. Isso era
– e é – particularmente verdadeiro para o movimento feminista, porque não
havia livros para explicar por que as mulheres ainda são oprimidas, exploradas
e não recebem a mesma remuneração que os homens.
Patriarcado e acumulação é o resultado desse processo entrelaçado de ação
e reflexão, de experiência e teoria. Mas também foi escrito em um mo-
24 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
pais não dariam início à conversa sobre casamento enquanto a filha estivesse
cursando um bacharelado ou mestrado. Para aquelas alunas, “estudar alemão”
era, portanto, uma desculpa para adiar essas negociações matrimoniais. Mas,
ao fim, elas eram obrigadas a se casar com um homem que normalmente
não conheciam.
Eu ainda não sabia o que o conceito de “patriarcado” realmente implicava.
Mas as conversas com minhas alunas me fizeram vislumbrar, pela primeira vez,
o que significa ser uma mulher em uma sociedade patriarcal. Abriram meus
olhos para a opressão social das mulheres e as relações patriarcais entre homens
e mulheres. Entretanto, eu ainda não entendia que o patriarcado é um sistema
que não existe apenas na Índia.
Com Iravati Karve, uma antropóloga mundialmente renomada, aprendi
que o que ouvi de meus alunos e alunas era apenas uma das características
de todo um sistema social e familiar patriarcal que existia no subcontinente
indiano há milhares de anos. A partir daí, quis saber mais sobre esse sistema.
Então, quando voltei à Alemanha em 1968, quis pesquisar a questão: por que
as mulheres indianas modernas ainda são oprimidas por um sistema familiar
patriarcal? Fui à Universidade de Colônia encontrar o professor René König,
professor catedrático de Sociologia e um sociólogo da família conhecido in-
ternacionalmente. Contei a ele minhas experiências na Índia e meu interesse
em estudar mais sobre mulheres indianas modernas. Naquela época, nenhuma
universidade na Alemanha oferecia disciplina sobre estudos das mulheres, mui-
to menos sobre estudos das mulheres indianas modernas. O professor König
ficou fascinado pelo tema e disse: “Por que você não faz um doutorado sobre
o assunto?” Eu respondi: “Se isso for possível, eu faço.”
Voltei para a Índia e fiz pesquisas empíricas sobre os dilemas e conflitos
das mulheres modernas de classe média. Os resultados confirmaram o que eu
já havia observado cinco anos antes, ou seja, que o patriarcado é um sistema
social, cultural, econômico e político global que determina a vida de uma
mulher desde o nascimento até a morte. Outra lição que aprendi foi que o
patriarcado não é uma coisa do passado, mas algo que ainda hoje prospera
apesar da “modernização e desenvolvimento”. Escrevi minha dissertação sobre
os conflitos e dilemas das mulheres indianas modernas, que foi publicada na
Índia sob o título Indian Women and Patriarchy [Mulheres indianas e patriarca-
do] (Mies, 1980a).
26 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
trabalho das mulheres no ambiente doméstico. Por muitos anos, esse debate
esteve no centro do discurso feminista internacional. Marx chamou o “traba-
lho das donas de casa” de “trabalho reprodutivo”, enquanto o trabalho de um
homem na fábrica era o “trabalho produtivo”.
Foi quando comecei a escrever “Social Origins of the Sexual Division of
Labour” [“Origens sociais da divisão sexual do trabalho”], um ensaio publica-
do em Women:The Last Colony [Mulheres: a última colônia], que foi coescrito
com minhas amigas Veronika Bennholdt-Thomsen e Claudia Von Werlhof
(Mies, Bennholdt-Thomsen & Von Werlhof, 1988). O livro foi amplamente
lido e discutido por mulheres no mundo inteiro. Nós três tínhamos trabalhado
e estudado em países do “Terceiro Mundo” – Veronika e Claudia na América
Latina, eu na Índia. Portanto, não examinamos apenas o efeito que o capita-
lismo teve sobre as mulheres na Europa e nos Estados Unidos, mas também
perguntamos o que isso significava para as mulheres nos denominados países
em desenvolvimento. Nós os chamamos simplesmente de colônias. Veronika
e Claudia olharam particularmente para a similaridade entre o trabalho das
donas de casa e o dos camponeses na América do Sul, e eu fiz o mesmo para a
Índia. Compreendemos que não somente o trabalho doméstico das mulheres
em todo o mundo era considerado “um recurso gratuito” para o capital, como
também o era o trabalho de pequenos camponeses e moradores de favelas nas
cidades. O mesmo era/é verdadeiro para as colônias e particularmente para a
natureza. Para os capitalistas, tudo isso são “colônias”, cuja produção pode ser
apropriada praticamente sem custos.
Não éramos as únicas a tentar compreender se os conceitos marxianos
como “relações de produção” ou “modos de produção” faziam sentido no
que diz respeito aos povos que trabalhavam não diretamente para o mercado,
mas para se manterem diariamente, ou seja, para sua subsistência. Para nós, a
subsistência tornou-se então o principal conceito para entendermos como
a acumulação capitalista realmente ocorre. Nós compreendemos imediata-
mente que o trabalho doméstico não remunerado era “trabalho reprodutivo”,
porque uma mulher trabalhava para “reproduzir” o trabalhador masculino, de
modo que ele pudesse vender seu trabalho por um salário na porta da fábrica.
Além disso, também “reproduziria” a geração seguinte de trabalhadores, de
modo que o processo da acumulação pudesse se perpetuar. Marx considerou
essa “reprodução diária e intergeracional da classe trabalhadora” como uma
28 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Meu estudo sobre as mulheres rendeiras em Narsapur foi a lição mais im-
portante que aprendi como socióloga e feminista. Essas mulheres faziam renda
crochetada do amanhecer ao anoitecer, sentadas em frente às suas cabanas de
barro até que não houvesse mais luz. Pelo trabalho, recebiam muito menos do
que o salário mínimo de uma trabalhadora agrícola sazonal.
O setor rendeiro estava organizado de acordo com o sistema putting-out
clássico12. As mulheres tinham de comprar os fios do exportador, que então
recolhia as rendas e as exportava para a Austrália e a Europa. Esse exportador
ficou milionário e tinha uma mansão em Narsapur. Porém, além do “trabalho
assalariado”, elas também tinham de cozinhar, limpar a cabana, lavar roupa,
deitar-se com seus maridos, dar à luz seus filhos, cuidar deles e realizar todos
os outros “trabalhos invisíveis” feitos por mulheres em todo o mundo. Por
isso, tiveram de combinar o trabalho reprodutivo com o trabalho produtivo
pessimamente pago. Seus “produtos” eram itens de luxo e eram exportados
para os países ricos – para as mulheres de lá. Chamei a combinação desses dois
tipos de trabalho de donadecasificação do trabalho. Publiquei os resultados da mi-
nha pesquisa no livro The Lace Makers of Narsapur [As rendeiras de Narsapur]
(Mies, 1982).
Hoje, os homens também têm de sentar “em casa” e trabalhar em um
computador para o mercado mundial. Embora não sejam tão pobres quanto
as rendeiras de Narsapur, estruturalmente suas condições de trabalho são se-
melhantes. Mas hoje isso é chamado de “trabalho precário”.
A etapa seguinte do meu processo de aprendizagem sobre a interconexão
entre patriarcado e capitalismo começou em 1979, quando fui convidada
pelo Instituto de Estudos Sociais (ISS) em Haia para criar um programa de
mestrado para mulheres de países em desenvolvimento. O título desse pro-
grama era “Mulheres e desenvolvimento”, e ele foi patrocinado pelo gover-
no holandês. Foi quando as instituições oficiais começaram a entender que
a “questão da mulher” seria importante para o desenvolvimento futuro do
mundo industrializado. Não tive problemas em encontrar candidatas para o
nosso programa. As mulheres vinham da Índia, Bangladesh, Tailândia, Sudão,
Somália, Trinidad e Tobago, Filipinas, Belize, África do Sul, e havia também
13 No original, her-story, um trocadilho com a palavra history, tem por objetivo (re)escrever a
história a partir de uma perspectiva das mulheres, evidenciando o papel destas. O trocadilho
bem-humorado consiste em trocar his (“dele”, em inglês) por her (“dela”) e não remeter à
etimologia original de history (história). [N. das T.]
MARI A MI ES 31
De imediato, o que me vem à mente quando faço essa pergunta é que o cli-
ma geral é diferente hoje. Em 1968, muitas pessoas estavam cheias de esperan-
ça de que poderiam mudar as coisas, de que poderiam construir um mundo
melhor, de que poderiam impedir a destruição ambiental e o envenenamento
do mundo pela indústria nuclear. Esse otimismo já não existe mais, o clima
geral nas sociedades ocidentais é pessimista – se não depressivo. Existem razões
para essa mudança. O mundo mudou dramaticamente desde que escrevi meu
livro. Aqui, quero mencionar apenas algumas das mudanças mais importantes.
De 1979 a 1980, Margaret Thatcher e Ronald Reagan introduziram o neo-
liberalismo como o novo dogma econômico na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos. Os principais pilares da economia de livre mercado são a globali-
zação, a liberalização, a privatização e a concorrência universal (GLPC). Essa
economia de livre mercado foi rapidamente introduzida em todos os países
do mundo, promovida pelo Banco Mundial, pelo FMI e, posteriormente, pela
OMC. Nos países endividados do Sul, os governos foram forçados a aceitar
esse modelo. Mas os países ricos do Norte também transformaram rapidamen-
te suas economias de acordo com os princípios do livre mercado. E, finalmen-
te, após o fim da “guerra fria”, os antigos Estados socialistas ou comunistas,
como a ex-União Soviética e a China, também adotaram o neoliberalismo,
que prometia riqueza rápida para todos, mais empregos, mais democracia,
preços mais baixos para bens de origem global e livre circulação de pessoas
e capital entre os países. A maioria dos governos acreditou nessas promessas.
No entanto, pouco tempo depois muitas pessoas perceberam que os custos
das mudanças eram o aumento do desemprego, uma nova onda de pobreza,
mais exploração dos trabalhadores, mais destruição ambiental e um Estado
que havia abandonado seu papel de regulador da economia.
MARI A MI ES 35
vida melhor. O primeiro requisito para uma nova perspectiva é que as pessoas
abandonem sua fé no dinheiro. A segunda é uma nova definição do objetivo
da economia. A palavra “economia” vem da palavra grega oikonomia, conhe-
cimento sobre o doméstico. O objetivo da oikonomia não era o acúmulo de
dinheiro, mas a satisfação das necessidades básicas de todos os membros da
família. É isso o que significa subsistência.
Em setembro de 2003, fui convidada para uma conferência em Trier. Foi
organizada pela Associação Católica de Mulheres Rurais. O lema dessa con-
ferência era “The World is Our Household” [O mundo é nossa casa]. Pensei que
essa poderia ser a chave para o novo paradigma que as pessoas estavam procu-
rando. Se todos tratassem o mundo inteiro como sua própria casa, o mundo
seria um lugar diferente.
Mas, hoje, os habitantes do Norte têm preocupações diferentes. Pela pri-
meira vez, eles percebem que não são apenas as pessoas do Sul pobre, mas
que eles também estão ameaçados pela pobreza. Depois de um longo pe-
ríodo de prosperidade, os países do Ocidente passaram por uma crise após
a outra. Economistas chegaram a proclamar que tais crises tinham acabado
para sempre nos países desenvolvidos. Mas agora elas estão de volta, tanto nos
Estados Unidos como na Europa, e os políticos não sabem como resolvê-las.
Na verdade, as crises atuais são parte integrante do capitalismo. O capitalismo
precisa de crises. Os políticos estão desamparados perante os grandes bancos
e as onipotentes corporações internacionais responsáveis pelas crises atuais. O
sul da Europa é o mais atingido pela crise atual, e Grécia, Espanha e Portugal
em particular agora dependem dos países mais ricos do norte da Europa, es-
pecialmente da Alemanha, para resgatá-los da falência.
Além disso, a insegurança quanto ao futuro de nossa economia também
criou uma nova percepção sobre as causas desse novo empobrecimento e
sobre quem lucra com isso. Por muito tempo, a palavra “capitalismo” foi um
tabu, mas agora é novamente usada no discurso público. Hoje, muitas pessoas
percebem que a crise atual não pode ser resolvida dentro da estrutura do pa-
triarcado capitalista e estão em busca de uma nova perspectiva, de um novo
paradigma, de uma nova civilização (von Werlhof, 2011). Muitas novas visões
são discutidas em todo o mundo, e entre elas está a perspectiva de subsistên-
cia. Hoje, a perspectiva de subsistência não é apenas uma ideia romântica: é
uma necessidade.
38 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Nos vinte e oito anos que transcorreram desde que este livro foi publicado
pela primeira vez, algo ficou evidente para mim: um novo paradigma não pode
ser baseado em uma revolução violenta. Nenhuma das revoluções anterio-
res eliminou a interconexão entre patriarcado e capitalismo. O capitalismo é
apenas o último avatar do patriarcado. Se quisermos superar os dois, temos de
seguir um caminho diferente. Esse caminho, que só pode nascer se plantarmos
novas sementes, foi descrito por minha amiga Farida Akhter, de Bangladesh,
em seu livro Seeds of Movements [Sementes de Movimentos] (Akhter, 2007).
REFERÊNCIAS
Von Werlhof, Claudia; Mies, Maria; Bennholdt-Thomsen, Veronika: Women: The Last
Colony. Londres: Zed Books, 1988.
Von Werlhof, Claudia. The Failure of Modern Civilization and the Struggle for a ‘Deep’
Alternative: On ‘Critical Theory of Patriarchy’ as a New Paradigm. Frankfurt: Peter Lang
Verlag, 2011.
INTRODUÇÃO
com a relação de dominação dos homens sobre as mulheres. Isso significa que
o movimento feminista não pode ignorar as questões de classe, a exploração
da divisão internacional do trabalho e o imperialismo. Por outro lado, o ve-
lho argumento, apresentado por socialistas científicos, de que a “questão da
mulher” é uma contradição secundária e pertence à esfera da ideologia, da
superestrutura ou da cultura, já não pode mais ser sustentado para explicar
a realidade das mulheres, particularmente desde que a rebelião feminista foi
deflagrada em todos os lugares em torno da questão da violência.
As questões não resolvidas dizem respeito à relação entre patriarcado e
capitalismo: em outras palavras, dizem respeito à relação entre a opressão e
exploração das mulheres e o paradigma da acumulação infinita e o chamado
‘crescimento’, entre o patriarcado capitalista e a exploração e subordinação
das colônias.
Essas não são questões acadêmicas. Elas tocam cada mulher em sua vida
cotidiana bem como o movimento feminista em seus objetivos políticos
e existência. Se não formos capazes de encontrar respostas plausíveis para
essas perguntas, corremos o risco de que a rebelião feminista seja cooptada
pelas forças que querem somente dar continuidade ao modelo destrutivo de
acumulação de capital e que necessitam da vitalidade desse movimento para
alimentar ainda mais o processo de “crescimento”.
O que se segue não é o resultado de um estudo sistemático das questões
levantadas. Essas questões surgiram repetidas vezes no decorrer de muitas
lutas, discussões e reuniões de que participei nos últimos anos. Muitas das
discussões ocorreram entre mulheres do Terceiro Mundo e do Primeiro
Mundo, algumas delas realizadas em países do Terceiro Mundo. As ideias
construídas a partir de tudo isso não são, portanto, algo que eu poderia ter
alcançado sem a existência de um movimento internacional das mulheres.
Muitas mulheres – e alguns homens – me deram ideias ou comentários va-
liosos. Prezo muito aqueles que desafiaram algumas das minhas suposições
e, assim, me forçaram a aprofundar e ampliar minha análise. Desse modo, a
questão do que une e o que divide as mulheres em classes, países e regiões
superdesenvolvidas e subdesenvolvidas desempenhou um papel crucial. O
mesmo aconteceu com a questão do papel da violência no estabelecimento
das relações patriarcais entre homens e mulheres, bem como no processo de
acumulação de capital.
MARI A MI ES 43
Com o passar do tempo, ficou evidente para mim que as confusões no mo-
vimento feminista em todo o mundo continuarão, a menos que entendamos
a ‘questão da mulher’ no contexto de todas as relações sociais que constituem
nossa realidade hoje – ou seja, no contexto de uma divisão do trabalho que se
dá sob os ditames da acumulação de capital. A subordinação e a exploração das
mulheres, da natureza e das colônias são a pré-condição para a continuação
desse modelo.
A segunda coisa que ficou nítida foi a percepção de que as mulheres, em
sua luta para recuperar sua humanidade, não têm nada a ganhar com a conti-
nuação desse paradigma. Feministas em todos os lugares fariam bem em desis-
tir da crença expressa pelo socialismo científico de que o capitalismo, através
de sua ganância por acumulação sem fim, chamada de “crescimento”, criou as
pré-condições para a libertação das mulheres, que então podem ser realizadas
sob o socialismo. Hoje, é mais do que evidente que o próprio processo de
acumulação destrói o cerne da essência humana em todos os lugares, porque
é baseado na destruição da autossuficiência das mulheres sobre suas vidas e
corpos. Como as mulheres não têm nada a ganhar em sua humanidade a partir
da continuação do modelo de crescimento, elas são capazes de desenvolver
uma perspectiva de sociedade que não se baseie na exploração da natureza,
das mulheres e de outros povos.
Metodologicamente, isso significa que não é suficiente olhar apenas para
um lado da moeda, é necessário estudar as conexões existentes entre as várias
partes que foram separadas pela divisão sexual e internacional do trabalho.
Também significa entender que essas divisões e conexões têm uma realidade
material, porque o mercado mundial efetivamente conecta os mais remotos
cantos do mundo e as mais diferentes pessoas. Mas, embora essas conexões
existam de fato, elas são quase totalmente apagadas de nossa consciência. Na
verdade, consumimos uma massa de mercadorias produzidas por pessoas em
países do Terceiro Mundo, das quais nem mesmo temos ciência. A fim de
superar essa alienação provocada pela produção de mercadorias na divisão
internacional e sexual do trabalho, procurei examinar não apenas o que acon-
teceu com as mulheres no Ocidente, mas também o que estava acontecendo
ao mesmo tempo com as mulheres nas colônias. Ao olhar para os dois lados
da moeda, foi possível identificar as políticas contraditórias em relação às
mulheres que foram – e ainda são – promovidas pela união de militaristas,
44 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
14 Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Foi
historicamente utilizada para caracterizar a perseguição perpetrada contra judeus e outras mi-
norias étnicas na Europa, mas, de forma mais ampla, diz respeito ao movimento coletivo de
eliminação e destruição de grupos específicos. [N. das T.]
46 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
tinham um problema comum que era: como os homens nos tratam mal. Foi
nesse sentido que as mulheres do Sistren Theatre Collective, na Jamaica, se
expressaram em 1977 quando deram início ao grupo em Kingston.15
E onde quer que as mulheres se juntam para falar de experiências íntimas
e muitas vezes de tabus, é possível encontrar os mesmos sentimentos de in-
dignação, preocupação e solidariedade. Isso também vale para os grupos de
mulheres surgindo em países subdesenvolvidos.16 No início do movimento, as
reações hostis ou desdenhosas de grandes setores da população masculina, par-
ticularmente aqueles que tinham alguma influência na opinião pública, como
jornalistas e pessoas da mídia, só reforçaram os sentimentos de irmandade entre
as feministas, que se tornaram cada vez mais convencidas de que o separatis-
mo feminista era o único modo de criar espaço para as mulheres dentro das
estruturas globais da sociedade dominada por homens. Mas, quanto mais o
movimento feminista se espalhava, quanto mais claramente demarcava sua área
como território pertencente a todas as mulheres – estando os homens fora de
seu domínio –, mais negativas ou abertamente hostis eram as reações ao movi-
mento. Feminismo tornou-se uma palavra feia para muitos homens e mulheres.
Em países subdesenvolvidos, o termo foi muito usado principalmente
com o atributo pejorativo “ocidental”, ou às vezes até “burguês”, para de-
16 Pude observar isso na Índia em 1973/74, quando um pequeno grupo de mulheres se reuniu
em Haiderabade, de onde surgiu a primeira nova organização de mulheres na Índia, a Organi-
zação Progressista das Mulheres (POW) (cf. K. Lalitha: “Origin and Growth of POW: First ever
Militant Women’s Movement in Andhra Pradesh” [Origem e crescimento da POW: primeiro
movimento militante de mulheres em Andhra Pradesh], em HOW, vol. 2, n. 4, 1979, p. 5).
Enquanto isso, grupos e organizações feministas surgem em muitos países do Terceiro Mundo.
54 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
18 A Índia parece ser o país da Ásia em que o movimento feminista se espalha mais rapida-
mente. Na recente Peregrinação pela Libertação das Mulheres (Stree Mukti Yatra), organizada
por alguns grupos feministas em Mumbai, cerca de 200 mil mulheres e 100 mil homens parti-
ciparam de espetáculos dramáticos, exposições de pôsteres, palestras e discussões, apresentações
de slides, vendas de livros e outros programas acerca da opressão e libertação das mulheres. A
“oficina móvel” consistiu em um ônibus com 75 ativistas pela libertação das mulheres que, em
12 dias, percorreu 1.500 quilômetros e realizou eventos em 11 cidades e 10 aldeias no estado
de Maharashtra. Uma das participantes escreveu: “O objetivo era criar uma consciência da
56 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
posição secundária das mulheres na sociedade e desfazer alguns dos mal-entendidos em torno
do conceito de libertação feminina” (Nandita Gandhi em Eve’s Weekly, 16-22 de fevereiro de
1985). A recepção e o resultado da peregrinação foram tão significativos que o Times of India,
um dos principais jornais indianos, comentou: “Como as duas semanas de Stree Mukti Yatra
comprovaram em Maharashtra, o feminismo veio para ficar. Não pode mais ser descartado
como uma importação ocidental irrelevante, o privilégio de um punhado de mulheres da
cidade” (Ayesha Kagal, “Nasce uma menina”, em Times of India, 3 fev. 1985).
Em Lima, no Peru, o grupo Flora Tristán foi um dos primeiros centros fe-
ministas da América Latina (Vargas, 1981). Na Índia, vários grupos e centros
feministas foram formados nas grandes cidades. Os mais conhecidos são os
grupos Stri Sangharsh (agora dissolvido) e Saheli em Delhi. Além desses, há a
antiga Rede Feminista (agora dissolvida), a Stree Mukti Sangathna, o Fórum
contra a Opressão das Mulheres, o Centro de Mulheres em Mumbai, a Stri
Shakti Sangathana em Haiderabade,Vimochana em Bangalore e o Centro de
Mulheres em Calcutá. Por volta da mesma época, surgem as primeiras revistas
feministas em países do Terceiro Mundo. Uma das primeiras é Manushi, publi-
cada por um coletivo de mulheres em Delhi. No Sri Lanka, a revista Voice of
Women [A voz das Mulheres] apareceu na mesma época. Revistas semelhantes
foram publicadas na América Latina.20
Paralelamente ao feminismo que ascendia no Terceiro Mundo de “baixo
para cima” e a partir dos movimentos sociais de base, desenvolvia-se um
movimento de “cima para baixo” com foco no papel das mulheres no de-
senvolvimento, nos estudos das mulheres [women’s studies] e no status das mu-
lheres. Esse movimento de cima para baixo se originou, em grande medida,
em instituições nacionais e internacionais, organizações desenvolvimentistas
e organismos da ONU, em que mulheres preocupadas com a questão, e até
mesmo feministas, buscavam usar os recursos financeiros e organizacionais
dessas instituições para fazer avançar a causa das mulheres. Nisso, certas orga-
nizações estadunidenses, como a Fundação Ford, desempenharam um papel
importante. A Fundação Ford contribuiu generosamente para o estabeleci-
mento de estudos e pesquisas das mulheres em países do Terceiro Mundo,
particularmente no Caribe, na África (Tanzânia) e na Índia. Foram criados
centros de pesquisa e formuladas políticas com o objetivo de inserir os estu-
dos das mulheres nos programas das ciências sociais.
Na Índia, foi formada uma Associação Nacional de Estudos das Mulheres,
que já realizou duas conferências nacionais. Uma organização semelhante está
sendo formada no Caribe. Mas, enquanto a associação indiana ainda se atém
ao termo mais geral “estudos das mulheres”, a caribenha se autodenomina
Associação Caribenha para Pesquisa e Ação Feminista (Cafra).
Esse último ponto pode ser observado principalmente no que diz respei-
to à relação entre sexo e raça, a qual, nos últimos anos, emergiu como uma
das áreas mais sensíveis nos movimentos de mulheres nos Estados Unidos,
Inglaterra e Holanda, países onde vive um número significativo de mulheres
do Terceiro Mundo que aderiu ao movimento feminista (Bandarage, 1983).
No início, as feministas brancas eram frequentemente indiferentes ao pro-
blema racial, ou então assumiam uma atitude maternalista ou paternalista
em relação às mulheres de cor, tentando incluí-las no movimento feminista.
60 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
21 Para os adjetivos “of colour / coloured” (em “people/women of colour” / “coloured people/women”)
e “brown” (em “brown women/men”) optamos, respectivamente, pelas traduções literais “povos/
mulheres de cor” e “homens/mulheres marrons”. Ver discussão na “Apresentação à edição
brasileira”. [N. das T.]
22 Vale lembrar que essa afirmação foi feita em meados dos anos 1980, quando este livro foi
escrito. [N. das T.]
MARI A MI ES 61
coloca automaticamente do mesmo lado que elas (cf. Amos & Parmar, 1984),
porque as mulheres negras são também divididas pelo patriarcado capitalista
de acordo com linhas coloniais e de classe; e a divisão de classe em particular é
frequentemente esquecida no discurso sobre sexo e raça. Na atual conjuntura,
o capitalismo negro, marrom ou amarelo é a grande esperança dos defensores
do sistema mundial capitalista. Existem algumas mulheres negras no mundo
negro cujo padrão de vida é melhor do que o de algumas mulheres brancas
no mundo branco, e particularmente do que o da maioria das mulheres negras
no mundo branco ou no mundo negro. Se não queremos cair na armadilha
do moralismo e do individualismo, é necessário olhar mais a fundo e chegar
a uma compreensão materialista e histórica da interação da divisão sexual,
social e internacional do trabalho. Pois essas são as divisões objetivas, criadas
pelo patriarcado capitalista em sua conquista do mundo, que estão na base de
nossas diferenças, embora não sejam determinantes de tudo. E essas divisões
estão intimamente ligadas a expressões culturais particulares.
A maneira como o sexo, a classe e a raça, ou melhor, como os pilares do
colonialismo estão entrelaçados em nossas sociedades não se resume a um
problema ideológico capaz de ser resolvido com mera boa vontade. Qualquer
pessoa com intenção de chegar a uma base realista para a solidariedade femi-
nista internacional precisa procurar entender como as diferenças de sexo, raça
e classe são combinadas. Um mero apelo a mais “sororidade” ou solidariedade
internacional não basta.
No que diz respeito às diferenças nos planos ideológico e político, tem
havido tentativas de categorizar e rotular as várias tendências do novo mo-
vimento feminista. Assim, certas tendências passam a ser chamadas de “femi-
nismo radical”, outras de “feminismo socialista” ou “feminismo marxista”,
outras de “feminismo liberal”. Às vezes, dependendo da filiação política do
enunciador ou enunciadora, a tendência também pode ser denunciada como
“feminismo burguês”. A meu ver, rotular não contribuiu para um melhor
entendimento do real conceito de feminismo, daquilo que representa, de seus
princípios básicos, de sua análise da sociedade e de suas estratégias. Além
disso, atribuir rótulos só ganha relevância para as pessoas que olham para o
movimento de fora e tentam encaixá-lo em categorias já conhecidas. As ca-
tegorias desenvolvidas podem ter algum valor em alguns países, por exemplo
no mundo anglo-americano, mas não em outros. Mas, em geral, seu valor
62 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
muitas vezes não compreendem. Com isso, elas de fato conseguem causar
certas mudanças, mas não “entendem” que as mudanças que almejam são
muito mais abrangentes e radicais do que imaginam. Vejamos o exemplo da
campanha mundial contra o estupro. Ao enfocar a violência masculina contra
as mulheres, tornada visível no estupro, e conferir à questão o status de pro-
blema público, as feministas inadvertidamente tocaram em um dos tabus da
sociedade civilizada: o de que ela é uma “sociedade pacífica”. Embora a maio-
ria das mulheres estivesse preocupada principalmente em ajudar as vítimas ou
em promover reformas legais, o próprio fato de o estupro ter se tornado uma
questão pública ajudou a fazer ruir a fachada da chamada sociedade civiliza-
da e a trazer à tona suas bases brutais e violentas. Muitas mulheres, quando
começam a compreender a dimensão da revolução feminista, têm medo de
sua própria coragem e fecham os olhos para o que viram porque se sentem
totalmente impotentes diante da tarefa de derrubar milhares de anos de pa-
triarcado. No entanto, os problemas permanecem. Estejamos nós – mulheres
e homens – prontos ou não para responder às questões históricas levantadas,
elas permanecerão na agenda da história. E temos de encontrar respostas que
façam sentido e que nos ajudem a reestruturar as relações sociais de tal forma
que nossa “natureza humana” possa avançar, e não ser esmagada.
as mulheres de classe média, essa fonte era, via de regra, homens poderosos no
sistema acadêmico e político, ou mesmo seus maridos.
Contanto que o PIB das economias ocidentais estivesse crescendo, essas
economias poderiam se dar ao luxo de neutralizar a insatisfação e inquieta-
ção social das mulheres e de outros grupos, jogando-lhes algumas migalhas.
Sob a pressão do movimento das mulheres, algumas reformas foram intro-
duzidas, como alguma liberalização das leis do aborto, alterações em leis do
divórcio etc. Em alguns países, como na Holanda, o Estado chegou mesmo a
criar comissões para a emancipação das mulheres, e grupos de ação e cons-
cientização de mulheres passaram a poder solicitar apoio do Estado para suas
atividades. Além disso, nos Estados Unidos, departamentos de estudos das
mulheres foram criados na maioria das universidades sem grande resistência.
Embora tudo isso tenha exigido muita luta do movimento feminista, havia
uma certa benevolência paternalista em deixar que “as meninas” encon-
trassem um espaço no sistema. Já nesse estágio, os vários estabelecimentos
patriarcais usaram seu poder para cooptar as mulheres e integrar sua revolta
ao sistema. Mas o aprofundamento da crise econômica no início da década
de 1980 e a ascensão de vertentes e governos conservadores na maioria dos
países ocidentais, que estavam implementando novas políticas de reestrutura-
ção da economia, também marcaram o fim do feminismo de “tempo bom”,
ou feminismo do Estado de bem-estar social (De Vries, 1980). Em vários
países, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental, os go-
vernos conservadores lançaram praticamente uma guerra contra algumas das
tímidas reformas decorrentes das pressões do novo movimento de mulheres,
sobretudo às leis relativas à liberalização do aborto. Essa estratégia de reversão
de direitos, a qual dava renovada ênfase à família patriarcal, à heterossexua-
lidade, à ideologia da maternidade, ao destino “biológico” das mulheres, à
sua responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados com os filhos e ao
ataque geral ao feminismo, fez com que as que acreditavam que a liberta-
ção das mulheres pudesse vir por meio de algumas reformas jurídicas ou da
conscientização se retirassem do movimento ou até passassem a hostilizá-lo.
No mundo acadêmico, teorias conservadoras, ou mesmo reacionárias, como
a sociobiologia, vieram à tona novamente, e as mulheres ficaram caladas ou
começaram a retirar as críticas feitas a tais teorias. No campo dos estudos das
mulheres, foi possível observar uma tendência ao feminismo acadêmico. O
MARI A MI ES 67
não faz desse setor, por si só, um setor lucrativo para formas indiscriminadas
de exploração e acumulação. Para que isso ocorra, é preciso que, ao mesmo
tempo, o Estado corte os gastos com a seguridade social. Assim, os governos
conseguem forçar as pessoas que são expulsas do setor formal a aceitar qual-
quer tipo trabalho, com qualquer remuneração e sob quaisquer condições,
para que possam sobreviver. Isso significa, em última análise, que as condições
aplicáveis à grande maioria das pessoas no mundo subdesenvolvido estão vol-
tando aos centros do capitalismo. Embora, por enquanto, o padrão de vida das
massas nos países superdesenvolvidos ainda seja muito mais alto que nos países
do Terceiro Mundo, estruturalmente a situação das pessoas no setor informal
está se aproximando cada vez mais das condições enfrentadas pela maioria das
pessoas nos países subdesenvolvidos.
Para as mulheres e o movimento de mulheres nos países ocidentais, esses
processos possuem grandes consequências. As mulheres são as mais atingidas
pela estratégia que combina cortes na seguridade social com a racionalização
e flexibilização do trabalho. Perfazem, portanto, a maior parte dos “novos po-
bres” nos países ocidentais (Atkinson, 1982; Merner, 1983).
Para o movimento feminista, esses processos representam um enorme desa-
fio. Por um lado, eles significam o fim do “feminismo de tempo bom”. Todas
as feministas que acreditavam que a libertação das mulheres seria alcançada
pressionando o Estado (e, com isso, obtendo mais políticas de bem-estar so-
cial para as mulheres) ou exigindo oportunidades iguais para as mulheres no
mercado de trabalho (especialmente nos escalões mais elevados desse merca-
do) ou aumentando a participação das mulheres em órgãos políticos e outras
instâncias decisórias tiveram suas expectativas destruídas. Hoje, as feministas
precisam perceber que os direitos democráticos fundamentais e os direitos de
igualdade e liberdade também são concedidos quando o “tempo está bom” e
que, no que diz respeito às mulheres, esses direitos, apesar da retórica de sua
universalidade, são facilmente retirados quando assim exigem as necessidades
da acumulação capitalista.
