Você está na página 1de 452

PATRIARCADO &

ACUMULAÇÃO EM
ESCALA MUNDIAL
MULHERES
NA DIVISÃO
INTERNACIONAL
DO TRABALHO
MARIA MIES
PREFÁCIO SILVIA FEDERICI

Tradução Coletiva
MARIA MIES, socióloga e fe-
minista marxista, nasceu em
1931 na vila rural de Steffeln,
Alemanha. Conhecida mundial-
mente por sua teoria do patriar-
cado capitalista, que reconhece
as mulheres e a diferença do ter-
ceiro mundo, Mies iniciou sua
pesquisa examinando os efeitos
combinados da colonização e
subordinação das mulheres no
sistema econômico da Índia,
inspirando-se nas teses de Rosa
Luxemburgo sobre a acumula-
ção primitiva de capital. Pro-
fessora Emérita da Universidade
de Ciências Aplicadas de Co-
lônia, aposentou-se em 1993.
É militante feminista desde o
final dos anos 1960. Em 1979,
no Instituto de Estudos Sociais
em Haia, fundou o programa
Mulheres e Desenvolvimento.
É autora de importantes livros
e artigos sobre feminismo, ter-
ceiro mundo e meio ambiente.
Entre os títulos, estão The Lace
Makers of Narsapur [As rendei-
ras de Narsapur] (1982), Frauen,
die letzte Kolonie [Mulheres:
a última colônia] (1988), Die
Subsistenzperspektive [A pers-
pectiva da subsistência] (1999) e
Ecofeminismo (1993), esse últi-
mo em coautoria com Vandana
Shiva e traduzido em 2021 para
o português.
Patriarcado e acumulação em escala mundial: Mulheres na divisão internacional do trabalho foi publicado pela
primeira vez em 1986 pela Zed Books. A presente tradução tomou por base a edição publicada em 2014.
© Maria Mies, with a Foreword by Silvia Federici, 2014
A publicação da presente tradução da obra Patriarchy and Accumulation on a World Scale:Women in the
International Division of Labour, 3rd edition, resulta de tratativas com a Bloomsbury Publishing Plc.
A presente edição foi possibilitada pela Red Rock Literary Agency Ltd.

Edição Luciana Carvalho Fonseca e Ana Basaglia


Tradutoras Cecilia Farias, Cecília Rosas, Juliana Bittencourt, Leila Giovana Izidoro e
Shisleni de Oliveira-Macedo, do Coletivo Sycorax; e Luciana Carvalho Fonseca e Maria Teresa Mhereb
Revisão Maria Teresa Mhereb, Ana França, Cecília Rosas, Juliana Bittencourt e Leila Giovana Izidoro
Capa e Projeto Gráfico Ana Basaglia
Editoração e Produção Estúdio Uniqua

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Mies, Maria
Patriarcado e acumulação em escala mundial
[livro eletrônico] : mulheres na divisão
internacional do trabalho / Maria Mies ;
prefácio Silvia Federici. -- 1. ed. -- São Paulo :
Ema Livros : Editora Timo, 2022.
PDF.

Título original: Patriarchy and Accumulation on a


World Scale
Vários tradutores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-67695-12-9

1. Divisão sexual do trabalho 2. Mulheres -


Condições sociais 3. Mulheres - História
I. Federici, Silvia. II. Título.

22-108897 CDD-305.42
Índices para catálogo sistemático:

1. Mulheres : Condições sociais : Sociologia 305.42

Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129

Este livro segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.


A versão em formato digital desta tradução está disponível para download gratuito em PDF no site da
Ema Livros e pode ser acessada pelo site do Coletivo Sycorax, em decorrência de licença Creative Commons
4.0 (BY-NC-ND) adquirida pelo Coletivo Sycorax, e não poderá ser distribuída em nenhum outro formato.
A licença Creative Commons 4.0 (BY-NC-ND) permite a usuários usar, distribuir, remixar, adaptar e criar
a partir do material em qualquer meio ou formato, mas apenas para fins não comerciais e contanto que os
devidos créditos sejam dados ao titular da licença. Se o usuário remixar, adaptar ou criar a partir do material,
deverá licenciar o material modificado por meio da mesma licença Creative Commons 4.0 (BY-NC-ND).

EMA LIVROS Praça Marquês de Itanháem, 51, anexo, Vila Madalena, São Paulo, SP - 05447-180
www.emalivros.com.br | contato@emalivros.com.br
EDITORA TIMO Praça Tcheco, 18, Vila Ipojuca, São Paulo, SP - 05057-080
www.editoratimo.com.br | contato@editoratimo.com.br
São Paulo, 2022
Conselho Científico
Laura Patrícia Zuntini de Izarra (Universidade de São Paulo) | Luciana Carvalho Fonseca (Universidade
de São Paulo) | María Laura Spoturno (Universidad Nacional de La Plata, Argentina)

Conselho Editorial
Coletivo Sycorax | Ana Basaglia | Helena Barbosa | Maria Teresa Mhereb | Marina Waquil
SUMÁRIO

I APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA – AS TRADUTORAS

IX AS FEMINISTAS DESCOBREM ROSA LUXEMBURGO: O CALDO DE


CULTURA EM QUE ENCONTRAMOS MARIA MIES – ISABEL LOUREIRO

17 PREFÁCIO – SILVIA FEDERICI

23 PREFÁCIO – MARIA MIES

41 INTRODUÇÃO

49 1 O QUE É FEMINISMO?
• Onde estamos hoje? • Feminismo de “tempo bom”? • O que há de novo
no feminismo? • Libertação das mulheres • Política do corpo • Novo
conceito de política • Trabalho feminino • Exploração ou opressão/
subordinação • Patriarcado Capitalista • Sociedades superdesenvolvidas
e subdesenvolvidas • Autonomia

107 2 ORIGENS SOCIAIS DA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO


• A busca pelas origens da divisão sexual do trabalho de uma
perspectiva feminista • Conceitos enviesados • Proposta de abordagem
• Apropriação da natureza por mulheres e homens • A apropriação
de mulheres e homens de seus próprios corpos • A relação-objeto de
homens e mulheres com a natureza • A relação-objeto dos homens
com a natureza • A produtividade feminina como pré-condição para
a produtividade masculina • O mito do homem-caçador • Ferramentas
de mulheres, ferramentas de homens • Pastores nômades • Agricultores
• O “homem-caçador” no feudalismo e no capitalismo
155 3 COLONIZAÇÃO E DONADECASIFICAÇÃO
• A dialética do “progresso e retrocesso” • A subordinação das mulheres,
da natureza e das colônias: o lado oculto do patriarcado capitalista ou
da sociedade civilizada • A perseguição das bruxas e o nascimento da
sociedade moderna. Crônica da produtividade das mulheres no final da
Idade Média • A subordinação e destruição do corpo feminino: tortura
• Bruxas na fogueira, acumulação primitiva de capital e ascensão da
ciência moderna • Colonização e acumulação primitiva de capital
• As mulheres sob o colonialismo • As mulheres sob o colonialismo
alemão • Mulheres brancas na África • Donadecasificação

215 4 DONADECASIFICAÇÃO INTERNACIONAL: MULHERES E A NOVA


DIVISÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO
• O capital internacional redescobre as mulheres do Terceiro Mundo
• Por que as mulheres? • Mulheres como “reprodutoras” e
consumidoras • Ligações: alguns exemplos

269 5 A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E A ACUMULAÇÃO


PRIMITIVA PERMANENTE
• Feminicídios por dote • Amniocentese e “feminicídio” • Estupro
• Análise • O dote como tributo • Os homens são estupradores
por natureza?

315 6 LIBERTAÇÃO NACIONAL E LIBERTAÇÃO DAS MULHERES


• Mulheres “na economia dual” • Por que as mulheres são mobilizadas para
as lutas pela libertação nacional? • Por que as mulheres são “devolvidas”
à situação anterior após as lutas de libertação? • Becos teóricos sem saída

361 7 RUMO A UMA PERSPECTIVA FEMINISTA DE UMA NOVA SOCIEDADE


• Sobre um movimento feminista de classe média • Princípios e conceitos
básicos • Rumo a um conceito feminista de trabalho • Uma economia
alternativa • Passos intermediários • Autonomia sobre o consumo
• Autonomia sobre a produção • Lutas pela dignidade humana

409 REFERÊNCIAS

425 ÍNDICE REMISSIVO

435 QUEM FEZ ESTE LIVRO


PREFÁCIOS &
INTRODUÇÃO
APRESENTAÇÃO À EDIÇÃO BRASILEIRA
AS TRADUTORAS

QUANDO O Coletivo Sycorax traduziu Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e


acumulação primitiva, de Silvia Federici (2017) (Rosas et al., 2020), as men-
ções ao texto de Maria Mies o fizeram entrar em contato com uma obra
fundamental para as reflexões dos feminismos materialistas: Patriarcado e acu-
mulação em escala mundial (Mies, 1986). Mies esteve novamente presente na
tradução de outros dois livros de Federici, O ponto zero da revolução: trabalho
doméstico, reprodução e luta feminista (2019) e Reencantando o mundo: feminismo
e a política dos comuns (2022), este último traduzido pelo Sycorax em uma
nova experiência coletiva de tradução que, sob o nome Coletivo Syco-
rax: Solo Comum, reuniu – além das coletivas – várias outras tradutoras
feministas. Duas delas, vinculadas à Universidade de São Paulo, também
atraídas pelas ideias e ecos de Mies na obra de Federici, enxergaram no
edital “ODS-ONU/2020”, aberto pela Pró-Reitoria de Cultura e Extensão
Universitária da Universidade de São Paulo (PRCEU-USP), uma oportuni-
dade para fazer Patriarcado e acumulação em escala mundial chegar ao público
brasileiro. Propuseram, assim, o projeto “Tradução coletiva entre mulheres:
práticas políticas e pedagógicas”, alinhado ao eixo temático “Igualdade de
gênero”, compreendido nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentá-
vel (ODS) da ONU. Este livro, cuja tradução foi contemplada pelo edi-
tal e que agora você tem em mãos, faz, no entanto, críticas contundentes
ao papel das políticas da ONU para mulheres no mundo e questiona o
“feminismo” propagado pela organização. Essa crítica é feita por meio de
um dos principais conceitos, o de “donadecasificação”, abordado mais abai-
xo. Certamente, essa “contradição” só é possível em um ambiente que ga-
rante a independência e autonomia intelectual, proporcionado por uma
educação superior pública e gratuita, capaz de veicular pautas contra-hege-
II PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mônicas; neste caso específico, por meio da prática coletiva de tradução de


uma obra anticapitalista.
A prática de tradução coletiva pode ser vista não apenas como processo
de produção de um texto traduzido, mas também de formação intelectual e
política. É um exercício de diálogo – com o texto e com os outros sujeitos
envolvidos – e uma experiência de gestão coletiva. Esse método de tradução
é especialmente construtivo no contexto da tradução de uma obra feminista
entre mulheres, pois permite alinhar conhecimento teórico e prático sobre
feminismo (Alvarenga et al, 2022). Assim, em torno da proposta coletiva de
tradução de Patriarcado e acumulação em escala mundial, reuniram-se o Coletivo
Sycorax, a professora coordenadora Luciana Carvalho Fonseca, a doutoranda
Maria Teresa Mhereb e as editoras feministas parceiras Ema Livros e Timo.
Para garantir que o livro pudesse ser difundido livremente para fins não
comerciais em sua versão on-line, o Coletivo Sycorax participou da aqui-
sição dos direitos autorais: enquanto as editoras arcaram com os direitos de
tradução para a cópia impressa, o Coletivo arcou com os direitos sobre a
distribuição do arquivo eletrônico. Com isso, possibilita a circulação gratui-
ta da versão eletrônica da obra, como já acontece – necessariamente e por
posicionamento político – com todas as outras obras traduzidas por ele até
aqui. Como se pode ver, este projeto de tradução coletiva só foi possível em
decorrência do apoio da universidade pública (PRCEU/USP), do compro-
misso social e político por parte do Coletivo Sycorax e das editoras parceiras
e do engajamento das tradutoras envolvidas.
A tradução do primeiro capítulo de Patriarcado e acumulação em escala mun-
dial foi lançada durante a XL Semana do Tradutor & III Simpósio Internacional
de Tradução (SIT), promovidos pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp-São José do Rio Preto). O lançamento se deu no
âmbito do tema “Pluralidade na tradução: aspectos sociais e profissionais”,
com duas apresentações das tradutoras (Fonseca, Mhereb & Farias, 2021;
Rosas & Oliveira-Macedo, 2021).
Ainda no contexto de divulgação desta obra, foi realiza-
da, no III TREMA – Mulheres, Tradução e Mercado Editorial, a mesa
“Genealogias feministas: Maria Mies em tradução”, com a participa-
ção de Silvia Federici e Vandana Shiva (Fonseca, Federici & Shiva, 2021).
Esta última escreveu, junto a Mies, o livro Ecofeminismo (2021), lançado
MARI A MI ES III

no ano passado pela Editora Luas. Hoje, portanto, graças a projetos edi-
toriais feministas, contamos com duas traduções de Maria Mies recém-
chegadas ao Brasil.

O Coletivo Sycorax se formou com a proposta de traduzir autoras que


contribuíssem para a reflexão feminista em abordagens necessariamente an-
ticapitalistas. Os debates gerados em oficinas sobre os livros de Silvia Federici
que o Coletivo traduziu e os diálogos com as tradutoras que se vincularam
a ele nos processos de tradução desses livros despertaram o interesse comum
em compor uma genealogia de feministas que se debruçaram sobre o tema
da origem do capitalismo e da acumulação primitiva de capital, caro ao pen-
samento de Silvia Federici.
A leitura feminista da discussão sobre acumulação primitiva foi recupe-
rada por uma vertente do feminismo alemão a partir do legado de Rosa
Luxemburgo, como apresenta Isabel Loureiro no texto no texto As feministas
descobrem Rosa Luxemburgo: o caldo de cultura em que encontramos Maria Mies,
escrito especialmente para esta edição brasileira. Para Luxemburgo, o violento
processo de acumulação que lançou as bases do sistema capitalista dependeria
da exploração e destruição dos povos e modos de vida não capitalistas, e não
só da exploração das classes trabalhadoras. Além disso, não estaria circunscrito
temporalmente, mas seria permanentemente reposto ao longo do desenvol-
vimento capitalista, caracterizando esse modo de produção que necessita de
constante expansão. Essa compreensão de Rosa Luxemburgo foi, então, esten-
dida por feministas marxistas para a análise da extração do trabalho (re)produ-
tivo realizado pelas mulheres, para o trabalho de subsistência de camponesas e
camponeses e para a destruição ampliada da natureza.
Escrito na década de 1980, Patriarcado e acumulação em escala mundial: mu-
lheres na divisão internacional do trabalho insere-se nessa linhagem de pensamen-
to. Entre as inúmeras questões de que trata – e cujo panorama você pode
conferir no prefácio de Silvia Federici que segue esta apresentação –, desta-
camos a relação entre a exploração das mulheres, dos povos colonizados e da
natureza, que, para Maria Mies, é fundamental para compreender a dinâmica
capitalista nos seus desdobramentos históricos.
IV PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O processo de tradução de Patriarcado e acumulação em escala mundial ocor-


reu durante a pandemia de Covid-19, e a organização de nosso trabalho não
pôde deixar de ser impactada pelas medidas de distanciamento social. Nossas
reuniões e debates ocorreram de maneira virtual e, devido à restrição de aces-
so a bibliotecas e livrarias nesse período, não pudemos encontrar as versões
para o português de alguns dos textos e obras referenciados por Maria Mies.
Por isso, algumas das citações feitas pela autora, ainda que contem com tradu-
ções brasileiras já publicadas, foram traduzidas por nós.
Este livro foi traduzido do inglês, idioma em que Maria Mies também es-
creve. Mies inclusive traduziu para o inglês vários trechos de obras publicadas
originalmente em alemão. Essas traduções da própria Mies foram vertidas para
o português com a menção “trad. de Maria Mies”. As notas das tradutoras –
incluídas como forma de comunicação entre nós e as pessoas que leem – fo-
ram referenciadas como N. das T., ao passo que as notas feitas por Mies, todas
preservadas na tradução, não vêm acompanhadas de identificação nesta edição.
As escolhas tradutórias relativas à terminologia foram debatidas coletiva-
mente ao longo do processo de tradução. Uma importante decisão foi tomada
quanto ao termo housewifization, do alemão Hausfrauisierung. Diferentemente
da tradução sugerida pelo verbete Hausfrauisierung, publicado na Revista
Estudos Feministas (Haug, 2018), que adotou “domestificação”, e da opção
da edição espanhola da obra (2019), que empregou o termo “domestificación”,
traduzimos housewifization por “donadecasificação”. Nossa escolha baseia-se
na centralidade que a “dona de casa” teve no debate feminista sobre trabalho
doméstico, bem como na extrapolação das questões relacionadas ao trabalho
realizado no âmbito do lar para outras formas de trabalho, concorrendo as-
sim para sua crescente invisibilização e precarização. Todos esses sentidos são
abrangidos pelo termo “donadecasificação” e, no nosso entendimento, optar
por “domestificação” não carregaria a marcação de gênero que é fundamental
para o conceito de Mies.
Nossas escolhas também foram feitas levando em consideração que a lin-
guagem reflete maneiras de organizar o mundo, de pensar sobre ele, sobre
suas estruturas e estratificações sociais. O trabalho de tradução precisa, assim,
se manter aberto e atento às mudanças sociais no curso da história e suas im-
MARI A MI ES V

plicações sobre a linguagem. Discussões linguísticas, hoje, no Brasil, nos fazem


refletir sobre o emprego de termos como “esclarecer”, “elucidar”, “iluminar”
e “obscurecer”, o que fez com que fossem evitados em nossa tradução para
contornar possíveis conotações racistas que pudessem suscitar.
Para “people/women of colour” e “coloured people/women”, optamos, na esteira
de debates feministas decoloniais, pela tradução literal “povos/mulheres de
cor”, como também fizemos ao traduzir o livro Reencantando o mundo, de
Silvia Federici. A tradução para esses termos não é consensual no Brasil, e
frequentemente encontra-se a expressão “pessoas/mulheres não brancas”, ou
mesmo “pessoas/mulheres negras”. Em contextos anglófonos, o significado de
people of color (cujo emprego historicamente racista foi deslocado por militan-
tes de movimentos sociais para adquirir conotação antirracista) modifica-se e
amplia-se no transcorrer das lutas sociais e do pensamento teórico sobre elas
(Lugones, 2006, p. 76; Moraga, 2014, p. xvi). Atualmente, o termo compreende
pessoas indígenas, negras, caribenhas, asiáticas, nativas das ilhas do Pacífico, do
Oriente Médio, latinas, romani, muçulmanas, judias, de mais de uma origem
racial e/ou étnica, entre outras. Ao optar pela tradução “povos/mulheres de
cor”, procuramos indicar a heterogeneidade de grupos sociais que experien-
ciam a violência cotidiana promovida pela normatividade branca ocidental.
Embora a expressão não tenha no Brasil o mesmo lastro político que possui
em contextos anglófonos, acreditamos que sua inserção por meio da tradução
feminista pode fomentar debates linguísticos e históricos. Da mesma for-
ma, optamos pela tradução literal “mulheres/homens marrons” para o termo
“brown women/men”, que em geral também é usado para se referir a uma di-
versidade de pessoas, como latinas, indígenas, do Sudeste Asiático, do Oriente
Médio ou do Norte da África, com exceção de pessoas negras.
É importante indicar também nossas escolhas tradutórias para os termos
“breed”/”breeder” e “procreation”/“procreator”. Seguindo comentários de Maria
Mies a respeito do último par, optamos por reservar o emprego de “pro-
criação” e “procriadora” como tradução, respectivamente, para “procreation”
e “procreator”. Esses termos, que, conforme sinaliza a autora, guardam “uma
conotação ativa e criadora” da “produtividade geradora humana”, são empre-
gados, tanto no original em inglês quanto em nossa tradução, poucas vezes
ao longo do livro. Isso se deve ao fato de que o núcleo da crítica da Mies se
dirige sobretudo “[à]queles que desejam obter o controle sobre essa última
VI PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

instância da autonomia humana” e que, para isso, necessitam propagar a “mis-


tificação ideológica” da capacidade criadora de vida das mulheres como “fer-
tilidade passiva”, ou como mera “reprodução”. Assim, neste livro, o termo
“reprodução” não possui o mesmo sentido de quando empregado por autoras
como Silvia Federici ou por pensadoras da chamada teoria da reprodução
social, como Tithi Bhattacharya e Cinzia Arruzza. O conceito de “trabalho
reprodutivo” ou “reprodução”, tal qual delineado por uma ou pelas outras, es-
taria mais próximo do que Mies denomina “trabalho produtivo”. Colocando
de cabeça para baixo a conceitualização de Marx, ela escreve na página 114:

Daqui em diante, denominarei o trabalho necessário para a produção da


vida como trabalho produtivo, no sentido amplo da produção de valores de
uso para a satisfação de necessidades humanas. A separação entre trabalho
produtor de mais-valia e trabalho produtor da vida e a sobreposição do
primeiro ao último são uma abstração que leva as mulheres e seu trabalho
a serem “definidos como natureza”.

Para Mies, aquilo que Marx denominou como “trabalho produtivo” – o


“trabalho produtor de mais-valia” – seria, antes, “trabalho destrutivo”, já que
a produção de mais-valia está no cerne da acumulação primitiva – compre-
endida pela autora como processo permanente – que destrói seres humanos
e natureza. Foi com base nisso que optamos por traduzir “breed” e ”breeder”,
respectivamente, como “reprodução” e “reprodutora”.
Uma vez que Patriarcado e acumulação foi escrito e publicado em meados
da década de 1980, a obra traz inevitavelmente termos, conceitos e con-
cepções teóricas da época, os quais foram posteriormente revistos e refor-
mulados por variadas vertentes do pensamento crítico. Esse é o caso, entre
outros exemplos, da expressão “poor tribal women”, que traduzimos como
“mulheres tribais pobres”. Como se sabe, a denominação genérica “tribo” ou
“tribal” é hoje questionada por movimentos sociais por seu caráter pejorativo
e homogeneizante de uma imensa quantidade de povos nativos de diversos
territórios colonizados, em particular do Sul Global, ou, se preferirmos, da
periferia do capitalismo.
O debate trazido por Maria Mies também se colocava nos termos de um
“Terceiro Mundo” produzido em função de um “Primeiro Mundo” (no-
MARI A MI ES VII

menclatura que preservamos), quando a Alemanha ainda estava dividida, e


existiam as feministas da Alemanha Oriental, representantes de um “Segundo
Mundo”, e as feministas da Alemanha Ocidental. Vale comentar ainda que,
nesse contexto, o “feminismo radical”, a que Mies faz referências em algu-
mas ocasiões, era compreendido como o feminismo para o qual a superação
das opressões de gênero só poderia ser alcançada com a derrubada das raízes
do capitalismo.

Embora tenha sido escrito há mais de trinta anos, Patriarcado e acumu-


lação em escala mundial é ainda profundamente atual. Mas a atualidade que
encontramos nele seguramente não deve ser celebrada, pois é a atualidade
do sistema capitalista que tudo destrói. Hoje, quando a degradação ambiental
ameaça a própria sustentabilidade da vida no planeta, recuperar as formas
como os feminismos refletiram sobre a relação entre a exploração das mulhe-
res e da natureza, tal qual faz Maria Mies nestas páginas, nos parece não apenas
fundamental, mas também urgente.

São Paulo, 31 de março de 2022.

Cecilia Farias, Cecília Rosas, Juliana Bittencourt,


Leila Giovana Izidoro, Luciana Carvalho Fonseca,
Maria Teresa Mhereb e Shisleni Oliveira-Macedo

REFERÊNCIAS

Alvarenga, Ana F.; Battistam, Laura P.; Bittencourt, Juliana; Farias, Cecilia; Fonseca, Luciana
C.; Izidoro, Leila G.; Mhereb, Maria Teresa; Oliveira-Macedo, Shisleni; Rosas, Cecília;
Rosas, Elisa. “Coletivo Sycorax: desdobramentos de práticas feministas de tradução”.
Belas Infiéis, Número Especial 9th IATIS, 2022.
Federici, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.Tradução de Coletivo
Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017.
VIII PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Federici, Silvia. Reencantando o mundo: feminismo e a política dos comuns.Tradução de Coletivo


Sycorax: Solo Comum. São Paulo: Elefante, 2022.
Fonseca, Luciana Carvalho; Federici, Silvia; Shiva,Vandana. “Genealogias feministas: Maria
Mies em tradução”. III TREMA – Mulheres, Tradução e Mercado Editorial. Mesa-
redonda. São Paulo: Universidade de São Paulo & Memorial da América Latina, 2021.
https://www.youtube.com/watch?v=NQsoj6Vjwo0&t=3639s.
Fonseca, Luciana Carvalho; Mhereb, Maria Teresa; Farias, Cecilia. “Tradução coletiva entre
mulheres: a tradução coletiva de ‘Patriarchy and Accumulation on a World Scale’, de
Maria Mies, para o português brasileiro”. (comunicação) XL Semana do Tradutor e no
III Simpósio Internacional de Tradução. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita
Filho” (Unesp), campus de São José do Rio Preto, 2021.
Haug, Frigga. “Tradução do Verbete Hausfrauisierung (H)”. Tradução de Mylene Teixeira e
Victor Strazzeri. Revista Estudos Feministas, v. 26, n. 2, p. 1-6, 2018.
Lugones, María. “On Complex Communication”. Hipatia, vol. 3, p. 75-85, 2006.
Mies, Maria. Patriarchy and Accumulation on a World Scale:Women in the International Division
of Labour. London & Atlantic Heights: Zed Books, 1986.
Mies, Maria. Patriarcado y acumulación a escala mundial. Tradução de Paula Martín Ponz e
Carlos Fernández Guervós. Madri: Traficantes de Sueños, 2019.
Mies, Maria; Shiva, Vandana. Ecofeminismo. Tradução de Carolina Caires Coelho. Belo
Horizonte: Editora Luas, 2021.
Moraga, Cherríe. “Catching Fire”. Em: Moraga, Cherríe; Anzaldúa, Gloria (ed.), This
Bridge Called my Back: Writings by Radical Women of Color. Albany: State University of
New York Press, 2014.
Rosas, Cecília; Bittencourt, Juliana; Izidoro, Leila Giovana; Oliveira-Macedo, Shisleni.
“Conjurando traduções: a tradução coletiva de Caliban and the Witch ao portu-
guês brasileiro como estratégia feminista transnacional”. Mutatis Mutandis. Revista
Latinoamericana de Traducción, vol. 13, n. 1, p. 117-138, 2020. DOI: 10.27533/udea.mut.
v13n1a06.
Rosas, Cecília; Oliveira-Macedo, Shisleni. “Coletivo Sycorax: uma experiência de tradução
coletiva feminista”. (comunicação) XL Semana do Tradutor e no III Simpósio Internacional
de Tradução. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), campus
de São José do Rio Preto, 2021.
AS FEMINISTAS DESCOBREM ROSA
LUXEMBURGO: O CALDO DE CULTURA EM
QUE ENCONTRAMOS MARIA MIES

ISABEL LOUREIRO

“[...] não haverá libertação para as mulheres a


menos que se ponha também fim à exploração
da natureza e de outros povos.”
Maria Mies, Patriarcado e acumulação em escala
mundial

O PRIMEIRO movimento feminista na Alemanha surgiu no tumulto da re-


volução de 1848 combatendo o sistema político autoritário, o que o levou
quase naturalmente à reivindicação da igualdade de direitos entre os sexos.
Setenta anos depois, esse movimento obteve sua primeira vitória quando,
com o fim da monarquia, as mulheres conquistaram o direito de votar e serem
votadas. Clara Zetkin, a maior liderança feminista da social-democracia alemã,
contribuiu de modo considerável para esse processo. Mas ela e suas compa-
nheiras pensavam que, para além das vitórias parciais, a verdadeira emancipa-
ção das mulheres só se realizaria numa sociedade socialista.
Também em 1968, o chamado “novo movimento feminista” foi impulsio-
nado pela radicalização política, dessa vez oriunda do movimento estudantil.
A APO (Oposição Extraparlamentar) e a SDS (Liga dos Estudantes Socialistas),
organizações estudantis de grande protagonismo na época, estão na origem
desse renascimento. A rejeição a todo tipo de autoritarismo – das instituições
estatais, partidos políticos, família, escola – deu impulso ao novo feminismo.
As mulheres começaram a questionar a divisão sexual do trabalho, presen-
te também no movimento estudantil. A elas eram destinadas tarefas como
datilografar manifestos, fazer café e cuidar dos filhos, enquanto os homens
participavam de manifestações, discutiam e lideravam. Elas quase não falavam
X PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

nas assembleias, e quando o faziam eram ridicularizadas ou desconsideradas.


Nessa época de efervescência política e social, quando a sociedade passava por
uma transformação acentuada das normas e valores tradicionais, a leitura da
obra de Marx e Engels, proibida na Alemanha nazista, contribuiu para que as
mulheres questionassem a fundo seu papel subordinado na sociedade, não só
do ponto de vista prático, mas também teórico. É nesse caldo de cultura que
encontramos a autora do livro ora publicado.
No movimento feminista da década de 1970, o nome de Rosa Luxemburgo
era quase desconhecido. Considerada uma “mulher masculinizada”, parecia
que não tinha nada a oferecer às mulheres. Luxemburgo de fato não era fe-
minista; ela não queria lidar com “assuntos de mulher”, que deixava para sua
amiga Clara Zetkin, e sim fazer política em pé de igualdade com os homens.
Nos poucos artigos em que trata especificamente da questão feminina, Rosa
não oferece nenhuma contribuição teórica relevante.1
No entanto, o grupo de mulheres orientado por Frigga Haug em 1987-
88 na Universidade de Hamburgo, ao estudar os escritos políticos da revo-
lucionária polonesa, acabou tirando consequências teóricas para o feminis-
mo. Num primeiro momento, Rosa aparecia como modelo inspirador por
ocupar o espaço público enquanto intelectual, oradora, jornalista, professora
da escola do partido e também por sua vida privada, alheia aos hipócritas
valores burgueses.2 Numa época em que era consensual considerar a par-
ticipação feminina no espaço público como um avanço em termos de hu-
manização, foi preciso ver mulheres em altos cargos para perder as ilusões a
esse respeito. Mas, dando um passo adiante, as feministas perceberam que o
eixo do pensamento político de Luxemburgo – as massas só se libertam por
meio de sua ação autônoma – era válido também para a emancipação das
mulheres. Assim como as massas, se as mulheres não agirem por si mesmas,
outros sempre agirão sobre elas. A libertação dos subalternos, tanto uma
classe social quanto as mulheres, só pode resultar da ação autônoma das

1 Frigga Haug, Rosa Luxemburg und die Kunst der Politik [Rosa Luxemburgo e a arte da políti-
ca]. Hamburgo: Argument, 2007.

2 Frigga Haug comenta como foi importante para o grupo a leitura de Raya Dunayevskaya,
Rosa Luxemburg, Women’s Liberation, and Marx’s Philosophy of Revolution [Rosa Luxemburgo,
libertação das mulheres e a filosofia da revolução de Marx]. Atlantic Highlands: Humanities
Press Inc., 1981.
MARI A MI ES XI

próprias concernidas. Liberdade outorgada não é verdadeiramente liberdade.


Essa é uma das vertentes da recepção feminista de Rosa Luxemburgo na
Alemanha ocidental. A outra é a que tira consequências teóricas da sua obra
de economia política.
A primeira a fazer a costura entre A acumulação do capital (1913) e o fe-
minismo foi Eva Senghaas-Knobloch. Ela aplicava ao trabalho doméstico das
mulheres a análise de Luxemburgo de que o capital, para se reproduzir, preci-
sava da contínua exploração e destruição das sociedades não capitalistas.3 Num
primeiro momento, a ideia não encontrou repercussão no movimento femi-
nista. Mas, no começo dos anos 1980, foi acolhida, desenvolvida e difundida
mundialmente por Maria Mies, Claudia von Werlhof e Veronika Bennholdt-
Thomsen.4 O trabalho doméstico/trabalho de subsistência no mundo inteiro
foi definido como a parte ainda não totalmente capitalizada de que o capita-
lismo precisava para sua reprodução.
As reflexões dessa trinca de pesquisadoras, conhecida como “o grupo de
Bielefeld” por sua ligação com a universidade do mesmo nome, são contem-
porâneas da obra da economista marxista Christel Neusüß, que também se
inspira em Luxemburgo para repensar o feminismo a partir de uma crítica
ao marxismo ortodoxo e ao movimento operário.5 Ela reinterpreta Marx
como o criador do “modelo do mestre de obras (cabeça-mão)”, segundo o
qual as coisas mortas, concebidas na cabeça dos homens e produzidas pelas
mãos, têm predominância sobre o que é vivo, feminino, sobre a natureza e
o ventre, o que limita seu conceito de trabalho. Marx teria esquecido o es-
sencial, e o movimento dos trabalhadores, seu herdeiro, continuou a obra de
racionalização patriarcal do mundo. A cabeça – racional, disciplinada, objetiva,
não influenciada por sentimentos – é separada do corpo. Tudo o que não é
cabeça é irracional, caos a ser subjugado, incluindo as mulheres “sem cabeça”

3 Eva Senghaas-Knobloch, Weibliche Arbeitskraft und Reproduktion der Gesellschaft [O tra-


balho feminino e a reprodução da sociedade]. Leviathan, 4, 1976, p. 543-558.

4 Claudia von Werlhof, Maria Mies e Veronika Bennholdt-Thomsen, Frauen, die letzte Kolonie
[Mulheres, a última colônia], Reinbeck, 1983.

5 Christel Neusüß, Die Kopfgeburten der Arbeiterbewegung, oder die Genossin Luxemburg bringt alles
durcheinander [O nascimento da cabeça do movimento operário, ou a camarada Luxemburgo
confunde tudo]. Hamburgo: Rasch und Röhring, 1985.
XII PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

e a natureza “sem consciência”. As mulheres e seu trabalho de reprodução da


vida são, assim, sistematicamente excluídos do conceito marxista de trabalho.
Neusüß analisa os desdobramentos dessa ideia nas concepções da social-
-democracia: a cabeça é a liderança, as mãos, as massas trabalhadoras que sem
a “cabeça” não podem fazer nada. De um lado, quantificação, racionalização,
economia científica, progresso, produção: predomínio do morto. De outro,
mulheres (se não forem trabalhadoras da indústria), povos “primitivos” e na-
tureza, considerados não produtivos, e o próprio homem, que só é visto como
produtivo enquanto labuta na fábrica ou na esfera pública.
Contra o predomínio do morto no capitalismo e no movimento dos tra-
balhadores, Neusüß relê Luxemburgo de uma perspectiva feminista: “Seu
olhar para a sociedade é o olhar de uma mulher”.6 Nas suas polêmicas com os
líderes do movimento operário, Rosa argumenta do ponto de vista da prática,
das situações concretas, vivas. Se ela “põe tudo de ponta-cabeça”, é porque
se recusa a compartimentar a realidade em nichos separados. Ao adotar o
ponto de vista da totalidade, ela era a única no SPD a rejeitar o colonialismo,
o aniquilamento das populações tradicionais – camponesas ou indígenas – e
a brutal sujeição das colônias à lei do progresso do homem branco, que não
significava a vitória da civilização, e sim o amálgama entre militarismo, guerra
e acumulação do capital. Enquanto os companheiros de partido, fixados na
razão e nos cálculos, ignoravam os seres humanos de carne e osso, que sofriam
com o rolo compressor da modernização capitalista, Rosa era sensível às dores
dos colonizados.
Mas Neusüß toma cuidado para não transformar Rosa numa “românti-
ca” inimiga do desenvolvimento, reconhecendo que nela convivem as duas
facetas: uma visão “progressista” do mundo, apegada ao desenvolvimento das
forças produtivas como emancipador, e a visão sem ilusões desse processo,
preponderante sobre a primeira. Nesse sentido, ela teria uma concepção de
“desenvolvimento” diferente de Marx, Engels e da “facção masculina”. E tam-
bém uma ideia de economia que contradiz a imagem do progresso incessan-
te: “A maneira como um povo executa todo esse trabalho, como reparte os
produtos por todos os seus membros [...] e no eterno círculo da vida os produz

6 Ibidem, p. 282.
MARI A MI ES XIII

novamente, tudo isso junto forma a economia do povo em questão.”7 Para


Rosa, o racional seria o “eterno círculo da vida”, e não a eterna linha ascen-
dente. O decisivo seria a reprodução. Apenas produção e reprodução juntas
geram desenvolvimento.
A leitura de Neusüß é uma tentativa original de renovar a interpretação
de Rosa Luxemburgo à luz do feminismo e das catástrofes do século XX.
Ante a energia atômica, o desequilíbrio ecológico e a tecnologia genética, é
compreensível a valorização da vida e a recusa das ideias de progresso e de
desenvolvimento das forças produtivas, caras ao marxismo tradicional.
Também Maria Mies e suas amigas, críticas do eurocentrismo e preocupa-
das com a questão feminina, a questão colonial e a ecológica, foram levadas a
uma leitura inovadora de A acumulação do capital.8 Rosa Luxemburgo redigiu
essa obra quando combatia o imperialismo e os preparativos de guerra do im-
pério alemão. Ela critica Marx quando, no Livro II de O capital, ele dizia que o
infindável processo de acumulação do capital resulta apenas da exploração da
classe trabalhadora pelos capitalistas. O capitalismo totalmente desenvolvido
não precisaria da violência externa ao domínio econômico, nem da explora-
ção de colônias, bastando a exploração de mais-valor criado pelo trabalhador
e não pago no processo de produção.
Luxemburgo argumenta então que Marx, desconsiderando a realidade do
capitalismo histórico, não vê que o capital, em seu perpétuo movimento de
acumulação, carece da força de trabalho adicional de todas as raças da Terra
e de mercados adicionais inexistentes na metrópole. É o que Rosa chama de
“formas de produção não capitalistas”, necessárias à acumulação, mesmo nos
estágios mais desenvolvidos do capitalismo. Ao analisar o desenvolvimento
do capitalismo como um sistema global, ela insiste que a violência e o saque,
restritas por Marx à “acumulação primitiva” do capital, continuam até o pre-
sente. Nesse processo de “acumulação primitiva permanente”, a violência é
um fator econômico.

7 Rosa Luxemburgo, Introdução à economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1975, p. 43, tra-
dução modificada.

8 Maria Mies, “‘Akkumulation des Kapitals’ und die Notwendigkeit einer neuen Ökonomie
[“A acumulação de capital” e a necessidade de uma nova economia], Rosa Luxemburg Konferen-
zen 98/99, Berlim,Verlag, 8, maio de 1999.
XIV PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Nossas feministas, cujas pesquisas em países do Terceiro Mundo as fizeram


sensíveis ao sofrimento dessas populações, em particular das mulheres, viram
na análise de Luxemburgo – precursora da teoria da dependência e do con-
ceito de sistema-mundo – uma resposta teórica que dava sentido a suas ob-
servações empíricas. A partir daí, estenderam a análise de Rosa, circunscrita à
situação dos camponeses e artesãos, das colônias e do sistema imperialista, ao
trabalho doméstico não pago, aos pequenos agricultores de subsistência, aos
trabalhadores precarizados de ambos os sexos e também à natureza, fonte de
recursos gratuitos infinitamente exploráveis. E concluíram que todos esses
âmbitos invisíveis de trabalho não pago ou mal pago são vitais para a acumu-
lação do capital. O modelo desse trabalho é o da dona de casa. Daí o con-
ceito de donadecasificação9 do trabalho, que significa não só a reprodução
gratuita da força de trabalho pelo trabalho doméstico privado, mas também
o trabalho precarizado na produção, sobretudo das mulheres. Em suma, sem
o trabalho não pago das mulheres, sem as colônias, suas matérias-primas e
sua força de trabalho e, por fim, sem a exploração da natureza, não existiria
acumulação do capital.
Assim como nos primórdios do movimento feminista na Alemanha as
socialistas consideravam ilusória a emancipação das mulheres nos marcos da
sociedade capitalista, também o novo feminismo propõe uma nova civilização,
para além das fronteiras do capital, que recupere a “perspectiva de subsistên-
cia” como alternativa à barbárie. Ou seja, o “controle das comunidades sobre
suas condições de existência locais e regionais, sobre a terra, as florestas, os
recursos, a força de trabalho, a biodiversidade, a cultura etc.”10
No alvorecer da Segunda Guerra Mundial,Walter Benjamin sugeria poeti-
camente que nas vozes do presente a que prestamos atenção ressoaria um eco
das vozes emudecidas do passado, sinal da existência de “um encontro secreto
[...] marcado entre as gerações passadas e a nossa”. Não estaríamos nós, justo
agora, presenciando esse “encontro secreto” e escutando na visada radical do

9 Esse termo traduz a palavra alemã Hausfrauisierung, originária de Hausfrau (dona de casa).
Para uma análise crítica desse conceito, ver “Tradução do verbete Hausfrauisierung”, de Frigga
Haug, traduzido por Mylene N. Teixeira e Victor Strazzeri, em: Revista Estudos Feministas, Flo-
rianópolis, 26 (2), 2018. Aqui, como em todo este livro, o substantivo alemão é traduzido por
“donadecasificação” (ver “Prefácio à edição brasileira”).

10 Maria Mies, op. cit., p. 182.


MARI A MI ES XV

feminismo popular latino-americano contemporâneo – anticapitalista, antir-


racista, anti-imperialista, internacionalista e ecossocialista – o eco da voz de
Rosa Luxemburgo e de suas irmãs feministas de 40 anos atrás?

São Paulo, junho de 2021.


PREFÁCIO
SILVIA FEDERICI

HÁ MUITAS razões pelas quais uma nova edição de Patriarcado e acumulação


em escala mundial é muito bem-vinda. Considerado já na década de 1990
como um clássico da literatura feminista e leitura obrigatória para ativistas e
estudiosas e estudiosos do crescente movimento antiglobalização, o livro foi
e continua sendo extremamente relevante, mas hoje se dirige a um público
ainda mais capaz de apreciar seu conteúdo e metodologia. Propondo uma
visão da história mundial centrada na “produção da vida” e na luta contra
a exploração da vida, este livro fala diretamente sobre a crise que muitas
pessoas hoje vivenciam diante do ataque às vidas humanas e da destruição
do meio ambiente, principalmente em uma época em que a aparente inca-
pacidade de movimentos populares – ainda que poderosos – de provocar
mudanças sociais positivas gera uma busca por novos paradigmas.
O livro Patriarcado e acumulação recupera, para uma geração mais jovem
radicalizada pelo movimento Occupy e pelos movimentos das praças pú-
blicas, o núcleo radical do feminismo, enterrado sob anos de cooptação
institucional e negação pós-moderna da existência de qualquer terreno de
comunalidade entre as mulheres. A obra traz de volta a ideia, tão forte na
fase inicial do movimento feminista, de que falar de mulheres é tocar em
algo muito fundamental na história e em nossa vida cotidiana. Pois, como
Mies coloca, as mulheres não são um grupo particular de seres humanos
entre outros; são elas que, em todos os tempos e em todas as sociedades,
produziram vida no planeta e de cujo trabalho dependem, portanto, todas
as demais atividades. Assim, rastrear as origens da exploração das mulheres
é perguntar por que e onde a história “deu um passo errado”, quais são as
forças impulsionadoras da história mundial e qual é a verdade do sistema
capitalista em que vivemos.
18 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Essa é a missão assumida por Patriarcado e acumulação, e o resultado é uma


reconstrução histórica e teórica cujo escopo tem sido definido como “ar-
rebatador”. Seguindo a trilha de séculos de violência masculina contra as
mulheres e cruzando espaço, tempo e fronteiras disciplinares, o livro relaciona
sociedades de caçadores/coletores com o desenvolvimento do capitalismo
e do colonialismo, demonstra as armadilhas dos movimentos de libertação
nacional, expõe a continuidade essencial entre capitalismo e socialismo, ao
mesmo tempo que traz à tona os fundamentos materiais das hierarquias que
têm caracterizado a divisão sexual do trabalho e destaca os princípios que
devem reger uma sociedade não baseada na exploração.
Há, portanto, muito conhecimento histórico e político a ser colhido neste
livro. Patriarcado e acumulação também nos dá uma importante lição metodo-
lógica: trata-se de um excelente exemplo daquilo que requer a construção
de uma teoria. E o mais importante, combinando as teorias produzidas pelo
movimento Salários para o Trabalho Doméstico [Wages for Housework], prin-
cipalmente no que tange à identificação do trabalho doméstico não pago
das mulheres como o pilar da acumulação capitalista, com a análise terceiro-
-mundista das economias camponesas e da colonização, o livro desenvolve um
arcabouço teórico que nos permite pensar conjuntamente sobre as diferentes
formas de exploração e os movimentos sociais. Permite-nos ainda reconhecer
o que tanto divide ou une as mulheres e faz do feminismo uma sonda para
apreender as principais tendências da reestruturação da economia mundial.
Inevitavelmente, uma obra de tamanha envergadura levantará muitas ques-
tões. Algumas pessoas podem relutar diante da tese que sustenta o livro: a de
que no início da história houve uma divisão sexual do trabalho por meio da
qual os homens se especializaram nas artes da violência e destruição, enquanto
as mulheres se especializaram em atividades de produção da vida diária, e de
que, a cada geração e com o passar do tempo, essa divisão se consolidou em
um sistema “patriarcal” no qual a apropriação violenta do trabalho das mulhe-
res pelos homens se tornou a força dominante da produção.
Trata-se de uma afirmação provocadora, que vira de cabeça para baixo as
narrativas sobre a civilização que nos foram ensinadas na escola, e imagino que
inspirará alguns projetos de pesquisa antropológica a buscar evidências que
a comprovem. Mas, independentemente de os detalhes empíricos da teoria
de Mies sobre a origem do patriarcado poderem ou não ser comprovados, o
MARI A MI ES 19

poder lógico de seu argumento não deve ser menosprezado, pois nos desafia
a explicar a presença generalizada da violência masculina contra as mulheres
e confronta, inclusive, as pessoas “céticas” quanto ao gênero ao apresentar-
-lhes uma inegável base comum para suas posições. Desmistifica também o
suposto caráter inovador e criativo do capitalismo, “última manifestação do
patriarcado”, evidenciando sua dependência parasitária da livre apropriação
da natureza e do corpo e do trabalho das mulheres.
Como Mies demonstra, somente com o advento do capitalismo o uso
da violência como força econômica foi universalizado e intensificado para
além do que havia sido exercido em qualquer sistema anterior. Pois, como
ela argumenta, a formação de um sistema mundial permitiu ao capitalis-
mo externalizar a exploração, multiplicar suas divisões coloniais e acelerar
a destruição da riqueza natural do planeta. Nesse contexto, uma das partes
mais potentes de Patriarcado e acumulação é a análise que a autora faz da con-
tinuidade entre os processos que caracterizaram a primeira fase do desen-
volvimento capitalista – caça às bruxas, tráfico de escravos, colonização – e
aqueles que caracterizaram a reestruturação da economia mundial em nosso
tempo, mostrando que o “desenvolvimento em um polo sempre represen-
tou subdesenvolvimento no outro” e que acumulação primitiva não pode
ser confinada às origens da sociedade capitalista, pois tem sido um aspecto
essencial de todas as fases do desenvolvimento capitalista e agora se tornou
um processo permanente.
Essa é uma “verdade” que os desenvolvimentos sociais e políticos desde a
primeira publicação de Patriarcado e acumulação têm verificado repetidamente.
O mesmo acontece com a afirmação do livro em relação à conexão causal
direta entre a extensão global das relações capitalistas e a escalada da violência
contra as mulheres, como punição contra sua resistência à apropriação de
seus corpos e trabalho. Não só milhares de mulheres, como também muitos
homens jovens, continuam a ser escravizados e a morrer nas “zonas de franca
exportação”, as workhouses do nosso tempo.11 A violência contra as mulheres
aumentou tanto nos últimos anos que o termo “feminicídio” agora é comu-
mente empregado até mesmo em relatórios governamentais; na Itália, em

11 Na história britânica, as workhouses eram estabelecimentos onde pessoas pobres que não
possuíam meios de subsistências trabalhavam em troca de abrigo e alimentação. [N. das T.]
20 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

2013, o feminicídio foi introduzido como crime no código penal. Enquanto


isso, em todo o mundo, testemunhamos o ressurgimento da caça às bruxas.
Mies tem o mérito de, ao descrever as forças destrutivas que o capitalismo
patriarcal desencadeou, não suavizar sua crítica nem oferecer soluções rápi-
das, validando, em vez disso, o crescente entendimento de que o capitalismo
não pode ser reformado. Patriarcado e acumulação, entretanto, é também uma
acusação ao marxismo. Como Mariarosa Dalla Costa e outras ativistas e teó-
ricas políticas da campanha Salários para o Trabalho Doméstico, Mies critica
o conceito redutor de trabalho de Marx e vai ainda mais longe ao rejeitar a
terminologia desenvolvida por ele – argumentando, por exemplo, que concei-
tos como “produtividade” e “trabalho excedente”, na interpretação de Marx,
contribuem para a mistificação do que constitui a produção.
Atualmente, até mesmo muitos marxistas concordam com essa crítica, pelo
menos teoricamente, pois décadas de escritos e campanhas feministas retira-
ram qualquer dúvida de que produzir seres humanos é trabalho, e trabalho do
qual o capitalismo depende. Mais polêmica, mas especialmente importante no
contexto social atual, em que o domínio da tecnologia em nossas vidas nunca
foi tão forte, é a rejeição de Mies do sonho marxiano de uma sociedade to-
talmente industrializada, na qual as máquinas realizam todo o trabalho, como
condição para a libertação humana. Segundo a poderosa linha argumentativa
de Maria Mies, tal sonho ignora o fato de que não é o trabalho como tal que
é opressor, mas as relações sociais de exploração que o sustentam.
Essa é uma mensagem crucial para muitas e muitos de nós que, apesar da
recusa crescente da sociedade capitalista, ainda se encantam com a produção
tecnológica do capitalismo, muitas vezes presumindo que adquirimos poder
por meio do Facebook ou Twitter. Para essas pessoas, e na verdade para todas
e todos nós, Patriarcado e acumulação é um guia político fundamental. O livro
não nos permite esquecer a que custo novas tecnologias são produzidas, quais
violências elas desencadeiam e como a generalização dessas tecnologias capi-
talistas teria efeito destrutivo sobre a força produtiva da terra.
Aqui, também, a história está do lado da análise de Mies – no mundo pós-
-Fukushima, o sonho marxiano de uma industrialização contínua tornou-se o
pesadelo da humanidade. Mais do que isso, a resposta das pessoas à atual crise
capitalista tem confirmado a visão de Mies de que os reais sujeitos revolucio-
nários não são os programadores de computador e outros agentes da mecani-
MARI A MI ES 21

zação, mas as milhões de mulheres que com menos de “um dólar por dia” têm
lutado para manter suas comunidades vivas, principalmente por meio de seu
trabalho de subsistência e da criação de formas cooperativas de reprodução
social. É a presença implícita delas – e a presença das muitas mulheres que
lutam diariamente para criar formas de existência e relações sociais não regi-
das pela lógica da acumulação capitalista – que dá poder ao trabalho de Mies.
É por isso que, apesar do retrato rigoroso que traça dos poderes destrutivos
do capitalismo, Patriarcado e acumulação não estimula nenhum tipo de pessi-
mismo histórico, pois expressa a confiança de que o capitalismo ameaça tão
profundamente a reprodução da vida que nossa revolta contra ele não pode
ser domada e ressurgirá reiteradamente na agenda da humanidade até que ele
chegue ao fim.
PREFÁCIO
MARIA MIES

ESTOU MUITO feliz que meu livro Patriarcado e acumulação em escala mundial,
publicado pela primeira vez pela Zed Books em 1986, esteja sendo publicado
novamente. No entanto, eu me pergunto: será que o livro ainda é relevante?
Se sim, por quê? Minha análise e minhas conclusões ainda são as mesmas em
um mundo em que uma crise vem seguida de outra e em que há uma guerra
após a outra? O que mudou desde 1986?
Minhas primeiras perguntas são: os conceitos de patriarcado e capitalismo
ainda são válidos em um mundo onde o livre comércio está dominando toda
a vida econômica, política e social? E, conforme escrevi em 1986, o capita-
lismo e o patriarcado continuam interligados? Minha análise do trabalho das
mulheres sob o patriarcado capitalista mudou? A violência contra as mulheres,
a natureza e outras colônias não desapareceu de nossa sociedade civilizada?
Antes de responder a essas perguntas, quero ilustrar como descobri con-
ceitos como patriarcado, capitalismo e exploração das mulheres, da natureza e
das colônias. Uma coisa era nítida desde o início: minhas ideias não surgiram
enquanto eu estava sentada na Biblioteca Britânica, lendo livros sobre econo-
mia política, mas sim participando de uma série de movimentos sócio-polí-
ticos, particularmente do movimento feminista, mas também do movimento
estudantil, do movimento ambientalista, do movimento pela paz e, mais tarde,
do movimento antiglobalização. Na verdade, escrever e ler livros veio durante
e após essas lutas. Isso significa que a prática veio antes da teorização. Isso era
– e é – particularmente verdadeiro para o movimento feminista, porque não
havia livros para explicar por que as mulheres ainda são oprimidas, exploradas
e não recebem a mesma remuneração que os homens.
Patriarcado e acumulação é o resultado desse processo entrelaçado de ação
e reflexão, de experiência e teoria. Mas também foi escrito em um mo-
24 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mento histórico particular, quando pessoas de diferentes partes do mundo,


especialmente mulheres, fizeram perguntas semelhantes. E eu tive a sorte de
encontrar as pessoas certas na hora certa e no lugar certo, pessoas que viram
a necessidade de mudar o status quo e estavam confiantes de que poderiam
fazer isso. Portanto, Patriarcado e acumulação é fruto da conjuntura dessas di-
ferentes circunstâncias.
Descreverei a seguir os principais estágios desse processo de descobrir o
que significa patriarcado, o que é capitalismo, por que os dois estão necessa-
riamente conectados e quais são as consequências desse “casamento”.
Em 1963, tornei-me professora no Instituto Goethe em Pune, na Índia.
Os alunos, homens e mulheres, vinham de todos os cantos da Índia. Era ní-
tido por que os homens queriam aprender alemão: queriam conseguir um
emprego na Alemanha, ou estudar física ou outras ciências. Mas por que as
mulheres indianas queriam aprender alemão? Que uso o alemão teria para
elas? Fiz uma pequena investigação, que mais tarde foi publicada com o título
“Why German?” [“Por que alemão?”] (Mies, 1967).
Minha hipótese sobre os homens estava correta. Mas as respostas das mu-
lheres foram uma surpresa: elas estudavam alemão porque queriam adiar a
“conversa sobre casamento”. Eu me perguntava o que seria isso. Elas me
disseram que todas tinham de se submeter a um casamento arranjado, caben-
do aos pais decidir com qual homem de qual família sua filha se casaria. Tal
casamento arranjado era a regra em todas as famílias de classe média e classe
média-baixa. Nem noivo nem noiva tinham muito a opinar sobre a decisão.
Em famílias mais tradicionais, eles sequer podiam se ver. O importante era
que a casta, a classe, o status familiar e a situação financeira se encaixassem.
Uma das maiores dificuldades das “conversas sobre casamento” foi e é a ne-
gociação do dote que a família da noiva tem de pagar para a família do noivo.
Muitas famílias mais pobres com grande número de filhas contraíam – e
ainda contraem – altas dívidas para encontrar noivos para elas. Por outro lado,
uma filha solteira não tinha segurança econômica ou status social, e era uma
desgraça para os pais. Essa situação mudou hoje, mas casamentos arranjados
e exigências de pagamento de dotes altos ainda são comuns. Em famílias de
classe média mais escolarizadas, no entanto, as filhas poderiam adiar as nego-
ciações matrimoniais enquanto estudassem, já que a educação goza de alto
prestígio para a classe média indiana, mesmo em relação às filhas. Assim, os
MARI A MI ES 25

pais não dariam início à conversa sobre casamento enquanto a filha estivesse
cursando um bacharelado ou mestrado. Para aquelas alunas, “estudar alemão”
era, portanto, uma desculpa para adiar essas negociações matrimoniais. Mas,
ao fim, elas eram obrigadas a se casar com um homem que normalmente
não conheciam.
Eu ainda não sabia o que o conceito de “patriarcado” realmente implicava.
Mas as conversas com minhas alunas me fizeram vislumbrar, pela primeira vez,
o que significa ser uma mulher em uma sociedade patriarcal. Abriram meus
olhos para a opressão social das mulheres e as relações patriarcais entre homens
e mulheres. Entretanto, eu ainda não entendia que o patriarcado é um sistema
que não existe apenas na Índia.
Com Iravati Karve, uma antropóloga mundialmente renomada, aprendi
que o que ouvi de meus alunos e alunas era apenas uma das características
de todo um sistema social e familiar patriarcal que existia no subcontinente
indiano há milhares de anos. A partir daí, quis saber mais sobre esse sistema.
Então, quando voltei à Alemanha em 1968, quis pesquisar a questão: por que
as mulheres indianas modernas ainda são oprimidas por um sistema familiar
patriarcal? Fui à Universidade de Colônia encontrar o professor René König,
professor catedrático de Sociologia e um sociólogo da família conhecido in-
ternacionalmente. Contei a ele minhas experiências na Índia e meu interesse
em estudar mais sobre mulheres indianas modernas. Naquela época, nenhuma
universidade na Alemanha oferecia disciplina sobre estudos das mulheres, mui-
to menos sobre estudos das mulheres indianas modernas. O professor König
ficou fascinado pelo tema e disse: “Por que você não faz um doutorado sobre
o assunto?” Eu respondi: “Se isso for possível, eu faço.”
Voltei para a Índia e fiz pesquisas empíricas sobre os dilemas e conflitos
das mulheres modernas de classe média. Os resultados confirmaram o que eu
já havia observado cinco anos antes, ou seja, que o patriarcado é um sistema
social, cultural, econômico e político global que determina a vida de uma
mulher desde o nascimento até a morte. Outra lição que aprendi foi que o
patriarcado não é uma coisa do passado, mas algo que ainda hoje prospera
apesar da “modernização e desenvolvimento”. Escrevi minha dissertação sobre
os conflitos e dilemas das mulheres indianas modernas, que foi publicada na
Índia sob o título Indian Women and Patriarchy [Mulheres indianas e patriarca-
do] (Mies, 1980a).
26 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

No entanto, enquanto estudava o status das mulheres no patriarcado india-


no, descobri o patriarcado alemão!
Eu tinha voltado para a Alemanha no momento histórico certo. Na
Alemanha de 1968, surgiram dois movimentos sociopolíticos novos e decisi-
vos: o movimento estudantil e o novo movimento feminista. Ambos atacavam
os fundamentos sociais, econômicos e políticos da sociedade. O movimento
estudantil iniciou sua rebelião antiautoritária contra instituições estabelecidas
como a família, a universidade, a Igreja e o Estado. Os estudantes começaram
a estudar o marxismo – considerado tabu desde o fim da Segunda Guerra
Mundial na Alemanha – e a ler as principais obras de Marx e Engels e outros
socialistas. As feministas atacavam as leis familiares, particularmente a proibição
do aborto, a violência contra as mulheres, os espancamentos, os estupros e a
desigualdade entre homens e mulheres. Não começamos a ler livros funda-
mentais sobre a opressão das mulheres porque esses livros ainda não existiam,
mas começamos com ações de luta contra a opressão das mulheres. Por meio
dessas lutas, descobri muitos paralelos entre a situação das mulheres indianas e
alemãs. Em ambas as culturas, as mulheres eram tratadas como inferiores aos
homens. Na Alemanha, as mulheres também dependiam economicamente
de seus pais ou maridos; não havia igualdade entre homens e mulheres em
relação a educação, emprego, remuneração e situação jurídica de facto. Uma
mulher só podia ter um emprego se o marido concordasse. O status “normal”
de uma mulher era o de dona de casa dependente. Além disso, as mulheres
também eram vítimas de violência masculina na Alemanha.
Eu era muito mais velha do que a maioria das estudantes às quais me juntei
no movimento estudantil. Elas tinham formado “círculos de estudo marxista”,
e foi nesses círculos que li pela primeira vez o que Marx e Engels escreveram
sobre classe, luta de classes, trabalho, religião, família e revolução.Tudo isso foi
uma grande revelação para mim.
Desde o início, o movimento feminista na Alemanha fez parte do mo-
vimento internacional de mulheres. O ponto que mais me interessava era a
questão da divisão sexual do trabalho entre homens e mulheres. O debate so-
bre o papel do trabalho doméstico dentro da família e da sociedade capitalistas
foi decisivo para a minha compreensão do capitalismo. Por volta de 1980, eu
me envolvi nesse novo debate e comecei a ler Marx mais cuidadosamente,
em particular o que ele tinha a dizer sobre o trabalho, especialmente sobre o
MARI A MI ES 27

trabalho das mulheres no ambiente doméstico. Por muitos anos, esse debate
esteve no centro do discurso feminista internacional. Marx chamou o “traba-
lho das donas de casa” de “trabalho reprodutivo”, enquanto o trabalho de um
homem na fábrica era o “trabalho produtivo”.
Foi quando comecei a escrever “Social Origins of the Sexual Division of
Labour” [“Origens sociais da divisão sexual do trabalho”], um ensaio publica-
do em Women:The Last Colony [Mulheres: a última colônia], que foi coescrito
com minhas amigas Veronika Bennholdt-Thomsen e Claudia Von Werlhof
(Mies, Bennholdt-Thomsen & Von Werlhof, 1988). O livro foi amplamente
lido e discutido por mulheres no mundo inteiro. Nós três tínhamos trabalhado
e estudado em países do “Terceiro Mundo” – Veronika e Claudia na América
Latina, eu na Índia. Portanto, não examinamos apenas o efeito que o capita-
lismo teve sobre as mulheres na Europa e nos Estados Unidos, mas também
perguntamos o que isso significava para as mulheres nos denominados países
em desenvolvimento. Nós os chamamos simplesmente de colônias. Veronika
e Claudia olharam particularmente para a similaridade entre o trabalho das
donas de casa e o dos camponeses na América do Sul, e eu fiz o mesmo para a
Índia. Compreendemos que não somente o trabalho doméstico das mulheres
em todo o mundo era considerado “um recurso gratuito” para o capital, como
também o era o trabalho de pequenos camponeses e moradores de favelas nas
cidades. O mesmo era/é verdadeiro para as colônias e particularmente para a
natureza. Para os capitalistas, tudo isso são “colônias”, cuja produção pode ser
apropriada praticamente sem custos.
Não éramos as únicas a tentar compreender se os conceitos marxianos
como “relações de produção” ou “modos de produção” faziam sentido no
que diz respeito aos povos que trabalhavam não diretamente para o mercado,
mas para se manterem diariamente, ou seja, para sua subsistência. Para nós, a
subsistência tornou-se então o principal conceito para entendermos como
a acumulação capitalista realmente ocorre. Nós compreendemos imediata-
mente que o trabalho doméstico não remunerado era “trabalho reprodutivo”,
porque uma mulher trabalhava para “reproduzir” o trabalhador masculino, de
modo que ele pudesse vender seu trabalho por um salário na porta da fábrica.
Além disso, também “reproduziria” a geração seguinte de trabalhadores, de
modo que o processo da acumulação pudesse se perpetuar. Marx considerou
essa “reprodução diária e intergeracional da classe trabalhadora” como uma
28 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

questão de biologia. A maioria das feministas no Ocidente criticou Marx por


essa compreensão excessivamente biológica e sexista do trabalho doméstico
das mulheres.
Veronika – que tinha estudado mais minuciosamente tanto a obra de Marx
quanto a de Rosa Luxemburgo – nos contou que Luxemburgo também ti-
nha criticado Marx, não porque ele ignorou o trabalho não remunerado das
mulheres, mas porque ignorou camponeses e outros estratos não capitalistas
de trabalhadores não assalariados.
Rosa Luxemburgo escreveu que o modelo de Marx da acumulação de
capital em curso estava baseado na suposição de que o capitalismo era um
sistema fechado no qual existiam somente os trabalhadores assalariados e os
capitalistas. Ela escreveu que o capitalismo sempre precisou de “ambientes e
estratos não capitalistas” para sua ampliação. De acordo com sua tese, esses es-
tratos eram formados por camponeses, colônias e o sistema imperialista. Sem
a exploração contínua de trabalhadores não assalariados e de recursos natu-
rais e sem uma expansão perpétua dos mercados, o capitalismo não poderia
continuar seu processo de “acumulação primitiva” permanente (Luxemburgo,
1923). Rosa Luxemburgo não era feminista, mas sua análise foi crucial para
entendermos por que as mulheres, como trabalhadoras domésticas não remu-
neradas, as colônias e, finalmente, os recursos da natureza têm de ser explo-
rados para o processo de acumulação contínua de capital. Esse processo está
necessariamente baseado em violência e destrói a subsistência das pessoas e
da natureza.
Para colocar à prova nossa tese sobre a exploração das mulheres e dos
camponeses, voltamos aos países que tínhamos estudado antes – Veronika e
Claudia para a América do Sul, eu para a Índia. Na Índia, o novo movimento
feminista também tinha acabado de começar. Conheci um grupo de jovens
estudantes em Haiderabade que tinham iniciado uma campanha para abolir o
sistema de dote. Contei-lhes sobre meu projeto de pesquisa e perguntei onde
eu poderia encontrar uma área em que as mulheres fossem exploradas como
produtoras de subsistência. Elas me falaram sobre Narsapur, uma pequena
cidade na costa leste no Sul da Índia onde mulheres pobres faziam renda para
“terras estrangeiras”. Uma das estudantes, K. Lalitha, me acompanhou como
minha assistente e intérprete. Eu queria estudar as mulheres e seu trabalho em
uma indústria doméstica arquetípica.
MARI A MI ES 29