Por outro lado, a desilusão com a capacidade de os estados capitalistas de-
mocráticos cumprirem as promessas da revolução burguesa também para as
mulheres pode ter um efeito muito salutar: ela força as mulheres, pelo menos
aquelas que não desistiram da luta pela libertação feminina, a abrir os olhos
para a realidade em que vivemos e voltar-se para as questões que foram ne-
70 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
gligenciadas por muitas feministas porque pareciam estar fora da esfera de sua
preocupação imediata. Essas questões são, na minha visão:
vimento das mulheres era para que as mulheres também tivessem seu lugar de
direito na esfera pública. Os pressupostos teóricos por trás desse posiciona-
mento eram o fato de que as mulheres, desde tempos imemoriais, haviam sido
excluídas da esfera pública (política e econômica). Mas a sociedade moderna,
com seu acelerado desenvolvimento tecnológico e crescente riqueza material
no plano econômico e com a democracia burguesa no plano político, forne-
ceria as pré-condições estruturais e ideológicas para retirar as mulheres de sua
existência privada insignificante, conduzindo-as para a arena pública, na qual
trabalhariam lado a lado com os homens na “produção social”. Portanto, elas
teriam o “direito” de sentar-se ao lado dos homens nas plataformas públicas
em que o poder político era exercido. O antigo movimento feminista tirou
sua inspiração, em grande parte, da esperança de que os direitos democráti-
cos da revolução burguesa eventualmente também alcançariam as mulheres.
A diferença entre as mulheres liberais e as de esquerda era que as primeiras
consideravam a participação política na esfera pública como a chave para a li-
bertação das mulheres, enquanto as últimas acreditavam que seria a plena par-
ticipação econômica na “produção social” que as conduziria à emancipação.
Ambas as vertentes também usaram os mesmos métodos de agitação pú-
blica, de propaganda e de escrita e fala em plataformas públicas. E ambos os
grupos consideraram a educação e a formação das mulheres como um dos
métodos mais importantes para elevar o status econômico, político e cultural
das mulheres. Para o movimento das mulheres proletárias, a ênfase na edu-
cação das mulheres foi vista como necessária para dar-lhes consciência de
classe e para melhorar suas oportunidades de emprego. Para o movimento de
mulheres liberais, a educação de meninas e jovens era vista como o caminho
mais importante para a emancipação das mulheres. Muitas, se não a maioria,
das primeiras feministas dos séculos XIX e XX eram professoras e assistentes
sociais. A ênfase na educação e na cultura das mulheres no campo liberal
baseia-se em uma teoria da sociedade segundo a qual todos os problemas es-
truturais de desigualdade ou exploração, bem como a opressão das mulheres,
tida como uma espécie de “defasagem cultural” ou anacronismo ideológico,
podem ser abolidos por meio da educação, de ações afirmativas e de reformas.
O novo movimento das mulheres também foi inicialmente visto como
um movimento cultural. É possível que isso se deva ao fato de que ele tenha
surgido no final dos anos 1960 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental
74 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
23 “Water, water, everywhere, / Nor any drop to drink”. Trecho de A balada do velho marinheiro, de
Samuel Taylor Coleridge. [N. das T.]
Nacional de Mulheres. O projeto nunca foi levado à votação. Em 2019, Kimberlé Crenshaw e
Catharine MacKinnon propuseram, como atualização à ERA, a Emenda da Igualdade (Equa-
lity Amendment) que proibiria a discriminação de sexo, gênero e orientação sexual. Até a data
de edição deste livro, essa emenda também não havia obtido quórum mínimo para ser levada
à votação. [N. das T.]
que a opressão da mulher nada tem a ver com as relações materiais básicas de
produção ou com o sistema econômico. Essa suposição é mais comum entre
as feministas ocidentais, principalmente estadunidenses, que geralmente não
falam sobre capitalismo. Para muitas feministas ocidentais, a opressão das mu-
lheres está enraizada na cultura da civilização patriarcal. Para elas, o feminismo
é, portanto, em grande parte um movimento cultural, uma nova ideologia ou
uma nova consciência.
Mas os países socialistas também consideram a emancipação das mulhe-
res uma questão cultural ou ideológica (ver capítulo 6). Após a abolição da
propriedade privada e da transformação socialista das relações de produção,
presume-se que todos os problemas remanescentes na relação homem-mulher
são “atrasos culturais”, resquícios ideológicos da sociedade “feudal” ou “capi-
talista” do passado que podem ser superados por meio da reforma jurídica, da
educação, do convencimento, da revolução cultural e, sobretudo, por meio de
constante exortação e propaganda. Como a relação homem-mulher não é con-
siderada parte integrante das relações estruturais básicas de produção, tais méto-
dos tiveram ínfimo sucesso tanto nos países socialistas quanto nos capitalistas. A
lacuna entre a ideologia, liberal ou socialista, que consta nas leis e constituições
formais e a prática patriarcal é igualmente grande em ambos os sistemas.
O “feminismo cultural” também teve grande influência nas obras teóricas
das feministas. Este não é o lugar para discutir esse tópico em detalhes, mas
uma das manifestações mais importantes do feminismo cultural é a distinção
conceitual entre gênero e sexo, desenvolvida pela primeira vez por Anne Oakley,
mas hoje quase universalmente usada em textos e discussões feministas. De
acordo com essa distinção, sexo está ligado à biologia, é definido em função
de hormônios, gônadas, genitália, enquanto a identidade de gênero de homens
e mulheres em qualquer sociedade é considerada uma questão psicológica e
social, o que significa que gênero é histórico e culturalmente determinado.
A fim de evitar a confusão quanto ao sexo como algo biologicamente deter-
minado, o conceito de gênero foi introduzido para denotar diferenças social e
culturalmente determinadas entre homens e mulheres. A internalização dessas
diferenças é então chamada de “generificação” (Oakley, 1972).
A distinção entre sexo como uma categoria biológica e gênero como uma
categoria sociocultural pode parecer útil à primeira vista, pois remove o incô-
modo de que a opressão da mulher é o tempo todo atribuída à sua anatomia.
78 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Mas essa distinção segue o conhecido padrão dualista que consiste em separar
“natureza” e “cultura” (Ortner, 1973). Para as mulheres, essa divisão tem uma
tradição longa e desastrosa no pensamento ocidental, pois elas foram coloca-
das do lado da “natureza” desde o surgimento da ciência moderna (Merchant,
1983). Se as feministas agora tentarem sair dessa tradição definindo sexo como
um assunto puramente material, biológico, e gênero como a expressão “su-
perior”, cultural, humana e histórica desse assunto, então elas continuarão o
trabalho daqueles filósofos patriarcais e cientistas idealistas que dividiram o
mundo entre a matéria bruta e “má” (a ser explorada e colonizada) e o “bom”
espírito (a ser monopolizado por padres, dirigentes políticos e econômicos
e cientistas).
Não surpreende que essa terminologia tenha sido imediatamente adotada
por todo tipo de pessoas não necessariamente simpáticas ou até mesmo hostis
ao feminismo.26 Se, em vez de “violência sexual”, falarmos de “violência de
gênero”, o impacto é um tanto mitigado por um termo abstrato, que retira
toda a questão do âmbito da emoção e do compromisso político, para com
isso situá-lo no discurso científico e aparentemente “objetivo”. Se a questão
da mulher for novamente deslocada para esse nível, muitos homens e muitas
mulheres que não querem mudar o status quo voltarão a se sentir à vontade
com o movimento das mulheres.
Mas não nos enganemos. Assim como sexo e sexualidade, o corpo, femi-
nino ou masculino, nunca foi uma questão puramente biológica (ver capítulo
2). A “natureza humana” sempre foi social e histórica. A fisiologia humana ao
longo da história foi influenciada e moldada pela interação com outros seres
humanos e com a natureza externa. Assim, o sexo é uma categoria tão cultural
e histórica quanto o gênero.
26 Um deles é Ivan Illich, que adotou primeiramente uma série de ideias e conceitos de fe-
ministas como Barbara Duden, Gisela Bock e Claudia von Werlhof, cujas análises do trabalho
doméstico sob o capitalismo o inspiraram a escrever seu artigo sobre o “trabalho na sombra”
(“Shadow-Work”). Mas, ao incluir o trabalho doméstico no conceito neutro de “trabalho na
sombra”, ele não apenas confundiu novamente a exploração das mulheres, mas acabou dando à
análise feminista materialista uma interpretação idealista. Nesse processo, o conceito anglófono
de “gênero” foi bastante útil para transportar toda a análise para a esfera cultural. O próximo
passo foi, então, fazer um ataque direto às feministas que, de acordo com ele, estavam prestes a
abolir todas as diferenças de gênero universais, culturalmente determinadas (cf. Illich: Gender
[Gênero], Nova York, 1983).
MARI A MI ES 79
27 A autora utiliza, no original, os termos “wife beating” e “women beating”, comuns nas dé-
cadas de 1960 a 1990. Naquela época, os termos eram usados para descrever casos de violência
física cometida pelo marido contra a esposa ou pelos homens contra as mulheres. No entanto,
à medida que a compreensão da violência de gênero se expandiu nas últimas décadas, termos
mais inclusivos, como “violência doméstica” ou “violência contra as mulheres”, são agora am-
plamente utilizados para descrever as diversas formas de violência que as mulheres enfrentam
em suas vidas. [N. das T.]
MARI A MI ES 83
por mulheres que haviam sofrido as mais diversas formas de violência. Crescia
o número de mulheres cientes de que a suposta “paz” nessas sociedades se ba-
seava na violência diária, direta e indireta, contra as mulheres. No movimento
pela paz na Alemanha, as feministas cunharam o lema: “Paz no patriarcado é
guerra contra as mulheres”.
Os movimentos de combate à violência contra as mulheres no contexto
da política do corpo ensinaram às mulheres o que seria a lição mais impor-
tante, ou seja, ensinaram que, ao contrário das expectativas do movimento
anterior, a participação das mulheres na esfera pública, a conquista do direito
ao voto e sua participação no trabalho assalariado não eram capazes de resol-
ver o problema básico da relação patriarcal entre homens e mulheres, a qual
parecia ser baseada na violência. A mobilização em torno das manifestações
contra a violência machista ampliou a conscientização das mulheres sobre a
conexão sistemática entre a agressão aparentemente “privada” praticada por
homens individualmente e as principais instituições e “pilares” da “sociedade
civilizada”: a família, a economia, a educação, o direito, o Estado, a mídia, a
política. Tendo partido de suas experiências pessoais com as diversas formas
de violência masculina, as mulheres começaram a compreender que estupro,
espancamento, assédio, abuso, piadas machistas etc. não eram apenas expressões
de um comportamento desviante por parte de alguns homens, mas faziam
parte de todo um sistema de dominação masculina, ou melhor, de domina-
ção patriarcal, sobre as mulheres. Nesse sistema, tanto a violência física direta
quanto a violência indireta ou estrutural ainda eram comumente utilizadas
como método para “manter as mulheres em seu devido lugar”.
As origens e o significado político da violência masculina contra as mu-
lheres foram interpretados de forma diferente por diferentes grupos femi-
nistas. Algumas pesquisadoras identificavam na violência masculina a mani-
festação de um sistema universal e atemporal de dominação patriarcal ou
uma política de poder sexual (Millett, 1970) que, em última análise, estava
enraizada na psique ou psicologia masculinas. Essa interpretação deixa pou-
co espaço para o desenvolvimento e especificidade históricos, presumindo
que os homens em todos os lugares sempre tentaram alicerçar seu poder na
subordinação das mulheres.
A minha opinião sobre essa questão é que, se nós, como mulheres, rejeitamos
a explicação biológica para nossa subordinação, devemos também rejeitar
MARI A MI ES 85
28 Os termos “política indireta” ou “política por delegação” são traduções do termo alemão
Stellvertreterpolitik. Na Alemanha Ocidental, as feministas foram as primeiras a rejeitar a Stellver-
treterpolitik. Posteriormente, outros movimentos sociais, como o movimento alternativo, o mo-
vimento ecológico e o Partido Verde, também começaram a desafiar o conceito de política por
delegação e a substituí-lo pelo novo conceito de democracia de base, ou democracia grassroots.
MARI A MI ES 87
foi defendido. Isso significava, acima de tudo, que as mulheres não confiariam
sua luta, sua organização ou ação a qualquer outra pessoa, mas iriam tomar a
política em suas próprias mãos.
A ênfase na independência e na política em primeira pessoa variou de
país para país. Nos países onde os partidos governantes simpatizavam com o
novo movimento das mulheres, como era o caso, por exemplo, dos partidos
social-democratas na Escandinávia e na Holanda, a distinção entre “feminis-
tas independentes” e “mulheres de partido” não era tão categórica. Muitas
feministas nesses países trabalhavam em organizações governamentais e, com
isso, esperavam conseguir mover a máquina estatal em favor das mulheres.
Enquanto o tempo estava bom, a abordagem surtiu bons efeitos nesses países.
Na Alemanha Ocidental, os social-democratas também estavam no poder
naqueles anos, mas as estruturas patriarcais no partido eram tão dominantes
que nem mesmo a ala feminina, o Grupo de Trabalho das Mulheres Social-
democratas, conseguiu algum resultado. Com o tempo, as muitas mulheres
filiadas a partidos políticos ficaram desiludidas e frustradas. Após a eleição de
1980, muitas desistiram da política partidária e formaram um grupo indepen-
dente denominado Iniciativa das Mulheres de 6 de Outubro.
O conceito de política desenvolvido pelo movimento feminista, o princí-
pio de um programa e prática independentes, não era apenas um desafio para
os partidos parlamentares estabelecidos, mas um desafio ainda maior para os
partidos tradicionais de esquerda, principalmente para os partidos comunistas
ortodoxos. O impacto desse desafio pode ser mais bem ilustrado pela reação
ao feminismo que teve o Partido Comunista da Itália (PCI). Em 1976, na
conferência nacional das mulheres comunistas, Gerardo Chiaromonto intro-
duziu oficialmente, no discurso empregado pelo partido, a palavra libertação
das mulheres, juntamente com a palavra emancipação tradicionalmente usada
no PCI. O termo “emancipação” era entendido da maneira que Engels, Bebel,
Zetkin e Lênin o entendiam: a inserção das mulheres na produção social
como um pré-requisito para sua emancipação. Enquanto “libertação”, palavra
usada pelas feministas, significava a libertação total da pessoa como um todo,
e não apenas de sua força de trabalho.
O reconhecimento oficial do feminismo pelo poderoso Partido Comunista
Italiano, que até então havia sido hostil e crítico às feministas, foi uma rea-
ção à tremenda pressão sobre as mulheres e os homens do partido exercida
MARI A MI ES 89
Um dos debates mais frutíferos iniciados pelo feminismo foi sobre o tra-
balho doméstico. Esse debate, mais do que outros, desafiava não apenas o
conceito de política da esquerda tradicional, mas também algumas de suas
posições teóricas fundamentais. Significativamente, o debate sobre o trabalho
doméstico foi a primeira instância em que os homens participaram do dis-
curso feminista.
Mas, antes que o debate sobre o trabalho doméstico começasse e antes
que degenerasse em um discurso mais ou menos acadêmico, a questão do
trabalho doméstico foi levantada como questão política no contexto das lutas
trabalhistas na Itália no início dos anos 1970. O primeiro desafio à teoria
marxista ortodoxa sobre o trabalho feminino veio desse país, a partir do en-
saio de Mariarosa Dalla Costa, “The Power of Women and the Subversion of the
Community” [O poder das mulheres e a subversão da comunidade], publicado
com o texto de Selma James, “A Woman’s Place” [O lugar de uma mulher], em
1972 em Pádua e no mesmo ano em Bristol.
No ensaio de Dalla Costa, a posição marxista clássica de que o trabalho
doméstico era “improdutivo” foi questionada pela primeira vez. Dalla Costa
aponta que o que a dona de casa produz na família não são simplesmente
valores de uso, mas a mercadoria “força de trabalho”, que o marido então
vende como trabalho assalariado “livre” no mercado de trabalho. Ela afirma
claramente que a produtividade da dona de casa é a pré-condição para a pro-
dutividade do trabalhador assalariado (homem). A família nuclear, organizada
e protegida pelo Estado, é a fábrica social em que a mercadoria “força de tra-
balho” é produzida. Portanto, a dona de casa e seu trabalho não estão fora do
processo de produção de mais-valia, mas constituem o próprio alicerce sobre
o qual o processo produtivo é iniciado. A dona de casa e seu trabalho são, em
outras palavras, a base do processo de acumulação do capital. Com a ajuda do
Estado e de seu aparato jurídico, as mulheres, encerradas e isoladas na família
nuclear, tiveram seu trabalho socialmente invisibilizado e, portanto, definido
– por teóricos marxistas e não marxistas – como “improdutivo”. Ele apareceu
sob a forma de amor, carinho, afeto, maternidade e companheirismo. Dalla
Costa desafiou a noção da esquerda ortodoxa, primeiro enunciada por Engels
e depois dogmatizada e codificada por todos os partidos comunistas (e ainda
hoje mantida), de que as mulheres deveriam deixar o domínio “privado” do
lar e integrar a “produção social” como trabalhadoras assalariadas, juntamente
92 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Com base nessa análise, Dalla Costa critica também a noção de muitas
pessoas de esquerda de que as mulheres são apenas “oprimidas”, de que seu
problema é o “machismo”. Como o capital é capaz de controlar o trabalho
não remunerado da dona de casa, assim como o trabalho remunerado do
trabalhador assalariado, a escravidão doméstica das mulheres é chamada de
exploração. Segundo Dalla Costa, não é possível compreender a exploração
do trabalho assalariado a menos que se entenda a exploração do trabalho
não assalariado.
O reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho produtivo e
como área de exploração e fonte de acumulação de capital também signifi-
cou um desafio às políticas e estratégias tradicionais dos partidos de esquerda
e sindicatos, os quais nunca haviam incluído o trabalho doméstico em suas
lutas e na definição de trabalho que adotavam. Eles sempre estiveram em
aliança com o capital na estratégia de remover do campo de visão do público
todo trabalho não remunerado.
MARI A MI ES 93
Não foi por acaso que a questão do trabalho doméstico foi levantada pela
primeira vez na Itália, um dos países mais “subdesenvolvidos” da Europa, po-
rém com um forte partido comunista. Como Selma James aponta em sua
introdução, a Itália tinha apenas um pequeno número de operárias, sendo a
maioria das mulheres “donas de casa” ou camponesas. Por outro lado, o país
havia visto uma série de lutas trabalhistas, influenciadas pela oposição não
parlamentar que incluía “lutas populares pela reprodução”, ou seja, pelo não
pagamento de aluguel e lutas em bairros e escolas. Em todas essas lutas, as
mulheres tiveram um papel proeminente.
Além disso, Dalla Costa já identificava uma semelhança estrutural entre as
lutas das mulheres e as lutas dos países do Terceiro Mundo contra o imperia-
lismo, bem como entre a luta dos negros nos Estados Unidos e os movimen-
tos da juventude; para ela, eram revoltas de todos aqueles que haviam sido
definidos como externos ao capitalismo (ou como pertencentes a formações
“pré-capitalistas”, “feudais” etc.). Com Frantz Fanon, ela interpreta as divisões
entre as mulheres (como donas de casa e trabalhadoras assalariadas) como re-
sultado de um processo de colonização, porque a família e o lar são para ela
uma colônia, dominada pela “metrópole”, capital e Estado (Dalla Costa, 1973,
p. 53). Dalla Costa e James queriam reintroduzir as mulheres na história como
sujeitos revolucionários.
Como estratégia para derrubar o capitalismo, elas lançaram a campanha
Salários para o Trabalho Doméstico [Wages for Housework]. Muitas mulheres na
Europa e no Canadá foram mobilizadas pela campanha e muitas discussões so-
bre as perspectivas dessa estratégia foram feitas. Mais tarde, a campanha se ex-
tinguiu, pois várias questões inerentes a ela não puderam ser resolvidas, como
o problema de que “salários para o trabalho doméstico” não acabariam com o
isolamento das donas de casa e o fato de que a generalização total do trabalho
assalariado não levaria necessariamente à derrubada do capitalismo, mas sim
a uma totalização da alienação e da produção de mercadorias. Tampouco o
movimento tinha respostas para a questão de quem pagaria o salário pelo
trabalho doméstico: os capitalistas, o Estado ou o marido?
Apesar dessas questões não resolvidas, a campanha Salários para o Trabalho
Doméstico tinha colocado a questão do trabalho doméstico na agenda da
teorização feminista. O “debate sobre o trabalho doméstico” que se seguiu ao
livro de Dalla Costa e James, particularmente na Grã-Bretanha, mas também
94 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
uma “colônia” e uma fonte para a exploração não regulamentada, abriu nos-
sos olhos para a análise de outras colônias de exploração de trabalho não
assalariado, particularmente o trabalho de pequenos camponeses e mulheres
nos países do Terceiro Mundo. Essa discussão foi liderada principalmente por
feministas na Alemanha Ocidental, que estenderam a crítica da cegueira de
Marx em relação ao trabalho feminino à cegueira em relação aos outros tipos
de trabalho não assalariado nas colônias.29
Em um artigo intitulado “Women’s work, the blind spot in the critique of po-
litical economy” [Trabalho das mulheres, o ponto cego na crítica da economia
política], Claudia von Werlhof desafiou a noção clássica de capital versus tra-
balho assalariado como a única relação de produção capitalista. Ela identificou
mais duas relações de produção baseadas no trabalho não assalariado, a saber,
o trabalho doméstico e o trabalho de subsistência nas colônias, como pré-
-requisitos para a relação de trabalho assalariada “privilegiada” (masculina).
Naqueles anos, nas discussões que ocorreram entre mim, Claudia von Werlhof
e Veronika Bennholdt-Thomsen sobre as várias formas de relações de trabalho
não assalariado e seu lugar em um sistema mundial de acumulação de capital,
o trabalho de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo teve papel decisivo
(Luxemburgo, 1923).
Rosa Luxemburgo havia aplicado a análise de Marx do processo de
reprodução ampliada do capital ou acumulação de capital (Marx, O capital,
vol. II) para analisar o imperialismo e o colonialismo. Ela chegou à conclusão
de que o modelo de acumulação de Marx se baseava no pressuposto de que
o capitalismo seria um sistema fechado, no qual havia apenas trabalhadores
assalariados e capitalistas. Rosa Luxemburgo mostrou que, historicamente,
tal sistema nunca existiu, que o capitalismo sempre precisou do que ela cha-
mou de “ambientes e estratos não capitalistas” para a ampliação da força de
trabalho e dos recursos e, acima de tudo, para a ampliação dos mercados.
Esses ambientes e estratos não capitalistas foram inicialmente os camponeses e
29 Essa discussão foi iniciada por volta de 1977 por Claudia von Werlhof,Veronika Bennholdt-
Thomsen e eu. Nossa análise foi apresentada em uma série de artigos publicados em periódicos
feministas, principalmente em Beitriige zur feministischen Theorie und Praxis [Contribuições para
teoria e prática feministas]. Uma coleção de alguns dos principais artigos foi publicada em:
Claudia von Werlhof, Maria Mies & Veronika Bennholdt-Thomsen, Frauen, die letzte Kolonie
[Mulheres, a última colônia], Reinbeck, 1983.
96 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
CONCEITOS
EXPLORAÇÃO OU OPRESSÃO/SUBORDINAÇÃO?
nistas não quer ser igual aos homens no sistema patriarcal. A discussão sobre o
trabalho doméstico revelou que a emancipação esperada por meio do trabalho
assalariado não se concretizou em parte alguma, nem nos países capitalistas,
nem nos socialistas. Se os países socialistas e os partidos comunistas ortodoxos
ainda restringem sua política para a emancipação das mulheres às demandas
por “igualdade” e “direitos das mulheres”, conceitos basicamente burgueses,
é porque ignoram que o patriarcado é uma realidade tanto da sociedade ca-
pitalista como da socialista. E, dentro de um sistema patriarcal, a “igualdade”
para as mulheres só pode corresponder a uma situação em que as mulheres
ocupem a posição de homens patriarcais. A maioria das mulheres que se au-
todenomina feminista não é atraída por essa perspectiva, nem possui qualquer
esperança de que a demanda por igualdade possa algum dia ser satisfeita den-
tro de tal sistema. É, portanto, errado pensar, como fazem (e temem) muitos
homens, que as feministas apenas queiram substituir a dominação masculina
pela feminina, pois é isso que “igualdade” significa para a maioria deles: igual-
dade de privilégios. Mas o movimento feminista é basicamente um movi-
mento anarquista. Ou seja, não quer substituir uma elite de poder (masculina)
por outra elite de poder (feminina), e sim buscar construir uma sociedade não
hierárquica e não centralizada, na qual nenhuma elite viva da exploração nem
da dominação de outros grupos.
PATRIARCADO CAPITALISTA
A leitora deve ter notado que estou usando o conceito de patriarcado capita-
lista para denotar o sistema que mantém a exploração e a opressão das mulheres.
Tem havido discussões no movimento feminista sobre se é correto cha-
mar o sistema de dominação masculina, sob o qual as mulheres vivem hoje
na maioria das sociedades, de sistema patriarcal (Ehrenreich & English,
1979). Literalmente, “patriarcado” significa o governo dos pais. Porém, a
dominação masculina de hoje vai além do “governo dos pais” e inclui o go-
verno dos maridos, dos chefes do sexo masculino, dos homens governantes
na maioria das instituições sociais, na política e na economia. Em suma, essa
dominação masculina também tem sido chamada de “liga dos homens” ou
“casa dos homens”.
MARI A MI ES 101
30 Andre Gunder Frank (1929-2005), sociólogo alemão, foi um dos criadores, nos anos 1960,
da chamada Teoria da Dependência. Foi professor da Universidade de Brasília (UnB), um dos
principais centros de pesquisa e difusão da Teoria da Dependência, entre 1962 e 1964, quando
se mudou para o México devido ao golpe militar no Brasil. [N. das T.]
104 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
AUTONOMIA
31 Este capítulo é resultado de um processo coletivo de reflexão entre mulheres nos anos de 1975
a 1977, quando ministrei cursos sobre a história do movimento de mulheres na Universidade
de Frankfurt. Muitas das ideias discutidas aqui surgiram no curso “Work and Sexuality in Matristic
Societies” [Trabalho e sexualidade nas sociedades matrísticas]. A tese de uma de minhas alunas,
Roswitha Leukert, Female Sensuality [Sensualidade feminina] (1976), ajudou a elucidar muitas
de nossas ideias. Quero agradecer a ela e a todas as mulheres que participaram dessas discussões.
Este capítulo é a versão revisada de um artigo apresentado pela primeira vez na conferência
“Underdevelopment and Subsistence Reproduction” [Subdesenvolvimento e reprodução de
subsistência], realizada na Universidade de Bielefeld, em 1979. O artigo foi publicado em 1981
pelo Instituto de Estudos Sociais da Universidade de Haia.
110 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
que a questão das origens da divisão sexual do trabalho não pode ser levanta-
da porque sabemos muito pouco sobre elas. A busca pelas origens sociais dessa
relação integra a estratégia política de emancipação das mulheres (Reiter,
1977). Sem entender o fundamento e o funcionamento da relação assimétrica
entre homens e mulheres não é possível superá-la.
Essa motivação política e estratégica diferencia fundamentalmente a nova
busca pelas origens da divisão sexual do trabalho de outras especulações aca-
dêmicas e tentativas de pesquisa. Seu objetivo não é apenas analisar ou encon-
trar uma interpretação para um problema antigo, mas resolvê-lo.
A discussão a seguir deve, portanto, ser entendida como uma contribuição
para “disseminar a consciência da existência da hierarquia de gênero e da ação
coletiva que visa a desmantelá-la” (Reiter, 1977, p. 5).
CONCEITOS ENVIESADOS
Isso vale para os conceitos básicos que são centrais para nossa análise,
como os de natureza, trabalho, divisão sexual do trabalho, família e produtivi-
dade. Empregados sem uma crítica de seu viés ideológico implícito, esses
conceitos tendem a apagar, ao invés de trazer à tona, os problemas. Isso é
especialmente evidente para o conceito de natureza.
Com muita frequência, esse conceito tem sido usado para explicar as
desigualdades sociais ou as relações de exploração como algo inato e, por-
tanto, fora do alcance da mudança social. As mulheres, particularmente,
devem desconfiar quando esse termo é usado para explicar seu status na
sociedade. Sua participação na produção e na reprodução da vida é geral-
mente definida como uma função de sua biologia ou “natureza”. Assim, o
trabalho doméstico das mulheres e o cuidado das crianças são vistos como
uma extensão de sua fisiologia devido ao fato de parirem, de a “nature-
za” ter lhes provido um útero. Todo o trabalho envolvido na produção da
vida, incluído o de gerar e parir uma criança, não é visto como a interação
consciente de um ser humano com a natureza, ou seja, como uma ativida-
de propriamente humana, mas sim como uma atividade da natureza, que
produz plantas e animais inconscientemente e não tem controle sobre esse
processo. Essa definição da interação das mulheres com a natureza – in-
cluindo sua própria natureza – como um ato da natureza teve, e ainda tem,
enormes consequências.
O que é mistificado por um conceito de natureza infectado pelo bio-
logismo é uma relação de dominação e exploração, dominação do ser hu-
mano (masculino) sobre a natureza (feminina). Essa relação de dominação
também está implícita nos outros conceitos mencionados anteriormente
quando aplicados às mulheres.Vejamos, por exemplo, o conceito de trabalho!
Devido à definição biológica da interação das mulheres com sua natureza,
tanto seu trabalho durante o parto e criação dos filhos quanto o restante do
trabalho doméstico não são vistos como trabalho. O conceito de trabalho
é geralmente reservado ao trabalho produtivo dos homens sob condições
capitalistas, o que significa trabalho para a produção de mais-valia.
Embora as mulheres também realizem esse trabalho gerador de mais-valia,
o conceito de trabalho, sob o capitalismo, é geralmente empregado com um
viés masculino ou patriarcal, já que, no capitalismo, as mulheres são tipica-
mente definidas como donas de casa, ou seja, como não trabalhadoras.
112 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Para tentar analisar as origens sociais dessa divisão do trabalho, temos que
deixar explícito que nos referimos a essa relação assimétrica, hierárquica e
exploradora e não a uma simples divisão de tarefas entre partes em igualdade
de condições.
A mesma lógica biologista escamoteadora prevalece no conceito de família.
Não só esse conceito é utilizado e universalizado de forma eurocêntrica e
a-histórica, apresentando a família nuclear como a estrutura básica e atempo-
ral de toda a institucionalização das relações entre homens e mulheres, como
também esconde a estrutura hierárquica e não igualitária dessa instituição.
Frases como “parceria ou democracia dentro da família” servem apenas para
ocultar a verdadeira natureza dessa instituição.
Conceitos como família “biológica” ou “natural” estão ligados a esse con-
ceito a-histórico de família, que se baseia na combinação obrigatória de rela-
ções heterossexuais e procriação de filhos consanguíneos.
Esta breve discussão sobre os vieses biologistas inerentes a alguns dos con-
ceitos mais importantes que usamos evidencia que é necessário expor siste-
maticamente a função ideológica desses vieses, que é a de apagar e mistificar
relações sociais assimétricas e exploratórias, particularmente aquelas entre ho-
mens e mulheres.
Isso significa, com relação ao problema que colocamos, ou seja, a análise das
origens sociais da divisão sexual do trabalho, que nossa pergunta não é: quando
surgiu a divisão do trabalho entre homens e mulheres? Mas sim: quais são as
razões pelas quais essa divisão do trabalho se tornou uma relação de domina-
ção e exploração, uma relação assimétrica e hierárquica? Essa questão ainda
é de suma importância em todos os debates sobre a libertação das mulheres.
PROPOSTA DE ABORDAGEM
O que podemos fazer para eliminar os vieses contidos nos conceitos men-
cionados anteriormente? Não usar esses conceitos, como sugerem algumas
mulheres? Nesse caso, ficaríamos sem uma linguagem para expressar nossas
ideias. Inventar novos conceitos? Mas os conceitos resumem teorias e práticas
históricas e não podem ser inventados à vontade. Temos de aceitar que os
conceitos básicos que usamos em nossa análise já foram “ocupados” – como
114 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
32 O capital, vol. I, tomo I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural,
1996. [N. das T.]
33 O capital, vol. I, tomo II. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural,
1996, p. 138. [N. das T.]
MARI A MI ES 115
políticos (cf. Grundrisse, 1974). Ele ainda critica esse conceito quando afirma
que “ser trabalhador produtivo [sob o capitalismo] não é, portanto, sorte, mas
azar” (O capital, vol. I, 1974, p. 532)34, porque o trabalhador se torna um ins-
trumento direto de valorização do capital. Mas, ao se concentrar apenas nesse
conceito capitalista de trabalho produtivo e universalizá-lo a ponto de eclip-
sar virtualmente o conceito mais geral e fundamental de trabalho produtivo
– que poderia incluir a produção da vida pelas mulheres –, o próprio Marx
contribuiu teoricamente para a remoção de todo o trabalho “não produtivo”
(isto é, trabalho não assalariado, incluindo a maioria do trabalho realizado
pelas mulheres) da visibilidade pública. O conceito de “trabalho produtivo”,
usado desde então, tanto por pensadores burgueses quanto por teóricos mar-
xistas, manteve essa conotação capitalista, e a crítica que Marx fazia a ele foi
esquecida. Considero esse conceito estreito e capitalista de “trabalho produ-
tivo” como o mais importante obstáculo em nossa luta pelo reconhecimento
do trabalho das mulheres tanto sob o capitalismo quanto sob o socialismo
realmente existente.
Minha tese é de que essa produção geral da vida, ou produção de sub-
sistência – realizada principalmente por meio do trabalho não assalariado
de mulheres e de outros trabalhadores não assalariados, como escravizados,
trabalhadores temporários e camponeses nas colônias –, constitui a base per-
manente sobre a qual o “trabalho produtivo capitalista” pode ser construído
e explorado. Sem a produção de subsistência contínua de trabalhadores não
assalariados (principalmente mulheres), o trabalho assalariado não seria “pro-
dutivo”. Em contraste com Marx, considero a produção capitalista como
um processo que compreende tanto a superexploração de trabalhadores não
assalariados (mulheres, colônias, camponeses) quanto a exploração de tra-
balho assalariado que se torna possível graças à primeira. Eu defino sua ex-
ploração como superexploração porque ela não está baseada na apropriação
(pelo capitalista) do tempo e do trabalho que excede o tempo de trabalho
“necessário” – quer dizer, do trabalho excedente –, mas na apropriação do
tempo e do trabalho necessários para a própria sobrevivência das pessoas, ou
para a produção de subsistência. Isso não é compensado por um salário, cuja
quantia é calculada sobre os custos de reprodução “necessários” do trabalha-
35 A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boi-
tempo, 2019, p. 60. [N. das T.]
MARI A MI ES 117
outros seres humanos, devem procriar – “a relação entre homem e mulher, pais
e filhos, a família” (Marx & Engels, 1977, p. 31)36.
Posteriormente, Marx usa a expressão “apropriação de matéria natural”
para conceituar o trabalho em seu sentido mais amplo: trabalho como apro-
priação da natureza para a satisfação das necessidades humanas:
36 A ideologia alemã. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 42. [N. das T.]
37 “Apropriação da natureza” (Aneignung der Natur) tem duplo significado em alemão, e essa
ambiguidade também pode ser encontrada na maneira como Marx emprega essa expressão. Por
um lado, ele a utiliza no sentido de “tornar nossa a natureza, humanizá-la”. Em seus primeiros
escritos, a formulação “apropriação da natureza” é usada nesse sentido. Por outro lado, o termo
define uma relação de dominação entre Homem e Natureza. Esse é o caso em O capital, em
que Marx reduziu sua definição mais ampla para significar “domínio, controle sobre a nature-
za”. Como veremos, tal interpretação desse conceito é problemática para as mulheres.
39 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2019, p. 19. [N. das T.]
que circunstâncias for e não importa de que modo e com que fim. (Marx
& Engels, 1977, p. 31)43
todas as fases da história (p. 303). Nesse “metabolismo” entre seres humanos
e natureza, seres humanos, mulheres e homens não apenas desenvolvem e
transformam a natureza externa com a qual se confrontam, mas também sua
própria natureza corporal.
A interação entre os seres humanos e a natureza para produzir a satisfação
das necessidades humanas precisa, como toda produção, de um instrumento
ou meio de produção. O primeiro meio de produção com o qual os seres
humanos atuam sobre a natureza é seu próprio corpo. Ele é também a pré-
-condição permanente de todos os demais meios de produção. Mas o corpo
não é apenas a ferramenta com a qual os seres humanos atuam sobre a na-
tureza, é também o objetivo maior da satisfação das necessidades. Os seres
humanos não apenas usam seu corpo para produzir valores de uso, como
também mantêm seu corpo vivo – em seu sentido mais amplo – pelo con-
sumo de seus produtos.
Em sua análise do processo de trabalho em seu sentido mais amplo, como
apropriação de substâncias naturais, Marx não diferencia homens e mulheres.
Para nossa discussão, entretanto, é importante enfatizar que homens e mu-
lheres atuam sobre a natureza com um corpo qualitativamente diferente. Se
quisermos expor a questão da divisão assimétrica do trabalho entre os sexos,
é necessário não falar da apropriação da natureza pelo homem (como ser ge-
nérico abstrato), mas da apropriação da natureza por mulheres e por homens.
Esse posicionamento se baseia no pressuposto de que mulheres e homens se
apropriam da natureza de maneiras diferentes. Essa diferença é geralmente
apagada porque “humanidade” é identificada como “masculinidade”.52
Masculinidade e feminilidade não são dados biológicos, mas resultado de
um longo processo histórico. Em cada época histórica, masculinidade e fe-
minilidade são definidas de maneiras diferentes. Essa definição depende do
principal modo de produção em cada época. Isso significa que as diferenças
orgânicas entre mulheres e homens são interpretadas e valorizadas de modos di-
ferentes, de acordo com a forma dominante de apropriação da matéria natural
para a satisfação das necessidades humanas. Portanto, ao longo da história, ho-
52 Esse sexismo prevalece em muitas línguas, que não diferenciam, como o inglês, o francês e
todas as línguas românicas, “homem” (ser masculino) e “homem” (ser humano). A língua alemã
ainda pode expressar essa diferença: Mann é o homem e Mensch, o ser humano, embora Mensch
também tenha assumido uma conotação masculina.
124 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
54 As deusas-mães indianas (Kali, Durga etc.) são todas encarnações desse princípio ativo e
prático, enquanto muitos dos deuses masculinos são passivos, contemplativos e ascéticos. Para
uma discussão sobre a relação entre um determinado conceito de natureza e a apropriação dos
corpos femininos, ver também Colette Guillaumin (1978).
MARI A MI ES 125
56 Isso não é surpreendente, pois May também usa o conceito de “fertilidade” no mesmo
sentido que a maioria dos demógrafos e planejadores familiares, ou seja, como resultado de um
comportamento fisiológico e inconsciente.
128 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Não sabemos muito sobre as lutas históricas que ocorreram antes que a
relação-objeto dos homens com a natureza pudesse se estabelecer como uma
relação de produtividade superior à das mulheres. Mas as batalhas ideológicas,
registradas na literatura indiana antiga, que ocorreram ao longo de vários
séculos sobre a questão de se a natureza do “produto” (grãos, crianças) era
determinada pelo campo (mulher) ou pela semente (homem) nos permitem
entender que a subordinação da produtividade feminina à produtividade mas-
culina não foi de forma alguma um processo pacífico, e sim parte integrante
das lutas de classes e do estabelecimento de relações patriarcais de propriedade
sobre a terra, o gado e as mulheres (Karve, 1963).57
Seria bastante revelador estudar as analogias entre as palavras empregadas
para denominar os órgãos sexuais masculinos e as ferramentas que os homens
inventaram em diferentes épocas históricas e para diferentes modos de pro-
dução. Não é acidental que, em nossa época, os homens chamem seu pênis
de chave de fenda (eles “parafusam” a mulher), martelo, lima etc. No porto
de Rotterdam, um porto comercial, os órgãos sexuais masculinos são chama-
dos de “comércio”. Essa terminologia nos diz muito sobre como os homens
definem sua relação com a natureza e também com as mulheres e com seus
próprios corpos. É um indicativo da estreita ligação, na mente masculina,
entre seus instrumentos, seu processo de trabalho e a autoconcepção de seus
próprios corpos.
No entanto, antes que os homens pudessem conceber seus próprios cor-
pos como mais produtivos do que os das mulheres e estabelecer uma rela-
ção de dominação com as mulheres e a natureza externa, eles tiveram de
desenvolver um tipo de produtividade que ao menos parecesse independente
e superior à produtividade das mulheres. Como vimos, o aparecimento da
produtividade dos homens esteve intimamente ligado à invenção das ferra-
mentas. Ainda assim, os homens só poderiam desenvolver uma produtividade
(aparentemente) independente da das mulheres a partir da produtividade
feminina já desenvolvida.
57 Para maior discussão sobre a analogia semente-campo na literatura indiana antiga, ver tam-
bém Maria Mies, 1980, e Leela Dube, 1978.
132 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
O MITO DO HOMEM-CAÇADOR
dia” não apenas para si mesmas e seus filhos, mas também para os homens
caso eles não tivessem sorte em suas expedições de caça, já que a caça é uma
“economia de risco”.
Vem sendo provado de forma conclusiva, particularmente pela pesquisa
crítica de acadêmicas feministas, que a sobrevivência da humanidade se deve
muito mais à “mulher-coletora” do que ao “homem-caçador”, em contraste
com o que pregam os velhos ou novos defensores do darwinismo social.
Mesmo entre as sociedades caçadoras e coletoras existentes, as mulheres
fornecem até 80% do alimento diário, enquanto os homens contribuem
com uma pequena parcela proveniente da caça (Lee & de Vore, 1976, citado
por Fisher, 1979, p. 48). Por meio de uma análise secundária de uma amos-
tra de caçadores e coletores do Murdock’s Ethnografic Atlas [Atlas Etnográfico
de Murdock], Martin e Voorhies provaram que 58% da subsistência dessas
sociedades foram proporcionados pela coleta, 25% pela caça e o restante
pela coleta e caça juntas (1975, p. 181). As mulheres tiwi, na Austrália, que
são caçadoras e coletoras, obtêm 50% de seu alimento com a coleta, 30%
com a caça e 20% com a pesca. Jane Goodale, que estudou as mulheres tiwi,
afirmava que a caça menor e a coleta eram as atividades produtivas mais
importantes:
Fica evidente a partir desses exemplos que, entre os atuais povos caçadores
e coletores, a caça não tem de forma alguma a importância econômica que
geralmente é atribuída a ela e que as mulheres são as provedoras da maior par-
te dos alimentos básicos diários. Na verdade, todos os caçadores da caça maior,
se quiserem sair em uma expedição, dependem dos alimentos providos pelas
mulheres, alimentos estes que não são produzidos pela caça. Essa é a razão pela
qual as antigas mulheres iroquesas tinham voz nas tomadas de decisão relativas
a guerras e expedições de caça. Caso elas se recusassem a dar aos homens a
134 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
58 Ver, por exemplo, Kathleen Gough, “The Origin of the Family” [A origem da família], em
Rayna Reiter (ed.), Toward an Anthropology of Women [Para uma antropologia das mulheres].
Nova York, 1975.
MARI A MI ES 135
PASTORES NÔMADES
AGRICULTORES
59 Invasão de território inimigo ou estrangeiro para saque de animais e alimentos e/ou rapto
de pessoas. [N. das T.]
Nossos ancestrais nasceram com sua enxada, seu machado, seu arco e flecha.
Sem um arco você não pode trabalhar na selva. Com o arco você adquire
o mel, o amendoim, o feijão e depois uma mulher, depois os filhos e, en-
tão, você pode comprar animais domésticos, cabras, ovelhas, burros, cavalos.
Essas eram as riquezas do passado.Você trabalhava com arco e flecha na selva
porque sempre poderia haver alguém que poderia surpreendê-lo e matá-lo.
Com base em seus estudos entre os tuaregue, Pierre Bonte chegou à con-
clusão de que a escravidão foi a pré-condição para que as “economias domés-
ticas” se expandissem e se tornassem economias mais diversificadas, em que há
grande demanda por mão de obra. Ele vê a escravidão como “o resultado e os
meios de uma troca desigual” (Bonte, em Meillassoux, 1975, p. 54).
Os exemplos da África pré-colonial deixam claro que o modo predatório
de produção dos homens, baseado no monopólio das armas, só poderia se
tornar “produtivo” com a existência de alguma outra economia de produção,
geralmente feminina, que pudesse ser assaltada; por isso, podemos caracteri-
zá-lo como produção não produtiva. Os exemplos também mostram a estreita
ligação entre pilhagem, saque e roubo, de um lado, e comércio, do outro. Os
bens comercializados ou trocados por dinheiro (conchas cauri) não eram o ex-
cedente produzido além do necessário para a comunidade; o excedente era, na verdade,
definido como o que foi roubado e apropriado por meio das armas.
Em última análise, podemos atribuir a divisão assimétrica do trabalho en-
tre mulheres e homens a esse modo de produção predatório, ou melhor, de
apropriação, que se baseia no monopólio masculino dos meios de coerção, ou
seja, das armas e da violência direta por meio das quais relações permanentes
de exploração e dominação entre os sexos foram criadas e mantidas.
Esse conceito de excedente vai além do desenvolvido por Marx e Engels. A
existência de um excedente constitui, segundo eles, a pré-condição histórico-
-material crucial para o desenvolvimento de relações sociais exploratórias, ou
seja, de relações de classe. Eles atribuem esse surgimento de um excedente ao
desenvolvimento de meios de produção mais “produtivos”. Nas sociedades que
podiam produzir mais do que o necessário para sua própria subsistência, alguns
grupos de pessoas podiam se apropriar desse excedente e, com isso, estabelecer
relações de classe duradouras, baseadas nas relações de propriedade. Esse con-
ceito não explica como e por quais meios essa apropriação do excedente ocor-
reu. Temos suficientes evidências empíricas, a partir de fontes etnológicas, para
demonstrar que a existência de excedente per se não leva a uma apropriação
144 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
62 Casamento de pessoas de classe ou casta inferior com outra(s) de classe ou casta superior.
[N. das T.]
146 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
de, seus poderes geradores e sua autonomia produtiva foram suprimidos e es-
tritamente controlados pelos homens de sua classe, dos quais elas se tornaram
dependentes para sua sobrevivência. A domesticação das mulheres burguesas,
sua transformação em donas de casa, dependentes da renda dos maridos,
tornou-se o modelo da divisão sexual do trabalho no capitalismo. Isso foi
também necessário para ganhar o controle sobre as capacidades reprodutivas
das mulheres, de todas as mulheres. O processo de proletarização dos homens
foi, portanto, acompanhado por um processo de donadecasificação das mu-
lheres (ver capítulo 4).
Nesse processo, a esfera em que a força de trabalho era reproduzida – a
casa e a família – foi “definida como natureza”, mas como natureza privada,
domesticada, enquanto a fábrica se tornava o lugar da produção pública,
social (“humana”).
Assim como o processo de “naturalização” das colônias foi baseado no
uso em larga escala da violência direta e da coerção, também o processo de
domesticação das mulheres europeias (e mais tarde das estadunidenses) não
se deu de forma pacífica e idílica. As mulheres não entregaram voluntaria-
mente o controle de sua produtividade, de sua sexualidade e de suas capaci-
dades geradoras a seus maridos e aos Homens Grandes (Igreja e Estado). Só
depois de séculos de ataques brutais à sua autonomia sexual e produtiva é
que as mulheres europeias se tornaram as donas de casa domesticadas e de-
pendentes que somos consideradas atualmente. A contrapartida das incursões
escravagistas na África foi a caça às bruxas na Europa. Ambas parecem estar
conectadas pelo mesmo dilema com que se defronta a versão capitalista do
homem-caçador: por mais que tente reduzir as mulheres à mera condição de
produção, à natureza a ser apropriada e explorada, ele não pode produzir for-
ça de trabalho viva sem as mulheres. As armas dão-lhe a possibilidade de um
modo de produção exclusivamente masculino, nomeadamente a escravidão
ou a guerra, que Meillassoux (1978, p. 7) considera como o equivalente mas-
culino da reprodução num sistema de parentesco, um esforço dos homens de
uma determinada sociedade para se tornarem independentes da reprodução
de suas mulheres. Mas esse modo de produção masculino tem suas limitações
naturais, especialmente quando as zonas de caça de gado humano se esgotam.
Foi, portanto, necessário colocar as forças geradoras e produtivas das mulheres
europeias sob o controle patriarcal. Entre os séculos XIV e XVIII, as guildas
150 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
63 No atual momento histórico, não podemos mais compartilhar da opinião dos primeiros
marxistas, incluindo Rosa Luxemburgo, de que a guerra e a violência eram métodos necessá-
rios para resolver conflitos de interesse enquanto as forças produtivas não tivessem atingido seu
máximo desenvolvimento, enquanto os seres humanos não tivessem alcançado o controle e
domínio total sobre a natureza (cf. Rosa Luxemburgo, 1925, p. 155-6). Nosso problema é que
essa definição de “desenvolvimento das forças produtivas” implica violência e guerra contra a
natureza e os seres humanos.
152 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
64 Nesse ponto, seria apropriado estender nossa análise à divisão sexual do trabalho no socia-
lismo. Isso exigiria, contudo, uma análise muito mais ampla. Com base nas informações que
temos sobre a situação da mulher nos países socialistas, só podemos concluir que a divisão
sexual do trabalho se baseia no mesmo paradigma social dos países capitalistas. Uma das razões
para isso pode ser que o conceito de “desenvolvimento das forças produtivas” e a relação do
homem com a natureza têm sido os mesmos do capitalismo, ou seja, o domínio do homem
sobre a natureza, o qual implica seu domínio sobre as mulheres (ver capítulo 6).
MARI A MI ES 153
COM BASE na análise anterior, é possível formular uma tese provisória que
guiará minha discussão a seguir.
O desenvolvimento histórico da divisão do trabalho em geral e da divisão
sexual do trabalho em particular não foi/é um processo evolutivo e pacífico,
baseado no desenvolvimento sempre progressivo das forças produtivas (prin-
cipalmente da tecnologia) e na especialização, mas um processo violento por
meio do qual determinados homens e, depois, certos povos foram capazes de
estabelecer uma relação de exploração entre eles e as mulheres, entre eles e
outros povos e entre as classes.
Nesse modo de produção predatório, que é intrinsecamente patriarcal, a
guerra e a conquista tornaram-se os modos de produção mais “produtivos”.
A acumulação rápida de riqueza material – baseada no saque e no roubo, e
não no trabalho regular de subsistência da própria comunidade – facilita o
desenvolvimento mais rápido da tecnologia nas sociedades que se fundamen-
tam na conquista e na guerra. Esse desenvolvimento tecnológico, entretanto,
não é orientado primordialmente para a satisfação das necessidades de sub-
sistência da comunidade como um todo, mas para a perpetuação das guerras,
da conquista e da acumulação. O desenvolvimento tanto da tecnologia ar-
mamentista quanto dos meios de transporte tem sido uma força motriz para
a inovação tecnológica em todas as sociedades patriarcais, especialmente na
moderna sociedade capitalista europeia que, desde o século XV, conquistou
e submeteu o mundo inteiro. O conceito de “progresso” que emergiu dessa
civilização patriarcal específica é historicamente impensável sem o desenvol-
vimento unilateral da tecnologia de guerra e conquista. Toda a tecnologia
de subsistência (para conservação e produção de alimentos, roupas, abrigo
etc.) parece estar “atrasada” em comparação com as “maravilhas” da tecno-
158 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Dado que a base da civilização é a espoliação de uma classe por outra, todo o
seu desenvolvimento transcorre em permanente contradição.Todo progres-
so na produção representa simultaneamente um retrocesso na situação da
classe oprimida, isto é, da grande maioria. Todo benefício para uns é neces-
sariamente um malefício para os outros, cada nova libertação de uma classe
leva necessariamente a uma nova opressão da outra. (Engels, 1976, p. 333)66
66 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2019, p. 163. [N. das T.]
MARI A MI ES 161
que é bom para a classe dominante: “O que é bom para a classe dominante
deve ser bom para toda a sociedade com que a classe dominante se identifica”
(Engels, 1976, p. 333).
Mas essa é precisamente a falha lógica dessa estratégia: em uma relação
contraditória e exploradora, os privilégios dos espoliadores nunca se tornarão
os privilégios de todos. Se a riqueza das metrópoles é baseada na exploração
das colônias, então as colônias não podem obter riqueza a menos que tam-
bém tenham colônias. Se a emancipação dos homens é baseada na subordi-
nação das mulheres, então as mulheres não podem alcançar “direitos iguais”
em relação aos homens, já que isso necessariamente incluiria o direito de
explorar outras pessoas.67
Portanto, uma estratégia feminista de libertação não pode visar a nada me-
nos do que a abolição total de todas as relações de progresso retrógrado. Isso
significa que deve buscar o fim de toda exploração das mulheres pelos homens,
da natureza pelo ser humano, das colônias pelos colonizadores, de uma classe
pela outra. Enquanto algum desses modelos de exploração permanecer como
pré-condição para o avanço (desenvolvimento, evolução, progresso, humani-
zação etc.) de uma parcela da população, as feministas não poderão falar em
libertação ou “socialismo”.
67 O mesmo poderia ser dito sobre a relação colonial. Se colônias quiserem seguir o modelo
de desenvolvimento das metrópoles, só podem ter êxito explorando outras colônias – o que
de fato levou à criação de colônias internas em muitas das ex-colônias.
162 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
como entidades separadas. Nossa compreensão do que deve ser uma pesquisa
ou trabalho acadêmico segue exatamente a mesma lógica dos colonizadores
e cientistas que cortam e separam as partes que constituem o todo, as isolam,
as analisam em condições de laboratório e as sintetizam novamente em um
novo modelo, fabricado, artificial.
Não seguirei essa lógica. Tentarei, em vez disso, traçar as “conexões sub-
terrâneas” que ligam o processo de dominação e exploração da natureza pelo
homem ao processo de subordinação das mulheres na Europa, examinando,
ao mesmo tempo, o processo por meio do qual estes se ligam à conquista e à
colonização de outros territórios e pessoas. Assim, o surgimento histórico da
ciência e tecnologia europeias, e seu domínio sobre a natureza, deve estar liga-
do à perseguição das bruxas europeias.Tanto a perseguição das bruxas quanto
a ascensão da ciência moderna estão conectadas ao comércio de escravos e à
destruição das economias de subsistência nas colônias.
Isso não pode resultar em uma história exaustiva de todo o período em
questão, por mais desejável que seja. Destaco, principalmente, algumas cone-
xões importantes que foram cruciais para a construção das relações de pro-
dução no capitalismo patriarcal. Uma delas é a conexão entre a perseguição
das bruxas na Europa, a ascensão da nova burguesia e da ciência moderna e a
subordinação da natureza. Esse tema já foi abordado por várias pesquisadoras
(Merchant, 1983; Heinsohn, Knieper & Steiger, 1979; Ehrenreich & English,
1979; Becker et al., 1977). A análise a seguir está baseada em seus trabalhos.
As conexões históricas entre esses processos e a subordinação e exploração
dos povos colonizados em geral e das mulheres nas colônias em particular
ainda não foram adequadamente estudadas. Portanto, vou me dedicar a essa
história de maneira mais detida.
comprar etc. esposa, filhos, escravos etc. O munt do homem sobre a mulher
foi estabelecido por meio do casamento. Era uma relação baseada no direito
de propriedade sobre as coisas, fundada na ocupação (sequestro de mulhe-
res) ou na aquisição (venda de mulheres). De acordo com a lei germânica,
o casamento era um contrato de venda entre duas famílias. A mulher era
apenas o objeto dessa transação. Ao adquirir o poder-munt, o marido adqui-
ria o direito sobre os bens da esposa, já que ela se tornava sua propriedade.
As mulheres passavam a vida toda sob o munt de seus homens – marido,
pai, filho. A origem desse munt estava na intenção de excluir as mulheres
do uso de armas. Com o surgimento das cidades a partir do século XIII
e a emergência de uma burguesia urbana, a “ganze Haus”– a antiga forma
germânica de família estendida e de parentesco – começou a se dissolver. O
velho potestas patriae, o poder do pai sobre filhos e filhas, terminava quando
estes deixavam a casa. As esposas eram submetidas ao munt ou à tutela de seus
maridos. No entanto, se as mulheres solteiras tivessem propriedade própria,
algumas vezes eram consideradas münding (adultas ou capazes) diante da lei.
Em Colônia, em 1291, as mulheres solteiras que pertenciam a algum grêmio
artesão foram reconhecidas como selbstmündig (Becker et al., 1977, p. 41). As
leis aplicadas nas cidades, assim como algumas leis para o campo, libertaram
as mulheres que pertenciam aos grêmios artesãos do munt ou dependiam de
seus pais ou maridos.
A razão para essa liberalização das cadeias sexuais pode ser encontrada na
necessidade de permitir que as mulheres nas cidades exercessem seus ofícios
e negócios de forma independente. Isso ocorreu por vários fatores:
Entre os camponeses do sul da Alemanha, apenas o filho mais velho era au-
torizado a se casar pois, caso contrário, a terra seria dividida em propriedades
muito pequenas para serem viáveis. Os aprendizes não podiam se casar antes
de se tornarem mestres. Os servos não podiam se casar sem o consentimento
de seus senhores feudais. Quando as cidades abriram suas portas, os servos,
homens e mulheres, fugiram para as cidades; o lema da fuga era “o ar da cidade
torna os homens livres”. No campo, os pobres mandavam suas filhas embora
de suas casas para que se sustentassem como criadas, já que não conseguiam
alimentá-las até que se casassem.
Isso resultou em um aumento no número de mulheres descomprometi-
das, solteiras ou viúvas que deveriam ser economicamente ativas. As cidades,
entre os séculos XII e XIII, não excluíam as mulheres de nenhum ofício ou
negócio que desejassem exercer. Isso era necessário porque sem sua contri-
MARI A MI ES 165
Só existe menção a uma mulher mercadora que viajou por conta própria
para a Inglaterra no século XV: Katherine Ysenmengerde, de Danzig (Becker
et al., 1977, p. 66-67).
Nos séculos XV e XVI, entretanto, a velha ordem europeia desmoronou e
“surgiu uma economia-mundo europeia baseada no modo de produção ca-
pitalista” (Wallerstein, 1974, p. 67). Esse período é caracterizado por uma tre-
menda expansão e penetração da burguesia em ascensão nos “Novos Mundos”
e por empobrecimento, guerras, epidemias e turbulência dentro dos antigos
Estados centrais.
Segundo Wallerstein, essa economia-mundo incluía, no final do século
XVI, o noroeste da Europa, o mediterrâneo cristão, a Europa central, a região
166 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
68 As pessoas que não eram nobres e dependiam da sua relação com a terra para viver eram
classificadas de acordo com as características e a condição de posse da terra em husbandmen,
cottagers e yeoman. Os termos não são traduzidos de forma consensual para o português e são
frequentemente empregados em inglês. Os yeoman possuíam maiores extensões de terra, o que
permitia que gerassem sistematicamente excedentes, e empregavam mais trabalhadores assala-
riados que os husbandmen, os quais possuíam propriedades menores, mas produziam alimentos
em quantidade suficiente para subsistir, empregando eventualmente alguns trabalhadores assa-
lariados e produzindo esporadicamente excedentes. Já os cottagers possuíam terras reduzidas e
não produziam alimentos suficientes para sobreviver, precisando fazer uso das prerrogativas de
uso das terras comuns.Ver Pedro Rocha de Oliveira, Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da
sociedade moderna: estudo sobre a acumulação primitiva de capital. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/São
Paulo: Edições Loyola, 2018. [N. das T.]
70 A Dieta de Frankfurt se refere às sessões da Dieta Imperial (latim: Dieta Imperii ou Comitium
Imperiale; alemão: Reichstag), o corpo deliberativo do Sacro Império Romano-Germânico, que
ocorriam na Cidade Imperial de Frankfurt. [N. das T.]
168 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
dartes e espaços nas procissões da Igreja e nas festas públicas, e até mesmo
uma padroeira, Santa Madalena. Isso demonstra que até o século XIV a pros-
tituição não era considerada algo pernicioso. Mas no final daquele século, as
leis de Merano decretaram que as prostitutas deveriam permanecer longe das
festividades nas quais houvesse “mulheres burguesas e outras mulheres hon-
radas”. Elas foram então obrigadas a usar uma fita amarela em seus sapatos
de modo que pudessem ser distinguidas “das mulheres decentes” (Becker et
al., 1977, p. 79).
A caça às bruxas que assolou a Europa do século XII ao século XVII foi um
dos mecanismos utilizados para controlar e subordinar as mulheres campone-
sas e artesãs, cuja independência econômica e sexual constituía uma ameaça
para a ordem burguesa emergente.
A recente literatura feminista sobre as bruxas e sua perseguição mostrou
que as mulheres não desistiram passivamente de sua independência econômica
e sexual, mas que resistiram de muitas formas ao ataque violento da Igreja,
do Estado e do capital. Uma das formas de resistência foram as muitas seitas
heterodoxas nas quais as mulheres desempenhavam um papel proeminente
ou propagavam a ideologia da liberdade e igualdade para as mulheres e con-
denavam a repressão sexual, a propriedade e a monogamia. Assim, os “Irmãos
do Livre Espírito” [Brethren of the Free Spirit], uma seita que existiu por cen-
tenas de anos, estabeleceram a vida em comunidade, aboliram o casamento
e rejeitaram a autoridade da Igreja. Muitas mulheres, algumas delas eruditas
extraordinárias, pertenciam a essa seita. Muitas foram queimadas como here-
ges (Cohn, 1970).
Parece plausível justificar que toda a fúria desencadeada pela caça às bruxas
não seja o resultado apenas do velho regime decadente em seu confronto com
as novas forças capitalistas, ou mesmo a manifestação de um sadismo mascu-
lino atemporal, mas uma reação dos homens das novas classes dominantes
contra a rebelião das mulheres. As mulheres pobres “libertadas”, isto é, expro-
priadas de seus meios de subsistência e do uso de suas habilidades, lutaram
contra seus expropriadores. Alguns argumentam que as bruxas constituíram
uma seita organizada que se reunia regularmente em “sabás de bruxas”, nos
quais todas as pessoas que ali se encontravam, todas elas pobres, colocavam
em prática uma nova sociedade sem amos nem servos. Quando uma mulher
acusada de bruxaria negava ser uma bruxa, ou dizia não ter nada a ver com as
MARI A MI ES 169
sangue. Mais uma vez ataram suas mãos e pés e a penduraram, novamente
ela gritou e gemeu dizendo que não sabia de nada. Que a colocassem no
chão e a matassem etc. (citado por Becker et al., 1977, p. 426, com base na
trad. de Maria Mies)
31 de outubro de 1724
não fiz isso.Vossa Senhoria, me mate. Não sou culpada, não sou culpada!”
Isto continuou por 30 minutos sem resultado.
Então o Dr. Gogravius ordenou a aplicação do quinto grau.
A acusada foi pendurada e espancada com duas palmatórias, recebendo
até 30 golpes. Ela estava tão exausta que disse que iria confessar, mas, em
relação às acusações específicas, continuou a negar ter cometido qualquer
crime. O carrasco a puxou até deslocar as articulações dos seus braços. Essa
tortura durou seis minutos. Em seguida ela foi espancada novamente, seus
polegares foram colocados mais uma vez nos parafusos e suas pernas nas
botas espanholas. Mas a acusada continuou negando que tivesse algo a ver
com o diabo.
O Dr. Gogravius chegou à conclusão de que a tortura tinha sido aplicada
corretamente, de acordo com as regras e, após o carrasco declarar que a
acusada não sobreviveria a novas torturas, o Dr. Gogravius ordenou que
a acusada fosse despendurada e solta. Ordenou ao carrasco que colocasse
seus membros no lugar correto e que a cuidassem. (citado por Becker et al.,
1977, p. 433-435, com base na trad. de Maria Mies)
bruxas queimadas é equivalente ao de judeus mortos na Alemanha nazista, ou seja, seis milhões.
O historiador Gerhard Scharmann afirmou que o assassinato de bruxas foi a “maior matança
em massa de seres humanos por outros seres humanos não motivada pela guerra” (Der Spiegel,
n. 43, 1984).
MARI A MI ES 173
Não prestam para nada e treinam apenas parasitas que aprendem a confun-
dir as pessoas, como fazer com que as coisas boas se tornem ruins e as coisas
ruins se tornem boas; que pegam o que é devido aos pobres e dão aos ricos
o que não lhes corresponde. (Jansen, 1903, citado por Hammes, 1977, p.
243; com base na trad. de Maria Mies).
72 Geralmente, as fiandeiras e tecelãs de seda em Colônia eram mulheres dos ricos comer-
ciantes de seda, os quais comercializavam suas mercadorias com a Inglaterra e os Países Baixos.
MARI A MI ES 175
73 Catherine Hernot foi a diretora do escritório dos correios de Colônia, que por muitas ge-
rações foi um negócio familiar. Quando a família de Thurn e Taxis reivindicou o monopólio
de todos os serviços postais, Catherine Hemot foi acusada de bruxaria e queimada na fogueira.
176 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
que esse dinheiro fosse confiscado pelas autoridades como forma de erradicar
a estirpe maligna de feiticeiros e bruxas. Na verdade, parece que, em alguns
casos, tanto as cidades quanto os príncipes usaram os pogroms contra bruxas e
os confiscos de seus bens como uma espécie de auxílio para o desenvolvimen-
to de suas economias arruinadas. Os padres da cidade de Mainz não fizeram
muito barulho sobre sutilezas legais e simplesmente pediram aos seus oficiais
que confiscassem todas as propriedades das bruxas. Em 1618, o Mosteiro de
Santa Clara de Hochheim doou 2 mil florins para a “erradicação das bruxas”.
Esta é a carta que o oficial de justiça Geiss escreveu ao seu Senhor de
Lindheim pedindo-lhe permissão para começar a perseguição, pois precisava
de dinheiro para a restauração de uma ponte e da igreja. Ele mencionava que a
maioria das pessoas estava preocupada com a disseminação do mal da bruxaria:
duas ou três queimas na fogueira. Se alguém não estivesse disposto a pagar, era
suspeito de ser um feiticeiro, bruxa ou simpatizante das bruxas. Em alguns ca-
sos, as aldeias pagavam antecipadamente uma quantia ao comissário para que
não visitasse seu povoado. Foi o que sucedeu no povoado de Rheinbach, em
Eifel. Mesmo assim, cinco anos depois, o mesmo comissário voltou e, como os
camponeses não estavam dispostos a ceder pela segunda vez a essa chantagem,
acrescentou mais sentenças de morte ao seu recorde, que já havia alcançado a
marca de 800 assassinatos.
A expectativa de ganhos financeiros pode ser vista como uma das princi-
pais razões para a histeria contra as bruxas se espalhar e o motivo pelo qual
quase ninguém foi absolvido. A caça às bruxas era um negócio. Isso é explica-
do de modo convincente por Friedrich von Spee, o qual, em 1633, finalmente
teve a coragem de escrever um livro contra essa prática sórdida. Em seu livro
observou que:
- advogados, inquisidores etc. utilizavam a tortura para mostrar que eram
responsáveis e não atuavam de modo frívolo;
- necessitavam que existissem muitas bruxas para provar que seu trabalho era
necessário;
- não queriam perder a remuneração prometida pelos príncipes para cada
bruxa capturada.
Para resumir, podemos citar Cornelius Loos, que afirmou que os julga-
mentos das bruxas “eram a nova alquimia mediante a qual o sangue humano
se transforma em ouro” (Hammes, 1977, p. 257). Poderíamos acrescentar ou
pontuar que essa alquimia era feita com o sangue de mulheres. O capital acu-
mulado no processo da caça às bruxas, tanto pelas velhas classes dominantes
quanto pela nova classe burguesa em ascensão, não é mencionado em nenhum
lugar nas estimativas e cálculos dos historiadores que estudaram a economia
daquela época. O dinheiro manchado de sangue da caça às bruxas foi usado
para o enriquecimento privado de príncipes em bancarrota, advogados, médi-
cos, juízes e professores, mas também para financiar assuntos públicos como as
guerras, a construção da burocracia e de infraestruturas e, em última instância,
para o financiamento do novo Estado absolutista. Esse dinheiro ensanguen-
tado alimentou o processo original de acumulação de capital, talvez não na
mesma extensão que o saque e o roubo das colônias, mas certamente em uma
extensão maior do que a que se conhece hoje.