Meu estudo sobre as mulheres rendeiras em Narsapur foi a lição mais im-
portante que aprendi como socióloga e feminista. Essas mulheres faziam renda
crochetada do amanhecer ao anoitecer, sentadas em frente às suas cabanas de
barro até que não houvesse mais luz. Pelo trabalho, recebiam muito menos do
que o salário mínimo de uma trabalhadora agrícola sazonal.
O setor rendeiro estava organizado de acordo com o sistema putting-out
clássico12. As mulheres tinham de comprar os fios do exportador, que então
recolhia as rendas e as exportava para a Austrália e a Europa. Esse exportador
ficou milionário e tinha uma mansão em Narsapur. Porém, além do “trabalho
assalariado”, elas também tinham de cozinhar, limpar a cabana, lavar roupa,
deitar-se com seus maridos, dar à luz seus filhos, cuidar deles e realizar todos
os outros “trabalhos invisíveis” feitos por mulheres em todo o mundo. Por
isso, tiveram de combinar o trabalho reprodutivo com o trabalho produtivo
pessimamente pago. Seus “produtos” eram itens de luxo e eram exportados
para os países ricos – para as mulheres de lá. Chamei a combinação desses dois
tipos de trabalho de donadecasificação do trabalho. Publiquei os resultados da mi-
nha pesquisa no livro The Lace Makers of Narsapur [As rendeiras de Narsapur]
(Mies, 1982).
Hoje, os homens também têm de sentar “em casa” e trabalhar em um
computador para o mercado mundial. Embora não sejam tão pobres quanto
as rendeiras de Narsapur, estruturalmente suas condições de trabalho são se-
melhantes. Mas hoje isso é chamado de “trabalho precário”.
A etapa seguinte do meu processo de aprendizagem sobre a interconexão
entre patriarcado e capitalismo começou em 1979, quando fui convidada
pelo Instituto de Estudos Sociais (ISS) em Haia para criar um programa de
mestrado para mulheres de países em desenvolvimento. O título desse pro-
grama era “Mulheres e desenvolvimento”, e ele foi patrocinado pelo gover-
no holandês. Foi quando as instituições oficiais começaram a entender que
a “questão da mulher” seria importante para o desenvolvimento futuro do
mundo industrializado. Não tive problemas em encontrar candidatas para o
nosso programa. As mulheres vinham da Índia, Bangladesh, Tailândia, Sudão,
Somália, Trinidad e Tobago, Filipinas, Belize, África do Sul, e havia também

12 Também chamado de “sistema doméstico”, trata-se de um sistema de produção (desenvol-


vido antes da chamada Revolução Industrial) em que artesãos trabalham para comerciantes
em domicílio. [N. das T.]
30 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

duas holandesas que estavam muito interessadas em estudar os problemas das


mulheres do Terceiro Mundo.
No entanto, havia outro problema, que eu tive de resolver imediatamente.
Não havia um currículo para um curso de mestrado dessa natureza, não havia
livros, nem colegas a consultar. Por isso, eu mesma tive de desenvolver o pro-
grama. Para tanto, contei com a ajuda das minhas alunas. Pedi a elas que disses-
sem quais eram os principais problemas que as mulheres tinham de enfrentar
em seus próprios países. Suas histórias eram fascinantes e novas para todas
nós, e aprendemos muito umas com as outras. Apesar de todas as diferenças
culturais, compreendemos que as mulheres em todos os países do mundo
eram tratadas de modo semelhante: eram consideradas inferiores aos homens,
subordinadas, oprimidas, exploradas e, muitas vezes, tinham de enfrentar a
violência de seus maridos, de sua família e da sociedade. Em suma, todas eram
vítimas do patriarcado. Nos Países Baixos e na Alemanha, a violência contra
as mulheres também era “normal”.
Foi nessa época que as feministas começaram a estudar a história das mu-
lheres, porque essa história tinha sido amplamente apagada em todos os países.
Essa nova história feminina foi chamada de “história-dela”.13 Eu queria que
nossas alunas descobrissem, em seus respectivos países, a história-dela de suas
mães e avós. Perguntei às alunas se tinha existido um movimento de mulheres
anterior em seus países, e ficamos surpresas ao descobrir que tais movimentos
tinham sim existido, mas que tinham sido esquecidos ao longo do tempo.
Quando me perguntei o que eu sabia sobre os movimentos de mulhe-
res anteriores na Alemanha, percebi que também não sabia muito sobre essa
história; portanto, eu tinha de fazer meu próprio dever de casa primeiro.
Comecei a estudar o movimento social-democrata das mulheres do século
XIX e começo do XX. Quando li sobre essa história, aprendi que as mulheres
socialistas alemãs tinham formado a sua própria organização, separada das or-
ganizações oficiais, nas quais também podiam discutir as questões das mulhe-
res. Os homens socialistas não gostavam dessas organizações diferenciadas de
mulheres. Mas, quando o Partido Socialista foi proibido, as mulheres puderam

13 No original, her-story, um trocadilho com a palavra history, tem por objetivo (re)escrever a
história a partir de uma perspectiva das mulheres, evidenciando o papel destas. O trocadilho
bem-humorado consiste em trocar his (“dele”, em inglês) por her (“dela”) e não remeter à
etimologia original de history (história). [N. das T.]
MARI A MI ES 31

continuar com seu trabalho de agitação porque o chamavam de “trabalho cul-


tural”. O Estado não considerava as mulheres “politicamente perigosas”, por
isso foram deixadas em paz. Entretanto, depois que o partido foi legalizado
novamente, os líderes dissolveram as organizações de mulheres e pediram a
elas que se associassem como membros individuais.
Quando contei essa história no meu seminário, a maioria das mulheres
no curso contou experiências semelhantes, particularmente durante as lutas
de libertação do Terceiro Mundo. Nossa conclusão foi que as mulheres são
bem-vindas para lutar lado a lado com os homens pela libertação da opres-
são colonial, racista, imperialista e capitalista, mas, quando a guerra acaba,
elas são enviadas de volta para casa para retomar seu antigo papel de mãe e
dona de casa.
Outro problema foi que não havia livros didáticos na ISS sobre mulhe-
res em geral, muito menos sobre mulheres do Terceiro Mundo. Portanto,
tivemos que escrever nossos próprios livros. Eu e minha colega Kumari
Jayawardena, do Sri Lanka, que se juntou ao projeto após um ano, começa-
mos a escrever o que sabíamos sobre os movimentos de mulheres anteriores
em nossos próprios países, produzindo o livro National Liberation and Women’s
Liberation [Libertação nacional e libertação das mulheres] (1982). Kumari
escreveu sobre o movimento de mulheres anterior no Sri Lanka, eu escrevi
Marxist Socialism and Women’s Emancipation:The Proletarian Women’s Movement
in Germany [Socialismo marxista e emancipação das mulheres: o movimento
das mulheres proletárias na Alemanha].
Pedimos às nossas alunas que escrevessem artigos sobre o que sabiam da
história das mulheres em seus próprios países. Mais tarde, algumas das alunas
continuaram a pesquisa no doutorado. Por exemplo, Rhoda Reddock, de
Trinidad, escreveu a tese Women, Slavery,Work and Politics in Trinidad and Tobago
[Mulheres, escravidão, trabalho e política em Trinidad e Tobago] (1994). Com
seu estudo, aprendi que o comércio escravagista não era um dos chamados
modos de produção pré-capitalista, mas sim um resultado direto do capita-
lismo global, no qual particularmente as mulheres foram negociadas como
produtos. Os comerciantes de escravos calculavam se seria mais rentável per-
mitir às mulheres escravizadas que “se reproduzissem” ou se, ao contrário, seria
mais lucrativo comprar escravos novos. Chegaram à conclusão de que “é mais
lucrativo comprar do que reproduzir”. Por isso, não era permitido às mulheres
32 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

escravizadas ter filhos. As percepções que minhas amigas e eu havíamos tido


muitos anos antes – ou seja, de que as mulheres eram a força de trabalho mais
barata para o capital e que eram tratadas como colônias, do mesmo modo que
a natureza – foram confirmadas por uma série de histórias que nossas alunas
contaram sobre seus países de origem.
Mas as alunas também fizeram suas próprias pesquisas sobre a situação
das mulheres holandesas, pois não conseguiam entender por que as mulheres
holandesas ou ocidentais precisavam de um movimento de emancipação. Elas
não tinham tudo o que queriam? Elas podiam se casar com um homem que
amavam, tinham acesso à educação formal e podiam conseguir um empre-
go. O que mais elas queriam? Eu disse a elas: “Por que vocês não procuram
alguns dos grupos feministas na Holanda e descobrem?” Chamamos isso de
“trabalho de campo na Holanda”. Quando voltaram, fiquei pasma com seus
relatórios. Uma mulher das Filipinas escreveu: “Sempre pensei que os valores
ocidentais são bons para as pessoas do Ocidente e que os valores orientais são
bons para as pessoas do Oriente. Agora eu sei que os valores ocidentais não são
bons nem mesmo para os ocidentais.” Uma mulher africana escreveu: “Não
entendo essas mulheres holandesas. Elas falam de homens o tempo todo, se
estão solteiros, casados ou divorciados. Elas não têm nada mais importante
para fazer?”
Para aquelas alunas que tinham vindo de várias partes do mundo, sua
experiência na ISS foi fundamental. Elas aprenderam que os problemas das
mulheres eram semelhantes no mundo todo, apesar das diferenças culturais.
Elas também aprenderam que patriarcado e capitalismo estão conectados e
que temos que lutar contra os dois. Elas então criaram o magnífico lema: “A
cultura nos separa; a luta nos une.”

VIOLÊNCIA: O SEGREDO DO PATRIARCADO CAPITALISTA

A principal lição que aprendemos com as mulheres do Terceiro Mundo,


bem como com nossa história europeia, é que a violência direta foi o meio
pelo qual as mulheres, as colônias e a natureza foram obrigadas a servir ao
“homem branco” e que, sem tal violência, o Iluminismo europeu, a moder-
nização e o desenvolvimento não teriam acontecido.
MARI A MI ES 33

Na Europa, o período do Iluminismo começou com a brutal perseguição


e assassinato de mulheres acusadas de bruxaria, sendo a Alemanha um dos
centros da caça às bruxas. As feministas, em busca das raízes do machismo,
redescobriram entre 1976 e 1980 as atrocidades e crimes cometidos pela
Igreja, pelo Estado e pela ciência moderna contra as mulheres, em sua maio-
ria pobres, denunciadas como bruxas. A caça às bruxas começou no século
XII e durou até o século XVII. Muitas pesquisas históricas foram feitas sobre
a caça às bruxas na Europa, e as descobertas foram surpreendentes em todos
os aspectos – não só quanto às formas de tortura usadas para forçar uma
mulher a confessar que havia usado feitiços para prejudicar um vizinho ou
que tinha colaborado ou dormido com o diabo, como também quanto ao
trabalho conjunto entre a Igreja, o Estado, o direito e a “ciência moderna”
nesses julgamentos de bruxas.
Filósofos e cientistas políticos tentaram erradicar a “magia” e provocar o
nascimento do “Novo Homem” (Francis Bacon) ou aumentar a taxa de nata-
lidade em Estados absolutistas como o francês. Cientistas e médicos modernos
conseguiram demonizar as habilidades de parteiras e curandeiras para roubar
seus conhecimentos a fim de desenvolver a nova medicina científica. As câ-
maras de tortura eram verdadeiros laboratórios para descobrir o que poderia
ser feito a um corpo humano. No mesmo período, nossa Mãe Terra foi tor-
turada para que revelasse seus segredos ao Homem (Federici, 2004). Embora
se suponha que a caça às bruxas seja algo do passado, a visão de mundo dessa
época, a do Iluminismo e da racionalidade, ainda é a mesma. Está baseada na
crença de que a terra, a natureza e os seres humanos não são bons o suficien-
te como são, mas que devem ser melhorados, desenvolvidos, aperfeiçoados
para alcançar um “estágio superior” de civilização no planeta. Esse “estágio
superior” só pode ser alcançado por meio da tortura e da violência. Desde o
Iluminismo, as palavras-chave para a civilização ocidental são racionalidade e
progresso. Na economia capitalista moderna, a racionalidade não significa nada
além de acumulação ilimitada de capital.
A utopia socialista também se baseia na mesma lógica racionalista: no pro-
gresso e no desenvolvimento da ciência e da tecnologia. E estes precisam
fazer uso da violência para analisar a natureza, para descobrir seus segredos,
inclusive os do ser humano. Assim como aconteceu com as bruxas, para que
a racionalidade, a ciência, a tecnologia e a economia moderna pudessem ser
34 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

estabelecidas, todo pensamento selvagem, indomado, mágico e que levasse em


conta o passado teve de ser violentamente eliminado. Hoje não é diferente: a
violência é necessária para “civilizar”, “melhorar” o “mundo subdesenvolvido”
e a “natureza selvagem”. A violência ainda é portanto o segredo da civilização
capitalista-patriarcal moderna.

O QUE É DIFERENTE HOJE EM DIA?

De imediato, o que me vem à mente quando faço essa pergunta é que o cli-
ma geral é diferente hoje. Em 1968, muitas pessoas estavam cheias de esperan-
ça de que poderiam mudar as coisas, de que poderiam construir um mundo
melhor, de que poderiam impedir a destruição ambiental e o envenenamento
do mundo pela indústria nuclear. Esse otimismo já não existe mais, o clima
geral nas sociedades ocidentais é pessimista – se não depressivo. Existem razões
para essa mudança. O mundo mudou dramaticamente desde que escrevi meu
livro. Aqui, quero mencionar apenas algumas das mudanças mais importantes.
De 1979 a 1980, Margaret Thatcher e Ronald Reagan introduziram o neo-
liberalismo como o novo dogma econômico na Grã-Bretanha e nos Estados
Unidos. Os principais pilares da economia de livre mercado são a globali-
zação, a liberalização, a privatização e a concorrência universal (GLPC). Essa
economia de livre mercado foi rapidamente introduzida em todos os países
do mundo, promovida pelo Banco Mundial, pelo FMI e, posteriormente, pela
OMC. Nos países endividados do Sul, os governos foram forçados a aceitar
esse modelo. Mas os países ricos do Norte também transformaram rapidamen-
te suas economias de acordo com os princípios do livre mercado. E, finalmen-
te, após o fim da “guerra fria”, os antigos Estados socialistas ou comunistas,
como a ex-União Soviética e a China, também adotaram o neoliberalismo,
que prometia riqueza rápida para todos, mais empregos, mais democracia,
preços mais baixos para bens de origem global e livre circulação de pessoas
e capital entre os países. A maioria dos governos acreditou nessas promessas.
No entanto, pouco tempo depois muitas pessoas perceberam que os custos
das mudanças eram o aumento do desemprego, uma nova onda de pobreza,
mais exploração dos trabalhadores, mais destruição ambiental e um Estado
que havia abandonado seu papel de regulador da economia.
MARI A MI ES 35

No início, houve forte oposição internacional em todas as partes do mun-


do a essa política de livre comércio por parte de quem entendeu o que essa
nova economia realmente significava, principalmente para os países pobres.
Mas, com o passar do tempo, essa oposição foi se tornando cada vez mais
fraca, pois as corporações internacionais foram capazes de lançar cada vez
mais mercadorias e a preços mais baixos, provenientes de “países de baixos
salários”. Um dos países com os salários mais baixos é Bangladesh; a China
também exporta bens de consumo baratos para todos os países do mundo. O
resultado é que mais e mais pessoas em países outrora ricos passaram a perder
seus empregos e enfrentar a pobreza.
Talvez a mudança mais radical em todas as esferas da vida tenha ocorrido
por meio da internet. Essa tecnologia de comunicação é capaz de conectar
pessoas instantaneamente de um extremo ao outro do planeta. A mudança
mais profunda e de maior alcance que a internet trouxe é uma compreensão
totalmente nova da realidade. Até então pensávamos que a realidade é algo
que se pode ver, tocar, cheirar e que pode ser percebida por todos os sentidos.
Em suma, a realidade significava que vivemos em um mundo material, onde
a vida tem um começo e um fim. A internet, entretanto, cria um “mundo
virtual” em que tudo é possível, em que todas as fronteiras são eliminadas e
a morte não existe mais. A internet não é uma ferramenta, mas uma espécie
de substituta da religião. As pessoas acreditam nela e que ela criará um “novo
mundo”. Ainda não sabemos as consequências a longo prazo dessa fé.
Mas outros eventos no mundo real mudaram o mundo tão profundamente
que as consequências são sentidas em todos os cantos. O primeiro foi o ataque
ao World Trade Center, em Nova York, em 11 de setembro de 2001. George
W. Bush culpou terroristas islâmicos por esse ataque. Dessa data em diante,
não só os Estados Unidos, mas também o mundo, tinham um novo inimigo:
o terrorismo e o Islã. Esse novo inimigo tinha de ser combatido em todos os
lugares, e o próprio Bush falou da necessidade de uma nova cruzada. A isso
seguiu-se uma onda de guerras contra esse novo inimigo, que começou com
o Iraque, seguido pelo Afeganistão. O próximo candidato na lista de países a
combater é o Irã.
Hoje, há guerras em todos os cantos do mundo. A esperança de que uma
era de paz viria após o fim do confronto Leste-Oeste foi frustrada. As guerras
no Iraque e no Afeganistão foram legitimadas pelo argumento de que trariam
36 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

liberdade, democracia e modernidade. A mais perversa dessas promessas é a


de que essas guerras são necessárias para “emancipar” as mulheres desses paí-
ses de suas culturas retrógradas e medievais e da violência de seus homens.
Toda a mídia ocidental estava e está ainda repleta da propaganda de que as
mulheres muçulmanas devem ser libertadas de seus “homens patriarcais”.
Quando perguntaram aos soldados alemães da OTAN por que estavam no
Afeganistão, muitos responderam: “Temos de lutar para que as meninas pos-
sam ir à escola e as mulheres não sejam forçadas a usar burca”. Desde quando
as guerras foram travadas para libertar as mulheres do inimigo de seus ho-
mens violentos? Alguma vez na história as guerras “libertaram” as mulheres?
Desde tempos imemoriais, as mulheres têm sido vítimas das guerras – o es-
tupro de mulheres sempre fez parte de todas as guerras. A pior parte de tudo
isso é que a maioria das pessoas acredita nessa propaganda. Já não há protestos
contra essas novas guerras.
Por algum tempo, pensei que o verdadeiro objetivo dessas novas guerras
era ter acesso a recursos como petróleo e gás. Mas agora me pergunto: essas
novas guerras não são guerras contra as mulheres? A quem pertencem as mu-
lheres de um território? Aos homens daquele território ou aos novos invaso-
res? Muitos anos atrás, respondi a essa pergunta afirmando que “aquele que
possui um território possui as mulheres desse território” (Mies et al., 1988).
Mas hoje eu diria: aquele que possui as mulheres de um território possui esse
território. Essa é a lei dos velhos e dos novos patriarcas.
Outra razão para o atual clima de pessimismo é o fato de que a economia
mundial tem enfrentado crise após crise. Isso criou uma tremenda sensação
de insegurança. Depois dos Estados Unidos, a Europa, em particular os países
do sul europeu, tem sido vítima dessa crise contínua. E não há esperança re-
alista de que a situação de crise permanente terá fim (Sarkar, 2012). As crises
não são apenas econômicas; elas têm repercussões psicológicas e sociológicas.
Porém, essa situação também tem levado cada vez mais pessoas a questionar
todo esse sistema e a buscar alternativas. Elas começam a perguntar: onde há
uma nova perspectiva, onde encontramos uma nova visão?
Muitos anos atrás, minhas amigas e eu chamamos essa nova perspectiva de
perspectiva de subsistência (Bennholdt-Thomsen & Mies, 1999). Entendemos
muito cedo que o patriarcado capitalista continuará sua destruição da vida
enquanto as pessoas acreditarem que ter mais dinheiro proporcionará uma
MARI A MI ES 37

vida melhor. O primeiro requisito para uma nova perspectiva é que as pessoas
abandonem sua fé no dinheiro. A segunda é uma nova definição do objetivo
da economia. A palavra “economia” vem da palavra grega oikonomia, conhe-
cimento sobre o doméstico. O objetivo da oikonomia não era o acúmulo de
dinheiro, mas a satisfação das necessidades básicas de todos os membros da
família. É isso o que significa subsistência.
Em setembro de 2003, fui convidada para uma conferência em Trier. Foi
organizada pela Associação Católica de Mulheres Rurais. O lema dessa con-
ferência era “The World is Our Household” [O mundo é nossa casa]. Pensei que
essa poderia ser a chave para o novo paradigma que as pessoas estavam procu-
rando. Se todos tratassem o mundo inteiro como sua própria casa, o mundo
seria um lugar diferente.
Mas, hoje, os habitantes do Norte têm preocupações diferentes. Pela pri-
meira vez, eles percebem que não são apenas as pessoas do Sul pobre, mas
que eles também estão ameaçados pela pobreza. Depois de um longo pe-
ríodo de prosperidade, os países do Ocidente passaram por uma crise após
a outra. Economistas chegaram a proclamar que tais crises tinham acabado
para sempre nos países desenvolvidos. Mas agora elas estão de volta, tanto nos
Estados Unidos como na Europa, e os políticos não sabem como resolvê-las.
Na verdade, as crises atuais são parte integrante do capitalismo. O capitalismo
precisa de crises. Os políticos estão desamparados perante os grandes bancos
e as onipotentes corporações internacionais responsáveis pelas crises atuais. O
sul da Europa é o mais atingido pela crise atual, e Grécia, Espanha e Portugal
em particular agora dependem dos países mais ricos do norte da Europa, es-
pecialmente da Alemanha, para resgatá-los da falência.
Além disso, a insegurança quanto ao futuro de nossa economia também
criou uma nova percepção sobre as causas desse novo empobrecimento e
sobre quem lucra com isso. Por muito tempo, a palavra “capitalismo” foi um
tabu, mas agora é novamente usada no discurso público. Hoje, muitas pessoas
percebem que a crise atual não pode ser resolvida dentro da estrutura do pa-
triarcado capitalista e estão em busca de uma nova perspectiva, de um novo
paradigma, de uma nova civilização (von Werlhof, 2011). Muitas novas visões
são discutidas em todo o mundo, e entre elas está a perspectiva de subsistên-
cia. Hoje, a perspectiva de subsistência não é apenas uma ideia romântica: é
uma necessidade.
38 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Nos vinte e oito anos que transcorreram desde que este livro foi publicado
pela primeira vez, algo ficou evidente para mim: um novo paradigma não pode
ser baseado em uma revolução violenta. Nenhuma das revoluções anterio-
res eliminou a interconexão entre patriarcado e capitalismo. O capitalismo é
apenas o último avatar do patriarcado. Se quisermos superar os dois, temos de
seguir um caminho diferente. Esse caminho, que só pode nascer se plantarmos
novas sementes, foi descrito por minha amiga Farida Akhter, de Bangladesh,
em seu livro Seeds of Movements [Sementes de Movimentos] (Akhter, 2007).

Colônia, março de 2014.

REFERÊNCIAS

Akhter, Farida. Seeds of Movements. Daca: Narigrantha Prabartana, 2007.


Bennholdt-Thomsen, Veronika; Mies, Maria. The Subsistence Perspective. Londres: Zed
Books, 1999.
Federici, Silvia. Caliban and the Witch: Women, the Body and Primitive Accumulation. Nova
York: Autonomedia, 2004 [ed. bras. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.
Trad. Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante, 2017].
Jayawardena, Kumari; Mies, Maria. National Liberation and Women’s Liberation. Haia: Institute
of Social Studies, 1982.
Luxemburgo, Rosa. Die Akkumulation des Kapitals. Ein Beitrag zur ökonomischen Erklärung des
Kapitalismus. Berlim:Vereinigung Internationaler Verlags – Anstalten, 1923 [ed. bras. A
acumulação do capital: estudo sobre a interpretação econômica do Imperialismo. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 1970].
Mies, Maria. “Why German? (A Survey of the Students of German in Poona)”. Bulletin of
the Deccan College Research Institute, vol. 28, n. 3-4, 1967/68.
Mies, Maria. Indian Women and Patriarchy. Nova Delhi: Concept Publishers, 1980.
Mies, Maria. The Lace Makers of Narsapur: Indian Housewives Produce for the World Market.
Londres: Zed Books, 1982.
Reddock, Rhoda. Women, Labour and Politics in Trinidad and Tobago: A History. Londres:
Zed Books, 1994.
Sarkar, Saral. The Crises of Capitalism: A Different Study of Political Economy. Berkeley:
Counterpoint, 2012.
MARI A MI ES 39

Von Werlhof, Claudia; Mies, Maria; Bennholdt-Thomsen, Veronika: Women: The Last
Colony. Londres: Zed Books, 1988.
Von Werlhof, Claudia. The Failure of Modern Civilization and the Struggle for a ‘Deep’
Alternative: On ‘Critical Theory of Patriarchy’ as a New Paradigm. Frankfurt: Peter Lang
Verlag, 2011.
INTRODUÇÃO

A IDEIA de escrever este livro surgiu do meu desejo de desfazer algumas


das confusões recorrentes a respeito do feminismo. Percebi que, ainda que o
movimento feminista estivesse se espalhando por mais regiões do mundo e as
questões das mulheres se tornando mais “aceitáveis” para os governantes, as
perguntas sobre contra o que o movimento estava lutando e pelo que lutava
estavam se tornando cada vez mais anuviadas.
Embora muitas de nós concordemos que nosso inimigo é o patriarcado
capitalista como um sistema e não apenas os homens, nós não podemos negar
que muitas feministas sequer mencionam o capitalismo, ou, quando o fazem,
têm uma noção bastante limitada desse sistema e simplesmente tentam adicio-
nar a análise feminista à análise marxista tradicional. Outras querem somente
mais igualdade com os homens, como as defensoras da Emenda de Igualdade
de Direitos (Equal Rights Amendment - ERA) nos EUA, e nem cogitam trans-
cender o patriarcado capitalista enquanto sistema.
Da mesma forma, a maioria de nós sente que a rebelião feminista cruzou
todas as barreiras de classe, raça e imperialismo, porque as mulheres no mundo
inteiro são vítimas do sexismo e da dominação masculina. Sentimos, portanto,
que existe uma base realista para a solidariedade internacional entre as mu-
lheres ou para a irmandade global. Por outro lado, não podemos fechar nossos
olhos para o fato de que mulheres de todas as classes no Ocidente, e mulheres
de classe média no Terceiro Mundo, também estão entre aquelas cujo padrão
de vida é baseado na exploração contínua de mulheres e homens pobres em
regiões e classes subdesenvolvidas.
Obviamente, não basta dizer que todas as mulheres são exploradas e opri-
midas pelos homens. Não existe apenas a divisão hierárquica entre os sexos; há
também outras divisões sociais e internacionais intrinsecamente entrelaçadas
42 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

com a relação de dominação dos homens sobre as mulheres. Isso significa que
o movimento feminista não pode ignorar as questões de classe, a exploração
da divisão internacional do trabalho e o imperialismo. Por outro lado, o ve-
lho argumento, apresentado por socialistas científicos, de que a “questão da
mulher” é uma contradição secundária e pertence à esfera da ideologia, da
superestrutura ou da cultura, já não pode mais ser sustentado para explicar
a realidade das mulheres, particularmente desde que a rebelião feminista foi
deflagrada em todos os lugares em torno da questão da violência.
As questões não resolvidas dizem respeito à relação entre patriarcado e
capitalismo: em outras palavras, dizem respeito à relação entre a opressão e
exploração das mulheres e o paradigma da acumulação infinita e o chamado
‘crescimento’, entre o patriarcado capitalista e a exploração e subordinação
das colônias.
Essas não são questões acadêmicas. Elas tocam cada mulher em sua vida
cotidiana bem como o movimento feminista em seus objetivos políticos
e existência. Se não formos capazes de encontrar respostas plausíveis para
essas perguntas, corremos o risco de que a rebelião feminista seja cooptada
pelas forças que querem somente dar continuidade ao modelo destrutivo de
acumulação de capital e que necessitam da vitalidade desse movimento para
alimentar ainda mais o processo de “crescimento”.
O que se segue não é o resultado de um estudo sistemático das questões
levantadas. Essas questões surgiram repetidas vezes no decorrer de muitas
lutas, discussões e reuniões de que participei nos últimos anos. Muitas das
discussões ocorreram entre mulheres do Terceiro Mundo e do Primeiro
Mundo, algumas delas realizadas em países do Terceiro Mundo. As ideias
construídas a partir de tudo isso não são, portanto, algo que eu poderia ter
alcançado sem a existência de um movimento internacional das mulheres.
Muitas mulheres – e alguns homens – me deram ideias ou comentários va-
liosos. Prezo muito aqueles que desafiaram algumas das minhas suposições
e, assim, me forçaram a aprofundar e ampliar minha análise. Desse modo, a
questão do que une e o que divide as mulheres em classes, países e regiões
superdesenvolvidas e subdesenvolvidas desempenhou um papel crucial. O
mesmo aconteceu com a questão do papel da violência no estabelecimento
das relações patriarcais entre homens e mulheres, bem como no processo de
acumulação de capital.
MARI A MI ES 43

Com o passar do tempo, ficou evidente para mim que as confusões no mo-
vimento feminista em todo o mundo continuarão, a menos que entendamos
a ‘questão da mulher’ no contexto de todas as relações sociais que constituem
nossa realidade hoje – ou seja, no contexto de uma divisão do trabalho que se
dá sob os ditames da acumulação de capital. A subordinação e a exploração das
mulheres, da natureza e das colônias são a pré-condição para a continuação
desse modelo.
A segunda coisa que ficou nítida foi a percepção de que as mulheres, em
sua luta para recuperar sua humanidade, não têm nada a ganhar com a conti-
nuação desse paradigma. Feministas em todos os lugares fariam bem em desis-
tir da crença expressa pelo socialismo científico de que o capitalismo, através
de sua ganância por acumulação sem fim, chamada de “crescimento”, criou as
pré-condições para a libertação das mulheres, que então podem ser realizadas
sob o socialismo. Hoje, é mais do que evidente que o próprio processo de
acumulação destrói o cerne da essência humana em todos os lugares, porque
é baseado na destruição da autossuficiência das mulheres sobre suas vidas e
corpos. Como as mulheres não têm nada a ganhar em sua humanidade a partir
da continuação do modelo de crescimento, elas são capazes de desenvolver
uma perspectiva de sociedade que não se baseie na exploração da natureza,
das mulheres e de outros povos.
Metodologicamente, isso significa que não é suficiente olhar apenas para
um lado da moeda, é necessário estudar as conexões existentes entre as várias
partes que foram separadas pela divisão sexual e internacional do trabalho.
Também significa entender que essas divisões e conexões têm uma realidade
material, porque o mercado mundial efetivamente conecta os mais remotos
cantos do mundo e as mais diferentes pessoas. Mas, embora essas conexões
existam de fato, elas são quase totalmente apagadas de nossa consciência. Na
verdade, consumimos uma massa de mercadorias produzidas por pessoas em
países do Terceiro Mundo, das quais nem mesmo temos ciência. A fim de
superar essa alienação provocada pela produção de mercadorias na divisão
internacional e sexual do trabalho, procurei examinar não apenas o que acon-
teceu com as mulheres no Ocidente, mas também o que estava acontecendo
ao mesmo tempo com as mulheres nas colônias. Ao olhar para os dois lados
da moeda, foi possível identificar as políticas contraditórias em relação às
mulheres que foram – e ainda são – promovidas pela união de militaristas,
44 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

capitalistas, políticos e cientistas no esforço de manter o modelo de cresci-


mento.Tornou-se possível superar a visão limitada do relativismo cultural que
afirma que as mulheres são divididas pela cultura em todo o mundo, enquanto
na verdade estamos divididas e conectadas pelas relações com as mercadorias.
Esse “olhar para os dois lados da moeda” foi facilitado, no meu caso, pelo
fato de ter tido a oportunidade de conhecer e discutir com muitas mulheres
da Ásia, da América Latina e da África enquanto trabalhava como coorde-
nadora do programa Mulheres e Desenvolvimento no Instituto de Estudos
Sociais de Haia. Além disso, o fato de eu ter vivido e trabalhado por muitos
anos na Índia e ter tido muitos contatos com feministas indianas também me
ajudou a olhar para esses dois lados. Portanto, grande parte da análise a seguir
é baseada em meu conhecimento experimental e empírico da Índia e do
novo movimento de mulheres indianas. Devo grande parte de minhas ideias
às minhas irmãs indianas, tanto as rurais quanto as urbanas. A coragem com
que estão travando uma luta contra as estruturas e as instituições patriarcais
tem sido, para mim, uma grande fonte de inspiração.
Também aprendi muito com minhas alunas do Terceiro Mundo no
Instituto de Estudos Sociais. Sua ânsia em entender o que era o feminismo
e que relevância tinha para elas e para os problemas urgentes da pobreza
em seus próprios países, me levou a buscar respostas que pudessem ser vá-
lidas não apenas para feministas ocidentais, mas também para feministas do
Terceiro Mundo.
Começando com o reconhecimento de que o patriarcado e a acumulação
em escala mundial constituem o arcabouço estrutural e ideológico no qual
a realidade atual das mulheres deve ser entendida, o movimento feminista
mundial não pode deixar de desafiar esse quadro, juntamente com as divisões
sexuais e internacionais do trabalho a ele ligadas.
O primeiro capítulo tenta explicitar quais são os principais desafios do fe-
minismo. Após uma discussão sobre a história do novo movimento de mulhe-
res nos EUA e na Europa, com referência especial às suas principais questões,
campanhas e debates, enfoca a questão do que diferencia o novo movimento
de mulheres do antigo. Além disso, o que o surgimento de movimentos femi-
nistas na Ásia, América Latina e África pode significar para a solução de velhas
questões não resolvidas, a saber: o caráter do capitalismo, a questão do colo-
nialismo e a visão socialista de uma sociedade futura. Nesse sentido, a análise
MARI A MI ES 45

feminista da violência e do trabalho doméstico, além do conceito feminista


de política, têm desempenhado um papel crucial para desafiar as velhas teorias
da libertação das mulheres.
O segundo capítulo tenta rastrear as origens sociais da divisão sexual do
trabalho. São avaliadas criticamente as suposições comuns, principalmente
biológicas, sobre as origens da relação de dominação entre homens e mulheres
e a noção de que essa relação evoluiu a partir de determinantes biológicos ou
econômicos. Ressalta-se que o monopólio das armas nas mãos do homem-
-caçador/guerreiro constitui o poder político necessário para o estabeleci-
mento de relações duradouras de exploração entre homens e mulheres, bem
como entre diferentes classes e povos. Assim, a exploradora divisão sexual é o
paradigma social sobre o qual se constrói a divisão internacional do trabalho.
O terceiro capítulo traça a história dos processos de colonização e dona-
decasificação, ambos intrinsecamente relacionados. A conquista e exploração
das colônias a partir do século XVI foi a base para a acumulação de capital
na Europa. Mas igualmente importante foi a destruição da autonomia das
mulheres sobre seus corpos e sua vida durante os pogroms14 das bruxas durante
o mesmo período. No capítulo, busco traçar os processos e as políticas pelos
quais outros países e mulheres são definidos como “natureza”, ou transfor-
mados em colônias a serem exploradas pelo homem branco em nome do
acúmulo de capital ou progresso e civilização.
O quarto capítulo estende essa análise à nova e contemporânea divisão in-
ternacional do trabalho e ao papel das mulheres como trabalhadoras mal pagas
e como consumidoras no sistema de mercado mundial. A política de definir
mulheres do mundo inteiro como donas de casa dependentes – chamada de
processo de donadecasificação – é identificada como a principal estratégia do
capital internacional para integrar todas elas ao processo de acumulação. Isso
implica a divisão da economia e do mercado de trabalho em um setor de-
nominado moderno e formal, no qual trabalham principalmente os homens,
e em um setor informal, onde trabalham as massas de mulheres que não são
consideradas trabalhadoras assalariadas reais, mas donas de casa.

14 ​​Pogrom é uma palavra russa que significa “causar estragos, destruir violentamente”. Foi
historicamente utilizada para caracterizar a perseguição perpetrada contra judeus e outras mi-
norias étnicas na Europa, mas, de forma mais ampla, diz respeito ao movimento coletivo de
eliminação e destruição de grupos específicos. [N. das T.]
46 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O quinto capítulo enfoca o papel da violência contra a mulher no es-


tabelecimento de relações de produção que não se baseiam no trabalho
assalariado propriamente dito. A análise é baseada principalmente nas ex-
periências de mulheres na Índia e em suas lutas contra o feminicídio por
dote e o estupro. As várias formas de violência direta contra as mulheres são
analisadas não como resultado de algum sadismo masculino inato atemporal,
mas como um mecanismo no processo de ‘acumulação primitiva’ em curso,
pelo qual os homens tentam acumular riqueza e capital produtivo, com base
não na economia, mas na coerção direta e na extensão do controle patriar-
cal sobre as mulheres. No capítulo, mostro que a violência patriarcal não é
resquício de um passado feudal, mas o correlato “necessário” do chamado
processo de modernização.
O sexto capítulo explora a possibilidade de considerar os países socialistas,
que passaram por uma guerra de libertação ou por uma revolução, capazes
de fornecer a alternativa necessária para a libertação das mulheres, o que, de
acordo com a análise anterior, não se confirma sob as leis de acumulação de
capital. Com base nos exemplos da URSS, da China e do Vietnã, mostra-se
que, apesar da retórica socialista sobre a participação das mulheres na produ-
ção social, o processo de acumulação socialista também se baseia, na realidade,
no mesmo mecanismo de donadecasificação e no modelo de dualização da
economia em um setor socializado “progressivo” dominado por homens e
em um setor subsidiário, privado ou informal, onde se encontram, principal-
mente, as mulheres.
O último capítulo é dedicado à tentativa de desenvolver uma perspectiva
feminista de uma sociedade futura que, de fato, transcenderia o modelo de
acumulação baseado no crescimento cada vez maior do volume de mercado-
rias, da riqueza e das forças produtivas. Para que exista uma sociedade em que
a natureza, as mulheres e outros povos não sejam colonizados e explorados
para o benefício dos outros e que não se fundamente em uma ideia abstrata
de progresso, é preciso reconhecer que nosso mundo humano é finito. Isso
exigiria um novo conceito de trabalho, que transcenderia a divisão atual entre
o trabalho necessário, cada vez mais relegado às máquinas, e o trabalho criativo
reservado aos seres humanos. A manutenção da combinação de trabalho ne-
cessário e criativo é vista como uma pré-condição para a felicidade humana.
Tal conceito de trabalho teria que levar à abolição da atual divisão sexual do
MARI A MI ES 47

trabalho, bem como a da divisão internacional do trabalho.Teria que se basear


em uma economia alternativa, uma economia que não se sustentasse a partir
da exploração da natureza, das mulheres e das colônias, mas que tentasse ser
autossuficiente em grande medida. Um primeiro passo em direção a essa au-
tossuficiência e à retomada do controle sobre nossas vidas e corpos, poderia
ser um movimento de libertação do consumidor, iniciado por mulheres de
classes e países superdesenvolvidos. Tal movimento, combinado com um mo-
vimento de libertação da produção em países e classes subdesenvolvidos, será
capaz de percorrer um longo caminho em direção à libertação das mulheres
em um contexto global.
1
O QUE É FEMINISMO?
ONDE ESTAMOS HOJE?

O MOVIMENTO de Libertação das Mulheres [Women’s Liberation Movement


– WLM] é talvez o mais controverso, bem como o mais abrangente dos novos
movimentos sociais, pois inclui, entre outros, o movimento ambientalista, o
movimento alternativo e o movimento pela paz. Sua mera existência pode
ser interpretada como provocação por certas pessoas. Enquanto se considera
possível conduzir um discurso intelectual ou político desapaixonado sobre
a “questão da ecologia”, a “questão da paz” ou a “questão da dependência
do Terceiro Mundo”, a “questão da mulher” leva, invariavelmente, a reações
altamente emocionais por parte dos homens e de muitas mulheres. Trata-se
de uma questão sensível para todas as pessoas. O motivo é que o movimento
das mulheres não endereça a maior parte de suas demandas a um órgão ex-
terno ou inimigo comum, como o Estado ou os capitalistas, tal qual fazem
muitos outros movimentos, mas se dirige às relações humanas mais íntimas:
diz respeito à relação entre mulheres e homens, com vistas a transformar essas
relações. Portanto, a batalha não se dá entre grupos específicos com interesses
comuns ou objetivos políticos e um determinado inimigo externo, mas ocor-
re no interior das mulheres e dos homens e entre mulheres e homens. Mais cedo
ou mais tarde, todo mundo é forçado a tomar partido. E tomar partido signi-
fica que algo em nós se quebra, que o que pensávamos ser nossa identidade
se desintegra e precisa ser recriado do zero. É um processo doloroso. Muitos
homens e mulheres, certamente a maioria, tentam evitá-lo porque temem
que, uma vez que se permitirem tomar consciência da verdadeira natureza da
relação homem-mulher em nossas sociedades, verão ruir diante de seus olhos
sua suposta ilha de paz e harmonia neste mundo brutal e frio repleto de jogos
de poder e ganância onde o que importa é ganhar dinheiro. Além disso, se
permitirem que a questão penetre sua consciência, terão de admitir que eles
52 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

próprios, mulheres e homens, não são apenas vítimas de um lado (mulheres) e


vilões (homens) do outro, mas que também são cúmplices do sistema de ex-
ploração e opressão que une mulheres e homens. E que, se almejam construir
uma relação humana verdadeiramente livre, terão de abandonar essa cumpli-
cidade. Isso não se aplica apenas aos homens cujos privilégios são baseados
nesse sistema, mas também às mulheres cuja existência material muitas vezes
está ligada a ele.
Feministas são aquelas que se atrevem a romper com o acordo de silên-
cio sobre a opressão e a desigualdade na relação homem-mulher e desejam
transformá-la. Mas falar do sistema de dominação masculina, atribuindo-lhe
certos nomes como “machismo” ou “patriarcado”, não reduziu a ambivalência
mencionada acima, pelo contrário, intensificou-a.
Houve reações contraditórias ao novo movimento das mulheres desde seu
início nos anos 1960. As mulheres que integraram o movimento nos Estados
Unidos e na Europa começaram a se chamar de feministas e a criar grupos
de mulheres em que, pela primeira vez após o fim do antigo movimento dos
anos 1920, começaram a falar sobre o “problema inominado” (Friedan, 1968).
Todas nós já estávamos acostumadas a ouvir, em conversas privadas, amigas ou
irmãs falando sobre como tinham sido maltratadas por pais, maridos e namo-
rados. Mas o fato sempre foi considerado azar de uma mulher em particular.
Os primeiros grupos de conscientização, os grupos de apoio, as reuniões só
para mulheres, as primeiras e fantásticas ações de mulheres que começaram a
romper com grupos e organizações mistas foram ocasiões em que as mulheres
passaram a descobrir que seu problema pessoal aparentemente individual era
também o problema de todas as mulheres, e, portanto, um problema social e
político. Quando o lema “o pessoal é político” foi cunhado, quebrou-se o tabu
que cercava a “família sagrada” e seu santuário: o quarto e as experiências se-
xuais das mulheres. Todas as mulheres ficaram impressionadas com a extensão
e a profundidade do sexismo que veio à tona nos grupos de apoio. A nova
preocupação que surgiu, o compromisso de lutar contra a dominação mas-
culina, contra toda forma de humilhação e maus-tratos e contra a contínua
desigualdade entre os sexos, criou um novo sentimento de irmandade entre
as mulheres, uma enorme fonte de força, entusiasmo e euforia desde o início.
Esse sentimento de irmandade baseava-se em uma consciência mais ou menos
clara de que todas as mulheres, independentemente de classe, raça ou nação,
MARI A MI ES 53

tinham um problema comum que era: como os homens nos tratam mal. Foi
nesse sentido que as mulheres do Sistren Theatre Collective, na Jamaica, se
expressaram em 1977 quando deram início ao grupo em Kingston.15
E onde quer que as mulheres se juntam para falar de experiências íntimas
e muitas vezes de tabus, é possível encontrar os mesmos sentimentos de in-
dignação, preocupação e solidariedade. Isso também vale para os grupos de
mulheres surgindo em países subdesenvolvidos.16 No início do movimento, as
reações hostis ou desdenhosas de grandes setores da população masculina, par-
ticularmente aqueles que tinham alguma influência na opinião pública, como
jornalistas e pessoas da mídia, só reforçaram os sentimentos de irmandade entre
as feministas, que se tornaram cada vez mais convencidas de que o separatis-
mo feminista era o único modo de criar espaço para as mulheres dentro das
estruturas globais da sociedade dominada por homens. Mas, quanto mais o
movimento feminista se espalhava, quanto mais claramente demarcava sua área
como território pertencente a todas as mulheres – estando os homens fora de
seu domínio –, mais negativas ou abertamente hostis eram as reações ao movi-
mento. Feminismo tornou-se uma palavra feia para muitos homens e mulheres.
Em países subdesenvolvidos, o termo foi muito usado principalmente
com o atributo pejorativo “ocidental”, ou às vezes até “burguês”, para de-

15 As treze mulheres do Coletivo Sistren em Kingston, Jamaica, se juntaram em 1977, quando


o governo de Michael Manley iniciou um Programa de Impacto para criar empregos para
mulheres desempregadas, em setores como o de limpeza urbana. As treze mulheres haviam
recebido formação para serem assistentes de ensino. Durante a formação, foram convidadas a
fazer uma peça de teatro para as comemorações anuais da Semana dos Trabalhadores. Elas pedi-
ram a Honor Ford-Smith, da Jamaican School of Drama, que as ajudasse a preparar uma peça.
Quando Ford-Smith lhes perguntou o que queriam fazer na peça, elas responderam: “Quere-
mos fazer peças sobre como sofremos como mulheres. Queremos fazer peças sobre como os
homens nos tratam mal” (cf. Honor Ford-Smith: “Women, the Arts and Jamaican Society” [As
mulheres, as artes e a sociedade jamaicana], artigo não publicado, Kingston, 1980; ver também
Sistren Theatre Collective: “Women’s Theatre in Jamaica” [Teatro de Mulheres na Jamaica], em
Grassroots Development, vol. 7, n. 2, 1983, p. 44).

16 Pude observar isso na Índia em 1973/74, quando um pequeno grupo de mulheres se reuniu
em Haiderabade, de onde surgiu a primeira nova organização de mulheres na Índia, a Organi-
zação Progressista das Mulheres (POW) (cf. K. Lalitha: “Origin and Growth of POW: First ever
Militant Women’s Movement in Andhra Pradesh” [Origem e crescimento da POW: primeiro
movimento militante de mulheres em Andhra Pradesh], em HOW, vol. 2, n. 4, 1979, p. 5).
Enquanto isso, grupos e organizações feministas surgem em muitos países do Terceiro Mundo.
54 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

notar que o feminismo pertencia à mesma categoria que o colonialismo e/


ou à dominação capitalista e que, portanto, as mulheres do Terceiro Mundo
não tinham necessidade do movimento. Em muitas conferências interna-
cionais, pude observar uma espécie de ritual acontecendo, particularmente
após a Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher no México em
1975. Quando as mulheres falavam de uma plataforma pública, primeiro
tinham que se desassociar “das feministas” para que pudessem falar como
mulher. “Feministas” sempre foram as “outras mulheres”, as “mulheres más”,
as “mulheres que vão longe demais”, “mulheres que odeiam homens”, algo
como bruxas modernas com as quais uma mulher respeitável não queria ser
associada. Mulheres da Ásia, América Latina e África, em especial as ligadas
às organizações desenvolvimentistas ou à ONU, geralmente se distanciavam
das “feministas ocidentais” porque, segundo elas, o feminismo desviaria o
foco das questões da pobreza e do desenvolvimento, que seriam as questões
mais urgentes em seus respectivos países. Outros achavam que as feministas
dividiriam a unidade da classe trabalhadora ou de outras classes oprimidas,
que esqueceriam da questão mais ampla da revolução colocando a libertação
das mulheres antes da questão da luta de classes ou da luta pela libertação
nacional. A hostilidade contra o feminismo era particularmente forte en-
tre as organizações da esquerda ortodoxa, e mais entre os homens do que
entre as mulheres.17

17 A base teórica do antifeminismo de esquerda é a posição marxista, salientada pela primeira


vez por Engels, Bebel e Clara Zetkin, segundo a qual a “questão da mulher” faz parte da ques-
tão da classe e não deve ser tratada separadamente. No começo, o novo movimento feminista
foi ignorado e considerado irrelevante pelos partidos marxista-leninistas. Quando perceberam,
entretanto, que o movimento continuava existindo e mobilizando cada vez mais mulheres,
mesmo em países subdesenvolvidos, a política mudou. Por um lado, esses partidos reivindica-
ram um papel de vanguarda nesse novo movimento social ao adotar os símbolos, os lemas – e,
em parte, até os conceitos – do novo movimento de mulheres. Por outro lado, continuaram
levantando a antiga polêmica contra grupos e movimentos feministas autônomos, os quais
seriam “burgueses” e “desviados”. Esse processo pode ser claramente observado na história
recente do Deutsche Kommunistische Partei (DKP), o partido comunista da Alemanha Ocidental
inspirado por Moscou. A ala feminina do partido adota as cores, os símbolos e os lemas das
feministas e até afirma ser “autônoma”. Feministas em países subdesenvolvidos tiveram experi-
ências semelhantes com a esquerda ortodoxa e sua hostilidade e estratégia dupla em relação ao
movimento de mulheres (cf. Chhaya Datar: “The Left Parties and the Invisibility of Women:
A Critique” [Os partidos de esquerda e a invisibilidade das mulheres: uma crítica], Teaching
Politics, vol. X, Annual N., Mumbai, 1984).
MARI A MI ES 55

Mas, apesar das posições contrárias ao feminismo em geral, e ao “femi-


nismo ocidental” em particular, a questão da mulher havia voltado à pauta
da história e não poderia ser deixada de lado novamente. A Conferência
Mundial sobre a Mulher no México, em uma espécie de estratégia para
avançar com o Plano de Ação Mundial, tentou canalizar toda a raiva contida
e a revolta tardia das mulheres para os caminhos administráveis das políticas
governamentais e, principalmente, tentou “proteger” as mulheres do Terceiro
Mundo da doença infecciosa que representava o feminismo ocidental. Mas a
estratégia teve o efeito oposto. Os relatórios preparados para a referida con-
ferência foram, em vários aspectos, os primeiros documentos oficiais sobre
a crescente desigualdade entre homens e mulheres (cf. Governo da Índia,
1974). Eles deram peso e legitimidade aos pequenos grupos feministas que
começaram a surgir nos países do Terceiro Mundo por volta dessa época. Na
Conferência Mundial sobre a Mulher em Copenhague em 1980, reconhe-
ceu-se que a situação das mulheres em todo o mundo não havia melhorado,
mas piorado. Entretanto, nesse ínterim cresceram a consciência, a militância
e as redes organizacionais entre as mulheres do Terceiro Mundo. Apesar de
muitas críticas do Terceiro Mundo ao feminismo ocidental durante a con-
ferência, ainda assim o evento marcou uma mudança de atitude em relação
à “questão da mulher”. Depois da conferência, a palavra feminismo não foi
mais evitada pelas mulheres do Terceiro Mundo em suas discussões e escritos.
Em 1979, em uma oficina internacional em Bangcoc, as mulheres do Terceiro
e do Primeiro Mundo já haviam elaborado um entendimento comum sobre
“ideologia feminista”, e os objetivos comuns do feminismo foram definidos
na documentação produzida pela oficina, intitulada Developing Strategies for the
Future: Feminist Perspectives [Estratégias para o futuro: perspectivas feministas]
(Nova York, 1980). Em 1981, a primeira conferência feminista de mulheres
latino-americanas aconteceu em Bogotá.18 Em muitos países da Ásia, América

18 A Índia parece ser o país da Ásia em que o movimento feminista se espalha mais rapida-
mente. Na recente Peregrinação pela Libertação das Mulheres (Stree Mukti Yatra), organizada
por alguns grupos feministas em Mumbai, cerca de 200 mil mulheres e 100 mil homens parti-
ciparam de espetáculos dramáticos, exposições de pôsteres, palestras e discussões, apresentações
de slides, vendas de livros e outros programas acerca da opressão e libertação das mulheres. A
“oficina móvel” consistiu em um ônibus com 75 ativistas pela libertação das mulheres que, em
12 dias, percorreu 1.500 quilômetros e realizou eventos em 11 cidades e 10 aldeias no estado
de Maharashtra. Uma das participantes escreveu: “O objetivo era criar uma consciência da
56 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Latina e África surgiram pequenos grupos de mulheres que se autodeno-


minavam abertamente feministas, embora ainda enfrentassem muitas críticas
de todos os lados.19 Parece que, quando as mulheres do Terceiro Mundo
começam a lutar contra algumas das manifestações mais cruéis da relação de
opressão entre homens e mulheres – como os feminicídios relacionados ao
dote e os estupros na Índia, o turismo sexual na Tailândia, a clitoridectomia
na África ou as várias formas de machismo na América Latina –, elas não
conseguem evitar partir do mesmo ponto de que o movimento feminista
ocidental começou, ou seja, da relação profundamente exploradora e opres-
sora entre homens e mulheres sustentada pela violência direta e estrutural
que se entrelaça com todas as outras relações sociais, incluindo a atual divisão
internacional do trabalho.
Esse movimento feminista de base no Terceiro Mundo adotou princípios
organizacionais similares aos adotados pelas feministas ocidentais. Formaram-
se pequenos grupos ou centros autônomos de mulheres, seja em torno de
questões específicas ou mais gerais, como espaços em que as mulheres po-
diam se encontrar, falar, discutir seus problemas, refletir e agir em conjunto.
Assim, em Kingston, na Jamaica, o coletivo de teatro Sistren, mencionado
acima, constituiu-se como um grupo só de mulheres com o objetivo de
promover a conscientização entre as mulheres pobres, principalmente sobre
as relações de exploração entre homens e mulheres e as relações de classe.

posição secundária das mulheres na sociedade e desfazer alguns dos mal-entendidos em torno
do conceito de libertação feminina” (Nandita Gandhi em Eve’s Weekly, 16-22 de fevereiro de
1985). A recepção e o resultado da peregrinação foram tão significativos que o Times of India,
um dos principais jornais indianos, comentou: “Como as duas semanas de Stree Mukti Yatra
comprovaram em Maharashtra, o feminismo veio para ficar. Não pode mais ser descartado
como uma importação ocidental irrelevante, o privilégio de um punhado de mulheres da
cidade” (Ayesha Kagal, “Nasce uma menina”, em Times of India, 3 fev. 1985).

19 Quando a segunda Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e Caribe


aconteceu em Lima, Peru, em julho de 1982, o número de participantes havia aumentado
de 230 mulheres na primeira conferência em Bogotá para 700. Mulheres de 15 países, desde
intelectuais urbanas de classe média até mulheres da classe trabalhadora e camponesas, parti-
ciparam da conferência. As organizadoras explicaram por que as mulheres responderam tão
intensamente à convocatória: “É o movimento feminista que tem sido crucial no combate ao
renascimento do conservadorismo nos países industrializados. Sem uma mudança no poder
patriarcal, os problemas persistirão” (cf. Jill Gay, “A Growing Movement: Latin American Fe-
minism” [Um movimento em expansão: feminismo latino-americano], em NACLA Report,
vol. XVII, n. 6, nov-dez 1983).
MARI A MI ES 57

Em Lima, no Peru, o grupo Flora Tristán foi um dos primeiros centros fe-
ministas da América Latina (Vargas, 1981). Na Índia, vários grupos e centros
feministas foram formados nas grandes cidades. Os mais conhecidos são os
grupos Stri Sangharsh (agora dissolvido) e Saheli em Delhi. Além desses, há a
antiga Rede Feminista (agora dissolvida), a Stree Mukti Sangathna, o Fórum
contra a Opressão das Mulheres, o Centro de Mulheres em Mumbai, a Stri
Shakti Sangathana em Haiderabade,Vimochana em Bangalore e o Centro de
Mulheres em Calcutá. Por volta da mesma época, surgem as primeiras revistas
feministas em países do Terceiro Mundo. Uma das primeiras é Manushi, publi-
cada por um coletivo de mulheres em Delhi. No Sri Lanka, a revista Voice of
Women [A voz das Mulheres] apareceu na mesma época. Revistas semelhantes
foram publicadas na América Latina.20
Paralelamente ao feminismo que ascendia no Terceiro Mundo de “baixo
para cima” e a partir dos movimentos sociais de base, desenvolvia-se um
movimento de “cima para baixo” com foco no papel das mulheres no de-
senvolvimento, nos estudos das mulheres [women’s studies] e no status das mu-
lheres. Esse movimento de cima para baixo se originou, em grande medida,
em instituições nacionais e internacionais, organizações desenvolvimentistas
e organismos da ONU, em que mulheres preocupadas com a questão, e até
mesmo feministas, buscavam usar os recursos financeiros e organizacionais
dessas instituições para fazer avançar a causa das mulheres. Nisso, certas orga-
nizações estadunidenses, como a Fundação Ford, desempenharam um papel
importante. A Fundação Ford contribuiu generosamente para o estabeleci-
mento de estudos e pesquisas das mulheres em países do Terceiro Mundo,
particularmente no Caribe, na África (Tanzânia) e na Índia. Foram criados
centros de pesquisa e formuladas políticas com o objetivo de inserir os estu-
dos das mulheres nos programas das ciências sociais.
Na Índia, foi formada uma Associação Nacional de Estudos das Mulheres,
que já realizou duas conferências nacionais. Uma organização semelhante está
sendo formada no Caribe. Mas, enquanto a associação indiana ainda se atém
ao termo mais geral “estudos das mulheres”, a caribenha se autodenomina
Associação Caribenha para Pesquisa e Ação Feminista (Cafra).

20 Em uma breve bibliografia comentada, são listados cerca de 36 títulos de periódicos e


revistas feministas publicadas por grupos de mulheres na América Latina (cf. Unidad de Co-
municación Alternativa de la Mujer – ILET, Santiago, Chile, 1984).
58 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Essa designação já é uma expressão das discussões teóricas e políticas que


estão ocorrendo nos países do Terceiro Mundo entre as duas correntes – a
de baixo para cima e a de cima para baixo – do novo movimento de mulhe-
res. Quanto mais o movimento se expande quantitativamente, mais é aceito
pelas instituições do establishment, e quanto mais dinheiro vem das agências
de fomento internacionais e dos governos locais, mais intensos se tornam
os conflitos entre as pessoas que querem apenas “acrescentar o componente
feminino” às instituições e sistemas existentes e aquelas que lutam por uma
transformação radical da sociedade patriarcal.
Esse conflito também está presente nos numerosos projetos econômicos
destinados às mulheres pobres rurais e urbanas, implantados e financiados por
uma série de agências de desenvolvimento, governamentais e não governa-
mentais, locais e estrangeiras. Cada vez mais os formuladores de políticas de
desenvolvimento acrescentam o “componente feminino” em suas estratégias.
Com todas as ressalvas quanto aos verdadeiros motivos dessas políticas (ver
capítulo 4), podemos observar que mesmo esses projetos contribuem para o
processo de conscientização de um número cada vez maior de mulheres sobre
a “questão da mulher”. Eles também contribuem com os embates políticos e
teóricos sobre o feminismo.
Se tentarmos avaliar hoje a situação do movimento internacional de mu-
lheres, poderemos observar o seguinte:

1. Desde o início do movimento, tem havido uma expansão rápida e ainda


crescente da conscientização das mulheres sobre sua opressão e explora-
ção. O movimento está crescendo mais rapidamente nos países de Terceiro
Mundo do que nos de Primeiro Mundo, onde, por razões aqui analisadas,
o movimento parece estar em declínio.
2. Apesar de terem em comum o problema de “como os homens nos tra-
tam mal”, há muitas diferenças entre as mulheres. Mulheres do Terceiro
Mundo são diferentes das do Primeiro Mundo, as urbanas das rurais, as
militantes das pesquisadoras, as donas de casa das trabalhadoras.
Além dessas diferenças objetivas, baseadas nas várias divisões estruturais
do trabalho sob o patriarcado capitalista internacional, há também diver-
sas diferenças ideológicas, decorrentes da orientação política de mulheres
individuais ou da de coletivos feministas. Assim, existem diferenças e con-
MARI A MI ES 59

flitos entre as mulheres cuja principal lealdade ainda é com a esquerda


tradicional e aqueles que criticam essa mesma esquerda por uma cegueira
em relação à questão feminina. Existem também divisões entre as próprias
feministas, decorrentes das diferenças na análise do cerne do problema e
das estratégias a serem adotadas para chegar a uma solução.
3. Essas divisões podem ser encontradas não apenas entre grupos diferentes de
mulheres, separadas por classe, nação e raça, mas também dentro de grupos
de mulheres que pertencem à mesma raça, classe ou nação. No movimen-
to feminista ocidental, a divisão entre mulheres lésbicas e heterossexuais
teve papel importante no desenvolvimento do movimento.
4. Como cada mulher que se junta ao movimento precisa integrar em si
mesma a experiência existencial de pertencer a uma comunalidade básica
de mulheres que vivem sob o patriarcado com a experiência individual
igualmente existencial de ser diferente das outras mulheres. O movimento
é então caracterizado por alto grau de tensão e energia emocional investi-
das tanto na solidariedade entre as mulheres como na capacidade de uma
mulher se diferenciar das outras. Isso vale para movimentos do Primeiro
e do Terceiro Mundo, pelo menos aqueles movimentos que não estão sob
a direção de um partido, mas que se organizam de forma autônoma em
torno de questões, campanhas e projetos.
5. Muitas mulheres reagem com atitudes moralistas ao se verem na situação
de estarem unidas e divididas ao mesmo tempo. Acusam outras mulheres
de comportamento paternalista ou mesmo patriarcal, ou – se são elas as
acusadas – respondem com sentimento de culpa e gritaria retórica.

Esse último ponto pode ser observado principalmente no que diz respei-
to à relação entre sexo e raça, a qual, nos últimos anos, emergiu como uma
das áreas mais sensíveis nos movimentos de mulheres nos Estados Unidos,
Inglaterra e Holanda, países onde vive um número significativo de mulheres
do Terceiro Mundo que aderiu ao movimento feminista (Bandarage, 1983).
No início, as feministas brancas eram frequentemente indiferentes ao pro-
blema racial, ou então assumiam uma atitude maternalista ou paternalista
em relação às mulheres de cor, tentando incluí-las no movimento feminista.
60 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Somente quando as mulheres negras e marrons21 começaram a estender o


princípio da organização autônoma a seu próprio grupo e fundaram seus
próprios coletivos, revistas e centros de mulheres, as feministas brancas come-
çaram a ver que a “irmandade” não poderia ser alcançada apenas colocando
homens de um lado e mulheres do outro. No entanto, embora a maioria das
feministas brancas admita hoje que o feminismo não pode atingir seu objetivo
a menos que o racismo seja abolido, os esforços para entender a relação entre
exploração e opressão sexual e racial permanecem no nível individual, com
a mulher fazendo isoladamente um exame de consciência para descobrir e
punir a “racista” em si mesma.
Por outro lado, as análises das mulheres negras também não vão muito além
de dar vazão aos sentimentos de raiva das mulheres negras que se recusam a
ser uma “ponte para todos” (Rushin, 1981).
Não existem, ainda, análises históricas e político-econômicas em número
significativo sobre a inter-relação entre racismo e sexismo no patriarcado
capitalista.22 Seguindo a tendência geral a-histórica na pesquisa em ciências
sociais, a discriminação racial é colocada no mesmo nível da discriminação se-
xual. Ambas parecem estar ligadas a dados biológicos: sexo e cor da pele. Mas
enquanto muitas feministas rejeitam o reducionismo biológico no que diz
respeito às relações sexuais e insistem nas raízes sociais e históricas da explo-
ração e opressão das mulheres, no que tange às relações raciais, o presente e o
passado histórico do colonialismo e a exploração capitalista do mundo negro
pelo branco são quase sempre esquecidos. Em vez disso, as “diferenças cultu-
rais” entre mulheres ocidentais e não ocidentais são muito enfatizadas. Hoje,
essa relação colonial é mantida pela divisão internacional do trabalho e não é
frequentemente eclipsada apenas na consciência das feministas brancas, cujo
padrão de vida também depende em grande medida dessa relação colonial,
mas também na das mulheres negras no “mundo branco”. O fato de terem
a mesma cor de pele de suas irmãs e irmãos no “mundo negro” ainda não as

21 Para os adjetivos “of colour / coloured” (em “people/women of colour” / “coloured people/women”)
e “brown” (em “brown women/men”) optamos, respectivamente, pelas traduções literais “povos/
mulheres de cor” e “homens/mulheres marrons”. Ver discussão na “Apresentação à edição
brasileira”. [N. das T.]