178 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Refiro-me a examinar (tal qual a prática nas causas civis) neste pleito ou
processo concedido pelo desígnio e pela providência divina (no qual a
raça humana procura recuperar seu direito sobre a natureza) a natureza em
si mesma e suas artes por meio de interrogatórios (…). (Merchant, 1983,
p. 169)
A natureza não lhe cederia segredos a menos que fosse violada forçosa-
mente com o emprego das novas invenções mecânicas:
O período ao qual nos referimos até agora ficou conhecido como o perío-
do da acumulação primitiva de capital. Para que o modo de produção capitalista
pudesse se estabelecer e se manter como um processo de reprodução prolon-
gada do capital – impulsionado pelo motor da produção de mais-valia – era
necessário acumular suficiente capital para começar esse processo. O capital
foi amplamente acumulado nas colônias entre os séculos XVI e XVII. A maior
parte desse capital não foi acumulado por meio do comércio “justo” realizado
pelos mercadores capitalistas, mas resultou principalmente do banditismo, da
pirataria, da servidão e do trabalho escravo.
Mercadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses procuraram que-
brar o monopólio veneziano do comércio de especiarias com o Leste. Muitas
das descobertas hispano-portuguesas foram inspiradas no desejo de encontrar
uma rota marítima independente para o Oriente. Na Europa, o resultado
foi uma revolução de preços ou inflação devido: 1) ao desenvolvimento da
técnica para separação do cobre e da prata; 2) à pilhagem de Cuzco e ao
uso de mão de obra escravizada. O preço desse metal precioso despencou, o
que promoveu a ruína da já exaurida classe feudal e dos artesãos assalariados.
Mandel conclui:
Mandel e outros autores que analisaram esse período não falam muito
sobre como o processo de colonização afetou as mulheres nas colônias por-
tuguesas, holandesas, inglesas e francesas recém estabelecidas na África, Ásia e
América Central e Latina. Como o capitalismo mercantil dependia principal-
mente da força bruta, especialmente do roubo e a pilhagem, podemos supor
que as mulheres também foram vítimas desse processo.
Os trabalhos recentes de acadêmicas feministas proporcionaram mais ex-
plicações sobre os lados ocultos do “processo civilizatório”. O trabalho de
Rhoda Reddock sobre as mulheres e a escravidão no Caribe evidencia como
os colonizadores usaram dois pesos e duas medidas, uma para as mulheres dos
povos subjugados e outra para suas “próprias” mulheres. As mulheres escraviza-
das no Caribe foram proibidas de se casar ou ter filhos por um longo período;
era mais barato importar escravos do que pagar pela reprodução do trabalho
escravizado. Ao mesmo tempo, a classe burguesa domesticou suas “próprias”
mulheres para que se tornassem meras reprodutoras monogâmicas de seus
herdeiros, excluindo-as do trabalho fora de casa e do acesso às propriedades.
Todo o violento ataque aos povos da África, Ásia e América pelos mer-
cadores capitalistas europeus foi justificado como uma missão civilizatória das
nações cristãs. Aqui encontramos a conexão entre o processo “civilizador”
pelo qual as mulheres pobres europeias foram perseguidas e “disciplinadas”
durante a caça às bruxas e a “civilização” dos povos “bárbaros” nas colônias.
MARI A MI ES 183
balho e as despesas adicionais saem do bolso do amo. É ele que tem de pagar
pelos cuidados, geralmente prolongados, com o recém-nascido. Essa despesa
é tão considerável que o negro nascido na plantação custará mais quando
estiver em condições de trabalhar do que teria custado outro, comprado na
mesma idade, no mercado público. (Hall, citado por Reddock, 1984, p. 16)
Os mais de cem anos nos quais “as mulheres escravizadas no Caribe não
foram esposas nem mães” correspondem exatamente ao período no qual as
mulheres da burguesia europeia foram domesticadas e manipuladas ideolo-
gicamente para que aceitassem o matrimônio e a maternidade como sua vo-
cação “natural” (Badinter, 1980). Enquanto as mulheres de um grupo foram
tratadas como simples força de trabalho, como fonte de energia, as mulheres
do outro grupo foram tratadas apenas como reprodutoras “não produtivas”.
É, de fato, uma ironia da história que mais tarde, no século XIX, os
colonizadores tentassem desesperadamente introduzir as regras da família
nuclear e o casamento monogâmico na população de ex-escravizados do
Caribe. Mas tanto as mulheres quanto os homens não sentiram que seriam
186 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
ram uma análise notável do antagonismo histórico entre militarismo e feminismo como uma
contribuição para o Movimento de Mulheres, especialmente em apoio ao Movimento Inter-
nacional de Mulheres pela Paz, o qual tentou, junto com a Aliança Sufragista Internacional,
unir as mulheres europeias e estadunidenses em uma frente comum contra a guerra. Devido
ao contexto bélico, as autoras publicaram sua investigação de forma anônima e não fornecem
as referências completas dos livros que citam. Por isso, o livro de Hall, A People at School, é re-
ferido apenas pelo título e pelos números das páginas. O texto completo de “Militarism versus
Feminism” está disponível para consulta na Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.
188 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
sufocada pelo influxo constante de britânicos, alguns dos quais, fossem co-
merciantes, funcionários do governo ou oficiais militares, se desviavam do
comportamento britânico “adequado” para viver abertamente com mulhe-
res africanas ou euroafricanas, ainda que tivessem de fazê-lo clandestina-
mente. Os autores britânicos são circunspectos em relação a esses assuntos,
mas pode-se perceber que, em contraste com a vida familiar dos comer-
ciantes e suas signares, ali se desenvolveu (...) uma comunidade de solteiros
desenraizados do mesmo tipo encontrado em outras áreas britânicas da
África Ocidental. Uma das características dessa comunidade era o racismo
aberto e contumaz; outras duas eram o jogo desmedido e o alcoolismo.
(Brooks, 1976, p. 43)
Esses relatos corroboram não apenas a tese geral de Walter Rodney de que
“a Europa subdesenvolveu a África”, mas também nosso principal argumento
de que o processo colonial, à medida que avançava, rebaixou progressiva-
mente as mulheres dos povos colonizados de uma posição de relativo poder
e independência para uma de “bestialidade” e “natureza” degradada. Essa “na-
turalização” das mulheres colonizadas é a contrapartida da “civilização” das
mulheres europeias.
A “definição de que eram parte da natureza” ou a “naturalização” das
mulheres africanas que foram levadas como escravas para o Caribe é talvez
MARI A MI ES 191
75 O termo coolie foi usado historicamente para designar trabalhadoras e trabalhadores braçais
asiáticos, especialmente chineses e indianos, durante o século XIX e início do século XX. [N.
das T.]
192 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
de casa holandesa, da pressão sobre a família e das tarefas domésticas “do lar”
não foram apenas uma coincidência temporal, mas estão vinculadas de forma
causal à desagregação de famílias e lares entre os trabalhadores das plantations
das colônias holandesas.
Por conta disso, em 1905, foi aprovada uma lei que proibia os casamentos
entre homens europeus e mulheres africanas. Em 1907, foram declarados nu-
los e sem efeito inclusive os casamentos celebrados anteriormente. Aqueles
que viviam em tais uniões, incluindo seus “bastardos”, perderam seus direitos
como cidadãos em 1908, incluindo o direito ao voto. O objetivo dessa lei
era, explicitamente, preservar os direitos de propriedade nas mãos da minoria
branca. Se os afro-alemães tivessem os mesmos direitos dos cidadãos alemães,
incluindo o direito ao voto, poderiam, com o passar do tempo, superar o nú-
mero dos brancos “puros” nas eleições. No entanto, a proibição do casamento
entre homens europeus e mulheres negras não significava que o Reichstag
quisesse colocar restrições à liberdade sexual dos colonizadores. Pelo contrário,
médicos inclusive aconselhavam que os homens alemães recrutassem mulheres
africanas como concubinas e prostitutas. Era o que aconselhava o Dr. Max
Bucher, representante do Reich Alemão:
Quanto às relações sexuais livres com as filhas desta terra, isso deve ser visto
como vantajoso e não como prejudicial à saúde. Mesmo sob a pele escura,
o “Eterno Feminino” é um excelente fetiche contra a privação emocional
que ocorre tão habitualmente na solidão africana. Além desses benefícios
MARI A MI ES 195
Isso significa que as mulheres negras eram boas o suficiente para servir aos
homens brancos como prostitutas e concubinas, mas não deveriam se tornar
propriamente “esposas” porque, a longo prazo, isso mudaria as relações de
propriedade na África. Tal afirmação fica evidente na declaração de um tal
Dr. Karl Oetker, oficial de saúde durante a construção da ferrovia entre Dar-
es-Salaam e Morogoro:
Deveria ser consensual, ainda que precise ser enfatizado novamente, que
todo homem europeu que tenha relações sexuais com mulheres negras
deva cuidar para que tal união permaneça estéril a fim de evitar a mistura
de raças; tal mistura teria o pior efeito em nossas colônias, como foi ampla-
mente comprovado nas Índias Ocidentais, no Brasil e em Madagascar. Esse
tipo de relacionamento só pode e deve ser considerado como um substituto
do casamento. O reconhecimento e a proteção do Estado conferidos aos
casamentos entre brancos devem ser negados a esse tipo de união. (citado
por Mamozai, 1982, p. 130)
mulheres alemãs “em casa” e sobre aquelas que se juntaram aos primeiros
colonizadores na África.
Como foi dito antes, um dos problemas dos colonizadores brancos era a re-
produção da raça branca dominante nas colônias. Isso só poderia ser alcançado
se as mulheres brancas de sua “pátria” [fatherland] estivessem dispostas a ir para as
colônias para se casar com “nossos garotos lá debaixo” e produzir crianças bran-
cas. Como a maioria dos colonizadores pertencia àquele bando de “solteiros
aventureiros”, um esforço especial teve de ser feito para mobilizar as mulheres
a irem para as colônias cumprir o papel de noivas. Os defensores da supremacia
branca viam como um dever especial das mulheres alemãs salvar os homens ale-
mães que viviam nas colônias da influência maligna das “mulheres kaffir” que,
a longo prazo, afastariam esses homens da cultura e da civilização europeias.
O apelo foi ouvido por Frau Adda von Liliencron, a qual fundou a Liga
de Mulheres da Sociedade Colonial Alemã. A associação tinha como objetivo
proporcionar às garotas uma formação especial em serviços domésticos co-
loniais para enviá-las como futuras noivas para a África. Frau Adda recrutou
principalmente garotas camponesas ou da classe trabalhadora, muitas das quais
haviam trabalhado como criadas nas cidades. Em 1898, pela primeira vez, vinte
e cinco mulheres solteiras foram enviadas para o sudoeste da África como um
“presente de Natal” para “nossos garotos lá debaixo”. Mamozai relata como
muitas dessas mulheres “ascenderam” à posição de memsahib (mulher casada)
branca, dama burguesa, que tinha como missão ensinar às mulheres africanas
as virtudes da civilização: limpeza, pontualidade, obediência e diligência. É im-
pressionante observar o quão rapidamente essas mulheres que há pouco tempo
ainda estavam entre os oprimidos passaram a compartilhar dos preconceitos
contra os “nativos sujos e preguiçosos” comuns na sociedade colonial.
Não foram somente as poucas mulheres europeias que foram para as colô-
nias como esposas e “reprodutoras da raça e da nação” que chegaram à posição
de autênticas donas de casa pela subordinação e sujeição das mulheres coloni-
zadas, o mesmo aconteceu com as mulheres “de casa”; primeiro as mulheres
da burguesia e, mais tarde, também as mulheres proletárias foram gradual-
mente domesticadas e civilizadas como autênticas donas de casa. O mesmo
período que vislumbrou a expansão do colonialismo e do imperialismo foi
testemunha da ascensão da figura da dona de casa na Europa e nos Estados
Unidos. A seguir tratarei dessa dimensão da história.
MARI A MI ES 199
DONADECASIFICAÇÃO
coloniais, como o açúcar, o café, o cacau e o chá. Sombart (1922, p. 146) relata
o aumento do consumo de chá na Inglaterra. Em 1906, o consumo médio
de uma família inglesa era de 6,5 libras. A quantidade de famílias que podiam
alcançar esse nível de consumo era:
1668 3 famílias
1710 2 mil famílias
1730 12 mil famílias
1760 40 mil famílias
1780 140 mil famílias
(Fonte: Sombart, 1922, p. 146)
76 Isso é bastante lógico tendo em vista que os escravizados produziam artigos de luxo como
açúcar, cacau e café.
MARI A MI ES 203
77 No original, journeymen: trabalhadores que recebem por dia trabalhado. [N. das T.]
206 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Criar as condições para que todo homem adulto possa ter uma esposa, en-
contrar uma família, ter um trabalho seguro e que permitam a desaparição
das miseráveis criaturas que, em isolamento e desespero, se tornam vítimas,
MARI A MI ES 209
Logo, a luta pela libertação da mulher proletária não poderia ser uma luta
como a da mulher burguesa contra o homem de sua classe; pelo contrário,
é uma luta junto com o homem de sua classe contra a classe dos capitalistas.
A mulher proletária não precisa lutar contra os homens de sua classe para
quebrar as barreiras que limitam a livre concorrência. A necessidade de ex-
ploração do capital e o desenvolvimento do modo de produção moderno
já fizeram isso por ela. Pelo contrário, o que é necessário é erguer novas
barreiras contra a exploração da mulher proletária. É necessário devolver e
assegurar seus direitos como mãe e esposa. O objetivo final de sua luta não
é a livre concorrência com o homem, mas a conquista do poder político
pelo proletariado. (Zetkin, citada por Evans, 1979, p. 114; com base na trad.
de Maria Mies)
Essas ideias tiveram um eco positivo no partido, que já tinha, como pude-
mos observar, uma concepção bastante burguesa do papel da mulher como
mãe e esposa. Esse processo de criação da família nuclear burguesa dentro da
classe trabalhadora e a donadecasificação das mulheres proletárias também
não se restringiu à Alemanha, mas pode ser encontrado em todos os países
industrializados e “civilizados”. Essa concepção foi impulsionada não apenas
pela classe burguesa e pelo Estado, mas também pelos “setores mais avançados”
da classe trabalhadora, mais especificamente a aristocracia de trabalhadores
homens qualificados nos países europeus. Para os socialistas em particular,
esse processo aponta para uma contradição básica, que ainda não foi resolvida,
nem mesmo nos países socialistas: se a entrada na produção social é vista como uma
pré-condição para a emancipação ou libertação das mulheres, como acreditam todos os
socialistas ortodoxos, então é uma contradição defender ao mesmo tempo o conceito do
homem como provedor e chefe da família, da mulher como mãe e dona de casa depen-
dente e da família nuclear como instituição “progressista”.
Esta contradição é, no entanto, o resultado de uma divisão de classe exis-
tente de facto entre os homens da classe trabalhadora e as mulheres. Discordo
de Heinsohn e Knieper (1976) quando afirmam que a classe trabalhadora
como um todo não tinha interesse material na criação da família nuclear e na
donadecasificação das mulheres. Talvez as mulheres da classe trabalhadora não
tivessem nada a ganhar, mas os homens, sim.
Os homens proletários evidentemente tinham um interesse material na
domesticação de suas companheiras de classe. Esse interesse material consistia,
por um lado, na exigência do homem de monopolizar o trabalho assalaria-
do e, por outro, na de manter o controle sobre toda entrada de dinheiro na
família. Visto que o dinheiro se tornou a principal fonte e encarnação do
poder no capitalismo, os homens proletários lutavam por dinheiro não ape-
nas com os capitalistas, mas também com suas esposas. A exigência de um
salário familiar é uma expressão dessa luta. Aqui a questão não é se alguma
vez se chegou a pagar um salário familiar adequado ou não (cf. Land, 1980;
Barrett & Mcintosh, 1980), e sim que a consequência ideológica e teórica
deste conceito levou à aceitação de facto do conceito burguês de mulher e
família pelo proletariado.
A análise de Marx sobre o valor da força de trabalho também se baseia nes-
se conceito, ou seja, de que o trabalhador tem uma esposa “não trabalhadora”
MARI A MI ES 213
(Mies, 1981). Isso fez com que todo o trabalho feminino, assalariado ou não,
fosse desvalorizado.
A função do trabalho doméstico para o processo de acumulação de capital
tem sido amplamente discutida por feministas nos últimos anos. Vou omitir
esse aspecto aqui, mas gostaria de salientar que a donadecasificação significa a
externalização, ou a exterritorialização, dos custos que, de outra forma, teriam
de ser assumidos pelos capitalistas. Isso significa que o trabalho da mulher é
considerado um recurso natural, livremente disponível como o ar e a água.
A donadecasificação significa também, em paralelo, a total atomização e
desorganização dessas trabalhadoras invisibilizadas. Essa não é a razão ape-
nas para a falta de poder político das mulheres, mas também para sua falta
de poder de barganha. Uma vez que a dona de casa está vinculada, como
uma trabalhadora “não livre”, ao provedor do salário, ao proletário “livre”, a
“liberdade” do proletário para vender sua força de trabalho está baseada na
não liberdade da dona de casa. A proletarização dos homens está baseada na
donadecasificação das mulheres.
Graças a isso, o “homem pequeno branco” também ganhou sua “colônia”,
ou seja, a família e a dona de casa domesticada. Isso era um sinal de que, ao
final, o proletariado despossuído havia alcançado o status de cidadão “civili-
zado”, tornando-se assim membro pleno da “nação-cultural”. Esta ascensão,
entretanto, foi paga com a subordinação e donadecasificação das mulheres de
sua própria classe. A extensão das leis burguesas à classe trabalhadora colocou
o homem despossuído na posição de amo e senhor no interior da família.
Minha tese defende que os processos de colonização e donadecasificação
estão íntima e causalmente interligados. Sem a exploração contínua de colô-
nias externas – anteriormente como colônias diretas e atualmente dentro da
nova divisão internacional do trabalho – não teria sido possível estabelecer a
“colônia interna”, isto é, a família nuclear e a mulher sustentadas pelo “chefe
de família”.
4
DONADECASIFICAÇÃO
INTERNACIONAL:
MULHERES E A
NOVA DIVISÃO
INTERNACIONAL
DO TRABALHO
O CAPITAL INTERNACIONAL REDESCOBRE AS MULHERES
DO TERCEIRO MUNDO
eram mantidos baixos em parte pelo uso da força (por exemplo, nas planta-
tions), por um sistema de trabalho escravo e por outras formas de controle do
trabalho (como a servidão por contrato) que impediam o surgimento do tra-
balhador assalariado livre, o protótipo do trabalhador industrial no Ocidente.
Assim, a antiga DIT implicava a importação de matérias-primas baratas das co-
lônias e ex-colônias, produzidas por mão de obra barata, e a produção de bens
feitos a máquina nas metrópoles por mão de obra mais cara, onde também
havia o poder de compra dessas mercadorias. Devido aos seus baixos salários,
o poder aquisitivo dos trabalhadores nas colônias permaneceu igualmente
baixo. Essa relação levou, como sabemos, a uma riqueza cada vez maior e ao
crescimento dos países industrializados, acompanhados de maiores demandas
salariais dos trabalhadores que também participavam da crescente riqueza ba-
seada na exploração das colônias e de seus trabalhadores. Quanto aos trabalha-
dores das colônias, levou à sua crescente pauperização e subdesenvolvimento.
Nos anos 1970, no entanto, os gestores das grandes empresas nacionais
e multinacionais da Europa, Estados Unidos e Japão perceberam que o pe-
ríodo de expansão que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial havia
terminado. Aquele crescimento econômico contínuo, que tinha sido pregado
para as pessoas dos países industrializados como um dogma e que elas ha-
viam considerado como algo garantido, tinha chegado ao fim. Os dirigentes
econômicos temiam que essa situação pudesse levar a revoltas sociais, caso se
descobrisse que a recessão não era apenas uma crise temporária, mas poderia
significar o fim de toda uma época da economia mundial capitalista. Assim,
tornou-se um tema primordial a necessidade de mudar o sistema da econo-
mia mundial – ou a DIT – de tal forma que devolvesse o crescimento con-
tínuo aos países capitalistas. Esse novo modelo, elaborado pela Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização
supranacional dos países industriais ocidentais, supunha que os processos de
produção intensiva – e, portanto, também os custos da mão de obra intensiva
utilizada neles – deveriam ser exportados para as colônias, agora chamadas
de países em desenvolvimento, o “Terceiro Mundo”. Significava também que
indústrias inteiras deveriam ser transferidas para esses países, e que os traba-
lhadores do Terceiro Mundo, devido aos seus baixos níveis salariais, deveriam
passar a produzir os bens de consumo industriais para as massas nos países
ocidentais. Ao mesmo tempo, a agricultura nos países em desenvolvimento
MARI A MI ES 219
deveria ser modernizada por meio de novos insumos tecnológicos para que
também fossem produzidos bens de exportação para os países ricos (Fröbel
et al., 1980).
Essa industrialização parcial dos países do Terceiro Mundo não significa
que esses países tenham obtido muito controle sobre as indústrias estabe-
lecidas nas zonas de livre comércio, nas zonas francas ou nas fábricas para o
mercado mundial. As fábricas realocadas para as Filipinas, Malásia, Coreia do
Sul, Cingapura, México, Sri Lanka e Tailândia pertencem em grande parte a
empresas multinacionais dos Estados Unidos, Alemanha e Japão. Em particu-
lar, foram realocadas indústrias cujo processo de produção necessitava ainda
de mão de obra bastante intensiva e não havia sido racionalizado em alto
grau. Esse foi o caso, principalmente, das indústrias têxteis e de vestuário, da
indústria eletrônica e da indústria de brinquedos. A realocação de indústrias
de países desenvolvidos para subdesenvolvidos não significa uma genuína in-
dustrialização desses últimos. Ao contrário, significa o fechamento de uma
fábrica específica na Alemanha Ocidental, Holanda ou Estados Unidos e sua
reabertura no Sudeste Asiático, África ou América Latina. Assim,
4. Nos últimos anos, o trabalho das mulheres tem ganhado crescente im-
portância em uma quarta área: a da indústria do sexo e do turismo sexual,
principalmente na Ásia e na África, onde mulheres servem homens euro-
peus, estadunidenses e japoneses.
Proponho as seguintes hipóteses para nos guiar em nossa busca por respos-
tas para a pergunta acima.
por mulheres (II Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher,
Copenhague, 1980). Nas zonas francas do Sudeste Asiático, África e América
Latina, mais de 70% da força de trabalho é feminina. Como Fröbel e seus co-
legas descobriram, a maioria das mulheres são jovens (entre 14 e 24 anos). Elas
trabalham na linha de montagem dos atuais processos de produção, enquanto
os poucos homens nessas indústrias são principalmente supervisores (Fröbel
et al., 1977, p. 529-30).
Se adicionarmos a esse número de mulheres jovens nas zonas francas todas
aquelas que trabalham no agronegócio voltado para a exportação, no setor
informal e na indústria doméstica e artesanal, notaremos que uma grande
proporção da mão de obra feminina nos países do Terceiro Mundo está en-
volvida na produção de bens para o mercado nos países ricos. Devemos tam-
bém incluir nessa estimativa as centenas de milhões de mulheres que fazem a
maior parte do trabalho exaustivo na agricultura na África e na Ásia – tanto
na produção de subsistência quanto, muitas vezes, nas safras comerciais – e,
naturalmente, também nas plantations.
Mas o que torna as mulheres do Terceiro Mundo mais atraentes como tra-
balhadoras do que os homens para o capital internacional? Rachael Grossman
(1979) e outros descobriram que as mulheres do Sul e do Sudeste da Ásia são
consideradas a força de trabalho mais dócil e manipulável e que, ao mesmo
tempo, apresentam um grau elevado de produtividade laboral. A maioria dos
governos que desejam atrair investidores estrangeiros anuncia o atrativo de
suas mulheres mal remuneradas e com seus “dedos ágeis”. Este é um anúncio
do governo da Malásia:
Mundo do Haiti [Third World Investment Bureau of Haiti], tentando atrair in-
vestidores alemães, publicou um anúncio que mostrava uma bela mulher hai-
tiana com o texto: “Agora você consegue mais mão de obra por seus marcos
alemães. Por apenas um dólar americano, ela trabalha feliz por oito horas para
você, e centenas e centenas de suas amigas farão o mesmo” (Fröbel et al., 1977,
p. 528; com base na trad. de Maria Mies).
Os tons sexistas desses anúncios são bastante óbvios. Tem-se a impressão
de que esses governos, como cafetões, oferecem suas jovens ao capital estran-
geiro. Na verdade, a prostituição não faz parte apenas da indústria do turismo,
mas também do planejamento de empreendimentos comerciais nos países do
Terceiro Mundo.
É impossível não perceber o “contexto da prostituição” dentro do qual a
nova DIT ocorre, mas, se quisermos entender se o novo interesse pelas mulheres
do Terceiro Mundo se baseia em uma estratégia sistemática ou não, é útil olhar
mais atentamente para os vários projetos e programas, idealizados principal-
mente por organizações internacionais, que recebem nomes como “Integrating
Women into Development” [Integração das mulheres ao desenvolvimento].
Quase ao mesmo tempo em que essa nova divisão internacional do traba-
lho era elaborada e posta em prática, o mundo se conscientizou da necessidade
de “integrar as mulheres ao desenvolvimento”. Já em 1970, Esther Boserup
demonstrou que as mulheres não tinham se beneficiado de qualquer desen-
volvimento ocorrido nos países do Terceiro Mundo. Suas descobertas foram
corroboradas pelos muitos relatórios sobre a situação das mulheres preparados
pelos governos para a Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, realizada
no México em 1975. Descobriu-se que a situação das mulheres havia se dete-
riorado na maioria dos países do Terceiro e mesmo do Primeiro Mundo em
todas as esferas: política, emprego, educação, saúde, direito. Como consequên-
cia, o Plano Mundial de Ação apresentado por essa conferência exigiu que os
governantes fizessem esforços substanciais para remediar a situação e integrar as
mulheres ao desenvolvimento. Depois disso, tanto as organizações das Nações
Unidas, quanto o Banco Mundial e as organizações não governamentais co-
meçaram a falar das mulheres e a incluir em seus programas um capítulo sobre
mulheres e desenvolvimento. Tal fato pode ser considerado uma genuína mu-
dança de atitude por parte dos planejadores masculinos do desenvolvimento?
Será que agora eles estavam realmente interessados na libertação das mulheres
MARI A MI ES 227
Essa estratégia foi desenvolvida pela primeira vez, como vimos, na Europa
e nos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX. A donadecasificação foi o
complemento necessário para a criação do proletário “livre”. Mas enquanto
na Europa e nos Estados Unidos muitos trabalhadores podem se dar ao luxo
de alimentar uma dona de casa “não trabalhadora” (devido à exploração das
colônias), as vastas massas de homens do Terceiro Mundo nunca estarão em
posição de ter uma dona de casa “não trabalhadora” em casa. Portanto, a es-
tratégia de geração de renda para as mulheres se baseia em uma imagem de
mulher que não tem base empírica entre a maioria das mulheres do Terceiro
Mundo. No Caribe, mais de um terço de todos os domicílios não são chefia-
dos por um arrimo de família masculino (cf. Reddock, 1984). Uma pesquisa
recente mostrou que o número de casas chefiadas e sustentadas economica-
mente por mulheres está aumentando, particularmente nas áreas rurais da Ásia,
da África e da América Latina (Youssef & Hetler, 1984). As razões para isso
são: uma virada em direção à produção de cultivos comerciais para exporta-
ção, a mecanização da agricultura e mudanças nos sistemas de propriedade
da terra que levaram ao aumento de pessoas pobres sem terras. Os homens
migraram para as cidades em busca de trabalho assalariado ou foram para áreas
em que a produção é voltada para os cultivos comerciais e a remuneração é
maior, deixando para trás suas mulheres e famílias. Sabe-se bem que os ho-
mens que migram para as cidades ou para outros países não só se ausentam,
às vezes por vinte anos (Obbo, 1980), como também muitas vezes desistem
parcial ou totalmente de sua responsabilidade como “provedores” da família.
Particularmente na África, as mulheres rurais “deixadas para trás” pelos ho-
mens que imigram se tornaram
o maior, se não o único, suporte das famílias rurais (Mali, Gana, Brasil,Togo,
Libéria, Nigéria, Suazilândia79 e partes de Uganda). A impossibilidade de
depender dos rendimentos do marido levou essas mulheres a se dedicarem
à lavoura ou ao comércio para pagar os impostos sobre a terra e os custos
do trabalho agrícola. (Handwerker, 1974; Carr, 1980; Obbo, 1980; Ahmad
& Loutfi, 1981)
79 Desde 2018, a Suazilândia passou a se chamar Essuatíni, que significa “terra dos suázis” em
suázi, retomando uma denominação anterior ao período colonial. [N. das T.]
MARI A MI ES 229
AS MULHERES “RUINS”
Este é o maior desafio que a ONU e o mundo enfrentam hoje. Este con-
flito entre um mundo subnutrido em rápido crescimento, que dá lugar ao
desespero e à violência, e um mundo possível, no qual os indivíduos vivem
construtivamente com dignidade e suficiência, exige o maior esforço e
dedicação desta era. (citado por Mass, 1976, p. 7)
O que Mitra não vê, entretanto, é o fato de que ser “expulsa da esfera
produtiva” não significa que agora o trabalho das mulheres não seja usado
produtivamente para a acumulação de capital. É precisamente essa expulsão
das mulheres como “trabalhadoras” e sua transformação em “pequenas empre-
endedoras” e “donas de casa” no chamado setor informal que torna possível
sua exploração irrestrita e a superexploração. Se, no curso desse processo de
superexploração, elas mesmas e seus filhos são destruídos, não há grande pesar,
pois, como reprodutoras e consumidoras, essas mulheres são vistas como uma
ameaça ao sistema global. E mesmo no que diz respeito à estratégia de utilizar
sua capacidade produtiva “subutilizada” (Banco Mundial, 1975), talvez não
seja preciso utilizar tantas mulheres quanto existem, principalmente porque a
alta tecnologia está tornando cada vez mais redundante o trabalho humano.
Esta é uma conclusão dura demais?
Se observamos as estratégias, táticas e tecnologias usadas em países como
Índia, Bangladesh, China e Cingapura sob o pretexto de “planejamento fa-
miliar”, não podemos deixar de reconhecer uma tendência ao feminicídio.
Não apenas as mulheres do Terceiro Mundo, especialmente na Índia e em
Bangladesh, foram usadas sem hesitação como cobaias pelas indústrias far-
macêuticas multinacionais em testes de contraceptivos e métodos perigosos,
como a amniocentese80, como também foram massivamente despejados em
muitos países do Terceiro Mundo anticoncepcionais, como o Depo-Provera,
proibidos nos Estados Unidos devido às suas qualidades cancerígenas.81
Sendo assim, aqueles que obtêm mais terras têm menos mão de obra fami-
liar para trabalhar nela. Essa contradição combinada com as medidas compul-
sórias do governo, a interação entre incentivos e desincentivos sob o controle
total do partido e as crescentes atitudes e relações neopatriarcais colocam as
mulheres sob pressão de todos os lados, de tal forma que o feticídio feminino
atingiu níveis alarmantes (Croll, 1983, p. 100).
Quando esses fatos foram relatados pela primeira vez na mídia ocidental,
pôde-se escutar um grito de indignação de muitos setores. Mas muitas vezes as
pessoas que agora condenam a China por sua política antimulher são as mes-
mas que há anos subscrevem o argumento de que o crescimento populacional
é a causa da pobreza nos países do Terceiro Mundo e defendem medidas mais
rígidas para reduzir a taxa de natalidade.
Ainda teríamos de analisar com maior profundidade por que um país,
depois de uma revolução que adotou um caminho de desenvolvimento so-
cialista, acaba desenvolvendo essa política flagrantemente antimulher. Porém,
basta dizer aqui que hoje, também na República Popular da China, é ocultado
o papel das mulheres como trabalhadoras e destacado seu papel como repro-
dutoras e consumidoras, papel pelo qual são indesejadas.
AS “BOAS” MULHERES
nialismo. O capital precisa das mulheres nas colônias como produtoras mais
baratas, portanto, elas não podem ser definidas como “trabalhadoras livres”.
Mas, para comercializar as mercadorias produzidas por elas, o capital precisa
das mulheres nas metrópoles como especialistas em consumo, porque sem
consumo ou compra de mercadorias não há produção de capital! Mobilizar
as mulheres para o cumprimento de seu dever de consumidoras tornou-se
uma das principais estratégias do capital nos países industrializados. O “tra-
balho de consumo” (Bridges & Weinbaum, 1978) está, portanto, aumentando
imensamente nos países ricos e está usando cada vez mais o tempo “livre” das
mulheres trabalhadoras assalariadas e não assalariadas. Como a maioria das
pessoas nos países superdesenvolvidos está presa ao mercado para a satisfação
de suas necessidades básicas, elas são forçadas a fazer esse trabalho de consu-
mo se quiserem sobreviver. Com a substituição massiva do trabalho humano
por computadores e robôs, esse trabalho de consumo aumentará ainda mais.
Se há alguns anos a dona de casa tinha de percorrer os supermercados para
selecionar as mercadorias, comparar preços, pagar a conta no caixa, levar
as mercadorias para casa, desempacotar, armazenar e desembalar tudo etc.,
agora ela também é obrigada a colocar ela mesma as mercadorias na sacola,
pesá-las, inserir o preço no computador e depois colocar a etiqueta de preço
em sua mercadoria antes de pagá-la no balcão. Nesses supermercados, quase
não sobraram funcionários. Todo o trabalho necessário é feito pelos próprios
consumidores, exceto o de receber o dinheiro do cliente no caixa. Mas mes-
mo isso pode se tornar dispensável quando todos forem forçados a comprar
com cartões de crédito ou por meio de um computador, realizando o pedido
diretamente de casa.