22 Vale lembrar que essa afirmação foi feita em meados dos anos 1980, quando este livro foi
escrito. [N. das T.]
MARI A MI ES 61

coloca automaticamente do mesmo lado que elas (cf. Amos & Parmar, 1984),
porque as mulheres negras são também divididas pelo patriarcado capitalista
de acordo com linhas coloniais e de classe; e a divisão de classe em particular é
frequentemente esquecida no discurso sobre sexo e raça. Na atual conjuntura,
o capitalismo negro, marrom ou amarelo é a grande esperança dos defensores
do sistema mundial capitalista. Existem algumas mulheres negras no mundo
negro cujo padrão de vida é melhor do que o de algumas mulheres brancas
no mundo branco, e particularmente do que o da maioria das mulheres negras
no mundo branco ou no mundo negro. Se não queremos cair na armadilha
do moralismo e do individualismo, é necessário olhar mais a fundo e chegar
a uma compreensão materialista e histórica da interação da divisão sexual,
social e internacional do trabalho. Pois essas são as divisões objetivas, criadas
pelo patriarcado capitalista em sua conquista do mundo, que estão na base de
nossas diferenças, embora não sejam determinantes de tudo. E essas divisões
estão intimamente ligadas a expressões culturais particulares.
A maneira como o sexo, a classe e a raça, ou melhor, como os pilares do
colonialismo estão entrelaçados em nossas sociedades não se resume a um
problema ideológico capaz de ser resolvido com mera boa vontade. Qualquer
pessoa com intenção de chegar a uma base realista para a solidariedade femi-
nista internacional precisa procurar entender como as diferenças de sexo, raça
e classe são combinadas. Um mero apelo a mais “sororidade” ou solidariedade
internacional não basta.
No que diz respeito às diferenças nos planos ideológico e político, tem
havido tentativas de categorizar e rotular as várias tendências do novo mo-
vimento feminista. Assim, certas tendências passam a ser chamadas de “femi-
nismo radical”, outras de “feminismo socialista” ou “feminismo marxista”,
outras de “feminismo liberal”. Às vezes, dependendo da filiação política do
enunciador ou enunciadora, a tendência também pode ser denunciada como
“feminismo burguês”. A meu ver, rotular não contribuiu para um melhor
entendimento do real conceito de feminismo, daquilo que representa, de seus
princípios básicos, de sua análise da sociedade e de suas estratégias. Além
disso, atribuir rótulos só ganha relevância para as pessoas que olham para o
movimento de fora e tentam encaixá-lo em categorias já conhecidas. As ca-
tegorias desenvolvidas podem ter algum valor em alguns países, por exemplo
no mundo anglo-americano, mas não em outros. Mas, em geral, seu valor
62 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

explicativo é bastante limitado. Assim, o rótulo “feminismo radical”, usado


principalmente para caracterizar uma das principais vertentes do feminismo
nos Estados Unidos, não é capaz de explicar para um estranho o que ele
representa. Só quem conhece o movimento sabe que feministas radicais são
aquelas que defendem uma estratégia de separatismo radical entre as mulheres
e os homens, principalmente no domínio das relações sexuais como centro
do poder patriarcal. Na polêmica, as feministas radicais são frequentemente
acusadas de serem anti-homens e serem lésbicas.
A principal desvantagem de uma abordagem que impõe rótulos, no en-
tanto, não é apenas a pobreza explicativa, mas também o fato de que tenta
encaixar a “questão da mulher” em arcabouços teóricos e políticos preexis-
tentes. Isso significa que as teorias que dão origem aos rótulos não são criti-
cadas do ponto de vista da libertação das mulheres, mas são consideradas mais
ou menos adequadas e apenas carentes de um “componente feminino”. Se
esse “componente feminino” fosse adicionado, essas teorias estariam suposta-
mente completas. A maioria das teóricas feministas adeptas dessa abordagem
não tem consciência de que a natureza da questão da mulher é tal que não
pode ser simplesmente acrescentada a uma teoria geral qualquer, mas que
deve ser fundamentalmente crítica de todas essas teorias e exigir uma teoria
social completamente nova. Essa abordagem de rotular somando pode ser
observada nas tentativas de acrescentar o feminismo ao socialismo. As carac-
terizações de algumas vertentes do movimento feminista como “feminismo
socialista” ou “feminismo marxista” são manifestações da tendência a encai-
xar a nova crítica e a revolta feminista no corpo teórico existente do marxis-
mo. Simplesmente declarar, como faz o lema de certas feministas socialistas
holandesas, que “não haverá socialismo sem a libertação das mulheres e não
haverá libertação das mulheres sem socialismo” (Fem-Soc-Group), não leva
à compreensão daquilo que esse grupo entende por socialismo ou feminis-
mo. (Para as mulheres holandesas que cunharam o lema acima, “socialismo”
correspondia mais ou menos à social-democracia europeia.) Tais lemas ou
rótulos podem parecer úteis no nível da política cotidiana, pois as pessoas
têm necessidade de saber em quais caixinhas colocar as integrantes de um
movimento tão difuso como o movimento das mulheres. Mas os rótulos não
nos dão efetivamente a menor ideia de como as pessoas definem a “questão
da mulher”, as soluções que propõem, nem a relação entre o objetivo polí-
MARI A MI ES 63

tico da libertação das mulheres e a visão socialista de uma sociedade futura.


Não basta “declarar” tal relação. O necessário é uma nova análise histórica
e teórica da inter-relação entre a exploração e opressão das mulheres e a de
outras categorias humanas e naturais.
Mulheres que seguem outras vertentes, rotuladas de feminismo “radical”
ou “liberal”, têm procurado encaixar sua análise em alguma outra estrutura
teórica. Assim, a psicanálise tem sido o ponto de partida teórico de muitas
feministas nos Estados Unidos, na França e na Alemanha Ocidental (Millet,
1970; Mitchell, 1975; Irrigaray, 1974; Janssen-Jurreit, 1976). Essa ênfase na psi-
cologia e na psicanálise deve ser vista no contexto das vertentes individualistas
no seio de grande parte do movimento feminista no Ocidente.
Outras adotaram o funcionalismo, o estruturalismo ou o interacionismo
como referenciais teóricos para analisar a “questão da mulher”.
Evidentemente, um movimento social que visa a uma transformação fun-
damental das relações sociais não opera em um vácuo teórico. É natural que
as mulheres que começaram a expor suas posições teóricas precisassem se
referir a teorias existentes. Em alguns casos, isso levou a uma crítica de pelo
menos parte dessas teorias: por exemplo, a teoria de Freud da inveja do pênis
e da feminilidade foi fortemente atacada pelas feministas. Mas a teoria como
tal permaneceu intacta. Em outros casos, nem sequer houve crítica, e os con-
ceitos e as categorias elementares dessas teorias foram empregados de maneira
acrítica na análise feminista.
Isso se aplica particularmente ao funcionalismo estrutural e sua “teoria do
papel social”. Em vez de receber críticas, a teoria do papel social – como a
estrutura teórica para a manutenção da família nuclear patriarcal no capitalis-
mo – acabou sendo reforçada por muitas feministas. A ênfase nos estereótipos
dos papéis sexuais e nas tentativas de resolver a “questão da mulher” mudando
esses estereótipos por meio da socialização não sexista não apenas fortaleceu
a análise estrutural-funcionalista, mas também dificultou a compreensão das
raízes mais profundas da exploração e opressão das mulheres. Ao definir o
problema homem-mulher como uma questão de estereotipagem de papéis
sociais e da socialização, colocou-se o problema em um plano ideológico;
tornou-se uma questão cultural. As raízes estruturais desse problema perma-
neceram invisíveis e, portanto, a ligação do problema com a acumulação de
capital permaneceu invisível.
64 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Essa ligação também permaneceu invisível nas tentativas de usar o estru-


turalismo, assim como sua releitura marxista (Althusser, Meillassoux, Lacan),
como arcabouço teórico para a análise da opressão das mulheres. Essas ten-
tativas acabam por manter uma divisão estrutural entre a base econômica e
a “autonomia relativa” (Althusser) da ideologia. E a opressão das mulheres é
considerada parte da ideologia ou da cultura.
Todos esses esforços para “acrescentar” a “questão da mulher” às teorias ou
paradigmas sociais existentes não dão conta de compreender o verdadeiro im-
pulso histórico da nova luta feminista, ou seja, compreender seu ataque radical
ao patriarcado ou à civilização patriarcal como um sistema, de que o capitalis-
mo constitui a manifestação mais recente e universal. Como praticamente todas as
teorias acima mencionadas permanecem dentro do paradigma da “sociedade
civilizada”, o feminismo, que em seu objetivo político necessariamente almeja
transcender esse modelo de sociedade, não pode ser apenas “acrescentado”
ou encaixado em algum nicho esquecido dessas teorias. Muitas de nós, ao
procurar preencher os pontos cegos, percebemos que as questões e análises
que formulamos colocam todo o modelo de sociedade em questão. Podemos
ainda não ter desenvolvido teorias alternativas adequadas, mas nossa crítica,
que primeiro começou com essas lacunas, aprofundou-se cada vez mais até
percebermos que “nosso problema”, ou seja, a relação de opressão e explora-
ção entre homens e mulheres, estava sistematicamente conectada a outros do-
mínios igualmente ocultos, tais como a natureza e as colônias. Gradualmente,
uma nova imagem da sociedade emergiu: em que as mulheres não eram “es-
quecidas”, “negligenciadas” e “discriminadas” por acaso, em que “ainda” não
haviam tido a chance de chegar ao nível dos homens, em que eram uma das
inúmeras “minorias” e “especificidades” que “ainda” não podiam ser acomo-
dadas às teorias e políticas generalizadas. Em suma, tratava-se de uma imagem
de sociedade em que toda noção do que era “geral” ou “específico” precisava
ser revolucionada. Como definir como categoria “específica” as pessoas que
são o próprio fundamento da produção da vida em todas as sociedades, ou
seja, as mulheres? Assim, a reivindicação de validade universal, inerente a todas
essas teorias, precisou ser contestada. Isso, no entanto, ainda não estava claro
para muitas feministas.
É uma experiência própria de muitas mulheres o fato de estarem engajadas
em várias lutas e ações cujo significado histórico mais profundo elas mesmas
MARI A MI ES 65

muitas vezes não compreendem. Com isso, elas de fato conseguem causar
certas mudanças, mas não “entendem” que as mudanças que almejam são
muito mais abrangentes e radicais do que imaginam. Vejamos o exemplo da
campanha mundial contra o estupro. Ao enfocar a violência masculina contra
as mulheres, tornada visível no estupro, e conferir à questão o status de pro-
blema público, as feministas inadvertidamente tocaram em um dos tabus da
sociedade civilizada: o de que ela é uma “sociedade pacífica”. Embora a maio-
ria das mulheres estivesse preocupada principalmente em ajudar as vítimas ou
em promover reformas legais, o próprio fato de o estupro ter se tornado uma
questão pública ajudou a fazer ruir a fachada da chamada sociedade civiliza-
da e a trazer à tona suas bases brutais e violentas. Muitas mulheres, quando
começam a compreender a dimensão da revolução feminista, têm medo de
sua própria coragem e fecham os olhos para o que viram porque se sentem
totalmente impotentes diante da tarefa de derrubar milhares de anos de pa-
triarcado. No entanto, os problemas permanecem. Estejamos nós – mulheres
e homens – prontos ou não para responder às questões históricas levantadas,
elas permanecerão na agenda da história. E temos de encontrar respostas que
façam sentido e que nos ajudem a reestruturar as relações sociais de tal forma
que nossa “natureza humana” possa avançar, e não ser esmagada.

FEMINISMO DE “TEMPO BOM”?

As supramencionadas diferenças estruturais e ideológicas entre as feminis-


tas e a dificuldade em romper com estruturas teóricas de cunho patriarcal e
desenvolver novas abordagens não são explicáveis com base em alguma fra-
queza inerente ao sexo feminino. Essas dificuldades são antes manifestações da
real impotência social e política das mulheres e da ambiguidade que dela de-
corre. Grupos sem poder, principalmente se estiverem totalmente integrados
a um sistema de poder e exploração, têm dificuldade em definir a realidade
de forma diferente da definição adotada pelos detentores do poder. Isso vale
particularmente para as pessoas cuja existência material depende em grande
parte da boa vontade dos poderosos. Embora muitas mulheres tenham se
revoltado contra vários tipos de “machismo”, muitas vezes não ousavam hos-
tilizar aqueles que representavam sua fonte de trabalho e sobrevivência. Para
66 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

as mulheres de classe média, essa fonte era, via de regra, homens poderosos no
sistema acadêmico e político, ou mesmo seus maridos.
Contanto que o PIB das economias ocidentais estivesse crescendo, essas
economias poderiam se dar ao luxo de neutralizar a insatisfação e inquieta-
ção social das mulheres e de outros grupos, jogando-lhes algumas migalhas.
Sob a pressão do movimento das mulheres, algumas reformas foram intro-
duzidas, como alguma liberalização das leis do aborto, alterações em leis do
divórcio etc. Em alguns países, como na Holanda, o Estado chegou mesmo a
criar comissões para a emancipação das mulheres, e grupos de ação e cons-
cientização de mulheres passaram a poder solicitar apoio do Estado para suas
atividades. Além disso, nos Estados Unidos, departamentos de estudos das
mulheres foram criados na maioria das universidades sem grande resistência.
Embora tudo isso tenha exigido muita luta do movimento feminista, havia
uma certa benevolência paternalista em deixar que “as meninas” encon-
trassem um espaço no sistema. Já nesse estágio, os vários estabelecimentos
patriarcais usaram seu poder para cooptar as mulheres e integrar sua revolta
ao sistema. Mas o aprofundamento da crise econômica no início da década
de 1980 e a ascensão de vertentes e governos conservadores na maioria dos
países ocidentais, que estavam implementando novas políticas de reestrutura-
ção da economia, também marcaram o fim do feminismo de “tempo bom”,
ou feminismo do Estado de bem-estar social (De Vries, 1980). Em vários
países, especialmente nos Estados Unidos e na Alemanha Ocidental, os go-
vernos conservadores lançaram praticamente uma guerra contra algumas das
tímidas reformas decorrentes das pressões do novo movimento de mulheres,
sobretudo às leis relativas à liberalização do aborto. Essa estratégia de reversão
de direitos, a qual dava renovada ênfase à família patriarcal, à heterossexua-
lidade, à ideologia da maternidade, ao destino “biológico” das mulheres, à
sua responsabilidade pelas tarefas domésticas e cuidados com os filhos e ao
ataque geral ao feminismo, fez com que as que acreditavam que a liberta-
ção das mulheres pudesse vir por meio de algumas reformas jurídicas ou da
conscientização se retirassem do movimento ou até passassem a hostilizá-lo.
No mundo acadêmico, teorias conservadoras, ou mesmo reacionárias, como
a sociobiologia, vieram à tona novamente, e as mulheres ficaram caladas ou
começaram a retirar as críticas feitas a tais teorias. No campo dos estudos das
mulheres, foi possível observar uma tendência ao feminismo acadêmico. O
MARI A MI ES 67

objetivo não era mais transformar a sociedade e a relação homem-mulher,


mas trazer mais mulheres para o meio acadêmico e para os estudos e pesqui-
sas sobre mulheres (Mies, 1984b).
A estratégia de reversão, entretanto, é apenas a manifestação política de
mudanças estruturais mais profundas nas economias ocidentais, geralmente
chamadas de “flexibilização do trabalho”. As mulheres são o alvo imediato
dessa estratégia. A nova estratégia de racionalização, informatização e automa-
ção dos processos de produção e empregos no setor de serviços faz com que
as mulheres sejam as primeiras a serem expulsas de postos de trabalho bem
remunerados, qualificados e estáveis no mercado formal. Mas elas não foram
apenas enviadas de volta ao lar. Na verdade, as mulheres foram empurradas
para trabalhos não qualificados, mal pagos e precários, que precisam realizar
ao mesmo tempo que fazem o trabalho doméstico, o qual, mais do que nun-
ca, passa a ser considerado sua verdadeira vocação. E, diferente da ideologia
conservadora oficial que incide sobre as mulheres e a família, a família já não
é mais um lugar no qual as mulheres podem ter certeza de encontrar sua exis-
tência material assegurada. O homem-provedor, embora ainda considerado a
principal figura ideológica por trás das novas políticas, está em extinção. Não
apenas o aumento do desemprego masculino torna precário seu papel de
provedor da família, como também o casamento já não mais representa para
as mulheres garantia econômica de sustento vitalício.
O efeito imediato dessas novas políticas econômicas foi um rápido proces-
so de empobrecimento das mulheres nas economias ocidentais. As mulheres
constituem o maior grupo entre os “novos pobres” nos Estados Unidos, na
França, na Inglaterra e na Alemanha Ocidental. Nesta, a proporção de mulhe-
res entre a população desempregada é de quase 40%. No mercado de trabalho,
as mulheres enfrentam concorrência ampla dos homens. Isso ocorre sobretudo
nos postos de trabalho bem remunerados, estáveis e de prestígio em escolas e
universidades. Na Alemanha Ocidental, a política de cortes no sistema educa-
cional levou ao desemprego em grande escala, especialmente de professoras, e
à expulsão de mulheres do trabalho qualificado e mais bem remunerado nas
universidades. Com a escassez de empregos, os homens voltam a fechar suas
fileiras e recolocam as mulheres em seu lugar, que é, segundo muitos, a família
e o lar. Muitos homens que têm algum poder no setor formal usam esse poder
para se livrar das mulheres, principalmente em se tratando de feministas. A
68 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

reestruturação das economias ocidentais segue em grande medida o modelo já


praticado na maioria dos países subdesenvolvidos. Ou seja, divisão do mercado
de trabalho e do processo produtivo em: um setor formal na indústria e nos
serviços, com trabalhadores bem remunerados, qualificados, em sua maioria
do sexo masculino (o modelo clássico de trabalhador assalariado, cuja segu-
rança no emprego, salário e outros interesses são de interesse dos sindicatos); e
um setor informal ou não organizado, com uma série de relações de produção
que vão desde o emprego em tempo parcial ao contrato por tarefa, o trabalho
autônomo, o novo sistema de teletrabalho e outros tipos de trabalho em casa,
até o trabalho doméstico e outros tipos precarizados de trabalho remunerado
ou não remunerado. Esse setor é caracterizado por baixos salários, ausência de
qualquer segurança no emprego e alta “flexibilidade”.
Os sindicatos não se sentem responsáveis pelo setor que absorve todos os
desempregados crônicos, marginalizados, em sua maioria mulheres, porque,
de acordo com a definição clássica, compartilhada pelo capital, pelo Estado
e pelos sindicatos, essas pessoas não são assalariados “livres”. As pessoas que
trabalham no setor informal são como as donas de casa. Elas trabalham, muitas
vezes mais do que os trabalhadores assalariados “livres”, mas seu trabalho é
invisível. E, assim, esse trabalho pode se tornar uma fonte ilimitada e não fisca-
lizada de exploração. A dualização das economias e dos mercados de trabalho
à imagem do que ocorre nos países subdesenvolvidos é o método pelo qual
o capital corporativo ocidental busca reduzir o nível salarial real, para gastar
menos com os custos de produção e destruir o poder dos sindicatos, porque o
grupo de trabalhadores no setor informal, como as donas de casa, não fazem
lobby e se encontram dispersos. O que os especialistas chamam de “flexibili-
zação do trabalho”, nós chamamos de “donadecasificação” do trabalho (Mies,
1981; von Werlhof, 1984).
A estratégia de dividir a economia em setores “visíveis” e “invisíveis” não
é nada nova, trata-se de um método que acompanha o processo de acumu-
lação capitalista desde o seu início. As partes invisíveis foram, por definição,
excluídas da economia “real”, mas sempre foram de fato os próprios alicerces
da economia visível. Os segmentos excluídos eram/são as colônias internas e
externas do capital: as donas de casa nos países industrializados e as colônias na
África, Ásia e América Latina. Devido às normas e ao sistema de seguridade
social na Europa e nos Estados Unidos, a criação de um setor informal ainda
MARI A MI ES 69

não faz desse setor, por si só, um setor lucrativo para formas indiscriminadas
de exploração e acumulação. Para que isso ocorra, é preciso que, ao mesmo
tempo, o Estado corte os gastos com a seguridade social. Assim, os governos
conseguem forçar as pessoas que são expulsas do setor formal a aceitar qual-
quer tipo trabalho, com qualquer remuneração e sob quaisquer condições,
para que possam sobreviver. Isso significa, em última análise, que as condições
aplicáveis à grande maioria das pessoas no mundo subdesenvolvido estão vol-
tando aos centros do capitalismo. Embora, por enquanto, o padrão de vida das
massas nos países superdesenvolvidos ainda seja muito mais alto que nos países
do Terceiro Mundo, estruturalmente a situação das pessoas no setor informal
está se aproximando cada vez mais das condições enfrentadas pela maioria das
pessoas nos países subdesenvolvidos.
Para as mulheres e o movimento de mulheres nos países ocidentais, esses
processos possuem grandes consequências. As mulheres são as mais atingidas
pela estratégia que combina cortes na seguridade social com a racionalização
e flexibilização do trabalho. Perfazem, portanto, a maior parte dos “novos po-
bres” nos países ocidentais (Atkinson, 1982; Merner, 1983).
Para o movimento feminista, esses processos representam um enorme desa-
fio. Por um lado, eles significam o fim do “feminismo de tempo bom”. Todas
as feministas que acreditavam que a libertação das mulheres seria alcançada
pressionando o Estado (e, com isso, obtendo mais políticas de bem-estar so-
cial para as mulheres) ou exigindo oportunidades iguais para as mulheres no
mercado de trabalho (especialmente nos escalões mais elevados desse merca-
do) ou aumentando a participação das mulheres em órgãos políticos e outras
instâncias decisórias tiveram suas expectativas destruídas. Hoje, as feministas
precisam perceber que os direitos democráticos fundamentais e os direitos de
igualdade e liberdade também são concedidos quando o “tempo está bom” e
que, no que diz respeito às mulheres, esses direitos, apesar da retórica de sua
universalidade, são facilmente retirados quando assim exigem as necessidades
da acumulação capitalista.
Por outro lado, a desilusão com a capacidade de os estados capitalistas de-
mocráticos cumprirem as promessas da revolução burguesa também para as
mulheres pode ter um efeito muito salutar: ela força as mulheres, pelo menos
aquelas que não desistiram da luta pela libertação feminina, a abrir os olhos
para a realidade em que vivemos e voltar-se para as questões que foram ne-
70 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

gligenciadas por muitas feministas porque pareciam estar fora da esfera de sua
preocupação imediata. Essas questões são, na minha visão:

1. Uma nova avaliação do que é o capitalismo e como a exploração e a opres-


são das mulheres, ou o patriarcado, estão ligadas ao processo de acumulação
capitalista.
2. Uma nova discussão sobre o colonialismo. Como as condições coloniais
estão voltando para as metrópoles e como as mulheres, mais do que outros
grupos, são afetadas por esse processo, a divisão estrutural entres mulheres
do Terceiro e do Primeiro Mundo, ocasionada pela divisão internacional
do trabalho ou colonialismo, está cada vez mais difícil de ser percebi-
da. Por isso, as feministas ocidentais precisam compreender rapidamente
que as mulheres colonizadas não estão apenas na África, Ásia ou América
Latina, mas também nos Estados Unidos e na Europa. Além disso, elas
precisam encontrar uma resposta para a questão de por que o sistema capi-
talista “democrático” altamente desenvolvido ainda precisa dessas colônias,
nas quais todas as regras que estabeleceu para si mesmo são suspensas ou,
em outras palavras, por que o sistema de acumulação capitalista em escala
mundial não consegue permitir a libertação das mulheres ou a libertação
das colônias.
3. Do debate e análise acima, seguirá uma discussão renovada sobre qual deve
ser a visão feminista de uma sociedade futura ou quais são os pré-requisitos
realistas para a libertação das mulheres. Essa discussão deverá transcender
as fronteiras criadas pelo patriarcado capitalista e levar em consideração
as experiências e as análises das mulheres nos vários extremos do sistema
de mercado global. Somente dentro de uma perspectiva que abranja todas
as relações de produção criadas pelo patriarcado capitalista, e não apenas
aquelas que vemos imediatamente ao nosso redor, somente por meio de
uma abordagem verdadeiramente global e holística podemos esperar ser
capazes de desenvolver uma visão de uma sociedade futura na qual as
mulheres, a natureza e outras pessoas não são exploradas em nome do
“progresso” e do “crescimento”.
MARI A MI ES 71

O QUE HÁ DE NOVO NO FEMINISMO?


CONTINUIDADES E DESCONTINUIDADES

Uma das descobertas importantes do novo movimento feminista foi a


redescoberta e reavaliação da história das mulheres. Metodologicamente, essa
nova abordagem histórica na análise da “questão da mulher” está intimamente
ligada ao objetivo político da libertação das mulheres. A menos que se saiba
como as coisas passam a ser o que são, não é possível saber como mudá-las.
A avaliação crítica do movimento feminista com vistas a resolver algumas
de suas questões em aberto deve, portanto, considerar a história desse mo-
vimento, não apenas a história relativamente curta do novo movimento das
mulheres que começou no Ocidente no final dos anos 1960, mas também a
história do movimento de mulheres anterior, que se extinguiu no final dos
anos 1920. Somente avaliando como tais movimentos lidaram com as questões
básicas acima mencionadas e explicitando as continuidades e descontinuidades
do antigo e do novo movimento de mulheres, podemos esperar aprender com
a história e evitar as ambiguidades que marcaram longos períodos históricos.

CONTINUIDADES. LIBERTAÇÃO DAS MULHERES: UM ASSUNTO CULTURAL?

A primeira onda do movimento de libertação das mulheres começou no


contexto das revoluções burguesas, particularmente da Revolução Francesa
de 1789 e da Revolução Americana de 1776.
Durante a Revolução Francesa, os princípios de liberdade, igualdade e fra-
ternidade foram apresentados ostensivamente para toda a humanidade como
direitos humanos básicos – e não apenas para o benefício da classe burguesa
em ascensão. O fato de que os princípios eram radicais e universais impossi-
bilitou que a burguesia, que tinha interesse direto e imediato em defendê-los,
mantivesse-os sob seu exclusivo controle. Não foi possível evitar que várias
categorias de oprimidos – o proletariado, as nações colonizadas, os escraviza-
dos negros e, por último, mas não menos importante, as mulheres – fizessem
desses princípios a base de sua luta de libertação ao longo do tempo. Portanto,
não é nada surpreendente que as mulheres francesas, pela primeira vez, pas-
sassem a apresentar reivindicações por direitos iguais durante os períodos re-
volucionários por volta de 1789 e 1848. Elas esperavam fazer sua própria
72 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

revolução dentro da Grande Revolução juntando-se à luta nas ruas de Paris,


bem como aos muitos grupos de discussão e clubes republicanos que surgi-
ram por todo o país. Grandes massas de mulheres de setores empobrecidos de
Paris participaram ativamente da luta contra o feudalismo. Quando, em 1793,
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi lida no Convento, uma
mulher, Olympe de Gouges, levantou a voz e leu seus famosos 17 artigos so-
bre a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de sua autoria. Ela declarou
que, se as mulheres têm o direito de morrer na guilhotina, também devem ter
o direito de falar na tribuna. Ela foi guilhotinada no mesmo ano. E, embora
estivessem na vanguarda da revolução, as mulheres continuaram excluídas da
cena política.
Também a obra Reivindicação dos direitos da mulher, de Mary Wollstonecraft,
publicada em 1792, não conseguiu mudar essa política de exclusão das mu-
lheres, mesmo as pertencentes à classe burguesa, da esfera pública e do poder
político. O movimento feminista do século XIX, tanto na Europa quanto nos
Estados Unidos, foi desencadeado principalmente pela contradição entre os
princípios universais da Revolução Burguesa – liberdade, igualdade, fraterni-
dade – e a exclusão deliberada das mulheres desses direitos humanos. As lutas
do antigo movimento das mulheres estavam, portanto, preocupadas princi-
palmente em dar acesso às mulheres à esfera pública e política monopolizada
pelos homens burgueses.
Embora Clara Zetkin, que iniciou e liderou o Movimento das Mulheres
Proletárias na Alemanha na última década do século XIX, tenha ridicularizado
a preocupação com os direitos das mulheres como um “feminismo burguês”
ultrapassado, o objetivo da estratégia socialista para a libertação das mulheres,
baseado nos fundamentos teóricos de Marx e Engels, em linhas gerais, não
era muito diferente: a participação das mulheres na produção pública ou so-
cial como trabalhadoras assalariadas era vista como a pré-condição para sua
libertação (cf. Zetkin, 1971).
O alvo da maioria das antigas lutas e reivindicações feministas era o Estado,
como o organizador e regulador da esfera pública, não os homens ou o pa-
triarcado como sistema. A divisão social do trabalho entre “público” e “pri-
vado”, a principal característica estrutural da sociedade industrial capitalista,
foi aceita como necessária e progressista. Essa divisão não foi contestada nem
pela esquerda, nem pelas feministas liberais ou radicais. A luta do antigo mo-
MARI A MI ES 73

vimento das mulheres era para que as mulheres também tivessem seu lugar de
direito na esfera pública. Os pressupostos teóricos por trás desse posiciona-
mento eram o fato de que as mulheres, desde tempos imemoriais, haviam sido
excluídas da esfera pública (política e econômica). Mas a sociedade moderna,
com seu acelerado desenvolvimento tecnológico e crescente riqueza material
no plano econômico e com a democracia burguesa no plano político, forne-
ceria as pré-condições estruturais e ideológicas para retirar as mulheres de sua
existência privada insignificante, conduzindo-as para a arena pública, na qual
trabalhariam lado a lado com os homens na “produção social”. Portanto, elas
teriam o “direito” de sentar-se ao lado dos homens nas plataformas públicas
em que o poder político era exercido. O antigo movimento feminista tirou
sua inspiração, em grande parte, da esperança de que os direitos democráti-
cos da revolução burguesa eventualmente também alcançariam as mulheres.
A diferença entre as mulheres liberais e as de esquerda era que as primeiras
consideravam a participação política na esfera pública como a chave para a li-
bertação das mulheres, enquanto as últimas acreditavam que seria a plena par-
ticipação econômica na “produção social” que as conduziria à emancipação.
Ambas as vertentes também usaram os mesmos métodos de agitação pú-
blica, de propaganda e de escrita e fala em plataformas públicas. E ambos os
grupos consideraram a educação e a formação das mulheres como um dos
métodos mais importantes para elevar o status econômico, político e cultural
das mulheres. Para o movimento das mulheres proletárias, a ênfase na edu-
cação das mulheres foi vista como necessária para dar-lhes consciência de
classe e para melhorar suas oportunidades de emprego. Para o movimento de
mulheres liberais, a educação de meninas e jovens era vista como o caminho
mais importante para a emancipação das mulheres. Muitas, se não a maioria,
das primeiras feministas dos séculos XIX e XX eram professoras e assistentes
sociais. A ênfase na educação e na cultura das mulheres no campo liberal
baseia-se em uma teoria da sociedade segundo a qual todos os problemas es-
truturais de desigualdade ou exploração, bem como a opressão das mulheres,
tida como uma espécie de “defasagem cultural” ou anacronismo ideológico,
podem ser abolidos por meio da educação, de ações afirmativas e de reformas.
O novo movimento das mulheres também foi inicialmente visto como
um movimento cultural. É possível que isso se deva ao fato de que ele tenha
surgido no final dos anos 1960 nos Estados Unidos e na Europa Ocidental
74 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

no contexto dos grandes movimentos de protesto – o movimento contra a


guerra do Vietnã, o movimento pelos direitos civis, o movimento Black Power,
o movimento hippie nos Estados Unidos e o movimento dos estudantes na
Europa –, sendo, portanto, visto como um fenômeno cultural que afetava
principalmente jovens de classe média que tinham acesso à educação supe-
rior. Como Herbert Marcuse apontou, as frustrações e revoltas dessa geração
e classe não decorriam da privação material ou da pobreza. O período de
escassez e reconstrução do pós-guerra havia terminado, as economias do
Ocidente capitalista atingiram um nível em que a maioria das pessoas era
capaz de adquirir a maior parte dos bens de consumo duráveis e o pleno
emprego e o crescimento contínuo pareciam ter banido para todo o sempre
a pobreza e as crises econômicas cíclicas. O tradicional protesto da classe
trabalhadora, decorrente da discrepância entre o lucro capitalista e a miséria
dos trabalhadores, foi apaziguado pela alta dos salários e pela integração dos
trabalhadores no que Marcuse chamou de sociedade de consumo unidimen-
sional. Sindicatos, capital e Estado trabalharam juntos para criar a sociedade
unidimensional (Marcuse, 1970). Juliet Mitchell explica o surgimento dos
protestos a partir do contexto da necessidade das economias capitalistas de
abrir novas áreas de produção e consumo, novos mercados, o que exigia
que muito mais pessoas tivessem um nível de educação muito mais elevado.
A expansão do ensino superior foi uma pré-condição para a expansão das
novas tecnologias de comunicação e/ou de um mercado para as mercadorias
culturais (Mitchell, 1973).
O acesso, sem precedentes, de muito mais jovens à educação superior, no
entanto, produziu suas próprias contradições na medida em que esse grupo
percebeu a tremenda discrepância entre os ideais universais de liberdade e
direitos civis, essenciais para as democracias parlamentares, e as acentuadas
formas de discriminação, opressão e exploração das minorias em seu próprio
país e dos povos do Terceiro Mundo no exterior. Além disso, foi esse grupo
que tomou consciência e passou a pensar sobre os efeitos desumanizantes e
alienantes do consumismo. Pela primeira vez após a Segunda Guerra Mundial,
verificou-se que, em meio a uma abundância de mercadorias materiais, a dig-
nidade humana estava sendo destruída. Assim, muitas pessoas dos movimentos
passaram a enfatizar formas culturais ou políticas de protesto e de anticonsu-
mismo. As frustrações surgiram da compreensão de que a riqueza material não
MARI A MI ES 75

satisfazia os desejos humanos mais profundos de felicidade, justiça, liberdade,


autorrealização. “Água, água por toda parte, mas nem uma gota para beber”23
poderia ter sido a expressão desses sentimentos. No entanto, a raiz dessa frus-
tração ainda não era atribuída (pela maioria) aos mecanismos inerentes do
sistema industrial capitalista. Em vez disso, acreditava-se que uma revolução
cultural era necessária para acabar com os efeitos negativos da tecnologia e do
crescimento. O modelo de crescimento como tal e o expansionismo tecno-
lógico não chegaram a ser criticados.
Um argumento padrão era o de que, agora que a pobreza havia sido su-
perada para sempre na sociedade ocidental pelo progresso tecnológico, final-
mente havia espaço para uma redistribuição da riqueza e uma libertação cul-
tural das pessoas. Muitos movimentos de protesto adquiriram legitimidade em
decorrência da discrepância entre o potencial de realização humana, inerente
às sociedades democráticas modernas, e sua não realização factual. Finalmente,
havia todos os fatores necessários para cumprir as promessas da revolução
burguesa, não apenas para algumas, mas para todas as pessoas. Se isso não havia
acontecido, não era devido a falhas estruturais ou à escassez de meios, mas a
uma falta de consciência ou vontade política.
O movimento feminista inicialmente compartilhou dessa orientação em
certa medida. As mulheres nos Estados Unidos e na Europa, e também nos
países do Terceiro Mundo, perceberam que, apesar da igualdade dos sexos,
proclamada por todas as constituições democráticas, ainda eram tratadas como
uma minoria sociológica; elas eram discriminadas em todos os lugares – na
política, no trabalho, na educação, na família e pela instituição da família.
Em consonância com a esperança otimista de que finalmente as mulheres
poderiam se tornar “cidadãs” plenas, a Organização Nacional Americana de
Mulheres (American National Organization of Women – NOW) foi fundada por
Betty Friedan em 1966, com ênfase na luta pela inserção de uma emenda
constitucional que garantisse direitos iguais entre homens e mulheres nos
Estados Unidos (conhecida como Equal Rights Amendment – ERA).24 Ações

23 “Water, water, everywhere, / Nor any drop to drink”. Trecho de A balada do velho marinheiro, de
Samuel Taylor Coleridge. [N. das T.]

24 A Emenda de Igualdade de Direitos entre homens e mulheres (ERA), de 1923, foi um


projeto de emenda à Constituição dos Estados Unidos elaborado por Alice Paul do Partido
76 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

jurídicas, ações afirmativas, ações culturais, mudanças de referências por meio


da socialização e educação não sexista, combate às imagens sexistas na mídia
foram e ainda são algumas das principais formas de luta feminista.
Essa ênfase nas lutas dentro das esferas da consciência, ideologia ou cultura
continuou mesmo depois que os primeiros anos de euforia do novo movi-
mento das mulheres terminaram. Muitas feministas ainda acreditam que as
relações patriarcais entre homens e mulheres podem ser alteradas por meio da
educação ou de diferentes formas de socialização, que a discriminação contra
as mulheres nos campos político e profissional pode ser abolida garantindo às
meninas mais acesso ao ensino superior e à formação. Além disso, os Estudos
das Mulheres, que já foram aceitos em muitas universidades e faculdades,
extraem muito de sua legitimidade desse “feminismo cultural”, da crença de
que a igualdade de acesso à educação e a ênfase em conteúdos educacionais
voltados para as mulheres seriam o longo caminho a ser percorrido para me-
lhorar a condição delas.
Particularmente com o surgimento das “novas tecnologias”, da informá-
tica, da engenharia genética e da biotecnologia, ouvimos novamente que as
mulheres deveriam buscar mais educação, mais formação nessas tecnologias,
principalmente em informática e microbiologia, caso contrário, seriam nova-
mente deixadas para trás pela “terceira revolução tecnológica”. Mesmo as fe-
ministas, que são críticas ao desenvolvimento tecnológico, sentem que “temos
de conhecer primeiro essas novas tecnologias antes de dizer se elas devem ser
rejeitadas ou não”.25
A crença na educação, na ação cultural ou mesmo na revolução cultural
como agentes de mudança social é uma crença típica das classes médias ur-
banas. No que diz respeito à questão da mulher, parte-se do pressuposto de

Nacional de Mulheres. O projeto nunca foi levado à votação. Em 2019, Kimberlé Crenshaw e
Catharine MacKinnon propuseram, como atualização à ERA, a Emenda da Igualdade (Equa-
lity Amendment) que proibiria a discriminação de sexo, gênero e orientação sexual. Até a data
de edição deste livro, essa emenda também não havia obtido quórum mínimo para ser levada
à votação. [N. das T.]

25 No Segundo Congresso Internacional Interdisciplinar de Mulheres em Groningen (Holan-


da), em abril de 1984, a principal preocupação das organizadoras, e de muitas das mulheres que
apresentaram trabalhos, foi mobilizar as mulheres a embarcar no trem da “terceira revolução
tecnológica”. A libertação das mulheres passou novamente a ser vista como uma função do
conhecimento das mulheres acerca da ciência e tecnologias modernas.
MARI A MI ES 77

que a opressão da mulher nada tem a ver com as relações materiais básicas de
produção ou com o sistema econômico. Essa suposição é mais comum entre
as feministas ocidentais, principalmente estadunidenses, que geralmente não
falam sobre capitalismo. Para muitas feministas ocidentais, a opressão das mu-
lheres está enraizada na cultura da civilização patriarcal. Para elas, o feminismo
é, portanto, em grande parte um movimento cultural, uma nova ideologia ou
uma nova consciência.
Mas os países socialistas também consideram a emancipação das mulhe-
res uma questão cultural ou ideológica (ver capítulo 6). Após a abolição da
propriedade privada e da transformação socialista das relações de produção,
presume-se que todos os problemas remanescentes na relação homem-mulher
são “atrasos culturais”, resquícios ideológicos da sociedade “feudal” ou “capi-
talista” do passado que podem ser superados por meio da reforma jurídica, da
educação, do convencimento, da revolução cultural e, sobretudo, por meio de
constante exortação e propaganda. Como a relação homem-mulher não é con-
siderada parte integrante das relações estruturais básicas de produção, tais méto-
dos tiveram ínfimo sucesso tanto nos países socialistas quanto nos capitalistas. A
lacuna entre a ideologia, liberal ou socialista, que consta nas leis e constituições
formais e a prática patriarcal é igualmente grande em ambos os sistemas.
O “feminismo cultural” também teve grande influência nas obras teóricas
das feministas. Este não é o lugar para discutir esse tópico em detalhes, mas
uma das manifestações mais importantes do feminismo cultural é a distinção
conceitual entre gênero e sexo, desenvolvida pela primeira vez por Anne Oakley,
mas hoje quase universalmente usada em textos e discussões feministas. De
acordo com essa distinção, sexo está ligado à biologia, é definido em função
de hormônios, gônadas, genitália, enquanto a identidade de gênero de homens
e mulheres em qualquer sociedade é considerada uma questão psicológica e
social, o que significa que gênero é histórico e culturalmente determinado.
A fim de evitar a confusão quanto ao sexo como algo biologicamente deter-
minado, o conceito de gênero foi introduzido para denotar diferenças social e
culturalmente determinadas entre homens e mulheres. A internalização dessas
diferenças é então chamada de “generificação” (Oakley, 1972).
A distinção entre sexo como uma categoria biológica e gênero como uma
categoria sociocultural pode parecer útil à primeira vista, pois remove o incô-
modo de que a opressão da mulher é o tempo todo atribuída à sua anatomia.
78 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mas essa distinção segue o conhecido padrão dualista que consiste em separar
“natureza” e “cultura” (Ortner, 1973). Para as mulheres, essa divisão tem uma
tradição longa e desastrosa no pensamento ocidental, pois elas foram coloca-
das do lado da “natureza” desde o surgimento da ciência moderna (Merchant,
1983). Se as feministas agora tentarem sair dessa tradição definindo sexo como
um assunto puramente material, biológico, e gênero como a expressão “su-
perior”, cultural, humana e histórica desse assunto, então elas continuarão o
trabalho daqueles filósofos patriarcais e cientistas idealistas que dividiram o
mundo entre a matéria bruta e “má” (a ser explorada e colonizada) e o “bom”
espírito (a ser monopolizado por padres, dirigentes políticos e econômicos
e cientistas).
Não surpreende que essa terminologia tenha sido imediatamente adotada
por todo tipo de pessoas não necessariamente simpáticas ou até mesmo hostis
ao feminismo.26 Se, em vez de “violência sexual”, falarmos de “violência de
gênero”, o impacto é um tanto mitigado por um termo abstrato, que retira
toda a questão do âmbito da emoção e do compromisso político, para com
isso situá-lo no discurso científico e aparentemente “objetivo”. Se a questão
da mulher for novamente deslocada para esse nível, muitos homens e muitas
mulheres que não querem mudar o status quo voltarão a se sentir à vontade
com o movimento das mulheres.
Mas não nos enganemos. Assim como sexo e sexualidade, o corpo, femi-
nino ou masculino, nunca foi uma questão puramente biológica (ver capítulo
2). A “natureza humana” sempre foi social e histórica. A fisiologia humana ao
longo da história foi influenciada e moldada pela interação com outros seres
humanos e com a natureza externa. Assim, o sexo é uma categoria tão cultural
e histórica quanto o gênero.

26 Um deles é Ivan Illich, que adotou primeiramente uma série de ideias e conceitos de fe-
ministas como Barbara Duden, Gisela Bock e Claudia von Werlhof, cujas análises do trabalho
doméstico sob o capitalismo o inspiraram a escrever seu artigo sobre o “trabalho na sombra”
(“Shadow-Work”). Mas, ao incluir o trabalho doméstico no conceito neutro de “trabalho na
sombra”, ele não apenas confundiu novamente a exploração das mulheres, mas acabou dando à
análise feminista materialista uma interpretação idealista. Nesse processo, o conceito anglófono
de “gênero” foi bastante útil para transportar toda a análise para a esfera cultural. O próximo
passo foi, então, fazer um ataque direto às feministas que, de acordo com ele, estavam prestes a
abolir todas as diferenças de gênero universais, culturalmente determinadas (cf. Illich: Gender
[Gênero], Nova York, 1983).
MARI A MI ES 79

Com a divisão dualista entre sexo e gênero, no entanto, ao tratar um como


biológico e o outro como cultural, a porta seria novamente aberta para aque-
les que desejam tratar a diferença sexual entre os humanos como um assunto
de anatomia ou como “matéria”. O sexo como “matéria” pode então se tor-
nar um objeto para o cientista, que pode dissecá-lo, analisá-lo, manipulá-lo e
reconstruí-lo de acordo com seus planos. Uma vez que todo valor espiritual
foi retirado do sexo e encapsulado na categoria gênero, os tabus que até agora
ainda cercavam a esfera do sexo e da sexualidade podem ser facilmente remo-
vidos. Essa esfera pode se tornar um novo terreno a ser explorado pela enge-
nharia biomédica para fins de tecnologias de reprodução, engenharia genética
e eugênica e, por último, mas não menos importante, para a acumulação de
capital (cf. Corea, 1984).
Certamente, Anne Oakley e as demais pessoas que introduziram essa dis-
tinção entre sexo e gênero não previram esses processos; elas consideraram
essas categorias apenas como ferramentas analíticas ou construções teóricas
que ajudariam a pensar sobre ideias feministas. Entretanto, conceitos também
são meios para construir a realidade; portanto, é essencial que nossas categorias
e conceitos sejam tais que nos ajudem a transcender o patriarcado capitalista
e a construir uma realidade em que nem as mulheres, nem os homens, nem
a natureza sejam explorados e destruídos. Mas isso pressupõe a compreensão
de que a opressão das mulheres hoje é parte integrante das relações de produção
patriarcais capitalistas (ou socialistas), do paradigma do crescimento constante
e cada vez maior das forças produtivas, da exploração ilimitada da natureza, da
produção ilimitada de mercadorias, da expansão constante de mercados e do
acúmulo interminável de capital morto. Um movimento feminista puramente
cultural não será capaz de identificar as forças e poderes que se interpõem em
nosso caminho. Tampouco será capaz de desenvolver uma perspectiva realista
de uma sociedade futura livre de exploração e opressão.

DESCONTINUIDADES. POLÍTICA DO CORPO

Um olhar sobre a história recente do novo movimento feminista pode


nos ensinar que as principais questões que desencadearam a revolta das mu-
lheres não foram as questões geralmente abordadas pelo feminismo cultural,
as questões da desigualdade e da discriminação, mas outras questões que, de
80 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

uma maneira ou outra, estavam relacionadas ao corpo feminino. Em contraste


com o antigo movimento das mulheres, o novo movimento feminista não
concentrou suas lutas na esfera pública (na política e na economia), mas abriu,
pela primeira vez na história, a esfera privada como uma arena para as lutas das
mulheres. As mulheres haviam sido relegadas à esfera privada do patriarcado
capitalista, a qual era, aparentemente, uma área sem nenhuma relação com a
política. Ao falar abertamente sobre suas relações mais íntimas com os homens,
sua sexualidade, suas experiências com a menstruação, gravidez, puericultura,
sua relação com o corpo, a falta de conhecimento sobre o próprio corpo,
seus problemas com a contracepção etc., as mulheres começaram a socializar
entre si e, assim, a politizar suas experiências mais íntimas, individuais e até
então dispersas. A “política do corpo” foi e ainda é a área em torno da qual o
novo movimento das mulheres foi deflagrado, não apenas no Ocidente, mas
também em muitos países subdesenvolvidos. Ao definir a esfera privatizada e
isolada da relação homem-mulher como política, cunhando o lema “o pessoal
é político”, a divisão estrutural da sociedade burguesa entre público e privado
passou a ser contestada. Isso significou, ao mesmo tempo, uma crítica ao con-
ceito de “política” como até então era entendido (Millet, 1970). A “política do
corpo” não foi desenvolvida como uma estratégia deliberada pelas feministas.
Ao contrário, surgiu das frustrações e da revolta das massas de mulheres nas
sociedades ocidentais em relação a certas questões que demonstravam a
natureza essencialmente violenta e opressora da relação homem-mulher em
nossas sociedades. Que frustrações eram essas?
Em muitos países, como Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha
Ocidental e, mais tarde, Itália e Espanha, o movimento feminista tornou-se
um movimento de massa apenas com as campanhas de liberalização ou abo-
lição das leis do aborto no início dos anos 1970.
Nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha Ocidental, a primeira fase
do movimento feminista começou quando as mulheres que participavam do
movimento estudantil de esquerda começaram a se distanciar dessas orga-
nizações e a formar seus próprios grupos autônomos. Esses grupos estavam
concentrados nas universidades e, embora suas primeiras ações tivessem ob-
tido ampla cobertura e publicidade, as mulheres comuns ainda não admitiam
que a dominação masculina, ou o “chauvinismo masculino”, também era um
problema para elas. Isso mudou com as campanhas contra as leis do aborto.
MARI A MI ES 81

Na França, uma campanha de autoacusação foi iniciada por mulheres im-


portantes no jornal Nouvel Observateur em abril de 1971. Muitas mulheres fa-
mosas assinaram uma declaração de que haviam abortado, desafiando o Estado,
enquanto garantidor da lei e da ordem pública, a ingressar com ação judicial
contra elas. Uma campanha semelhante foi iniciada por Alice Schwarzer na
revista Stern na Alemanha no mesmo ano.Trezentas e setenta e quatro mulhe-
res assinaram a declaração. Seguiu-se uma grande série de ações, manifestações
e comícios que mobilizaram centenas de milhares de mulheres e as levaram
às ruas e à tomada de armas contra as instituições mais poderosas, guardiãs
do patriarcado moderno: o Estado, o direito, a Igreja e os ginecologistas. Esse
grande movimento pressionou o partido governante, o social-democrata, a
abolir a lei que criminalizava o aborto. As campanhas contra as leis do aborto
se dissolveram no início dos anos 1970, depois de algumas reformas jurídicas
terem sido realizadas. No antigo movimento, a consecução de objetivos jurí-
dicos ou políticos geralmente marcava o fim do movimento. Não é assim no
novo Movimento pela Libertação das Mulheres (Women’s Liberation Movement
– WLM). Pode-se até dizer que o fim da campanha contra as leis de proibição
ao aborto sinalizou o início do novo movimento. O que aconteceu foi que
as mulheres não se mobilizaram em torno de um partido, sindicato ou outra
organização, mas em pequenos grupos que começaram a estabelecer redes de
alcance nacional (Schwarzer, 1980).
Às manifestações e aos comícios em massa seguiu-se uma proliferação
de pequenos grupos em todas as cidades. As mulheres que saíram às ruas
não queriam mais o anonimato de suas casas e o isolamento. Elas estavam
determinadas a aderir a grupos feministas existentes ou a fundar novos grupos.
Esses grupos de mulheres discutiram inicialmente os problemas das leis contra
o aborto, mas logo se transformaram em grupos de conscientização, em que
não apenas se debatiam problemas relacionados ao aborto, como também se
compartilhavam experiências sobre sexualidade, experiências pessoais como
mães, amantes, esposas. Em suma, a realidade oculta da vida privada das mu-
lheres tornou-se um problema público, e muitas mulheres perceberam que
o problema que tinham com seu homem, filho, chefe etc. era um “problema
geral” comum a todas as mulheres. Nessas discussões, ficou claro que os “ini-
migos” não eram apenas o Estado, a Igreja, o direito, os médicos, mas que
cada mulher também dormia com o “inimigo”. Assim, as campanhas contra
82 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

as leis do aborto tiveram a consequência lógica de que mais e mais mulheres


começaram a refletir e discutir sobre as questões da sexualidade, sobre o fato
de que as consequências das relações sexuais sempre eram suportadas pelas
mulheres, sobre o motivo de as mulheres saberem tão pouco sobre sua pró-
pria sexualidade, sobre por que questões relacionadas ao orgasmo feminino, à
masturbação e à homossexualidade feminina eram tabus. Essas discussões fi-
nalmente trouxeram à tona o fato de que, para muitas mulheres, a experiência
da relação sexual mais íntima entre mulheres e homens era caracterizada pela
violência, humilhação e coerção.
A violência e a coerção pareciam ser os principais mecanismos da relação
desigual de poder que era mantida na área da política do corpo. Cada vez
mais, as mulheres descobriam que seus corpos tinham sido alienados de si
mesmas e transformados em objetos para outras pessoas, tornando-se “terri-
tório ocupado”. Muitas começaram a entender que a dominação masculina,
ou patriarcado, como então passou a ser chamada, teve sua origem não apenas
no âmbito político público, mas no controle dos homens sobre o corpo das
mulheres, particularmente sobre a sexualidade e a capacidade de reprodução
(Millett, 1970).
A isso seguiram-se a “descoberta” e a luta contra outras manifestações da
violência masculina. As mulheres passaram a se mobilizar contra o espancamen-
to de mulheres, casadas ou não.27 Um grande número de grupos em muitos paí-
ses lançou um movimento contra o espancamento de mulheres e a crueldade
física e psicológica dos homens contra as mulheres. Abrigos para mulheres
vítimas de espancamento foram instalados em vários países ocidentais por
grupos independentes de mulheres como uma primeira medida de autoaju-
da. Enquanto isso, abrigos também foram criados em países subdesenvolvidos
como a Índia.
O movimento contra o espancamento de mulheres foi seguido por outro
movimento igualmente amplo contra o estupro, o assédio sexual de mulheres

27 A autora utiliza, no original, os termos “wife beating” e “women beating”, comuns nas dé-
cadas de 1960 a 1990. Naquela época, os termos eram usados para descrever casos de violência
física cometida pelo marido contra a esposa ou pelos homens contra as mulheres. No entanto,
à medida que a compreensão da violência de gênero se expandiu nas últimas décadas, termos
mais inclusivos, como “violência doméstica” ou “violência contra as mulheres”, são agora am-
plamente utilizados para descrever as diversas formas de violência que as mulheres enfrentam
em suas vidas. [N. das T.]
MARI A MI ES 83

e a violência em relação às mulheres nas ruas, na mídia, na publicidade e na


pornografia. Enquanto o movimento contra as leis que proibiam o aborto,
pelo menos em seus estágios iniciais, havia se dirigido ao Estado e seus órgãos
legislativos, os movimentos em torno da questão da violência masculina enfo-
cavam as mulheres como vítimas, às quais as feministas passaram a tentar ajudar
com uma série de iniciativas de apoio, como centros de crise para estupro,
casas para mulheres vítimas de espancamento, coletivos feministas de saúde etc.
Nesse ínterim, começava a ficar evidente que as mulheres não seriam capazes
de desenvolver uma nova consciência se continuassem vivendo sob o medo
constante das violências físicas e psicológicas dos homens. Também passou a
ficar nítido que a reforma jurídica ou o apoio do Estado não eram de muita
valia nesse âmbito, pois as mulheres que tentavam apelar para a proteção do
Estado ou da polícia logo perceberam que nada seria feito contra o cidadão
que tratasse mal sua mulher no seio de seu santo lar e da sagrada família. Apesar
de o Estado moderno, na qualidade de patriarca-mor, exercer o monopólio
sobre a violência direta, ele havia deixado algum poder para ser exercido pelo
patriarca da família. Consequentemente, o estupro, por exemplo, não era passí-
vel de ser processado como crime se ocorresse dentro do casamento. Mulheres
estupradas em todos os países perceberam que as leis relativas ao estupro são
tendenciosas contra as mulheres, que a culpa pelo estupro é atribuída à pró-
pria vítima, que se uma mulher acusasse um homem ela seria frequentemente
“estuprada” uma segunda vez em juízo pelos advogados que abusam da liber-
dade de fazer perguntas sobre a vida sexual da vítima, ao passo que o crime
praticado pelo homem é normalmente minimizado como ato desrespeitoso.
Quanto mais o movimento feminista se mobilizava em torno das várias ma-
nifestações da violência machista, mais as mulheres passavam a perceber que
alguns dos direitos humanos básicos, proclamados e defendidos por todas as
constituições democráticas, em particular o direito à inviolabilidade e à inte-
gridade física, não eram garantidos para mulheres. O fato gritante de que todas
as mulheres são vítimas em potencial da violência masculina e que os Estados
democráticos modernos, com todo o seu poder e sofisticação, são incapazes de
implementar os direitos fundamentais das mulheres levantou sérias dúvidas em
muitas feministas sobre o Estado ser de fato um aliado da luta pela libertação
das mulheres. Argumentos de que a violência direta havia desaparecido das
sociedades democráticas “civilizadas” modernas não tinham como ser aceitos
84 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

por mulheres que haviam sofrido as mais diversas formas de violência. Crescia
o número de mulheres cientes de que a suposta “paz” nessas sociedades se ba-
seava na violência diária, direta e indireta, contra as mulheres. No movimento
pela paz na Alemanha, as feministas cunharam o lema: “Paz no patriarcado é
guerra contra as mulheres”.
Os movimentos de combate à violência contra as mulheres no contexto
da política do corpo ensinaram às mulheres o que seria a lição mais impor-
tante, ou seja, ensinaram que, ao contrário das expectativas do movimento
anterior, a participação das mulheres na esfera pública, a conquista do direito
ao voto e sua participação no trabalho assalariado não eram capazes de resol-
ver o problema básico da relação patriarcal entre homens e mulheres, a qual
parecia ser baseada na violência. A mobilização em torno das manifestações
contra a violência machista ampliou a conscientização das mulheres sobre a
conexão sistemática entre a agressão aparentemente “privada” praticada por
homens individualmente e as principais instituições e “pilares” da “sociedade
civilizada”: a família, a economia, a educação, o direito, o Estado, a mídia, a
política. Tendo partido de suas experiências pessoais com as diversas formas
de violência masculina, as mulheres começaram a compreender que estupro,
espancamento, assédio, abuso, piadas machistas etc. não eram apenas expressões
de um comportamento desviante por parte de alguns homens, mas faziam
parte de todo um sistema de dominação masculina, ou melhor, de domina-
ção patriarcal, sobre as mulheres. Nesse sistema, tanto a violência física direta
quanto a violência indireta ou estrutural ainda eram comumente utilizadas
como método para “manter as mulheres em seu devido lugar”.
As origens e o significado político da violência masculina contra as mu-
lheres foram interpretados de forma diferente por diferentes grupos femi-
nistas. Algumas pesquisadoras identificavam na violência masculina a mani-
festação de um sistema universal e atemporal de dominação patriarcal ou
uma política de poder sexual (Millett, 1970) que, em última análise, estava
enraizada na psique ou psicologia masculinas. Essa interpretação deixa pou-
co espaço para o desenvolvimento e especificidade históricos, presumindo
que os homens em todos os lugares sempre tentaram alicerçar seu poder na
subordinação das mulheres.
A minha opinião sobre essa questão é que, se nós, como mulheres, rejeitamos
a explicação biológica para nossa subordinação, devemos também rejeitar
MARI A MI ES 85

o reducionismo biológico no que diz respeito ao fenômeno da violência


sexista masculina. É mais realista interpretar as formas de violência masculi-
na, e, principalmente, o fato de que elas estão aumentando (ver capítulo 5),
como expressão específica e vinculada ao momento histórico, além de esta-
rem inerentemente ligadas ao paradigma social que domina o mundo atual
chamado “civilização” ou, em outras palavras, o “patriarcado capitalista”. Isso
não significa que os sistemas patriarcais anteriores não conheciam a violência
contra as mulheres (cf. patriarcados chinês, indiano, judaico), mas esses sistemas
nunca chegaram a afirmar que haviam acabado com a violência direta, nem
que haviam “pacificado”, “civilizado”, “domesticado”, “racionalizado” toda a
agressão direta dos homens contra os homens e dos homens contra as mu-
lheres. Mas o patriarcado moderno ou capitalista, ou a “civilização”, reforçou
bastante essa afirmação, declarando-se superior a todos os outros sistemas “sel-
vagens” e “bárbaros”, justamente porque afirma ter eliminado toda a violência
direta na interação de seus cidadãos e entregue o monopólio da violência nas
mãos do soberano absoluto, o Estado (cf. Elias, 1978).
Se agora, apesar de todas as conquistas altamente elogiadas da “civiliza-
ção”, as mulheres sob tal sistema ainda são estupradas, espancadas, molestadas,
humilhadas, torturadas por homens, surgem algumas perguntas graves que
demandam resposta:

1. Se a violência contra as mulheres não é acidental, mas sim parte do patriar-


cado capitalista moderno, então precisamos explicar por que é assim. Se a
explicação biologizante é rejeitada – e eu a rejeito – temos que procurar
razões que sejam centrais ao funcionamento do sistema.
2. Se incluímos a chamada esfera privada na esfera da economia e da política
(como fazem as feministas), então o argumento de que o capitalismo trans-
formou todo tipo de violência extraeconômica em violência econômica
(posição defendida pelos marxistas) não se sustenta.
3. No âmbito político, o monopólio exercido pelo Estado sobre a violência
direta obviamente estaciona na porta da casa da família.
4. Se é assim, consequentemente, a linha que divide o privado do público é
necessariamente a mesma linha que divide a violência masculina privada
não regulada (domínio da força) da violência estatal regulamentada (do-
mínio do direito).
86 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

5. Portanto, no que tange às mulheres, a expectativa de que, na sociedade


civilizada ou “moderna”, o domínio das leis substituiria o “domínio da
força”, como esperava o antigo movimento das mulheres, não se cum-
priu. Ambos os domínios coexistem lado a lado (cf. Bennholdt-Thomsen,
1985).
6. Novamente, se essa coexistência não for apenas acidental ou resquício de
épocas “bárbaras”, como alguns acreditam, então obviamente precisamos
chegar a uma compreensão diferente daquilo em que consiste a civilização
ou o patriarcado capitalista.

Assim, o problema da violência em torno do qual mulheres em todos os


países se mobilizaram leva a um questionamento radical das visões aceitas
sobre o sistema social em que vivemos.

DESCONTINUIDADES. UM NOVO CONCEITO DE POLÍTICA

Já durante os primeiros grupos de conscientização de mulheres, a divisão


entre o “privado” e “político” ou “público” foi rejeitada, e a esfera privada
passou a ser considerada o pilar, a base da política sexual pública. O lema “o
pessoal é político” teve o efeito de transformar a percepção que as mulheres
tinham delas mesmas como seres “não políticos”, fazendo com que passassem
a agir como sujeitos políticos em torno de questões próximas a elas. Nesse
contexto de luta em torno da “política do corpo”, um novo conceito de po-
lítica emergiu, o qual, em última análise, critica radicalmente o conceito de
política na democracia parlamentarista. Para as feministas, a “política” já não
correspondia a ir às urnas eleger um candidato ao parlamento e esperar que
ele promovesse mudanças em nome de seu eleitorado. As feministas tentaram
deslocar-se do conceito de “política por delegação”, ou de “política indire-
ta”,28 para um conceito de “política em primeira pessoa”. Os grupos que se

28 Os termos “política indireta” ou “política por delegação” são traduções do termo alemão
Stellvertreterpolitik. Na Alemanha Ocidental, as feministas foram as primeiras a rejeitar a Stellver-
treterpolitik. Posteriormente, outros movimentos sociais, como o movimento alternativo, o mo-
vimento ecológico e o Partido Verde, também começaram a desafiar o conceito de política por
delegação e a substituí-lo pelo novo conceito de democracia de base, ou democracia grassroots.
MARI A MI ES 87

consideravam “independentes” estabeleceram que não iriam delegar a luta


pela libertação das mulheres a um partido político ou organização dominada
por homens. A história já havia ensinado que até mesmo as mulheres nessas
organizações eram desprovidas de poder em se tratando dos problemas cru-
ciais das relações patriarcais entre homem e mulher. Ao contrário do antigo
movimento, as novas feministas acreditavam em ações políticas diretas, cam-
panhas, iniciativas, em começar a desenvolver seus próprios estudos das mu-
lheres, mesmo antes de obter o apoio do establishment político ou acadêmico,
na criação de inúmeros grupos de apoio e outros projetos com seus próprios
meios, sem ter de esperar por apoio ou reconhecimento da administração
pública ou dos políticos. As feministas não demoraram a aprender que até
mesmo grupos pequenos e desprovidos de poder poderiam alcançar seus ob-
jetivos mais rapidamente se criassem sua propaganda por meios e métodos
não parlamentares do que se seguissem os procedimentos burocráticos de um
partido ou sindicato. A política em primeira pessoa era não apenas muito mais
divertida e inspiradora, mas também, obviamente, bem mais eficaz do que a
“política por representação”.
A experiência vivida em praticamente todos os países onde pequenos gru-
pos feministas independentes começaram a adotar esse conceito da política
em primeira pessoa e a se mobilizar em torno das questões da política do
corpo mostrava que as mulheres e as alas femininas nos partidos políticos, par-
ticularmente nos partidos de esquerda, também deveriam encarar e defender
essas questões se não quisessem deixar toda a mobilização para as feministas.
Ainda que os partidos da esquerda ortodoxa tenham sido sempre críticos – e
até mesmo hostis – ao feminismo, quando tiveram início as campanhas para a
liberação do aborto ou contra o estupro e outras violências contra a mulher, as
mulheres dos partidos de esquerda (do partido comunista aos partidos social-
-democratas) não se contentaram em sentar e esperar passar. Mas a iniciativa
das lutas nunca partiu das mulheres que integravam os partidos políticos.
Os grupos independentes também se mantiveram firmes no princípio da
política em primeira pessoa porque receavam que sua mobilização pudesse
ser instrumentalizada pelos partidos em seu próprio benefício eleitoral, uma
experiência pela qual muitos outros grupos sem muito poder haviam passado
ao pedir que determinados líderes de partido os representassem e lutassem em
seu nome. Contra esse tipo de “política indireta”, o princípio da autonomia
88 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

foi defendido. Isso significava, acima de tudo, que as mulheres não confiariam
sua luta, sua organização ou ação a qualquer outra pessoa, mas iriam tomar a
política em suas próprias mãos.
A ênfase na independência e na política em primeira pessoa variou de
país para país. Nos países onde os partidos governantes simpatizavam com o
novo movimento das mulheres, como era o caso, por exemplo, dos partidos
social-democratas na Escandinávia e na Holanda, a distinção entre “feminis-
tas independentes” e “mulheres de partido” não era tão categórica. Muitas
feministas nesses países trabalhavam em organizações governamentais e, com
isso, esperavam conseguir mover a máquina estatal em favor das mulheres.
Enquanto o tempo estava bom, a abordagem surtiu bons efeitos nesses países.
Na Alemanha Ocidental, os social-democratas também estavam no poder
naqueles anos, mas as estruturas patriarcais no partido eram tão dominantes
que nem mesmo a ala feminina, o Grupo de Trabalho das Mulheres Social-
democratas, conseguiu algum resultado. Com o tempo, as muitas mulheres
filiadas a partidos políticos ficaram desiludidas e frustradas. Após a eleição de
1980, muitas desistiram da política partidária e formaram um grupo indepen-
dente denominado Iniciativa das Mulheres de 6 de Outubro.
O conceito de política desenvolvido pelo movimento feminista, o princí-
pio de um programa e prática independentes, não era apenas um desafio para
os partidos parlamentares estabelecidos, mas um desafio ainda maior para os
partidos tradicionais de esquerda, principalmente para os partidos comunistas
ortodoxos. O impacto desse desafio pode ser mais bem ilustrado pela reação
ao feminismo que teve o Partido Comunista da Itália (PCI). Em 1976, na
conferência nacional das mulheres comunistas, Gerardo Chiaromonto intro-
duziu oficialmente, no discurso empregado pelo partido, a palavra libertação
das mulheres, juntamente com a palavra emancipação tradicionalmente usada
no PCI. O termo “emancipação” era entendido da maneira que Engels, Bebel,
Zetkin e Lênin o entendiam: a inserção das mulheres na produção social
como um pré-requisito para sua emancipação. Enquanto “libertação”, palavra
usada pelas feministas, significava a libertação total da pessoa como um todo,
e não apenas de sua força de trabalho.
O reconhecimento oficial do feminismo pelo poderoso Partido Comunista
Italiano, que até então havia sido hostil e crítico às feministas, foi uma rea-
ção à tremenda pressão sobre as mulheres e os homens do partido exercida
MARI A MI ES 89

pelas atividades e mobilizações das feministas italianas. Como observa Carla


Ravaioli, o feminismo era o fantasma que assombrava a conferência nacional
das mulheres do partido em 1976 e, também, muitos dos debates posteriores.
Pela primeira vez, um porta-voz do Partido Comunista Italiano admitiu aber-
tamente que o movimento feminista era uma realidade, que o partido teria de
se esforçar para entender suas origens e motivos: “Também temos que estudar
as razões para certas deficiências do movimento operário e do nosso partido
em lidar com certas áreas problemáticas, como os costumes, a sexualidade e
os modos interpessoais, as relações” (Chiaromonto, citado por Ravaioli, 1977,
p. 10, com base na trad. de Maria Mies).
Mas o desafio do feminismo ao conceito clássico de política do Partido
Comunista foi além da esfera emocional da relação homem-mulher, que era
definida como parte da “superestrutura” ou cultura (ver acima). Como Carla
Pasquinelli apontou, a verdadeira razão para a resistência anterior do Partido
Comunista Italiano ao feminismo era precisamente a de que o princípio de
que “o pessoal é político” constituía a antítese mais completa do leninismo
com seu centralismo democrático e ditadura do proletariado (Pasquinelli,
1981). A abertura do partido ao feminismo foi certamente parte integrante
da nova estratégia do eurocomunismo italiano, mas também foi um reflexo
do fato de o feminismo – com seus poucos e radicais princípios e apesar de
sua diversidade e funcionamento frequentemente caótico – ter desafiado a
afirmação política e teórica dos partidos comunistas clássicos de que eram
eles que possuíam o projeto que levaria à transformação total da sociedade.
Para as feministas, esses partidos e suas políticas não eram radicais o suficiente.
Mas este não é o momento para nos aprofundarmos nas repercussões que
o movimento feminista teve nas organizações de esquerda tradicional. Em
vários países, uma nova discussão foi iniciada sobre a relação entre o feminis-
mo e a esquerda (Rowbotham, Segal & Wainwright, 1980; Hartmann, 1981;
Jelpke, 1981). Quando feministas em países do Terceiro Mundo escreverem a
história de seu próprio movimento, muito provavelmente descobrirão pro-
cessos semelhantes. O fato de que hoje as atitudes do passado, que eram de
hostilidade patente ao feminismo ou de recusa em reconhecer sua relevância,
tenham dado lugar a uma estratégia de “abraçar o feminismo”, o que pode
ser observado em muitos partidos comunistas tradicionais, é prova da força do
novo conceito feminista de política.
90 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Além disso, o conceito de “política em primeira pessoa”, a rejeição da polí-


tica por representação, a rejeição da linha divisória entre o “público” e o “pri-
vado” e a politização da esfera privada também foram posteriormente adotados
por uma série de novos movimentos sociais, como o movimento da iniciativa
cidadã na Alemanha Ocidental, o movimento alternativo, o movimento am-
bientalista e o Partido Verde, que fizeram da “democracia de base” um de seus
princípios políticos mais importantes.Vários princípios organizacionais do mo-
vimento feminista, como o funcionamento não burocrático e não hierárquico,
a descentralização e a ênfase em iniciativas de base, são hoje compartilhados
pela maioria dos outros movimentos sociais na Europa e nos Estados Unidos.
Assim, embora o novo movimento feminista não tenha começado com
um programa unificado e uma análise totalmente desenvolvida, mas com a
revolta das mulheres contra várias formas de dominação masculina na esfera
à qual sempre foram relegadas – a esfera privada e a esfera do corpo –, essa
abordagem teve sua própria dinâmica e força, alcançando níveis mais profun-
dos do tecido social do que a maior parte dos críticos do movimento havia
inicialmente pensado. O movimento feminista, como movimento político,
talvez tenha repercussões de maior alcance do que qualquer outro dos novos
movimentos sociais de hoje.

DESCONTINUIDADES. TRABALHO FEMININO

Outra área em que o movimento feminista rompeu com as tradições do


antigo movimento das mulheres e também com as da esquerda ortodoxa foi
a do trabalho feminino. Enquanto o velho movimento e a esquerda ortodoxa
haviam aceitado a divisão capitalista entre trabalho doméstico privado ou – na
terminologia marxista – trabalho reprodutivo e trabalho público e produtivo,
ou trabalho assalariado – sendo esta a única esfera de que esperavam que sur-
gisse a revolução e a emancipação feminina –, as feministas não só desafiaram
essa divisão, como também as próprias definições de “trabalho” e “não tra-
balho”. Essa abordagem também questionou a divisão aceita, decorrente das
outras divisões dualistas, entre política e economia. Era muito lógico que, uma
vez que as mulheres começassem a considerar o pessoal e o “privado” como
políticos, elas também começariam a reavaliar e a redefinir o trabalho que a
maioria das mulheres fazia na esfera privada, ou seja, o trabalho doméstico.
MARI A MI ES 91

Um dos debates mais frutíferos iniciados pelo feminismo foi sobre o tra-
balho doméstico. Esse debate, mais do que outros, desafiava não apenas o
conceito de política da esquerda tradicional, mas também algumas de suas
posições teóricas fundamentais. Significativamente, o debate sobre o trabalho
doméstico foi a primeira instância em que os homens participaram do dis-
curso feminista.
Mas, antes que o debate sobre o trabalho doméstico começasse e antes
que degenerasse em um discurso mais ou menos acadêmico, a questão do
trabalho doméstico foi levantada como questão política no contexto das lutas
trabalhistas na Itália no início dos anos 1970. O primeiro desafio à teoria
marxista ortodoxa sobre o trabalho feminino veio desse país, a partir do en-
saio de Mariarosa Dalla Costa, “The Power of Women and the Subversion of the
Community” [O poder das mulheres e a subversão da comunidade], publicado
com o texto de Selma James, “A Woman’s Place” [O lugar de uma mulher], em
1972 em Pádua e no mesmo ano em Bristol.
No ensaio de Dalla Costa, a posição marxista clássica de que o trabalho
doméstico era “improdutivo” foi questionada pela primeira vez. Dalla Costa
aponta que o que a dona de casa produz na família não são simplesmente
valores de uso, mas a mercadoria “força de trabalho”, que o marido então
vende como trabalho assalariado “livre” no mercado de trabalho. Ela afirma
claramente que a produtividade da dona de casa é a pré-condição para a pro-
dutividade do trabalhador assalariado (homem). A família nuclear, organizada
e protegida pelo Estado, é a fábrica social em que a mercadoria “força de tra-
balho” é produzida. Portanto, a dona de casa e seu trabalho não estão fora do
processo de produção de mais-valia, mas constituem o próprio alicerce sobre
o qual o processo produtivo é iniciado. A dona de casa e seu trabalho são, em
outras palavras, a base do processo de acumulação do capital. Com a ajuda do
Estado e de seu aparato jurídico, as mulheres, encerradas e isoladas na família
nuclear, tiveram seu trabalho socialmente invisibilizado e, portanto, definido
– por teóricos marxistas e não marxistas – como “improdutivo”. Ele apareceu
sob a forma de amor, carinho, afeto, maternidade e companheirismo. Dalla
Costa desafiou a noção da esquerda ortodoxa, primeiro enunciada por Engels
e depois dogmatizada e codificada por todos os partidos comunistas (e ainda
hoje mantida), de que as mulheres deveriam deixar o domínio “privado” do
lar e integrar a “produção social” como trabalhadoras assalariadas, juntamente
92 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

com os homens, se quisessem criar as pré-condições para a sua emancipação.


Em clara oposição a esse pensamento, Dalla Costa identificou a aliança estra-
tégica criada pelo capital e pelo Estado entre o trabalho doméstico não remu-
nerado das mulheres e o trabalho assalariado dos homens. O capital sempre
consegue se esconder atrás da figura do marido, chamado de “ganha-pão”,
com quem a mulher, chamada de “dona de casa”, tem de lidar diretamente e
para quem ela deve trabalhar por “amor”, e não por salário. “O salário exige
mais trabalho do que a negociação coletiva nas fábricas nos mostra. O trabalho
das mulheres aparece como serviço pessoal fora do capital” (Dalla Costa, 1973, p. 34;
com base na trad. de Maria Mies).
Dalla Costa rejeita a divisão artificial e a hierarquia que o capital criou
entre os trabalhadores assalariados de um lado e os não assalariados do outro:

Na medida em que o capital subordinou o homem, fazendo dele um traba-


lhador assalariado, criou uma clivagem entre ele – o trabalhador assalariado
– e todos os outros proletários que não recebem salário. Aqueles que não
são considerados capazes de se tornar sujeitos da revolução social por não
participar diretamente da produção social (Dalla Costa, 1973, p. 33, com
base na trad. de Maria Mies).

Com base nessa análise, Dalla Costa critica também a noção de muitas
pessoas de esquerda de que as mulheres são apenas “oprimidas”, de que seu
problema é o “machismo”. Como o capital é capaz de controlar o trabalho
não remunerado da dona de casa, assim como o trabalho remunerado do
trabalhador assalariado, a escravidão doméstica das mulheres é chamada de
exploração. Segundo Dalla Costa, não é possível compreender a exploração
do trabalho assalariado a menos que se entenda a exploração do trabalho
não assalariado.
O reconhecimento do trabalho doméstico como trabalho produtivo e
como área de exploração e fonte de acumulação de capital também signifi-
cou um desafio às políticas e estratégias tradicionais dos partidos de esquerda
e sindicatos, os quais nunca haviam incluído o trabalho doméstico em suas
lutas e na definição de trabalho que adotavam. Eles sempre estiveram em
aliança com o capital na estratégia de remover do campo de visão do público
todo trabalho não remunerado.
MARI A MI ES 93

Não foi por acaso que a questão do trabalho doméstico foi levantada pela
primeira vez na Itália, um dos países mais “subdesenvolvidos” da Europa, po-
rém com um forte partido comunista. Como Selma James aponta em sua
introdução, a Itália tinha apenas um pequeno número de operárias, sendo a
maioria das mulheres “donas de casa” ou camponesas. Por outro lado, o país
havia visto uma série de lutas trabalhistas, influenciadas pela oposição não
parlamentar que incluía “lutas populares pela reprodução”, ou seja, pelo não
pagamento de aluguel e lutas em bairros e escolas. Em todas essas lutas, as
mulheres tiveram um papel proeminente.
Além disso, Dalla Costa já identificava uma semelhança estrutural entre as
lutas das mulheres e as lutas dos países do Terceiro Mundo contra o imperia-
lismo, bem como entre a luta dos negros nos Estados Unidos e os movimen-
tos da juventude; para ela, eram revoltas de todos aqueles que haviam sido
definidos como externos ao capitalismo (ou como pertencentes a formações
“pré-capitalistas”, “feudais” etc.). Com Frantz Fanon, ela interpreta as divisões
entre as mulheres (como donas de casa e trabalhadoras assalariadas) como re-
sultado de um processo de colonização, porque a família e o lar são para ela
uma colônia, dominada pela “metrópole”, capital e Estado (Dalla Costa, 1973,
p. 53). Dalla Costa e James queriam reintroduzir as mulheres na história como
sujeitos revolucionários.
Como estratégia para derrubar o capitalismo, elas lançaram a campanha
Salários para o Trabalho Doméstico [Wages for Housework]. Muitas mulheres na
Europa e no Canadá foram mobilizadas pela campanha e muitas discussões so-
bre as perspectivas dessa estratégia foram feitas. Mais tarde, a campanha se ex-
tinguiu, pois várias questões inerentes a ela não puderam ser resolvidas, como
o problema de que “salários para o trabalho doméstico” não acabariam com o
isolamento das donas de casa e o fato de que a generalização total do trabalho
assalariado não levaria necessariamente à derrubada do capitalismo, mas sim
a uma totalização da alienação e da produção de mercadorias. Tampouco o
movimento tinha respostas para a questão de quem pagaria o salário pelo
trabalho doméstico: os capitalistas, o Estado ou o marido?
Apesar dessas questões não resolvidas, a campanha Salários para o Trabalho
Doméstico tinha colocado a questão do trabalho doméstico na agenda da
teorização feminista. O “debate sobre o trabalho doméstico” que se seguiu ao
livro de Dalla Costa e James, particularmente na Grã-Bretanha, mas também
94 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

na Alemanha Ocidental, foi uma contribuição importante para uma teoria


feminista do trabalho. No entanto, como muitas das mulheres e homens que
participaram desse debate vinham da esquerda tradicional, acabou parecendo
que sua preocupação era mais “salvar o Marx” do que promover a libertação
das mulheres.
Consequentemente, grande parte do debate terminou em argumentos ti-
picamente acadêmicos, no centro dos quais estava a questão de se a teoria do
valor de Marx poderia ser aplicada ao trabalho doméstico ou não. Depois
disso, a linha divisória entre marxistas ortodoxos e feministas continuou sendo
a questão de saber se o trabalho doméstico era considerado trabalho “social-
mente produtivo” ou não.
Não pretendo voltar ao debate sobre o trabalho doméstico aqui. No que
diz respeito à política do movimento feminista, sua contribuição foi limitada.
Mesmo assim, chegou a confrontar as organizações de esquerda pela primeira
vez com a questão não resolvida do trabalho doméstico realizado pelas mulhe-
res sob o capitalismo. Hoje, muitas mulheres e homens de esquerda admitem
que Marx deixou de lado o trabalho doméstico em sua análise do capitalismo,
mas passaram a dizer que isso não invalida o papel central que Marx atribuiu
ao trabalho assalariado, uma vez que a relação do trabalho assalariado com o
capital ainda constitui a relação de produção capitalista.
O debate sobre o trabalho doméstico, ocorrido entre 1973 e 1979, não
incluiu outras esferas do trabalho não assalariado dos quais o capital se apro-
veita em seu processo de acumulação. Uma dessas esferas é todo o trabalho
realizado por camponeses para sua subsistência, pequenos produtores de mer-
cadorias e pessoas marginalizadas, a maioria das quais são mulheres, nos países
subdesenvolvidos. Assim, a maioria das pessoas envolvidas na discussão sobre
o trabalho doméstico não transcendeu a visão eurocêntrica do capitalismo.
De acordo com essa visão, essas outras esferas do trabalho humano são con-
sideradas fora do capitalismo e da própria sociedade. Elas são denominadas
como “pré-capitalistas”, “periférico-capitalistas”, “feudais” ou “semifeudais”,
ou simplesmente “subdesenvolvidas” ou “atrasadas”. Às vezes, são também
chamadas de áreas de “desenvolvimento desigual”.
Entretanto, a descoberta de que o trabalho doméstico sob o capitalismo
também estava excluído, por definição, da análise do capitalismo propriamente
dito e que esse foi o mecanismo pelo qual o trabalho doméstico se tornou
MARI A MI ES 95

uma “colônia” e uma fonte para a exploração não regulamentada, abriu nos-
sos olhos para a análise de outras colônias de exploração de trabalho não
assalariado, particularmente o trabalho de pequenos camponeses e mulheres
nos países do Terceiro Mundo. Essa discussão foi liderada principalmente por
feministas na Alemanha Ocidental, que estenderam a crítica da cegueira de
Marx em relação ao trabalho feminino à cegueira em relação aos outros tipos
de trabalho não assalariado nas colônias.29
Em um artigo intitulado “Women’s work, the blind spot in the critique of po-
litical economy” [Trabalho das mulheres, o ponto cego na crítica da economia
política], Claudia von Werlhof desafiou a noção clássica de capital versus tra-
balho assalariado como a única relação de produção capitalista. Ela identificou
mais duas relações de produção baseadas no trabalho não assalariado, a saber,
o trabalho doméstico e o trabalho de subsistência nas colônias, como pré-
-requisitos para a relação de trabalho assalariada “privilegiada” (masculina).
Naqueles anos, nas discussões que ocorreram entre mim, Claudia von Werlhof
e Veronika Bennholdt-Thomsen sobre as várias formas de relações de trabalho
não assalariado e seu lugar em um sistema mundial de acumulação de capital,
o trabalho de Rosa Luxemburgo sobre o imperialismo teve papel decisivo
(Luxemburgo, 1923).
Rosa Luxemburgo havia aplicado a análise de Marx do processo de
reprodução ampliada do capital ou acumulação de capital (Marx, O capital,
vol. II) para analisar o imperialismo e o colonialismo. Ela chegou à conclusão
de que o modelo de acumulação de Marx se baseava no pressuposto de que
o capitalismo seria um sistema fechado, no qual havia apenas trabalhadores
assalariados e capitalistas. Rosa Luxemburgo mostrou que, historicamente,
tal sistema nunca existiu, que o capitalismo sempre precisou do que ela cha-
mou de “ambientes e estratos não capitalistas” para a ampliação da força de
trabalho e dos recursos e, acima de tudo, para a ampliação dos mercados.
Esses ambientes e estratos não capitalistas foram inicialmente os camponeses e

29 Essa discussão foi iniciada por volta de 1977 por Claudia von Werlhof,Veronika Bennholdt-
Thomsen e eu. Nossa análise foi apresentada em uma série de artigos publicados em periódicos
feministas, principalmente em Beitriige zur feministischen Theorie und Praxis [Contribuições para
teoria e prática feministas]. Uma coleção de alguns dos principais artigos foi publicada em:
Claudia von Werlhof, Maria Mies & Veronika Bennholdt-Thomsen, Frauen, die letzte Kolonie
[Mulheres, a última colônia], Reinbeck, 1983.
96 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

artesãos com sua “economia natural” e, mais tarde, as colônias. O colonialismo


para Rosa Luxemburgo não é, portanto, apenas a última etapa do capitalismo
(Lênin, 1917), mas sua condição necessária e constante. Em outras palavras,
sem colônias, a acumulação de capital ou a reprodução ampliada do capital
não aconteceria (Luxemburgo, 1923, p. 254-367).
Este não é o lugar para avançarmos no debate que se seguiu à obra de
Rosa Luxemburgo. Com as tendências que governaram o Comintern nos
anos 1920, não é surpreendente que suas opiniões fossem criticadas e rejei-
tadas. Também não abordarei a expectativa final de Rosa Luxemburgo de
que se todos os “ambientes e estratos não capitalistas” fossem integrados ao
processo de acumulação, o capitalismo chegaria ao seu colapso lógico. Mas o
que a obra dela abriu para nossa análise feminista do trabalho das mulheres em
todo o mundo foi uma perspectiva que ultrapassou o horizonte limitado das
sociedades industrializadas e das donas de casa nesses países. Sua obra também
ajudou a transcender teoricamente as várias divisões artificiais do trabalho
criadas pelo capital, particularmente a divisão sexual do trabalho e a divisão
internacional do trabalho, por meio das quais aquelas esferas de trabalho se
tornam invisíveis e passíveis de serem exploradas em relações de trabalho não
assalariado, em uma situação em que as normas que regem o trabalho assala-
riado são suspensas. Consideramos que a tarefa mais importante do feminismo
é incluir todas essas relações em uma análise do trabalho das mulheres no capita-
lismo, porque hoje não há dúvida de que o capital já atingiu o estágio de que
falava Rosa Luxemburgo.Todos os ambientes e estratos já são explorados pelo
capital em sua ganância global por uma acumulação cada vez mais intensa.
Seria contraproducente limitar nossas lutas e análises às compartimentalizações
que o patriarcado capitalista criou, quer dizer, se as feministas ocidentais ten-
tassem apenas buscar entender os problemas das mulheres em sociedades su-
perdesenvolvidas e se as mulheres do Terceiro Mundo apenas se limitassem
a realizar a análise dos problemas em sociedades subdesenvolvidas. Afinal, o
patriarcado capitalista, ao dividir e conectar simultaneamente essas diferentes
partes do mundo, criou um contexto mundial de acumulação dentro do qual
a manipulação do trabalho das mulheres e a divisão sexual do trabalho desem-
penham um papel crucial.
Traçar uma breve história do movimento feminista nos ensina que a re-
jeição de todas as divisões dualistas e hierárquicas criadas pelo patriarcado
MARI A MI ES 97

capitalista, a saber, entre público e privado, político e econômico, corpo e


mente, cabeça e coração etc., é uma estratégia correta e bem-sucedida. Esse
não foi um programa de ação pré-planejado, mas as questões levantadas eram
de natureza tal que as feministas só poderiam ter êxito se transcendessem
radicalmente as divisões colonizadoras, pois ficava cada vez mais evidente
que o modo de produção capitalista não era idêntico à famosa relação capi-
tal-salário-trabalho, mas que precisava de diferentes categorias de colônias,
principalmente de mulheres, de outros povos e da natureza, para sustentar um
modelo de crescimento em constante expansão.
Hoje, acho necessário que as feministas em todo o mundo comecem a
identificar e desmistificar todas as divisões colonizadoras criadas pelo patriar-
cado capitalista, particularmente pela interação entre as divisões sexual e in-
ternacional do trabalho.
A ênfase nessas divisões coloniais também é necessária de outro ponto de
vista. Muitas feministas nos Estados Unidos e na Europa, junto com cien-
tistas críticos e ambientalistas, começaram a criticar o paradigma dualista e
destrutivo da ciência e tecnologia ocidentais. Inspirando-se na psicologia
de Carl Gustav Jung, na psicologia humanística, na espiritualidade “orien-
tal” não dualista, particularmente no taoísmo e em outras filosofias orientais,
elas propõem um novo paradigma holístico, o paradigma New Age [Nova Era]
(Fergusson, 1980; Capra, 1982; Bateson, 1972). Essa ênfase no fato de que, no
mundo, tudo está interconectado e sofre influência mútua é definitivamente
uma abordagem que conversa com grande parte da revolução feminista e sua
visão de uma sociedade futura. Entretanto, se esse desejo de “se tornar um
todo” novamente e construir pontes entre as clivagens e segmentações que o
Homem Branco criou não quiser ser frustrado outra vez, é necessário que as
feministas New Age, as ecofeministas e também as de outras correntes abram
seus olhos e mentes às colônias reais cuja exploração também lhes garante o
luxo de desfrutar da “espiritualidade” e da “cura” orientais. Em outras palavras,
se o paradigma holístico for tão só uma questão de uma nova espiritualidade
ou consciência, se ele não identificar e combater o sistema global de acu-
mulação e exploração capitalistas, seu fim será transformar-se em um movi-
mento pioneiro para a legitimação de uma nova etapa da produção capitalista
destrutiva. Essa etapa não se concentrará na produção e comercialização de
mercadorias como carros e geladeiras, mas nas mercadorias não materiais,
98 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

como religião, terapias, amizade, espiritualidade, e também em violência e


guerra. Tudo isso, evidentemente, valendo-se plenamente das tecnologias
“New Age”.
Por isso, tratarei a seguir dessas divisões colonizadoras do patriarcado
capitalista, em especial da interação entre as divisões sexual e internacional
do trabalho.

CONCEITOS

Antes de iniciar a discussão sobre a divisão sexual e internacional do tra-


balho, quero explicar por que uso determinados conceitos na minha análise e
não outros. Isso não significa que eu proponha definir esses conceitos de forma
exaustiva, pois os conceitos que surgiram no discurso feminista foram prin-
cipalmente conceitos de luta, não baseados em definições teóricas trabalhadas
por uma mente ideológica brilhante do movimento. Portanto, os conceitos
que proponho são de caráter mais aberto do que as definições científicas. Eles
derivam de nossas experiências de luta e da reflexão sobre essas experiências e
têm, portanto, certo valor explicativo. Não creio que nos ajude muito ingressar
em um debate puramente acadêmico sobre o uso deste ou daquele conceito.
Mas, como já vimos na discussão sobre o uso dos conceitos de “gênero” ou
“sexo”, é importante reconhecer que questões de conceituação são questões
de poder, ou seja, são questões políticas. Nesse sentido, a evidenciação de po-
sições conceituais faz parte da luta política do feminismo.

EXPLORAÇÃO OU OPRESSÃO/SUBORDINAÇÃO?

No discurso feminista, as palavras são usadas para denotar e explicar os


problemas pelos quais as mulheres passam na sociedade. Os termos “subordi-
nação” e “opressão” são amplamente utilizados para especificar a posição das
mulheres em um sistema hierarquicamente estruturado e os métodos para
mantê-las submissas. Esses conceitos são usados por mulheres que se autode-
nominam feministas radicais, bem como por aquelas que vêm de uma forma-
ção marxista ou se autodenominam feministas marxistas ou socialistas. Estas
últimas geralmente não falam de exploração quando discutem os problemas
MARI A MI ES 99

das mulheres, porque a exploração para elas é um conceito reservado para a


exploração econômica do trabalhador assalariado sob o capitalismo. Na medida
em que as queixas das mulheres vão além das relacionadas aos trabalhadores
assalariados e fazem parte da relação “privada” entre homem e mulher (que
não é considerada exploratória, mas opressora), o termo “exploração” passa a
ser evitado.
No entanto, na discussão a seguir usarei o termo “exploração” para iden-
tificar a raiz da relação opressora homem-mulher. Os motivos para isso são
os seguintes:
Quando Marx especifica a forma capitalista de exploração que, segundo
ele, consiste na apropriação do trabalho excedente pelos capitalistas, ele usa
esse termo geral em sentido estrito. Mas a “exploração”, como é explicada no
próximo capítulo, tem uma conotação muito mais ampla. Em última análise,
significa que alguém ganha roubando algo de outrem ou vive às custas de
outrem. O termo está ligado ao surgimento da dominação masculina sobre as
mulheres e ao domínio de uma classe ou grupo sobre os demais.
Se não falamos de exploração quando falamos da relação homem-mulher,
nossa conversa sobre opressão ou subordinação fica no ar, pois por que os
homens exerceriam opressão sobre as mulheres se não tivessem nada a ganhar
com isso? Falar de opressão ou subordinação sem referência à exploração tor-
na-se então uma questão puramente cultural ou ideológica, fazendo com que
seja impossível defini-la, a não ser que se recorra a alguma tendência agressiva
ou sádica inata aos homens. Mas a exploração é uma categoria histórica –
não psicológica ou biológica – que está na base da relação homem-mulher.
Ela foi historicamente criada por tribos e sociedades patriarcais. Assim, com
Mariarosa Dalla Costa, eu falo da exploração das mulheres em sentido triplo:
elas são exploradas – não apenas economicamente, mas como seres humanos
– pelos homens e também são exploradas como donas de casa pelo capital.
Se são trabalhadoras assalariadas, também são exploradas como trabalhadoras.
Mas até mesmo essa exploração é determinada e agravada pelas outras duas
formas interligadas de exploração.
Não falo em desigualdade ou discriminação no texto a seguir, pois deve estar
evidente, por conta de minha discussão sobre as demandas do antigo movi-
mento das mulheres, que as demandas da Revolução Francesa não constituem
mais as aspirações centrais do novo movimento feminista. A maioria das femi-
100 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

nistas não quer ser igual aos homens no sistema patriarcal. A discussão sobre o
trabalho doméstico revelou que a emancipação esperada por meio do trabalho
assalariado não se concretizou em parte alguma, nem nos países capitalistas,
nem nos socialistas. Se os países socialistas e os partidos comunistas ortodoxos
ainda restringem sua política para a emancipação das mulheres às demandas
por “igualdade” e “direitos das mulheres”, conceitos basicamente burgueses,
é porque ignoram que o patriarcado é uma realidade tanto da sociedade ca-
pitalista como da socialista. E, dentro de um sistema patriarcal, a “igualdade”
para as mulheres só pode corresponder a uma situação em que as mulheres
ocupem a posição de homens patriarcais. A maioria das mulheres que se au-
todenomina feminista não é atraída por essa perspectiva, nem possui qualquer
esperança de que a demanda por igualdade possa algum dia ser satisfeita den-
tro de tal sistema. É, portanto, errado pensar, como fazem (e temem) muitos
homens, que as feministas apenas queiram substituir a dominação masculina
pela feminina, pois é isso que “igualdade” significa para a maioria deles: igual-
dade de privilégios. Mas o movimento feminista é basicamente um movi-
mento anarquista. Ou seja, não quer substituir uma elite de poder (masculina)
por outra elite de poder (feminina), e sim buscar construir uma sociedade não
hierárquica e não centralizada, na qual nenhuma elite viva da exploração nem
da dominação de outros grupos.

PATRIARCADO CAPITALISTA

A leitora deve ter notado que estou usando o conceito de patriarcado capita-
lista para denotar o sistema que mantém a exploração e a opressão das mulheres.
Tem havido discussões no movimento feminista sobre se é correto cha-
mar o sistema de dominação masculina, sob o qual as mulheres vivem hoje
na maioria das sociedades, de sistema patriarcal (Ehrenreich & English,
1979). Literalmente, “patriarcado” significa o governo dos pais. Porém, a
dominação masculina de hoje vai além do “governo dos pais” e inclui o go-
verno dos maridos, dos chefes do sexo masculino, dos homens governantes
na maioria das instituições sociais, na política e na economia. Em suma, essa
dominação masculina também tem sido chamada de “liga dos homens” ou
“casa dos homens”.
MARI A MI ES 101

Apesar dessas reservas, continuo a usar o termo patriarcado. Minhas razões


são as seguintes: o conceito de “patriarcado” foi redescoberto pelo novo mo-
vimento feminista como um conceito de luta, porque o movimento precisava
de um termo pelo qual a totalidade das relações de opressão e exploração
que afetam as mulheres pudessem ser expressas levando em conta seu caráter
sistêmico. Além disso, o termo patriarcado denota a dimensão histórica e
social da exploração e da opressão das mulheres e, portanto, é menos aberto
a interpretações biologizantes, em comparação, por exemplo, com o con-
ceito de “dominação masculina”. Historicamente, sistemas patriarcais foram
desenvolvidos em momentos específicos, por povos específicos e em regiões
geográficas específicas. Não constituem sistemas universais e atemporais que
sempre existiram. (Às vezes, as feministas referem-se ao sistema patriarcal
como aquele que existe desde tempos imemoriais, mas essa interpretação
não é corroborada por pesquisas históricas, arqueológicas e antropológicas.)
O fato de que o patriarcado é hoje um sistema quase universal que afetou e
transformou a maioria das sociedades pré-patriarcais deve ser explicada pe-
los principais mecanismos usados para expandir esse sistema, a saber, roubo,
guerra e conquista (ver capítulo 2).
Também prefiro o termo patriarcado a outros porque ele nos permite
vincular nossas lutas presentes a um passado e, portanto, também pode nos dar
esperança de que haverá um futuro. Se o patriarcado teve um início específico
na história, também pode ter um fim.
Enquanto o conceito de patriarcado denota historicidade da exploração e
da opressão das mulheres, o conceito de capitalismo denota a manifestação con-
temporânea, ou o desenvolvimento mais recente desse sistema. Os problemas
das mulheres hoje não podem ser explicados meramente fazendo referência
às velhas formas de dominação patriarcal. Tampouco podem ser explicados
se aceitarmos a posição de que o patriarcado é um sistema “pré-capitalista”
de relações sociais que foi destruído e substituído, junto com o “feudalismo”,
pelas relações capitalistas, porque a exploração e a opressão das mulheres não
podem ser explicadas pelo funcionamento isolado do capitalismo, ao menos
não pelo funcionamento do capitalismo como é comumente entendido. A
minha tese é a de que o capitalismo não pode funcionar sem patriarcado,
que o objetivo desse sistema, ou seja, o processo interminável de acumulação
de capital, não pode ser alcançado a menos que as relações patriarcais en-
102 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tre homens e mulheres sejam mantidas ou recriadas. Poderíamos, assim, falar


também de neopatriarcado (ver capítulo 4). O patriarcado, portanto, constitui
a fundação quase invisível do sistema capitalista visível. Como o capitalismo
é necessariamente patriarcal, seria enganoso falar de dois sistemas separados,
como fazem algumas feministas (cf. Eisenstein, 1979). Concordo com Chhaya
Datar (1981), que criticou essa abordagem dualista, quando ela diz que falar
em dois sistemas deixa sem solução o problema de como eles se relacionam.
Além disso, a maneira como algumas autoras feministas tentam localizar a
opressão e a exploração das mulheres nesses dois sistemas é apenas uma ré-
plica da velha divisão social capitalista do trabalho: a opressão das mulheres
na esfera privada da família ou na “reprodução” é atribuída ao “patriarcado”,
sendo este considerado parte da superestrutura, e a exploração das mulhe-
res como trabalhadoras em escritórios e fábricas é atribuída ao capitalismo.
Uma teoria de dois sistemas não é capaz, no meu entender, de transcender
o paradigma desenvolvido no curso do desenvolvimento capitalista com suas
divisões sociais e sexuais específicas do trabalho. Vimos acima, no entanto,
que essa transcendência é o impulso mais novo e revolucionário do movi-
mento feminista. Se o feminismo seguir esse caminho e não perder de vista
seus principais objetivos políticos – ou seja, abolir a exploração e a opressão
das mulheres – terá de transcender ou superar o patriarcado capitalista como
um sistema intrinsecamente interconectado. Em outras palavras, o feminismo
tem de lutar contra todas as relações capitalistas-patriarcais, começando com
a relação homem-mulher, passando pela relação entre os seres humanos e a
natureza e indo até a relação entre metrópoles e colônias. Ele não pode espe-
rar alcançar seu objetivo se concentrando em apenas uma dessas relações, pois
elas estão inter-relacionadas.

SOCIEDADES SUPERDESENVOLVIDAS E SUBDESENVOLVIDAS

Se afirmamos que o feminismo deve lutar contra todas as relações capi-


talistas-patriarcais, devemos estender nossa análise ao sistema de acumulação
em escala mundial, ao mercado mundial e à divisão internacional do traba-
lho. As clivagens criadas por essa divisão apresentam problemas conceituais
específicos. Que terminologia devemos usar quando nos referimos aos dois
MARI A MI ES 103

lados do mercado mundial, os quais, embora divididos, estão hierarquicamente


relacionados? Será que devemos continuar a falar de países “desenvolvidos” e
“subdesenvolvidos”? Ou deveríamos, para evitar a noção de um processo line-
ar de desenvolvimento, falar em países do “Primeiro” e do “Terceiro” mundo?
Ou talvez devêssemos utilizar os conceitos de “metrópoles” ou “centros” e
“periferias”, oriundos dos teóricos da escola da dependência? Por trás de cada
dupla de conceitos está toda uma teoria que tenta dar conta do fenômeno
histórico que – desde a ascensão da Europa e, posteriormente, dos Estados
Unidos como centros dominantes da economia mundial capitalista – implica
um processo de polarização e separação em que um polo (o mundo ocidental
industrializado) fica cada vez mais rico e poderoso, e o outro polo (os países
colonizados na África, Ásia e América Latina) fica cada vez mais pobre e me-
nos poderoso.
Se seguirmos o princípio feminista de transcender as divisões criadas pelo
patriarcado capitalista a fim de sermos capazes de estabelecer que essas divi-
sões são apenas parte do todo, não podemos tratar o “Primeiro” e o “Terceiro”
mundos como entidades separadas, mas precisamos identificar as relações que
existem entre os dois.
Essas relações são baseadas na exploração e na opressão, como é o caso
da relação homem-mulher. E, assim como ela, todas as relações também são
dinâmicas e passam por um processo de polarização: um polo se torna “de-
senvolvido” às custas do outro polo, que, no mesmo processo, se torna “sub-
desenvolvido”. O “subdesenvolvimento”, de acordo com essa teoria, que
foi desenvolvida pela primeira vez por Andre Gunder Frank30 (1969), é o re-
sultado direto de uma relação de exploração desigual ou dependente entre os
países que ocupam posição central (Wallerstein, 1974) na economia mundial
capitalista e suas colônias. Isso não se deve a nenhum “atraso”. Nesse processo
dinâmico de polarização entre os países que estão se “desenvolvendo” e os paí-
ses que eles “subdesenvolvem”, os ricos e poderosos países industrializados do
Ocidente estão cada vez mais “superdesenvolvidos”. Isso significa que o de-
senvolvimento desses últimos não vai parar em um determinado ponto, quan-

30 Andre Gunder Frank (1929-2005), sociólogo alemão, foi um dos criadores, nos anos 1960,
da chamada Teoria da Dependência. Foi professor da Universidade de Brasília (UnB), um dos
principais centros de pesquisa e difusão da Teoria da Dependência, entre 1962 e 1964, quando
se mudou para o México devido ao golpe militar no Brasil. [N. das T.]
104 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

do as pessoas diriam: “Agora já está bom. Já temos desenvolvimento suficiente


para garantir nossa felicidade humana”. O próprio motor dessa polarização da
economia mundial, ou seja, o processo de acumulação de capital, está baseado
em uma visão de mundo que nunca diz: “Agora já está bom”. O processo
todo se baseia no próprio crescimento ilimitado, na expansão ilimitada das
forças produtivas, das mercadorias e do capital. O resultado desse modelo de
crescimento sem fim é o fenômeno do “superdesenvolvimento”, ou seja, um
crescimento que tem a natureza de um câncer: destrói tudo progressivamen-
te, não só para aqueles que são explorados, mas também para aqueles que
são, aparentemente, os beneficiários da exploração. “Superdesenvolvimento”
e “subdesenvolvimento” são, portanto, os dois polos extremos de uma ordem
mundial inerentemente exploradora, dividida e ao mesmo tempo ligada pelo
processo de acumulação global ou mercado mundial.
Usar os conceitos de “superdesenvolvimento-subdesenvolvimento” pode,
nesse sentido, ajudar a evitar a ilusão de que em um sistema mundial, estrutu-
rado sobre esses princípios, os problemas dos povos subdesenvolvidos pode-
riam ser resolvidos com “ajuda” para seu desenvolvimento, ou que os povos
superdesenvolvidos poderiam alcançar a felicidade humana explorando ainda
mais o mundo subdesenvolvido. Em um mundo finito, uma relação de explo-
ração e opressão entre os dois lados do todo será necessariamente destrutiva
para ambos os lados. No estágio atual da história, essa verdade está começando
a ser aceita também pelas pessoas do mundo superdesenvolvido.

AUTONOMIA

Enquanto o conceito de “patriarcado capitalista” resume o sistema ou a


totalidade das relações sociais contra as quais a luta feminista é dirigida, o
conceito de “autonomia” expressa o objetivo positivo em prol do qual o mo-
vimento se empenha. Isso vale para ao menos grande parcela do movimento
feminista. Como foi dito antes, o conceito de autonomia, geralmente com-
preendido como o direito de não sofrer coerção em relação ao nosso corpo
e à nossa vida, surgiu como um conceito de luta no contexto da política do
corpo, a esfera em que a opressão e a exploração das mulheres era vivenciada
mais íntima e concretamente.
MARI A MI ES 105

O conceito e seu conteúdo também foram interpretados de várias formas


pelo movimento feminista. Uma interpretação bastante comum entre as femi-
nistas ocidentais identifica, em termos gerais, autonomia com “independência
individual”, “autodeterminação da mulher individual” ou “direito à escolha
individual”. Nessa ênfase no individual está o importante elemento de que,
em última análise, a mulher individual, isto é, a pessoa não dividida e indivisí-
vel, é o sujeito que assume ou não a responsabilidade por sua pessoa e sua vida.
Eu interpreto a autonomia como a subjetividade e a área de liberdade mais
íntima – por menor que seja –, sem as quais os seres humanos são destituídos
de sua essência e dignidade humana fundamentais, sem as quais se tornam
marionetes ou organismos sem um elemento de livre arbítrio ou consciência
própria, ou então meros compostos de matéria orgânica, como é o modelo
dos engenheiros da reprodução hoje.
No conceito de autonomia, portanto, a aspiração feminista de manter, for-
talecer ou recriar essa essência humana subjetiva mais profunda nas mulheres
é expressa e preservada. Por outro lado, não podemos fechar os olhos para o
fato de que o capitalismo, ao focar no indivíduo isolado em suas estratégias
de mercado, perverteu em grande medida a aspiração humanista inerente ao
conceito de autonomia. Como o mercado capitalista de mercadorias cria a
ilusão de que o indivíduo é livre para satisfazer todos os seus desejos e neces-
sidades e de que a liberdade individual corresponde ao poder de escolha desta
ou daquela mercadoria, a atividade própria e a subjetividade da pessoa são
substituídas pelo consumismo individual. Assim, o individualismo se tornou,
entre as feministas ocidentais, um dos principais obstáculos para a solidarie-
dade feminista e, portanto, também para a realização dos objetivos feministas.
Se queremos evitar essa perversão individualista, temos que nos certificar
de que a autonomia corresponde à preservação da essência humana na mu-
lher. A autonomia, entretanto, não é usada apenas no sentido descrito acima.
É também um conceito de luta que foi desenvolvido para demonstrar que as
mulheres queriam se separar de organizações mistas dominadas por homens e
formar suas próprias organizações autônomas, com suas próprias análises, pro-
gramas e métodos. A organização autônoma foi particularmente enfatizada,
como vimos, em relação às organizações de esquerda tradicionais. Estas sem-
pre reivindicaram a supremacia da organização, da ideologia e do programa
sobre todos os “movimentos de massa”. A reivindicação feminista por autono-
106 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mia, nesse sentido, significa rejeitar todas as tendências de subsumir a questão


das mulheres e o movimento das mulheres a algum outro tema ou movimento
aparentemente mais amplo. A organização autônoma das mulheres é uma ex-
pressão do desejo de preservar tanto o caráter qualitativamente diferente e a
identidade do movimento feminista quanto uma base de poder independente.
Particularmente, esta base de poder foi uma lição aprendida com o antigo mo-
vimento das mulheres, pois, ao aderir a organizações dominadas por homens
(partidos e sindicatos), o antigo movimento perdeu sua identidade e acabou
sendo dissolvido. O princípio da autonomia não é sustentado apenas em rela-
ção a organizações, movimentos e contextos dominados por homens. Dentro
do próprio movimento feminista, os diversos grupos e categorias de mulheres
têm mantido esse princípio. Isso pode ser observado na forma como vários
submovimentos evoluíram ao longo do tempo, como o movimento lésbico.
Mas o princípio também foi seguido pelo crescente movimento feminista do
Terceiro Mundo. Como não há centro, nem hierarquia, nem ideologia oficial
e unificada, nem liderança formal, a autonomia das várias iniciativas, grupos
e coletivos é o único princípio que pode manter o dinamismo, a diversidade,
bem como a perspectiva verdadeiramente humanista do movimento.
2
ORIGENS SOCIAIS
DA DIVISÃO SEXUAL
DO TRABALHO
A BUSCA PELAS ORIGENS DA DIVISÃO SEXUAL DO
31
TRABALHO DE UMA PERSPECTIVA FEMINISTA

DESDE A ascensão do positivismo e do funcionalismo como escolas de pen-


samento dominantes entre os cientistas sociais ocidentais na década de 1920, a
busca pelas origens das relações desiguais e hierárquicas na sociedade em geral
e da divisão assimétrica do trabalho entre homens e mulheres em particular
tem sido tabu. Negligenciar, e mesmo suprimir sistematicamente, essa questão
tem sido parte de uma campanha generalizada contra o pensamento e a teo-
rização marxistas no mundo acadêmico, particularmente no mundo anglo-
-americano (Martin & Voorhies, 1975, p. 155). É só agora que essa pergunta
está sendo feita novamente. Significativamente, ela não foi feita primeiro por
pessoas ligadas à academia, mas por mulheres ativamente envolvidas no mo-
vimento de mulheres. Quaisquer que sejam as diferenças ideológicas entre os
vários grupos feministas, eles estão unidos em sua rebelião contra essa relação
hierárquica, que já não é aceita como destino biológico, mas vista como algo
que deve ser abolido. A busca pelos fundamentos sociais dessa assimetria é a
consequência necessária de sua rebelião. As mulheres comprometidas com
a luta contra a opressão e a exploração milenar das mulheres não podem se
contentar com a indiferente conclusão, oferecida por muitos acadêmicos, de

31 Este capítulo é resultado de um processo coletivo de reflexão entre mulheres nos anos de 1975
a 1977, quando ministrei cursos sobre a história do movimento de mulheres na Universidade
de Frankfurt. Muitas das ideias discutidas aqui surgiram no curso “Work and Sexuality in Matristic
Societies” [Trabalho e sexualidade nas sociedades matrísticas]. A tese de uma de minhas alunas,
Roswitha Leukert, Female Sensuality [Sensualidade feminina] (1976), ajudou a elucidar muitas
de nossas ideias. Quero agradecer a ela e a todas as mulheres que participaram dessas discussões.
Este capítulo é a versão revisada de um artigo apresentado pela primeira vez na conferência
“Underdevelopment and Subsistence Reproduction” [Subdesenvolvimento e reprodução de
subsistência], realizada na Universidade de Bielefeld, em 1979. O artigo foi publicado em 1981
pelo Instituto de Estudos Sociais da Universidade de Haia.
110 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

que a questão das origens da divisão sexual do trabalho não pode ser levanta-
da porque sabemos muito pouco sobre elas. A busca pelas origens sociais dessa
relação integra a estratégia política de emancipação das mulheres (Reiter,
1977). Sem entender o fundamento e o funcionamento da relação assimétrica
entre homens e mulheres não é possível superá-la.
Essa motivação política e estratégica diferencia fundamentalmente a nova
busca pelas origens da divisão sexual do trabalho de outras especulações aca-
dêmicas e tentativas de pesquisa. Seu objetivo não é apenas analisar ou encon-
trar uma interpretação para um problema antigo, mas resolvê-lo.
A discussão a seguir deve, portanto, ser entendida como uma contribuição
para “disseminar a consciência da existência da hierarquia de gênero e da ação
coletiva que visa a desmantelá-la” (Reiter, 1977, p. 5).

CONCEITOS ENVIESADOS

Quando começamos a perguntar sobre as origens da relação opressiva en-


tre os sexos, logo descobrimos que nenhuma das velhas explicações apresen-
tadas pelos cientistas sociais desde o século XIX é satisfatória. Pois, em todas
elas, sejam derivadas de uma abordagem evolucionista, positivista-funcionalista
ou mesmo marxista, o problema que precisa de explicação é, em última aná-
lise, visto como determinado biologicamente e, portanto, fora do escopo da
mudança social. Assim, antes de discutir as origens de uma divisão assimétrica
do trabalho entre os sexos, é útil identificar os vieses biológicos existentes em
alguns dos conceitos que normalmente utilizamos em nossos debates.
Esse determinismo biológico oculto ou aberto, que parafraseia a afirmação
de Freud de que nossa anatomia é nosso destino, é talvez o obstáculo mais
profundamente enraizado na análise das causas da opressão e da exploração
das mulheres. Embora as mulheres que lutam por sua emancipação tenham re-
jeitado o determinismo biológico, elas acham muito complicado demonstrar
que a relação desigual, hierárquica e exploradora entre homens e mulheres é
causada por fatores sociais, isto é, históricos. Um dos principais problemas que
enfrentamos é o fato de que não apenas a análise enquanto tal, mas também as
ferramentas de análise, os conceitos básicos e as definições são afetados – ou
melhor, infectados – pelo determinismo biológico.
MARI A MI ES 111

Isso vale para os conceitos básicos que são centrais para nossa análise,
como os de natureza, trabalho, divisão sexual do trabalho, família e produtivi-
dade. Empregados sem uma crítica de seu viés ideológico implícito, esses
conceitos tendem a apagar, ao invés de trazer à tona, os problemas. Isso é
especialmente evidente para o conceito de natureza.
Com muita frequência, esse conceito tem sido usado para explicar as
desigualdades sociais ou as relações de exploração como algo inato e, por-
tanto, fora do alcance da mudança social. As mulheres, particularmente,
devem desconfiar quando esse termo é usado para explicar seu status na
sociedade. Sua participação na produção e na reprodução da vida é geral-
mente definida como uma função de sua biologia ou “natureza”. Assim, o
trabalho doméstico das mulheres e o cuidado das crianças são vistos como
uma extensão de sua fisiologia devido ao fato de parirem, de a “nature-
za” ter lhes provido um útero. Todo o trabalho envolvido na produção da
vida, incluído o de gerar e parir uma criança, não é visto como a interação
consciente de um ser humano com a natureza, ou seja, como uma ativida-
de propriamente humana, mas sim como uma atividade da natureza, que
produz plantas e animais inconscientemente e não tem controle sobre esse
processo. Essa definição da interação das mulheres com a natureza – in-
cluindo sua própria natureza – como um ato da natureza teve, e ainda tem,
enormes consequências.
O que é mistificado por um conceito de natureza infectado pelo bio-
logismo é uma relação de dominação e exploração, dominação do ser hu-
mano (masculino) sobre a natureza (feminina). Essa relação de dominação
também está implícita nos outros conceitos mencionados anteriormente
quando aplicados às mulheres.Vejamos, por exemplo, o conceito de trabalho!
Devido à definição biológica da interação das mulheres com sua natureza,
tanto seu trabalho durante o parto e criação dos filhos quanto o restante do
trabalho doméstico não são vistos como trabalho. O conceito de trabalho
é geralmente reservado ao trabalho produtivo dos homens sob condições
capitalistas, o que significa trabalho para a produção de mais-valia.
Embora as mulheres também realizem esse trabalho gerador de mais-valia,
o conceito de trabalho, sob o capitalismo, é geralmente empregado com um
viés masculino ou patriarcal, já que, no capitalismo, as mulheres são tipica-
mente definidas como donas de casa, ou seja, como não trabalhadoras.
112 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Os instrumentos desse trabalho, ou os meios corporais de produção a que


esse conceito se refere implicitamente, são as mãos e a cabeça, mas nunca o
útero ou os seios de uma mulher. Assim, não apenas homens e mulheres são
definidos de forma diferente em sua interação com a natureza, mas o próprio
corpo humano é dividido em partes verdadeiramente “humanas” (cabeça e
mãos) e partes “naturais” ou puramente “animais” (genitais, útero etc.).
Essa divisão não pode ser atribuída a um sexismo universal inerente aos
homens como tais, mas é uma consequência do modo de produção capita-
lista, interessado apenas nas partes do corpo humano que podem ser usadas
diretamente como instrumentos de trabalho ou que podem se tornar uma
extensão da máquina.
A mesma assimetria oculta e o mesmo viés biologista que podemos ob-
servar no conceito de trabalho prevalecem também no conceito de divisão
sexual do trabalho. Embora, manifestamente, esse conceito pareça sugerir que
homens e mulheres simplesmente dividem tarefas diferentes entre si, ele es-
conde o fato de que as tarefas geralmente consideradas como verdadeira-
mente humanas (isto é, conscientes, racionais, planejadas, produtivas etc.) são
tarefas masculinas, enquanto as tarefas das mulheres são, novamente, vistas
como determinadas basicamente por sua natureza. A divisão sexual do tra-
balho, de acordo com essa definição, poderia ser parafraseada como a divisão
entre “trabalho humano” e “atividade natural”. Além do mais, esse conceito
encobre também o fato de que a relação entre os trabalhadores homens (ou
seja, “humanos”) e as trabalhadoras mulheres (“naturais”) é uma relação de
dominação e de exploração. O termo exploração é usado aqui no sentido
da separação e da hierarquização mais ou menos permanentes criadas entre
produtores e consumidores, por meio das quais os últimos podem se apro-
priar dos produtos e serviços dos primeiros sem que sejam eles mesmos
produtores. A situação original de uma comunidade igualitária, isto é, em
que aqueles que produzem algo também são – em um sentido intergera-
cional – seus consumidores, foi interrompida. Relações sociais exploratórias
existem quando os não produtores são capazes de se apropriar e consumir
(ou investir em) os produtos e serviços dos produtores reais (Sohn-Rethel,
1978; Luxemburgo, 1925). Esse conceito de exploração pode ser usado para
caracterizar a relação entre homens e mulheres durante longos períodos da
história, incluindo o nosso.
MARI A MI ES 113

Para tentar analisar as origens sociais dessa divisão do trabalho, temos que
deixar explícito que nos referimos a essa relação assimétrica, hierárquica e
exploradora e não a uma simples divisão de tarefas entre partes em igualdade
de condições.
A mesma lógica biologista escamoteadora prevalece no conceito de família.
Não só esse conceito é utilizado e universalizado de forma eurocêntrica e
a-histórica, apresentando a família nuclear como a estrutura básica e atempo-
ral de toda a institucionalização das relações entre homens e mulheres, como
também esconde a estrutura hierárquica e não igualitária dessa instituição.
Frases como “parceria ou democracia dentro da família” servem apenas para
ocultar a verdadeira natureza dessa instituição.
Conceitos como família “biológica” ou “natural” estão ligados a esse con-
ceito a-histórico de família, que se baseia na combinação obrigatória de rela-
ções heterossexuais e procriação de filhos consanguíneos.
Esta breve discussão sobre os vieses biologistas inerentes a alguns dos con-
ceitos mais importantes que usamos evidencia que é necessário expor siste-
maticamente a função ideológica desses vieses, que é a de apagar e mistificar
relações sociais assimétricas e exploratórias, particularmente aquelas entre ho-
mens e mulheres.
Isso significa, com relação ao problema que colocamos, ou seja, a análise das
origens sociais da divisão sexual do trabalho, que nossa pergunta não é: quando
surgiu a divisão do trabalho entre homens e mulheres? Mas sim: quais são as
razões pelas quais essa divisão do trabalho se tornou uma relação de domina-
ção e exploração, uma relação assimétrica e hierárquica? Essa questão ainda
é de suma importância em todos os debates sobre a libertação das mulheres.

PROPOSTA DE ABORDAGEM

O que podemos fazer para eliminar os vieses contidos nos conceitos men-
cionados anteriormente? Não usar esses conceitos, como sugerem algumas
mulheres? Nesse caso, ficaríamos sem uma linguagem para expressar nossas
ideias. Inventar novos conceitos? Mas os conceitos resumem teorias e práticas
históricas e não podem ser inventados à vontade. Temos de aceitar que os
conceitos básicos que usamos em nossa análise já foram “ocupados” – como
114 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

territórios ou colônias – pela ideologia sexista dominante. Embora não possa-


mos abandoná-los, podemos olhá-los “de baixo”, isto é, não do ponto de vista
da ideologia dominante, mas do ponto de vista das experiências históricas dos
oprimidos, explorados e subordinados e de sua luta pela emancipação.
Para isso, é necessário, em relação ao conceito de produtividade do trabalho,
rejeitar sua estreita definição e mostrar que o trabalho só pode ser produti-
vo no sentido da produção de mais-valia enquanto puder extrair, explorar
e se apropriar do trabalho empregado na produção da vida, ou na produção de
subsistência (Mies, 1980b), que é, em grande parte, trabalho não remunerado
realizado por mulheres. Como a produção da vida é a pré-condição perene de
todas as outras formas históricas de trabalho produtivo, incluindo aquelas sob
condições de acumulação capitalista, ela deve ser definida como trabalho, e não
como atividade “natural” inconsciente.
Daqui em diante, denominarei o trabalho necessário para a produção da
vida como trabalho produtivo, no sentido amplo da produção de valores de uso
para a satisfação de necessidades humanas. A separação entre trabalho produtor
de mais-valia e trabalho produtor da vida e a sobreposição do primeiro ao
último são uma abstração que leva as mulheres e seu trabalho a serem “defi-
nidos como natureza”.
Em sua discussão sobre o processo de trabalho no volume I de O capital,
Marx utiliza primeiro uma definição ampla de “trabalho produtivo”, a de que,
mediante a transformação da matéria natural, produz-se um produto para
o uso humano, isto é, para a satisfação de necessidades humanas (O capital,
vol. I, 1974)32. Mas, em uma nota de rodapé, o autor adverte que essa defini-
ção, correta para o processo simples de trabalho, não é exatamente adequada
para o processo de produção capitalista, em que o conceito de trabalho produ-
tivo é reduzido à produção de mais-valia: “Apenas é produtivo o trabalhador que
produz mais-valia para o capitalista ou serve à autovalorização do capital” (O
capital, vol. I, 1974, p. 532)33. Marx usa aqui o conceito reduzido de produtivi-
dade do trabalho que foi desenvolvido por Adam Smith e outros economistas

32 O capital, vol. I, tomo I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural,
1996. [N. das T.]

33 O capital, vol. I, tomo II. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural,
1996, p. 138. [N. das T.]
MARI A MI ES 115

políticos (cf. Grundrisse, 1974). Ele ainda critica esse conceito quando afirma
que “ser trabalhador produtivo [sob o capitalismo] não é, portanto, sorte, mas
azar” (O capital, vol. I, 1974, p. 532)34, porque o trabalhador se torna um ins-
trumento direto de valorização do capital. Mas, ao se concentrar apenas nesse
conceito capitalista de trabalho produtivo e universalizá-lo a ponto de eclip-
sar virtualmente o conceito mais geral e fundamental de trabalho produtivo
– que poderia incluir a produção da vida pelas mulheres –, o próprio Marx
contribuiu teoricamente para a remoção de todo o trabalho “não produtivo”
(isto é, trabalho não assalariado, incluindo a maioria do trabalho realizado
pelas mulheres) da visibilidade pública. O conceito de “trabalho produtivo”,
usado desde então, tanto por pensadores burgueses quanto por teóricos mar-
xistas, manteve essa conotação capitalista, e a crítica que Marx fazia a ele foi
esquecida. Considero esse conceito estreito e capitalista de “trabalho produ-
tivo” como o mais importante obstáculo em nossa luta pelo reconhecimento
do trabalho das mulheres tanto sob o capitalismo quanto sob o socialismo
realmente existente.
Minha tese é de que essa produção geral da vida, ou produção de sub-
sistência – realizada principalmente por meio do trabalho não assalariado
de mulheres e de outros trabalhadores não assalariados, como escravizados,
trabalhadores temporários e camponeses nas colônias –, constitui a base per-
manente sobre a qual o “trabalho produtivo capitalista” pode ser construído
e explorado. Sem a produção de subsistência contínua de trabalhadores não
assalariados (principalmente mulheres), o trabalho assalariado não seria “pro-
dutivo”. Em contraste com Marx, considero a produção capitalista como
um processo que compreende tanto a superexploração de trabalhadores não
assalariados (mulheres, colônias, camponeses) quanto a exploração de tra-
balho assalariado que se torna possível graças à primeira. Eu defino sua ex-
ploração como superexploração porque ela não está baseada na apropriação
(pelo capitalista) do tempo e do trabalho que excede o tempo de trabalho
“necessário” – quer dizer, do trabalho excedente –, mas na apropriação do
tempo e do trabalho necessários para a própria sobrevivência das pessoas, ou
para a produção de subsistência. Isso não é compensado por um salário, cuja
quantia é calculada sobre os custos de reprodução “necessários” do trabalha-

34 Ibidem, p. 138. [N. das T.]


116 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

dor, mas determinado basicamente pela força ou por instituições coercitivas.


Essa é a principal razão para a pobreza e a fome crescentes dos produtores
do Terceiro Mundo, onde o princípio da troca de equivalentes que subjaz
às negociações salariais dos trabalhadores do Ocidente não é aplicado (ver
capítulos 3 e 4).
A busca pelas origens da divisão sexual hierárquica do trabalho não deve
se limitar à busca pelo momento da história ou da pré-história em que teria
ocorrido a “derrota do sexo feminino no plano da história mundial” (Engels,
1976)35. Embora os estudos em primatologia, pré-história e arqueologia se-
jam úteis e necessários para nossa pesquisa, não podemos esperar que eles
forneçam uma resposta a essa pergunta, a não ser que sejamos capazes de de-
senvolver conceitos materialistas, históricos e não biologicistas de homens e
mulheres e suas relações com a natureza e a história. Como destaca Roswitha
Leukert: “O problema para determinar o início da história humana não é fixar
uma data específica, mas encontrar um conceito materialista de ser humano e
de história” (Leukert, 1976, p. 18).
Se adotarmos essa abordagem, que está intimamente ligada à motivação
estratégica mencionada anteriormente, veremos que o desenvolvimento de
relações verticais e desiguais entre homens e mulheres não é apenas algo
do passado.
Podemos aprender muito sobre a formação real de hierarquias sexuais
se observarmos a “história em construção”, ou seja, se estudarmos o que
está acontecendo com as mulheres sob o impacto do capitalismo tanto em
seus centros quanto em suas periferias, onde sociedades camponesas e tribais
pobres estão agora sendo “integradas” em uma assim chamada nova divisão
nacional e internacional do trabalho sob os ditames da acumulação de capi-
tal. Tanto nas metrópoles capitalistas como nas periferias, uma nítida política
sexista foi e é usada para subjugar sociedades e classes inteiras às relações de
produção capitalistas.
Essa estratégia aparece geralmente sob o disfarce de leis da família “progres-
sistas” ou liberais (por exemplo, a proibição da poligamia), de planejamento fa-
miliar e políticas de desenvolvimento. A exigência de “integrar as mulheres ao

35 A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boi-
tempo, 2019, p. 60. [N. das T.]
MARI A MI ES 117

desenvolvimento”, expressa pela primeira vez na Conferência Mundial sobre a


Mulher, ocorrida no México em 1975, é amplamente utilizada nos países do
Terceiro Mundo para recrutar mulheres como a força de trabalho mais barata,
mais dócil e mais manipulável para os processos de produção capitalistas, seja
no agronegócio, na indústria ou no setor informal (Föbel, Kreye & Heinrichs,
1977; Mies, 1982; Grossman, 1979; Elson & Pearson, 1980; Safa, 1980).
Isso também indica que não devemos mais olhar para a divisão sexual do
trabalho como um problema relacionado apenas à família, mas como um
problema estrutural de toda a sociedade. A divisão hierárquica do trabalho
entre homens e mulheres e sua dinâmica são parte integrante das relações
de produção dominantes, isto é, das relações de classe de uma dada época e
sociedade, e das divisões nacionais e internacionais do trabalho.