Como vimos anteriormente, o capital internacional não apenas redes-
cobriu as mulheres – principalmente as dos países subdesenvolvidos – para
reduzir seus custos de produção, como também redescobriu as mulheres dos
centros do capitalismo como meio para reduzir os custos de produção crian-
do uma demanda adequada para suas mercadorias. Cada vez mais, os serviços
socializados (saúde, educação, informação, transporte), que em muitos países
eram pagos pelo Estado de bem-estar social, estão sendo novamente privati-
zados. Essa privatização significa que o trabalho das mulheres como donas de
casa aumentará enormemente no futuro. Como disse Jaques Attali, a produção
do consumidor adequado passa cada vez mais a ser uma obrigação dos pró-
240 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
sul da Índia. Seu objetivo era descobrir até que ponto a produção orientada
para o mercado afetou as condições de trabalho e de vida das trabalhadoras
agrícolas típicas, que realizam a maior parte do trabalho nas áreas de produ-
ção de arroz do sul da Índia. O estudo de campo realizado por mim, Lalitha
e Krishna Kumari ocorreu em três aldeias e cobriu toda a gama de trabalho
das mulheres, seu trabalho dentro e ao redor de suas cabanas (limpeza, pro-
cessamento e preparação de alimentos, coleta de água e combustível, cuidado
com os búfalos etc.), bem como nos campos, que incluíam enxertia, capina e
colheita de arroz, além do processamento de safras comerciais como tabaco,
pimentas, sementes oleaginosas etc.
Embora a forma desse trabalho e as relações de produção visíveis não tives-
sem sofrido nenhuma mudança dramática – as mulheres ainda eram contra-
tadas principalmente como trabalhadoras ocasionais ou coolies por fazendeiros
médios e ricos, que desde tempos imemoriais cultivavam suas terras com a
ajuda de coolies, geralmente pessoas das comunidades de intocáveis –, a essência
dessas relações de produção havia sofrido mudanças significativas.
A relação entre os proprietários de terras e as castas coolies não era mais a
tradicional, em que os coolies tinham o direito de realizar determinados traba-
lhos (por exemplo, remover cadáveres, regar os campos, fazer sapatos, com as
mulheres fazendo todo o trabalho de enxerto e capinação no campo etc.) e
receber uma remuneração fixa, geralmente em espécie. Agora, os proprietários
não se sentiam mais responsáveis por essas pessoas. Devido ao endividamento
constante dos pobres, os senhorios conseguiram manter muitos dos homens
dessas comunidades como trabalhadores forçados. As mulheres, no entanto, ainda
eram contratadas como mão de obra temporária durante a época agrícola.
Mas elas não eram tratadas da maneira tradicional como coolies, com o direito
de fazer certos trabalhos, nem como trabalhadoras assalariadas “livres” que
tinham direitos contratuais de vender seu trabalho livremente, como fazem
os proletários propriamente ditos. Eram de facto tratadas como “donas de casa”
dependentes, cujo trabalho era considerado complementar ao do “chefe de
família”. Na realidade, essas mulheres não apenas faziam todo o trabalho do-
méstico, como também faziam a maior parte do trabalho na agricultura: cerca
de 80% dos trabalhos agrícolas eram realizados por elas. Elas constituíam a
maior parte da força de trabalho rural. Além disso, em muitos casos, elas eram
as verdadeiras provedoras, pois os homens estavam desempregados ou haviam
244 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
migrado para a cidade e não enviavam dinheiro para casa. Nos últimos anos,
muito se escreveu na Índia sobre a tendência a retirar as mulheres do trabalho
“produtivo” ou do emprego remunerado. A maioria desses estudos é basea-
da em dados de censos e outras fontes estatísticas que definem o trabalho
doméstico como não trabalho.82 Como todas as mulheres também realizam
tarefas domésticas, além dos outros trabalhos que podem fazer, grande parte
de seu trabalho desaparece das estatísticas e, portanto, da percepção pública.
Nossas descobertas, no entanto, sugerem que as mulheres rurais na Índia não
trabalham menos do que antes, e sim cada vez mais. Na verdade, os homens
parecem trabalhar menos, mas fazem os trabalhos modernos mais bem pagos
e de maior prestígio (por exemplo, com as novas máquinas). A modernização
e o desenvolvimento capitalista privaram as mulheres trabalhadoras de seus
direitos tradicionais sem lhes dar os novos direitos de “proletária”. Mas, uma
vez que são forçadas a produzir sua própria sobrevivência e a de seus filhos,
elas geralmente têm de aceitar salários que estão abaixo do salário mínimo e
fazer todos os tipos de trabalho para ganhar a vida. Assim, as mulheres não es-
tão apenas ficando mais pobres em termos absolutos, mas também em termos
relativos, sobretudo em comparação com os homens.
Desde que parte do processo de produção agrícola, até mesmo nessa área
empobrecida, foi voltada para o cultivo comercial e para a produção mercantil
e passou por certo grau de modernização, as mulheres das classes tradicional-
mente coolies têm sido marginalizadas e pauperizadas. Devido à introdução
de bombas elétricas e de outras máquinas, seus homens perderam o trabalho;
muitos deixaram os povoados e outros ficaram desocupados, de modo que
geralmente eram as mulheres que tinham de pagar as contas no fim do mês.
Além disso, como as castas que produziam artesanatos tradicionais nos vilare-
82 O Censo Indiano de 1971 define “trabalho” da seguinte maneira: o trabalho implica a “par-
ticipação em qualquer trabalho economicamente produtivo por meio de atividade física ou
mental”; o não trabalho é definido da seguinte maneira: “Um homem ou mulher que se ocupa
principalmente de tarefas domésticas, como cozinhar para a própria casa ou realizar suas pró-
prias tarefas domésticas, ou um menino ou uma menina que é principalmente um estudante
que frequenta uma instituição, mesmo que ajude na atividade econômica da família, não é um
trabalhador em tempo integral e não deve ser tratado como um trabalhador para a atividade
principal” (Instituto de Estatística da Índia, 1971, p. 240-242. Fonte: Ashok Mitra, Lalit Pathak
& Shekhar Mukherji: The Status of Women, Shifts in Occupational Participation, 1961-1971 [O
status das mulheres, mudanças na participação laboral], Nova Delhi, 1980).
MARI A MI ES 245
jos também haviam perdido grande parte suas ocupações devido à introdução
de produtos de fabricação industrial, suas mulheres também se juntaram à
massa de trabalhadores agrícolas, competindo com as tradicionais mulheres
coolies pelos escassos empregos, o que levou a uma redução de seus salários.
Nessa situação de pobreza crescente, programas de desenvolvimento dire-
cionados a pequenos agricultores foram introduzidos e também estendidos,
com a ajuda de uma organização de voluntários,83 às mulheres empobrecidas.
Esses programas incluíam, entre outros objetivos, atividades de geração de
renda com base em pequenos empréstimos bancários para comprar búfalas,
algumas cabras, abrir uma pequena loja etc. O programa de aquisição de bú-
falas era o item mais importante do pacote. Não só envolvia um maior valor
de empréstimo, como também era o item que estava mais diretamente inte-
grado aos mecanismos de mercado capitalistas e, portanto, submetido a seu
total controle e supervisão. O programa direcionado à aquisição de búfalas
nessas aldeias fazia parte de um plano de desenvolvimento da indústria de
laticínios denominado Operation Flood [Operação Inundação], por meio do
qual a produção de leite na Índia havia sido intensificada nos últimos anos.84
Esse programa também foi estendido a pequenos agricultores, mesmo os mais
marginalizados. Os “beneficiários” conseguiam um empréstimo bancário para
a compra de uma búfala de alta raça e, ao mesmo tempo, se tornavam mem-
bros das cooperativas de laticínios. Eles deveriam entregar todo o leite para os
centros de coleta, que o transportavam para a leiteria da cidade. O pagamento
do empréstimo era assegurado por meio de um mecanismo com o qual o
banco deduzia 50% do dinheiro que os produtores deveriam receber pelo
leite diretamente nos centros de coleta. Assim, os produtores reais não tinham
controle direto sobre o dinheiro do leite até que o empréstimo fosse pago.
84 Para uma discussão e uma crítica da Operation Flood, ver: Operation Flood: Development or
Dependence? [Operação Inundação: desenvolvimento ou dependência?], Equipe de pesquisa
do Centre of Education and Documentation, 4 Battery Street, Mumbai 400 039, Índia, 1982.
246 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
meses, as búfalas não dão leite, mas precisam ser alimentadas. Pessoas pobres
como Abamma, no entanto, não têm dinheiro para comprar forragem para
o animal quando não há produção de leite. Assim, ou elas descuidam dos
animais durante esses meses, ou precisam pedir mais dinheiro emprestado
para mantê-los vivos até o início das monções. A raça local de búfalos está
acostumada a viver com pouca forragem durante esses meses, sem adoecer,
mas a raça híbrida e cara que os camponeses empobrecidos têm de comprar
muitas vezes não sobrevive. Abamma não pôde tomar outro empréstimo para
alimentar suas búfalas durante os meses de verão.
O que Abamma ganhou com seu trabalho extra com a criação de búfalas,
que supostamente complementaria sua escassa renda com o trabalho assa-
lariado? A búfala deu leite por seis meses em dois anos. Após a dedução de
50% para o pagamento do empréstimo, Abamma ficou com 445 rúpias. Desse
montante, ela teve de pagar 76 rúpias para a mistura de ração e 150 rúpias para
o reembolso do empréstimo solicitado para a compra de grama. O menino
que levou as búfalas para pastar também teve de ser pago, mas ela não disse
quanto pagou a ele. Estimamos que ele tenha recebido algo em torno de 40
rúpias. Portanto, a receita líquida do programa de laticínios para Abamma foi
de 445 rúpias - 266 rúpias = 179 rúpias. Ao longo de dois anos, Abamma ga-
nhou 179 rúpias. O leite que ela havia produzido durante esses dois anos, no
entanto, era vendido na cidade por 2,50 rúpias por litro; isso equivale a 2.475
rúpias para 990 litros.
Se compararmos agora essa renda com o tempo de trabalho gasto na manu-
tenção da búfala e na produção de leite, poderemos ver como esse programa,
que supostamente deveria ajudar os pobres, não se diferencia muito da explora-
ção das mulheres como trabalhadoras rurais. Os lucros obtidos com a venda do
leite na cidade não são distribuídos aos produtores reais, mas apropriados, nesse
caso, principalmente pela empresa estatal Andhra Pradesh Dairy Corporation
e por várias empresas privadas que vendem laticínios na cidade. Como traba-
lhadora agrícola, ela recebia 2,50 rúpias por dia. Como trabalhava oito horas
por dia, isso equivalia a 0,31 rúpias por hora. A exploração de Abamma como
produtora de mercadorias é, portanto, mais do que o dobro daquela que ocor-
reria se ela fosse uma operária assalariada (Mies, 1984, p. 176-7).
Manoshi Mitra corrobora essas descobertas em um amplo estudo realizado
recentemente sobre os efeitos da Operation Flood nas mulheres camponesas
248 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
85 De acordo com a teoria do trickling up, políticas econômicas estatais que aumentam o poder
de compra das classes baixas e médias, por meio de melhorias salariais e programas sociais, am-
pliam o consumo, o que em médio e longo prazo também beneficia as classes altas por meio
do crescimento do mercado. [N. das T.]
MARI A MI ES 249
apesar de ser produtora de mercadorias” (von Werlhof, 1983, p. 148; com base
na trad. de Maria Mies). É essa mistificação que torna o modelo da dona de
casa tão lucrativo para o capital.
O modelo de cooperativa de Cumaripa produzia cana-de-açúcar para o
agronegócio por meio de um contrato. Não se sabe como e de que forma esse
açúcar acabou entrando no mercado mundial, nem quais foram os produtos
finais que podem ter chegado aos consumidores nos países ricos ou cida-
des do Terceiro Mundo. Por isso não se pode rastrear as ligações diretas que
podem existir entre as donas de casa nos Estados Unidos ou na Europa e as
donas de casa produtoras não remuneradas na Venezuela. Essa dificuldade em
traçar o caminho do produto desde o produtor primário até o consumidor
final é típica de muitos dos produtos que entram no mercado mundial por
meio do agronegócio. Se no caso de frutas e vegetais exóticos ainda pode ser
fácil traçar esse trajeto, o quadro fica totalmente borrado no caso de safras
comerciais como as de mandioca, tapioca, óleo de palma, açúcar, amendoim
etc., produtos que são usados como matéria-prima para a produção de ração
animal ou itens alimentares. Em linhas gerais, só podemos afirmar que o fato
de o trabalho não remunerado das mulheres ser aproveitado para a produção
dessas mercadorias deve ser visto como uma das razões pelas quais há uma
superabundância de mercadorias nos mercados ocidentais.
Dessa maneira, o trabalho donadecasificado não remunerado nos países do
Terceiro Mundo não é apenas aproveitado para a produção de mercadorias
que podem ser consumidas diretamente pelas donas de casa nos países ricos,
como também serve para a produção de mercadorias que podem ser usadas
como matéria-prima em uma variedade de outros processos produtivos, in-
cluindo a produção de armas. A transformação do açúcar em álcool como um
substituto do petróleo é um exemplo ilustrativo.
700 chips por dia, que não tinham permissão para falar entre si durante o
trabalho, que não podiam se afastar do local de trabalho e que não tinham
nenhum período de descanso. Os supervisores constantemente criticavam
as trabalhadoras. Oito horas de trabalho nos microscópios podem causar
dores nos olhos e ansiedade (Fröbel et al, 1977, p. 593). Cada mulher tinha
uma tabela ao seu lado onde deveria marcar sua cota diária de trabalho. No
chão de fábrica, as mulheres são constantemente colocadas umas contra
as outras, em clima de concorrência por produtividade para aumentar sua
cota. Uma mulher que não consegue cumprir a meta diária é demitida ou
tem de fazer horas extras. A mulher citada anteriormente disse: “Nos tratam
como lixo”. Ao mesmo tempo, as empresas manipulam as mulheres como
símbolos sexuais de uma maneira repulsiva. Nos fins de semana, as empre-
sas não apenas organizam bazares de cosméticos em que as mulheres são
encorajadas a gastar seu dinheiro suado em batons, maquiagem, cremes etc.
para imitar as mulheres glamourosas do Ocidente projetadas pela mídia e
em filmes, como também organizam concursos de beleza em suas fábricas,
nos quais as mulheres competem entre si pelo título de rainha da beleza
da empresa. Depois de um desses concursos de beleza, a revista da empresa
publicou a seguinte declaração: “Nossa última vencedora do concurso de
beleza da empresa gastou 40 dólares em seu vestido de noite, mas ela fez
tantas fendas para mostrar as pernas que não conseguirá vesti-lo novamente”
(Grossman, 1979).
As empresas organizam concursos de canto e de costura, e as fotos das
vencedoras são publicadas em suas revistas. Assim, as trabalhadoras não só
ficam totalmente sob controle da empresa em suas horas de trabalho, como
também nos momentos de lazer. A empresa se apresenta como uma gran-
de família com o empresário branco ou japonês como a figura do pai que
beija a vencedora da competição de beleza. Aqui, as estruturas e atitudes
patriarcais não são simplesmente usadas e reforçadas, a “submissão da mulher
asiática” não é apenas utilizada para atrair capital ocidental ou japonês para
esses países; qualquer que tenha sido a forma tradicional de patriarcado, o
novo patriarcado tem intenções e objetivos evidentemente capitalistas, assim
como novas formas de expressão. As mulheres asiáticas nas zonas francas de
produção não são vistas primordialmente como trabalhadoras, e sim como
mulheres. Em contraste com as mulheres nas indústrias domésticas, elas são
MARI A MI ES 257
87 O Telex foi uma das principais formas de comunicação no período do pós-guerra e que
prevaleceu até o final do século XX. Consistia em um sistema de transmissão ponto a ponto
por teleimpressão, semelhante a uma rede telefônica e dela totalmente independente, cuja fi-
nalidade era o envio de mensagens de texto. [N. das T.]
258 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
89 “Rest and Recreation” (R&R) é uma expressão utilizada no contexto militar estadunidense
260 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
para descrever um período de licença especial concedida aos homens alistados na ativa durante
o trabalho militar no exterior, isto é, durante a guerra. A indústria que se formou em torno
dos soldados estadunidenses na Segunda Guerra Mundial e nas guerras da Coreia e do Vietnã,
baseada no turismo sexual, prostituição e tráfico de mulheres, é designada como R&R Industry.
[N. das T.]
MARI A MI ES 261
amor. Ele não se perguntou por que aquelas mulheres estavam vendendo “amor”
a homens como eles ou a turistas homens da Alemanha Ocidental, da Suíça,
dos Estados Unidos ou do Japão. A maioria delas são filhas de camponeses
empobrecidos que se endividaram ou perderam suas terras no decorrer do mo-
vimento de modernização orientado pelos planejadores nacionais. Muitos dos
pais endividados dão suas filhas – muitas vezes ainda crianças – a algum agente
em troca de uma certa quantia de dinheiro. Esses agentes intermediários levam
as meninas para algum estabelecimento no qual elas têm de realizar trabalhos
forçados, seja para o intermediário ou para o proprietário do estabelecimento,
até que o empréstimo seja restituído. Geralmente, as mulheres sequer sabem
quando a dívida foi paga. A maioria das chamadas massagistas de Bangcoc
mandam a maior parte da sua renda para as suas famílias (Phongpaichit, 1982).
Os clientes das mulheres do Sudeste Asiático e da África – e cada vez mais
da América Latina – que trabalham nessa indústria em crescimento não são
apenas os empresários e burocratas da Europa, dos Estados Unidos, do Japão e
das elites asiáticas. Muitos turistas sexuais do Ocidente são trabalhadores co-
muns que se consideram no direito de passar suas férias e gastar o seu dinheiro
nas praias ensolaradas de países do Terceiro Mundo e que compram serviços
sexuais de mulheres “exóticas”. Dos dois milhões de turistas que visitaram a
Tailândia entre 1970 e 1980, 71,1% eram homens. Uma mulher vietnamita
que viajava a Bangcoc descreveu uma estranha situação no avião, onde se
sentou entre homens alemães – alguns trabalhadores, outros empresários –
que falavam inglês com sotaque marcadamente tailandês, que eles deviam ter
aprendido nos bares da Tailândia.
Outra dimensão dessa indústria é o mercado matrimonial de mulheres
asiáticas ou latino-americanas estabelecido por empresas privadas, principal-
mente na Alemanha Ocidental. Essas empresas anunciam abertamente mu-
lheres asiáticas “submissas, não emancipadas e dóceis” em suas propagandas
e até nas colunas matrimoniais de jornais respeitáveis. O alemão Karl-Heinz
Kretschmann, que mantém um Kontakt Club90 germano-filipino, anuncia as
filipinas não apenas como mulheres sexy, mas também baratas: “Uma empre-
gada doméstica não custa mais do que 30 marcos por mês, além da alimen-
90 O Kontakt Club funciona como uma agência de relacionamento entre pessoas de naciona-
lidades e gêneros específicos, no caso, entre homens alemães e mulheres filipinas. [N. das T.]
262 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
tação. Por que então comprar uma máquina de lavar cara?” Todas as agências
“matrimoniais” ou de busca por uma “parceira” garantem a seus clientes ho-
mens que, com as mulheres asiáticas, eles podem ter a certeza de que conti-
nuarão sendo o amo e senhor da casa. Eles continuarão sendo quem “veste
as calças”. Um cliente escreveu: “Depois de dois casamentos desfeitos com
mulheres alemãs, estou farto da nossa emanzen alemã” (gíria para “mulher
emancipada”) (Schergel, 1983).
Além da submissão, os alemães são atraídos pela orientação familiar e pelo
caráter nada exigente das filipinas. Um cliente escreveu:
o turismo sexual não fica nos países do Terceiro Mundo, e sim nos países
onde essas empresas multinacionais estão localizadas (Tourismus, Prostitution,
Entwicklung, 1983, p. 47-49). Com as novas tendências para a produção de
“mercadorias não materiais” – afinal, nossos mercados já estão saturados de
bens materiais – pode-se esperar que o comércio e envio de mulheres do
Terceiro Mundo para os países industrializados aumente. As tendências sexis-
tas, racistas e sádicas mais explícitas desse mercado também aumentarão. O ra-
cismo sempre foi parte integrante desse negócio, desde o início do colonialis-
mo até o presente. Cada vez mais, as mulheres negras e marrons são desejadas
por causa de seu “exótico” sex appeal e porque podem ser transformadas em
objetos de sadismo e violência. A indústria do audiovisual prospera com a
violência contra as mulheres, muitas das quais são mulheres de cor. Os tabus
contra a tortura e a violência contra as mulheres foram quebrados pela pri-
meira vez em relação às mulheres de cor. Agora, as mulheres brancas também
são cada vez mais “dadas de graça” para a satisfação do apetite aparentemente
irresistível dos homens brancos pela crueldade sexual.
Na Internacional dos cafetões, formada por capitais internacionais e na-
cionais, por governos locais e ocidentais e por militares e homens comuns,
não devemos perder de vista o papel desempenhado pelos turistas ditos “de
vanguarda” ou “alternativos”, aqueles que não querem se hospedar em gran-
des hotéis, mas explorar, com seu “turismo de mochilão”, novas áreas e novos
campos para a exploração sexual. Frequentemente, foram esses turistas de
vanguarda e guias de viagens alternativos que ousaram quebrar tabus locais e
ocidentais pela primeira vez, por exemplo, tomando banho nus nas praias de
Goa ou dando dicas aos turistas sobre onde encontrar “terras virgens ainda
não poluídas” para saciar sua fome de sexo e aventura. Enquanto, alguns anos
atrás, os autores de guias de viagem alternativos para a Ásia ainda advertiam
seus clientes a mostrar respeito pela cultura do povo local e a tratar as mulhe-
res como seres humanos, muitos deles agora estão oferecendo dicas, geralmen-
te recebidas de mochileiros, sobre onde encontrar as mulheres mais jovens e
mais baratas da Ásia. Seus clientes são os turistas “alternativos”, na maior parte
jovens e com pouco dinheiro. Entretanto, frequentemente são esses que criam
novas necessidades e modas (Frankfurter Rundschau, 24 de novembro de 1984).
Muitas organizações de mulheres começaram a protestar contra a explo-
ração sexual de mulheres do Terceiro Mundo por homens ocidentais e ja-
MARI A MI ES 265
poneses. Mas, em que pese toda a indignação moral que algumas dessas or-
ganizações expressaram, particularmente as organizações religiosas, elas não
combateram a raiz dessa manifestação, a mais flagrante de todas: a nova DIT.
Em Tourismus, Prostitution, Entwicklung (1983), documento publicado pelo
Zentrum für Entwicklungsbezogene Bildung [Centro de Educação Relacionada
ao Desenvolvimento], uma organização alemã patrocinada pela Igreja protes-
tante, uma variedade de ações é proposta para lutar contra o turismo sexual.
Mas o turismo do Terceiro Mundo como estratégia de acumulação de capital
não é exposto e criticado. Tampouco é rejeitada a divisão internacional do
trabalho, que integrou a exploração racista, sexista e sádica das mulheres do
Terceiro Mundo em sua estratégia de desenvolvimento, nem a divisão sexual
capitalista do trabalho, pela qual as mulheres são universalmente definidas
como donas de casa “dependentes” e objetos sexuais. É precisamente a intera-
ção objetiva e a manipulação dessas duas divisões do trabalho que constituem
a base da exploração sexual. Enquanto as mulheres no Ocidente e nos países
do Terceiro Mundo ficarem apenas moralmente aborrecidas com o uso flagran-
te e desumano de mulheres pobres do Terceiro Mundo por homens de países
e classes ricas, sem atacar abertamente o modelo de crescimento capitalista
nacional e internacional, elas continuarão subscrevendo objetivamente as jus-
tificativas apresentadas pelos pioneiros estadunidenses da indústria do R&R
na base militar de Olongapo nas Filipinas: “Em vez de expor nossas mulheres
decentes ao possível perigo de serem estupradas ou a outras formas de abuso
sexual, é melhor fornecer uma válvula de escape para o impulso sexual dos
marinheiros e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro” (Moselina, 1983, p. 78; com
base na trad. de Maria Mies).
Enquanto a “decência” da dona de casa de classe média estadunidense,
europeia, japonesa, tailandesa ou filipina for baseada na “violência” contra
mulheres pobres na Ásia ou em seus próprios países, enquanto as mulheres
em todo o mundo não rejeitarem esse conceito de decência que, como muitas
vezes se diz, implica a prostituição, o capital poderá usar essa divisão sexual e
internacional das mulheres “para ganhar dinheiro”.
266 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
CONCLUSÃO
casa”. Apenas mulheres jovens solteiras são recrutadas; quando se casam, são
demitidas. A pressão moral e direta é usada para fazer as mulheres trabalharem
mais e mais rápido.
A violência e a brutalidade contra as mulheres que trabalham na indústria
do sexo em países do Terceiro e do Primeiro Mundo não necessitam de ênfase
especial. Elas constituem o próprio meio pelo qual essa relação de produção
prospera. É o trabalho escravo em sua forma mais crua e desumana.
Em todas essas relações de produção, baseadas na violência e na coerção,
podemos observar uma interação entre os homens (pais, irmãos, maridos, ca-
fetões, filhos), a família patriarcal, o Estado e as empresas capitalistas.
Olhando para esses exemplos e para o fato de que a violência e a coerção
parecem estar presentes em todas as relações de trabalho femininas, a pergunta
que surge é se isso é necessariamente assim ou se essa violência deve ser ex-
plicada por outros motivos mais acidentais. Antes de responder essa pergunta,
quero apresentar mais alguns exemplos de violência contra as mulheres que,
nos últimos anos, foram trazidos à tona por feministas em países do Terceiro
Mundo.Vou me concentrar na situação da Índia, onde, desde o final da década
de 1970, grupos feministas iniciaram campanhas contra determinadas mani-
festações de violência contra as mulheres, em particular contra as exigências
excessivas de dote e o assassinato de noivas que não tivessem dote suficiente,
contra métodos de pré-seleção de sexo e feticídio feminino e, sobretudo,
contra o aumento dos estupros, agressões sexuais e brutalidades.
91 Para um primeiro balanço do novo movimento de mulheres na Índia, ver Gail Omvedt,
We Will Smash This Prison [Vamos quebrar essa prisão], Londres: Zed Books, 1980.Ver também
K. Lalitha, “Origin and Growth of POW, First ever Militant Women’s Movement in Andhra
Pradesh” [Origem e desenvolvimento da Organização Progressista para Mulheres (POW), o
primeiro movimento de mulheres militantes em Andhra Pradesh], HOW, vol. 2, n. 4, 1979.
Desde 1979, a revista feminista Manushi cobre os principais eventos do novo movimento de
mulheres indianas.
MARI A MI ES 275
média mais abastadas, são exigidos dotes da ordem de 500 mil rúpias ou mais
em espécie, além de artigos de prestígio como geladeiras, motocicletas, apa-
relhos de televisão, ouro, rádios, relógios, carros e viagens. As famílias comuns
de classe média ainda exigem e recebem dotes que variam de 5 mil a 30 mil
rúpias (Krishnakumari & Geetha, 1983). A família da noiva costuma estar
ansiosa para “casar” sua filha porque uma mulher solteira ainda não tem lugar
nem status na Índia patriarcal. Portanto, os pais das noivas acabam cedendo às
exigências de dote da “outra parte”. Se não têm dinheiro em mãos, pegam
empréstimos. Em uma pesquisa com 105 famílias em Bangalore, descobriu-se
que 66% delas haviam contraído dívidas para casar suas filhas. Ou haviam
prometido continuar pagando mais dote após o casamento. Depois do ca-
samento, a noiva deve ir para a casa dos sogros, pois a maioria das famílias é
patrilocal. O assédio costuma começar imediatamente. O marido, a mãe ou
outros parentes do noivo começam a assediá-la para extrair mais dote de seu
pai ou irmãos. Além dessas exigências, a mulher, muitas vezes, é submetida
a todos os tipos de humilhações e brutalidades. Se ela não puder oferecer
mais dote, um dia – como acontece em muitos casos – é encontrada morta.
Os sogros costumam informar o público de que a mulher cometeu suicídio
ateando fogo em si mesma ou de que ocorreu um acidente enquanto ela
cozinhava. Empregando o método de queimar as mulheres até a morte, todas
as provas são geralmente destruídas, de modo que quase nenhum dos casos
de morte por dote é levado adiante pela polícia e pelos tribunais. Esses casos
são noticiados pelos jornais em notícias de apenas três linhas, com títulos
como: “Mulher comete suicídio” ou “Mulher morre queimada em acidente
de cozinha”. A seguir estão alguns relatos de casos extraídos de diferentes
regiões, a partir de um recorte transversal da sociedade indiana, e que foram
divulgados tanto em publicações feministas como de outros tipos após o
início da campanha contra o feminicídio por dote, organizada por algumas
mulheres e pelo grupo feminista Stri Sangarsh, em Delhi, em junho de 1979
(cf. Manushi, n. 4, 1980).
ela havia sido torturada por mais dote. Foi exigida uma geladeira, que seus
pais entregaram quatro meses antes de seu assassinato. Em 7 de julho de
1979, ela foi agredida pelo marido, que a golpeou na testa, e o ferimento
exigiu quatro pontos. Seu marido queria ir para a Alemanha Ocidental e
suspeita-se que ele desejasse se casar novamente para obter mais dote. Em
1º de outubro, Abha foi até a casa de seus pais para celebrar o Dussehra. Ao
voltar para casa à noite junto a seu irmão e sua irmã mais nova, eles notaram
que seu marido parecia irritado. No dia seguinte, uma pessoa desconhecida
informou seus pais de que Abha estava gravemente doente e hospitalizada.
Quando chegaram ao hospital, uma enfermeira comunicou que Abha havia
morrido envenenada. Seus pais denunciaram seu marido e seu sogro por
homicídio. Nenhuma prisão foi feita até o momento. (Manushi, dezembro
de 1979-janeiro de 1980)
Delhi: Dois meses depois de Prem Kumari, de Delhi, se casar, ela morreu
em maio deste ano devido a queimaduras graves.
“Desde que ela se casou, seu marido e seus sogros não pararam de reclamar
que tínhamos dado pouco dote”, disse-me Padmavati Khanna, a mãe de
Prem Kumari. “Eles reclamavam que não tínhamos dado geladeira, tele-
visão, ventilador e várias outras coisas (...) Depois [da cerimônia de casa-
mento], não nos foi permitido encontrá-la ou falar com ela. Só quando sua
saúde piorou é que ela teve permissão para vir à nossa casa. Ela nos contou
como a tratavam mal e como a espancavam porque não tínhamos dado
dote suficiente. Só a vimos novamente quando ela foi queimada”. (Sunday,
27 de julho de 1980)
Ele teria sido encorajado por membros de sua família a realizar essa tortura.
(Indian Express, 10 de dezembro de 1980)
como dote. Dois dias antes da aterradora morte de Manorama, uma briga
violenta havia ocorrido entre seus sogros e seus irmãos. Manorama e seus
irmãos foram espancados brutalmente.
A bhabi (cunhada) da moça implorou para que ela voltasse a morar na casa
de seus irmãos. Sua bhabi esperava o pior dos sogros de Manorama, visto
que eles haviam queimado sua nora mais nova apenas dez meses antes, em
sua cidade natal, Fatehgarh Churian. O caso não foi investigado porque os
pais da nora mais nova eram pobres e, além disso, sua madrasta demonstrou
pouco interesse. Outra razão pela qual seus sogros escaparam da conde-
nação por esse crime hediondo foi que eles conseguiram forçar a pobre
moça a assinar uma declaração dizendo que ela havia cometido suicídio.
(Manushi, dezembro de 1979-janeiro de 1980)
Uma policial,Veena Sharma, também foi queimada até a morte por seu ma-
rido em Delhi em 1980. Estes são trechos do relatório publicado pelo Manushi:
Delhi: Ela estava na cozinha, cozinhando para o marido, quando ele des-
pejou um material altamente inflamável sobre ela e a incendiou. Ele então
saiu correndo gritando que o cilindro de gás havia estourado. No entanto,
descobriu-se que isso não era verdade, e o filho de quatro anos testemu-
nhou que o pai havia posto fogo em sua mãe.
Veena era subinspetora da polícia de Delhi (...)
Veena se casou com Nagrathe (seu marido) contra a vontade de seus pais.
Ela era mestre em literatura hindi pela Universidade de Delhi, enquanto
ele havia concluído apenas o sétimo ano, era deficiente físico e nunca tivera
um emprego regular. Veena era a principal provedora da família. Embora
Nagrathe não tivesse uma renda regular e desperdiçasse muito dinheiro
bebendo e jogando, ainda assim se ressentia da renda independente de
Veena, estava loucamente desconfiado dela, a proibira de se misturar com
colegas e amigos e se recusava a ajudar nas tarefas domésticas ou no cuidado
das crianças [...] (Manushi, julho-agosto de 1980)
Depois que a campanha contra os feminicídios por dote foi iniciada, mui-
tos outros casos de jovens esposas mortas por maridos e parentes, ou levadas
ao suicídio, apareceram na imprensa. Grupos e organizações de mulheres pres-
MARI A MI ES 279
sionaram o governo por ações legais mais rigorosas contra os culpados e por
uma reforma da Dowry Prohibition Act [Lei de Proibição dos Dotes] de 1961,
que era apenas mais uma lei que não havia saído do papel, não tendo sido nem
mesmo defendida pelos próprios políticos. Também exigiam mais investiga-
ções sobre as circunstâncias sob as quais jovens esposas morriam na Índia e o
número real de tais mortes. No dia 10 de junho de 1980, foram debatidas no
Parlamento as atrocidades cometidas contra as mulheres. A polícia de Delhi
revelou que, no ano de 1979, 69 mulheres haviam morrido em decorrência
de queimaduras, enquanto em julho de 1980 esse número já chegava a 65.