APROPRIAÇÃO DA NATUREZA POR MULHERES E HOMENS

Buscar um conceito materialista de homem/mulher e de história significa


buscar a natureza humana de homens e mulheres, mas a natureza humana não
é algo dado. Ela se desenvolveu na história e não se reduz aos seus aspectos
biológicos, pois a dimensão fisiológica dessa natureza está sempre ligada à sua
dimensão social. Portanto, a natureza humana não pode ser compreendida
se separarmos sua fisiologia de sua história. A natureza humana de mulheres
e homens não evolui da biologia em um processo linear, monocausal, mas é
o resultado da história da interação de mulheres e homens com a natureza e
entre si. Os seres humanos não vivem simplesmente, como o fazem os ani-
mais. Os seres humanos produzem suas vidas. E essa produção se dá em um
processo histórico.
Em contraste com a evolução no mundo animal (história natural), a histó-
ria humana é história social desde seu início. Toda a história humana é caracte-
rizada, segundo Marx e Engels, por “três momentos” que existiram no início
da humanidade e ainda existem hoje: 1. Pessoas necessitam viver para poder
fazer história; precisam produzir os meios para satisfazer suas necessidades:
comida, roupas, abrigo etc.; 2. A satisfação dessas necessidades leva a novas
necessidades, e os seres humanos desenvolvem novos instrumentos para satisfa-
zê-las; 3. Os seres humanos que reproduzem sua vida cotidiana devem produzir
118 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

outros seres humanos, devem procriar – “a relação entre homem e mulher, pais
e filhos, a família” (Marx & Engels, 1977, p. 31)36.
Posteriormente, Marx usa a expressão “apropriação de matéria natural”
para conceituar o trabalho em seu sentido mais amplo: trabalho como apro-
priação da natureza para a satisfação das necessidades humanas:

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um


processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla
seu metabolismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria
natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais
pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de
apropriar-se37 da matéria natural numa forma útil para sua própria vida.
Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao
modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (Marx, O
capital, vol. I, 1974, p. 173)38

Devemos enfatizar que essa “apropriação da natureza” é característica de


toda a história humana, incluindo os primeiros estágios, primitivos.
Engels, fortemente influenciado pelo pensamento evolucionista, separa es-
ses primeiros estágios, que denomina pré-história, da atual história humana,
que, segundo ele, começa apenas com a civilização. Isso significa que ela co-
meça com relações patriarcais e de classe plenamente desenvolvidas. Engels
não é capaz de responder à questão de como a humanidade saltou da pré-his-
tória para a história social; além do mais, ele não aplica o método do mate-
rialismo histórico dialético ao estudo dessas sociedades primitivas que “ainda
não entraram na história”. Ele considera que as leis da evolução prevaleceram

36 A ideologia alemã. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 42. [N. das T.]

37 “Apropriação da natureza” (Aneignung der Natur) tem duplo significado em alemão, e essa
ambiguidade também pode ser encontrada na maneira como Marx emprega essa expressão. Por
um lado, ele a utiliza no sentido de “tornar nossa a natureza, humanizá-la”. Em seus primeiros
escritos, a formulação “apropriação da natureza” é usada nesse sentido. Por outro lado, o termo
define uma relação de dominação entre Homem e Natureza. Esse é o caso em O capital, em
que Marx reduziu sua definição mais ampla para significar “domínio, controle sobre a nature-
za”. Como veremos, tal interpretação desse conceito é problemática para as mulheres.

38 O capital, vol. I, tomo I, 1996, p. 297. [N. das T.]


MARI A MI ES 119

até o surgimento da propriedade privada, da família e do Estado. Nas duas


primeiras frases do prefácio de A origem da família, da propriedade privada e do
Estado, de 1884, Engels enfatiza que:

Segundo a concepção materialista, o fator que, em última análise, deter-


mina a história é este: a produção e a reprodução da vida imediata. Ele
próprio, porém, é de dupla natureza. Por um lado, a geração dos meios de
subsistência, dos objetos destinados à alimentação, vestuário e habitação e
as ferramentas requeridas para isso; por outro, a geração dos próprios seres
humanos, a procriação do gênero. As instituições sociais em que os seres
humanos de determinada época histórica e de determinado país vivem são
condicionadas por duas espécies de produção (grifo meu): pelo estágio de de-
senvolvimento do trabalho, de um lado, e pelo da família, de outro. (Engels,
1976, p. 191)39

Como observa Anke Wolf-Graaf, toda feminista materialista concordaria


que uma análise materialista deve levar em conta os dois tipos de produção; o
próprio Engels, porém, desiste dessa concepção materialista quando trata
da “geração de seres humanos” (cf. Wolf-Graaf, 1981, p. 114-121), que, de
acordo com ele, é determinada pelo “desenvolvimento da família”, enquan-
to a produção de meios de subsistência é determinada pelo desenvolvimen-
to do trabalho. Essa distinção não é acidental, já que, ao longo de todo o
livro, Engels segue essa linha de pensamento. Na descrição do desenvolvi-
mento das gens à tribo, e daí à família, Engels não aplica uma análise eco-
nômica, mas uma análise evolutiva que, por exemplo, explica a introdução
do tabu do incesto e da monogamia pelo desejo “natural” das mulheres por
relações monogâmicas. Somente quando se trata da propriedade privada e
da família patriarcal monogâmica é que Engels traz explicações econômicas
e históricas materialistas: “Com a família patriarcal, pisamos no território
da história escrita” (Engels, 1976, p. 234)40. A família monogâmica patriarcal
“foi a primeira forma de família que não se fundou em condições natu-
rais, mas em condições econômicas, a saber, sobre a vitória da propriedade

39 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2019, p. 19. [N. das T.]

40 Ibidem, p. 61. [N. das T.]


120 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

privada sobre a propriedade comum primitiva, de origem natural” (Engels,


1976, p. 239)41.
Essa distinção entre processos “naturais” (isto é, a-históricos), ligados
à “geração de seres humanos ou procriação”, e processos históricos, rela-
cionados ao desenvolvimento dos meios de produção e do trabalho, é es-
sencialmente responsável pelo fato de que, dentro da teoria marxista, uma
concepção materialista histórica das mulheres e de seu trabalho não tenha
sido possível. O conceito idealista (naturalista, biologista) do trabalho das
mulheres na produção de seres humanos como “natural” já estava enunciado
nas primeiras análises de Marx e Engels em A ideologia alemã. Embora Marx
e Engels desejassem estabelecer a historicidade e a base material dos três mo-
mentos que constituem a vida humana, eles rapidamente excluem ou aban-
donam o “terceiro momento”, ou seja, a produção de novos seres humanos,
da esfera da história. Eles iniciam sua discussão sobre o terceiro momento da
seguinte forma:

A terceira relação, que desde o início entra no desenvolvimento histórico,


é esta: os homens que, dia a dia, renovam a sua própria vida começam a
fazer outros homens, a reproduzir-se – a relação entre homem e mulher,
pais e filhos, a família. Essa família, que a princípio é a única relação social,
torna-se mais tarde, quando o aumento das necessidades cria novas relações
sociais e o aumento do número dos homens cria novas necessidades, uma
relação subordinada [...]. (Marx & Engels, 1977, p. 31)42

Isso significa que a relação entre homens e mulheres já não é considerada


como uma força motriz da história, mas uma “indústria”. Eles continuam:

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na


procriação, surge agora imediatamente como uma dupla relação: por um
lado como relação natural, por outro como relação social – social no sen-
tido em que aqui se entende a cooperação de vários indivíduos seja em

41 Ibidem, p. 67. [N. das T.]

42 A ideologia alemã, 2009, p. 42. [N. das T.]


MARI A MI ES 121

que circunstâncias for e não importa de que modo e com que fim. (Marx
& Engels, 1977, p. 31)43

As feministas esperariam então que, em sua análise, Marx e Engels con-


tinuassem a incluir a relação entre homens e mulheres na produção de vida
nova dentro da categoria “relação social”, mas esse aspecto é imediatamente
esquecido quando eles continuam:

Daqui resulta que um determinado modo de produção, ou fase industrial,


está sempre ligado a um determinado modo de cooperação, ou fase social,
e esse modo de cooperação é ele próprio uma “força produtiva”; e que a
quantidade das forças produtivas acessíveis aos homens condiciona a situa-
ção da sociedade, e portanto a “história da humanidade” tem de ser sempre
estudada e tratada em conexão com a história da indústria e da troca. (Marx
& Engels, 1977, p. 31)44

Sua concepção da “produção da vida” como um fato “natural”, e não his-


tórico, fica ainda mais evidente quando tratam do desenvolvimento da divisão
do trabalho. Essa divisão do trabalho “que originalmente nada era senão a
divisão do trabalho no ato sexual” (p. 33)45, ou “a divisão natural do trabalho
na família” (p. 34)46, só se torna verdadeiramente uma divisão do trabalho
“a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e
espiritual”47. Antes desse estágio, toda atividade era mera atividade animal ou
“consciência de carneiro, ou tribal”48. O que conduz essa existência de carnei-
ro (que as mulheres ainda levam hoje, segundo esse conceito) a uma existência
social histórica verdadeiramente humana é o aumento da produtividade do

43 Ibidem, p. 42-43. [N. das T.]

44 Ibidem, p. 43. [N. das T.]

45 Ibidem, p. 45. [N. das T.]

46 Ibidem, p. 46. [N. das T.]

47 Ibidem, p. 45. [N. das T.]

48 Ibidem, p. 45. [N. das T.]


122 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

trabalho (masculino), o aumento das necessidades e o crescimento populacio-


nal (p. 33)49. A cooperação do homem e da mulher no ato sexual e o trabalho
das mulheres na criação e cuidados dos filhos obviamente não pertencem ao
domínio das “forças produtivas”, do “trabalho”, da “indústria e da troca”, mas
da “natureza” (p. 33-34)50. Ao separar a produção da vida e a produção das
necessidades diárias por meio do trabalho, sendo a última elevada ao reino da
história e da humanidade e classificada como “social”, ao passo que a primeira
é rebaixada ao reino do “natural”, Marx e Engels contribuíram involuntaria-
mente com o determinismo biológico que nos afeta ainda hoje. No que diz
respeito às mulheres e seu trabalho, eles permanecem tão idealistas quanto os
ideólogos alemães que criticaram.
Se quisermos encontrar um conceito histórico e materialista de mulheres,
homens e sua história, devemos primeiro analisar suas respectivas interações
com a natureza e como, nesse processo, eles constroem sua natureza humana
ou social. Se seguíssemos Engels, teríamos de relegar a interação das mulheres
com a natureza à esfera da evolução. (Isso, de fato, tem sido feito por funcio-
nalistas e behavioristas ao redor do mundo.) Teríamos que concluir que as
mulheres ainda não entraram na história (conforme a definição de Engels) e
ainda pertencem, basicamente, ao mundo animal.

A APROPRIAÇÃO DE MULHERES E HOMENS DE SEUS


PRÓPRIOS CORPOS

O processo de trabalho em sua forma elementar é, de acordo com Marx,


uma ação consciente que visa à produção de valores de uso. Em um sentido
mais amplo, é a “apropriação do natural para satisfazer as necessidades huma-
nas” (O capital, vol. I, p. 179)51. Esse “metabolismo” (Stoffwechsel) “entre o ho-
mem [seres humanos] e a Natureza” é a condição permanentemente imposta
pela natureza para a existência humana, ou melhor, é a condição comum a

49 Ibidem, p. 45. [N. das T.]

50 Ibidem, p. 42-43. [N. das T.]

51 O capital, vol. I, tomo I, 1996, p. 303. [N. das T.]


MARI A MI ES 123

todas as fases da história (p. 303). Nesse “metabolismo” entre seres humanos
e natureza, seres humanos, mulheres e homens não apenas desenvolvem e
transformam a natureza externa com a qual se confrontam, mas também sua
própria natureza corporal.
A interação entre os seres humanos e a natureza para produzir a satisfação
das necessidades humanas precisa, como toda produção, de um instrumento
ou meio de produção. O primeiro meio de produção com o qual os seres
humanos atuam sobre a natureza é seu próprio corpo. Ele é também a pré-
-condição permanente de todos os demais meios de produção. Mas o corpo
não é apenas a ferramenta com a qual os seres humanos atuam sobre a na-
tureza, é também o objetivo maior da satisfação das necessidades. Os seres
humanos não apenas usam seu corpo para produzir valores de uso, como
também mantêm seu corpo vivo – em seu sentido mais amplo – pelo con-
sumo de seus produtos.
Em sua análise do processo de trabalho em seu sentido mais amplo, como
apropriação de substâncias naturais, Marx não diferencia homens e mulheres.
Para nossa discussão, entretanto, é importante enfatizar que homens e mu-
lheres atuam sobre a natureza com um corpo qualitativamente diferente. Se
quisermos expor a questão da divisão assimétrica do trabalho entre os sexos,
é necessário não falar da apropriação da natureza pelo homem (como ser ge-
nérico abstrato), mas da apropriação da natureza por mulheres e por homens.
Esse posicionamento se baseia no pressuposto de que mulheres e homens se
apropriam da natureza de maneiras diferentes. Essa diferença é geralmente
apagada porque “humanidade” é identificada como “masculinidade”.52
Masculinidade e feminilidade não são dados biológicos, mas resultado de
um longo processo histórico. Em cada época histórica, masculinidade e fe-
minilidade são definidas de maneiras diferentes. Essa definição depende do
principal modo de produção em cada época. Isso significa que as diferenças
orgânicas entre mulheres e homens são interpretadas e valorizadas de modos di-
ferentes, de acordo com a forma dominante de apropriação da matéria natural
para a satisfação das necessidades humanas. Portanto, ao longo da história, ho-

52 Esse sexismo prevalece em muitas línguas, que não diferenciam, como o inglês, o francês e
todas as línguas românicas, “homem” (ser masculino) e “homem” (ser humano). A língua alemã
ainda pode expressar essa diferença: Mann é o homem e Mensch, o ser humano, embora Mensch
também tenha assumido uma conotação masculina.
124 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mens e mulheres desenvolveram relações qualitativamente diferentes com seus


próprios corpos. Assim, nas sociedades matrísticas,53 a feminilidade era inter-
pretada como o paradigma social de toda a produtividade, como o principal
princípio ativo na produção da vida.54 Todas as mulheres eram definidas como
“mães”, mas “mãe” significava algo bastante diferente do que significa hoje.
Sob condições capitalistas, todas as mulheres são socialmente definidas como
donas de casa (e todos os homens como chefes de família), e a maternidade
tornou-se parte integrante dessa síndrome da dona de casa. A diferença entre
a definição matrística de feminilidade e a moderna é que a definição moderna
foi esvaziada de todas as qualidades ativas, criativas (subjetivas) e produtivas
(isto é, humanas).
A diferença qualitativa historicamente desenvolvida na apropriação da na-
tureza corporal masculina e feminina também levou a “duas formas qualitati-
vamente diferentes de apropriação da natureza externa”, isto é, a formas qua-
litativamente distintas de relações com os objetos de apropriação, os objetos
da atividade corporal sensorial (Leukert, 1976, p. 41).

A RELAÇÃO-OBJETO DE HOMENS E MULHERES


COM A NATUREZA

Primeiro, devemos ressaltar a diferença entre a relação-objeto humana e a


animal. A relação-objeto humana é práxis, ou seja, ação + reflexão; ela se torna
visível apenas no processo histórico e implica interação ou cooperação social.
O corpo humano não foi apenas o primeiro meio de produção, mas também a
primeira força de produção. Isso significa que o corpo humano tem experiência
na capacidade de criar algo novo e, portanto, de transformar a natureza ex-

53 Com Bornemann, utilizo o termo “matrístico” em vez de “matriarcal” porque matriarcal


implica que as mães foram capazes de estabelecer um sistema político de dominação. Entretan-
to, nem mesmo nas sociedades matrilineares e matrilocais as mulheres estabeleceram esse tipo
de sistema de dominação política (Bornemann, 1975).

54 As deusas-mães indianas (Kali, Durga etc.) são todas encarnações desse princípio ativo e
prático, enquanto muitos dos deuses masculinos são passivos, contemplativos e ascéticos. Para
uma discussão sobre a relação entre um determinado conceito de natureza e a apropriação dos
corpos femininos, ver também Colette Guillaumin (1978).
MARI A MI ES 125

terna e a humana. A relação-objeto dos seres humanos com a natureza é, em


contraste com a dos animais, produtiva. Na apropriação do corpo como força
produtiva, a diferença entre mulher e homem teve vastas consequências.
O que caracteriza a relação-objeto das mulheres com a natureza, tanto
a sua própria natureza como com a natureza externa? Primeiro, vemos que
as mulheres podem experimentar todo o seu corpo como produtivo, e não
apenas suas mãos ou cabeça. Seu corpo produz crianças novas, assim como o
primeiro alimento para essas crianças. É de crucial importância para a nossa
exposição que a atividade das mulheres na produção de crianças e de leite
seja entendida como realmente humana, ou seja, como atividade social cons-
ciente. As mulheres se apropriaram de sua própria natureza, de sua capacidade
de parir e de produzir leite da mesma forma que os homens se apropriaram
de sua própria natureza corporal, no sentido de que suas mãos, sua mente
etc. adquiriram habilidades por meio do trabalho e da reflexão para fabricar
e manusear ferramentas. Nesse sentido, a atividade das mulheres na criação e
cuidado das crianças deve ser entendida como trabalho. Um dos maiores obs-
táculos para a libertação das mulheres, ou seja, para sua humanização, é que
essas atividades ainda são interpretadas como funções puramente fisiológicas,
comparáveis às de outros mamíferos e situadas fora da esfera de influência
humana consciente. Essa visão de que a produtividade do corpo feminino é
idêntica à fertilidade animal – uma visão que, atualmente, é propagada e po-
pularizada em todo o mundo por demógrafos e planejadores populacionais
– deve ser entendida como um resultado da divisão patriarcal e capitalista do
trabalho, e não como sua pré-condição.55
Ao longo de sua história, as mulheres observaram as mudanças em seus
próprios corpos e adquiriram, por meio da observação e da experimenta-
ção, uma vasta gama de conhecimentos experienciais sobre as funções de
seus corpos, sobre os ritmos da menstruação, sobre a gravidez e o parto. Essa

55 Uma comparação entre a terminologia usada hoje na pesquisa demográfica e a de períodos


anteriores seria muito reveladora. Até a década de 1930, a produção de vida nova ainda era
conceituada como “procriação”, ou seja, ainda tinha uma conotação ativa e criadora. Mas, hoje,
a produtividade geradora é conceituada em termos passivos, biológicos, comportamentais e
mecanicistas como: “fertilidade”, “reprodução biológica”, “comportamento reprodutivo”. Essa
definição da produtividade geradora humana como fertilidade passiva é uma mistificação ideo-
lógica necessária para aqueles que desejam obter o controle sobre essa última instância da
autonomia humana.
126 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

apropriação de sua própria natureza corporal esteve intimamente relacionada


à aquisição de conhecimento sobre as forças geradoras da natureza externa,
sobre as plantas, os animais, a terra, a água e o ar.
Assim, elas não simplesmente emprenhavam e pariam crianças como vacas,
mas se apropriavam de suas próprias forças geradoras e produtivas, analisavam
e refletiam sobre suas próprias experiências e sobre as das mulheres anteriores
e as transmitiram para suas filhas. Isso significa que elas não foram vítimas in-
defesas das forças geradoras de seus corpos, mas aprenderam a influenciá-los,
incluindo o número de filhos que desejavam ter.
Dispomos hoje de evidências suficientes para concluir que as mulheres nas
sociedades pré-patriarcais tinham mais conhecimento sobre como regular o
número de filhos que queriam ter e a frequência dos nascimentos do que as
mulheres modernas, que perderam esse conhecimento com sua sujeição ao
processo civilizatório do capitalismo patriarcal (Elias, 1978).
Entre coletores, caçadores e outros grupos primitivos, existiam – e, em
parte, ainda existem hoje – vários métodos para limitar o número de nasci-
mentos e de crianças. Além do infanticídio, provavelmente o método mais
antigo (Fisher, 1978, p. 202), as mulheres de muitas sociedades usavam di-
versas plantas e ervas como anticoncepcionais ou para induzir abortos. As
indígenas ute usavam lithospermum, as mulheres bororo do Brasil usavam uma
planta que as tornava temporariamente estéreis. Os missionários persuadiram
as mulheres a não mais usar essa planta (Fisher, 1979, p. 204). Elizabeth Fisher
conta-nos sobre os métodos usados por mulheres aborígenes australianas, de
algumas tribos da Oceania e mesmo do antigo Egito, que foram os prede-
cessores dos anticoncepcionais modernos. As mulheres no Egito usavam uma
esponja vaginal embebida em mel para reduzir a mobilidade do esperma.
Havia também o uso de pontas de acácia, que continham um ácido esper-
micida (Fisher, 1979, p. 205).
Outro método de controle de natalidade amplamente utilizado entre
coletores e caçadores contemporâneos é o prolongamento do período de
amamentação. Robert M. May traz estudos que provam que, “em quase
todas as sociedades coletoras e caçadoras, a fertilidade é menor do que nas
sociedades civilizadas modernas. Por meio da lactação prolongada, a ovula-
ção é reduzida, o que leva a intervalos mais longos entre os nascimentos”.
Ele também observou que essas mulheres chegavam à puberdade mais tarde
MARI A MI ES 127

do que as mulheres “civilizadas”. May atribui o crescimento populacional


muito mais equilibrado, que pode ser observado ainda hoje entre muitas
tribos, desde que não estejam integradas à sociedade civilizada, a “práticas
culturais que, inconscientemente, contribuem para a redução da fertilidade”
(May, 1978, p. 491). Embora critique corretamente aqueles que pensam que
a baixa taxa de crescimento populacional em tais sociedades é resultado de
uma luta brutal pela sobrevivência, ele não chega a considerar essa situação
como resultado da apropriação consciente, por parte das mulheres, de suas
forças geradoras.56 Pesquisas feministas recentes revelaram que, antes da caça
às bruxas, as mulheres na Europa possuíam um conhecimento muito maior
sobre seus corpos e sobre contraceptivos do que temos hoje (Ehrenreich &
English, 1973, 1979).
A produção de vida nova, de novas mulheres e homens, por mulheres está
ligada inseparavelmente à produção dos meios de subsistência para essa vida
nova. As mães que parem e amamentam têm, necessariamente, que prover ali-
mento para si mesmas e para seus filhos. Assim, a apropriação de sua natureza
corporal, o fato de produzirem crianças e leite, faz delas também as primeiras
fornecedoras da alimentação cotidiana, seja como coletoras, que simplesmente
coletam o que encontram na natureza (plantas, pequenos animais, peixes etc.),
ou como agricultoras. A primeira divisão do trabalho por sexo, concretamen-
te aquela entre as atividades de coleta das mulheres e de caça esporádica dos
homens, tem sua origem muito provavelmente no fato de as mulheres serem
necessariamente responsáveis pela produção da subsistência diária. A coleta de
plantas, raízes, frutas, cogumelos, nozes, pequenos animais etc. foi, desde o
início, uma atividade coletiva das mulheres.
Sabe-se que a necessidade de prover a alimentação diária e a longa experi-
ência com as plantas e a vida vegetal levaram à invenção do cultivo regular de
grãos e tubérculos. De acordo com Gordon Childe, essa invenção ocorreu no
Neolítico, particularmente na Eurásia, onde os grãos silvestres foram cultiva-
dos pela primeira vez. Ele e muitos outros pesquisadores atribuem essa inven-
ção às mulheres, que também foram as inventoras das primeiras ferramentas
necessárias para esse novo modo de produção: a vara de cavar – que já estava

56 Isso não é surpreendente, pois May também usa o conceito de “fertilidade” no mesmo
sentido que a maioria dos demógrafos e planejadores familiares, ou seja, como resultado de um
comportamento fisiológico e inconsciente.
128 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

em uso para desenterrar raízes e tubérculos selvagens – e a enxada (Childe,


1976; Reed, 1975; Bornemann, 1975;Thomson, 1965; Chattopadhyaya, 1973;
Ehrenfels, 1941; Briffault, 1952).
O cultivo regular de plantas alimentícias, principalmente tubérculos e
grãos, significou uma nova etapa e um enorme aumento da produtividade
do trabalho das mulheres, a qual, segundo a maioria dos autores, tornou pos-
sível, pela primeira vez na história, a produção de excedente. Childe, portanto,
chama essa transformação, que ele atribui ao cultivo regular de grãos, de
revolução neolítica. Com base em descobertas arqueológicas recentes no Irã
e na Turquia, Elizabeth Fisher argumenta, no entanto, que teria sido possível
coletar um excedente de grãos silvestres e nozes já no estágio de coleta. A
pré-condição tecnológica para a coleta de excedentes foi a invenção de re-
cipientes, cestos de folhas e fibras vegetais e vasilhas. Parece plausível que a
tecnologia de preservação tenha precedido a nova tecnologia agrícola e sido
igualmente necessária para a produção de excedentes.
A diferença entre os dois modos de produção está, portanto, não tanto na
existência de um excedente, mas no fato de que as mulheres desenvolveram a
primeira relação realmente produtiva com a natureza. Enquanto as sociedades
coletoras ainda viviam da apropriação simples, com a invenção do cultivo de
plantas podemos falar pela primeira vez em uma “sociedade de produção”
(Sohn-Rethel, 1970). As mulheres não apenas coletavam e consumiam o que
crescia na natureza, mas também faziam as coisas crescerem.
A relação-objeto das mulheres com a natureza não era apenas produtiva,
mas também, desde o início, tratou-se de produção social. Ao contrário dos
homens, que podiam colher e caçar apenas para si mesmos, as mulheres ti-
nham de compartilhar seus produtos, ao menos com os filhos pequenos. Isso
significa que sua relação-objeto específica com a natureza (com sua própria
natureza corporal e com a natureza externa), a saber, a de serem capazes de
deixar crescer e fazer crescer, fez delas também as inventoras das primeiras relações
sociais, as relações entre mães e filhos.
Muitos autores chegaram à conclusão de que os grupos de mães e filhos
foram as primeiras unidades sociais. Não eram apenas unidades de consumo,
mas também unidades de produção. Mães e filhos trabalhavam juntos como
coletores e nos primeiros cultivos com a enxada. Esses autores concluíram
que os homens adultos foram apenas temporária e perifericamente integrados
MARI A MI ES 129

ou socializados nessas unidades matricêntricas ou matrísticas (Briffault, 1952;


Reed, 1975; Thomson, 1965).
Martin e Voorhies argumentam que essas unidades matricêntricas coinci-
diram com uma fase vegetariana da evolução dos hominídeos. “Os machos
adultos não mantinham nenhum vínculo permanente com essas unidades
mães-filhos para além do seu nascimento” (Martin & Voorhies, 1975, p. 174).
Isso significaria que a integração permanente dos machos nessas unidades
deve ser vista como resultado da história social. As forças produtivas desenvol-
vidas nessas primeiras unidades sociais não eram apenas de natureza tecnoló-
gica, mas eram, sobretudo, a capacidade de cooperação humana, e refletiam
a habilidade de “planejar o amanhã”, de antecipar o futuro, de aprender uns
com os outros, de passar esse conhecimento de uma geração para a outra e de
aprender com as experiências passadas, ou, em outras palavras, de constituir
a história.
Para resumir a relação-objeto historicamente desenvolvida das mulheres
com a natureza, podemos afirmar o seguinte:
a) Sua interação com a natureza, tanto com sua própria quanto com a exter-
na, foi um processo recíproco. Elas concebiam seus próprios corpos como
produtivos e criativos, da mesma forma que concebiam a natureza externa
como produtiva e criativa.
b) Embora se apropriem da natureza, essa apropriação não constitui uma re-
lação de dominação ou de propriedade. Elas não são proprietárias de seus
próprios corpos, nem da terra, mas cooperam com seus corpos e com a
terra para “deixar crescer e fazer crescer”.
c) Como produtoras de vida nova, elas também se tornaram as primeiras
produtoras de subsistência e as inventoras da primeira economia produ-
tiva. Isso implica, desde o início, a produção social e a criação de relações
sociais, ou seja, da sociedade e da história.

A RELAÇÃO-OBJETO DOS HOMENS COM A NATUREZA

A relação-objeto dos homens com a natureza, assim como a das mulheres,


tem tanto uma dimensão fisiológica quanto uma dimensão histórica. O lado
fisiológico dessa relação – que existe constantemente enquanto homens e
130 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mulheres estão vivos – significa que os homens se apropriam da natureza por


meio de um corpo qualitativamente diferente do das mulheres.
Eles não podem experienciar seus próprios corpos como produtivos da mes-
ma maneira que as mulheres. A produtividade corporal masculina não pode
aparecer como tal sem a mediação de meios externos, de ferramentas, enquanto
a produtividade da mulher pode. A contribuição dos homens para a produção
de vida nova, embora imprescindível, só pôde se tornar visível após um longo
processo histórico de ação dos homens sobre a natureza externa por meio de
ferramentas e de sua reflexão sobre esse processo. A concepção que os homens
possuem de sua própria natureza corporal e o imaginário que utilizam para
refletir sobre si mesmos são influenciados pelas diferentes formas históricas
de interação com a natureza externa e com os instrumentos utilizados nesse
processo de trabalho. Assim, a autoconcepção do homem como humano, ou
seja, como produtivo, está intimamente ligada à invenção e ao controle da
tecnologia. Sem ferramentas, o homem não é Homem.
Ao longo da história, a reflexão dos homens sobre sua relação-objeto com
a natureza externa encontrou expressão nos símbolos com os quais eles des-
creveram seus próprios órgãos sexuais. É interessante ver que o primeiro órgão
masculino que ganhou destaque como símbolo da produtividade masculina
foi o falo, e não a mão, embora a mão fosse o principal instrumento para a
fabricação de ferramentas. Isso deve ter acontecido no estágio em que o arado
substituiu a vara de cavar ou a enxada das primeiras cultivadoras. Em algumas
línguas indianas, existe uma analogia entre o arado e o pênis. No jargão ben-
gali, o pênis é chamado de “a ferramenta” (yantra). Esse simbolismo, é claro, não
expressa apenas uma relação instrumental com a natureza externa, mas tam-
bém com as mulheres. O pênis é a ferramenta, o arado, a “coisa” com a qual
o homem trabalha a mulher. Nas línguas do norte da Índia, as palavras para
“trabalho” e “coito” são a mesma: kam. Esse simbolismo também implica que
as mulheres se tornaram “natureza externa” para os homens. Elas são a terra,
o campo, os sulcos (sita) em que os homens depositam suas sementes (sêmen).
Mas essas analogias entre pênis e arado, semente e sêmen, campo e mulhe-
res não são apenas expressões linguísticas de uma relação-objeto instrumental
dos homens com a natureza e com as mulheres, elas indicam também que essa
relação-objeto já é caracterizada pela dominação. As mulheres já são definidas
como parte das condições físicas da produção (masculina).
MARI A MI ES 131

Não sabemos muito sobre as lutas históricas que ocorreram antes que a
relação-objeto dos homens com a natureza pudesse se estabelecer como uma
relação de produtividade superior à das mulheres. Mas as batalhas ideológicas,
registradas na literatura indiana antiga, que ocorreram ao longo de vários
séculos sobre a questão de se a natureza do “produto” (grãos, crianças) era
determinada pelo campo (mulher) ou pela semente (homem) nos permitem
entender que a subordinação da produtividade feminina à produtividade mas-
culina não foi de forma alguma um processo pacífico, e sim parte integrante
das lutas de classes e do estabelecimento de relações patriarcais de propriedade
sobre a terra, o gado e as mulheres (Karve, 1963).57
Seria bastante revelador estudar as analogias entre as palavras empregadas
para denominar os órgãos sexuais masculinos e as ferramentas que os homens
inventaram em diferentes épocas históricas e para diferentes modos de pro-
dução. Não é acidental que, em nossa época, os homens chamem seu pênis
de chave de fenda (eles “parafusam” a mulher), martelo, lima etc. No porto
de Rotterdam, um porto comercial, os órgãos sexuais masculinos são chama-
dos de “comércio”. Essa terminologia nos diz muito sobre como os homens
definem sua relação com a natureza e também com as mulheres e com seus
próprios corpos. É um indicativo da estreita ligação, na mente masculina,
entre seus instrumentos, seu processo de trabalho e a autoconcepção de seus
próprios corpos.
No entanto, antes que os homens pudessem conceber seus próprios cor-
pos como mais produtivos do que os das mulheres e estabelecer uma rela-
ção de dominação com as mulheres e a natureza externa, eles tiveram de
desenvolver um tipo de produtividade que ao menos parecesse independente
e superior à produtividade das mulheres. Como vimos, o aparecimento da
produtividade dos homens esteve intimamente ligado à invenção das ferra-
mentas. Ainda assim, os homens só poderiam desenvolver uma produtividade
(aparentemente) independente da das mulheres a partir da produtividade
feminina já desenvolvida.

57 Para maior discussão sobre a analogia semente-campo na literatura indiana antiga, ver tam-
bém Maria Mies, 1980, e Leela Dube, 1978.
132 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

A PRODUTIVIDADE FEMININA COMO PRÉ-CONDIÇÃO


PARA A PRODUTIVIDADE MASCULINA

Se tivermos em mente que “produtividade” significa a capacidade espe-


cífica dos seres humanos de produzir e reproduzir a vida em um processo
histórico, poderemos formular para nossa análise a tese de que a produtividade
feminina é a pré-condição para a produtividade masculina e para todo o de-
senvolvimento histórico mundial. Essa declaração tem uma dimensão material
atemporal, bem como uma dimensão histórica.
A primeira consiste no fato de que as mulheres, em qualquer momento histó-
rico, serão as produtoras de novas mulheres e homens e que sem essa produção
todas as outras formas e modos de produção perdem o sentido. Isso pode
parecer trivial, mas nos faz recordar o objetivo de toda a história humana.
O segundo significado da afirmação acima reside no fato de que as diversas
formas de produtividade que os homens desenvolveram no curso da história
não poderiam ter surgido se eles não tivessem usado e subordinado as várias
formas históricas de produtividade das mulheres.
A seguir, tentarei usar a tese acima como princípio orientador da análise
da divisão assimétrica do trabalho entre os sexos durante algumas das prin-
cipais fases da história humana. Isso nos ajudará a desfazer alguns dos mitos
comumente empregados para explicar a desigualdade social entre mulheres e
homens como dado natural.

O MITO DO HOMEM-CAÇADOR

A produtividade das mulheres é a pré-condição para toda a produtividade


humana, não apenas no sentido de que elas são sempre as produtoras de novos
homens e mulheres, mas também no sentido de que a primeira divisão social
do trabalho, aquela entre mulheres coletoras (mais tarde também cultivadoras)
e caçadores (predominantemente homens), só poderia ocorrer com base em
uma produtividade feminina já desenvolvida.
A produtividade feminina consistiu, sobretudo, na capacidade de prover
a subsistência diária, a garantia de sobrevivência, para os membros do clã
ou grupo. As mulheres tinham, necessariamente, de garantir o “pão de cada
MARI A MI ES 133

dia” não apenas para si mesmas e seus filhos, mas também para os homens
caso eles não tivessem sorte em suas expedições de caça, já que a caça é uma
“economia de risco”.
Vem sendo provado de forma conclusiva, particularmente pela pesquisa
crítica de acadêmicas feministas, que a sobrevivência da humanidade se deve
muito mais à “mulher-coletora” do que ao “homem-caçador”, em contraste
com o que pregam os velhos ou novos defensores do darwinismo social.
Mesmo entre as sociedades caçadoras e coletoras existentes, as mulheres
fornecem até 80% do alimento diário, enquanto os homens contribuem
com uma pequena parcela proveniente da caça (Lee & de Vore, 1976, citado
por Fisher, 1979, p. 48). Por meio de uma análise secundária de uma amos-
tra de caçadores e coletores do Murdock’s Ethnografic Atlas [Atlas Etnográfico
de Murdock], Martin e Voorhies provaram que 58% da subsistência dessas
sociedades foram proporcionados pela coleta, 25% pela caça e o restante
pela coleta e caça juntas (1975, p. 181). As mulheres tiwi, na Austrália, que
são caçadoras e coletoras, obtêm 50% de seu alimento com a coleta, 30%
com a caça e 20% com a pesca. Jane Goodale, que estudou as mulheres tiwi,
afirmava que a caça menor e a coleta eram as atividades produtivas mais
importantes:

[...] as mulheres não só podiam, como efetivamente forneciam a maior par-


te do suprimento diário com uma variedade de alimentos para os membros
de seu acampamento [...] A caça dos homens requeria habilidade e força
consideráveis, mas os pássaros, os morcegos, os peixes, os crocodilos, os du-
gongos e as tartarugas com que contribuíram eram artigos mais luxuosos
do que básicos. (Goodale, 1971, p. 169)

Fica evidente a partir desses exemplos que, entre os atuais povos caçadores
e coletores, a caça não tem de forma alguma a importância econômica que
geralmente é atribuída a ela e que as mulheres são as provedoras da maior par-
te dos alimentos básicos diários. Na verdade, todos os caçadores da caça maior,
se quiserem sair em uma expedição, dependem dos alimentos providos pelas
mulheres, alimentos estes que não são produzidos pela caça. Essa é a razão pela
qual as antigas mulheres iroquesas tinham voz nas tomadas de decisão relativas
a guerras e expedições de caça. Caso elas se recusassem a dar aos homens a
134 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

provisão de alimento necessária para suas aventuras, os homens teriam de ficar


em casa (Leacock, 1978; Brown, 1970).
Elisabeth Fischer nos dá outros exemplos de povos coletores ainda existen-
tes entre os quais as mulheres são as principais provedoras do alimento diário,
particularmente nas zonas de clima temperado e do sul. Ela argumenta ainda
que a coleta de alimentos vegetais era mais importante para nossos primeiros
ancestrais do que a caça. Fischer se refere ao estudo de coprólitos, excremen-
tos fósseis, que revelam que grupos que viveram há duzentos mil anos na costa
sul da França sobreviviam principalmente com uma dieta à base de mariscos,
mexilhões e grãos, e não de carne. Coprólitos de doze mil anos encontrados
no México sugerem que o milheto era o principal alimento básico naquela
região (Fisher, 1979, p. 57-58).
Embora seja óbvio, a partir desses exemplos, assim como do senso comum,
que a humanidade não teria sobrevivido se a produtividade do homem-ca-
çador tivesse sido a base para a subsistência diária das primeiras socieda-
des, a noção de que o homem-caçador teria sido o inventor das primeiras
ferramentas, o provedor dos alimentos, o inventor da sociedade humana e
protetor de mulheres e crianças persiste não apenas na literatura popular e
nos filmes, mas também entre cientistas sociais sérios, e até mesmo entre
pesquisadores marxistas.58
A hipótese do homem-caçador foi popularizada especialmente por antro-
pólogos e behavioristas e, recentemente, por sociobiologicistas que seguem a
linha de pensamento evolucionista desenvolvida por Raymond Dart, antro-
pólogo sul-africano que sustentou que os primeiros hominídeos teriam feito
suas primeiras ferramentas dos ossos de membros mortos de seu próprio gru-
po (Fisher, p. 49-50). Seguindo essa hipótese, Konrad Lorenz (1963), Robert
Ardrey (1966, 1976), Lionel Tiger e Robin Fox (1971) argumentam que a
caça foi o motor do desenvolvimento humano e que a relação de dominação
existente entre mulheres e homens teria origem na “infraestrutura biológica”
dos caçadores da Idade da Pedra (Tiger & Fox, 1971). De acordo com esses
autores, o caçador (homem) não é apenas o inventor das primeiras ferramen-
tas – que, naturalmente, são armas –, mas também da posição ereta, pois o

58 Ver, por exemplo, Kathleen Gough, “The Origin of the Family” [A origem da família], em
Rayna Reiter (ed.), Toward an Anthropology of Women [Para uma antropologia das mulheres].
Nova York, 1975.
MARI A MI ES 135

homem-caçador precisava ter as mãos livres para o lançamento de projéteis.


Segundo eles, o homem também era o provedor de alimentos, o protetor das
mulheres fracas e dependentes, o engenheiro social, o inventor de normas e
sistemas hierárquicos que têm apenas um objetivo: coibir a agressividade bio-
logicamente programada dos machos em sua luta pelo controle da sexualidade
das fêmeas. Eles traçam uma linha direta entre o comportamento observado
de alguns dos primatas e o comportamento do macho humano, e afirmam
que os primatas machos se esforçam para chegar ao topo da hierarquia mas-
culina para que possam submeter as fêmeas à sua satisfação sexual.

Os esforços do primata humano para chegar ao topo da hierarquia mascu-


lina, os quais aparentam ser ligeiramente diferentes daqueles dos primatas,
mas que, na verdade, são fundamentalmente distintos, têm como objetivo
obter controle sobre as mulheres de seu grupo para poder trocá-las com as
mulheres de outro grupo. Assim, ele obtém sua própria satisfação sexual e van-
tagens políticas. (Tiger & Fox, 1971, destaque dos autores)

A realização “cultural” desses primatas-caçadores humanos parece ser a


de que eles ascenderam (ou “evoluíram”) do “estágio do estupro” para o
da “troca de mulheres”. A relação de dominação exploratória entre homens
e mulheres foi enraizada na “infraestrutura biológica” do comportamento
do caçador: os homens são os provedores de carne, pela qual as mulheres
estão ávidas. Assim, os caçadores teriam sido capazes de submeter e subordi-
nar permanentemente as mulheres como objetos sexuais e abelhas operárias.
Essa enorme vantagem dos caçadores sobre as mulheres teria sido alcançada,
segundo esses autores, pelo “princípio de cooperação”, que evoluiu a partir
da caça, dentro dos grupos caçadores. Tiger já anunciava a ideia do princípio
da “cooperação masculina” como a raiz da supremacia masculina em seu li-
vro Men in Groups [Homens em grupos] (1969), escrito quando os Estados
Unidos estavam em meio a outra aventura do homem-caçador, a Guerra do
Vietnã. Embora soubesse, como aponta Evelyn Reed, que a carne compunha
apenas uma pequena parte da dieta babuína, ele afirma que a caça e o consu-
mo de carne constituem o fator decisivo da evolução dos primatas pré-huma-
nos, e que os padrões de cooperação masculina refletem e surgem da história
do homem como caçador.
136 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Na situação de caça, era o grupo caçador do macho-mais-macho-mais-ma-


cho que garantia a sobrevivência de toda a comunidade produtiva. Por isso,
o vínculo homem-homem foi tão importante para as necessidades da caça
quanto o vínculo homem-mulher para as necessidades reprodutivas, e essa
é a base da divisão do trabalho por sexo. (Tiger, 1969, p. 122, 126)

O modelo do homem-caçador como paradigma da evolução humana está


na base de inúmeros trabalhos científicos sobre as relações humanas e foi po-
pularizado pelos meios de comunicação modernos. Esse modelo influenciou
o pensamento de milhões de pessoas e ainda é constantemente utilizado para
explicar as causas das desigualdades sociais. As pesquisadoras feministas desafia-
ram a validade desse modelo por meio de suas próprias pesquisas, assim como
das de outras autoras e autores. Elas desmascararam esse modelo, incluindo
suas premissas básicas acerca do princípio da cooperação masculina, da impor-
tância da carne como alimento etc., como uma projeção sexista das relações
sociais modernas, capitalistas e imperialistas, sobre a pré-história e as primei-
ras fases da história. Essa projeção serve para legitimar as relações existentes
de exploração e dominação entre homens e mulheres, classes e povos como
universais, atemporais e “naturais”. Evelyn Reed denunciou acertadamente a
orientação fascista oculta desse modelo, particularmente nos escritos de Tiger
e sua exaltação da guerra (Reed, 1978).
Embora sejamos capazes de desmistificar a hipótese do homem-caçador e
demonstrar que os grandes caçadores não teriam sido capazes de sobreviver
sem a produção diária de subsistência das mulheres, ainda estamos diante da
questão de por que as mulheres, apesar de sua produtividade econômica su-
perior como coletoras e agricultoras, não foram capazes de impedir o estabe-
lecimento de uma relação hierárquica e exploratória entre os sexos.
Se fizermos a pergunta dessa forma, presumimos que o poder político
emerge automaticamente do poder econômico. A discussão anterior demons-
trou que tal suposição não pode ser mantida, já que a supremacia masculina
não surgiu de uma contribuição econômica superior.
A seguir, tentarei encontrar uma resposta para a pergunta acima olhando
mais de perto para algumas das ferramentas inventadas e usadas por mulheres
e homens.
MARI A MI ES 137

FERRAMENTAS DE MULHERES, FERRAMENTAS DE HOMENS

O modelo do homem-caçador é a versão mais recente do modelo do


homem-fabricante-de-ferramentas. À luz desse modelo, as ferramentas são
sobretudo armas, ferramentas para matar.
As primeiras ferramentas da humanidade, os machados, raspadores e lascas
de pedra, tinham caráter ambivalente. Podiam ser usadas para moer, esmagar
ou pulverizar grãos e outros alimentos vegetais ou para desenterrar raízes, mas
também podiam ser empregadas para matar pequenos animais, e podemos as-
sumir que eram usadas tanto por homens quanto mulheres para ambos os fins.
Contudo, a invenção das armas propriamente ditas (projéteis, arcos e flechas)
é um indicativo de que a matança de animais se tornou a principal especiali-
zação de uma parte da sociedade, especialmente dos homens. Os adeptos da
hipótese do homem-caçador são da opinião de que as primeiras ferramentas
foram inventadas pelos homens. Ignoram as invenções das mulheres, ligadas à
produção de subsistência. Mas, como foi discutido anteriormente, as primeiras
invenções foram provavelmente recipientes e cestas feitas de folhas, cascas e
fibras e, depois, frascos. A vara de cavar e a enxada foram as principais ferra-
mentas de coleta, assim como das primeiras formas de agricultura. As mulhe-
res provavelmente continuaram utilizando sua tecnologia enquanto homens
desenvolviam ferramentas especializadas para a caça.
O importante aqui é notar que a tecnologia das mulheres permaneceu
produtiva no verdadeiro sentido da palavra: elas produziam algo novo. A tec-
nologia de caça, por outro lado, não é produtiva, ou seja, os equipamentos
de caça não podem ser usados para nenhuma outra atividade produtiva – ao
contrário do machado de pedra. Os arcos e flechas e as lanças são basicamente
meios de destruição. Seu significado reside no fato de que podem ser usados
não apenas para matar animais, mas também seres humanos. Foi essa caracte-
rística das ferramentas de caça que se tornou decisiva no desenvolvimento da
produtividade masculina, assim como das relações sociais desiguais e explo-
ratórias, e não o fato de que os caçadores, como provedores de carne, teriam
sido capazes de elevar o padrão de nutrição da comunidade.
Portanto, concluímos que o significado da caça não reside em sua produ-
tividade econômica como tal, como é erroneamente presumido por muitos
teóricos, mas na particular relação-objeto com a natureza que ela constitui. A
138 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

relação-objeto do homem-caçador com a natureza é completamente distinta


daquela da mulher-coletora ou agricultora. As características dessa relação-
-objeto são as seguintes:
a) As principais ferramentas dos caçadores não são instrumentos para produ-
zir a vida, mas para destruí-la. Suas ferramentas não são, basicamente, meios
de produção, mas de destruição, e também podem ser usadas como meio
de coerção contra outros seres humanos.
b) Isso confere aos caçadores um poder sobre os seres vivos, tanto sobre os
animais quanto sobre os seres humanos, que não nascem de seu próprio
trabalho produtivo. Eles podem se apropriar não apenas de frutas e plantas
(como as coletoras) e de animais, mas também de outros produtores (mu-
lheres), com a força de suas armas.
c) A relação-objeto mediada pelas armas é, portanto, basicamente, predatória
ou exploratória: caçadores se apropriam da vida, mas não podem produzi-la.
Trata-se de uma relação antagônica e não recíproca. Todas as relações ex-
ploratórias posteriores entre produção e apropriação são, em última análise,
mantidas pelas armas como meio de coerção.
d) A relação-objeto com a natureza mediada pelas armas constitui uma re-
lação de dominação, e não de cooperação. Essa relação de dominação se
tornou um elemento que integra todas as relações de produção que os
homens estabeleceram. Tornou-se, de fato, o principal paradigma de sua
produtividade. Sem dominação e controle sobre a natureza, os homens não
podem conceber a si mesmos como produtivos.
e) A “apropriação do natural” (Marx) passa a ser um processo de apropriação
unilateral, no sentido de estabelecer relações de propriedade, as quais não
visam à humanização, mas à exploração da natureza.
f) Por meio das armas, os caçadores não só podiam caçar animais, mas tam-
bém invadir outras comunidades de produtores de subsistência, sequestrar
suas trabalhadoras jovens e desarmadas e se apropriar delas. Podemos afir-
mar que as primeiras formas de propriedade privada não foram as exerci-
das sobre o gado ou outros alimentos, mas sobre mulheres escravizadas que
haviam sido sequestradas (Meillassoux, 1975; Bornemann, 1975).

Nesse ponto, é importante salientar que não é a tecnologia da caça em si mesma


a responsável pela constituição de uma relação exploratória e de dominação
MARI A MI ES 139

entre homem e natureza, entre homem e homem e entre homem e mulher.


Estudos recentes sobre sociedades caçadoras ainda existentes mostraram que
os caçadores não têm uma relação agressiva com os animais que caçam. Os
pigmeus, por exemplo, parecem ser extremamente pacíficos e não conhecer
guerras, disputas ou bruxaria (Turnbull, 1961). Suas expedições de caça não
são agressivas, mas acompanhadas de sentimentos de compaixão pelos animais
que têm de matar (Fisher, 1979, p. 53).
Isso significa que o surgimento de uma tecnologia de caça especializa-
da implica apenas a possibilidade de estabelecer relações de exploração e do-
minação. Parece que, enquanto permaneceram confinados ao seu limitado
contexto de coleta e caça, os caçadores não puderam perceber o potencial
exploratório de seu modo de produção predatório. Sua contribuição econômica
não era suficiente; eles continuaram dependentes, para sua sobrevivência, da
produção de subsistência das mulheres.

PASTORES NÔMADES

Embora possa ter havido desigualdade entre homens e mulheres, os caça-


dores não foram capazes de estabelecer um sistema de dominação plenamente
desenvolvido. As “forças produtivas” dos caçadores só puderam ser totalmente
liberadas quando pastores nômades, que domesticaram o gado e as mulheres,
invadiram as comunidades agrícolas. Isso significa que a plena realização da
capacidade “produtiva” desse modo de produção predatório pressupõe a exis-
tência de outros modos de produção realmente produtivos, como a agricultura.
Elizabeth Fisher acredita que uma relação de dominação entre homens e
mulheres só poderia ser estabelecida depois de os homens descobrirem suas
próprias capacidades geradoras. Essa descoberta, segundo ela, caminhou de
mãos dadas com a domesticação – e particularmente com a reprodução – dos
animais como um novo modo de produção. Os pastores descobriram que um
touro poderia fecundar muitas vacas, e isso pode ter levado à castração e elimi-
nação dos animais mais fracos. O touro era então utilizado nos períodos que os
pastores nômades consideravam como os mais apropriados para emprenhar as
vacas. As fêmeas desses animais eram submetidas à coerção sexual. Isso significa
que a sexualidade livre dos animais silvestres foi submetida a uma economia
140 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

coercitiva, baseada na reprodução, com o objetivo de aumentar os rebanhos.


É provável que a criação de haréns, o sequestro e o estupro de mulheres e o
estabelecimento da linhagem patriarcal e da herança fizessem parte desse novo
modo de produção. As mulheres foram submetidas à mesma lógica econômica
e se tornaram parte da propriedade intercambiável; tornaram-se bens móveis.
Esse novo modo de produção, contudo, foi possível graças a duas coisas: o
monopólio dos homens sobre as armas e a longa observação do comporta-
mento reprodutivo dos animais. Quando os homens começaram a manipular
o comportamento reprodutivo dos animais, descobriram suas próprias capa-
cidades geradoras. Isso levou a uma mudança em sua relação com a natureza,
assim como a uma mudança na divisão sexual do trabalho. Para os pastores
nômades, as mulheres já não tinham muita importância como produtoras
ou coletoras de alimentos tal qual entre os caçadores. Elas eram necessárias
como reprodutoras de crianças, particularmente do sexo masculino. Sua pro-
dutividade passa então a ser reduzida à sua “fertilidade”, que é apropriada e
controlada pelos homens (cf. Fisher, 1979, p. 248 ss.).
Em contraste com a economia das sociedades caçadoras e coletoras, que
é do tipo apropriadora, a economia dos pastores nômades é uma “economia
produtiva” (Sohn-Rethel). Mas é óbvio que esse modo de produção pres-
supõe a existência de meios de coerção para a manipulação de animais e seres
humanos e para assegurar a extensão de seu território.

AGRICULTORES

Provavelmente, o mais correto a dizer é que os pastores nômades foram os


pais de todas as relações de dominação, principalmente as estabelecidas pelos
homens sobre as mulheres. Mas há dados suficientes que sugerem que relações
de exploração entre homens e mulheres também existiam entre as primeiras
sociedades agricultoras, não apenas após a introdução do arado, como acre-
dita Esther Boserup (1970), mas também entre os que utilizavam a enxada
em seus cultivos na África, onde ainda hoje a agricultura é feita principal-
mente por mulheres. Meillassoux (1974) aponta que em tais sociedades, que
ele caracterizou como “economias domésticas”, os homens velhos ocupavam
uma posição que lhes permitia estabelecer uma relação de domínio sobre os
MARI A MI ES 141

homens e as mulheres mais jovens, já que poderiam adquirir mais esposas


para trabalhar apenas para eles. O sistema matrimonial era o mecanismo pelo
qual eles acumulavam mulheres e riquezas, que, de fato, estavam intimamente
relacionadas. Meillassoux, seguindo Lévi-Strauss, toma como certa a existência
de um sistema desigual de troca de mulheres e menciona apenas de passagem
as prováveis raízes desse sistema, a saber, o fato de que, devido à permanente
produção de subsistência das mulheres, os homens ficavam livres para realizar
de tempos em tempos as expedições de caça. Nessas economias domésticas,
a caça era, para os homens, mais uma atividade esportiva e política do que
econômica. Em suas expedições, os homens também sequestravam mulheres
coletoras e homens jovens de outras aldeias ou tribos.
Em um estudo recente sobre a escravidão na África pré-colonial editado
por Meillassoux, podem ser encontrados inúmeros exemplos que mostram que
tais caçadores não apenas sequestravam e se apropriavam de pessoas que surpre-
endiam na selva, mas também organizavam razias59 regulares em outras aldeias
para sequestrar mulheres. As mulheres de que se apropriavam não se tornavam
parte da comunidade, mas eram geralmente apropriadas para interesses pessoais
do líder da expedição, que as usava como escravas para trabalhar para ele ou
as vendia pelo valor do dote para outras aldeias. As mulheres sequestradas se
tornavam, assim, uma fonte direta para a acumulação de propriedade privada.
Portanto, a escravidão não surgiu, obviamente, do comércio, mas do mo-
nopólio masculino das armas. Antes que escravas e escravos pudessem ser
comprados e vendidos, tinham de ser capturados e apropriados por um amo
pela força das armas. Essa forma predatória de aquisição de força de trabalho,
tanto para trabalhar em terras “privadas” como para a venda, foi considerada a
atividade mais “produtiva” desses guerreiros-caçadores, que, é preciso ter em
mente, já não eram caçadores e coletores, mas viviam em um sistema econô-
mico baseado no trabalho agrícola produtivo das mulheres; eles eram os “ma-
ridos” das agricultoras. Sua produtividade foi descrita por um ancião samo de
Alto Volta60 como a produtividade do arco e flecha, pela qual todos os outros
produtos – milho, feijão etc. e mulheres – podiam ser obtidos:

59 Invasão de território inimigo ou estrangeiro para saque de animais e alimentos e/ou rapto
de pessoas. [N. das T.]

60 Atual Burquina Fasso. [N. das T.]


142 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Nossos ancestrais nasceram com sua enxada, seu machado, seu arco e flecha.
Sem um arco você não pode trabalhar na selva. Com o arco você adquire
o mel, o amendoim, o feijão e depois uma mulher, depois os filhos e, en-
tão, você pode comprar animais domésticos, cabras, ovelhas, burros, cavalos.
Essas eram as riquezas do passado.Você trabalhava com arco e flecha na selva
porque sempre poderia haver alguém que poderia surpreendê-lo e matá-lo.

Segundo o mesmo ancião, havia “comandos” de cinco ou seis homens que


vagavam pela selva tentando surpreender e sequestrar mulheres e homens
que estivessem sozinhos. Os sequestrados eram depois vendidos (Heritier, em
Meillassoux, 1975, p. 491).
Essa passagem mostra nitidamente que os homens samo concebiam sua
própria produtividade em termos de armas, com as quais surpreendiam cole-
toras e coletores sozinhos na selva para vendê-los. A razão para isso era: o que
havia sido capturado de surpresa na selva era propriedade (propriedade privada).
Essa propriedade privada era apropriada pela linhagem do chefe hereditário
(outrora a linhagem dos fazedores de chuva), que então vendia as cativas e
cativos para outras linhagens, como esposas (nesse caso, em troca de um pa-
gamento em cauris61) ou como escravas e escravos para o trabalho agrícola,
ou os devolvia às suas aldeias em troca de um pagamento pelo resgate. Esses
ataques foram, portanto, um meio para que alguns homens acumulassem mais
riqueza do que outros homens.
As escravas eram preferidas e tinham um preço mais alto porque eram pro-
dutivas de duas maneiras: eram trabalhadoras agrícolas e podiam produzir mais
escravos. Os samo geralmente matavam os homens nessas incursões entre as
aldeias porque não tinham nenhum uso econômico para eles. Mas as mulheres
e crianças eram capturadas, escravizadas e vendidas.
Jean Bazin, que estudou a guerra e a escravidão entre os segu, considera
que a captura de escravos por guerreiros era a atividade “mais produtiva” dos
homens dessa tribo.

A produção de escravos é de fato uma atividade produtiva [...] de toda a


atividade predatória, esta é a única atividade efetivamente produtiva, porque

61 Conchas também conhecidas como búzios. [N. das T.]


MARI A MI ES 143

a pilhagem de bens é apenas uma mudança de mãos e de lugar. O ponto


máximo dessa produção é o exercício da violência contra o indivíduo para
isolá-lo de seu entorno local e social (idade, sexo, familiares, alianças, linha-
gem, clientela, povoado). (Bazin, em Meillassoux, 1975, p. 142)

Com base em seus estudos entre os tuaregue, Pierre Bonte chegou à con-
clusão de que a escravidão foi a pré-condição para que as “economias domés-
ticas” se expandissem e se tornassem economias mais diversificadas, em que há
grande demanda por mão de obra. Ele vê a escravidão como “o resultado e os
meios de uma troca desigual” (Bonte, em Meillassoux, 1975, p. 54).
Os exemplos da África pré-colonial deixam claro que o modo predatório
de produção dos homens, baseado no monopólio das armas, só poderia se
tornar “produtivo” com a existência de alguma outra economia de produção,
geralmente feminina, que pudesse ser assaltada; por isso, podemos caracteri-
zá-lo como produção não produtiva. Os exemplos também mostram a estreita
ligação entre pilhagem, saque e roubo, de um lado, e comércio, do outro. Os
bens comercializados ou trocados por dinheiro (conchas cauri) não eram o ex-
cedente produzido além do necessário para a comunidade; o excedente era, na verdade,
definido como o que foi roubado e apropriado por meio das armas.
Em última análise, podemos atribuir a divisão assimétrica do trabalho en-
tre mulheres e homens a esse modo de produção predatório, ou melhor, de
apropriação, que se baseia no monopólio masculino dos meios de coerção, ou
seja, das armas e da violência direta por meio das quais relações permanentes
de exploração e dominação entre os sexos foram criadas e mantidas.
Esse conceito de excedente vai além do desenvolvido por Marx e Engels. A
existência de um excedente constitui, segundo eles, a pré-condição histórico-
-material crucial para o desenvolvimento de relações sociais exploratórias, ou
seja, de relações de classe. Eles atribuem esse surgimento de um excedente ao
desenvolvimento de meios de produção mais “produtivos”. Nas sociedades que
podiam produzir mais do que o necessário para sua própria subsistência, alguns
grupos de pessoas podiam se apropriar desse excedente e, com isso, estabelecer
relações de classe duradouras, baseadas nas relações de propriedade. Esse con-
ceito não explica como e por quais meios essa apropriação do excedente ocor-
reu. Temos suficientes evidências empíricas, a partir de fontes etnológicas, para
demonstrar que a existência de excedente per se não leva a uma apropriação
144 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

unilateral por parte de um grupo ou classe de pessoas (cf. potlatch ou sacrifícios).


Obviamente, a definição do que é “necessário” e do que é “excedente” não é
uma questão puramente econômica, mas política e/ou cultural.
Da mesma forma, seguindo essa análise, exploração não é apenas a apropria-
ção unilateral do excedente produzido além do que é necessário à sobrevivên-
cia de uma comunidade, mas também o roubo, a pilhagem e o saque do que é
necessário à sobrevivência de outras comunidades. Esse conceito de exploração,
portanto, implica sempre uma relação criada e mantida, em última análise, pela
coerção e pela violência.
Disso se depreende que o estabelecimento de classes baseado na apropria-
ção unilateral de “excedente” (como eu o defini) está intrinsecamente entre-
laçado com o estabelecimento do controle patriarcal sobre as mulheres como
principais “produtoras de vida” em seus dois aspectos.
Esse modo de apropriação predatório e não produtivo tornou-se o para-
digma de todas as relações históricas de exploração entre os seres humanos.
Seu principal mecanismo é transformar produtoras e produtores humanos au-
tônomos em condições de produção para outros, ou defini-los como “recur-
sos naturais” para outros. É importante destacar a especificidade histórica desse
paradigma patriarcal. O patriarcado não se desenvolveu de forma universal em
todo o planeta, mas em sociedades patriarcais distintas. Elas incluem a judia, a
ariana (indo-europeia), a árabe, a chinesa e suas respectivas religiões principais.
O surgimento e a universalização de todas essas civilizações, particularmente
da judaico-europeia, baseiam-se na guerra e na conquista. A Europa não foi
invadida por africanos, mas a África foi invadida por predadores europeus. Isso
também significa que teremos de abandonar, em nossa análise do patriarcado,
o conceito de história como um processo linear e universal, que evolui por
estágios sucessivos em todos os lugares, desde o comunismo primitivo, pas-
sando pela barbárie, pelo feudalismo, em direção ao capitalismo, ao socialismo
e ao comunismo.

O “HOMEM-CAÇADOR” NO FEUDALISMO E NO CAPITALISMO

Todo o potencial do modo predatório, baseado em uma divisão patriarcal


do trabalho, só poderia ser realizado sob o feudalismo e o capitalismo.
MARI A MI ES 145

O modo predatório patriarcal de apropriação de produtoras e produtores,


de produtos e meios de produção não foi totalmente abolido quando novos
modos de produção, aparentemente “menos violentos”, substituíram os mais
antigos. Na verdade, eles foram transformados e dialeticamente preservados,
reaparecendo sob novas formas de controle do trabalho.
Da mesma maneira, as novas formas de divisão sexual patriarcal do trabalho
não substituíram as antigas, mas apenas as transformaram de acordo com as
exigências dos novos modos de produção. Nenhum dos modos de produção
que surgiram posteriormente na história da civilização eliminou a aquisição
predatória e violenta, por parte de não produtores, de produtoras e produtores,
de meios de produção e de produtos. As relações posteriores de produção
têm a mesma estrutura básica de relações assimétricas e exploradoras. Apenas
as formas de dominação e apropriação mudaram. Assim, em vez de utilizar
ataques violentos e escravidão para adquirir mais mulheres como trabalhadoras
e produtoras do que apenas as nascidas em uma comunidade, sistemas de ca-
samento hipergâmico62 foram desenvolvidos, o que garantiu que os Homens
Grandes pudessem ter acesso não apenas a mais mulheres de sua própria
comunidade ou classe, mas também às mulheres dos “homens pequenos”. As
mulheres se tornaram mercadoria em um mercado matrimonial assimétrico
ou desigual, já que o controle sobre mais mulheres significava acúmulo de
riqueza (Meillassoux, 1975). Os Homens Grandes (o Estado) tornaram-se
então os gestores da reprodução social, assim como da produção. Em todas as
civilizações patriarcais, a relação entre homens e mulheres manteve seu cará-
ter coercitivo e apropriador. A divisão assimétrica do trabalho por sexo, uma
vez estabelecida mediante o uso da violência, foi então mantida por meio
de instituições, como a família patriarcal e o Estado, e também de poderosos
sistemas ideológicos, como as religiões patriarcais, o direito e a medicina, que
definiram as mulheres como parte da natureza que deve ser controlada e do-
minada pelo homem.
O modo predatório de aquisição viveu um renascimento durante o pe-
ríodo do feudalismo europeu. O feudalismo como um modo específico de
produção baseado na propriedade da terra foi construído com o uso exten-

62 Casamento de pessoas de classe ou casta inferior com outra(s) de classe ou casta superior.
[N. das T.]
146 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

sivo da violência e da guerra. Se houvesse apenas os processos endógenos de


diferenciação de classes nas sociedades camponesas, o feudalismo não teria se
desenvolvido como tal, pelo menos não sua versão europeia, que figura como
o “modelo” de feudalismo. A forma predatória de aquisição de novas terras
e o uso em larga escala da pilhagem e do saque pela classe feudal armada
constituem uma parte inseparável e uma pré-condição para o surgimento e
manutenção desse modo de produção (Elias, 1978; Wallerstein, 1974).
Posteriormente, não só novas terras foram adquiridas dessa maneira, mas,
com elas, os meios ou condições de produção – as camponesas e os campo-
neses – também foram apropriados e vinculados ao senhor feudal em uma
relação de produção específica, que não lhes permitia deixar a terra em que
trabalhavam. Eles eram vistos como parte da terra. Assim, não apenas as mu-
lheres dos camponeses, mas também os próprios camponeses eram “definidos
como natureza”, ou seja, tinham, para o senhor feudal, um status semelhante ao
das mulheres: seus corpos, assim como a terra, não pertenciam a eles, mas ao
senhor. Essa relação é perfeitamente preservada no termo alemão com o qual
o servo é descrito: Leibeigener, ou seja, alguém cujo corpo (Leib) é proprieda-
de (Eigentum) de outra pessoa. Apesar da mudança de uma aquisição violen-
ta direta de terra e dos camponeses que trabalhavam nela para uma relação
“pacífica” de violência estrutural ou, o que dá no mesmo, para uma relação de
dominação entre senhor e servo, os senhores feudais nunca abandonaram suas
armas ou seu poder militar para expandir e defender suas terras e suas riquezas,
não só contra os inimigos externos, mas também contra as rebeliões inter-
nas. Isso significa que, embora houvesse mecanismos “pacíficos” de controle
efetivo do trabalho, na verdade, sob o feudalismo, essas relações de produção
foram estabelecidas e mantidas por meio do monopólio dos meios de coerção de
que a classe dominante desfrutava. O paradigma social do homem-caçador/
guerreiro continuou sendo a base e recurso último desse modo de produção.
Pode-se dizer o mesmo do capitalismo. Quando a acumulação de capital
se tornou o motor dominante da atividade produtiva, em contraste com a
produção de subsistência, o trabalho assalariado tendeu a se tornar a forma
dominante de controle do trabalho. Essas relações de produção aparentemente
“pacíficas”, baseadas em mecanismos de coerção econômica (violência estrutural),
só poderiam ser construídas sobre a base de uma enorme expansão do modo
predatório de aquisição. A aquisição direta e violenta de ouro, prata e outros
MARI A MI ES 147

produtos, principalmente na América hispânica, e de produtores – primeiro os


indígenas na América Latina, depois os escravizados africanos – provou ser a
atividade mais “produtiva” no período descrito como “acumulação primitiva”.
Assim, o capitalismo não acabou com as antigas formas “selvagens” de con-
trole sobre a capacidade produtiva humana, mas as reforçou e generalizou: “A
escravidão em larga escala ou o trabalho forçado para a produção de valor de
troca é uma instituição preponderantemente capitalista, traçada nos primeiros
estágios pré-industriais de uma economia capitalista mundial” (Wallerstein,
1974, p. 88).
Essa instituição também se baseava no monopólio de armas eficazes e na
existência de zonas de reprodução de “gado humano” em quantidade sufi-
ciente para ser caçado, apropriado e subjugado. Isso inclui a redefinição da
relação da burguesia europeia em ascensão com a natureza e com as mulheres.
Enquanto nas relações pré-capitalistas de produção, baseadas na propriedade
da terra, as mulheres e os camponeses eram/são definidos como “terra” ou
partes da terra, assim como a natureza era identificada com a Mãe Terra e suas
plantas, nos primeiros estágios do capitalismo os escravizados eram definidos
como “gado”, e as mulheres como as “reprodutoras” desse gado.Vimos que os
pastores nômades também definiam as mulheres principalmente como repro-
dutoras, não de força de trabalho, mas principalmente de herdeiros do sexo
masculino. Mas o que distingue fundamentalmente os primeiros patriarcas
pastores dos primeiros patriarcas capitalistas é o fato de que os últimos não
estão absolutamente preocupados com a produção da força de trabalho e
com as “reprodutoras” dessa força de trabalho. Em primeiro lugar porque
o capitalista não é um produtor, mas um apropriador, que segue o paradig-
ma da aquisição predatória, pré-condição para o desenvolvimento das forças
produtivas capitalistas. Enquanto as classes dominantes entre os pastores e os
senhores feudais ainda tinham consciência de sua dependência da natureza,
o que incluía as mulheres (as quais eles tentaram influenciar com a magia e a
religião), a classe capitalista se viu desde o início como o amo e o senhor da
natureza (cf. Merchant, 1983). Só agora surgiu um conceito de natureza que
generalizou a relação de dominação do homem-caçador com a natureza. A
divisão do mundo que se seguiu definiu certas partes como “natureza”, isto é,
como selvagens, descontroladas e, portanto, abertas à exploração e aos esforços
civilizatórios, e outras como “humanas”, ou seja, já controladas e domestica-
148 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

das. Os primeiros capitalistas estavam interessados apenas na força física dos


escravos, em sua energia para trabalhar. A natureza, para eles, era um reserva-
tório de matérias-primas, e as mulheres africanas, uma reserva aparentemente
inesgotável de energia humana.
A passagem de relações de produção baseadas em um padrão senhor-servo
para uma relação de caráter contratual entre capital e trabalho assalariado não
teria sido possível sem o uso da violência em larga escala e a “definição como
natureza explorável” de vastas áreas do globo e seus habitantes. Isso permi-
tiu aos capitalistas “alçar voo” e fazer concessões aos trabalhadores europeus
graças à pilhagem das colônias e à exploração de pessoas escravizadas (ver
capítulo 3).
De fato, poderíamos dizer que na mesma medida em que as trabalhadoras e
os trabalhadores dos Estados centrais europeus adquiriram sua “humanidade”,
foram “humanizados”, ou “civilizados”, as trabalhadoras e os trabalhadores das
periferias, isto é, do leste europeu e das colônias, foram “naturalizados”.
A “pacificação” dos trabalhadores europeus, o estabelecimento de uma
nova forma de controle do trabalho por meio do salário, a transformação da
violência direta em violência estrutural, ou da coerção extraeconômica em
coerção econômica, necessitaram, porém, não apenas de concessões econômicas
especiais, mas também de concessões políticas.
Essas concessões políticas não são, como muitas pessoas pensam, a partici-
pação dos trabalhadores masculinos no processo democrático, sua ascensão ao
status de “cidadão”, mas sua participação no paradigma social da classe domi-
nante, ou seja, no modelo do caçador/guerreiro. Sua “colônia” ou “natureza”,
entretanto, não é a África ou a Ásia, mas as mulheres de sua própria classe. E
dentro dessa parte da “natureza”, cujas fronteiras são definidas pelas leis do
casamento e da família, o homem tem o monopólio dos meios de coerção,
da violência direta, que, no nível do Estado, as classes dominantes outorgam a
seus representantes, isto é, ao rei e, posteriormente, aos representantes eleitos.
No entanto, o processo de “naturalização” não afetou apenas as colônias,
como um todo, e as mulheres da classe trabalhadora, mas mulheres burguesas
também foram definidas como natureza, como meras reprodutoras e
fornecedoras dos herdeiros da classe capitalista. Porém, em contraste com as
mulheres africanas, que eram vistas como parte da natureza “selvagem”, as
mulheres burguesas eram vistas como natureza “domesticada”. Sua sexualida-
MARI A MI ES 149

de, seus poderes geradores e sua autonomia produtiva foram suprimidos e es-
tritamente controlados pelos homens de sua classe, dos quais elas se tornaram
dependentes para sua sobrevivência. A domesticação das mulheres burguesas,
sua transformação em donas de casa, dependentes da renda dos maridos,
tornou-se o modelo da divisão sexual do trabalho no capitalismo. Isso foi
também necessário para ganhar o controle sobre as capacidades reprodutivas
das mulheres, de todas as mulheres. O processo de proletarização dos homens
foi, portanto, acompanhado por um processo de donadecasificação das mu-
lheres (ver capítulo 4).
Nesse processo, a esfera em que a força de trabalho era reproduzida – a
casa e a família – foi “definida como natureza”, mas como natureza privada,
domesticada, enquanto a fábrica se tornava o lugar da produção pública,
social (“humana”).
Assim como o processo de “naturalização” das colônias foi baseado no
uso em larga escala da violência direta e da coerção, também o processo de
domesticação das mulheres europeias (e mais tarde das estadunidenses) não
se deu de forma pacífica e idílica. As mulheres não entregaram voluntaria-
mente o controle de sua produtividade, de sua sexualidade e de suas capaci-
dades geradoras a seus maridos e aos Homens Grandes (Igreja e Estado). Só
depois de séculos de ataques brutais à sua autonomia sexual e produtiva é
que as mulheres europeias se tornaram as donas de casa domesticadas e de-
pendentes que somos consideradas atualmente. A contrapartida das incursões
escravagistas na África foi a caça às bruxas na Europa. Ambas parecem estar
conectadas pelo mesmo dilema com que se defronta a versão capitalista do
homem-caçador: por mais que tente reduzir as mulheres à mera condição de
produção, à natureza a ser apropriada e explorada, ele não pode produzir for-
ça de trabalho viva sem as mulheres. As armas dão-lhe a possibilidade de um
modo de produção exclusivamente masculino, nomeadamente a escravidão
ou a guerra, que Meillassoux (1978, p. 7) considera como o equivalente mas-
culino da reprodução num sistema de parentesco, um esforço dos homens de
uma determinada sociedade para se tornarem independentes da reprodução
de suas mulheres. Mas esse modo de produção masculino tem suas limitações
naturais, especialmente quando as zonas de caça de gado humano se esgotam.
Foi, portanto, necessário colocar as forças geradoras e produtivas das mulheres
europeias sob o controle patriarcal. Entre os séculos XIV e XVIII, as guildas
150 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

masculinas e a crescente burguesia urbana conseguiram expulsar as artesãs da


esfera da produção (Rowbotham, 1974; O’Faolain & Martines, 1973). Além
disso, milhões de mulheres, em sua maioria camponesas pobres ou de ori-
gem urbana pobre, foram durante séculos perseguidas, torturadas e, por fim,
queimadas como bruxas porque tentavam manter alguma autonomia sobre
seus corpos, em particular sobre suas forças geradoras. O ataque da Igreja e
do Estado às bruxas se dirigia não só à subordinação da sexualidade feminina
como tal, embora esta desempenhasse um papel importante, mas também
às suas práticas como abortistas e parteiras. A literatura feminista que apare-
ceu nos últimos anos evidencia amplamente essa política (Rowbotham, 1974;
Becker-Bovenschen-Brackert, 1977; Dross, 1978; Honegger, 1978; Ehrenreich
& English, 1973, 1979). Não apenas as mulheres artesãs foram expulsas de
seus empregos e suas propriedades foram confiscadas pelas autoridades da
cidade, do Estado e da Igreja, como também o controle das mulheres sobre a
produção de vida nova – isto é, sua decisão de parir ou abortar – teve de ser
esmagado. Essa guerra contra as mulheres estendeu-se pela Europa por pelo
menos três séculos (Becker-Bovenschen-Brackert, 1977).
A caça às bruxas não teve apenas o efeito disciplinar direto de controlar
o comportamento sexual e reprodutivo das mulheres, mas também o de es-
tabelecer a superioridade da produtividade masculina sobre a produtividade
feminina. Esses dois processos estão intimamente conectados. Os ideólogos
da caça às bruxas não se cansaram de denunciar a natureza feminina como
pecadora (“pecado” é sinônimo de “natureza”), como sexualmente incon-
trolável, insaciável e sempre pronta para seduzir o homem virtuoso. O que é
interessante notar é que as mulheres ainda não eram vistas como sexualmente
passivas ou mesmo como seres assexuados, como foi o caso mais tarde, nos
séculos XIX e XX. Ao contrário, sua atividade sexual era vista como uma
ameaça ao homem virtuoso, ou seja, àquele que deseja controlar a pureza de
sua descendência, dos herdeiros de sua propriedade. Portanto, era obrigação
do homem garantir a castidade de suas filhas e de sua esposa. Sendo elas “natu-
reza”, “pecado”, devem estar permanentemente sob sua tutela; elas se tornam
menores permanentes.
Só os homens são capazes de se tornar verdadeiramente adultos e cidadãos.
Para controlar a sexualidade de suas mulheres, os homens foram aconselhados
a recorrer a espancamentos e outros métodos violentos (Bauer, 1917). Mas
MARI A MI ES 151

todos os ataques diretos e ideológicos à natureza pecaminosa das mulheres


também serviram ao propósito de privá-las de sua autonomia sobre outras
funções economicamente produtivas e estabelecer a hegemonia masculina nas
esferas econômica, política e cultural.
A autonomia sexual está intimamente ligada à autonomia econômica. O
caso da profissionalização de médicos do sexo masculino que expulsaram e
denunciaram as curandeiras e parteiras como bruxas é a melhor documen-
tação desse ataque violento à atividade produtiva feminina. A nova classe ca-
pitalista ascendeu com a subjugação das mulheres (ver capítulo 3 e também
Rowbotham, 1974; Ehrenreich & English, 1979).
Ao final desse “processo civilizador”, as mulheres estavam disciplinadas o
suficiente para trabalhar como donas de casa para um homem, como traba-
lhadoras assalariadas para um capitalista ou para ambos. Elas aprenderam a in-
ternalizar e voltar contra si mesmas a violência empregada contra elas durante
séculos; e definiram como vocação, como “amor”, a necessária mistificação
ideológica de sua autorrepressão (Bock & Duden, 1977). Os pilares institucio-
nais e ideológicos necessários para a manutenção dessa autorrepressão foram
fornecidos pela Igreja, pelo Estado e pela família. As mulheres estavam con-
finadas a essa instituição pela organização do processo de trabalho (separação
entre casa e local de trabalho), pela lei e por sua dependência econômica do
homem definido como “provedor”.
Seria uma ilusão, entretanto, pensar que, com o pleno desenvolvimento do
capitalismo, as características bárbaras de seus primórdios sangrentos desapa-
receriam e que as relações de produção capitalistas plenamente desenvolvidas
significariam o fim do paradigma social do homem-caçador/guerreiro e da
transformação da coerção extraeconômica em coerção econômica.63
Ao contrário, podemos observar que, para a manutenção de uma divisão
exploradora assimétrica do trabalho no plano nacional e internacional – am-
bos interligados –, o capitalismo plenamente desenvolvido precisa de uma má-

63 No atual momento histórico, não podemos mais compartilhar da opinião dos primeiros
marxistas, incluindo Rosa Luxemburgo, de que a guerra e a violência eram métodos necessá-
rios para resolver conflitos de interesse enquanto as forças produtivas não tivessem atingido seu
máximo desenvolvimento, enquanto os seres humanos não tivessem alcançado o controle e
domínio total sobre a natureza (cf. Rosa Luxemburgo, 1925, p. 155-6). Nosso problema é que
essa definição de “desenvolvimento das forças produtivas” implica violência e guerra contra a
natureza e os seres humanos.
152 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

quina estatal de repressão em constante expansão e de uma assustadora con-


centração de meios de destruição e coerção. Nenhum dos Estados capitalistas
se desfez da polícia ou do exército; eles ainda são, como entre os caçadores, os
guerreiros e os guerreiros nômades, os setores mais “produtivos” porque, por
meio do monopólio da violência agora legalizada, esses Estados são capazes
de conter efetivamente qualquer rebelião entre os trabalhadores em sua órbita,
assim como de forçar produtores de subsistência e áreas periféricas inteiras a
produzir para um processo de acumulação globalmente conectado. Embora a
exploração capitalista do trabalho humano em escala mundial tenha assumido
principalmente a forma “racional” da chamada troca desigual, a manutenção
de relações desiguais é garantida em todos os lugares, em última análise, por
meio da coerção direta, por meio das armas.
Para resumir, podemos dizer que as várias formas de divisões assimétricas
e hierárquicas do trabalho que se desenvolveram ao longo da história até o
momento presente, em que todo o globo está estruturado em um sistema de
divisão desigual do trabalho sob os ditames da acumulação de capital, estão
baseadas no paradigma social do caçador/guerreiro predador que, sem ser ele
mesmo produtor, pode, por meio das armas, apropriar-se e subordinar outros
produtores, suas forças produtivas e seus produtos.
Essa relação-objeto extrativista, não recíproca e exploratória com a natu-
reza, estabelecida primeiro entre homens e mulheres e entre homens e na-
tureza, permaneceu como modelo para todos os outros modos de produção
patriarcais, incluindo o capitalismo, que a desenvolveu em sua forma mais
sofisticada e generalizada.64 O que caracteriza esse modelo é que aqueles
que controlam o processo de produção e os produtos não são eles próprios
produtores, mas apropriadores. Sua chamada produtividade pressupõe a exis-
tência e a sujeição de outros produtores – em última análise, mulheres. Como
escreve Wallerstein: “Em poucas palavras, aqueles que geram a força de tra-
balho sustentam aqueles que cultivam os alimentos, que sustentam aqueles

64 Nesse ponto, seria apropriado estender nossa análise à divisão sexual do trabalho no socia-
lismo. Isso exigiria, contudo, uma análise muito mais ampla. Com base nas informações que
temos sobre a situação da mulher nos países socialistas, só podemos concluir que a divisão
sexual do trabalho se baseia no mesmo paradigma social dos países capitalistas. Uma das razões
para isso pode ser que o conceito de “desenvolvimento das forças produtivas” e a relação do
homem com a natureza têm sido os mesmos do capitalismo, ou seja, o domínio do homem
sobre a natureza, o qual implica seu domínio sobre as mulheres (ver capítulo 6).
MARI A MI ES 153

que cultivam outras matérias-primas, que sustentam aqueles envolvidos na


produção industrial” (Wallerstein, 1974, p. 86). O que Wallerstein esquece
de mencionar é que todos sustentam os não produtores que controlam todo
esse processo, em última instância por meio das armas, pois, no cerne desse
paradigma, está o fato de que os não produtores se apropriam e consomem
(ou investem) o que os outros produziram. O homem-caçador é basicamente
um parasita, não um produtor.
3
COLONIZAÇÃO E
DONADECASIFICAÇÃO
A DIALÉTICA DO “PROGRESSO E RETROCESSO”

COM BASE na análise anterior, é possível formular uma tese provisória que
guiará minha discussão a seguir.
O desenvolvimento histórico da divisão do trabalho em geral e da divisão
sexual do trabalho em particular não foi/é um processo evolutivo e pacífico,
baseado no desenvolvimento sempre progressivo das forças produtivas (prin-
cipalmente da tecnologia) e na especialização, mas um processo violento por
meio do qual determinados homens e, depois, certos povos foram capazes de
estabelecer uma relação de exploração entre eles e as mulheres, entre eles e
outros povos e entre as classes.
Nesse modo de produção predatório, que é intrinsecamente patriarcal, a
guerra e a conquista tornaram-se os modos de produção mais “produtivos”.
A acumulação rápida de riqueza material – baseada no saque e no roubo, e
não no trabalho regular de subsistência da própria comunidade – facilita o
desenvolvimento mais rápido da tecnologia nas sociedades que se fundamen-
tam na conquista e na guerra. Esse desenvolvimento tecnológico, entretanto,
não é orientado primordialmente para a satisfação das necessidades de sub-
sistência da comunidade como um todo, mas para a perpetuação das guerras,
da conquista e da acumulação. O desenvolvimento tanto da tecnologia ar-
mamentista quanto dos meios de transporte tem sido uma força motriz para
a inovação tecnológica em todas as sociedades patriarcais, especialmente na
moderna sociedade capitalista europeia que, desde o século XV, conquistou
e submeteu o mundo inteiro. O conceito de “progresso” que emergiu dessa
civilização patriarcal específica é historicamente impensável sem o desenvol-
vimento unilateral da tecnologia de guerra e conquista. Toda a tecnologia
de subsistência (para conservação e produção de alimentos, roupas, abrigo
etc.) parece estar “atrasada” em comparação com as “maravilhas” da tecno-
158 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

logia moderna utilizadas na guerra e na conquista (a navegação, a bússola, a


pólvora etc.).
A predatória divisão patriarcal do trabalho baseia-se, desde o início, na
separação e subordinação estrutural dos seres humanos: os homens são separados
das mulheres, as quais são subordinadas a eles, os “nossos” são separados dos
“estrangeiros” ou “bárbaros”. Enquanto nos antigos patriarcados essa sepa-
ração não podia chegar a ser total, no patriarcado “ocidental” moderno essa
separação foi estendida até a separação entre o homem e a natureza. Nos anti-
gos patriarcados (China, Índia, península Arábica), os homens não concebiam
a si mesmos como entes totalmente independentes da Mãe Terra. Mesmo os
povos conquistados e subjugados, escravos, párias etc., estavam visivelmente
presentes e não eram pensados como totalmente fora do oikos, ou “economia”
(o universo social hierarquicamente estruturado que era visto como um or-
ganismo vivo (cf. Merchant, 1983)). As mulheres, embora fossem exploradas
e subordinadas, eram consideradas extremamente importantes em todas as
sociedades patriarcais pelo seu papel de mãe. Portanto, acredito que é correto
que Ehrenreich e English chamem esses patriarcados pré-modernos de gino-
cêntricos. Sem a mãe humana e a Mãe Terra não poderia existir patriarcado
algum (Ehrenreich & English, 1979, p. 7-8). Com a ascensão do capitalismo
como um sistema-mundo, baseado na conquista em grande escala e na pi-
lhagem colonial, e a emergência da economia-mundo (Wallerstein, 1974),
torna-se possível externalizar ou exterritorializar aqueles que os novos patriarcas
queriam explorar. As colônias não eram mais vistas como parte da economia
ou da sociedade, mas estavam fora da “sociedade civilizada”. À medida que
conquistadores e invasores europeus “penetravam” as “terras virgens”, essas
terras e seus habitantes eram “naturalizados”, declarados selvagens, à espera de
serem explorados e domados pelos homens civilizadores.
Da mesma forma, a relação entre os seres humanos e a natureza externa,
ou entre os seres humanos e o planeta, mudou radicalmente. Como Carolyn
Merchant demonstrou de forma convincente, a ascensão da ciência e da
tecnologia moderna foi baseada na violação e no ataque violento à Mãe
Terra – até então ainda concebida como um organismo vivo. Francis Bacon,
o pai da ciência moderna, foi um dos que propuseram o uso dos mesmos
métodos violentos utilizados pela Igreja e pelo Estado para descobrir os
segredos das bruxas – ou seja, tortura e inquisição – para roubar os segre-
MARI A MI ES 159

dos da Mãe Terra. Os tabus contra a mineração e a perfuração do ventre da


Mãe Terra foram quebrados pela força, já que os novos patriarcas queriam
obter os metais preciosos e outras “matérias-primas” escondidas no “ven-
tre da terra”. O surgimento da ciência moderna com sua visão de mundo
mecanicista e física se fundamentou no assassinato da natureza como um
organismo vivo e em sua transformação em um enorme reservatório de
“recursos naturais” ou “matérias”, passíveis de serem analisados e sinteti-
zados pelo Homem graças a suas novas máquinas, que poderiam torná-lo
independente da Mãe Natureza.
Só então o dualismo ou, mais exatamente, a polarização entre patriarcas
e natureza, entre homens e mulheres, pôde desenvolver todo o seu poten-
cial destrutivo de forma permanente. A partir daí, a ciência e a tecnologia
se tornaram as principais “forças produtivas” por meio das quais os homens
podiam se “emancipar” da natureza e também das mulheres.
Carolyn Merchant demonstrou que a destruição da natureza como or-
ganismo vivo – e a ascensão da ciência e tecnologia modernas, junto com a
ascensão de cientistas do sexo masculino como os novos sacerdotes – teve um
paralelismo próximo com o violento ataque às mulheres durante a caça às
bruxas que assolou a Europa por cerca de quatro séculos.
Merchant não estende sua análise à relação dos Novos Homens com suas
colônias. No entanto, entender essa relação é absolutamente necessário, pois
não podemos compreender o desenvolvimento moderno, incluindo nossos
problemas atuais, a menos que incluamos todas aquelas que foram “defini-
das como natureza” pelos patriarcas capitalistas modernos: a Mãe Terra, as
Mulheres e as Colônias.
Os patriarcas europeus modernos se tornaram independentes de sua Mãe
Terra europeia mediante a conquista das Américas, e, posteriormente, da Ásia
e África, e mediante a extração de ouro e prata das minas da Bolívia, México
e Peru, assim como de outras “matérias-primas” e artigos de luxo de outros
territórios. Por um lado, “emanciparam-se” de sua dependência das mulhe-
res europeias para a produção de trabalhadores destruindo as bruxas, bem
como seu conhecimento a respeito de métodos contraceptivos e controle de
natalidade. Por outro, subordinando mulheres e homens africanos adultos à
escravidão, adquiriram a força de trabalho necessária para suas plantations na
América e no Caribe.
160 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Assim, o progresso dos Homens Grandes europeus é baseado na subor-


dinação e exploração das suas próprias mulheres, na exploração e destruição
da natureza e na exploração e subordinação de outros povos e de seus terri-
tórios. Consequentemente, a lei desse “progresso” é sempre contraditória e
não evolucionária: o progresso para alguns significa o retrocesso para outros;
“evolução” para alguns significa “involução” para outros; “humanização” para
alguns significa “desumanização” para outros; o desenvolvimento das forças
produtivas para alguns significa subdesenvolvimento e retrocesso para outros.
A ascensão de alguns significa a queda de outros. Riqueza para alguns significa
pobreza para outros. A razão pela qual não pode haver progresso unilinear está
no fato de que, como foi dito anteriormente, o predatório modo de produção
patriarcal não constitui uma relação recíproca, mas sim de exploração. Dentro
de tal relação, não pode haver progresso para todos, não pode haver um “go-
tejamento” ou desenvolvimento generalizado.65
Engels atribuiu essa relação antagônica entre progresso e retrocesso ao
surgimento da propriedade privada e à exploração de uma classe pela outra.
Assim, ele escreve em A origem da família, da propriedade privada e do Estado:

Dado que a base da civilização é a espoliação de uma classe por outra, todo o
seu desenvolvimento transcorre em permanente contradição.Todo progres-
so na produção representa simultaneamente um retrocesso na situação da
classe oprimida, isto é, da grande maioria. Todo benefício para uns é neces-
sariamente um malefício para os outros, cada nova libertação de uma classe
leva necessariamente a uma nova opressão da outra. (Engels, 1976, p. 333)66

Engels fala apenas da relação entre classes espoliadoras e espoliadas, não


inclui a relação entre homens e mulheres, nem a dos senhores coloniais
com suas colônias e nem, mais amplamente, a do Homem Civilizado com a
Natureza. Entretanto, essas relações constituem, de fato, o alicerce oculto da
sociedade civilizada. Engels tem esperança de que essa relação necessariamen-
te polarizada se transforme, estendendo a todas as outras classes tudo aquilo

65 Referência à teoria do gotejamento ou economia do gotejamento, trickle-down economics.


[N. das T.]

66 A origem da família, da propriedade privada e do Estado, 2019, p. 163. [N. das T.]
MARI A MI ES 161

que é bom para a classe dominante: “O que é bom para a classe dominante
deve ser bom para toda a sociedade com que a classe dominante se identifica”
(Engels, 1976, p. 333).
Mas essa é precisamente a falha lógica dessa estratégia: em uma relação
contraditória e exploradora, os privilégios dos espoliadores nunca se tornarão
os privilégios de todos. Se a riqueza das metrópoles é baseada na exploração
das colônias, então as colônias não podem obter riqueza a menos que tam-
bém tenham colônias. Se a emancipação dos homens é baseada na subordi-
nação das mulheres, então as mulheres não podem alcançar “direitos iguais”
em relação aos homens, já que isso necessariamente incluiria o direito de
explorar outras pessoas.67
Portanto, uma estratégia feminista de libertação não pode visar a nada me-
nos do que a abolição total de todas as relações de progresso retrógrado. Isso
significa que deve buscar o fim de toda exploração das mulheres pelos homens,
da natureza pelo ser humano, das colônias pelos colonizadores, de uma classe
pela outra. Enquanto algum desses modelos de exploração permanecer como
pré-condição para o avanço (desenvolvimento, evolução, progresso, humani-
zação etc.) de uma parcela da população, as feministas não poderão falar em
libertação ou “socialismo”.

A SUBORDINAÇÃO DAS MULHERES, DA NATUREZA


E DAS COLÔNIAS: O LADO OCULTO DO PATRIARCADO
CAPITALISTA OU DA SOCIEDADE CIVILIZADA

Na sequência, tentarei traçar o processo contraditório, brevemente esboça-


do acima, por meio do qual, no decorrer dos últimos quatro ou cinco séculos,
as mulheres, a natureza e as colônias foram externalizadas, declaradas fora da
sociedade civilizada, empurradas para baixo e, assim, tornadas invisíveis, como
a parte subaquática de um iceberg, ainda que constituam a base do todo.
Metodologicamente, tentarei, na medida do possível, desfazer a divisão en-
tre os dois polos das relações de exploração, os quais são geralmente analisados

67 O mesmo poderia ser dito sobre a relação colonial. Se colônias quiserem seguir o modelo
de desenvolvimento das metrópoles, só podem ter êxito explorando outras colônias – o que
de fato levou à criação de colônias internas em muitas das ex-colônias.
162 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

como entidades separadas. Nossa compreensão do que deve ser uma pesquisa
ou trabalho acadêmico segue exatamente a mesma lógica dos colonizadores
e cientistas que cortam e separam as partes que constituem o todo, as isolam,
as analisam em condições de laboratório e as sintetizam novamente em um
novo modelo, fabricado, artificial.
Não seguirei essa lógica. Tentarei, em vez disso, traçar as “conexões sub-
terrâneas” que ligam o processo de dominação e exploração da natureza pelo
homem ao processo de subordinação das mulheres na Europa, examinando,
ao mesmo tempo, o processo por meio do qual estes se ligam à conquista e à
colonização de outros territórios e pessoas. Assim, o surgimento histórico da
ciência e tecnologia europeias, e seu domínio sobre a natureza, deve estar liga-
do à perseguição das bruxas europeias.Tanto a perseguição das bruxas quanto
a ascensão da ciência moderna estão conectadas ao comércio de escravos e à
destruição das economias de subsistência nas colônias.
Isso não pode resultar em uma história exaustiva de todo o período em
questão, por mais desejável que seja. Destaco, principalmente, algumas cone-
xões importantes que foram cruciais para a construção das relações de pro-
dução no capitalismo patriarcal. Uma delas é a conexão entre a perseguição
das bruxas na Europa, a ascensão da nova burguesia e da ciência moderna e a
subordinação da natureza. Esse tema já foi abordado por várias pesquisadoras
(Merchant, 1983; Heinsohn, Knieper & Steiger, 1979; Ehrenreich & English,
1979; Becker et al., 1977). A análise a seguir está baseada em seus trabalhos.
As conexões históricas entre esses processos e a subordinação e exploração
dos povos colonizados em geral e das mulheres nas colônias em particular
ainda não foram adequadamente estudadas. Portanto, vou me dedicar a essa
história de maneira mais detida.

A PERSEGUIÇÃO DAS BRUXAS E O NASCIMENTO DA SOCIEDADE


MODERNA. CRÔNICA DA PRODUTIVIDADE DAS MULHERES NO
FINAL DA IDADE MÉDIA

Entre as tribos germânicas que ocuparam a Europa, o pater familias tinha


poder sobre tudo e todos na casa. Esse poder, chamado munt (do alto-ale-
mão antigo) (mundium = manus = mão), implicava que ele poderia vender,
MARI A MI ES 163

comprar etc. esposa, filhos, escravos etc. O munt do homem sobre a mulher
foi estabelecido por meio do casamento. Era uma relação baseada no direito
de propriedade sobre as coisas, fundada na ocupação (sequestro de mulhe-
res) ou na aquisição (venda de mulheres). De acordo com a lei germânica,
o casamento era um contrato de venda entre duas famílias. A mulher era
apenas o objeto dessa transação. Ao adquirir o poder-munt, o marido adqui-
ria o direito sobre os bens da esposa, já que ela se tornava sua propriedade.
As mulheres passavam a vida toda sob o munt de seus homens – marido,
pai, filho. A origem desse munt estava na intenção de excluir as mulheres
do uso de armas. Com o surgimento das cidades a partir do século XIII
e a emergência de uma burguesia urbana, a “ganze Haus”– a antiga forma
germânica de família estendida e de parentesco – começou a se dissolver. O
velho potestas patriae, o poder do pai sobre filhos e filhas, terminava quando
estes deixavam a casa. As esposas eram submetidas ao munt ou à tutela de seus
maridos. No entanto, se as mulheres solteiras tivessem propriedade própria,
algumas vezes eram consideradas münding (adultas ou capazes) diante da lei.
Em Colônia, em 1291, as mulheres solteiras que pertenciam a algum grêmio
artesão foram reconhecidas como selbstmündig (Becker et al., 1977, p. 41). As
leis aplicadas nas cidades, assim como algumas leis para o campo, libertaram
as mulheres que pertenciam aos grêmios artesãos do munt ou dependiam de
seus pais ou maridos.
A razão para essa liberalização das cadeias sexuais pode ser encontrada na
necessidade de permitir que as mulheres nas cidades exercessem seus ofícios
e negócios de forma independente. Isso ocorreu por vários fatores:

1. Com a expansão das trocas e do comércio, cresceu a demanda por pro-


dutos manufaturados, particularmente roupas e outros bens de consumo.
Esse tipo de bens era produzido quase exclusivamente no domicílio de ar-
tesãos, tanto homens quanto mulheres. O aumento do dinheiro nas mãos
dos patrícios provocou um crescimento do consumo de bens de luxo.
Trajes caros de veludo e seda, colarinhos de renda, cintas etc. entraram na
moda. Em muitos desses grêmios, as mulheres eram maioria.

Apesar disso, na Alemanha, as mulheres casadas não tinham o direito de


ter os seus próprios negócios nem de efetuar qualquer tipo de transação
164 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

sem o consentimento de seu marido, que continuava a ser seu guardião e


senhor. No entanto, as artesãs ou as mulheres que tinham um negócio po-
deriam comparecer perante um tribunal, na qualidade de testemunha ou de
acusadora, sem um tutor. Em algumas cidades, foram concedidos às artesãs
e comerciantes os mesmos direitos que aos homens. Em Munique foi de-
clarado que “a mulher que tem um posto no mercado, que compra e vende,
tem os mesmos direitos que seu marido”, ainda que ela não pudesse vender
propriedades dele.
A independência das mulheres artesãs e das comerciantes não era ilimitada;
se tratava de uma concessão da burguesia em ascensão, que necessitava do seu
trabalho. Dentro da família, entretanto, o marido manteve o seu papel de amo.

2. A segunda razão para essa relativa liberdade das mulheres no comércio e no


artesanato foi a escassez de homens no final da Idade Média. Em Frankfurt,
a relação era de 1.100 mulheres para 1.000 homens, de acordo com um
censo do século XIII; em Nuremberg, durante o século XV, a relação era
de 1.207 mulheres para 1.000 homens. O número de homens diminuiu
devido às cruzadas e às constantes guerras entre os Estados feudais. Além
disso, a mortalidade masculina parece ter sido maior do que a mortalidade
feminina “por causa da embriaguez dos homens em todos os tipos de fo-
lias” (Bucher, citado por Becker et al., 1977, p. 63).

Entre os camponeses do sul da Alemanha, apenas o filho mais velho era au-
torizado a se casar pois, caso contrário, a terra seria dividida em propriedades
muito pequenas para serem viáveis. Os aprendizes não podiam se casar antes
de se tornarem mestres. Os servos não podiam se casar sem o consentimento
de seus senhores feudais. Quando as cidades abriram suas portas, os servos,
homens e mulheres, fugiram para as cidades; o lema da fuga era “o ar da cidade
torna os homens livres”. No campo, os pobres mandavam suas filhas embora
de suas casas para que se sustentassem como criadas, já que não conseguiam
alimentá-las até que se casassem.
Isso resultou em um aumento no número de mulheres descomprometi-
das, solteiras ou viúvas que deveriam ser economicamente ativas. As cidades,
entre os séculos XII e XIII, não excluíam as mulheres de nenhum ofício ou
negócio que desejassem exercer. Isso era necessário porque sem sua contri-
MARI A MI ES 165

buição as trocas e o comércio não poderiam ter sido expandidos. Entretanto,


a atitude em relação às mulheres economicamente independentes era sempre
contraditória. No início, as guildas de artesãos eram associações exclusivas
para homens. Parece que posteriormente tiveram que admitir algumas mu-
lheres como artesãs. Na Alemanha, isso não ocorreu antes do século XIV.
Ingressaram nas guildas principalmente tecelãs, fiandeiras e mulheres engajadas
em outros ramos da manufatura têxtil. A tecelagem esteve nas mãos dos ho-
mens desde o século XII, mas as mulheres realizavam uma série de trabalhos
auxiliares; posteriormente também são mencionadas mestras tecelãs em certos
ramos, como a tecelagem de véus, de linho, de seda, de fios de ouro etc., que
eram feitos exclusivamente por mulheres. Em Colônia, a partir do século XIV,
havia até mesmo guildas somente de mulheres.
Além do artesanato, as mulheres estavam envolvidas principalmente no
pequeno comércio de frutas, frangos, ovos, arenques, flores, queijo, leite, sal, óleo,
penas, compotas etc. As mulheres eram muito bem-sucedidas como mascates
e vendedoras ambulantes, o que constituía certo desafio para os comerciantes
homens. Ainda que não se envolvessem no comércio exterior, adiantavam
dinheiro a mercadores que negociavam com os mercados externos.

As fiadoras de seda de Colônia frequentemente eram casadas com ricos


mercadores que vendiam os preciosos produtos de suas esposas nos merca-
dos distantes de Flandres, Inglaterra, no mar do Norte e no mar Báltico, nas
grandes feiras de Leipzig e Frankfurt. (Becker et al., 1977, p. 66-67)

Só existe menção a uma mulher mercadora que viajou por conta própria
para a Inglaterra no século XV: Katherine Ysenmengerde, de Danzig (Becker
et al., 1977, p. 66-67).
Nos séculos XV e XVI, entretanto, a velha ordem europeia desmoronou e
“surgiu uma economia-mundo europeia baseada no modo de produção ca-
pitalista” (Wallerstein, 1974, p. 67). Esse período é caracterizado por uma tre-
menda expansão e penetração da burguesia em ascensão nos “Novos Mundos”
e por empobrecimento, guerras, epidemias e turbulência dentro dos antigos
Estados centrais.
Segundo Wallerstein, essa economia-mundo incluía, no final do século
XVI, o noroeste da Europa, o mediterrâneo cristão, a Europa central, a região
166 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

do Báltico e certas regiões da Américas: Nova Espanha, Antilhas, Peru, Chile


e Brasil. Naquela época, Índia, Extremo Oriente, Império Otomano, Rússia e
China não estavam incluídos.
Entre 1535 e 1540, a Espanha obteve o controle sobre mais da metade da
população do hemisfério ocidental. Entre 1670 e 1680, a área sob controle
europeu aumentou de cerca de três milhões de quilômetros quadrados para
cerca de sete milhões (Wallerstein, 1974, p. 68). A expansão tornou possí-
vel a acumulação em grande escala de capital privado “que era utilizado
para financiar a racionalização da produção agrícola” (Wallerstein, 1974, p.
69). Uma das características mais óbvias dessa economia-mundo europeia
do século XVI foi uma inflação secular, a chamada revolução dos preços
(Wallerstein, 1974, p. 69). Essa inflação foi atribuída, de uma forma ou de
outra, ao influxo de lingotes de metais preciosos provenientes da América
Hispânica. Seu efeito foi sentido principalmente no suprimento de grãos
alimentícios mais baratos. “Nos países em que a indústria se expandiu, foi
necessário reconverter uma maior proporção da terra à produção de grãos
para o consumo dos cavalos”. Os cereais tiveram então de ser comprados no
Báltico a preços mais elevados. Ao mesmo tempo, os salários permaneceram
estagnados na Inglaterra e na França devido à rigidez institucional, ocorren-
do até mesmo um declínio nos salários reais, o que significava uma maior
pobreza para as massas.
De acordo com Wallerstein, no século XVI a Europa tinha várias áreas
principais: o norte da Europa (Holanda, Inglaterra, França), onde o comércio
floresceu e cujas terras eram usadas principalmente para a criação de gado e
não para o cultivo de cereais. O trabalho assalariado rural se tornou a forma
dominante de controle da mão de obra. Os cereais foram importados da
Europa Oriental e do Báltico – a periferia – onde a “servidão secundária” ou
“feudal” emergiu como a principal forma de controle da mão de obra. No
norte e no centro da Europa, esse processo levou a um grande empobreci-
mento dos camponeses. Parece que houve um crescimento populacional no
século XVI que provocou o aumento da pressão sobre as cidades. Wallerstein
vê essa pressão populacional como uma motivação para a emigração. “Na
Europa Ocidental em geral houve emigração para as cidades e uma crescente
vagabundagem, que se tornou ‘endêmica’” (Wallerstein, 1974, p. 117). O êxo-
do rural não ocorreu apenas devido aos despejos e aos efeitos dos cercamen-
MARI A MI ES 167

tos (por parte dos yeomen68 na Inglaterra), ‘existia também a vagabundagem


ocasionada “pela dissolução das vassalagens feudais, pela desmobilização dos
populosos exércitos que haviam servido os reis contra os vassalos’”69 (Marx,
citado por Wallerstein, 1974, p. 117).
Esses andarilhos – antes de serem recrutados como trabalhadores para as
novas indústrias – viviam de forma precária. Compunham a massa empobre-
cida que se aglomerava em torno dos vários profetas e seitas hereges. A maio-
ria das proposições mais radicais e utópicas da época estavam preocupadas
com essas massas pobres. Muitas mulheres pobres estavam entre esses vaga-
bundos, ganhavam a vida como dançarinas, trapaceiras, cantoras e prostitutas.
Reuniam-se nas feiras anuais, nos encontros eclesiásticos etc. Em 1394, 800
mulheres compareceram à Dieta de Frankfurt,70 e outras 1500 ao Concílio
de Constança e Basileia (Becker et al., 1977, p. 76). Essas mulheres também
seguiam os exércitos. Elas não trabalhavam apenas como prostitutas para os
soldados, mas também tinham de escavar trincheiras, cuidar de doentes e fe-
ridos e vender mercadorias.
Inicialmente, essas mulheres não eram menosprezadas, faziam parte da
sociedade medieval. As cidades maiores as colocavam em “casas de mulheres”.
A Igreja tentou controlar a prostituição crescente, mas a pobreza direcionou
muitas mulheres pobres para as “casas de mulheres”. Em muitas cidades, essas
prostitutas tinham suas próprias associações; elas tinham seus próprios estan-

68 As pessoas que não eram nobres e dependiam da sua relação com a terra para viver eram
classificadas de acordo com as características e a condição de posse da terra em husbandmen,
cottagers e yeoman. Os termos não são traduzidos de forma consensual para o português e são
frequentemente empregados em inglês. Os yeoman possuíam maiores extensões de terra, o que
permitia que gerassem sistematicamente excedentes, e empregavam mais trabalhadores assala-
riados que os husbandmen, os quais possuíam propriedades menores, mas produziam alimentos
em quantidade suficiente para subsistir, empregando eventualmente alguns trabalhadores assa-
lariados e produzindo esporadicamente excedentes. Já os cottagers possuíam terras reduzidas e
não produziam alimentos suficientes para sobreviver, precisando fazer uso das prerrogativas de
uso das terras comuns.Ver Pedro Rocha de Oliveira, Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da
sociedade moderna: estudo sobre a acumulação primitiva de capital. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio/São
Paulo: Edições Loyola, 2018. [N. das T.]

69 A ideologia alemã, 2009, p. 82. [N. das T.]

70 A Dieta de Frankfurt se refere às sessões da Dieta Imperial (latim: Dieta Imperii ou Comitium
Imperiale; alemão: Reichstag), o corpo deliberativo do Sacro Império Romano-Germânico, que
ocorriam na Cidade Imperial de Frankfurt. [N. das T.]
168 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

dartes e espaços nas procissões da Igreja e nas festas públicas, e até mesmo
uma padroeira, Santa Madalena. Isso demonstra que até o século XIV a pros-
tituição não era considerada algo pernicioso. Mas no final daquele século, as
leis de Merano decretaram que as prostitutas deveriam permanecer longe das
festividades nas quais houvesse “mulheres burguesas e outras mulheres hon-
radas”. Elas foram então obrigadas a usar uma fita amarela em seus sapatos
de modo que pudessem ser distinguidas “das mulheres decentes” (Becker et
al., 1977, p. 79).
A caça às bruxas que assolou a Europa do século XII ao século XVII foi um
dos mecanismos utilizados para controlar e subordinar as mulheres campone-
sas e artesãs, cuja independência econômica e sexual constituía uma ameaça
para a ordem burguesa emergente.
A recente literatura feminista sobre as bruxas e sua perseguição mostrou
que as mulheres não desistiram passivamente de sua independência econômica
e sexual, mas que resistiram de muitas formas ao ataque violento da Igreja,
do Estado e do capital. Uma das formas de resistência foram as muitas seitas
heterodoxas nas quais as mulheres desempenhavam um papel proeminente
ou propagavam a ideologia da liberdade e igualdade para as mulheres e con-
denavam a repressão sexual, a propriedade e a monogamia. Assim, os “Irmãos
do Livre Espírito” [Brethren of the Free Spirit], uma seita que existiu por cen-
tenas de anos, estabeleceram a vida em comunidade, aboliram o casamento
e rejeitaram a autoridade da Igreja. Muitas mulheres, algumas delas eruditas
extraordinárias, pertenciam a essa seita. Muitas foram queimadas como here-
ges (Cohn, 1970).
Parece plausível justificar que toda a fúria desencadeada pela caça às bruxas
não seja o resultado apenas do velho regime decadente em seu confronto com
as novas forças capitalistas, ou mesmo a manifestação de um sadismo mascu-
lino atemporal, mas uma reação dos homens das novas classes dominantes
contra a rebelião das mulheres. As mulheres pobres “libertadas”, isto é, expro-
priadas de seus meios de subsistência e do uso de suas habilidades, lutaram
contra seus expropriadores. Alguns argumentam que as bruxas constituíram
uma seita organizada que se reunia regularmente em “sabás de bruxas”, nos
quais todas as pessoas que ali se encontravam, todas elas pobres, colocavam
em prática uma nova sociedade sem amos nem servos. Quando uma mulher
acusada de bruxaria negava ser uma bruxa, ou dizia não ter nada a ver com as
MARI A MI ES 169

acusações, era torturada e queimada na fogueira. O julgamento, no entanto,


seguia um procedimento legal meticulosamente planejado. Nos países protes-
tantes, é possível encontrar tribunais civis especiais sobre bruxaria e comis-
sários especializados no assunto. Os sacerdotes mantinham contato constante
com os tribunais e influenciavam os juízes.
Um promotor, Benedikt Carpzov, primeiramente advogado na Saxônia e
mais tarde professor em Leipzig, assinou vinte mil sentenças de morte contra
bruxas. Carpzov era um fiel filho da Igreja protestante (Dross, 1978, p. 204).
Se alguém denunciasse uma mulher por bruxaria, uma comissão era en-
viada ao local para coletar provas.Tudo era potencialmente uma prova: tempo
bom ou tempo ruim, se a mulher trabalhava muito ou se era preguiçosa, se
tinha doenças ou se tinha a capacidade de curar. Caso a bruxa citasse o nome
de alguém, mesmo sob tortura, esta pessoa também seria presa imediatamente.

A SUBORDINAÇÃO E DESTRUIÇÃO DO CORPO FEMININO:


TORTURA

Estas são as atas da tortura de Katherine Lips de Betzlesdorf, 1672:

Depois de o julgamento ser lido novamente, foi admoestada a falar a ver-


dade. Mas continuou a negar. Então se despiu voluntariamente. O carras-
co amarrou suas mãos e a pendurou, fazendo-a cair no chão novamente.
Gritou: “Ai, ai!” Foi pendurada novamente. E novamente gritou “Ai, ai,
Senhor do céu, ajude-me…” Seus dedos dos pés foram amarrados... suas
pernas foram colocadas na bota espanhola – primeiro a perna esquerda foi
parafusada e depois a direita... gritou “Senhor Jesus, venha e me ajude...”
Disse que não sabia nada, mesmo que a matassem. A penduraram ainda mais
alto. Ficou em silêncio, e depois disse que não era uma bruxa. Em seguida,
eles apertaram novamente os parafusos em suas pernas. Novamente gritou
e chorou... e ficou em silêncio... continuou a dizer que não sabia de nada...
Aos gritos, pedia a sua mãe que saísse do túmulo para ajudá-la.
Então a levaram para fora da sala e rasparam sua cabeça para encontrar o
estigma. O mestre voltou e disse que havia encontrado o estigma.Tinha en-
fiado uma agulha no estigma e ela não sentiu. Além disso, não saiu nenhum
170 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

sangue. Mais uma vez ataram suas mãos e pés e a penduraram, novamente
ela gritou e gemeu dizendo que não sabia de nada. Que a colocassem no
chão e a matassem etc. (citado por Becker et al., 1977, p. 426, com base na
trad. de Maria Mies)

Em 1631, Friedrich von Spee ousou escrever um ensaio anônimo contra as


torturas e a caça às bruxas. Expôs o caráter sádico das torturas e também o uso
que as autoridades eclesiásticas e seculares fizeram da histeria desencadeada
pelas acusações de bruxaria para encontrar um bode expiatório para todos
os problemas, distúrbios e agitações dos pobres e desviar sua ira para algumas
mulheres pobres.

31 de outubro de 1724

Tortura de Enneke Fristenares de Coesfeld (Münster)


Depois de solicitar em vão que a acusada confessasse, o Dr. Gogravius deu
ordem para que a torturassem... Requisitou que dissesse a verdade já que
o interrogatório doloroso a faria confessar de qualquer maneira e ainda
dobraria sua punição... logo depois foi aplicado o primeiro grau de tortura.
Em seguida, o juiz prosseguiu para o segundo grau de tortura. Ela foi
levada para a câmara de tortura, despida, amarrada e interrogada. Negou
ter feito qualquer coisa... Como permaneceu resistente, seguiram para o
terceiro grau de tortura e seus polegares foram colocados em parafusos.
Como gritava terrivelmente, colocaram um bloco de madeira em sua boca
e continuaram parafusando seus polegares. Durante cinquenta minutos isso
continuou, os parafusos eram soltos e apertados alternadamente. Mas ela
continuava a alegar sua inocência. Também não chorou, apenas gritava:
“Não sou culpada. Ó, Senhor, venha me ajudar.” E depois, “Senhor, me
leve e me mate.” Então seguiram para o quarto grau, as botas espanholas...
Como não chorava, o Dr. Gogravius ​​ficou preocupado de a acusada ter
ficado insensível à dor por meio de feitiçaria. Por isso, pediu novamente ao
carrasco para despi-la e procurar por algo suspeito no seu corpo. Após exa-
miná-la meticulosamente, o carrasco relatou não ter encontrado nada. Mais
uma vez ele foi ordenado a aplicar as botas espanholas. A acusada, no entan-
to, continuou a afirmar sua inocência e gritou: “Ó, Jesus, eu não fiz isso, eu
MARI A MI ES 171

não fiz isso.Vossa Senhoria, me mate. Não sou culpada, não sou culpada!”
Isto continuou por 30 minutos sem resultado.
Então o Dr. Gogravius ordenou a aplicação do quinto grau.
A acusada foi pendurada e espancada com duas palmatórias, recebendo
até 30 golpes. Ela estava tão exausta que disse que iria confessar, mas, em
relação às acusações específicas, continuou a negar ter cometido qualquer
crime. O carrasco a puxou até deslocar as articulações dos seus braços. Essa
tortura durou seis minutos. Em seguida ela foi espancada novamente, seus
polegares foram colocados mais uma vez nos parafusos e suas pernas nas
botas espanholas. Mas a acusada continuou negando que tivesse algo a ver
com o diabo.
O Dr. Gogravius ​​chegou à conclusão de que a tortura tinha sido aplicada
corretamente, de acordo com as regras e, após o carrasco declarar que a
acusada não sobreviveria a novas torturas, o Dr. Gogravius ​​ordenou que
a acusada fosse despendurada e solta. Ordenou ao carrasco que colocasse
seus membros no lugar correto e que a cuidassem. (citado por Becker et al.,
1977, p. 433-435, com base na trad. de Maria Mies)

BRUXAS NA FOGUEIRA, ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DE CAPITAL E


ASCENSÃO DA CIÊNCIA MODERNA

A perseguição e condenação à fogueira das parteiras acusadas de bruxaria


esteve diretamente ligada ao surgimento da sociedade moderna: a profissiona-
lização da medicina, a ascensão da medicina como “ciência natural”, a ascensão
da ciência e da economia moderna. As câmaras de tortura dos caçadores de bruxas
eram os laboratórios onde se estudavam a textura, a anatomia e a resistência
do corpo humano, principalmente do corpo feminino. Pode-se dizer que a
medicina moderna e a hegemonia masculina nesse campo foram estabelecidas
a partir de milhões de corpos femininos subjugados, mutilados, extirpados,
desfigurados e, por fim, queimados.71

71 O número de bruxas assassinadas varia de centenas de milhares a dez milhões. É signifi-


cativo que os historiadores europeus não tenham contado o número de mulheres e homens
queimados na fogueira durante esses séculos, embora as execuções tenham sido registradas
burocraticamente. Pesquisadoras feministas da Alemanha Ocidental estimam que o número de
172 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Houve uma divisão calculada de trabalho entre a Igreja e o Estado na orga-


nização dos massacres e do terror contra as bruxas. Enquanto os representantes
da Igreja identificavam as bruxas, davam a justificativa teológica e conduziam
os interrogatórios, o “braço secular” do Estado era utilizado para aplicar as
torturas e executar as bruxas na fogueira.
A perseguição às bruxas foi uma manifestação da sociedade moderna em
ascensão e não, como geralmente se acredita, um resquício da “sombria” e ir-
racional Idade Média. Isso é muito nitidamente demonstrado por Jean Bodin,
o teórico francês da nova doutrina econômica mercantilista. Jean Bodin foi o
fundador da teoria quantitativa do dinheiro, do conceito moderno de sobe-
rania e do populacionismo mercantilista. Foi um ferrenho defensor do racio-
nalismo moderno e, ao mesmo tempo, um dos mais vociferantes defensores
das torturas e dos massacres de bruxas ordenados pelo Estado. Sustentava que,
para a geração de novas riquezas após a crise agrária medieval, o Estado mo-
derno deveria ter soberania absoluta. Na opinião dele, esse Estado tinha, ainda,
o dever de proporcionar trabalhadores suficientes para a nova economia. Para
tanto, ele exigia uma polícia forte, que lutasse sobretudo contra as bruxas e
parteiras, as quais, segundo ele, eram responsáveis por muitos abortos, infer-
tilidade de casais ou por relações sexuais que não tinham como finalidade
a concepção. Qualquer um que impedisse a concepção ou o nascimento
de crianças era considerado um assassino que deveria ser perseguido pelo
Estado. Bodin trabalhou como consultor do governo francês na perseguição
às bruxas e defendeu a tortura e a fogueira para erradicá-las. Dos panfletos
escritos contra bruxas naquela época, seu tratado sobre bruxaria foi um dos
mais brutais e sádicos. Como Institoris e Sprenger fizeram na Alemanha, es-
colheu as mulheres para seu ataque. Para as perseguições às bruxas, estabeleceu
uma proporção de 50 mulheres para cada homem (Merchant, 1983, p. 138).
Também encontramos essa combinação de racionalidade moderna, propaga-
ção do novo Estado e um violento ataque direto às bruxas em outro grande
mestre da nova era da civilização europeia, nomeadamente Francis Bacon (cf.
Merchant, 1983, p. 164-177).

bruxas queimadas é equivalente ao de judeus mortos na Alemanha nazista, ou seja, seis milhões.
O historiador Gerhard Scharmann afirmou que o assassinato de bruxas foi a “maior matança
em massa de seres humanos por outros seres humanos não motivada pela guerra” (Der Spiegel,
n. 43, 1984).
MARI A MI ES 173

Da mesma forma, há uma conexão direta entre os pogroms contra bruxas e


o início da profissionalização da lei. Antes desse período, a lei germânica se-
guia o antigo costume germânico; existia o direito popular ou consuetudiná-
rio, mas não como uma disciplina a ser estudada. Contudo, com a introdução
do direito romano, a maioria das universidades abriu faculdades de direito, e
algumas delas, como a Universidade de Frankfurt, consistiam unicamente na
faculdade de direito. Alguns contemporâneos reclamavam das universidades:

Não prestam para nada e treinam apenas parasitas que aprendem a confun-
dir as pessoas, como fazer com que as coisas boas se tornem ruins e as coisas
ruins se tornem boas; que pegam o que é devido aos pobres e dão aos ricos
o que não lhes corresponde. (Jansen, 1903, citado por Hammes, 1977, p.
243; com base na trad. de Maria Mies).