Durante o Ano Internacional da Mulher de 1975, suspeita-se que 350 meni-
nas e mulheres foram queimadas devido a exigências de dote. De acordo com
o Ministro do Interior, 2.670 mulheres morreram dessa forma na Índia em
1976 e 2.917 em 1977. Esses foram apenas os casos registrados pela polícia
(Sunday, 27 de julho de 1980).
Apesar do movimento crescente contra os feminicídios por dote e outras
atrocidades contra as mulheres, o número de mulheres jovens mortas por seus
maridos e/ou por seus familiares aumentou rapidamente depois de 1980. Em
1983, a Suprema Corte indiana impôs pela primeira vez a pena de morte ao
marido, à sogra e ao cunhado de uma mulher de 20 anos, Sudha, que estava
no nono mês de gravidez. Eles jogaram querosene sobre ela e atearam fogo
porque ela não havia oferecido dote suficiente. No entanto, mesmo esse jul-
gamento severo não teve o efeito dissuasor esperado. Na mesma semana, mais
dez assassinatos por dote foram registrados.
Em 1981, apenas no estado de Uttar Pradesh, 1.053 mulheres supostamen-
te cometeram suicídio (Maitreyi, n. 4, outubro-novembro de 1982). Em uma
conferência em Madras em 6 de novembro de 1982, a Dra. K. Janaki, professora
de medicina legal, disse que o padrão das relações sociais havia mudado dras-
ticamente nos últimos anos. “Desde 1977, o número de mulheres que mor-
rem queimadas triplicou e o das que se suicidam por enforcamento dobrou”.
Citando estatísticas de hospitais, ela disse que só em South Madras o número
de mulheres que morriam queimadas a cada ano havia subido de 52 para 178
nos últimos cinco anos. O número de pessoas que morreram por enforcamento
subiu de 70 para 146 (Hindu, 4 de novembro de 1982, em Maitreyi, n. 4, 1982).
De acordo com outro comunicado de imprensa do estado de Madhya
Pradesh, em média, pelo menos uma mulher por dia dá entrada por queima-
280 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
AMNIOCENTESE E “FEMINICÍDIO”
questionam diante do fato de que mulheres grávidas não queiram dar à luz
outras mulheres. Quando li essa notícia, me perguntei o que teria acon-
tecido se as grávidas tivessem dito ao médico: “Doutor, mate-o se for um
menino”.
Como se tornou socialmente aceito que o nascimento de uma filha é
um desastre, não é de surpreender que, anos depois, em julho de 1982, al-
guns médicos astutos de Amritsar tenham visto uma grande oportunidade
para estabelecer negócios baseados no preconceito antimulher e pró-homem
da sociedade patriarcal indiana. Eles anunciavam e vendiam a amniocentese
como um método de pré-seleção do sexo, acompanhada do aborto de fetos
femininos. Como aconteceu com as campanhas antidote e antiestupro, a
imprensa começou a noticiar a extensão e as circunstâncias do feticídio femi-
nino somente depois que grupos de mulheres começaram a protestar contra
a perigosa tendência ao extermínio de mulheres. Revistas populares publica-
ram reportagens sobre a utilização da amniocentese e a prática do aborto de
fetos femininos. Sobre esta última controvérsia,Vibhuti Patel escreve:
Mas por que não enxergar esta lógica econômica? A seleção do sexo na
gestação irá reduzir a oferta de mulheres, elas se tornarão mais valiosas e as
crianças do sexo feminino serão mais bem cuidadas e viverão mais. Temos
aqui um bom instrumento para equilibrar a oferta e a demanda das mu-
lheres e para equacionar seus preços em toda a Índia (já que as barreiras de
castas, regionais, religiosas e outras impedem o movimento das mulheres).
Portanto, com o tempo, deve-se esperar que os dotes caiam no Norte.
(Kumar, 1983, p. 63)
ESTUPRO
qual era a relação dela com aquelas meninas. As meninas disseram que Rameeza
Bee as havia agenciado para a prostituição. Rameeza Bee foi então presa sob a
acusação de ser uma cafetina. Ela foi declarada prostituta e sentenciada a dois
anos de prisão. A polícia espalhou todo tipo de calúnia contra ela. Quando o
julgamento dos estupradores estava para começar em outubro de 1980, a polícia
solicitou a transferência do caso para um estado diferente e distante. A Suprema
Corte concordou com o fundamento de que os acusados poderiam não obter
um “julgamento justo” em Haiderabade. Em fevereiro, os policiais acusados
foram absolvidos das acusações de estupro, assassinato e extorsão. Apenas dois
policiais foram declarados culpados por “prisão ilegal” (Manushi, n. 7, 1981).
O caso Rameeza Bee provocou protestos em massa, principalmente de
jovens muçulmanas, na cidade de Haiderabade. Houve também protestos na
revista feminista Manushi e por parte de algumas organizações de mulheres.
Essas manifestações feministas se tornaram mais articuladas quando, um ano
após os eventos em Haiderabade, uma mulher chamada Shakila sofreu uma
agressão de similar brutalidade pela polícia da pequena cidade de Bhongir.
A mulher foi presa pela polícia em uma sala próxima à delegacia. Ela teve
de cozinhar para os policiais durante o dia e, à noite, vários policiais a estu-
praram. Seu marido foi preso sob acusação de roubo e mantido sob custódia
policial. Em 10 de outubro de 1979, ela e o marido foram internados pela
polícia como pessoas não identificadas em um hospital, onde Shakila morreu
no mesmo dia. Seu marido disse a uma comissão de apuração que ela havia
sido estuprada várias vezes durante a noite e que ele havia sido espancado e
forçado a engolir pílulas para dormir. O corpo de Shakila foi enterrado às
pressas pela polícia antes que uma autópsia pudesse ser feita.
Esse caso gerou uma mobilização em todo o estado, da qual também par-
ticiparam várias organizações de mulheres. Milhares de mulheres protestaram
contra as atrocidades policiais contra as mulheres (Farooqui, 1980).
O caso que desencadeou uma campanha nacional contra o estupro foi,
no entanto, o de Mathura. Mathura não tinha nem dezesseis anos. Ela foi
estuprada por dois policiais em uma delegacia. Chhaya Datar descreve os
eventos da seguinte maneira:
Mathura era uma trabalhadora sem-terra que estava sob custódia da de-
legacia de polícia de Desaiganj no distrito de Chandrapur, no estado de
286 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Não foi estupro, disse a Suprema Corte, foi apenas uma relação sexual. Mathura, uma trabalha-
dora rural, entre 14 e 16 anos, de uma aldeia em Maharashtra, “submeteu-se voluntariamente”
a uma relação sexual com Ganpat, um policial que ela nunca tinha visto antes. Outro policial,
Tukaram, assistia à cena – bêbado demais para frear seu amigo, mas não bêbado demais para
abusar dela.
Isso aconteceu no dia 26 de março de 1972. No meio da madrugada. Em um banheiro próxi-
mo a uma delegacia de polícia. Onde a porta estava trancada e as luzes apagadas. A “firme resis-
tência” que Mathura apresentou era falsa, declarou a Suprema Corte, uma “trama de mentiras”.
“A alegada relação sexual ocorreu de forma pacífica”. “Seus gritos de alerta foram, é claro, uma
invenção de sua parte”, e ela disse ter sido estuprada para provar que era íntegra. A Suprema
Corte decidiu que não havia “nenhuma evidência razoável de culpa por parte dos policiais”.
O sêmen no pijama de Ganpat e no corpo e nas roupas de Mathura não provou nada. Já que
a menina não era virgem, insinuou-se que ela poderia ter dormido com mais alguém entre o
suposto estupro e o exame médico na manhã seguinte. Desnecessário dizer que ele poderia
ter feito o mesmo.
E assim a Suprema Corte fez justiça de acordo com seus interesses – revertendo o julgamen-
to da Alta Corte de Mumbai que condenou Ganpat a cinco anos de prisão e Tukaram a um
ano. Os dois policiais ficaram impunes. Mais uma vez, como na maioria dos casos de estupro,
a vítima tornou-se a ré e o promotor, o defensor. E o caso foi esquecido, relegado às páginas
mofadas de um jornal jurídico.
Um ano depois. Setembro de 1979. Quatro advogados – Upendra Baxi, Lotika Sarkar, Ra-
ghunath Kelkar e Vasudha Dhagamwar – analisaram o julgamento e ficaram estupefatos com
o “legalismo a sangue frio” da sentença. Enviaram uma carta aberta ao Chefe de Justiça da
Índia pedindo a reabertura do caso e condenando a sentença que “extingue toda aspiração de
proteção dos direitos humanos de milhões de Mathuras”.
O que isso significa? O caso de Mathura é apenas um exemplo. Jogar luz sobre ele significa
questionar todos os julgamentos de casos de estupro, questionar a lei do estupro, começar a se
perguntar por que tão poucos estupradores são condenados e perceber que o Código Penal
Indiano torna praticamente impossível provar a ocorrência de um estupro. Isso chamaria muita
atenção para algo que por muito tempo fingimos não existir. Não é hora de encararmos de
frente o estupro?
Não é hora de admitirmos que ele ocorre o tempo todo e em toda parte? De assumirmos que
todas as mulheres são vítimas em potencial – sejam elas jovens ou velhas, “bonitas” ou “feias”,
“boazinhas” ou “más”, ricas ou pobres? Claro que se você não for Mathura, uma trabalhadora
rural analfabeta, suas chances são menores. As Mathuras do país são duplamente oprimidas, são
mulheres e pertencem a um setor já oprimido de uma nação em que a justiça é privilégio de
poucos. Por isso, as mulheres não enfrentam o terror do estupro como indivíduos – mas como
uma categoria. O estupro em massa é frequentemente usado como uma arma para demonstrar
poder. Não é preciso procurar muito para encontrar exemplos. Já se esqueceram do que acon-
teceu com as esposas dos ferroviários durante a greve de 1974? Com as esposas dos mineiros
de Baila Dilla em 1977? Com as mulheres Dalit em Chandigar, Bhojpur e Agra? Ou com as
mulheres muçulmanas em Jamshedpur, Aligarh e em quase todas as revoltas comunais? Com as
mulheres Mizo e Nepali nas mãos do exército indiano?
288 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
mas quero pontuar que os protestos contra os feminicídios por dote e contra
os estupros marcaram uma mudança no movimento de mulheres indiano pois
evidenciaram que o feminismo não era somente uma ideologia ocidental im-
Mas ninguém precisa ser estuprada para ser contra. Você já não sabe disso? Toda mulher não
sabe disso? Quando você assiste a um filme e durante a cena explícita de estupro ouve os gri-
tos e assobios de aprovação do público, isso não revira seu estômago? Você anda pela rua, viaja
de ônibus ou de trem tentando ignorar os comentários e provocações, mas a mão de alguém
apalpa você, roça em você.Você pediu? Provocou?
E se amanhã você for estuprada, o que fará? E se você for homem e sua irmã, filha ou mãe
for estuprada, o que você fará? Depois que todos os seus tão valiosos mitos se desintegrarem
ao seu redor e você se der conta de que o estupro ocorre sem que as mulheres “peçam”.Você
será um dos 800 casos denunciados em Mumbai neste ano e terá a coragem de dizer “Eu fui
estuprada”? Ou será um dos outros 8.000, pois para cada estupro notificado há entre 10 e 12
casos não relatados.
Sim, há segurança nesses números. E força. Então, vamos mudar a balança. Junte-se a nós.Vamos
encarar de frente o estupro e exigir:
1) Uma reabertura imediata do caso
2) Uma emenda à lei do estupro.
Se enfrentamos as coisas, elas podem mudar.
* Em Bhatinda, Punjab, a Associação por Direitos Democráticos de Punjab fez exatamente
isso. Quando Lakshmi Devi, uma mulher deficiente em situação de rua, foi estuprada repe-
tidamente por três ou quatro policiais e deixada sangrando em uma área deserta da cidade,
alguns trabalhadores dessa organização a internaram no hospital e deram seguimento ao caso,
de forma obstinada, até que os culpados fossem presos.
* Em Maharashtra, quando uma mulher adivasi foi estuprada por um proprietário de terras, as
mulheres da aldeia se reuniram e realizaram um julgamento presidido pelo povo. O culpado
foi exibido pela aldeia e humilhado publicamente.
* Em Haiderabade, houve um levante popular espontâneo depois do estupro de Rameeza Bee.
* Em Dombivli, Mumbai, há algumas semanas, quando se espalhou a notícia de um caso de estu-
pro, mais de 500 pessoas se reuniram em torno da casa do estuprador e exigiram sua punição.
Convocamos a todos os sindicatos, organizações de mulheres, organizações defensoras dos
direitos democráticos, organizações estudantis, advogados, estudantes, professores, jornalistas,
grupos dalit e demais grupos e organizações a se juntarem a nós em uma
REUNIÃO PÚBLICA NO DIA 23 DE FEVEREIRO DE 1980, ÀS 15H, NO ATCAMA
HALL (EM FRENTE AO LION GATE), FORT.
MANIFESTAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER NO DIA 7 DE MAR-
ÇO DE 1980, ÀS 15H, DE AZAD MAIDAN A HUTATMA CHOWK.
FORUM AGAINST RAPE
Sra. Meera, c/o apt. 3, Carol Mansion, Sitladevi Temple Road, Mahim, Mumbai 400 016.
Publicado pela Sra. Meera, Forum Against Rape, c/o apt. 3, Carol Mansion, Sitladevi Temple
Road, Mahim, Mumbai 400 016 e impresso por ela na New Age Printing Press, 85 Sayani
Road, Prabhadevi, Mumbai 400 025.
MARI A MI ES 289
portada, mas que sua luta contra as relações patriarcais e sexistas entre homens
e mulheres também tinha relevância para as mulheres indianas. O que ficou
igualmente evidente no decorrer dessas campanhas foi o fato gritante de que
a violência contra as mulheres também ameaçava as mulheres de classe média.
Assim, a explicação padrão da esquerda indiana de que estupros e atrocidades
contra as mulheres eram apenas parte das relações de classe feudais e/ou capita-
listas não podia mais ser mantida. Não apenas trabalhadoras sem-terra e mulhe-
res tribais pobres estavam entre as vítimas de estupro, mas também mulheres de
classe média respeitadas e educadas, como mostra o caso de Maya Tyagi.
Maya, uma mulher de 23 anos de uma família de fazendeiros abastados,
estava viajando de carro com o marido para assistir ao casamento de sua so-
brinha. Ela estava grávida. Quando um dos pneus furou, eles pararam perto
de uma delegacia de polícia em Baghpat. Um policial à paisana aproximou-se
do carro e começou a assediar Maya. Seu marido então deu uma surra nele. O
homem foi até a delegacia e voltou com uma unidade policial inteira, que co-
meçou a atirar neles. Eles tentaram escapar da polícia, mas duas pessoas dentro
do carro, incluindo o marido de Maya, foram mortas a tiros. Outro homem
também foi morto a tiros. Depois disso, Maya foi arrastada para fora do carro
e espancada, roubaram suas joias, despiram-na e fizeram com que ela desfilasse
pelo mercado. Ela foi então levada para a delegacia onde foi estuprada por sete
policiais e presa. Eles também lhe deram sua urina para beber.
A polícia alegou em seu relatório que aquele não era um caso de estupro,
mas que os homens mortos eram ladrões e que Maya era a “amante” de um de-
les (Economic and Political Weekly, 26 de julho de 1980; Manushi, agosto de 1980).
Esse caso, mais do que qualquer outro, provocou manifestações em massa,
alvoroço no parlamento, jornadas de protesto de muitas organizações de mu-
lheres e clamor pela punição dos culpados. O governo, no entanto, mostrou-se
relutante em tomar medidas firmes contra a polícia, porque temia que sua
própria legitimidade e a daqueles que deveriam proteger a “lei e a ordem”
fossem prejudicadas. O Ministro do Interior recebeu Maya Tyagi e recomen-
dou ao comitê de investigação que a levasse à Primeira-Ministra, a Sra. Indira
Gandhi. Eis o que o comitê de investigação escreveu:
Percebendo que a aprovação dela (de Indira Gandhi) era necessária até para
fazer justiça em um caso em que uma mulher havia sido tratada de forma
290 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Citei essa reação do governo indiano por completo porque ela revela que,
para os políticos, incluindo a Primeira-Ministra, esse caso abominável era
apenas algo a ser usado em suas manobras políticas. Os partidos da oposição
usaram-no para demonstrar que o governo de Indira Gandhi não era capaz
de “proteger” a “honra” das mulheres na Índia.
Na esteira desses eventos, houve uma enxurrada de notícias na imprensa
sobre estupros e outras atrocidades contra mulheres. Enquanto os estupros
coletivos cometidos pela polícia aumentavam, ficou evidente que não eram
apenas os policiais que estupravam mulheres, mas que estupradores eram en-
contrados entre homens comuns. Entre eles estavam os sacerdotes, sadhus [as-
cetas hindus], carteiros, cunhados, adolescentes, empregadores, trabalhadores,
proprietários de terras etc. Os estupros coletivos pareciam ter se tornado moda
em todo o país. Além disso, casos de estupro ocorriam em todas as comuni-
dades, entre hindus, muçulmanos e cristãos. Não só as mulheres de “outras”
comunidades eram estupradas, mas também as mulheres da comunidade dos
estupradores. Rameeza Bee foi estuprada por vários policiais muçulmanos.
Por fim, foi necessário admitir que o estupro ocorria em todas as classes e
que estava aumentando nos últimos anos. Assim, o Ministro do Interior teve
de declarar abertamente que, nos anos de 1972 a 1978, o seguinte número de
casos de estupro havia sido oficialmente registrado:
ANÁLISE
Não é mais possível negar que a violência contra as mulheres está aumen-
tando na Índia. Não só o movimento das mulheres, mas também a imprensa,
os políticos e alguns acadêmicos começaram a apurar as causas das crescentes
“atrocidades contra as mulheres”. Os demógrafos na Índia estão preocupados
com o encolhimento da população feminina no país, mas não sabem como
explicá-lo.95 Para a classe média educada, foi uma espécie de choque admitir
que a Índia estava longe do ideal gandhiano de sociedade pacífica. Assim, os
movimentos contra os feminicídios por dote e o estupro eram acompanhados
por reflexões de organizações de mulheres, da imprensa e, por vezes, também
de alguns acadêmicos a respeito das razões pelas quais as mulheres na Índia
estavam sendo cada vez mais vitimadas pela violência masculina ou por que
eram indesejadas. A explicação clássica da esquerda é de que as mulheres não
são economicamente iguais aos homens nos países capitalistas e que, portanto,
estão sujeitas à violência masculina. Ou então que leis são aprovadas, mas não
executadas, e que o governo é responsável pela degeneração da situação da lei
e da ordem (Gita Mukherjee, 1980). Outra explicação à esquerda é dada por
Vimla Farooqui. Ela diz:
Nas últimas três décadas houve uma degeneração alarmante de nossos va-
lores sociais, porque nossos governantes estão seguindo um caminho de
desenvolvimento capitalista enquanto mantêm intacto o sistema de valores
feudais que não oferece aos setores mais fracos nenhuma proteção. As mu-
lheres, sendo as mais fracas entre os setores mais fracos, naturalmente sofrem
mais. Trata-se de uma situação que exige séria reflexão das organizações
femininas, dos partidos políticos e de todos os que trabalham pelo bem estar
e pelo avanço da Nação. (Farooqui, 1980)
espécie de valor equivalente para a mulher, que pode ser positivo (preço da
noiva) ou negativo (dote). Para ela, o dote é uma espécie de “preço negativo da
noiva”, que surge quando a contribuição econômica ou produtiva da mulher,
ou seja, o trabalho doméstico, a capacidade de engravidar e a participação no
trabalho gerador de renda, é superada pelos custos de alimentá-la e vesti-la. Essa
situação surgiu, de acordo com Rajaraman, quando as mulheres foram expulsas
de empregos produtivos das classes do “setor informal”. O dote é, portanto,
definido como “valor do custo de sustentar uma mulher ao longo da vida se a
renda dela for igual a zero; esse valor será menor se a renda feminina for infe-
rior ao custo de subsistência, mas não chegar a zero” (Rajaraman, 1983, p. 276).
Como todo o seu argumento é baseado na suposição equivocada de que o
dote se destina a compensar “de forma parcial ou total a subsistência vitalícia
de uma mulher”, ela também pode defender o argumento, frequentemente
ouvido na Índia, de que o dote é basicamente um fundo rotativo, ou seja,
pressupõe-se que as famílias tenham número igual de filhos e filhas e que o
valor que pagam como dote por suas filhas, recebem de volta quando seus
filhos se casam. Esta suposição quanto ao caráter circular do dote e do preço
da noiva – baseada, muito provavelmente, na teoria de Lévi-Strauss da equipa-
ração entre noivas e bens matrimoniais, que se produz em tais círculos – não
apenas ignora a realidade indiana, como também a relação basicamente assi-
métrica, não recíproca e hipergâmica entre famílias que dão e recebem noivas
na Índia (Ehrenfels, 1941; Dumont, 1966).
Devido à estreita argumentação economicista, Rajaraman não consegue
explicar a situação atual, notadamente o fato de que agora todas as famílias
com filhas do sexo feminino são punidas devido ao sistema de dote, e não
apenas aquelas que têm mais filhas do que filhos. Devido ao pressuposto de
que existe uma troca de valores equivalentes entre a família que dá a noiva e a
que a recebe, ela acredita que a família que dá a noiva tem algum poder de
barganha frente à família que a recebe. A realidade, porém, é que a família do
noivo pode determinar quase que totalmente o valor do dote. As qualidades
do noivo – sua educação, casta, riqueza familiar, situação de emprego etc. – são
a medida para o cálculo do dote. A beleza da noiva, a educação, o emprego, a
riqueza de sua família etc. não podem ser usados na negociação para reduzir as
exigências do dote por parte da família do noivo. As demandas vêm apenas de
um lado, e o outro lado deve fornecer os bens além da mulher.
294 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Seja qual for a causa da transição [do preço da noiva para o dote], é claro
que o sistema resultante de pagamento do dote não terá impacto punitivo
mais extenso do que o sistema de preço da noiva que ele substitui, desde
que mantenha um caráter rotativo puramente compensatório. (Rajaraman,
1983, p. 278)
96 De acordo com o relato pessoal de uma amiga iugoslava, a violência doméstica é bastante
habitual na Iugoslávia. Mas não há movimento de mulheres que possa assumir essa questão. A
violência doméstica é considerada parte da cultura nacional, segundo essa amiga. Para obter
informações sobre o movimento antiprostitutas no Zimbábue e a reação das mulheres a ele, ver
Women of Zimbabwe Speak Out: Report of the Women’s Action Group [As mulheres do Zimbábue
tomam a palavra: relatório do Grupo de Ação das Mulheres], Workshop Harare, maio de 1984.
296 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Histórica e estruturalmente, o dote não tem nada a ver com uma compen-
sação pelo provimento de subsistência vitalícia à noiva. Ele é, efetivamente,
uma espécie de tributo da família que dá a noiva para a família que recebe a
noiva. O tributo é exigido por uma das partes em função da “honra” que o
homem e sua família concedem à mulher por fazer dela uma “esposa” e por
incorporá-la à sua família. Esse é o significado original do dote. Ele não pode
ser entendido a menos que seja estudado no contexto do sistema patriarcal
indiano, do sistema de castas e do capitalismo. O dote foi desenvolvido e le-
gitimado pelos brâmanes em suas teorias do casamento e da família patriarcal.
De acordo com o conceito de casamento bramânico, a filha é “dada” pelo
pai. E “aquele que dá sempre deve dar”. A relação entre as famílias que dão e
as que recebem a noiva nunca é igualitária. A família que recebe a noiva, ou
seja, a família do noivo, tem, por definição, um status superior. A relação entre
as duas famílias é sempre assimétrica e não recíproca (Kapadia, 1968). Já que
quem dá sempre deve dar, como acontece no caso do tributo, é estritamente
proibido que o lado que dá também se atreva a exigir alguma coisa. Por exem-
plo, no Rajastão, em algumas comunidades, a família da noiva não tem nem
mesmo permissão para visitar os sogros de sua filha e aceitar comida deles até
que ela “dê” um filho homem para sua família de procriação.
O dote, portanto, é uma manifestação evidente de uma relação estrutural-
mente hipergâmica, não recíproca, assimétrica e extrativa entre: a) as famílias
que dão e as que recebem as noivas, e b) entre homens e mulheres. Nessa relação
social, um lado exige (mulher, bens, dinheiro, serviços, prole) e o outro tem de
fornecer esses bens. A única coisa que o lado que fornece “recebe” é a “honra”
de ter “dado” uma filha para este ou aquele homem e para esta ou aquela família.
Os brâmanes tinham um interesse vital no estabelecimento dessa relação
tributária não recíproca porque essa casta de sacerdotes não vivia nem do
próprio trabalho, como as outras castas, nem da guerra, como os kshatriyas.
Eles viviam dos presentes que lhes eram dados pelos ricos e pelos pobres. Aos
doadores eram prometidos apenas ganhos espirituais por seus presentes. Essa é
justamente a relação entre homem e mulher segundo a concepção bramânica
patriarcal (Mies, 1980). A mulher dá ao marido seu corpo, seu trabalho, seus
filhos, além de dinheiro e outros bens, e “recebe” a honra de ser esposa. Se há
298 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
uma troca, é entre bens materiais e “espirituais”. Devido ao alto prestígio que
os brâmanes e outras castas importantes da Grande Tradição97 têm na Índia,
mesmo agora, as famílias que dão o dote são consideradas portadoras de status
social mais elevado do que as famílias que dão o preço da noiva. Esse status
foi ainda mais elevado devido à modernização e à ocidentalização. Como
Srinivas apontou em 1966, os processos de sanscritização98 andam lado a lado
com os processos de ocidentalização. Mas enquanto Srinivas descobriu que a
prosperidade econômica geralmente precedia o processo de sanscritização de
uma comunidade, a disseminação do dote entre as castas que pagam o preço
da noiva é bastante indicativa de uma tendência a usar o sanscrítico – ou seja,
os costumes patriarcais bramânicos – para conquistar a prosperidade econômica
e a ocidentalização (Srinivas, 1966).
Igualar o preço da noiva ao dote mistifica totalmente o caráter básico das
relações sociais que são expressas nessas transações. Enquanto o preço da noi-
va, que deriva de uma tradição originalmente matrilinear, constitui de fato
uma compensação pela contribuição das mulheres para a subsistência de sua
família, o sistema do dote é um tributo unilateral, no qual apenas as qualidades
do noivo contam. Assim, há valores diferenciados para o dote pago a médicos,
funcionários do Serviço Administrativo Indiano (IAS) e àqueles que obtive-
ram um doutorado nos Estados Unidos ou na Inglaterra, os quais figuram
entre os que atraem os dotes mais elevados.
Sob o sistema do preço da noiva, o valor da mulher como produtora de
subsistência ainda é reconhecido e valorizado positivamente. Sob o sistema
97 Os conceitos de “Grandes” e “Pequenas” tradições foram aplicados pela primeira vez à Índia
por McKim Mariott. A Grande Tradição é mais ou menos idêntica à cultura bramânica-sans-
crítica. É caracterizada pelo reconhecimento da santidade dos vedas, pelo vegetarianismo, pelo
ritual bramânico, pela crença nos conceitos teológicos bramânicos, pela crença no sistema de
castas e pela subordinação das mulheres às instituições e normas patriarcais (cf. McKim Ma-
riott, “Little Communities in an Indigenous Civilization”, em Village India, Studies in the Little
Community; The American Anthropologist, vol. 57, n. 3, 1955, p. 181).
cida como não consentimento sob ameaça de morte ou frente a lesão grave.
Isso significa que, a menos que uma mulher seja capaz de apresentar provas de
que quase foi assassinada, presume-se que ela consentiu em manter a relação
sexual. Essa definição foi modificada graças à pressão de protestos públicos
realizados pelas mulheres, mas a ideologia expressa na legislação sobre o es-
tupro na Índia, como na maioria dos outros países, permanece a mesma. Essa
ideologia consiste em uma série de mitos masculinos sobre mulheres e sexo,
os quais são encontrados na maioria das sociedades dominadas por homens,
e são as instituições e as relações sociais sobre as quais elas se apoiam que de-
terminam o comportamento das pessoas, e não as leis escritas. É útil observar
alguns dos mitos sobre o estupro apresentados por homens em todas as socie-
dades patriarcais, assim como na Índia.
1. O estupro não existe, já que nenhuma mulher pode ser estuprada contra
sua vontade. As mulheres gostam de ser estupradas.
2. As mulheres são masoquistas por natureza; elas não gostam de sexo, a me-
nos que sejam forçadas a ter relações sexuais. Elas querem ser espancadas
e subjugadas à força. (Nos refúgios para mulheres agredidas organizados
por feministas na Alemanha e em outras partes da Europa, muitas mulheres
afirmam que seus homens costumavam bater nelas e depois forçá-las a ter
relações sexuais com eles.)
3. Uma mulher estuprada provocou o homem com seu comportamento, ou
seja, ela se comportou como uma prostituta. (A maioria das mulheres em
todo o mundo precisa primeiro provar em juízo que não é prostituta. Elas
são consideradas a parte culpada, não o homem. O caso Rameeza Bee é
uma evidência inquestionável disso.)
4. É culpa da mulher se ela for estuprada. Por que ela usa roupas que pro-
vocam os homens ou por que anda sozinha depois de um certo horário
à noite? Por que ela anda sem proteção masculina etc.? (No entanto, os
casos na Índia, assim como em muitos outros lugares, provam que os
“protetores” (por exemplo, a polícia ou parentes do sexo masculino) são
os próprios estupradores.
5. O estupro ocorre apenas fora do casamento. Uma relação sexual dentro do
casamento é, de acordo com a definição da lei, baseada no consentimento
mútuo. (Todas nós sabemos que acontece tanta – ou até mais – violência
302 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
Muitos desses mitos culpam a mulher, ou seja, a vítima. Esses mitos tam-
bém dizem algo a respeito dos homens e sua relação com o sexo. Eles im-
plicam que um homem, se provocado, não pode resistir e precisa agredir a
mulher. Isso significa que seu desejo sexual – ou, como a maioria das pessoas
diz, seu instinto sexual – precisa de satisfação imediata. Como as mulheres são
vistas como basicamente masoquistas e mudas, seres subumanos, os homens
são vistos como agressivos, senão sádicos, por natureza. Tal natureza só pode
ser controlada por leis severas, por tabus sociais rígidos sobre certas categorias
de mulheres (mães, irmãs) e pelas próprias mulheres, de quem se espera que
se comportem de tal forma que o “instinto” sexual agressivo e sádico dos
homens não saia do controle.
Eu me pergunto se legisladores e acadêmicos do sexo masculino já pen-
saram na caricatura de ser humano que fizeram de si mesmos ao afirmarem
essas ideias. Mas não foram apenas esses mitos populares que influenciaram a
ideologia comum sobre mulheres, homens e sexo. O que é mais importante é
o fato de que a maioria desses mitos foi sustentada, cientificamente elaborada
MARI A MI ES 303
competição sexual masculina, entre pais e filhos, por um objeto sexual, a mãe.
Além disso, Freud concorda com a teoria de que a sexualidade masculina é
ativa, agressiva – e, em suas formas neuróticas, por vezes sádica. E a sexuali-
dade feminina é considerada passiva e até masoquista. As mulheres, de acordo
com Freud, só podem atingir sua sexualidade adulta plena aceitando seu papel
feminino “natural”, isto é, desistindo de sua sexualidade clitoriana “imatura”
e passando para a sexualidade vaginal, necessária para que o homem satisfaça
seu desejo sexual. É surpreendente que um estudioso sério como Freud tenha
consolidado a teoria do orgasmo vaginal como a forma “madura” da sexua-
lidade feminina, embora devesse saber que a vagina não contém terminações
nervosas e, portanto, não “produz” o orgasmo.100 Ele sabia que o clitóris é o
órgão sexual ativo da mulher e que pode produzir o orgasmo feminino sem
penetração vaginal. Mas em sua preocupação com a sexualidade masculina, ele
definiu as mulheres como homens incompletos ou castrados, o clitóris como
um pênis pequeno e a tentativa das mulheres de mudar seu papel subordinado
na sociedade como resultado da inveja do pênis.
Os acadêmicos fariam bem em ter uma visão muito crítica dessas teorias
antes de adotá-las como seu quadro teórico, porque elas implicam que tanto a
sexualidade masculina quanto a feminina são apenas biologicamente determi-
nadas. Essas teorias não explicam por que certas partes dos corpos masculino
e feminino receberam destaque em um determinado momento da história
e outras não. Foi preciso, por exemplo, que o movimento feminista surgisse
no Ocidente para que o clitóris fosse redescoberto como um órgão sexual
feminino independente. Em muitas partes da África, o clitóris é removido por
circuncisão quando as meninas têm entre nove e doze anos de idade. Mas as
mulheres na Europa e em outras partes do mundo também foram psicolo-
gicamente circuncidadas para que não conhecessem mais seus corpos e não
soubessem o que era um orgasmo.
Não se pode falar dos homens sem falar das mulheres. A ideologia do
estupro e da sexualidade masculina criticada acima teve suas características
complementares nos autoconceitos das mulheres em todo o mundo.
100 Embora a teoria de Freud sobre o orgasmo vaginal seja equivocada, tampouco é correta
a informação de que a vagina não possui terminações nervosas. A vagina possui um número
limitado de terminações nervosas, o que é considerado importante para ajudar as mulheres a
lidar com a dor do parto. [N. das T.]
MARI A MI ES 305
101 A Pativrata – esposa que venera seu marido e faz sacrifícios a ele como seu primeiro deus
– é o ideal de feminilidade nas escrituras hindus clássicas (cf. Mies, 1980).
306 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
logia foi inventada e é mantida pelo interesse dos homens que exercem poder
sobre as mulheres. Mas, o que é mais importante, essa ideologia é resultado de
milhares de anos de violência direta e estrutural contra as mulheres, praticada
pela primeira vez em algumas sociedades patriarcais, mas universalizada hoje
pelo capitalismo. As pessoas que são constante e diretamente oprimidas – e as
mulheres não têm autonomia sobre suas vidas nem mesmo hoje em dia – não
têm outra escolha psicológica a não ser interpretar o que se veem forçadas
a fazer como algo voluntário, se não quiserem perder todo o respeito por si
mesmas como seres humanos. Essa é a razão mais profunda pela qual as mu-
lheres também compartilham da ideologia de seus opressores e concordam
com a noção de que sua “honra”, a honra de sua família, é violada quando
são estupradas. Essa é a razão pela qual a mãe de Maya Tyagi foi capaz de dizer
que desejava que sua filha estivesse morta porque, como resultado do estupro,
ela havia diminuído a honra de sua família. Enquanto as próprias vítimas de
estupro, suas mães e irmãs acreditarem nesse conceito de “honra” e prezarem
mais por ele do que pela autonomia de uma mulher sobre seu corpo e sua
vida, elas serão, tacitamente, cúmplices dos estupradores. Por isso, é importante
que grupos de mulheres, como o Stree Sangarsh em Delhi, ataquem a noção
de que o estupro é uma questão que “desonra” as mulheres, que “humilha”
as mulheres. Esse grupo afirma que: “Para nós, o estupro é um ato de ódio e
desprezo – é uma negação de nós mesmas como mulheres, como seres huma-
nos –, é a afirmação final do poder masculino”.102
102 O seguinte panfleto foi criado pelo grupo feminista Stree Sangarsh em Delhi em 8 de
março de 1980:
Para o Cong-I, é óbvio, toda essa conversa sobre estupro inflou a questão de forma despropor-
cional – a história deles não registra os incidentes de Telengana, Bailadila, os estupros na greve
ferroviária de 1974... o incidente de Goonda...
Estupro não é apenas uma questão de honra
O vocabulário dos políticos indianos sempre foi limitado. Do BJP ao Cong-I, os termos-chave,
em seu som e fúria, são “honra e humilhação”. Dizem que a “desonra das mulheres” é a “de-
sonra do nosso país” – dizem que a “honra de nossas mulheres é a honra do nosso país”. No
entanto, é neste país que as mulheres são forçadas à prostituição, vendidas como mão de obra
escrava, mortas por dote e estupradas por seus maridos, cunhados e sogros. Recentemente, um
homem cometeu suicídio porque sua esposa havia sido estuprada. Há dois meses, uma mulher
se matou em vez de contar ao marido que havia sido estuprada. Famílias expulsaram irmãs,
filhas e noras por terem sido estupradas. Como alguém pode tirar sua honra se você mesma não
cometeu nenhum crime? É neste país que o próprio Estado permite que estupros em massa se-
jam praticados por sua polícia, pela Força Policial Central de Reserva [Central Reserve Police
Force – CRPF] e pela Força de Segurança das Fronteiras [Border Security Force – BSF]. Se
essas são ações honrosas, então nós cuspimos na honra.
Para nós, o estupro é um ato de ódio e desprezo – é uma negação de nós mesmas como mu-
lheres, como seres humanos – é a afirmação final do poder masculino.
Estupro não é um problema de lei e ordem
A oposição diz que a situação da lei e da ordem piorou sob o governo do Cong-I. O Cong-I
diz que “maus elementos” estão usando o estupro para “desmoralizar a polícia”. Ambos con-
cordam que é um problema político partidário. Ambos dão a entender que podem resolver o
problema do estupro policial.
No entanto, para as mulheres de Bailadila e de Santhal Parganas, para Rameeza Bee, Mathura
e Maya Tyagi, não se trata de uma questão de quem está no poder – o Cong-I ou o Janata.
Para elas, a imagem de um policial evoca medo, intimidação e violência sexual. A autoridade
que um homem adquire quando coloca um uniforme da polícia/da CRPF/da BSF e pega
seu lathi/arma permite que ele bata, torture e estupre. É uma autoridade dada pelo Estado, e as
armas de sua autoridade são a tortura, o incêndio criminoso e o estupro, na maioria dos casos.
É o defensor da lei e da ordem que comete estupro em casas da classe trabalhadora e aldeias
camponesas, lei e ordem correspondem a atrocidades policiais.
Por décadas, nossa história repetiu essa verdade sem cessar – não podemos combatê-la fingindo,
como os políticos fazem, que isso é mentira. Se hoje permitirmos que eles transformem nossa
verdade em sua mentira, perderemos os poucos ganhos pelos quais lutamos em 8 de março.
STREB SANGARSH
New Age Printing Press, Rani Jhansi Road, Nova Delhi-55.
308 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
A essa dimensão da relação dos homens dos países colonizados com os ho-
mens dos países colonizadores gostaria de chamar de “síndrome dos Homens
Grandes-homens pequenos”. Os homens pequenos imitam os Homens
Grandes. Aqueles que têm dinheiro podem comprar todas as coisas que os
Homens Grandes possuem, inclusive mulheres. Aqueles que não têm dinheiro
suficiente ainda têm os mesmos sonhos.
É nessa contradição que a indústria cinematográfica indiana prospera. Os
homens são retratados como heróis modernos, na moda e ocidentalizados,
enquanto as mulheres representam a Índia tradicional. E, embora os censores
não permitam cenas de beijos, sempre tem de haver uma cena de estupro
nesses filmes.
A manutenção dessa contradição não é apenas uma questão moral, mas
está intimamente relacionada com o modo específico de desenvolvimento
capitalista na Índia. O cinema e o sexo são indústrias em expansão no país.
O excedente gerado pela exploração da mão de obra rural, por exemplo, nas
áreas da Revolução Verde, não é investido produtivamente para dar trabalho
e melhores salários às pessoas; é, em vez disso, exportado para as cidades e
investido nos cinemas, as fábricas de sonhos e ilusões (Mies, 1982). Há uma
conexão evidente entre os interesses de lucro da classe capitalista e a propa-
gação da violência sexual e do estupro nos filmes. Os “homens pequenos”,
que não têm empregos e oportunidades e que não irão para o estrangeiro
como os heróis do cinema, e os homens ricos das áreas urbanas são o público
principal desses filmes e geram muito lucro para os Homens Grandes. Para
compensar todas as suas frustrações na vida real, os cineastas mostram a eles
uma cena de estupro para que possam se identificar com o agressor, de uma
maneira que não coloque em risco a dominação de classe. Como alvos de
suas tendências agressivas, oferecem as mulheres, e não os Homens Grandes.
No entanto, quando analisamos concretamente os relatórios sobre casos de
estupro na Índia, encontramos muito pouco ou nada sobre a necessidade
de satisfazer um desejo sexual irresistível. Se algum “impulso” aparece nessas
cenas, é o desejo de humilhar, estuprar, torturar, para mostrar que o homem
é o senhor. Verificamos que o estupro é, em muitos casos, usado como ins-
trumento de uma classe de homens para punir ou humilhar outra classe de
homens. Isso fica ainda mais manifesto em muitos casos de estupro que estão
ocorrendo em áreas rurais. Sempre que camponeses pobres e trabalhadores
310 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
rurais tentam obter seus direitos legais, como o salário mínimo ou a terra que
lhes foi prometida, “eles aprendem uma lição”, são “colocados em seu lugar”.
E isso envolve, invariavelmente, estuprar suas mulheres. Por quê? Qual é a
conexão entre o estupro de algumas mulheres e as reivindicações por terras
de seus homens? Isso mostra nitidamente a ligação, na mente das classes domi-
nantes, entre o controle sobre os meios de produção (terras) e o controle dos
trabalhadores sobre as mulheres. Se as pessoas exigem terras, são punidas com
o estupro das mulheres de sua classe. O estupro é, portanto, um instrumento
para a manutenção tanto das relações de classe quanto das relações existentes
entre homens e mulheres. A luta que ocorre é entre Homens Grandes e ho-
mens pequenos, e as mulheres são usadas nessa luta como objetos para provar
a masculinidade dos Homens Grandes, para demonstrar seu poder. Esse poder
não consiste apenas em dinheiro ou no controle sobre um maior número de
propriedades, mas é também decorrente do controle das armas e do uso da
violência direta. Isso se torna particularmente evidente no caso dos estupros
cometidos por policiais ou militares. O poder da polícia não está no dinheiro
nem na propriedade, mas a polícia tem armas. E o controle sobre as armas lhes
dá a chance de imitar os Homens Grandes. Nos últimos anos, a polícia indiana
tem sido tão frequentemente dirigida contra o povo, contra os fracos e para
a proteção dos economicamente fortes que, é claro, ela simplesmente toma
o que pode graças às suas armas. Não creio que se possa dizer que policiais
estupram porque desejam satisfação sexual. O estupro e a tortura sexual têm
sido usados com tanta frequência pela polícia que, muito provavelmente, os
motivos sádicos são mais fortes do que a necessidade de satisfazer seus desejos
sexuais. Os estupros policiais são talvez a manifestação mais clara do resultado
de um sistema patriarcal basicamente repressivo. Aqueles que deveriam manter
a lei e a ordem burguesa estão de fato acima de qualquer lei porque contro-
lam as armas. Pedir mais policiais, mesmo que sejam mulheres, para verificar
o aumento dos estupros é, portanto, contraproducente. Os estupros policiais
também mostram a interconexão entre o objetivo econômico de “enriquecer
rapidamente” por meio do uso da violência direta e da chantagem e a violên-
cia contra as mulheres.
MARI A MI ES 311
CONCLUSÃO
103 Esse almanaque, Women in Russia, foi o primeiro documento feminista que deu infor-
mações sobre a situação da relação homem-mulher na União Soviética. Ele, na na verdade,
era o grito de raiva, amargura e nojo das mulheres pela indiferença e brutalidade das relações
patriarcais (Women in Russia, 1980).
104 Autopublicação clandestina utilizada por dissidentes na União Soviética para driblar a
censura. [N. das T.]
312 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
106 Essa noção de que as mulheres são pacifistas “por natureza” se reflete em muitas publi-
cações do movimento das mulheres pela paz, inclusive nos países socialistas. Essa também é a
premissa básica do, de resto, excelente estudo de 1915 sobre “Militarismo versus Feminismo”,
mencionado anteriormente.
320 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
- A “questão da mulher faz parte da questão social” (ou seja, da questão das
relações de produção, de propriedade e de classe) e será resolvida no curso
da derrubada do capitalismo.
- As mulheres têm, portanto, de entrar na produção social (ou seja, no traba-
lho remunerado fora do domicílio) para poder ganhar uma base material
para sua independência econômica e emancipação.
- Como o capitalismo eliminou as diferenças entre homens e mulheres,
porque todos são transformados em trabalhadores assalariados sem proprie-
dade (Zetkin), não há mais uma base material para a opressão das mulheres
entre os proletários e, portanto, não há necessidade de um movimento
especial de mulheres na classe trabalhadora.
- As mulheres da classe trabalhadora devem, portanto, participar da luta geral
contra o inimigo da classe, juntamente com seus companheiros de classe,
e, assim, criar a pré-condição para sua emancipação.
- As mulheres, como mulheres, podem ser oprimidas ou subordinadas, mas
não são exploradas. Se elas são trabalhadoras assalariadas, são exploradas
MARI A MI ES 323
UNIÃO SOVIÉTICA
CHINA
pequenas. Quando as mulheres não contavam com tal ajuda, elas tinham de
reduzir o seu trabalho assalariado e, portanto, aceitar postos de trabalho mais
baixos. Em algumas áreas as mulheres conquistaram apenas metade dos postos
de trabalho dos homens (Davin, 1976, p. 149). O cuidado das crianças e outras
tarefas domésticas ainda não haviam sido amplamente coletivizados.
Em 1955, sob a influência de Liu Shaogi, houve um breve período de
glorificação renovada do trabalho doméstico como o verdadeiro domínio
das mulheres. Durante aquele ano, exigiu-se que as mulheres fizessem mais
trabalhos semi-remunerados ou não remunerados em “organizações para pes-
soas dependentes” nas cidades, a fim de abrir espaço para os homens no setor
socializado em expansão, particularmente a indústria (Davin, 1976, p. 66).
Essa política foi alterada novamente com o Grande Salto Adiante e o esta-
belecimento de comunas em 1958. A campanha tinha como objetivo integrar
todos os membros da família à produção social. Isso significava que os serviços
domésticos também tinham de ser socializados até certo ponto para liberar as
mulheres para o trabalho no campo. Foram criadas creches, jardins de infância,
refeitórios e moinhos de grãos comunitários etc. Segundo uma estimativa de
1959, foram criadas 4.980.000 creches em áreas rurais e 3.600.000 refeitórios
públicos (Croll, 1979, p. 25). Mas grande parte dessa coletivização foi feita
com base na mesma divisão sexual do trabalho de antes: os homens em geral
iam para os setores coletivizados ou estatais da indústria e da agricultura com
maior capital intensivo, enquanto as mulheres tinham de construir o chamado
setor de risco em serviços coletivizados tanto na educação e na saúde como
na produção de pequena escala de bens básicos de consumo, em fábricas de
rua e oficinas. Esse setor é caracterizado por um baixo nível de desenvolvi-
mento tecnológico, baixo investimento de capital, produção de subsistência de
bens de consumo e baixa renda. Em 1958, 83% dos trabalhadores das unidades
de produção estatais eram homens, enquanto nas fábricas de rua, entre 1959
e 1960, 85% dos trabalhadores eram mulheres (Weinbaum, 1976). Assim, a
divisão sexual do trabalho coincidiu com uma divisão setorial da economia
na conhecida estrutura de um setor formal e outro informal, onde as mulheres
constituíam o grosso da força de trabalho.
Os esforços para a coletivização dos serviços domésticos, no entanto, não
duraram muito tempo. Após 1960, a maioria das creches rurais foi fechada por
falta de pessoal qualificado e porque as avós “privadas” eram mais baratas. Os
330 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
DO POVO À POPULAÇÃO
nal para o fim do século (Croll, 1983, p. 89). Isso significa que as famílias não
podem ter mais de um filho.
As sanções econômicas usadas contra famílias que não realizam por si
mesmas o dever patriótico de aderir à regra do filho único incluem uma “co-
brança por filho excedente” como compensação econômica ao Estado pelo
custo que mais um filho tem para a comunidade. A renda total desses casais é
reduzida em 5% a 10% por um período de 10 a 16 anos após o nascimento do
segundo filho. Às vezes a taxa por um terceiro ou quarto filho é de 15% a 20%
da renda do casal. “O salário dos casais pode ser diretamente descontado por
seus empregadores ou, nas áreas rurais, uma parcela equivalente de sua renda
pode ser retida pela unidade de produção” (Croll, 1983, p. 89). A mãe com
mais de um filho é excluída dos serviços de assistência gratuita à maternidade.
O casal deve arcar com todas as despesas de assistência médica e educação do
filho extra. A criança não tem prioridade de admissão em jardins de infância,
escolas ou instituições médicas. No campo, a porção de grãos para a criança
“excedente” é reduzida ou fica disponível a um preço mais alto. Nas cidades,
as famílias com mais de um filho não adquirem espaço adicional para morar;
nas áreas rurais, elas não recebem terras adicionais para plantio privado nem o
direito aos grãos coletivos em tempos de enchentes e secas. Os membros das
comunas são punidos com a perda de três a cinco dias de trabalho por mês. Os
pais passam quatro anos sem ser promovidos, podendo ser rebaixados ou ter
seus salários reduzidos (Andors, 1981, p. 52; Croll, 1983, p. 90). Por outro lado,
as famílias com um único filho obtêm recompensas e privilégios econômicos.
Isso inclui um subsídio em dinheiro para saúde ou auxílio social, pago mensal
ou anualmente ao casal até a criança completar 14 anos. Nas áreas rurais, os
pais têm direito a lotes privados adicionais da comuna; nas cidades, a espaço
habitacional extra. O filho único tem direito a educação gratuita, serviço de
saúde gratuito e recebe prioridade na admissão em creches, escolas e hospitais.
Ele também recebe uma porção de grãos como a dos adultos. Os pais dessa
criança recebem um subsídio adicional à aposentadoria na velhice (Croll,
1983, p. 89).
O Estado está utilizando seu maquinário organizacional instalado nas cida-
des e no campo durante o programa de coletivização para implementar essa
política de controle populacional, formulada por comitês de planejamento
familiar que atuam sob o controle dos comitês do partido. Quase não há mu-
334 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
As famílias com um único filho recebem mais terras privadas e têm redu-
zida sua cota de produção que deve ser entregue ao coletivo. Porém, maior
quantidade de terras também exige mais mão de obra familiar, que, por outro
lado, está sendo restringida por essa política. As famílias com um único filho
que trabalham no campo só podem resolver essa contradição básica traba-
108 Profissionais de saúde sem formação médica superior. Recrutados pelo governo chinês,
recebiam treinamento de curta duração para atuar na área de saúde básica, especialmente no
campo e em regiões a que não chegavam profissionais da medicina. [N. das T.]
MARI A MI ES 335
lhando mais e durante mais horas. Como não ocorreram mudanças na divisão
sexual do trabalho, isso só pode significar que as mulheres que cumprem as
políticas do governo terão de trabalhar mais nas terras privadas. Essa política
contraditória tem suas raízes na nova concepção das mulheres, principalmente
como reprodutoras e consumidoras, e dos filhos, principalmente como fatores
de custo. No entanto, para as famílias camponesas, seja onde for, os filhos e
as mulheres são os principais produtores, e não apenas consumidores, como
poderia ser o caso das classes médias urbanas e dos trabalhadores.
Na esteira das medidas estatais de controle populacional, surgiu outro con-
flito que, em última análise, é capaz de desfazer qualquer progresso emanci-
patório realizado pelas mulheres na China. A família de filho único constitui
uma ameaça ao antigo sistema de seguridade social dos idosos nas áreas rurais.
Como os filhos têm o dever de cuidar dos pais quando estes envelhecem, as
mulheres no campo ainda preferem ter três ou mais filhos (Croll, 1983, p.
97-98), e sua preferência costuma ser por meninos, já que os pais idosos cos-
tumam morar com os filhos do sexo masculino.
Isso é um resultado direto dos padrões de casamento e parentesco patri-
linear e patrilocal que permanecem inalterados. Ainda que a reforma da lei
do casamento tenha previsto uma série de mudanças para as mulheres, como
o processo facilitado de divórcio e a livre escolha do parceiro, ela deixou in-
tacta a estrutura tradicional patrilocal e patrilinear das famílias. Tal estrutura
supõe que a mulher se mude para a residência e para o povoado do marido
no momento do casamento, perdendo a base que tinha na aldeia dos seus pais
e sendo incorporada à linhagem familiar do marido, e gere filhos que cuidem
dos pais idosos e deem continuidade à linhagem masculina de parentesco.
Assim, mesmo após a coletivização da terra, os homens dos povoados per-
maneceram dentro de seus grupos de parentesco e relações familiares, en-
quanto as mulheres foram todas inseridas como estranhas. Lanny Thompson
mostrou que essas estruturas patriarcais eram usadas durante o impulso socia-
lizador, até mesmo deliberadamente, para acabar com a resistência dos campo-
neses à coletivização. A brigada era equivalente a um povoado; uma unidade
de produção, a um grupo de parentesco patrilinear:
VIETNÃ
A mobilização das mulheres para a luta pela libertação nacional foi cru-
cial. Tanto teórica quanto estrategicamente, o Partido Comunista seguiu os
princípios estabelecidos sobre a questão da mulher por Marx, Engels e Lênin.
Isso significa, sobretudo, que a entrada das mulheres na “produção social” era
vista como pré-condição para sua libertação. Mas essa suposição marxista-
-leninista clássica de que as mulheres em sociedades pré-revolucionárias não
estão envolvidas na produção social pública simplesmente não se baseia em
uma análise concreta da realidade vietnamita. Porque, como diz Christine
White (1980, p. 7), as massas de mulheres camponesas no Vietnã não eram
enclausuradas ou limitadas a trabalhar em casa, mas trabalhavam nos campos,
no cultivo de arroz, viajavam por todo o país como comerciantes, de modo
que desempenhavam um papel crucial na produção social.109
Os líderes do Partido Comunista entenderam que era absolutamente ne-
cessário mobilizar as mulheres para a continuidade dessa produção social (e não
para a reentrada nela) se quisessem travar uma guerra de libertação nacional.
O desempenho heroico das mulheres durante as guerras anticoloniais contra o
109 Christine White cita uma declaração de Le Duan, secretário-geral do Partido Comunista
Vietnamita, na qual ele diz que as mulheres sob o regime feudal eram enclausuradas e com-
pletamente isoladas, que por “milhares de anos as atividades das mulheres foram confinadas ao
círculo estreito de sua família”, que as mulheres “devem ter uma posição de classe clara, parti-
cipar de atividades públicas e pensar mais coletivamente (...)”. Sobre essa declaração, Christine
White comenta: “Essa afirmação simplesmente não é verdadeira; somente nas classes altas a
teoria de Confúcio de que ‘os homens vivem fora e as mulheres vivem dentro da família’ se
aplicava. As mulheres camponesas vietnamitas comuns, a esmagadora maioria da população,
não estavam nem enclausuradas nem limitadas a trabalhar em casa. Não só trabalhavam nos
campos, fosse para suas próprias famílias ou como trabalhadoras contratadas, mas muitas vezes
trabalhavam em grupos transplantando ou colhendo arroz. As mulheres eram comerciantes,
viajavam pelo país e trabalhavam em grupos” (White, 1980, p. 6-7).
MARI A MI ES 339
110 Essa situação se assemelha à das cooperativas na Venezuela, descrita por Claudia von Wer-
lhof, onde apenas o chefe de família masculino poderia ser membro de uma cooperativa e
assinar contratos, enquanto sua esposa e filhos tinham de trabalhar sem remuneração quando
ele não podia trabalhar (cf. Claudia von Werlhof, “New Agricultural Co-operatives on the
Basis of Sexual Polarization Induced by the State: The Model of ‘Cumaripa’,Venezuela” [No-
vas cooperativas agrícolas baseadas na polarização sexual induzida pelo Estado: o modelo de
cooperativa de “Cumarip”, Venezuela], Boletín de Estudios Latino-americanos y del Caribe, n. 35,
Amsterdã, dezembro de 1983).
MARI A MI ES 343
ter uma “economia familiar” (Werner, 1984, p. 50). Isso revela que o conceito
de “economia familiar” está baseado na conhecida divisão social, sexual e
capitalista do trabalho entre a esfera privada ou familiar “não produtiva” e a
esfera pública, socializada, industrializada e “produtiva”. Como essas divisões
não foram abolidas nos países socialistas, a “economia familiar” ou, como a
denomino, a produção de subsistência, subsidia o setor moderno socializado.
Também não surpreende, portanto, que o sistema de contratação seja in-
terpretado como um meio de usar o “tempo de lazer” dos camponeses, par-
ticularmente das camponesas, de forma produtiva (Werner, 1984, p. 50).111
Como o setor formal e coletivizado não é capaz de gerar emprego sufi-
ciente ao longo do ano, a economia familiar “subsidiária” também contribui
para aliviar a pressão excessiva no mercado de trabalho. São normalmente os
homens que recebem emprego no setor socializado, enquanto as mulheres
são habitualmente chamadas para realizar as tarefas na “economia familiar
subsidiária”. A “economia familiar” constitui de 40% a 60% da renda total
dos camponeses. Segundo uma estimativa, 90% das tarefas subcontratadas na
agricultura são realizadas por mulheres. Elas também executam a maior parte
do trabalho na economia familiar privada. Isso significa que, junto com as
tarefas já desempenhadas no setor coletivo, as mulheres também têm de tra-
balhar cada vez mais e por mais horas e dispõem de menos tempo para lazer,
educação ou atividade política, dado que elas trabalham como “donas de casa”
e não como trabalhadoras com jornada de trabalho fixa e com um salário.
A carga horária de trabalho das mulheres também é aumentada pelo fato de
não haver muitos serviços socializados de cuidado infantil. A mudança para o
fortalecimento da família como unidade de produção significa não apenas um
duplo, mas um triplo fardo para as mulheres: trabalho doméstico, incluindo
cuidados infantis, produção de subsistência para sua própria família e trabalho
“subsidiário” ou contratual para o Estado. Esse trabalho donadecasificado é
particularmente barato para o Estado, pois não precisa ser tão visível e equi-
tativamente remunerado quanto o trabalho das mulheres em coletivizações,
onde elas recebem salários individuais em dinheiro ou em bens e serviços.
Talvez seja esse o segredo por trás do sucesso dessa nova política.
111 “Argumentava-se que os camponeses agora podiam usar o trabalho adicional em sua van-
tagem. Ou seja, as horas de lazer gastas para a cooperativa seriam remuneradas – uma vez que
a cota é atingida, o excedente pertence ao produtor” (Werner, 1984, p. 50).
344 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
112 O Comecon foi uma organização existente entre 1949 e 1991 e que tinha como objeti-
vo integrar economicamente nações do Leste europeu pertencentes ao bloco soviético. Mais
tarde, também se juntaram a ele países como Mongólia (1962), Cuba (1972) e Vietnã (1978).
[N. das T.]
MARI A MI ES 345
Por sua própria natureza, uma luta de libertação nacional é a luta de uma
frente ampla de pessoas que vivem em um determinado território, têm uma
certa história e cultura comuns, uma certa comunidade de interesses e se en-
tendem como uma nação. O inimigo é geralmente uma potência externa im-
perialista ou colonial e/ou seus representantes dentro do país. Às vezes, como
é o caso de muitos países africanos, o conceito de “nação” não existia antes da
luta de libertação, e as entidades políticas e econômicas criadas artificialmente
pelas potências coloniais atravessam e desfazem fronteiras tribais e territoriais
historicamente desenvolvidas. Nesses casos, pode-se dizer que a própria luta
por libertação nacional criou algo como uma identidade nacional que até
então não existia. Para que a luta de um povo inteiro ou nação contra um
opressor colonial militar e economicamente superior seja bem sucedida, é
necessário que todos os setores desse povo sejam mobilizados para essa luta.
Ou seja, é preciso que se trate de uma revolta realmente popular e não de uma
guerra travada por um exército profissional. A contribuição das mulheres para
esse tipo de guerra popular é importante por duas razões principais: 1) Como
produtoras da próxima geração, elas são as garantidoras do futuro da nação.
Isso é particularmente importante nas guerras de libertação que muitas vezes
exigem sacrifícios pesados dos vivos em prol de um futuro melhor e mais fe-
liz. 2) Como os homens adultos estão no front de batalha, seja como soldados
regulares ou nas forças guerrilheiras, as mulheres no “front doméstico” têm de
manter a economia. Além do trabalho doméstico não remunerado, elas têm de
manter a produção agrícola e industrial funcionando e, assim, atender as ne-
cessidades das pessoas em casa e dos homens na guerra. Sem a responsabilidade
das mulheres pela continuação da economia, nenhuma guerra de libertação
bem-sucedida pode ser travada.
Além disso, em muitos casos, as mulheres também se juntam ao exército ou
às forças guerrilheiras diretamente como combatentes. Isso é particularmente
necessário no caso de lutas que duram muito tempo e quando o número de
homens não é suficiente. As mulheres também realizam uma série de serviços
para os combatentes pela libertação: trabalham como enfermeiras, mensagei-
ras, profissionais de saúde, administradoras etc.
348 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
113 Cf. Maria Mies e Rhoda Reddock (ed.), National Liberation and Women’s Liberation [Liber-
tação nacional e libertação das mulheres]. Haia: Institute of Social Studies, 1982, p. 123-124.
350 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
114 Em relação às atitudes dos governos socialistas de separar as organizações das mulheres,
Elisabeth Croll observa: “Declarações do governo sobre o estabelecimento de organizações
femininas separadas em todas as quatro sociedades sugeriram que, embora a presença delas seja
uma questão de conveniência revolucionária prática, elas deveriam eventualmente se tornar
desnecessárias em qualquer sociedade socialista em que os níveis de consciência são tais que as
políticas que afetam as mulheres não são uma parte separada, mas integrante das estratégias de
desenvolvimento” (Croll, 1979, p. 13).
MARI A MI ES 353
assalariado não seria possível (ver capítulo 1). Deixar essas duas áreas principais
da extração de “super-excedente” fora da análise levou a um beco sem saída
não apenas para a classe trabalhadora da Europa, mas também para os povos
que passaram por lutas de libertação.
Isso fica evidente se olharmos para a história da social-democracia alemã, o
primeiro partido socialista europeu que adotou o marxismo ou o socialismo
científico como base teórica. Com exceção dos radicais agrupados em torno
de Rosa Luxemburgo, os social-democratas alemães não eram contra a expan-
são colonial. As tentativas de obter controle sobre as colônias eram criticadas
apenas quando acompanhadas de violência e brutalidade desumana.
No órgão do Partido, Der Vorwärts, esse contrato era até mesmo justificado
pelo fundamento de que a “abertura da China” era uma necessidade histórica.
Seguindo a análise de Marx, os social-democratas alemães esperavam a
derrocada do capitalismo e a vitória do socialismo – que eles interpreta-
vam principalmente como o Estado assumindo o controle dos meios de
produção – graças a um rápido desenvolvimento das forças produtivas, em
particular, da tecnologia e da indústria nos países industrializados “mais avan-
çados”. Os social-democratas consideravam, assim, a expansão colonial, tal
como um deles (David) expressou, como uma “parte integrante da missão
cultural universal do socialismo”, porque iria promover o crescimento do
capital nas metrópoles e remover os obstáculos ao aumento da produção nos
“países bárbaros” (Mandelbaum, 1974, p. 19). Nesse sentido, os social-demo-
cratas compartilhavam do chauvinismo cultural da classe burguesa alemã.
Eles sempre se referiam aos países industriais capitalistas como Kulturnationen
(nações civilizadas), em contraste com as colônias, que eram mencionadas
como “ferozes” ou “selvagens” Naturvolker (povos nativos ou naturais). O
social-democrata Quessel argumentava inclusive que as políticas coloniais
MARI A MI ES 357
116 Isso já foi reconhecido por Kim Chow, um delegado coreano no Primeiro Congresso
dos Trabalhadores do Extremo Oriente realizado em 1922 em Moscou. Esse delegado viu um
paralelo entre as massas indianas, irlandesas e coreanas oprimidas pelo imperialismo britânico
e japonês. Ele também viu que as massas trabalhadoras britânicas e japonesas lucravam com
essa exploração. Ele disse: “(...) as massas trabalhadoras na Inglaterra foram criadas com a ideia
de que suas próprias condições podem ser melhoradas, mas as massas trabalhadoras da Índia e
de outras colônias devem realmente ser usadas para efetuar esta melhoria (...) Agora, a mesma
coisa é verdadeira para as massas trabalhadoras japonesas em geral, se não mais (...) A classe tra-
balhadora japonesa é um dos opressores das massas trabalhadoras coreanas. Embora trabalhem
lado a lado, ela olha para os seus irmãos operários coreanos com desprezo e também ajuda o
governo imperialista e capitalista japonês a oprimi-los” (Primeiro Congresso dos Trabalhadores
do Extremo Oriente. Relatórios. Moscou, 1922).
MARI A MI ES 359
todos os setores do povo para a luta anticolonial. Fizeram isso com a promessa
de igualdade, do fim da exploração e da opressão e também de uma visão
socialista da sociedade. Mas, em suas políticas econômicas, muitas vezes o que
querem é seguir o modelo de crescimento, induzindo um rápido desenvolvi-
mento das forças produtivas.
De acordo com os princípios do socialismo científico, só isso colocaria fim
à pobreza e traria melhores padrões de vida e a abundância de mercadorias
e bens que, sob as relações capitalistas, são produzidos por meio da explora-
ção dos trabalhadores.Vimos, no entanto, que esse “progresso” das sociedades
capitalistas não se baseia apenas na exploração dos trabalhadores assalariados
“livres”, mas também na exploração de trabalhadores não assalariados, nor-
malmente as donas de casa, assim como na pilhagem e na exploração de povos
coloniais e subdesenvolvidos. Se os governos das nações libertadas quiserem
seguir esse modelo, não podem fazê-lo, em última análise, sem exploração ou
tratando todas as pessoas como iguais no processo de acumulação. Na ausência
de colônias externas, eles viram uma saída na divisão da economia em um se-
tor estatal moderno coletivizado e um setor privado “subsidiário”. Essa divisão
social, no entanto, é quase congruente com a clássica divisão sexual capitalista
do trabalho: os homens, definidos como trabalhadores assalariados e “chefes
de família”, dominam o setor prioritário socializado e as mulheres, definidas
como donas de casa, são relegadas ao setor subordinado, familiar, “subsidiário”.
Essa divisão aumentou de fato a produção, melhorou os padrões de vida dos
produtores, incluindo as mulheres rurais, e acelerou o processo de acumulação.
Mas também levou a um aumento da carga de trabalho para as mulheres, à in-
tensificação da descoletivização e da privatização de seus espaços, à sua retira-
da ou expulsão dos processos de tomada de decisão política, que são cada vez
mais dominados pelos homens, particularmente por homens da classe estatal.
Essa divisão também resultou no fato de que o objetivo da libertação das mu-
lheres é tratado como uma questão de superestrutura, de ideologia e cultura,
como é o caso da maioria dos países capitalistas, e não como um problema
que está na base das estruturas econômicas. Mas essa divisão é, em si mesma,
contraditória. Enquanto no nível da superestrutura se mantém ainda a retórica
revolucionária sobre a emancipação das mulheres no socialismo, marcadamen-
te nas comemorações do 8 de março, no nível da base político-econômica sua
situação está cada vez mais próxima à da das mulheres que se encontram sob
360 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
118 Essa afirmação pode ser lida como uma analogia do que Marx escreveu sobre o “trabalha-
dor produtivo”, o proletário clássico. Em O capital, ele diz: “ser trabalhador produtivo [sob o
capitalismo] não é, portanto, sorte, mas azar” (O capital, vol. I, 1974, p. 532 [ed. bras. O capital,
vol. I, tomo II, 1996, p. 138]).
MARI A MI ES 367
119 Dallas foi uma série de televisão estadunidense exibida entre 1978 e 1991. Com quatorze
temporadas, o enredo gira em torno de uma rica família proprietária de uma empresa petro-
leira no Texas. [N. das T.]