A razão pela qual os filhos da classe urbana em ascensão estavam amon-


toando-se nas faculdades de direito era a seguinte: “Em nossos tempos, a
jurisprudência sorri para todos, de forma que todos querem ser doutores em
direito. A maioria é atraída para esse campo de estudos por ganância por di-
nheiro e ambição” (Jansen, 1903, citado por Hammes, 1977, p. 243; com base
na trad. de Maria Mies).
Os julgamentos de bruxas forneceram emprego e dinheiro para uma série
de advogados, defensores, juízes, conselheiros etc. Por meio de suas interpre-
tações complicadas e eruditas dos textos oficiais, foram capazes de prolongar
os julgamentos de modo que seus custos aumentassem. Havia uma relação de
proximidade entre as autoridades seculares, a Igreja, os governantes dos pe-
quenos feudos e os advogados. Esses últimos eram responsáveis ​​pela inflação
dos honorários e enchiam seus cofres arrancando dinheiro das vítimas pobres
da caça às bruxas. A espoliação do povo era tão desenfreada que até mesmo
um homem como Johann von Schoenburg, do Eleitorado de Tréveris (o ar-
cebispo de Tréveris foi um dos sete príncipes que elegeu o Imperador), que
mandou executar várias centenas de pessoas como bruxas e feiticeiras, teve
de averiguar a usurpação de viúvas e órfãos pelos eruditos juristas e outras
pessoas relacionadas com os julgamentos de bruxas. Alguns dos governantes
designaram contadores para verificar o que os funcionários faziam com o di-
nheiro extraído e as taxas exigidas. Entre os custos de um julgamento, estavam
174 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

o custo do álcool consumido pelos soldados que perseguiam a bruxa, a visita


que o padre fazia à bruxa enquanto estava na prisão e o custo do provimento
da guarda privada do carrasco (Hammes, 1977, p. 243-257).
De acordo com o direito canônico, as propriedades da bruxa deveriam ser
confiscadas, independentemente de haver herdeiros ou não. Pelo menos 50% da
totalidade dos bens confiscados era apropriada pelo governo. Em muitos casos,
tudo o que restava após a dedução dos custos do julgamento ia para o tesouro es-
tatal. Esse confisco era ilegal, como sentencia o Constitutio Criminalis do Imperador
Carlos V, proclamado em 1532. Mas essa lei tinha valor apenas no papel.
O fato de a caça às bruxas ser uma fonte tão lucrativa de dinheiro e riqueza
levou, em certas regiões, à criação de comissões especiais que tinham a tarefa
de denunciar cada vez mais pessoas como bruxas e feiticeiros. Quando as pes-
soas acusadas eram consideradas culpadas, eram responsáveis, junto com suas
famílias, por arcar com todos os custos do julgamento, começando pela conta
da bebida e da comida consumidas pela comissão encarregada (seu per diem) até
os custos da lenha para a fogueira. Outra fonte de dinheiro eram as somas pagas
pelas famílias mais ricas aos doutos juízes e advogados a fim de libertar um de
seus membros acusado de bruxaria da perseguição. Essa também é a razão pela
qual encontramos mais pessoas pobres entre aquelas que foram executadas.
Manfred Hammes trouxe à tona mais uma dimensão da “economia po-
lítica” da caça às bruxas: a captação de fundos para financiar as guerras dos
príncipes europeus, particularmente a Guerra dos Trinta Anos de 1618-1648.
A partir de 1618, a Lei de Carlos V, que proibia o confisco de bens de bruxas e
feiticeiros, foi praticamente abandonada, e a caça às bruxas foi especificamen-
te organizada ou encorajada por alguns dos príncipes para poder confiscar a
propriedade de seus súditos.
Hammes nos dá o exemplo da cidade de Colônia e da disputa que surgiu
entre os padres da cidade e o príncipe-eleitor Fernando Maria da Baviera
– o governante da diocese. A cidade de Colônia, um rico centro comercial
e industrial (no início do século XVII florescia o comércio na cidade, prin-
cipalmente de seda e têxteis), permaneceu neutra por muito tempo durante
a Guerra dos Trinta Anos.72 No entanto, a cidade pagou somas consideráveis​​

72 Geralmente, as fiandeiras e tecelãs de seda em Colônia eram mulheres dos ricos comer-
ciantes de seda, os quais comercializavam suas mercadorias com a Inglaterra e os Países Baixos.
MARI A MI ES 175

ao fundo de guerra do Imperador, o que foi possível graças ao aumento dos


impostos. Quando os exércitos estrangeiros saqueavam e pilhavam as aldeias,
muitas pessoas do campo se refugiaram nessa cidade, livre e neutra. O resul-
tado foi a escassez de alimentos, gerando tensões entre as pessoas e desen-
cadeando até mesmo motins. Ao mesmo tempo, começou o julgamento de
Catherine Hernot73 por bruxaria, sucedido por uma intensa caça às bruxas.
Quando as primeiras sentenças foram lidas, o príncipe-eleitor Fernando Maria
da Baviera, que tinha de pagar seus exércitos, apresentou um projeto de lei
às autoridades da cidade. Nesse projeto alegava que todos os bens das bruxas
executadas deveriam ser confiscados e ir para o tesouro público. A Câmara
Municipal tentou por todos os meios impedir a implementação dessa or-
denança. Pediram aos conselheiros legais da cidade que fizessem um estudo
técnico da lei, mas o príncipe-eleitor e seus advogados finalmente decretaram
que o projeto de lei era uma medida de emergência. Uma vez que o mal da
bruxaria havia assumido tal dimensão nos últimos tempos, seria politicamen-
te imprudente seguir a lei ao pé da letra (ou seja, a Constitutio Criminalis de
Carlos V, que proibia os confiscos). No entanto, os advogados da cidade não
estavam totalmente convencidos e sugeriram um acordo. Disseram que era
razoável e justo que as pessoas que estivessem envolvidas no julgamento das
bruxas, os advogados, carrascos etc., recebessem uma taxa como compensação
“por seu trabalho árduo e o tempo gasto no julgamento”. Como o prínci-
pe-eleitor não conseguiu se apropriar do dinheiro da caça às bruxas urbana,
confiscou todos os bens das bruxas executadas nas zonas rurais da diocese.
Mas não era apenas a classe feudal (particularmente os príncipes meno-
res que não podiam competir com a burguesia em ascensão nas cidades ou
com os senhores mais poderosos) que utilizava o confisco da propriedade das
bruxas como um meio para a acumulação de capital, as classes proprietárias
urbanas também o faziam.
Por isso, em Colônia, em 1628, dez anos após o início da guerra, as autori-
dades da cidade introduziram o confisco das propriedades das bruxas. Uma das
legitimações encaminhadas pelos advogados de Colônia era de que as bruxas
haviam recebido muito dinheiro do diabo e que era perfeitamente legítimo

73 Catherine Hernot foi a diretora do escritório dos correios de Colônia, que por muitas ge-
rações foi um negócio familiar. Quando a família de Thurn e Taxis reivindicou o monopólio
de todos os serviços postais, Catherine Hemot foi acusada de bruxaria e queimada na fogueira.
176 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

que esse dinheiro fosse confiscado pelas autoridades como forma de erradicar
a estirpe maligna de feiticeiros e bruxas. Na verdade, parece que, em alguns
casos, tanto as cidades quanto os príncipes usaram os pogroms contra bruxas e
os confiscos de seus bens como uma espécie de auxílio para o desenvolvimen-
to de suas economias arruinadas. Os padres da cidade de Mainz não fizeram
muito barulho sobre sutilezas legais e simplesmente pediram aos seus oficiais
que confiscassem todas as propriedades das bruxas. Em 1618, o Mosteiro de
Santa Clara de Hochheim doou 2 mil florins para a “erradicação das bruxas”.
Esta é a carta que o oficial de justiça Geiss escreveu ao seu Senhor de
Lindheim pedindo-lhe permissão para começar a perseguição, pois precisava
de dinheiro para a restauração de uma ponte e da igreja. Ele mencionava que a
maioria das pessoas estava preocupada com a disseminação do mal da bruxaria:

Se Vossa Senhoria estiver disposta a começar a queima, teremos o prazer


de fornecer a lenha e arcar com todos os outros custos.Vossa Senhoria se
beneficiaria de tal forma que tanto a ponte quanto a Igreja poderiam ser
consertadas.
Ademais, receberia tanto que poderia pagar a seus servos uma remuneração
melhor no futuro, visto que poderiam ser confiscadas casas inteiras, parti-
cularmente as mais abastadas. (citado por Hammes, 1977, p. 254; com base
na trad. de Maria Mies)

Além dos grandes sanguessugas – as autoridades religiosas, os governos


seculares, a classe feudal, as autoridades urbanas, a fraternidade de juristas, os
carrascos –, cresceu todo um exército de pés-rapados que ganhavam a vida
com a queima de bruxas. Monges pedintes perambulavam vendendo fotos
de santos que, se fossem comidas pelos compradores, impediriam que fossem
atingidos pela bruxaria. Havia muitos autoproclamados comissários antibru-
xaria. Como as autoridades pagavam taxas pela descoberta de bruxas, por sua
prisão e pelo interrogatório, eles acumulavam dinheiro vagando de um lugar
para outro, instigando as pessoas pobres a verem na sua miséria a obra das
bruxas. Uma vez generalizada a psicose em determinado local, o comissário
dizia que erradicaria dele a praga. Para isso, em um primeiro momento, en-
viava seu cobrador de casa em casa para coletar contribuições para provar que
os próprios camponeses o haviam convidado. Depois, o comissário organizava
MARI A MI ES 177

duas ou três queimas na fogueira. Se alguém não estivesse disposto a pagar, era
suspeito de ser um feiticeiro, bruxa ou simpatizante das bruxas. Em alguns ca-
sos, as aldeias pagavam antecipadamente uma quantia ao comissário para que
não visitasse seu povoado. Foi o que sucedeu no povoado de Rheinbach, em
Eifel. Mesmo assim, cinco anos depois, o mesmo comissário voltou e, como os
camponeses não estavam dispostos a ceder pela segunda vez a essa chantagem,
acrescentou mais sentenças de morte ao seu recorde, que já havia alcançado a
marca de 800 assassinatos.
A expectativa de ganhos financeiros pode ser vista como uma das princi-
pais razões para a histeria contra as bruxas se espalhar e o motivo pelo qual
quase ninguém foi absolvido. A caça às bruxas era um negócio. Isso é explica-
do de modo convincente por Friedrich von Spee, o qual, em 1633, finalmente
teve a coragem de escrever um livro contra essa prática sórdida. Em seu livro
observou que:
- advogados, inquisidores etc. utilizavam a tortura para mostrar que eram
responsáveis e não atuavam de modo frívolo;
- necessitavam que existissem muitas bruxas para provar que seu trabalho era
necessário;
- não queriam perder a remuneração prometida pelos príncipes para cada
bruxa capturada.
Para resumir, podemos citar Cornelius Loos, que afirmou que os julga-
mentos das bruxas “eram a nova alquimia mediante a qual o sangue humano
se transforma em ouro” (Hammes, 1977, p. 257). Poderíamos acrescentar ou
pontuar que essa alquimia era feita com o sangue de mulheres. O capital acu-
mulado no processo da caça às bruxas, tanto pelas velhas classes dominantes
quanto pela nova classe burguesa em ascensão, não é mencionado em nenhum
lugar nas estimativas e cálculos dos historiadores que estudaram a economia
daquela época. O dinheiro manchado de sangue da caça às bruxas foi usado
para o enriquecimento privado de príncipes em bancarrota, advogados, médi-
cos, juízes e professores, mas também para financiar assuntos públicos como as
guerras, a construção da burocracia e de infraestruturas e, em última instância,
para o financiamento do novo Estado absolutista. Esse dinheiro ensanguen-
tado alimentou o processo original de acumulação de capital, talvez não na
mesma extensão que o saque e o roubo das colônias, mas certamente em uma
extensão maior do que a que se conhece hoje.
178 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Entretanto, a perseguição e tortura das bruxas não foi motivada apenas


por compensações econômicas. O interrogatório das bruxas também propor-
cionou o modelo para o desenvolvimento de um novo método científico
de extração de segredos da Mãe Natureza. Carolyn Merchant mostrou que
Francis Bacon, o “pai” da ciência moderna, fundador do método indutivo,
examinava a natureza com os mesmos métodos e a mesma ideologia que os
caçadores de bruxas usavam para extrair seus segredos, a saber, a tortura, a
destruição e a violência. Bacon utilizou deliberadamente o imaginário da
caça às bruxas para descrever seu novo método científico: tratou a “natureza
como uma mulher torturada por meio de inventos mecânicos” (Merchant,
1983, p. 168), assim como as bruxas eram torturadas por novas máquinas.
Afirmou que o método pelo qual os segredos da natureza poderiam ser
desvelados era o mesmo utilizado para investigar os segredos da bruxaria, o
interrogatório: “Pois você só terá de seguir e, se necessário, assediar a natureza
em seus passeios, para ser capaz de conduzi-la posteriormente ao lugar que
deseja (…)” (citado por Merchant, 1983, p. 168). Defendeu vigorosamente a
quebra de todos os tabus que, na sociedade medieval, proibiam cavar buracos
no ventre da Mãe Terra ou violá-la de alguma maneira: “Um homem não
deve ter nenhum escrúpulo para entrar e penetrar nesses buracos e cantos
quando a inquisição da verdade for o seu objetivo (...)” (Merchant, 1983,
p. 168). Comparou o interrogatório da natureza ao que se fazia às bruxas e
testemunhas nas salas dos tribunais:

Refiro-me a examinar (tal qual a prática nas causas civis) neste pleito ou
processo concedido pelo desígnio e pela providência divina (no qual a
raça humana procura recuperar seu direito sobre a natureza) a natureza em
si mesma e suas artes por meio de interrogatórios (…). (Merchant, 1983,
p. 169)

A natureza não lhe cederia segredos a menos que fosse violada forçosa-
mente com o emprego das novas invenções mecânicas:

Posto que a capacidade de um homem não é conhecida e provada até que


ele seja crucificado, nem Proteu mudava de forma até ser restringido e segu-
rado, também a natureza se exibe mais explicitamente frente a experimentos
MARI A MI ES 179

e constrangimentos da arte (dos dispositivos mecânicos) do que quando se


espera que ela se revele por si mesma. (citado por Merchant, 1983, p. 169)

De acordo com Bacon, a natureza deve ser “colocada a serviço”, “escravi-


zada”, “reprimida”, “dissecada”; assim como “o útero da mulher cede simbo-
licamente ao fórceps, o útero da natureza abriga segredos que, por meio da
tecnologia, podiam ser arrancados de seu domínio para serem utilizados na
melhoria da condição humana” (Merchant, 1983, p. 169).
O método científico de Bacon, que ainda hoje é a base da ciência mo-
derna, unificou conhecimento e poder material. Muitas das invenções tecno-
lógicas estavam, de fato, relacionadas à guerra e à conquista, como a pólvora,
a navegação ou o ímã. Essas “artes da guerra” foram combinadas com o co-
nhecimento – como uma cópia. A violência era, portanto, a palavra-chave e o
principal método pelo qual o Novo Homem estabeleceu seu domínio sobre as
mulheres e a natureza. Esses meios de coerção “não exercem, como os antigos,
apenas uma sutil orientação sobre o curso da natureza; eles têm o poder de
conquistá-la e subjugá-la, de abalar os seus alicerces” (Merchant, 1983, p. 172).
Carolyn Merchant conclui da seguinte maneira:

O interrogatório das bruxas como símbolo para o interrogatório da natu-


reza, a sala do tribunal como modelo para a sua inquisição e a tortura por
meio de dispositivos mecânicos como ferramenta para subjugar a desordem
foram fundamentais para o método científico como poder. (Merchant, 1983,
p. 172; destaque da autora)

A classe que se beneficiou desse novo domínio científico patriarcal sobre as


mulheres e a natureza foi a emergente classe capitalista e protestante de mer-
cadores, industriais da mineração e comerciantes. Para essa classe, era necessá-
rio que a antiga autonomia das mulheres sobre sua sexualidade e capacidade
reprodutiva fosse destruída e que as mulheres fossem forçadas a gerar mais
trabalhadores. De forma semelhante, a natureza precisou ser transformada em
um vasto reservatório de recursos materiais a serem explorados e transforma-
dos em lucro por essa classe.
Portanto, a Igreja, o Estado, a nova classe capitalista e os cientistas moder-
nos colaboraram na subjugação violenta das mulheres e da natureza. As fracas
180 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mulheres vitorianas do século XIX foram o produto dos métodos de terror


pelos quais essa classe moldou e deu forma à “natureza feminina” de acordo
com seus interesses (Ehrenreich & English, 1979).

COLONIZAÇÃO E ACUMULAÇÃO PRIMITIVA DE CAPITAL

O período ao qual nos referimos até agora ficou conhecido como o perío-
do da acumulação primitiva de capital. Para que o modo de produção capitalista
pudesse se estabelecer e se manter como um processo de reprodução prolon-
gada do capital – impulsionado pelo motor da produção de mais-valia – era
necessário acumular suficiente capital para começar esse processo. O capital
foi amplamente acumulado nas colônias entre os séculos XVI e XVII. A maior
parte desse capital não foi acumulado por meio do comércio “justo” realizado
pelos mercadores capitalistas, mas resultou principalmente do banditismo, da
pirataria, da servidão e do trabalho escravo.
Mercadores portugueses, espanhóis, holandeses e ingleses procuraram que-
brar o monopólio veneziano do comércio de especiarias com o Leste. Muitas
das descobertas hispano-portuguesas foram inspiradas no desejo de encontrar
uma rota marítima independente para o Oriente. Na Europa, o resultado
foi uma revolução de preços ou inflação devido: 1) ao desenvolvimento da
técnica para separação do cobre e da prata; 2) à pilhagem de Cuzco e ao
uso de mão de obra escravizada. O preço desse metal precioso despencou, o
que promoveu a ruína da já exaurida classe feudal e dos artesãos assalariados.
Mandel conclui:

A queda nos salários reais – particularmente marcada pela substituição do


pão por batatas baratas como alimento básico do povo – tornou-se uma
das principais fontes de acumulação primitiva de capital industrial entre os
séculos XVI e XVIII. (Mandel, 1971, p. 107)

É possível afirmar que a primeira fase da acumulação primitiva foi a do capital


mercantil e comercial saqueando e explorando implacavelmente as riquezas
humanas e naturais das colônias. É por isso que houve uma “uma acentuada
escassez de capital na Inglaterra” por volta de 1550:
MARI A MI ES 181

Em poucos anos, as expedições piratas contra a frota espanhola, todas or-


ganizadas sob a forma de sociedades por ações, mudaram a situação (...).
O primeiro empreendimento pirata de [Francis] Drake nos anos 1577-1580
começou com um capital de £5.000 (…) e produziu cerca de £600.000
de lucro, sendo que metade deste montante foi destinado à Rainha. Beard
estima que os piratas introduziram cerca de £12 milhões na Inglaterra du-
rante o reinado de Elizabeth. (Mandel, 1971, p. 108)

A história dos conquistadores espanhóis, que despovoaram completamente


regiões como Haiti, Cuba e Nicarágua e exterminaram cerca de quinze mi-
lhões de indígenas, é bem conhecida. A segunda chegada de Vasco da Gama à
Índia em 1502-1503 também foi marcada pelo mesmo experimento sangrento.

Foi uma espécie de cruzada (…) de mercadores de pimenta, cravo e canela.


Salpicada com horríveis atrocidades; parecia valer tudo contra os odiados
muçulmanos, os quais os portugueses ficaram surpresos em encontrar no-
vamente do outro lado do mundo (…). (Hauser citado por Mandel, 1971,
p. 108)

A expansão comercial foi baseada desde o início no monopólio. Os holan-


deses expulsaram portugueses e ingleses:

Não surpreende, portanto, que os mercadores holandeses, cujos lucros


dependiam do monopólio sobre as especiarias obtidas por meio de con-
quistas no arquipélago indonésio, passassem à destruição em massa de
árvores de canela nas pequenas ilhas das Molucas assim que os preços co-
meçaram a cair na Europa. As “Hongi Voyages” para destruir essas árvores
e massacrar a população que durante séculos havia tirado seu sustento
desse cultivo deixaram uma sinistra marca na história da colonização ho-
landesa, que, de fato, começou no mesmo estilo. O almirante J. P. Coen
não hesitou em exterminar todos os habitantes homens das ilhas Banda.
(Mandel, 1971, p. 108)

As companhias mercantis – a Companhia Holandesa das Índias Orientais,


a Companhia Britânica das Índias Orientais, a Companhia da Baía de Hudson
182 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

e a Companhia Francesa das Índias Orientais – combinaram o comércio de espe-


ciarias com o comércio de escravos:

Entre 1636 e 1645, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais vendeu


23 mil negros por 6,7 milhões de florins ao todo, ou seja, cerca de 300
florins por cabeça, enquanto os bens dados em troca de cada escravo não
valiam mais do que 50 florins. Entre 1728 e 1760, os navios que partiam
de Le Havre transportaram para as Antilhas 203 mil escravos comprados
no Senegal, na Costa do Ouro, em Loango etc. A venda desses escravos
rendeu 203 milhões de libras francesas. De 1783 a 1793, os escravistas de
Liverpool venderam 300 mil escravos por 15 milhões de libras esterlinas,
que foram investidas na criação de empreendimentos industriais. (Mandel,
1971, p. 110)

Mandel e outros autores que analisaram esse período não falam muito
sobre como o processo de colonização afetou as mulheres nas colônias por-
tuguesas, holandesas, inglesas e francesas recém estabelecidas na África, Ásia e
América Central e Latina. Como o capitalismo mercantil dependia principal-
mente da força bruta, especialmente do roubo e a pilhagem, podemos supor
que as mulheres também foram vítimas desse processo.
Os trabalhos recentes de acadêmicas feministas proporcionaram mais ex-
plicações sobre os lados ocultos do “processo civilizatório”. O trabalho de
Rhoda Reddock sobre as mulheres e a escravidão no Caribe evidencia como
os colonizadores usaram dois pesos e duas medidas, uma para as mulheres dos
povos subjugados e outra para suas “próprias” mulheres. As mulheres escraviza-
das no Caribe foram proibidas de se casar ou ter filhos por um longo período;
era mais barato importar escravos do que pagar pela reprodução do trabalho
escravizado. Ao mesmo tempo, a classe burguesa domesticou suas “próprias”
mulheres para que se tornassem meras reprodutoras monogâmicas de seus
herdeiros, excluindo-as do trabalho fora de casa e do acesso às propriedades.
Todo o violento ataque aos povos da África, Ásia e América pelos mer-
cadores capitalistas europeus foi justificado como uma missão civilizatória das
nações cristãs. Aqui encontramos a conexão entre o processo “civilizador”
pelo qual as mulheres pobres europeias foram perseguidas e “disciplinadas”
durante a caça às bruxas e a “civilização” dos povos “bárbaros” nas colônias.
MARI A MI ES 183

Os dois grupos foram definidos como incontrolados, perigosos, de “natureza”


selvagem, e ambos tiveram de ser subjugados por meio da força e da tortura,
usadas para vencer sua resistência ao roubo, à expropriação e à exploração.

AS MULHERES SOB O COLONIALISMO

Como demonstrou Rhoda Reddock (1984), a atitude dos colonizadores


em relação à escravidão e às mulheres escravizadas no Caribe foi baseada niti-
damente nos cálculos capitalistas de custo-benefício. Isso era particularmente
verdadeiro no que diz respeito à questão de permitir ou não que as mulheres
escravizadas “reproduzissem” mais escravos. Ao longo dos séculos do comér-
cio moderno de escravizados e da economia escravista (de 1655 a 1838), essa
questão não foi respondida de acordo com os princípios da ética cristã – que
supostamente se aplicavam à “pátria mãe” –, mas segundo as necessidades de
acumulação dos capitalistas proprietários de terra. Assim, durante esse primei-
ro período, que vai de 1655 ao início do século XVIII, quando a maioria das
propriedades eram pequenas porções de terra cultivadas por poucos escravos,
os proprietários ainda dependiam, seguindo o modelo campesino de repro-
dução, da reprodução natural da população escravizada. O segundo período
é caracterizado pela chamada revolução açucareira, a introdução da produção
de açúcar em grande escala. Nesse período, que começou por volta de 1760
e que duraria até aproximadamente 1800, as mulheres escravizadas foram ati-
vamente dissuadidas de conceber filhos ou formar famílias. Os proprietários
de terras, como bons capitalistas, defendiam que era “mais barato comprar do
que reproduzir” escravizados. Esse foi o caso em todas as colônias de açúcar,
independentemente de estarem sob domínio católico (francês) ou protestan-
te (britânico, holandês). De fato, mulheres escravizadas que ficavam grávidas
eram insultadas e maltratadas. Além disso, o trabalho árduo nas plantações de
açúcar não permitia que as mulheres escravizadas cuidassem dos bebês. G. M.
Hall explicava a razão por trás dessa política antinatalista dos proprietários de
terra em um informe sobre suas trabalhadoras em Cuba:

Durante e depois da gravidez, a escrava fica inutilizável por vários meses, e


seu alimento deve ser mais abundante e mais bem cuidado. Essa perda de tra-
184 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

balho e as despesas adicionais saem do bolso do amo. É ele que tem de pagar
pelos cuidados, geralmente prolongados, com o recém-nascido. Essa despesa
é tão considerável que o negro nascido na plantação custará mais quando
estiver em condições de trabalhar do que teria custado outro, comprado na
mesma idade, no mercado público. (Hall, citado por Reddock, 1984, p. 16)

Na colônia francesa de São Domingos, os proprietários calcularam que


o trabalho de uma escrava durante um período de dezoito meses valia 600
libras francesas. Dezoito meses era o tempo calculado para a gravidez e a ama-
mentação. Durante este tempo a mulher escravizada só poderia fazer metade
de seu trabalho normal. Portanto, o amo perderia 300 libras francesas. “Um
escravo de quinze meses não valia tudo isso” (Hall, citado por Reddock, 1984,
p. 16). O efeito dessa política foi, como muitos estudiosos descobriram, que a
“fertilidade” das mulheres escravizadas era extremamente baixa durante esse
período e em boa parte do século XIX (Reddock, 1984).
No final do século XVIII, tornou-se evidente que a África Ocidental não
podia mais ser considerada um terreno propício para a caça de pessoas para
a escravidão. Logo, os colonizadores britânicos consideraram mais lucrativo
incorporar a própria África ao seu império como fonte de matéria-prima
e minerais. Além disso, os setores mais “progressistas” da burguesia britânica
defendiam a abolição do comércio de escravizados – o que aconteceu em
1807 – e o apoio à “reprodução local”. O governo colonial previu uma sé-
rie de incentivos na legislação sobre a escravidão dos séculos XVIII e XIX
para encorajar a reprodução local de escravizados por mulheres escravizadas
nas plantations. Essa mudança repentina de política, entretanto, parece ter tido
pouco efeito sobre as mulheres escravizadas. Como aponta Rhoda Reddock,
nos longos anos da escravidão as mulheres escravizadas haviam internalizado
uma atitude antimaternidade como forma de resistência ao sistema escravista;
elas mantiveram uma espécie de greve de ventres até meados do século XIX.
Quando engravidavam, usavam ervas para induzir abortos ou, quando as crian-
ças nasciam, “deixavam que muitas morressem devido à rejeição natural das
mulheres a criá-las para vê-las serem escravizadas, destinadas a labutar por toda
a vida para o enriquecimento de seus amos” (Moreno-Fraginals, 1976, citado
por Reddock, 1984, p. 17). Rhoda Reddock vê nessa atitude “antimaternal”
das mulheres escravizadas um exemplo da “forma como a ideologia das classes
MARI A MI ES 185

dominantes poderia, por razões materiais diferentes, ainda que conectadas,


tornar-se uma ideologia assumida pelos oprimidos” (Reddock, 1984, p. 17).
Os senhores coloniais colhiam assim os frutos – ou melhor, os fracassos
– por tratarem as mulheres africanas como meros meios de produção para a
acumulação de capital. O problema da escassez de mão de obra nas plantações
no Caribe tornou-se tão agudo devido à greve de ventres das mulheres escra-
vizadas que, em Cuba, foram montados autênticos “criadouros”, e a reprodu-
ção de escravizados tornou-se um negócio regular (Moreno-Fraginals, citado
por Reddock, 1984, p. 18). Rhoda Reddock resume a mudança na política
dos colonizadores em relação às capacidades procriadoras das mulheres escra-
vizadas da seguinte maneira:

Enquanto a África esteve incorporada à economia mundial capitalista ape-


nas como produtora de mão de obra humana, não havia necessidade de
produzir força de trabalho localmente. Fazendo a análise do custo-bene-
fício, os proprietários de terras adotaram a linha de ação mais lucrativa.
Quando já não era mais rentável, foram surpreendidos pela resistência de-
monstrada pelas mulheres escravizadas, que (...) reconheciam nitidamente
sua posição como propriedade de seus amos. O fato é que durante mais de
cem anos, em sua maioria, as mulheres escravizadas no Caribe não foram
esposas nem mães e, ao exercer o controle sobre suas capacidades repro-
dutivas, foram capazes de afetar profundamente a economia de plantation.
(Reddock, 1984, p. 18)

Os mais de cem anos nos quais “as mulheres escravizadas no Caribe não
foram esposas nem mães” correspondem exatamente ao período no qual as
mulheres da burguesia europeia foram domesticadas e manipuladas ideolo-
gicamente para que aceitassem o matrimônio e a maternidade como sua vo-
cação “natural” (Badinter, 1980). Enquanto as mulheres de um grupo foram
tratadas como simples força de trabalho, como fonte de energia, as mulheres
do outro grupo foram tratadas apenas como reprodutoras “não produtivas”.
É, de fato, uma ironia da história que mais tarde, no século XIX, os
colonizadores tentassem desesperadamente introduzir as regras da família
nuclear e o casamento monogâmico na população de ex-escravizados do
Caribe. Mas tanto as mulheres quanto os homens não sentiram que seriam
186 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

beneficiados ao adotar essas normas e rejeitaram o casamento. Agora, a política


antinatalista se voltava contra os colonizadores, como uma faca de dois gumes.
Para poder explorar livremente os escravizados, eles os definiram durante
séculos como seres fora da humanidade e da cristandade. Tiveram o apoio de
etnólogos que afirmavam que negros não pertenciam à mesma “espécie” dos
europeus (Caldecott, 1970, p. 67). Consequentemente, escravizados não po-
diam se tornar cristãos porque, de acordo com a Igreja da Inglaterra, nenhum
cristão poderia ser escravizado.
Quando, por volta de 1780, a legislação sobre a escravidão começou a
encorajar o casamento entre os escravizados como um meio de estimular a
reprodução local de escravos, a reação dos escravizados foi a de menosprezar
esta atitude da “casta alta” e continuar suas uniões de acordo com sua “lei
consuetudinária”. Isso significava que uma mulher poderia viver com um ho-
mem pelo tempo que quisesse; o mesmo também se aplicava aos homens. As
mulheres escravizadas viam o laço do casamento como algo que as sujeitaria
ao controle de um homem, que poderia até espancá-la. Os homens queriam
mais de uma esposa e, portanto, rejeitaram o casamento. Os missionários e
proprietários de terras que tentaram introduzir o modelo de relações entre
homens e mulheres da classe média europeia ficaram exasperados. Um histo-
riador eclesiástico, Caldecott, finalmente encontrou uma explicação para essa
resistência aos benefícios da civilização no fato de que os negros não eram ca-
pazes de “controlar suas vontades” (seus desejos sexuais) e, portanto, evitavam a
constância: “Entre eles, tanto os homens quanto as mulheres são assim; na raça
negra há uma maior igualdade entre os sexos do que a que é encontrada nas
raças europeias” (Caldecott, citado por Reddock, 1984, p. 47). A “igualdade
entre os sexos”, entretanto, era vista como um sinal de uma raça primitiva e
atrasada, noção comum entre os colonizadores e etnólogos do século XIX.
Um certo Sr. Harold Fielding Hall “explica” em seu livro A People at School
[O povo na escola] que a igualdade entre homens e mulheres é um sinal de
atraso e que faz parte da “missão civilizadora” dos colonialistas britânicos des-
truir a independência das mulheres colonizadas e ensinar aos homens coloni-
zados as “virtudes” do sexismo e do militarismo.74 Hall foi conselheiro político

74 Localizei trechos surpreendentes da obra de Hall em um texto intitulado “Militarism ver-


sus Feminism” [“Militarismo versus Feminismo”], publicado anonimamente em Londres, em
1915, por George Allen & Unwin Ltd. As autoras, provavelmente feministas britânicas, escreve-
MARI A MI ES 187

na administração colonial britânica na Birmânia entre 1887 e 1891. Ele faz um


vívido relato da independência das mulheres birmanesas, da igualdade existente
entre os sexos e da natureza pacífica do povo birmanês, adepto ao budismo.
Mas, em vez de tentar preservar essa feliz sociedade, Hall chega à conclusão de
que a Birmânia deveria ser conduzida à força para o caminho do progresso:
“Mas hoje as leis são as nossas, assim como o poder e a autoridade. Governamos
para nossos próprios súditos e à nossa maneira. Nossa presença aqui é indeseja-
da”. E sugere as seguintes medidas para civilizar o povo birmanês:
1. Os homens devem ser ensinados a matar e a lutar pelos colonizadores
britânicos: “Não consigo imaginar nada que pudesse fazer mais bem aos
birmaneses do que ter um regimento próprio, para se destacarem em nos-
sas guerras. Isso abriria seus olhos para novas formas de vida” (Hall, [s.d.],
p. 264).
2. As mulheres devem submeter sua liberdade aos interesses dos homens.

Considerando a igualdade dos sexos um sinal de atraso, esse administrador


colonial alertava: “Nunca se deve esquecer que a civilização deles está cerca
de mil anos atrás da nossa”. Para superar esse atraso, os homens birmaneses
deveriam aprender a matar, a guerrear e a oprimir suas mulheres. Nas palavras
de Hall: “A faca do cirurgião está para o corpo doente assim como a espada
do soldado está para as nações enfermas”. E ainda:

(...) o evangelho do progresso, do conhecimento, da felicidade (...) não


pode ser ensinado por meio de livros e sermões, mas da lança e da espada
(...) Afirmar, como faz o budismo, que a bravura não importa; ou dizer-
-lhes, como fazem as mulheres, que “vocês não são nem mais nem me-
lhores do que nós” e que deveríamos ter o mesmo modo de vida; poderia
existir algo pior?

ram uma análise notável do antagonismo histórico entre militarismo e feminismo como uma
contribuição para o Movimento de Mulheres, especialmente em apoio ao Movimento Inter-
nacional de Mulheres pela Paz, o qual tentou, junto com a Aliança Sufragista Internacional,
unir as mulheres europeias e estadunidenses em uma frente comum contra a guerra. Devido
ao contexto bélico, as autoras publicaram sua investigação de forma anônima e não fornecem
as referências completas dos livros que citam. Por isso, o livro de Hall, A People at School, é re-
ferido apenas pelo título e pelos números das páginas. O texto completo de “Militarism versus
Feminism” está disponível para consulta na Biblioteca do Congresso, em Washington D.C.
188 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Hall também busca a ajuda de etnólogos para defender essa ideologia do


homem-caçador: “Homens e mulheres ainda não estão suficientemente di-
ferenciados na Birmânia. Como afirmam os etnólogos, isso é o sinal de uma
raça jovem. Nos primeiros povos a diferença era muito pequena. À medida
que uma raça se aprimora, a diferença aumenta.” Em seguida, Hall descreve
como as mulheres birmanesas foram, por fim, “rebaixadas” ao status das donas
de casa civilizadas e dependentes. As indústrias domésticas locais, que ante-
riormente estavam nas mãos de mulheres, foram destruídas pela importação
de mercadorias da Inglaterra. As mulheres foram expulsas do comércio: “Em
Rangun, grandes lojas inglesas estão minando os bazares nos quais as mulheres
costumavam ganhar a vida de modo independente”.
Após a perda de sua independência econômica, Hall considera de extre-
ma importância alterar as leis de matrimônio e herança para que a Birmânia
também possa se tornar uma terra “progressista” onde os homens governam.
As mulheres precisam entender que sua independência é um obstáculo ao
progresso:

Junto com sua capacidade de independência desaparecerá seu livre arbítrio


e sua influência. Quando a mulher depende do marido, deixa de poder
mandar nele. Quando o homem a alimenta, a mulher já não pode fazer com
que sua voz seja ouvida como a dele. É inevitável que se recolha (...). As
nações que tiveram sucesso não são nações femininas, mas sim masculinas. A
influência da mulher é boa, desde que não vá longe demais. Contudo, isso
foi o que aconteceu aqui. Tem sido ruim tanto para o homem quanto para
a mulher. Nunca foi bom para as mulheres serem muito independentes, isso
as privou de muitas virtudes. Um homem é melhor ao ter que trabalhar
para sua esposa e família, isso o torna um homem de verdade. É desmorali-
zante para ambos que a mulher consiga sustentar a si mesma e, se necessário,
também a seu marido. (Hall, [s.d.], p. 266)

Estudos históricos sobre mulheres da África Ocidental mostram que as


mulheres africanas levadas para o Caribe como escravas não foram escravi-
zadas porque eram “atrasadas” ou menos “civilizadas” que os colonizadores,
mas, pelo contrário, foram esses colonizadores e a própria escravidão que as
tornaram “selvagens”. George Brooks, por exemplo, mostra em seu trabalho
MARI A MI ES 189

sobre as signares – mulheres negociantes no Senegal do século XVIII – que


essas mulheres, particularmente do povo Wolof, ocupavam uma posição so-
cial elevada nas sociedades da África Ocidental pré-colonial. Além disso, os
primeiros mercadores portugueses e franceses que chegaram ao Senegal em
busca de mercadorias dependiam totalmente da cooperação e da boa vontade
dessas mulheres poderosas, que estabeleciam alianças sexuais e comerciais com
esses homens europeus. Elas não eram apenas possuidoras de grandes riquezas,
acumuladas por meio do comércio com outras regiões, como também de-
senvolveram um estilo de vida tão refinado, com tamanho gosto pela beleza
e elegância que os primeiros aventureiros europeus que tiveram contato com
elas ficaram perplexos. Brooks (1976, p. 24) cita a descrição do reverendo John
Lindsay, capelão a bordo de um navio britânico:

Quanto às suas mulheres, em particular as damas (pois é assim que devem


ser denominadas muitas delas no Senegal), são surpreendentemente bonitas,
têm traços muito finos, são de maravilhoso trato, extremamente educadas
tanto no diálogo quanto nos modos; no quesito de se manterem asseadas e
limpas (geralmente temos ideias insólitas sobre isso, em função da preguiça
bestial dos escravos), superam em muito os europeus em todos os aspectos.
Tomam banho duas vezes ao dia (…) e neste aspecto em particular têm um
cordial desprezo por todos os brancos, que imaginam serem desagradáveis, e
especialmente por nossas mulheres. Nenhum de seus homens, se fosse colo-
cado diante da mais bela de nossas mulheres, sentiria mais do que a mais fria
indiferença. Algumas dessas mulheres que existem aqui, agora senhoras de
nossos oficiais, vestem-se de maneira tão vistosa que, mesmo na Inglaterra,
considerar-se-ia que o fazem belamente.

Os homens europeus – portugueses e franceses que chegaram à África


Ocidental como mercadores ou soldados – chegavam geralmente sozinhos,
sem esposas ou famílias. Suas alianças com as “damas” ou signares (da palavra
senhoras, em português) lhes pareciam tão atrativas que se casavam com elas,
de acordo com o estilo Wolof, e muitas vezes simplesmente adotavam o modo
de vida africano. Seus filhos, eurafricanos, frequentemente alcançavam altos
cargos na sociedade colonial e suas filhas geralmente se tornavam novamen-
te signares. Obviamente, os colonizadores portugueses e franceses ainda não
190 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tinham fortes preconceitos racistas contra as relações sexuais e matrimoniais


com mulheres da África Ocidental e achavam essas alianças não apenas van-
tajosas, como também humanamente satisfatórias.
Com a chegada dos britânicos à África Ocidental, a atitude católica em re-
lação às mulheres africanas mudou. Os soldados, mercadores e administradores
britânicos não estabeleceram alianças matrimoniais com as signares, mas as trans-
formaram em prostitutas. Este parece ser o momento na história em que o racis-
mo propriamente dito entra em cena: a mulher africana é degradada e tornada
prostituta pelos colonizadores britânicos e, em seguida, são propagadas teorias
sobre a superioridade racial do homem branco e a “bestialidade” das mulheres
africanas. Obviamente, a historiografia colonial britânica é reticente em relação
a esses aspectos de sua história, assim como a holandesa. No entanto, Brooks
afirma que a instituição das signares não se enraizou na Gâmbia porque foi

sufocada pelo influxo constante de britânicos, alguns dos quais, fossem co-
merciantes, funcionários do governo ou oficiais militares, se desviavam do
comportamento britânico “adequado” para viver abertamente com mulhe-
res africanas ou euroafricanas, ainda que tivessem de fazê-lo clandestina-
mente. Os autores britânicos são circunspectos em relação a esses assuntos,
mas pode-se perceber que, em contraste com a vida familiar dos comer-
ciantes e suas signares, ali se desenvolveu (...) uma comunidade de solteiros
desenraizados do mesmo tipo encontrado em outras áreas britânicas da
África Ocidental. Uma das características dessa comunidade era o racismo
aberto e contumaz; outras duas eram o jogo desmedido e o alcoolismo.
(Brooks, 1976, p. 43)

Esses relatos corroboram não apenas a tese geral de Walter Rodney de que
“a Europa subdesenvolveu a África”, mas também nosso principal argumento
de que o processo colonial, à medida que avançava, rebaixou progressiva-
mente as mulheres dos povos colonizados de uma posição de relativo poder
e independência para uma de “bestialidade” e “natureza” degradada. Essa “na-
turalização” das mulheres colonizadas é a contrapartida da “civilização” das
mulheres europeias.
A “definição de que eram parte da natureza” ou a “naturalização” das
mulheres africanas que foram levadas como escravas para o Caribe é talvez
MARI A MI ES 191

a maior evidência da hipocrisia e das duas caras da colonização europeia:


enquanto as mulheres africanas eram tratadas como “selvagens”, as mulheres
dos colonizadores brancos em suas pátrias “ascenderam” ao status de “damas”.
Esses dois processos não aconteceram de forma coordenada, mas não são
simples paralelismos históricos, estão vinculados de forma causal e intrínseca
ao modo de produção capitalista patriarcal. Essa criação das figuras da mulher
“selvagem” e da mulher “civilizada” e a polarização entre as duas foi, e ainda
é, o princípio estrutural organizativo de outras partes do mundo submetidas
ao colonialismo capitalista. Ainda não há pesquisas históricas suficientes sobre
os efeitos do processo colonizador nas mulheres, mas as poucas evidências
que temos corroboram essa observação. Também explicam as mudanças na
política colonial em relação às mulheres – seguindo as flutuações do processo
de acumulação –, como apontou Rhoda Reddock.
Assim, Annie Stoler descobriu que, na outra extremidade do globo, em
Sumatra, no início do século XX, os holandeses seguiram uma política seme-
lhante em relação às mulheres:

Em certos momentos da expansão da propriedade, por exemplo, as mulhe-


res foram ostensivamente recrutadas em Java como coolies75 e trazidas, na
sua maioria, para Sumatra para atender às necessidades domésticas, inclusive
sexuais, dos trabalhadores e administradores solteiros. A prostituição não foi
apenas aprovada, mas também promovida. (Stoler, 1982, p. 90)

O que impulsionava os proprietários de terras, assim como os franceses


ou ingleses no Caribe, era o lucro, e esse motivo, como observa Annie Stoler,
explica as flutuações na política colonial holandesa frente às mulheres. Nos
relatos coloniais, as “questões relativas aos contratos matrimoniais, enfermida-
des, prostituição e agitação trabalhista são assinaladas em função do seu efeito
sobre os lucros; durante a primeira década do século, os trabalhadores casados
eram considerados demasiado custosos e os contratos de matrimônio eram,
portanto, difíceis de obter” (Stoler, 1982, p. 97).

75 O termo coolie foi usado historicamente para designar trabalhadoras e trabalhadores braçais
asiáticos, especialmente chineses e indianos, durante o século XIX e início do século XX. [N.
das T.]
192 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Obviamente, era mais barato tornar as mulheres prostitutas. Entretanto,


quando quase metade das trabalhadoras no norte de Sumatra foi acometida
por doenças venéreas e teve de ser hospitalizada às custas da empresa, tor-
nou-se mais lucrativo encorajar o casamento entre os trabalhadores da ad-
ministração colonial. Esse processo ocorreu entre as décadas de 1920 e 1930.
Se, em um primeiro momento, as mulheres migrantes eram suficientemente
boas para fazer todo o trabalho duro nas plantations, agora um processo de
donadecasificação acontecia para excluir as mulheres residentes do trabalho
assalariado nos latifúndios. Annie Stoler escreve:

Em diferentes momentos econômicos e políticos da história das plantations,


os proprietários de terras argumentaram que (1) era muito custoso manter
as trabalhadoras permanentes devido a todo o tempo que precisavam ter
livre para o parto e a menstruação, (2) as mulheres não deveriam e não
podiam realizar trabalhos “pesados” e (3) as mulheres eram mais adequadas
para o trabalho eventual. (Stoler, 1982, p. 98)

As estatísticas evidenciam que a introdução da imagem da “mulher fraca” foi


um movimento explicitamente ideológico que serviu ao propósito econômico
de reduzir os salários das mulheres e criar um remanescente de força de trabalho
feminina eventual. Na realidade, o Coolie Budget Report [Informe Orçamentário
sobre os Coolies] de 1903 afirma que, devido à gravidez, as mulheres se ausenta-
ram de apenas 1% do total de dias de trabalho (Stoler, 1982, p. 98).
Rhoda Reddock (1984) também proporciona, ao final de seu estudo, am-
pla evidência desse processo – na mesma época, mas na colônia britânica de
Trinidad – de exclusão das mulheres do trabalho assalariado e de sua definição
como “dependentes”.
Como no caso dos colonizadores holandeses, o principal objetivo era o
lucro, e o melhor mecanismo para obtê-lo foram as políticas e valores contra-
ditórios aplicados às mulheres “civilizadas” de seus países de origem, por um
lado, e às mulheres “selvagens”, em Sumatra, por outro. O fato de usarem dois
conjuntos de valores diametralmente opostos para os dois grupos de mulheres
obviamente não supunha um problema moral. A prostituição se tornou um
problema público apenas quando deixou de ser lucrativo recrutar mulheres
como prostitutas. Mais uma vez, temos de enfatizar que o surgimento da dona
MARI A MI ES 193

de casa holandesa, da pressão sobre a família e das tarefas domésticas “do lar”
não foram apenas uma coincidência temporal, mas estão vinculadas de forma
causal à desagregação de famílias e lares entre os trabalhadores das plantations
das colônias holandesas.

AS MULHERES SOB O COLONIALISMO ALEMÃO

Enquanto os exemplos anteriores da política colonial britânica e holande-


sa em relação às mulheres se concentram principalmente na perspectiva das
colônias em relação ao quadro geral, o exemplo a seguir, baseado no estudo
de Martha Mamozai sobre o impacto do colonialismo alemão nas mulheres,
inclui o efeito que esse processo teve sobre as mulheres alemãs “no lar”. Ele
nos ajudará, assim, a perceber mais plenamente a face dupla do processo de
colonização e donadecasificação.
A Alemanha entrou na corrida pelo saque e distribuição do mundo bem
mais tarde. A Sociedade Colonial Alemã foi fundada em 1884 e, desde esse
momento até o início da Primeira Guerra Mundial – resultado direto da
luta interimperialista entre as nações europeias pela hegemonia mundial –, o
governo do Reich alemão encorajou o estabelecimento de colônias alemãs,
especialmente na África.
Segundo o estudo de Mamozai, a colonização não afetou homens e mu-
lheres da mesma maneira, mas utilizou a divisão sexual especificamente capi-
talista do trabalho para colocar a força de trabalho dos africanos sob o jugo
do capital e do Homem Branco. Como geralmente ocorre com os conquista-
dores, invasores e colonizadores, os primeiros alemães que chegaram à África
Ocidental, por volta de 1880, estavam solteiros. Tal como os portugueses e
franceses na África Ocidental, os alemães também estabeleceram relações se-
xuais e matrimoniais com as mulheres africanas. Muitos formaram famílias
convencionais com essas mulheres. Depois de algum tempo, ficou evidente
que esses casamentos acabariam originando uma nova geração de eurafricanos
de “sangue mestiço”, os quais, seguindo as leis da família patriarcal e burguesa
na Alemanha, seriam alemães com plenos direitos econômicos e políticos.
Houve debates acalorados sobre a “questão colonial”, ou a “questão dos nati-
vos”, no Palácio do Reichstag [Parlamento Federal da Alemanha], centrados,
194 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

por um lado, na questão dos “casamentos mistos” e dos “bastardos” – ligada à


preocupação com os privilégios da raça branca – e, por outro, na produção,
subjugação e disciplinamento da força de trabalho africana necessária para as
propriedades e projetos alemães.
O governador Friedrich von Lindquist se referia à “questão dos bastardos
no sudoeste da África” da seguinte maneira:

A considerável preponderância de homens brancos sobre a população de


mulheres brancas é uma situação lamentável que terá grande importância
para a vida e o futuro do país. Isso levou a um número considerável de
relações mistas, o que é particularmente lastimável porque, além dos efeitos
negativos da mistura de raças, a minoria branca na África do Sul só pode-
rá preservar seu domínio sobre os de cor mantendo sua raça pura. (Von
Lindquist, citado por Mamozai, 1982, p. 125; com base na trad. de Maria
Mies)

Por conta disso, em 1905, foi aprovada uma lei que proibia os casamentos
entre homens europeus e mulheres africanas. Em 1907, foram declarados nu-
los e sem efeito inclusive os casamentos celebrados anteriormente. Aqueles
que viviam em tais uniões, incluindo seus “bastardos”, perderam seus direitos
como cidadãos em 1908, incluindo o direito ao voto. O objetivo dessa lei
era, explicitamente, preservar os direitos de propriedade nas mãos da minoria
branca. Se os afro-alemães tivessem os mesmos direitos dos cidadãos alemães,
incluindo o direito ao voto, poderiam, com o passar do tempo, superar o nú-
mero dos brancos “puros” nas eleições. No entanto, a proibição do casamento
entre homens europeus e mulheres negras não significava que o Reichstag
quisesse colocar restrições à liberdade sexual dos colonizadores. Pelo contrário,
médicos inclusive aconselhavam que os homens alemães recrutassem mulheres
africanas como concubinas e prostitutas. Era o que aconselhava o Dr. Max
Bucher, representante do Reich Alemão:

Quanto às relações sexuais livres com as filhas desta terra, isso deve ser visto
como vantajoso e não como prejudicial à saúde. Mesmo sob a pele escura,
o “Eterno Feminino” é um excelente fetiche contra a privação emocional
que ocorre tão habitualmente na solidão africana. Além desses benefícios
MARI A MI ES 195

psicológicos, existem também vantagens práticas para a segurança pessoal.


Ter uma amiga íntima negra significa estar protegido contra muitos perigos.
(citado por Mamozai, 1982, p. 129)

Isso significa que as mulheres negras eram boas o suficiente para servir aos
homens brancos como prostitutas e concubinas, mas não deveriam se tornar
propriamente “esposas” porque, a longo prazo, isso mudaria as relações de
propriedade na África. Tal afirmação fica evidente na declaração de um tal
Dr. Karl Oetker, oficial de saúde durante a construção da ferrovia entre Dar-
es-Salaam e Morogoro:

Deveria ser consensual, ainda que precise ser enfatizado novamente, que
todo homem europeu que tenha relações sexuais com mulheres negras
deva cuidar para que tal união permaneça estéril a fim de evitar a mistura
de raças; tal mistura teria o pior efeito em nossas colônias, como foi ampla-
mente comprovado nas Índias Ocidentais, no Brasil e em Madagascar. Esse
tipo de relacionamento só pode e deve ser considerado como um substituto
do casamento. O reconhecimento e a proteção do Estado conferidos aos
casamentos entre brancos devem ser negados a esse tipo de união. (citado
por Mamozai, 1982, p. 130)

Aqui, o duplo padrão é muito evidente: o casamento e a família eram


bens que deveriam ser reservados aos brancos, os “Master Men” (Homens
Dominantes). As famílias africanas poderiam ser desestruturadas, homens e
mulheres poderiam ser forçados a integrar grupos de trabalho (labour gangs) e
as mulheres transformadas em prostitutas.
É importante observar essa política colonial hipócrita em relação às mu-
lheres não apenas de um ponto de vista moral. É fundamental entender que
o surgimento e generalização da família e do matrimônio burguês “decente”
como instituições protegidas estão ligados causalmente à ruptura das relações
familiares e de clã dos “nativos”. A superação em massa da “miséria proletária”,
como descreveu um oficial colonial, pelas famílias alemãs estava diretamente
ligada à exploração das colônias e à subordinação da força de trabalho co-
lonial. O desenvolvimento da Alemanha como liderança industrial depen-
dia, como muitos viam naquela época, da posse de colônias. Assim, Paul von
196 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Hindenburg, que seria posteriormente nomeado chanceler alemão, escreveu:


“Sem colônias não é possível assegurar a aquisição de matérias-primas, sem
matérias-primas não há indústria, sem indústria não há padrão de vida e
riqueza adequados. Portanto, alemães, precisamos de colônias” (citado por
Mamozai, 1983, p. 27; com base na trad. de Maria Mies).
A justificativa para essa lógica de exploração foi proporcionada pela teo-
ria de que os “nativos ainda não tinham evoluído” ao nível da raça superior
branca e que o colonialismo era o meio para desenvolver as forças produtivas
adormecidas dessas regiões, de modo a contribuírem para a melhoria do ser
humano. Um oficial colonial do sudoeste da África escreveu:

O direito dos nativos, que só poderia ser realizado às custas do desenvol-


vimento da raça branca, não existe. É absurda a ideia de que os bantus, os
negros do Sudão e os hotentotes na África tenham o direito de viver e
morrer como quiserem se, devido a isso, incontáveis pessoas entre os povos
civilizados da Europa são forçadas a permanecer atadas a uma existência
proletária miserável em vez de serem capazes, pelo pleno uso das capaci-
dades produtivas de nossas possessões coloniais, de ascender a um nível de
existência mais rico e também de ajudar a construir o bem-estar de todo
o conjunto de pessoas e da nação. (citado por Mamozai, 1983, p. 58; com
base na trad. de Maria Mies)

A convicção de que o amo branco tinha a missão divina de “desenvolver” as


capacidades produtivas nas colônias e, assim, atrair os “selvagens” para a órbita da
civilização também era assumida pelos social-democratas, que compartilhavam
da crença no desenvolvimento das forças produtivas por meio do colonialismo.
Por isso, a recusa das mulheres “nativas” do sudoeste Africano em produzir
filhos para os odiados amos coloniais foi vista como um ataque a essa política
de desenvolvimento das forças produtivas. Depois que a rebelião do povo
herero foi brutalmente esmagada pelo general alemão Lothar von Trotha, as
mulheres herero iniciaram uma greve de ventres. Assim como as mulheres
escravizadas no Caribe, elas se recusaram a produzir mão de obra forçada para
os proprietários de terras. Entre 1892 e 1909, a população herero diminuiu
de 80 mil indivíduos para meros 19.962, o que se tornou um problema grave
para os fazendeiros alemães. Um deles escreveu:
MARI A MI ES 197

Após a rebelião, muitos nativos, em particular os herero, adotaram frequen-


temente a decisão de não ter filhos. O nativo considera a si mesmo como
um prisioneiro e te faz notar isso em cada uma das tarefas que não gosta
de realizar. Não quer proporcionar mão de obra para o seu opressor, que o
privou de sua saudosa preguiça (...) Enquanto isso, os fazendeiros alemães
tentam há anos remediar este triste estado de coisas oferecendo um prê-
mio, como, por exemplo, uma cabra para cada criança nascida na fazenda.
Mesmo assim, isso quase sempre foi em vão. Uma parte das mulheres na-
tivas está há muito tempo na prostituição e não serve para a maternidade.
Outra parte não quer crianças e se livra delas ainda na gravidez, por meio
do aborto. Nesses casos, as autoridades deveriam interferir com toda a se-
veridade. Cada caso deveria ser investigado minuciosamente e ser severa-
mente punido com a prisão, e, não sendo suficiente, os culpados deveriam
ser acorrentados. (citado por Mamozai, 1982, p. 52; com base na trad. de
Maria Mies)

Em vários casos os fazendeiros fizeram justiça com suas próprias mãos e


puniram brutalmente as mulheres que resistiram. No posicionamento das mu-
lheres herero podemos perceber novamente que, como no caso das mulheres
escravizadas, as mulheres africanas não eram apenas vítimas indefesas do proces-
so colonizador, mas entendiam precisamente o seu poder relativo dentro das re-
lações coloniais de produção, e usaram esse poder de forma correspondente. O
que deve ser observado, no entanto, em relação aos comentários do fazendeiro
alemão citado anteriormente é que, embora tenham sido as mulheres herero
que entraram em greve de ventres, ele se refere apenas aos herero (homens). Até
mesmo em seus informes, os colonizadores negaram às mulheres submetidas
qualquer subjetividade e iniciativa. Todos os “nativos” eram “selvagens”, pura
natureza, e as mulheres “nativas”, as mais selvagens entre os selvagens.

MULHERES BRANCAS NA ÁFRICA

Martha Mamozai também nos fornece material interessante sobre o “ou-


tro lado” do processo colonizador, nomeadamente o impacto que a subor-
dinação dos africanos, e das mulheres africanas em particular, teve sobre as
198 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mulheres alemãs “em casa” e sobre aquelas que se juntaram aos primeiros
colonizadores na África.
Como foi dito antes, um dos problemas dos colonizadores brancos era a re-
produção da raça branca dominante nas colônias. Isso só poderia ser alcançado
se as mulheres brancas de sua “pátria” [fatherland] estivessem dispostas a ir para as
colônias para se casar com “nossos garotos lá debaixo” e produzir crianças bran-
cas. Como a maioria dos colonizadores pertencia àquele bando de “solteiros
aventureiros”, um esforço especial teve de ser feito para mobilizar as mulheres
a irem para as colônias cumprir o papel de noivas. Os defensores da supremacia
branca viam como um dever especial das mulheres alemãs salvar os homens ale-
mães que viviam nas colônias da influência maligna das “mulheres kaffir” que,
a longo prazo, afastariam esses homens da cultura e da civilização europeias.
O apelo foi ouvido por Frau Adda von Liliencron, a qual fundou a Liga
de Mulheres da Sociedade Colonial Alemã. A associação tinha como objetivo
proporcionar às garotas uma formação especial em serviços domésticos co-
loniais para enviá-las como futuras noivas para a África. Frau Adda recrutou
principalmente garotas camponesas ou da classe trabalhadora, muitas das quais
haviam trabalhado como criadas nas cidades. Em 1898, pela primeira vez, vinte
e cinco mulheres solteiras foram enviadas para o sudoeste da África como um
“presente de Natal” para “nossos garotos lá debaixo”. Mamozai relata como
muitas dessas mulheres “ascenderam” à posição de memsahib (mulher casada)
branca, dama burguesa, que tinha como missão ensinar às mulheres africanas
as virtudes da civilização: limpeza, pontualidade, obediência e diligência. É im-
pressionante observar o quão rapidamente essas mulheres que há pouco tempo
ainda estavam entre os oprimidos passaram a compartilhar dos preconceitos
contra os “nativos sujos e preguiçosos” comuns na sociedade colonial.
Não foram somente as poucas mulheres europeias que foram para as colô-
nias como esposas e “reprodutoras da raça e da nação” que chegaram à posição
de autênticas donas de casa pela subordinação e sujeição das mulheres coloni-
zadas, o mesmo aconteceu com as mulheres “de casa”; primeiro as mulheres
da burguesia e, mais tarde, também as mulheres proletárias foram gradual-
mente domesticadas e civilizadas como autênticas donas de casa. O mesmo
período que vislumbrou a expansão do colonialismo e do imperialismo foi
testemunha da ascensão da figura da dona de casa na Europa e nos Estados
Unidos. A seguir tratarei dessa dimensão da história.
MARI A MI ES 199

DONADECASIFICAÇÃO

PRIMEIRA ETAPA: LUXOS PARA AS “DAMAS”

O “outro lado da história”, tanto da subordinação violenta das mulheres eu-


ropeias durante a perseguição às bruxas quanto das mulheres africanas, asiáticas
e latino-americanas durante o processo de colonização, foi a criação de um
papel, em um primeiro momento, para as mulheres da classe acumuladora eu-
ropeia e, posteriormente, também para as estadunidenses, como consumidoras
e expoentes do luxo e da riqueza e, em um segundo, como donas de casa. Não
podemos esquecer que quase nada do que foi roubado, saqueado ou comer-
cializado das colônias eram itens para a subsistência diária das massas, mas sim
itens de luxo. Inicialmente, esses itens só eram consumidos pelos poucos pri-
vilegiados que tinham dinheiro para comprá-los: especiarias das ilhas Molucas;
tecidos preciosos, seda, musselina e pedras preciosas da Índia; açúcar, cacau e
especiarias do Caribe; metais preciosos da América hispânica.Werner Sombart,
em sua obra Liebe, Luxus und Kapitalismus [Amor, luxo e capitalismo] (1922),
antecipou a tese de que o mercado para a maioria desses extraordinários artigos
de luxo coloniais foi criado por uma classe de mulheres que havia ascendido a
amantes dos reis e príncipes absolutistas da França e Inglaterra nos séculos XVII
e XVIII. Segundo Sombart, foram as concubinas e amantes mais famosas que
criaram novas modas para o vestuário feminino, cosméticos, hábitos alimentares
e, especialmente, para a decoração das casas dos cavalheiros. Nem os militaristas
da aristocracia, nem os homens da classe mercantil teriam tido a imaginação, a
sofisticação e a cultura para inventar tais luxos, quase todos centrados nas mu-
lheres como criaturas de luxo. Segundo Sombart, foi essa classe de mulheres
que criou as novas “necessidades” de luxo que forneceram o ímpeto decisivo
ao capitalismo, pois graças a seu acesso ao dinheiro acumulado pelo Estado
absolutista criaram um mercado para o início do capitalismo.
Sombart proporciona um relato detalhado do desenvolvimento do con-
sumo de luxo nas cortes italiana, francesa e inglesa dos séculos XVI e XVII.
O autor identifica nitidamente uma tendência ao consumo de luxo, especial-
mente durante o reinado de Luís XIV. As despesas de luxo do rei da França,
que eram de 2.995.000 libras francesas em 1542, aumentaram continuamen-
te e alcançaram a cifra de 28.813.955 libras em 1680. Sombart atribui essa
200 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

enorme exibição de luxo e esplendor ao amor desses senhores feudais por


suas cortesãs e amantes. Desse modo, a atração do rei Luís XIV por Louise
de La Vallière o teria levado a construir Versalhes. Sombart também afirma
que Madame de Pompadour, expoente da cultura do Ancien Régime [Antigo
Regime], dispunha de mais recursos do que qualquer outra rainha europeia
jamais teve. Durante os dezenove anos em que foi a amante favorita do rei,
ela gastou 36.327,268 libras. Madame du Barry, que a sucedeu, gastou, entre
1769 e 1774, 12.481.803 libras em artigos de luxo (Sombart, 1922, p. 98-99).
As feministas não concordariam com Sombart, que atribui esse desen-
volvimento do luxo, centrado inicialmente nas cortes europeias e mais tarde
imitado pelos nouveaux riches [novos ricos] da burguesia europeia, às grandes
cortesãs, com sua enorme vaidade e preferência por roupas luxuosas, mansões,
móveis, comidas, cosméticos. Mesmo que os homens dessas classes preferissem
demonstrar seu poder gastando sua riqueza com suas mulheres e transforman-
do-as em vitrines, isso significaria, novamente, transformar essas mulheres nas
vilãs da história. Não seria o equivalente a dizer que não eram os homens
– que detinham o poder econômico e político – os “sujeitos” históricos (no
sentido marxista), mas as mulheres, com o verdadeiro poder nos bastidores,
que puxavam os barbantes e definiam a melodia segundo a qual os homens
poderosos dançaram? Apesar dessa visão de Sombart a respeito das mulheres,
a tese de que o capitalismo floresceu do consumo de luxo e não da intenção
de satisfazer as crescentes necessidades de subsistência das massas tem grande
relevância para o nosso argumento sobre a relação entre a colonização e a do-
nadecasificação. O autor mostra com precisão que o capitalismo mercantil se
baseou quase integralmente no comércio de artigos de luxo das colônias para
o consumo das elites europeias. Os artigos que aparecem em uma listagem
comercial da Companhia do Levante incluem: remédios orientais (por exemplo,
aloe, bálsamos, gengibre, cânfora, cardamomo, mirobalam, açafrão etc.); especia-
rias (pimenta, cravo, açúcar, canela, noz-moscada); perfumes (benjoim, almíscar,
sândalo, incenso, âmbar); corantes para têxteis (índigo, laca, púrpura, henna);
matérias-primas para a indústria têxtil (seda, linho egípcio); metais preciosos e joias
e pedras preciosas (corais, pérolas, marfim, porcelana, vidro, ouro e prata); tecidos
(seda, brocado, veludo, linho fino, musselina ou lã).
Nos séculos XVIII e XIX, muitos outros artigos foram adicionados a essa
lista, em especial os bens produzidos sistematicamente nas novas plantations
MARI A MI ES 201

coloniais, como o açúcar, o café, o cacau e o chá. Sombart (1922, p. 146) relata
o aumento do consumo de chá na Inglaterra. Em 1906, o consumo médio
de uma família inglesa era de 6,5 libras. A quantidade de famílias que podiam
alcançar esse nível de consumo era:

1668 3 famílias
1710 2 mil famílias
1730 12 mil famílias
1760 40 mil famílias
1780 140 mil famílias
(Fonte: Sombart, 1922, p. 146)

O que a tremenda ampliação do consumo de artigos de luxo entre os


ricos europeus, baseada na exploração dos povos da África, Ásia e América,
significou para as mulheres europeias? Sombart identifica certas tendências na
produção de artigos de luxo, as quais relaciona, como já vimos, aos desejos de
uma determinada classe de mulheres. São as seguintes:

1. Uma tendência à domesticidade. Enquanto o luxo medieval era um assunto


público, agora se tornava parte do âmbito privado. A ostentação do luxo
não ocorre no mercado público ou durante as festividades populares, mas
dentro de recônditos palácios e nas casas dos ricos.

2. Uma tendência à coisificação. Durante a Idade Média a riqueza se expressava


no número de vassalos ou homens com os quais um príncipe podia contar.
Agora, a riqueza passava a se expressar em bens e artigos materiais, mer-
cadorias compradas com dinheiro. De acordo com Adam Smith: “passa-se
do luxo ‘improdutivo’ ao luxo ‘produtivo’, porque o luxo anterior, pessoal,
colocava os ‘braços improdutivos’ para trabalhar, enquanto o luxo coisifica-
do coloca os ‘braços produtivos’ para trabalhar” (no sentido capitalista, ou
seja, o dos trabalhadores assalariados em uma empresa capitalista) (Sombart,
1922, p. 119). Sombart é da opinião de que as mulheres dessa classe ociosa
tinham interesse no desenvolvimento do luxo coisificado (mais artigos e
mercadorias) porque soldados e vassalos não tinham mais serventia.
202 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Tendências semelhantes podem ser observadas em relação ao consumo


de açúcar e café. A maioria das pessoas na Europa do século XVIII ainda não
havia substituído o mel pelo açúcar. O açúcar continuou sendo um artigo
de luxo reservado aos europeus ricos até meados do século XIX (Sombart,
1922, p. 147).
O comércio exterior entre Europa, América, África e Oriente se limitava,
até meados do século XIX, basicamente ao comércio dos bens de luxo mencio-
nados anteriormente. As importações das Índias Orientais para a França alcan-
çaram o valor de 36.241.000 francos em 1776, distribuídos da seguinte forma:

café 3.248.000 francos


pimenta e canela 2.449.000 francos
musselina 12.000.000 francos
linho indiano 10.000.000 francos
porcelana 200.000 francos
seda 1.382.000 francos
chá 3.399.000 francos
nitrato de potássio 3.380.000 francos
Total 36.241.000 francos
(Fonte: Sombart, 1922, p. 148)

Sombart também inclui os lucros obtidos com o comércio de escravos nos


cálculos da produção e consumo de luxo.76 O comércio de escravos estava
totalmente organizado nos moldes capitalistas.
O desenvolvimento dos mercados de atacado e varejo na Inglaterra seguiu
a mesma lógica entre os séculos XVII e XIX. As primeiras grandes lojas urba-
nas que surgiram para substituir os mercados locais eram lojas que comercia-
lizavam artigos de luxo.

3. Uma tendência à contração do tempo. Enquanto o consumo anterior de arti-


gos de luxo era restrito a determinadas estações do ano, já que a produção

76 Isso é bastante lógico tendo em vista que os escravizados produziam artigos de luxo como
açúcar, cacau e café.
MARI A MI ES 203

interna de excedente demandava muito tempo, agora os luxos podiam ser


consumidos em qualquer momento do ano, e inclusive ao longo da vida
inteira de um indivíduo.

Sombart atribuiu novamente essa tendência – equivocadamente, na minha


opinião – ao individualismo e à impaciência das mulheres da classe ociosa
que exigiam a satisfação imediata de seus desejos como sinal do afeto de seus
amantes.
Das tendências mencionadas acima, o impulso à domesticação e à priva-
tização teve certamente um grande impacto na construção da nova imagem
da “boa mulher” nos centros do capitalismo nos séculos XIX e XX, particu-
larmente na identificação da mulher como mãe e dona de casa, cuja família,
espaço privado do consumo e do “amor”, era sua área de atuação, excluída e
protegida da arena de produção e acumulação em que os homens dominam.
A seguir, delinearei como o ideal da mulher domesticada e privatizada,
preocupada com o amor e o consumo, dependente do “chefe de família”,
se generalizou inicialmente dentro da classe burguesa propriamente dita, em
seguida entre a chamada pequena burguesia e, finalmente, entre a classe tra-
balhadora ou proletariado.