370 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
É mais fácil saber o que não se deseja do que o que se deseja. Formular
uma perspectiva feminista para uma sociedade futura é uma tarefa
formidável que não pode ser realizada por um único indivíduo. Além disso,
não existe um centro ideológico ou teórico no movimento de mulheres
que possa assumir a tarefa de formular uma teoria, uma estratégia e uma
tática consistentes. O movimento feminista internacional é um movimento
verdadeiramente anárquico no qual qualquer mulher que se sinta compro-
metida e tenha algo a dizer pode contribuir para a formulação da visão da
sociedade futura. Há quem considere isso uma fraqueza do movimento, há
quem veja aí a sua força. Mas, seja qual for a posição que alguém possa to-
mar, o fato é que o movimento feminista não funciona de outra forma. Isso
vale ao menos para todos os grupos, organizações e mulheres individuais
que não subordinam a questão da mulher a nenhuma outra questão supos-
tamente mais geral, que, em outras palavras, desejam manter a autonomia
do movimento.
MARI A MI ES 371
para níveis cada vez mais elevados e complexos do ser. Essa ideia, é claro, está
materialmente enraizada nas experiências históricas de conquista dos povos
nômades patriarcais, principalmente os judeus e os arianos. As teologias ju-
daica e cristã deram a necessária sanção religiosa à ideia do direito de do-
minar e subordinar a natureza e à expansão ilimitada. A revolução científica
na Europa, nos séculos XV e XVI, apenas secularizou essa ideia religiosa (cf.
Merchant, 1983).
Uma vez que a finitude dos seres humanos e do planeta não poderia ser
pensada ou especulada e que os princípios de igualdade e liberdade foram
formulados com uma pretensão de aplicabilidade universal, o retrocesso do
“outro lado”, empurrado para o escuro, não poderia ser simplesmente inter-
pretado como ordenado por Deus. Foi interpretado como um “atraso”, como
um “estágio inferior” da evolução. Na verdade, a ideia de uma mudança evo-
lutiva tornou-se a peça central na ideia de progresso dos povos “avançados”
do Ocidente. Eles se tornaram o símbolo do progresso para todos os povos
“atrasados”, da mesma forma que os homens se tornaram o símbolo do pro-
gresso para as mulheres.
Vimos, no entanto, que o progresso evolutivo para os colonizados, ou seja,
sua ascensão ao nível dos opressores, é uma impossibilidade lógica dentro de
um mundo finito. No entanto, a ilusão de que eles acabarão alcançando isso
é sustentada pelo lado “avançado” e “sempre em progresso”. Esse progresso,
porém, é mais do que nunca baseado na destruição progressiva dos funda-
mentos da vida, da natureza, da natureza humana, das relações humanas e,
particularmente, das mulheres. Na verdade, é uma produção da morte. Isso é
particularmente verdadeiro para as últimas invenções tecnológicas do homem
branco: a energia atômica, a microeletrônica e, acima de tudo, a engenharia
genética, a biotecnologia e a pesquisa espacial. Nenhuma dessas assim chama-
das revoluções tecnológicas será capaz de resolver qualquer um dos grandes
problemas sociais baseados na exploração. Em vez disso, contribuirão para a
destruição da natureza e da essência humana.
Nos últimos anos, tanto feministas quanto muitas outras pessoas come-
çaram a articular sua rejeição radical do paradigma do Homem Branco ou
homem-caçador (Daly, 1978; Fergusson, 1980; Merchant, 1983; Griffin, 1980;
Singh, 1976; Capra, 1982). Em seu posicionamento, rejeitam particularmente
as divisões dualistas dentro desse modelo, e procuram constituir uma aborda-
MARI A MI ES 373
gem holística, primeiro para nossos corpos, depois para a realidade em geral.
Muitas feministas, em sua busca por um novo paradigma holístico, limitam sua
análise e sua nova perspectiva aos fenômenos “culturais” ou ideológicos ou à
esfera da visão de mundo ou religião. Por mais importante que isso seja, não é
suficiente para chegar a um conceito realista e politicamente concreto de uma
nova sociedade, um conceito que inclua a vida material da maioria das pessoas
no mundo. Para elaborá-lo, é preciso não apenas rejeitar as divisões coloniais
no reino das ideias, mas também aquelas que existem na realidade material,
que moldam nossa vida cotidiana e o mundo em geral.
Assim, uma perspectiva feminista deve começar com alguns princípios
básicos, que podem orientar a ação política em todos os níveis. Os seguintes
me parecem os mais fundamentais:
120 Considero que esse individualismo, que em última análise se baseia na “liberdade” dos pro-
prietários privados e em seu poder de compra, é a mais séria debilidade do feminismo ociden-
tal. Em vez de buscar uma solução social para alguns dos problemas que afligem as mulheres, o
mercado e a tecnologia oferecem-lhes uma solução individual em forma de mercadoria, pelo
menos para quem tem dinheiro. Assim, as mulheres que podem comprar um carro estão muito
menos expostas à violência masculina nas ruas do que as que não podem.
MARI A MI ES 375
121 O capital, vol. III, tomo II. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1996, p. 273. [N. das T.]
122 Grundrisse. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 119. [N.
das T.]
MARI A MI ES 377
(...) assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um
círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual
não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico, e terá de conti-
nuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na
sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo
de atividade, mas pode se formar [ausbilden] em todos os ramos que prefe-
rir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna
possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã,
pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me
aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico. (Marx
& Engels, vol.V, 1976, p. 47)124
Marx e Engels esperavam que a realização dessa visão utópica de uma so-
ciedade comunista (da qual, aliás, as mulheres parecem estar ausentes) nascesse
do desenvolvimento das forças produtivas, da abolição da propriedade privada
e da socialização da produção. Nas obras posteriores de Marx, no entanto, a
imagem idílica de como o homem comunista passa seus dias torna-se um
pouco confusa.
Como Alfred Schmidt observa, de acordo com Marx, o processo de subs-
tituição do trabalho humano por máquinas e autômatos seria relativamente
independente da organização social. Sob o comunismo, esse processo seria
mais acelerado do que desacelerado ou interrompido:
de. As crianças podem dar-lhe muito trabalho e problemas, mas esse trabalho
nunca está totalmente alienado ou morto. Mesmo quando as crianças acabam
por ser uma decepção para a mãe, quando eventualmente a deixam ou sentem
desprezo por ela – como na verdade muitos fazem em nossa sociedade –, a
dor que ela sente por tudo isso ainda é mais humana do que a indiferença
fria do trabalhador industrial ou do engenheiro face a seus produtos, isto é, as
mercadorias que eles produzem e consomem.
A mesma unidade do trabalho como fardo e prazer pode ser encontrada
entre os camponeses cuja produção ainda não está totalmente subsumida à pro-
dução de mercadorias e às compulsões do mercado. Os camponeses que têm de
trabalhar do nascer ao pôr do sol durante a época de colheita, por exemplo, sen-
tem, mais do que outro trabalhador, o fardo do trabalho em seus corpos e em
seus músculos. Mas, apesar das dificuldades desse trabalho, ele nunca é apenas
“uma maldição”. Lembro-me dos tempos de feitura do feno e colheita em nos-
sa pequena fazenda de subsistência onde passei minha infância como tempos de
extrema intensidade de trabalho para todos, mãe, filhos, pai, e como tempos de
grande excitação, prazer, interação social. Encontrei o mesmo fenômeno entre
camponesas pobres e trabalhadoras agrícolas da Índia durante a temporada de
transplante de arroz. Embora nesse caso o trabalho devesse ser feito para um
senhorio explorador, a combinação de trabalho e prazer, de trabalho e lazer
ainda existia. Além disso, essa época de intenso trabalho era também a época
da mais pronunciada atividade cultural das mulheres. Durante os processos de
trabalho coletivos no campo, elas cantavam um número infinito de canções que
as ajudavam a suportar o fardo do trabalho com mais facilidade. E, após a refei-
ção da noite, elas dançavam e cantavam juntas até tarde (Mies, 1984). Qualquer
pessoa que tenha tido a oportunidade de observar o processo de trabalho das
pessoas envolvidas na produção de subsistência, não orientada para o mercado,
terá encontrado essa interação entre o trabalho como necessidade e fardo e o
trabalho como uma fonte básica de prazer e expressão pessoal.126
O mesmo vale para o trabalho do artesão e outros trabalhos manuais en-
volvidos na produção artesanal, desde que ainda não estejam totalmente sub-
metidos às compulsões do mercado.
126 Percebi a mesma unidade de trabalho como prazer e como fardo entre os povos tribais em
Andhra Pradesh, na Índia.
382 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
127 Li que, na Inglaterra, uma nova categoria de “viúvas” foi identificada pelas sociólogas.
Depois da “viúva do futebol”, agora é a “viúva do computador” que perde o marido, dessa vez
para a máquina.
128 Essa parece ser uma espécie de lei não escrita do patriarcado capitalista. Ela se aplica às
mulheres, à natureza e às colônias. O patriarcado capitalista e a ciência devem primeiro destruir
a mulher, a natureza ou outros povos como sujeitos autônomos. Eles então são adorados e pro-
jetados como objetivo de todos os desejos masculinos. Essa é a base de todo amor romântico,
da romantização da natureza e da romantização dos povos exóticos ou “nativos”.
384 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
129 Em todas as discussões sobre uma economia alternativa, é necessário enfatizar que o con-
ceito de “economia autárquica” não implica total autossuficiência. Uma economia ou socieda-
de totalmente autossuficiente é uma abstração, mas uma economia amplamente autossuficiente
é possível.
388 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
A maioria dos ecologistas e das pessoas que buscam uma alternativa ra-
dical para a sociedade destrutiva em que vivemos concordaria com as ideias
acima. O mesmo aconteceria com muitas feministas. Mas descobririam que
a breve descrição de uma economia alternativa feita por Caldwell é também
omissa quanto à divisão do trabalho não recíproca e exploradora entre os
sexos. A perspectiva de uma economia relativamente autárquica baseada em
relações não exploratórias com o meio ambiente, com outros povos, com as
pessoas da mesma região, organizada em pequenas unidades descentralizadas
de produção e consumo, para as feministas, não é ampla o suficiente se não
começar com uma mudança radical da divisão sexual do trabalho. Na verdade,
na maioria dos escritos ecológicos, a “questão da mulher” não é mencionada
de forma alguma ou é simplesmente adicionada a uma longa lista de outras
questões mais urgentes e mais “gerais”. Já disse, no primeiro capítulo, que esse
“acréscimo” não será suficiente se quisermos mudar a desumana relação atual
homem-mulher. A concepção de uma economia alternativa é, portanto, não
apenas incompleta sem o objetivo de transcender a divisão sexual patriarcal
do trabalho, mas será baseada em uma ilusão de mudança e, consequentemente,
não será capaz de realmente transcender o status quo.
Uma concepção feminista de uma economia alternativa deve incluir tudo
o que foi dito anteriormente sobre autarquia e descentralização. Mas colo-
cará a transformação da divisão sexual do trabalho atual (baseada no modelo
da mulher dona de casa-homem provedor) no centro de todo o processo de
reestruturação. Isso não é mera autoindulgência narcisista das mulheres, mas
o resultado de nossa pesquisa histórica, bem como de nossa análise do fun-
cionamento do patriarcado capitalista. As feministas não partem da ecologia,
da economia e da política externas, mas da ecologia social, cujo centro é
a relação entre homens e mulheres. Autonomia sobre nossos corpos e vidas é,
portanto, a primeira exigência, e a mais fundamental, do movimento femi-
nista internacional. Qualquer busca por uma autarquia ecológica, econômica
e política deve partir do respeito à autonomia do corpo feminino, sua ca-
pacidade produtiva de criar vida nova, sua capacidade produtiva de manter
a vida pelo trabalho, sua sexualidade. Uma mudança na divisão sexual do
trabalho atual implicaria, antes de mais nada, que a violência que caracteriza
as relações homem-mulher patriarcais capitalistas em todo o mundo fosse
abolida não pelas mulheres, mas pelos homens. Os homens têm de recusar sua
390 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
130 Há sinais de esperança de que ao menos alguns homens estão começando a entender isso.
Em Hamburgo, os homens criaram uma nova iniciativa chamada “Homens contra a violência
masculina contra as mulheres”.
MARI A MI ES 391
baratas, serviços sexuais baratos etc. serão fornecidos para essa classe de rentistas
brancos pela exploração cada vez maior de países e povos do Terceiro Mundo.
É evidente que há também mulheres brancas nessa classe internacional de
rentistas não produtores mantidos e alimentados pelo aumento da exploração
dos países do Terceiro e do Segundo Mundo, mas, em geral, as mulheres nos
países superdesenvolvidos compartilharão cada vez mais o destino dos países
subdesenvolvidos. Com seu trabalho invisível, mal pago ou não remunerado,
elas fornecerão a base sobre a qual a classe internacional masculina branca
marchará para o paraíso “pós-industrial”.
PASSOS INTERMEDIÁRIOS
diferentes, colaborado com ele. Isso vale sobretudo para as mulheres de classe
média em todo o mundo e para as mulheres brancas em países industrializa-
dos. Se queremos recuperar a autonomia sobre nossos corpos e sobre nossa
vida, devemos começar renunciando a essa cumplicidade com o patriarcado.
Como é que isso pode ser feito?
Acho que a estratégia pode ser a mesma para mulheres em países super-
desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas os passos táticos podem ser diferentes.
Na sequência, discutirei alguns passos concretos que podem ser dados em
direção à nossa libertação das garras do patriarcado capitalista anti-humano e
antimulher. Começarei com o que pode ser feito pelas feministas ocidentais.
131 Muitas mulheres, inclusive feministas, costumam argumentar que as mulheres precisam se
embelezar. Pode ser, como pode ser verdade para os homens, mas isso não significa que tenha-
mos de aceitar os padrões de beleza estabelecidos pelas indústrias de vestuário e cosméticos.
396 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
– Batons e cosméticos dão um bom exemplo de outro critério que pode ser
adotado na seleção de artigos a serem boicotados pelas mulheres: precisamen-
te, o grau de violência a que são submetidos os organismos vivos necessários
para a produção dessas mercadorias e até que ponto o equilíbrio ecológico
de suas áreas de produção tem sido perturbado. Em suma, a destruição da na-
132 A Unilever, com sua subsidiária indiana, a Hindustan Lever, desenvolveu um método para
extrair o óleo das sementes do sal, um tipo de árvore que cresce de maneira selvagem nas áreas
florestais de Bihar, na Índia. Anteriormente, essas sementes eram coletadas pelas mulheres da
tribo Santhal para produzir óleo para seu próprio uso. Agora, essas mulheres coletam as se-
mentes das árvores do sal para os agentes da Hindustan Lever por uma quantia irrisória. Os
derivados do óleo de sal são usados como substitutos da manteiga de cacau e na produção de
cosméticos de todos os tipos. Devido à sua capacidade de fundição característica, é particular-
mente útil para a produção de batons. Assim, a produção de batons ou chocolate pela Unilever
priva as mulheres tribais de Bihar do controle sobre sua produção de óleo (cf. Mies: “Gesch-
lechtliche und internationale Arbeitsteilung” [Gênero e divisão internacional do trabalho], em
Heckmann & Winter, 1983, p. 34 ss).
MARI A MI ES 397
ciados nos Estados Unidos e na Europa por pessoas como Ralph Nader ou
Hans A. Pestalozzi. Na maioria dos movimentos, o interesse pessoal do con-
sumidor em ter produtos limpos, saudáveis, não contaminados quimicamente
e não adulterados está ligado à preocupação ecológica de preservar os escassos
recursos energéticos e manter o equilíbrio ambiental; no entanto, a questão
da exploração das mulheres e dos países subdesenvolvidos é frequentemente
excluída. Assim, Pestalozzi é o porta-voz de um movimento de consumo
crítico na Suíça, mas ele acredita que consumidores críticos e ecologicamente
conscientes não colocariam em risco “nosso sistema de sociedade e econo-
mia livres”. Ele defende que os administradores das corporações capitalistas
adotem novas estratégias comerciais (Pestalozzi, 1979, p. 31 ss).
As feministas não podem ficar satisfeitas se o capital internacional usar nos-
so boicote ao consumo de certos itens apenas para desenvolver uma nova es-
tratégia de marketing que nos faça consumir os chamados alimentos saudáveis,
produzidos talvez por empresas alternativas autônomas que podem trabalhar
como contratadas de corporações multinacionais de alimentos, como já vimos
acontecer nos países subdesenvolvidos. Já sabemos que qualquer libertação
parcial que ocorra dentro dos marcos do capital internacional será compensa-
da por uma maior exploração e sujeição de outras categorias de pessoas e da
natureza em outros lugares.
Um movimento feminista de libertação dos consumidores certamen-
te poderia adotar o lema cunhado pela organização francesa Terre des
Hommes – Frères des Hommes: “Ici vivre mieux / Là-bas vaincre la faim”
(Viver melhor aqui / Vencer a fome lá). Teria de ter em mente, no entanto,
que “viver melhor aqui” não pode significar uma extensão do princípio
egoísta do interesse pessoal, mas deve receber um novo conteúdo, criando
relações recíprocas e não exploradoras com nossos corpos, entre homens e
mulheres, com nosso ambiente natural e com os povos dos países subdesen-
volvidos. Por outro lado, esse lema expressa o desejo de que a definição do
que é a “vida boa” ou felicidade humana não seja mais deixada nas mãos
dos soldados do capital transnacional, mas que nós mesmas comecemos a
defini-las. Nós, mulheres, nunca devemos esquecer que somos nós que pro-
duzimos vida, não o capital.
400 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
O que vou desenvolver a seguir não é uma estratégia completa para ações
conjuntas entre feministas de países superdesenvolvidos e subdesenvolvidos.
Quero apenas apontar algumas áreas em que a união das lutas poderia ocorrer
e refletir sobre algumas experiências dessas lutas.
A política do corpo implica uma luta contra todas as formas de violên-
cia direta contra as mulheres (estupro, violência doméstica, clitoridectomia,
feminicídios por dote, molestamento) e contra todas as formas de violência
indireta ou estrutural contra elas inseridas em outras relações de exploração e
opressão, como as relações imperialistas e de classe, bem como em instituições
patriarcais como a família, a medicina e os sistemas educacionais. Dentro dessa
esfera da política do corpo, há unidade entre as mulheres quanto ao objetivo
central de suas lutas. Em última análise, trata-se da exigência de reconhe-
cimento da essência humana das mulheres, de sua dignidade, integridade e
inviolabilidade como seres humanos e da recusa em serem transformadas em
objetos ou recursos naturais para outros.
Creio que, se essa dimensão mais profunda e mobilizadora das lutas acima
mencionadas fosse reconhecida, não seria mais possível que um grupo explo-
rado e oprimido continuasse a esperar que sua “humanização” fosse produzida
às custas de outro grupo, classe ou pessoas também exploradas e oprimidas.
Por exemplo, as mulheres brancas não poderiam esperar se humanizar ou
se libertar às custas de homens e mulheres negras; as mulheres oprimidas de
classe média do Primeiro e do Terceiro Mundo, às custas das mulheres rurais
e urbanas pobres; os homens oprimidos (trabalhadores e camponeses negros
ou brancos), às custas de “suas” mulheres. A luta pela essência humana, pela
dignidade humana, não pode ser dividida e não pode ser vencida a menos que
todas essas divisões colonizadoras, criadas pelo patriarcado e pelo capitalismo,
sejam rechaçadas e transcendidas.
Quando estudamos a breve história do novo movimento de mulheres em
países subdesenvolvidos e superdesenvolvidos, podemos identificar uma série
de lutas que se iniciaram com o objetivo de preservar a integridade humana
e a dignidade das mulheres e em cujo contexto essas divisões colonizadoras
foram transcendidas, ao menos tendencialmente, dando origem à perspectiva
de uma nova solidariedade. Essa solidariedade não se baseia no estreito in-
teresse próprio de cada grupo específico, mas no reconhecimento de que o
patriarcado capitalista destrói a essência humana não apenas dos oprimidos,
MARI A MI ES 403
mas também, e talvez ainda mais, daqueles que aparentemente lucram com
a opressão.
Assim, as lutas feministas contra a violência masculina, contra o estupro, a
violência doméstica, o molestamento e a humilhação de mulheres têm sido
um ponto de encontro para as mulheres dos países do Primeiro e do Terceiro
Mundo. A bibliografia sobre essas questões foi traduzida e lida em muitos países.
Quando as mulheres começam a lutar contra a violência masculina podem se
identificar com “as outras mulheres”, superando barreiras de classe, raciais e im-
perialistas. Por isso, na Índia, a luta contra o estupro e os feminicídios por dote
transcendeu barreiras de casta e classe. Havia uma solidariedade genuína entre
as mulheres nessas questões, embora essas divisões não tenham desaparecido.
As barreiras entre mulheres e homens também podem ser superadas se
mulheres e homens começarem a lutar corajosamente contra a violência
masculina. Nas organizações de esquerda tradicionais, as questões do estu-
pro, da violência doméstica e molestamento de mulheres são frequentemen-
te minimizadas por seus líderes. Supõe-se que uma campanha em torno de
tais questões criaria divisões na unidade da classe oprimida (trabalhadores,
camponeses). Por isso, as mulheres nessas organizações são instruídas a subor-
dinar suas queixas sobre tais questões “privadas” ao objetivo geral da luta de
classes, da luta anticolonial, da luta pela terra etc. As mulheres de classe média
do Terceiro Mundo são particularmente suscetíveis a essa linha de pensamento
e, muitas vezes, estão dispostas a adiar as lutas em torno da relação homem-
-mulher para um futuro distante.
Porém, em minha experiência com mulheres camponesas pobres na Índia,
pude perceber que elas não estavam dispostas a aceitar essa estratégia de “sub-
sunção”. Elas mostraram que uma luta determinada contra a violência mas-
culina não mina a unidade da classe camponesa pobre contra os proprietários
opressores, e sim dobra sua unidade e força.133
133 Esta luta ocorreu nos anos 1980-1981 no distrito de Nalgonda, Andhra Pradesh, entre
camponesas e agricultoras pobres que, junto com os homens, se organizaram em associações
rurais e de mulheres. O fato de terem organizações femininas separadas, não sob a liderança dos
homens, deu-lhes coragem para travar uma luta contra a violência doméstica. O caso de uma
das mulheres, que era regularmente espancada pelo marido quando comparecia às reuniões
femininas, foi o disparador dessa luta. Isso levou a discussões prolongadas entre as campone-
sas pobres em todas as aldeias da área. Nessas discussões, a maioria das mulheres decidiu que,
quando uma mulher era regularmente espancada pelo marido e os dois não podiam mais se
404 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
entender, era o marido quem deveria sair de casa, “porque a casa é da mulher”. Essa decisão foi
então discutida entre as organizadoras e os homens. Estes reconheceram que, se tratassem suas
mulheres da mesma maneira que os proprietários as tratavam, nunca poderiam esperar escapar
da opressão e da exploração. As mulheres tornaram pública a violência doméstica e sugeriram
sanções sociais contra esses homens. Numa luta posterior contra os latifundiários, os homens
perceberam que as mulheres que não subordinavam sua “luta de mulheres” à “luta de classes”
eram muito mais militantes, corajosas e perseverantes do que os homens. Elas também mos-
travam mais compromisso com a “causa geral” do que muitos dos homens, que poderiam ser
facilmente subornados ou corrompidos pelos proprietários. Isso foi compreendido por pelo
menos alguns dos homens (Mies, 1983).
MARI A MI ES 405
134 Ver o congresso internacional “Mulheres contra a Engenharia Genética e Tecnologia Re-
produtiva”, que aconteceu de 19 a 22 de abril de 1985 em Bonn, e a Rede Feminista Interna-
cional de Resistência contra a Engenharia Genética e Reprodutiva (FINRRAGE).
406 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
trabalho, as empresas poderiam subir os preços dos produtos que vendem para
as consumidoras ocidentais. Mas, mesmo que as mulheres ocidentais fossem
informadas de que os preços mais altos são resultado de greves em uma das
fábricas realocadas, não é certo que esses preços mais altos atingiriam as pro-
dutoras reais. Por um lado, se as feministas iniciassem um boicote a tais produ-
tos em apoio às mulheres em greve nessas fábricas, as mulheres de lá poderiam
não ser capazes de entender tal ação porque, dentro das atuais estruturas, seu
interesse imediato em manter o emprego e a ter um salário está intimamente
ligado ao interesse do capital na venda de seus produtos.
Por outro lado, as mulheres na Europa que trabalhavam em indústrias têx-
teis transferidas para a Ásia ou África perderam seus empregos para mulheres
asiáticas ou africanas extremamente mal remuneradas. E entre essas duas cate-
gorias de mulheres trabalhadoras não existe base material para a solidariedade.
Se um grupo de mulheres tenta melhorar suas condições materiais como
trabalhadoras assalariadas ou como consumidoras, e não como seres humanos, o
capital tentará compensar suas possíveis perdas espremendo outros grupos de
mulheres. Assim, dentro dos marcos da divisão internacional do trabalho e dos
interesses dos trabalhadores assalariados, intimamente ligados aos do capital, há
pouco espaço para uma verdadeira solidariedade entre as mulheres do Terceiro
e do Primeiro Mundo, pelo menos não para o tipo de solidariedade que pode
ir além da retórica paternalista e da caridade.
Mas se as mulheres estiverem dispostas a transcender as fronteiras estabe-
lecidas pela divisão internacional e sexual do trabalho e pela produção e
comercialização de mercadorias tanto no mundo superdesenvolvido quanto
no subdesenvolvido; se assumirem os princípios de uma economia autossufi-
ciente, mais ou menos autárquica; se estiverem dispostas, nos países do Terceiro
Mundo, a substituir a produção voltada para a exportação pela produção vol-
tada para as necessidades do povo, então será possível combinar as lutas das
mulheres de ambas as extremidades do globo de tal forma que a vitória de
um grupo de mulheres não será a derrota de outro grupo de mulheres. Isso
poderia acontecer, por exemplo, se as lutas das mulheres do Terceiro Mundo
pelo controle de seu território e de sua produção de subsistência – muitas
vezes travadas contra os interesses combinados de corporações internacionais
ou nacionais e de seus próprios homens – fossem apoiadas por um boicote de
consumidoras dos países superdesenvolvidos.
MARI A MI ES 407
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dote: 56; feminicídios por dote: 273-80; de excedente: 128, 203, 322, 341, 350-1;
campanha contra feminicídio por dote: trabalho excedente: ver trabalho; super-
275; economia do dote e preço da noi- -excedente: 356.
va: 280-1, 291-8; dívida por dote: 281; exploração: 51, 70, 92, 98-100, 103, 111, 145,
Lei de Proibição dos Dotes: 279; dote 219, 312, 353, 359; conceito de explora-
como tributo: 297-300. ção: 112-3; domínio e exploração: 110-
1; exploração de uma classe para outra:
ecologia: 51, 389-99. 159-60; exploração das colônias: 160-1,
economia. economia alternativa: 385-93; 385-6; exploração da natureza: 159-60,
economia de tempo: 376, 379; econo- 385-6; exploração das minorias: 74; ex-
mia subsidiária: 342-3, 353-4; econo- ploração do trabalho não remunerado:
mia-mundo europeia: 165-6; economia 92; exploração das mulheres: 160-1,
dual: 68, 324-41, 353, 401; setor da eco- 385-6; exploração nas relações sociais:
nomia: ver setor econômico; economia do 112-3; superexploração: 115, 119, 224,
dote: ver dote. 229, 235, 271-2
Ehrenreich, B. & English, D.: 158.
Eisen, A.: 340. família: 111-2, 117-8, 205-6; desenvolvi-
Engels, F.: 118-9. mento da família: 119; família nuclear:
engenharia genética e reprodutiva: 405. 63, 202-3, 344-5; família patriarcal: 119;
escravidão: 141; escravidão na África pré- família patriarcal: 67, 119, 145, 194, 204,
-colonial: 141-145; escravidão como 273, 297; família patrilocal/patrilinear:
modo de produção masculino: 149; 275, 335-6; economia familiar: 342-5;
mulheres sob escravidão: 183-6. trabalho familiar: 251, 342, 345; leis da
estabelecimento de classes: 144. família: 116-7, 194.
Estado: 72-73, 177-178, 205, 354; como pa- feminismo: 51-8; burguês 61, 72; ocidental
triarcado: 83-84; classe estatal: 353, 359; 55; radical 61-2; liberal 61; do Terceiro
Estado-nação: 321; Estado socialista: Mundo: 54-5; socialista: 61-2; marxista:
345, 354. 61-2; de tempo bom: 65-6, 69; acadêmi-
estratégia de reversão: 66-7. co: 66; cultural: 76-7, 79.
estruturalismo: 63. feminista(s). conceito feminista de traba-
estupro: 82-84, 87, 135, 140, 284-291, 295, lho: 380-5; crítica feminista à análise
312, 402-3; estupro na Índia: 56, 299, marxista: 355-60; crítica da classe mé-
403; campanha contra o estupro: 65, dia: 369-70; ideologia: ver ideologia; re-
273-274, 281, 284; estupro e classe: 307- vistas feministas: 57; Rede Feminista:
310; Fórum contra o estupro: 286; ca- 57; perspectiva(s) feminista(s): 109, 370,
sos de estupro: Rameeza Bee: 284-5, 373-4, 385; separatismo feminista: 53, 62;
288, 290, 301, 307 / Mathura: 286-288 / solidariedade feminista: 61, 105; utopia
Maya Tyagi: 289-290; homens como es- feminista: 371, 382; feminista: 51-65, 69,
tupradores: 300-310; mulheres de classe 73, 76-7; feministas estadunidenses: 77;
média e estupro: 286-291; mitos sobre o feministas autônomas: 87, 105; ecofemi-
estupro: 301-302; estupros por policiais: nistas: 97; feministas marxistas: 98; femi-
284-91, 300, 307, 310. nistas New Age: 97; feministas socialistas:
excedente: 128, 143, 249-50; 309, 353; con- 62, 379; feministas ocidentais 54-6, 70,
ceito de excedente: 143-4, 355; extra- 77, 318-20; feministas brancas: 59-60; fe-
ção de excedente: 314, 327; produção ministas do Terceiro Mundo: 405.
430 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L
301, 307-11, 314, 331-2, 336, 345, 357-8, Marx, K.: 14, 20, 26-8, 43-5, 93-5, 99, 114-5,
363-4, 368, 381, 388, 396, 403; mulhe- 118, 122-3, 138, 167, 206, 209-10, 213,
res indianas: 235-7, 240, 243-4, 254, 271, 321, 356-7, 366, 375-8, 380, 382, 384;
274, 280, 289-90, 295, 305, 368. Marx e Engels: 42, 44, 72, 117, 120-2,
individualismo: 61, 105, 203, 374. 143, 205, 209, 21, 321-2, 338, 346, 354-5,
informatização: 67, 255, 380. 378, 380, 383.
iniciativas de apoio: 82, 87. marxismo: 20, 26, 43, 45, 62, 356.
inquisição: 158, 178-9. marxista. teoria do valor marxista: 94.
integrar as mulheres ao desenvolvimento: masculino/a. atividade(s) masculina(s): 112;
116, 223, 226-7, 344. chauvinismo masculino: 80; classe (in-
internacionalismo: 318, 358. ternacional) masculina: 393; cooperação
irmandade: 52-53, 60. masculina: 135, 136; cultura (internacio-
nal) masculina: 308; descendência mas-
James, S.: 91-93. culina: 237, 282, 335, 336; dominação
masculina: 52, 80, 82, 84, 90, 99-100, 280,
Kumar, D.: 383. 337, 348, 365, 369; domínio masculino:
321, 327; hegemonia masculina: 151, 171;
lazer: 251, 253, 256, 259, 326, 343, 345, 371, hierarquia masculina: 135; masculinida-
375, 377, 380, 381-3, 390. de: 123, 310; mitos masculinos: 301; mo-
Lenin, V. I.: 88, 95, 322, 338, 354, 355, 358. nopólio masculino das armas/dos meios
lésbicas: 59, 62; movimento lésbico: 106. de coerção: 141, 143; natureza masculi-
Leukert, R.: 109, 116, 124. na: 124, 307, 312; poder masculino: 306,
Libertação Nacional: 18, 54, 315-23, 327, 307; produtividade masculina: 130-2,
337-8, 346-9, 358, 392. 137. 150; provedor masculino: 296; psi-
luta de classes: 54, 131, 323. que/psicologia masculina: 84; sexo mas-
Luxemburgo, R.: 11, 28, 42-7, 95, 96, 112, culino: 100, 140, 147, 151, 159, 236, 283,
151, 249, 356. 301-3, 312, 323, 335, 336, 400; sexualida-
luxo. consumo de (artigos de) luxo: 159, de masculina: 304; trabalhador(es) mas-
163, 199, 200-3, 250, 253; produção de culino(s): 27, 68, 148; supremacia mas-
(artigos de) luxo: 29, 220, 234, 254, 344; culina: 136; utopia masculina: 236; viés
boicote a artigos de luxo: 284, 395, 400. masculino: 111, 286; violência masculina:
26, 65, 82-5, 291, 374, 390, 403.
mãe: 30-1, 81, 124, 127-8, 158, 169, 185, 203, Mass, B.: 231-2, 332.
209-12, 230-1, 238, 250, 275-8, 282, 288, matéria e espírito: 373.
302, 304-6, 333, 349, 354, 365, 367, 381, materialismo histórico dialético: 118.
395. maternidade: 66, 91, 124, 185, 186, 197, 255,
Mãe Terra: 33, 147, 158-9, 178. 327, 333.
Mamozai, M.: 193-8, 204, 357. matrilinearidade: 124, 298, 369.
Mandel, E.: 180-2. matrilocal: 124.
Mao Tsé Tung: 327, 350. Merchant, C.: 78, 147, 158-9, 162, 172, 178-
Marcuse, H.: 74. 9, 372.
marginalização: 68, 94, 224, 241-2, 244-6, metrópoles e periferias: 102, 116, 166.
248, 267, 271. Mies, M.: 67-8, 114, 213, 234, 242, 247, 253,
Martin M. K./Voorhies, B.: 109, 129, 133. 266, 273, 297, 309, 344-5, 369, 381, 404.
432 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L