SEGUNDA ETAPA: A DONA DE CASA E A FAMÍLIA NUCLEAR, A “COLÔNIA” DO


“HOMEM PEQUENO BRANCO”

Enquanto os Homens Grandes Brancos – ou “homens dominantes”


(Mamozai) – se apropriavam das terras, dos recursos naturais e dos habitan-
tes da África, Ásia, América Central e do Sul para extrair matérias-primas,
produtos e força de trabalho que eles mesmos não produziam, perturbando
todas as relações sociais criadas pelos povos locais, eles também começaram,
em paralelo, a construir nos seus países de origem a família patriarcal nuclear,
ou seja, a família monogâmica tal como a conhecemos hoje. Esse tipo de
família, colocada sob a proteção específica do Estado, consiste na combina-
ção forçada entre os princípios de parentesco e coabitação e a definição do
homem como “chefe” de família e “provedor” da esposa legal, não assalariada,
e de seus filhos. Enquanto entre o século XVIII e início do século XIX essa
forma de casamento e família só era possível entre as classes proprietárias da
204 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

burguesia – mulheres camponesas, artesãs e operárias sempre tiveram de rea-


lizar todo o trabalho –, ela se tornou a norma por meio de algumas reformas
legais impulsionadas pelo Estado a partir da segunda metade do século XIX.
Na Alemanha, assim como em outros países europeus, existiam várias restri-
ções ao casamento de pessoas que não tinham propriedade. Essas restrições só
foram abolidas na segunda metade do século XIX, quando o Estado interveio
para promover uma política pró-natalista para a classe trabalhadora que não
possuía propriedades (Heinsohn & Knieper, 1976).
Estudos recentes sobre a história da família revelaram que mesmo o con-
ceito de “família” só se tornou popular no final do século XVIII na Europa,
particularmente na França e na Inglaterra, e somente em meados do sécu-
lo XIX foi adotado também para as famílias dos trabalhadores e campone-
ses, já que, ao contrário do que pensa o senso comum, “família” tinha uma
conotação de classe distintiva. Somente as classes proprietárias poderiam se
permitir ter uma “família”. Não se esperava que pessoas sem propriedades –
como empregados de fazendas ou pobres urbanos – tivessem uma “família”
(Flandrin, 1980; Heinsohn & Knieper, 1976). Mas a “família” tal como a
concebemos hoje – isto é, como uma combinação de corresidência e laços
de sangue baseada no princípio patriarcal – não era encontrada nem mesmo
na aristocracia. A “família” aristocrática não pressupunha a corresidência de
todos os seus membros. A residência compartilhada, especialmente entre ma-
rido, mulher e descendentes, tornou-se a principal característica da família
burguesa. Nosso atual conceito de família, portanto, é um conceito burguês
(Flandrin, 1980; Tangangco, 1982).
A burguesia estabeleceu a divisão social e sexual do trabalho característica
do capitalismo e declarou a “família” como um território privado, em con-
traste com a esfera “pública” da atividade econômica e política. Inicialmente,
a burguesia apartou “suas” mulheres da esfera pública e as encerrou em seus
“lares” aconchegantes, de onde não poderiam interferir nas políticas béli-
cas, lucrativas, nem na politicagem dos homens. Até a Revolução Francesa,
na qual milhares de mulheres lutaram, acabou por excluí-las da política. A
burguesia, particularmente a burguesia puritana inglesa, criou a ideologia do
amor romântico como uma compensação e sublimação da independência
sexual e econômica que as mulheres tinham antes da ascensão dessa classe.
Thomas Malthus, um dos teóricos mais importantes da burguesia em ascen-
MARI A MI ES 205

são, não teve dúvidas de que o capitalismo precisava de um tipo diferente


de mulher. Os pobres deveriam conter seus “instintos” sexuais porque, caso
contrário, gerariam muitos pobres para o escasso suprimento de alimentos.
Por outro lado, não deveriam usar contraceptivos, um método recomenda-
do por Condorcet na França, pois isso os tornaria preguiçosos, já que havia
observado uma estreita conexão entre a abstinência sexual e a disposição
para o trabalho. Desse modo, Malthus pinta um quadro cor-de-rosa do que
seria a casa decente burguesa em que o “amor” não se expressa na atividade
sexual, mas na sublimação do “instinto” sexual pela esposa domesticada com
a finalidade de criar um lar aconchegante para o esforçado chefe de família
que luta para conseguir dinheiro em um competitivo e hostil mundo “exter-
no” (Malthus, citado em Heinsohn, Knieper & Steiger, 1979). Como apon-
tam Heinsohn, Knieper e Steiger, ao contrário do que acreditavam Engels e
Marx, o capitalismo não destruiu a família; pelo contrário, com a ajuda do
Estado e sua polícia, criou a família, primeiro entre as classes proprietárias e,
mais tarde, entre as classes trabalhadoras, e, com isso, criou também a dona
de casa como categoria social. Além disso, a partir dos diferentes relatos a res-
peito da composição e condição do primeiro proletariado industrial, parece
que a família, como a entendemos hoje, era muito menos a norma do que
geralmente se acredita.
Como sabemos, mulheres e crianças constituíam a maior parte do primei-
ro proletariado industrial. Proporcionavam a força de trabalho mais barata e
manipulável e podiam ser exploradas como nenhum outro trabalhador. O
capitalismo entendeu bem que uma mulher com crianças se via obrigada a
aceitar qualquer salário se quisesse sobreviver. Além disso, as mulheres colo-
cavam menos problemas para os capitalistas do que os homens. Seu trabalho
também era mais barato porque não estavam organizadas como os homens
com um ofício, que tinham suas associações de jornaleiros77 e uma tradição
de organização que remontava às guildas. As mulheres haviam sido expulsas
desse tipo de associação há muito tempo e, por não terem organizações que
as protegessem, não tinham poder de barganha. Para os capitalistas, portanto,
era mais lucrativo e menos arriscado empregar mulheres. A ascensão do capi-
talismo industrial e o declínio do capitalismo mercantil (por volta de 1830)

77 No original, journeymen: trabalhadores que recebem por dia trabalhado. [N. das T.]
206 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tornou a exploração extrema do trabalho feminino e infantil um problema.


Mulheres cuja saúde havia sido destruída pelo excesso e péssimas condições
de trabalho não podiam gerar crianças saudáveis que pudessem se tornar tra-
balhadores e soldados resistentes – como comprovado após várias guerras no
final do século.
Muitas dessas mulheres não viviam em autênticas “famílias”, não eram
casadas ou haviam se separado e viviam, trabalhavam e viajavam em grupos,
com crianças e jovens (cf. Marx, O capital, vol. I). Essas mulheres não tinham
nenhum interesse material particular em produzir a próxima geração de tra-
balhadores miseráveis para as fábricas, mas constituíam uma ameaça à mo-
ralidade burguesa e seu ideal de mulher domesticada. Portanto, também era
necessário domesticar a mulher proletária. Ela teve de ser fabricada para gerar
mais trabalhadores.
Ao contrário do que pensava Marx, a produção de crianças não podia ser
deixada aos “instintos” do proletariado. Como Heinsohn e Knieper apontam,
o proletariado despossuído não tinha nenhum interesse material na produção
de crianças, pois elas não ofereciam uma segurança para a velhice, ao contrário
dos filhos da burguesia. Isso fez com que o Estado tivesse de intervir na pro-
dução da população e, por meio da legislação, de ações policiais e campanhas
ideológicas conduzidas por igrejas, conter as energias sexuais do proletariado
com a camisa de força da família burguesa. A mulher proletária também tinha
de ser donadecasificada, apesar de não poder ficar em casa esperando que o
marido a alimentasse junto com suas crianças. Heinsohn e Knieper (1976)
analisaram esse processo na Alemanha durante o século XIX. Sua tese prin-
cipal é de que a “família” teve de ser imposta ao proletariado por meio de
ações policiais porque, de outra forma, os proletários despossuídos não produ-
ziriam crianças suficientes para a próxima geração de trabalhadores. Uma das
medidas mais importantes – depois da criminalização do infanticídio, que já
havia ocorrido – foi a lei que aboliu a proibição do casamento de pessoas sem
propriedade. Essa lei foi aprovada em 1868 pela Liga da Alemanha do Norte.
A partir de então, os proletários podiam se casar e ter uma “família”, como a
burguesia. Mas isso não era suficiente. A sexualidade tinha de ser contida de tal
forma que ficasse restrita aos confins da família. Para isso, a relação sexual an-
tes do casamento e fora dele foi criminalizada. Os proprietários dos meios de
produção receberam a potestade policial necessária para vigiar a moralidade
MARI A MI ES 207

de seus trabalhadores. Após a Guerra Franco-Prussiana, entre 1870 e 1871, foi


aprovada uma lei que criminalizava o aborto – uma lei contra a qual o novo
movimento de mulheres lutou, ainda que com pouco sucesso. As Igrejas, em
sua cooperação com o Estado, atuaram sobre a alma dos trabalhadores; o que
o Estado secular chamou de crime, as Igrejas chamaram de pecado. As Igrejas
tiveram maior influência do que o Estado porque alcançaram mais pessoas,
principalmente nas zonas rurais (Heinsohn & Knieper, 1976).
Dessa forma, a donadecasificação das mulheres também foi imposta à força
na classe trabalhadora. Heinsohn e Knieper (1976), assim como outros autores,
afirmam que a família nunca havia existido entre os trabalhadores agrícolas
despossuídos ou proletários; teve de ser criada à força. A estratégia funcio-
nou, já que naquela época as mulheres haviam perdido a maior parte de seu
conhecimento sobre contracepção e o Estado e a Igreja haviam restringido
drasticamente sua autonomia sobre seus próprios corpos.
A donadecasificação das mulheres, porém, não tinha apenas o objetivo
de garantir que houvesse trabalhadores e soldados em número suficiente
para o capital e o Estado. A criação do trabalho doméstico e da dona de casa
como agente de consumo se tornou uma estratégia muito importante no
final do século XIX e início do XX. Naquele momento, não apenas a casa
havia sido descoberta como um mercado importante para toda uma gama de
novos aparatos e artigos, mas também a gestão doméstica científica da casa
se tornava uma nova ideologia para uma maior domesticação das mulheres.
Não contaram com a dona de casa apenas para reduzir os custos da força de
trabalho, ela também foi mobilizada para criação de novas necessidades. Foi
desatada uma autêntica guerra pela limpeza e higiene – uma guerra contra a
sujeira, os germes, as bactérias etc. – a fim de criar um mercado para os no-
vos produtos da indústria química. O trabalho doméstico científico também
era promovido como meio de reduzir o salário dos homens, já que o salário
duraria mais se a dona de casa o gastasse de forma econômica (Ehrenreich
& English, 1975).
O processo de donadecasificação das mulheres, no entanto, não foi apenas
impulsionado pela burguesia e pelo Estado. O movimento da classe trabalha-
dora dos séculos XIX e XX também contribuiu para esse processo. A classe
trabalhadora organizada deu as boas-vindas à abolição do celibato forçado e
às restrições ao casamento de trabalhadores despossuídos. Uma das reivin-
208 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

dicações da delegação alemã no congresso da Associação Internacional dos


Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional, de 1864, foi o “direito dos
trabalhadores a constituir família”. Heinsohn e Knieper (1976) ressaltam que
as organizações operárias alemãs, na época lideradas por Ferdinand Lassalle,
lutavam mais pelo direito ao casamento do que contra o celibato forçado dos
não proprietários. Assim, a libertação do celibato forçado foi historicamente
alcançada apenas pela subsunção de toda a classe despossuída ao casamento
burguês e às leis matrimoniais. Como o casamento e a família burguesa eram
considerados “progressistas”, o acesso da classe trabalhadora a esses padrões foi
considerado um avanço progressista pela maior parte dos líderes operários. As
lutas do movimento operário por salários mais altos eram muitas vezes jus-
tificadas, principalmente pelos trabalhadores qualificados que constituíam os
“segmentos mais avançados” da classe trabalhadora, com o argumento de que
o salário do homem deveria ser suficiente para manter uma família, de modo
que sua esposa pudesse ficar em casa para realizar os trabalhos domésticos e
cuidar das crianças.
A partir das décadas de 1830 e 1840 e praticamente até o final do século
XIX, a atitude dos trabalhadores alemães homens, e a daqueles organizados no
Partido Social-Democrata, foi caracterizada pelo que Thönnessen chamou de
“antifeminismo proletário” (Thönnessen, 1969, p. 14). O antifeminismo pro-
letário se preocupava principalmente com o efeito que a entrada das mulheres
na produção industrial teria nos salários e empregos dos homens. Reiteradas
vezes, nos congressos das associações de trabalhadores e dos partidos, foi levan-
tada a demanda pela proibição do trabalho das mulheres nas fábricas, questão
também discutida no congresso da Primeira Internacional em Genebra, em
1866. Marx, que elaborou as instruções para os delegados do Conselho Geral
do congresso, afirmou que a tendência da indústria moderna a atrair mulheres
e crianças para a produção deveria ser vista como uma tendência progressista.
No entanto, a delegação francesa, assim como alguns membros da delegação
alemã, se opôs fortemente ao trabalho da mulher fora de casa. De fato, a de-
legação alemã apresentou o seguinte memorandum:

Criar as condições para que todo homem adulto possa ter uma esposa, en-
contrar uma família, ter um trabalho seguro e que permitam a desaparição
das miseráveis criaturas que, em isolamento e desespero, se tornam vítimas,
MARI A MI ES 209

pecam contra si mesmas e contra a natureza e mancham a civilização pela


prostituição e o comércio do corpo humano [...] Às esposas e mães perten-
ce o trabalho doméstico e familiar. Enquanto o homem é o representante
dos assuntos sérios, públicos e familiares, a esposa e mãe deve representar
o conforto e a poesia da vida doméstica, deve trazer graça e beleza ao
comportamento social e elevar o prazer humano a um plano mais nobre e
elevado. (Thönnessen, 1969, p. 19; com base na trad. de Maria Mies)

Encontramos nessas afirmações toda a hipocrisia e sentimentalismo bur-


guês advertidos por Marx e Engels no Manifesto Comunista, mas defendidos,
desta vez, por homens proletários que queriam manter as mulheres no “seu”
lugar. Nem mesmo Marx adotou uma posição inequívoca a respeito do tra-
balho das mulheres. Ainda que nas suas instruções à Primeira Internacional
afirmasse que o trabalho de mulheres e crianças nas fábricas deveria ser visto
como uma tendência progressista, declarou, ao mesmo tempo, que o trabalho
noturno, ou o trabalho que prejudicasse a “delicada psique” das mulheres,
deveria ser reduzido. Evidentemente, também considerava o trabalho notur-
no ruim para os homens, mas acreditava que deveria ser dada uma proteção
especial às mulheres. Foi a seção alemã, dirigida por Lassalle, que demons-
trou as tendências mais pronunciadas do “antifeminismo proletário”. Em
um congresso da Associação Geral dos Trabalhadores Alemães [Allgemeiner
Deutscher Arbeiter-Verein – ADAV] em 1866, foi declarado que:

O emprego das mulheres nas oficinas e na indústria moderna é um dos


abusos mais ultrajantes do nosso tempo. Ultrajante porque assim as condi-
ções materiais da classe trabalhadora não são melhoradas, mas sim deterio-
radas. Devido especialmente à destruição da família, a população trabalha-
dora acaba em uma condição tão miserável que perde até mesmo o resto
da cultura e do ideal que tinha até então. Por isso, a tendência à ampliação
do mercado de trabalho para as mulheres deve ser condenada. Somente
a abolição do domínio do capital remediará a situação, quando a relação
salarial será abolida por meio de instituições positivas e orgânicas e cada
trabalhador recolherá os frutos de seu trabalho. (Social Democrat, n. 139, 29
de novembro de 1867, vol. 3, ap. l; citado por Niggemann, 1981, p. 40; com
base na trad. de Maria Mies)
210 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mas não eram apenas os “reformistas” do Partido Social-Democrata que


tinham a visão de que os proletários precisavam de uma “autêntica” família,
os radicais que seguiam a estratégia revolucionária de Marx também não de-
fendiam conceitos diferentes de mulher e família.Tanto August Bebel quanto
Clara Zetkin, que pertenciam a essa ala e haviam sido considerados, com
Engels, os que mais contribuíram para uma teoria socialista da emancipação
das mulheres, defendiam a manutenção de uma família apropriada, com uma
mãe e dona de casa apropriada, nas classes trabalhadoras. Bebel queria também
reduzir o emprego das mulheres para que as mães tivessem mais tempo para
a educação de suas crianças. Ele lamentava a destruição da família proletária:

A esposa do trabalhador quando chega em casa à noite, cansada e exausta,


ainda tem muito trabalho pela frente. Tem de correr para realizar as tare-
fas mais urgentes. O homem vai ao bar e lá encontra o conforto que não
consegue encontrar em casa, bebe (...), talvez caia no vício do jogo e perca
o que ganhou, ou até mais, devido à bebida. Enquanto isso, a esposa está
sentada em casa, se queixando, tem de trabalhar como um animal (...) é
assim que a desarmonia começa. Mas se a mulher é menos responsável, se
depois de voltar para casa cansada também sai para se entreter, a família vai
pelo ralo e a miséria duplica. (Bebel, 1964, p. 157-158; com base na trad.
de Maria Mies)

Bebel não concebeu a possibilidade de uma mudança na divisão sexual do


trabalho, nem o compartilhamento das tarefas domésticas pelos homens. Via
a mulher principalmente como mãe e não imaginava uma mudança futura
em seu papel.
Esse também é o principal ponto de vista defendido por Clara Zetkin.
Apesar de suas lutas contra o “antifeminismo proletário”, ela via a mulher
proletária como esposa e mãe, mais do que como trabalhadora. Em 1896,
durante o congresso do partido em Gotha, fez um discurso no qual formulou
os principais pontos de sua teoria:
1. A luta pela emancipação das mulheres é idêntica à luta do proletariado
contra o capitalismo.
2. Ainda assim, as mulheres trabalhadoras precisam de proteção especial em
seu local de trabalho.
MARI A MI ES 211

3. Melhorias nas condições das mulheres trabalhadoras permitiriam que elas


participassem mais ativamente da luta revolucionária de toda a classe.

Zetkin compartilhava da opinião de Marx e Engels de que o capitalis-


mo havia criado a igualdade de exploração entre homem e mulher. Logo, as
mulheres proletárias não podiam lutar contra os homens, como as feministas
burguesas talvez pudessem, mas deviam lutar lado a lado com eles contra o
capitalismo:

Logo, a luta pela libertação da mulher proletária não poderia ser uma luta
como a da mulher burguesa contra o homem de sua classe; pelo contrário,
é uma luta junto com o homem de sua classe contra a classe dos capitalistas.
A mulher proletária não precisa lutar contra os homens de sua classe para
quebrar as barreiras que limitam a livre concorrência. A necessidade de ex-
ploração do capital e o desenvolvimento do modo de produção moderno
já fizeram isso por ela. Pelo contrário, o que é necessário é erguer novas
barreiras contra a exploração da mulher proletária. É necessário devolver e
assegurar seus direitos como mãe e esposa. O objetivo final de sua luta não
é a livre concorrência com o homem, mas a conquista do poder político
pelo proletariado. (Zetkin, citada por Evans, 1979, p. 114; com base na trad.
de Maria Mies)

O que é impressionante nessa passagem é a ênfase nos direitos das mu-


lheres como mães e esposas. Ela deixou isso ainda mais explícito ao longo do
seu discurso:

A tarefa da agitação socialista entre as mulheres não deveria alienar as mu-


lheres de seus deveres como mães e esposas. Pelo contrário, é preciso cuidar
para que possam cumprir essas tarefas de uma forma melhor do que fizeram
até agora, de acordo com o interesse do proletariado. Quanto melhores
forem as condições na família, sua eficácia nas atividades domésticas, mais
será capaz de lutar (...) Dessa maneira, muitas mães e esposas que inspiram a
consciência de classe em seus maridos e filhos contribuem tanto quanto as
camaradas que participam de nossas assembleias. (Zetkin, citada por Evans,
1979, p. 114-115; com base na trad. de Maria Mies)
212 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Essas ideias tiveram um eco positivo no partido, que já tinha, como pude-
mos observar, uma concepção bastante burguesa do papel da mulher como
mãe e esposa. Esse processo de criação da família nuclear burguesa dentro da
classe trabalhadora e a donadecasificação das mulheres proletárias também
não se restringiu à Alemanha, mas pode ser encontrado em todos os países
industrializados e “civilizados”. Essa concepção foi impulsionada não apenas
pela classe burguesa e pelo Estado, mas também pelos “setores mais avançados”
da classe trabalhadora, mais especificamente a aristocracia de trabalhadores
homens qualificados nos países europeus. Para os socialistas em particular,
esse processo aponta para uma contradição básica, que ainda não foi resolvida,
nem mesmo nos países socialistas: se a entrada na produção social é vista como uma
pré-condição para a emancipação ou libertação das mulheres, como acreditam todos os
socialistas ortodoxos, então é uma contradição defender ao mesmo tempo o conceito do
homem como provedor e chefe da família, da mulher como mãe e dona de casa depen-
dente e da família nuclear como instituição “progressista”.
Esta contradição é, no entanto, o resultado de uma divisão de classe exis-
tente de facto entre os homens da classe trabalhadora e as mulheres. Discordo
de Heinsohn e Knieper (1976) quando afirmam que a classe trabalhadora
como um todo não tinha interesse material na criação da família nuclear e na
donadecasificação das mulheres. Talvez as mulheres da classe trabalhadora não
tivessem nada a ganhar, mas os homens, sim.
Os homens proletários evidentemente tinham um interesse material na
domesticação de suas companheiras de classe. Esse interesse material consistia,
por um lado, na exigência do homem de monopolizar o trabalho assalaria-
do e, por outro, na de manter o controle sobre toda entrada de dinheiro na
família. Visto que o dinheiro se tornou a principal fonte e encarnação do
poder no capitalismo, os homens proletários lutavam por dinheiro não ape-
nas com os capitalistas, mas também com suas esposas. A exigência de um
salário familiar é uma expressão dessa luta. Aqui a questão não é se alguma
vez se chegou a pagar um salário familiar adequado ou não (cf. Land, 1980;
Barrett & Mcintosh, 1980), e sim que a consequência ideológica e teórica
deste conceito levou à aceitação de facto do conceito burguês de mulher e
família pelo proletariado.
A análise de Marx sobre o valor da força de trabalho também se baseia nes-
se conceito, ou seja, de que o trabalhador tem uma esposa “não trabalhadora”
MARI A MI ES 213

(Mies, 1981). Isso fez com que todo o trabalho feminino, assalariado ou não,
fosse desvalorizado.
A função do trabalho doméstico para o processo de acumulação de capital
tem sido amplamente discutida por feministas nos últimos anos. Vou omitir
esse aspecto aqui, mas gostaria de salientar que a donadecasificação significa a
externalização, ou a exterritorialização, dos custos que, de outra forma, teriam
de ser assumidos pelos capitalistas. Isso significa que o trabalho da mulher é
considerado um recurso natural, livremente disponível como o ar e a água.
A donadecasificação significa também, em paralelo, a total atomização e
desorganização dessas trabalhadoras invisibilizadas. Essa não é a razão ape-
nas para a falta de poder político das mulheres, mas também para sua falta
de poder de barganha. Uma vez que a dona de casa está vinculada, como
uma trabalhadora “não livre”, ao provedor do salário, ao proletário “livre”, a
“liberdade” do proletário para vender sua força de trabalho está baseada na
não liberdade da dona de casa. A proletarização dos homens está baseada na
donadecasificação das mulheres.
Graças a isso, o “homem pequeno branco” também ganhou sua “colônia”,
ou seja, a família e a dona de casa domesticada. Isso era um sinal de que, ao
final, o proletariado despossuído havia alcançado o status de cidadão “civili-
zado”, tornando-se assim membro pleno da “nação-cultural”. Esta ascensão,
entretanto, foi paga com a subordinação e donadecasificação das mulheres de
sua própria classe. A extensão das leis burguesas à classe trabalhadora colocou
o homem despossuído na posição de amo e senhor no interior da família.
Minha tese defende que os processos de colonização e donadecasificação
estão íntima e causalmente interligados. Sem a exploração contínua de colô-
nias externas – anteriormente como colônias diretas e atualmente dentro da
nova divisão internacional do trabalho – não teria sido possível estabelecer a
“colônia interna”, isto é, a família nuclear e a mulher sustentadas pelo “chefe
de família”.
4
DONADECASIFICAÇÃO
INTERNACIONAL:
MULHERES E A
NOVA DIVISÃO
INTERNACIONAL
DO TRABALHO
O CAPITAL INTERNACIONAL REDESCOBRE AS MULHERES
DO TERCEIRO MUNDO

NO CAPÍTULO anterior, demostrou-se que o desenvolvimento da econo-


mia mundial capitalista não se baseou apenas em uma divisão internacional
particular do trabalho, pela qual as colônias eram submetidas e exploradas,
mas também em uma manipulação particular da divisão sexual do trabalho. A
lógica que rege ambas as divisões é a relação contraditória entre o progresso,
de um lado, e o retrocesso, de outro. A partir do século XVI, o mundo foi di-
vidido em regiões e áreas, nas quais diferentes formas de trabalho ou relações
de produção, intrinsecamente conectadas, foram introduzidas para diferentes
tipos de produção. A acumulação de capital, entretanto, ocorreu nos estados
centrais da Europa e, posteriormente, também nos Estados Unidos. O concei-
to de Divisão Internacional do Trabalho (DIT) tem sido usado para descrever
a divisão estrutural, a relação vertical existente entre as potências coloniais e
suas colônias dependentes na África, América Latina e Ásia. A antiga DIT teve
início no período colonial e durou quase até a década de 1970.
Na antiga DIT, as matérias-primas eram produzidas nas colônias ou ex-
-colônias e transportadas para os países industrializados da Europa e para os
Estados Unidos, e, mais tarde, também para o Japão, onde eram transformadas
em produtos industriais exportados ou comercializados nos próprios países
industrializados. Nas fases iniciais dessa DIT, as mercadorias produzidas por
máquinas, sobretudo pela maquinaria têxtil, também foram introduzidas à
força nos mercados das colônias. Para a maioria desses países, isso significou a
ruína de sua própria indústria têxtil, pois os produtos feitos à máquina eram
mais baratos. A destruição da indústria têxtil indiana pela fabricação têxtil
inglesa é o exemplo mais conhecido desse processo (Dutt, 1970).
A antiga DIT também significava que a mão de obra não tinha o mesmo
valor nas colônias e nas metrópoles. Nas colônias, os custos da mão de obra
218 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

eram mantidos baixos em parte pelo uso da força (por exemplo, nas planta-
tions), por um sistema de trabalho escravo e por outras formas de controle do
trabalho (como a servidão por contrato) que impediam o surgimento do tra-
balhador assalariado livre, o protótipo do trabalhador industrial no Ocidente.
Assim, a antiga DIT implicava a importação de matérias-primas baratas das co-
lônias e ex-colônias, produzidas por mão de obra barata, e a produção de bens
feitos a máquina nas metrópoles por mão de obra mais cara, onde também
havia o poder de compra dessas mercadorias. Devido aos seus baixos salários,
o poder aquisitivo dos trabalhadores nas colônias permaneceu igualmente
baixo. Essa relação levou, como sabemos, a uma riqueza cada vez maior e ao
crescimento dos países industrializados, acompanhados de maiores demandas
salariais dos trabalhadores que também participavam da crescente riqueza ba-
seada na exploração das colônias e de seus trabalhadores. Quanto aos trabalha-
dores das colônias, levou à sua crescente pauperização e subdesenvolvimento.
Nos anos 1970, no entanto, os gestores das grandes empresas nacionais
e multinacionais da Europa, Estados Unidos e Japão perceberam que o pe-
ríodo de expansão que se seguiu ao fim da Segunda Guerra Mundial havia
terminado. Aquele crescimento econômico contínuo, que tinha sido pregado
para as pessoas dos países industrializados como um dogma e que elas ha-
viam considerado como algo garantido, tinha chegado ao fim. Os dirigentes
econômicos temiam que essa situação pudesse levar a revoltas sociais, caso se
descobrisse que a recessão não era apenas uma crise temporária, mas poderia
significar o fim de toda uma época da economia mundial capitalista. Assim,
tornou-se um tema primordial a necessidade de mudar o sistema da econo-
mia mundial – ou a DIT – de tal forma que devolvesse o crescimento con-
tínuo aos países capitalistas. Esse novo modelo, elaborado pela Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organização
supranacional dos países industriais ocidentais, supunha que os processos de
produção intensiva – e, portanto, também os custos da mão de obra intensiva
utilizada neles – deveriam ser exportados para as colônias, agora chamadas
de países em desenvolvimento, o “Terceiro Mundo”. Significava também que
indústrias inteiras deveriam ser transferidas para esses países, e que os traba-
lhadores do Terceiro Mundo, devido aos seus baixos níveis salariais, deveriam
passar a produzir os bens de consumo industriais para as massas nos países
ocidentais. Ao mesmo tempo, a agricultura nos países em desenvolvimento
MARI A MI ES 219

deveria ser modernizada por meio de novos insumos tecnológicos para que
também fossem produzidos bens de exportação para os países ricos (Fröbel
et al., 1980).
Essa industrialização parcial dos países do Terceiro Mundo não significa
que esses países tenham obtido muito controle sobre as indústrias estabe-
lecidas nas zonas de livre comércio, nas zonas francas ou nas fábricas para o
mercado mundial. As fábricas realocadas para as Filipinas, Malásia, Coreia do
Sul, Cingapura, México, Sri Lanka e Tailândia pertencem em grande parte a
empresas multinacionais dos Estados Unidos, Alemanha e Japão. Em particu-
lar, foram realocadas indústrias cujo processo de produção necessitava ainda
de mão de obra bastante intensiva e não havia sido racionalizado em alto
grau. Esse foi o caso, principalmente, das indústrias têxteis e de vestuário, da
indústria eletrônica e da indústria de brinquedos. A realocação de indústrias
de países desenvolvidos para subdesenvolvidos não significa uma genuína in-
dustrialização desses últimos. Ao contrário, significa o fechamento de uma
fábrica específica na Alemanha Ocidental, Holanda ou Estados Unidos e sua
reabertura no Sudeste Asiático, África ou América Latina. Assim,

[a]s calças direcionadas ao mercado da Alemanha Ocidental não são mais


produzidas em Mönchengladbach, mas na filial tunisiana da mesma empresa
da Alemanha Ocidental [...]. As bombas de injeção que antes eram fabrica-
das para o mercado da Alemanha Ocidental por uma empresa com sede em
Stuttgart agora são fabricadas parcialmente para o mesmo fim pela mesma
empresa em um local na Índia. Os aparelhos de televisão são produzidos
da mesma forma por outra empresa em Taiwan; equipamentos de rádio
automotivos, na Malásia [...] relógios, em Hong Kong, e os componentes
eletrônicos em Cingapura e na Malásia se enquadram todos na mesma ca-
tegoria. (Fröbel et al., 1980, p. 9-10)

A chamada terceira revolução tecnológica, a “revolução” do computador,


baseada no desenvolvimento de semicondutores e microprocessadores, foi
possível pela realocação de empresas, principalmente estadunidenses e japo-
nesas, para o Sudeste Asiático e pela superexploração de mulheres asiáticas,
que constituíam até 80% da força de trabalho nessas indústrias eletrônicas
(Grossman, 1979; Fröbel et al., 1980).
220 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Algumas das consequências dessa nova DIT são as seguintes:

1. O aumento do desemprego dos trabalhadores nos países industrializados.


Visto que muitas das fábricas realocadas, como as das indústrias têxteis e
eletrônicas, empregavam principalmente mulheres, esse desemprego afeta
mais as mulheres do que os homens.
2. Os países em desenvolvimento tornam-se cada vez mais áreas de produção
de bens de consumo para os países ricos, ao passo que os países ricos se
tornam cada vez mais áreas apenas de consumo. A produção e o consumo
estão agora divididos pelo mercado mundial em um grau sem precedentes.
3. A produção orientada para a exportação nos países em desenvolvimento
direciona a maior parte do tempo de trabalho, matérias-primas, habilidades
e desenvolvimento técnico para as demandas dos mercados nos países ricos,
e não para as necessidades dos povos nos países subdesenvolvidos.
4. Como os mercados dos países industrializados estão cada vez mais satura-
dos de bens de consumo necessários, os trabalhadores do Terceiro Mundo
são cada vez mais forçados a produzir artigos de luxo para os países ricos
(por exemplo, flores, artesanatos, alimentos e frutas, dispositivos eletrôni-
cos de entretenimento etc.), ou componentes para equipamento militar e
outros produtos de alta tecnologia, como microprocessadores.
5. Como essas mercadorias são produzidas em países com um nível salarial
extremamente baixo, elas podem ser vendidas nos países ricos com pre-
ços ainda mais baixos e se transformar em bens de consumo de massa.
Artigos que antes eram produtos de luxo voltados para uma pequena elite
(orquídeas, por exemplo) agora podem ser comprados por trabalhadores
ordinários, ao longo do ano todo, por um preço baixo. Isso significa que,
apesar do aumento do desemprego e de uma diminuição nos salários re-
ais, a nova DIT garante um nível do consumo em massa nos países ricos
que ajuda a prevenir a eclosão de agitações sociais. Entretanto, isso só é
possível desde que esses países possam manter um determinado nível de
poder de compra em massa. Nível que os Estados capitalistas ocidentais
puderam manter até agora.

A estratégia da nova DIT pode funcionar apenas se duas circunstâncias


forem cumpridas:
MARI A MI ES 221

1. As indústrias realocadas, o agronegócio e outras empresas voltadas para a


exportação devem encontrar os trabalhadores mais baratos, dóceis e mani-
puláveis nos países subdesenvolvidos, a fim de rebaixar o máximo possível
os custos de produção.
2. Essas empresas devem mobilizar os consumidores nos países ricos para
comprar todos os artigos produzidos em países do Terceiro Mundo. Em
ambas as estratégias, a mobilização das mulheres cumpre um papel essencial.

Para além da frequente análise da integração das mulheres como donas de


casa no processo da acumulação capitalista, a integração do trabalho das mu-
lheres do Terceiro Mundo na economia de mercado global ocorre em quatro
setores principais:

1. Nas indústrias manufatureiras de grande escala, que, em sua maioria, são


propriedades de empresas transnacionais em zonas francas ou em fábricas
para o mercado mundial. Essas indústrias incluem principalmente eletrô-
nicos, têxteis e vestuário e brinquedos. Além dessas unidades centrais, há
frequentemente muitas unidades subordinadas que produzem em peque-
na escala, seja como pequenas oficinas, seja como indústrias domésticas
subcontratadas em certos processos de produção (ver modelo japonês, por
exemplo).
2. Na manufatura em pequena escala de uma variedade de bens de consumo,
que vão desde o artesanato, o processamento de alimentos e a fabrica-
ção de roupas até a fabricação de objetos de arte. Esse setor, geralmente
denominado “setor informal”, é encontrado tanto em periferias urbanas
quanto em áreas rurais. A organização do trabalho nesse setor segue fre-
quentemente o sistema putting-out; às vezes, as mulheres se organizam em
cooperativas na tentativa de evitar a exploração dos intermediários que
costumam comercializar os produtos. Uma característica desse setor é que
algumas das mercadorias fabricadas pelas mulheres são artigos que eram
produzidos tradicionalmente para o consumo da comunidade, isto é, não
tinham nenhum valor de troca, somente um valor de uso. Com a integra-
ção de tais bens em um sistema de mercado externo, eles se transformam
em mercadorias, e as produtoras se transformam em produtoras de merca-
dorias, mesmo quando mantêm a mesma forma de produção, por exemplo,
222 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

a produção doméstica. Nos últimos anos, tem havido um esforço delibera-


do – definido como uma estratégia para ampliar as atividades geradoras de
renda entre as mulheres empobrecidas do Terceiro Mundo – para articular
essa área do trabalho das mulheres ao mercado mundial.
3. A terceira área em que o trabalho das mulheres é integrado ao mercado
mundial é a agricultura. Ela compreende:
a. a produção de safras comerciais em grande escala para exportação (por
exemplo, morangos, flores, vegetais);
b. o trabalho das mulheres nas plantações (chá, café);
c. o trabalho das mulheres como “mão de obra familiar” não remunerada em
pequenas unidades rurais que produzem por conta própria ou por contrato
para empresas de agronegócios;
d. o trabalho das mulheres como “mão de obra familiar” não remunerada
dentro das cooperativas que produzem para exportação;
e. o trabalho das mulheres como trabalho ocasional na agricultura comercial
(arroz, açúcar).

As mudanças que estão ocorrendo na divisão sexual do trabalho sob o im-


pacto dessa nova estratégia de integração de todas as áreas e países de Terceiro
Mundo em um sistema global de mercado são tais que os homens podem
ganhar acesso a dinheiro, novas habilidades, tecnologia, trabalho assalariado e
propriedade produtiva. As mulheres, por sua vez, são definidas cada vez mais
como “dependentes”, isto é, como donas de casa, ainda que em muitos casos
elas cumpram o papel mais crucial na produção de subsistência, como ocorre,
por exemplo, na África.

4. Nos últimos anos, o trabalho das mulheres tem ganhado crescente im-
portância em uma quarta área: a da indústria do sexo e do turismo sexual,
principalmente na Ásia e na África, onde mulheres servem homens euro-
peus, estadunidenses e japoneses.

Embora fosse interessante fazer um estudo sistemático da interação entre


a nova divisão internacional do trabalho e a manipulação da divisão sexual
do trabalho em cada uma das áreas acima mencionadas e em todo o mundo,
penso que, para os fins deste estudo, será suficiente analisar alguns casos ca-
MARI A MI ES 223

racterísticos. Graças ao trabalho realizado nos últimos anos sobre os efeitos do


“desenvolvimento” nas mulheres do Terceiro Mundo, possuímos hoje evidên-
cia empírica suficiente para identificar as suas principais tendências.78 Mas, an-
tes de passar a esses exemplos mais concretos, pode ser útil nos perguntarmos
por que, de repente, as mulheres – e, sobretudo, as mulheres empobrecidas do
Terceiro Mundo – foram redescobertas pelo capital internacional (pois vimos
que elas já haviam sido descobertas nos estágios iniciais do colonialismo). Se
acreditássemos nas muitas declarações oficiais sobre a necessidade de “integrar
as mulheres ao desenvolvimento” feitas na década de 1970, particularmente
após a primeira Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada no México,
em 1975, poderíamos pensar que houve uma verdadeira mudança de atitude
nos centros do patriarcado capitalista. Mas se tivermos em mente o cinismo
com que as mulheres foram tratadas do século XVI em diante, teremos de nos
perguntar quais são as razões mais profundas por trás da atenção dada atual-
mente às mulheres das colônias.

POR QUE AS MULHERES?

Proponho as seguintes hipóteses para nos guiar em nossa busca por respos-
tas para a pergunta acima.

1. Ao contrário do que é comumente aceito, as mulheres, e não os homens,


são a força de trabalho ideal para o processo de acumulação capitalista
(e socialista) em escala mundial. Embora sempre tenha sido assim, nesta
fase de desenvolvimento da economia mundial, esse fato está abertamente
incorporado às estratégias econômicas dos planejadores nacionais e inter-
nacionais.
2. As mulheres são a força de trabalho ideal porque hoje elas são universal-
mente definidas como “donas de casa”, e não como trabalhadoras; isso

78 A série de documentos de trabalho e publicações sobre as mulheres do Terceiro Mundo e


seu trabalho, patrocinada pelo Programa Mundial de Emprego da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), contém uma riqueza de informações empíricas sobre a situação das mu-
lheres empobrecidas nos países subdesenvolvidos.
224 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

significa que seu trabalho, seja na produção de valores de uso ou de mer-


cadorias, é ocultado, não aparece como “trabalho remunerado livre”, sendo
definido como uma “atividade geradora de renda” e, portanto, podendo ser
comprado a um preço muito mais barato do que o trabalho masculino.
3. Além disso, ao definir as mulheres universalmente como donas de casa, é
possível não apenas baratear seu trabalho, como também ganhar controle
político e ideológico sobre elas. As donas de casa são atomizadas e isoladas,
sua organização do trabalho dificulta muito a consciência de interesses co-
muns e a visão de todo o processo de produção. Seu horizonte permanece
limitado pela família. Os sindicatos nunca se interessaram pelas mulheres
como donas de casa.
4. Devido a esse interesse pelas mulheres, e particularmente pelas mulheres das
colônias, como a força de trabalho ideal, não observamos uma tendência
à generalização do proletário “livre” como trabalhador típico, mas sim dos
trabalhadores marginalizados, donadecasificados, não livres, em sua maioria
mulheres.
5. Essa tendência se baseia em uma crescente convergência entre a divisão
sexual e a internacional do trabalho; uma divisão entre homens e mulhe-
res – homens definidos como trabalhadores assalariados “livres” e mulheres
como donas de casa não livres – e uma divisão entre produtores (princi-
palmente nas colônias e no campo) e consumidores (principalmente nos
países ricos ou nas cidades). Dentro dessa divisão há também a divisão
entre as mulheres como produtoras – principalmente nas colônias – e
consumidoras – principalmente no Ocidente.
6. A superabundância de mercadorias nos supermercados ocidentais não é o
resultado, como se supõe amplamente, de uma maior “produtividade” do
trabalho e dos trabalhadores nos países industrializados; essa “produtivida-
de” é ela própria resultado da exploração e superexploração das colônias,
particularmente das mulheres.

Essa última afirmação é particularmente verdadeira se nos perguntarmos


quem constitui atualmente a força de trabalho nos países do Terceiro Mundo.
Embora não tenhamos estatísticas que abranjam amplas áreas do trabalho
feminino (por exemplo, no “setor informal”), temos evidências suficientes
do fato de que hoje dois terços de todo o trabalho no mundo é realizado
MARI A MI ES 225

por mulheres (II Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a Mulher,
Copenhague, 1980). Nas zonas francas do Sudeste Asiático, África e América
Latina, mais de 70% da força de trabalho é feminina. Como Fröbel e seus co-
legas descobriram, a maioria das mulheres são jovens (entre 14 e 24 anos). Elas
trabalham na linha de montagem dos atuais processos de produção, enquanto
os poucos homens nessas indústrias são principalmente supervisores (Fröbel
et al., 1977, p. 529-30).
Se adicionarmos a esse número de mulheres jovens nas zonas francas todas
aquelas que trabalham no agronegócio voltado para a exportação, no setor
informal e na indústria doméstica e artesanal, notaremos que uma grande
proporção da mão de obra feminina nos países do Terceiro Mundo está en-
volvida na produção de bens para o mercado nos países ricos. Devemos tam-
bém incluir nessa estimativa as centenas de milhões de mulheres que fazem a
maior parte do trabalho exaustivo na agricultura na África e na Ásia – tanto
na produção de subsistência quanto, muitas vezes, nas safras comerciais – e,
naturalmente, também nas plantations.
Mas o que torna as mulheres do Terceiro Mundo mais atraentes como tra-
balhadoras do que os homens para o capital internacional? Rachael Grossman
(1979) e outros descobriram que as mulheres do Sul e do Sudeste da Ásia são
consideradas a força de trabalho mais dócil e manipulável e que, ao mesmo
tempo, apresentam um grau elevado de produtividade laboral. A maioria dos
governos que desejam atrair investidores estrangeiros anuncia o atrativo de
suas mulheres mal remuneradas e com seus “dedos ágeis”. Este é um anúncio
do governo da Malásia:

A destreza manual da mulher oriental é famosa em todo o mundo. Suas


mãos são pequenas e trabalham rápido e com extremo cuidado. Quem,
portanto, poderia ser mais bem qualificada por natureza e por herança para
contribuir com a eficiência de uma linha de montagem do que a mulher
oriental? (Grossman, 1979, p. 8)

Um encarregado de pessoal da Intel Corporation, uma empresa de se-


micondutores dos Estados Unidos na Malásia, disse: “Contratamos mulheres
porque elas têm menos energia, são mais disciplinadas e mais fáceis de con-
trolar” (Grossman, 1979, p. 2). A Agência para o Desenvolvimento do Terceiro
226 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mundo do Haiti [Third World Investment Bureau of Haiti], tentando atrair in-
vestidores alemães, publicou um anúncio que mostrava uma bela mulher hai-
tiana com o texto: “Agora você consegue mais mão de obra por seus marcos
alemães. Por apenas um dólar americano, ela trabalha feliz por oito horas para
você, e centenas e centenas de suas amigas farão o mesmo” (Fröbel et al., 1977,
p. 528; com base na trad. de Maria Mies).
Os tons sexistas desses anúncios são bastante óbvios. Tem-se a impressão
de que esses governos, como cafetões, oferecem suas jovens ao capital estran-
geiro. Na verdade, a prostituição não faz parte apenas da indústria do turismo,
mas também do planejamento de empreendimentos comerciais nos países do
Terceiro Mundo.
É impossível não perceber o “contexto da prostituição” dentro do qual a
nova DIT ocorre, mas, se quisermos entender se o novo interesse pelas mulheres
do Terceiro Mundo se baseia em uma estratégia sistemática ou não, é útil olhar
mais atentamente para os vários projetos e programas, idealizados principal-
mente por organizações internacionais, que recebem nomes como “Integrating
Women into Development” [Integração das mulheres ao desenvolvimento].
Quase ao mesmo tempo em que essa nova divisão internacional do traba-
lho era elaborada e posta em prática, o mundo se conscientizou da necessidade
de “integrar as mulheres ao desenvolvimento”. Já em 1970, Esther Boserup
demonstrou que as mulheres não tinham se beneficiado de qualquer desen-
volvimento ocorrido nos países do Terceiro Mundo. Suas descobertas foram
corroboradas pelos muitos relatórios sobre a situação das mulheres preparados
pelos governos para a Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, realizada
no México em 1975. Descobriu-se que a situação das mulheres havia se dete-
riorado na maioria dos países do Terceiro e mesmo do Primeiro Mundo em
todas as esferas: política, emprego, educação, saúde, direito. Como consequên-
cia, o Plano Mundial de Ação apresentado por essa conferência exigiu que os
governantes fizessem esforços substanciais para remediar a situação e integrar as
mulheres ao desenvolvimento. Depois disso, tanto as organizações das Nações
Unidas, quanto o Banco Mundial e as organizações não governamentais co-
meçaram a falar das mulheres e a incluir em seus programas um capítulo sobre
mulheres e desenvolvimento. Tal fato pode ser considerado uma genuína mu-
dança de atitude por parte dos planejadores masculinos do desenvolvimento?
Será que agora eles estavam realmente interessados na libertação das mulheres
MARI A MI ES 227

depois de as terem esquecido em todos os anos anteriores? E o que queriam


dizer, o que querem dizer, com “integrar as mulheres ao desenvolvimento”?
Para começar, não esqueçamos de uma coisa: as mulheres também estavam
integradas na velha estratégia de desenvolvimento. Seu trabalho não pago ou
mal remunerado como trabalhadoras rurais, operárias de fábrica, donas de
casa também foi a base do que se chamou de modernização nos países em
desenvolvimento. Mas esse trabalho permaneceu invisível; forneceu grande
parte da base de subsistência sobre a qual o trabalho assalariado masculino
pôde emergir. O trabalho feminino subsidiou o salário masculino (Deere,
1976). No entanto, agora isso significava algo mais. “Integrar as mulheres ao
desenvolvimento” significa, na maioria dos casos, fazer com que as mulheres
trabalhem em algumas das chamadas atividades geradoras de renda, isto é, entrar
na produção voltada para o mercado. Isso não significa que as mulheres devam
expandir sua produção de subsistência, que devam tentar obter mais contro-
le sobre a terra e produzir mais para seu próprio consumo, mais alimentos,
mais roupas etc., para si mesmas. A renda nessa estratégia significa renda em
dinheiro. E a renda monetária só pode ser gerada se as mulheres produzirem
algo que possa ser vendido no mercado. Como o poder aquisitivo entre as
mulheres empobrecidas do Terceiro Mundo é baixo, elas têm de produzir
algo para as pessoas que têm esse poder aquisitivo. E essas pessoas vivem nas
cidades de seus próprios países ou nos países ocidentais, o que significa que a
estratégia de integração do trabalho das mulheres ao desenvolvimento tam-
bém equivale à produção orientada à exportação ou ao mercado. As mulheres
empobrecidas do Terceiro Mundo não produzem o que necessitam, mas o
que outros podem comprar.
Outra característica dessa estratégia é que ela define as mulheres do Terceiro
Mundo não como trabalhadoras, mas como donas de casa. O que elas fazem não é
caracterizado como trabalho, mas como uma “atividade”. Ao universalizar a
ideologia da dona de casa e o modelo da família nuclear como sinais de pro-
gresso, também é possível definir todo o trabalho que as mulheres fazem – seja
nos setores formais, seja nos informais – como trabalho complementar e sua renda
como renda complementar à do chamado “chefe de família” principal, o marido.
A lógica econômica dessa donadecasificação é uma imensa redução de custos
com mão de obra. Essa é uma das razões pelas quais o capital internacional e
seus porta-vozes estão agora interessados nas mulheres.
228 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Essa estratégia foi desenvolvida pela primeira vez, como vimos, na Europa
e nos Estados Unidos durante os séculos XIX e XX. A donadecasificação foi o
complemento necessário para a criação do proletário “livre”. Mas enquanto
na Europa e nos Estados Unidos muitos trabalhadores podem se dar ao luxo
de alimentar uma dona de casa “não trabalhadora” (devido à exploração das
colônias), as vastas massas de homens do Terceiro Mundo nunca estarão em
posição de ter uma dona de casa “não trabalhadora” em casa. Portanto, a es-
tratégia de geração de renda para as mulheres se baseia em uma imagem de
mulher que não tem base empírica entre a maioria das mulheres do Terceiro
Mundo. No Caribe, mais de um terço de todos os domicílios não são chefia-
dos por um arrimo de família masculino (cf. Reddock, 1984). Uma pesquisa
recente mostrou que o número de casas chefiadas e sustentadas economica-
mente por mulheres está aumentando, particularmente nas áreas rurais da Ásia,
da África e da América Latina (Youssef & Hetler, 1984). As razões para isso
são: uma virada em direção à produção de cultivos comerciais para exporta-
ção, a mecanização da agricultura e mudanças nos sistemas de propriedade
da terra que levaram ao aumento de pessoas pobres sem terras. Os homens
migraram para as cidades em busca de trabalho assalariado ou foram para áreas
em que a produção é voltada para os cultivos comerciais e a remuneração é
maior, deixando para trás suas mulheres e famílias. Sabe-se bem que os ho-
mens que migram para as cidades ou para outros países não só se ausentam,
às vezes por vinte anos (Obbo, 1980), como também muitas vezes desistem
parcial ou totalmente de sua responsabilidade como “provedores” da família.
Particularmente na África, as mulheres rurais “deixadas para trás” pelos ho-
mens que imigram se tornaram

o maior, se não o único, suporte das famílias rurais (Mali, Gana, Brasil,Togo,
Libéria, Nigéria, Suazilândia79 e partes de Uganda). A impossibilidade de
depender dos rendimentos do marido levou essas mulheres a se dedicarem
à lavoura ou ao comércio para pagar os impostos sobre a terra e os custos
do trabalho agrícola. (Handwerker, 1974; Carr, 1980; Obbo, 1980; Ahmad
& Loutfi, 1981)

79 Desde 2018, a Suazilândia passou a se chamar Essuatíni, que significa “terra dos suázis” em
suázi, retomando uma denominação anterior ao período colonial. [N. das T.]
MARI A MI ES 229

As mulheres iorubás reclamam que as remessas que recebem são insuficien-


tes. No Lesoto, apenas 50% de todas as mulheres chefes de família tinham
acesso a remessas. (Youssef & Hetler, 1984, p. 44-45)

Essas constatações mostram que as mulheres nos países do Terceiro


Mundo, particularmente nas áreas rurais afetadas pelos processos de moder-
nização, estão cada vez mais se tornando de facto o sustentáculo econômico e
as chefes de família. No entanto, essa realidade não mudou o fato de serem
definidas, tanto legalmente como na ideologia comum, como donas de casa
dependentes, e seus maridos como os provedores e chefes de família. Pelo
contrário, quanto mais a base material para o surgimento do casal capita-
lista clássico – o assalariado “livre” ou o proprietário “livre” dos meios de
produção e sua dona de casa dependente – é minada nos países do Terceiro
Mundo, mais essa realidade factual é mistificada na propagação e univer-
salização desse modelo. Essa mistificação é, de fato, o núcleo estrutural e
ideológico em torno do qual os programas e planos de desenvolvimento são
construídos. A divisão sexual capitalista do trabalho, sintetizada nesse famoso
casal, é o princípio estratégico responsável pelo fato de as mulheres nas di-
versas atividades geradoras de renda, nas quais produzem mercadorias para o
mercado, não serem definidas e remuneradas como trabalhadoras assalariadas,
e de que, por outro lado, nas disposições de reformas agrárias, elas não te-
nham propriedade independente e legal da terra, não tenham acesso a outras
propriedades produtivas e, nas cooperativas, sejam frequentemente meros
apêndices dos homens e não possam se tornar membros independentes (von
Werlhof, 1983). Essa mistificação de que as mulheres são basicamente donas
de casa não é um efeito colateral acidental da nova DIT, mas uma pré-con-
dição necessária para seu bom funcionamento: torna invisível grande parte
do trabalho que é explorado e superexplorado para o mercado mundial;
justifica baixos salários; impede as mulheres de se organizarem; as mantém
atomizadas; orienta a sua atenção para uma imagem sexista e patriarcal da
mulher, a dona de casa “de verdade”, sustentada por um homem, o que não
só não é realizável para a maioria das mulheres, mas também destrutivo do
ponto de vista da libertação feminina.
Quanto menor a chance de a maioria das mulheres no Terceiro Mundo
se tornar dona de casa “de verdade”, maior a ofensiva ideológica propagada e
230 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

difundida por todos os meios de comunicação para universalizar essa imagem


como a da mulher “moderna, progressista”, da “boa” mulher.

MULHERES COMO “REPRODUTORAS” E CONSUMIDORAS

AS MULHERES “RUINS”

A estratégia de mobilizar mulheres pobres, baratas, dóceis, hábeis e submis-


sas do Terceiro Mundo para a produção voltada para a exportação é apenas
um lado da divisão global do trabalho. Como dissemos antes, não basta que
as mercadorias sejam produzidas da forma mais barata possível, elas também
têm de ser vendidas. Nas estratégias das corporações ocidentais e japonesas
que estão prosperando na produção voltada para a exportação nos países do
Terceiro Mundo, as mulheres ocidentais também desempenham um papel
crucial, mas dessa vez não como produtoras, e sim como consumidoras, donas
de casa, mães e objetos sexuais.
Como produtoras, as mulheres na Europa e nos Estados Unidos foram as
primeiras a serem demitidas em consequência da nova DIT, perdendo seus
empregos em indústrias têxteis e elétricas. Quando a Philipps fechou sua
fábrica em Eindhoven, na Holanda, para reabrir outras em países do Terceiro
Mundo, milhares de mulheres perderam seus empregos. Elas foram enviadas
para a cozinha com o argumento de que deveriam mostrar solidariedade para
com as mulheres do Terceiro Mundo que precisavam de emprego; além do
mais, na Holanda os salários de seus maridos eram tão altos que elas poderiam
ficar em casa e usar seu tempo para cuidar melhor de seus filhos. Ao mesmo
tempo, as mesmas empresas multinacionais continuam mobilizando constan-
temente as mulheres como compradoras de suas mercadorias. A enorme ex-
pansão da televisão e a introdução da televisão a cabo têm como principal
objetivo a expansão da publicidade. A maior parte da publicidade é dirigida
às mulheres como consumidoras, ou então os anúncios contêm imagens de
mulheres como símbolos sexuais como seu ingrediente mais importante. Aqui
vemos que a nova DIT divide o mundo em produtores e consumidores, mas
também divide as mulheres, internacionalmente e em termos de classe, em
produtoras e consumidoras. Essa relação é estruturada de tal forma que as mu-
MARI A MI ES 231

lheres do Terceiro Mundo são objetivamente – não subjetivamente – vinculadas


às mulheres do Primeiro Mundo por meio das mercadorias que as últimas com-
pram. Essa não é apenas uma relação contraditória, mas também uma relação
em que os atores de cada parte do globo não sabem nada uns dos outros. As
mulheres do Sul e do Sudeste da Ásia mal sabem o que produzem ou para
quem produzem. Por sua vez, a dona de casa ocidental está totalmente alheia
ao trabalho feminino, às condições laborais, aos salários etc. com os quais as
coisas que ela compra são produzidas. Ela só está interessada em conseguir
tudo o mais barato possível. Ela, como a maioria das pessoas nos outros países
ocidentais, atribui a superabundância em nossos supermercados à “produtivi-
dade” dos trabalhadores ocidentais. Devemos discutir se essa estratégia con-
traditória que divide as mulheres em todo o mundo em trabalhadoras e donas
de casa contribui para a libertação das mulheres. Costuma-se argumentar que
essa estratégia dá empregos às mulheres do Terceiro Mundo e bens de con-
sumo baratos às mulheres/donas de casa ocidentais. Assim, ambas deveriam
estar felizes. Mas se olharmos mais de perto as consequências dessa estratégia,
podemos chegar a outra conclusão, a saber, que a escravidão e a exploração
de um grupo de mulheres é a base de um tipo qualitativamente diferente de
escravidão de outro grupo de mulheres. Uma é a condição e também a con-
sequência da outra.
A divisão entre mulheres como produtoras e mulheres como mães e con-
sumidoras tem ainda outra dimensão que desempenha um papel importante,
se não o mais importante, nas estratégias da nova DIT. Enquanto as mulheres
nos países industrializados ricos são cada vez mais expulsas do “setor formal”
e mais lembradas de que seu destino “natural” é a família, o seu trabalho “re-
produtivo” para o marido e os filhos e o trabalho de consumo, as mulheres do
Terceiro Mundo, como consumidoras e procriadoras, são consideradas alta-
mente indesejáveis, até mesmo dispensáveis. Na verdade, se olharmos para as
declarações de governos ocidentais, em particular as dos Estados Unidos, das
organizações da ONU, bem como de organizações não governamentais, surgi-
das a partir do final dos anos 1960, perceberemos que as mulheres do Terceiro
Mundo, enquanto potenciais “reprodutoras” e consumidoras, são vistas como
uma das ameaças mais graves para o mundo como um todo.
Bonnie Mass (1976) destaca que a declaração emitida pela Conferência
Mundial das Nações Unidas sobre a População é continuamente citada fora
232 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

de contexto e usada para difundir a noção de que a superpopulação é o


maior problema do mundo hoje. Assim, citando a ONU, um porta-voz do
Departamento de Estado dos Estados Unidos escreveu já em 1969:

Este é o maior desafio que a ONU e o mundo enfrentam hoje. Este con-
flito entre um mundo subnutrido em rápido crescimento, que dá lugar ao
desespero e à violência, e um mundo possível, no qual os indivíduos vivem
construtivamente com dignidade e suficiência, exige o maior esforço e
dedicação desta era. (citado por Mass, 1976, p. 7)

Como Bonnie Mass demonstrou, a estratégia neomalthusiana de colocar


nos próprios pobres a culpa pela pobreza e pela fome nos países colonizados
foi sistematicamente desenvolvida pelos pilares do capitalismo corporativo e
do imperialismo; primeiro pela Fundação Rockefeller, pelo Departamento
de Estado dos Estados Unidos e pela Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional e, depois, pelo Banco Mundial. Todos eles
venderam essa ideologia para vários governos do Terceiro Mundo e pratica-
mente para todos os governos ocidentais.
Em 1968, o Banco Mundial declarou:

Todas essas atividades [de planejamento familiar] surgem da preocupação do


Banco Mundial com a maneira com que o rápido crescimento da população
se tornou um grande obstáculo ao desenvolvimento social e econômico em
muitos de nossos Estados membros. Os programas de planejamento familiar
são menos onerosos do que os projetos de desenvolvimento convencionais e
o padrão de despesas envolvido normalmente é muito diferente. Ao mesmo
tempo, estamos conscientes do fato de que programas bem-sucedidos desse
tipo produzirão retornos econômicos muito altos. (Hawkins, 1968)

Por último, as várias organizações da ONU foram convencidas com su-


cesso de que a “explosão populacional” era o principal problema nos países
subdesenvolvidos e que os programas de planejamento familiar deveriam ser
adicionados às outras atividades que essas organizações já desenvolviam. Até
mesmo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) começou a introduzir
o planejamento familiar em sua política para países subdesenvolvidos. De 1970
MARI A MI ES 233

a 1979, as despesas anuais da OIT para atividades populacionais (financiadas


pelo Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA, na sigla em inglês)
aumentaram de US$ 60.217 para US$ 4.500.000 (declaração do Conselho
de Administração da OIT, GB 211/0P/31, 1979). É bastante revelador que
uma organização que havia restringido seu foco à “esfera produtiva”, em que
as pessoas apareciam como “força de trabalho”, começasse a se interessar pela
“família” e pelas mulheres como “produtoras de forças de trabalho” somente
quando o controle populacional se tornou uma área prioritária, e não por
uma preocupação com as mulheres como seres humanos. Embora toda essa
política tenha sido eufemisticamente camuflada como “planejamento fami-
liar” ou mesmo “bem-estar familiar”, ela fez das mulheres, desde o início, seu
principal grupo-alvo para pesquisas e medidas políticas.
Após a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre a População em
Bucareste em 1974, e particularmente após a Conferência Mundial sobre a
Mulher, ocorrida no México em 1975, esse foco nas mulheres e sua “situa-
ção” tornou-se bastante explícito em várias declarações políticas. Em 1975, o
Banco Mundial concluiu:

A necessidade de reconhecer e apoiar o papel das mulheres no desenvolvi-


mento é uma questão que o Banco Mundial considera de grande impor-
tância para si e para seus governos membros. O Banco espera participar
cada vez mais dos esforços desses governos para estender os benefícios do
desenvolvimento a toda a sua população, tanto mulheres quanto homens,
e assim assegurar que uma proporção tão grande dos recursos humanos
mundiais não seja subutilizada. (Banco Mundial, 1975)

O Banco Mundial pressionou os governos que pediam empréstimos para


que realizassem ações sociais e econômicas específicas para reduzir a fertilida-
de e elevar o status da mulher, social, econômica e politicamente (McNamara,
1977). “Elevar o status das mulheres”, no entanto, quando explicitado em
medidas políticas concretas, significa principalmente educar as mulheres para
aumentar sua produtividade, aumentar seu conhecimento sobre anticoncep-
cionais e sua prontidão para aceitar medidas de controle de natalidade.
Embora esses dois objetivos possam parecer contraditórios, são parte da
mesma estratégia para “integrar” a produtividade das mulheres empobrecidas
234 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

supostamente “subutilizadas” no processo global de acumulação de capital.


Essa estratégia está interessada nas mulheres empobrecidas do Terceiro Mundo
somente como produtoras, não como consumidoras e “reprodutoras”.
Por meio da concessão de créditos, seu trabalho é subordinado às exigên-
cias do mercado mundial, não à satisfação de suas próprias necessidades. Para
reembolsar esses créditos – que foram obtidos por meio de vários programas
de desenvolvimento –, elas são forçadas a vender os itens que produzem e que
poderiam ser necessários para seu próprio consumo (Bennholdt-Thomsen,
1980, p. 36) ou são forçadas a produzir itens que não têm valor de uso para
elas e que geralmente são produtos de luxo para o mercado internacional.
Como nenhum dos programas voltados para a integração das mulheres ao
desenvolvimento está interessado em aumentar os fundos de consumo dos
pobres, mas apenas em aumentar a produção comercializável, a redução do nú-
mero de consumidores pobres torna-se o “outro lado” necessário dessa estratégia.
Enquanto a subordinação do trabalho produtivo das mulheres pobres à
acumulação de capital é ocultada por sua definição como atividade geradora de
renda, isto é, como o trabalho extra da “dona de casa”, seu “comportamento
gerador” é empurrado para o centro das atenções em todo o mundo. A retó-
rica sobre a integração das mulheres do Terceiro Mundo ao desenvolvimento
significa precisamente isto: ofuscar o trabalho das mulheres como produtoras
de capital, definindo-as como donas de casa e não como trabalhadoras (Mies,
1982) e enfatizando seu comportamento como “reprodutoras” de consumi-
dores indesejados.
Consequentemente, uma comparação entre os valores gastos em pesquisa
populacional e em medidas de controle populacional na Ásia, América Latina
e África e aqueles gastos na promoção de atividades geradoras de renda para
mulheres do Terceiro Mundo provavelmente mostraria que os primeiros ul-
trapassam de longe os últimos. De fato, dentro da estratégia de modernização
da nova DIT, as mulheres do Terceiro Mundo se tornaram, como escreve o
demógrafo indiano Ashok Mitra,

[uma] mercadoria dispensável como consumidoras e procriadoras. Nos úl-


timos 30 anos após a Independência, as mulheres indianas se tornaram cada
vez mais uma mercadoria dispensável, dispensável tanto no sentido demo-
gráfico quanto no econômico. Demograficamente, a mulher está cada vez
MARI A MI ES 235

mais reduzida às suas funções reprodutivas e, depois que estas se realizam,


ela é dispensável. Economicamente, ela é implacavelmente expulsa da esfera
produtiva e reduzida a uma unidade de consumo que, em consequência,
acaba sendo indesejável. (Mitra, 1977)

O que Mitra não vê, entretanto, é o fato de que ser “expulsa da esfera
produtiva” não significa que agora o trabalho das mulheres não seja usado
produtivamente para a acumulação de capital. É precisamente essa expulsão
das mulheres como “trabalhadoras” e sua transformação em “pequenas empre-
endedoras” e “donas de casa” no chamado setor informal que torna possível
sua exploração irrestrita e a superexploração. Se, no curso desse processo de
superexploração, elas mesmas e seus filhos são destruídos, não há grande pesar,
pois, como reprodutoras e consumidoras, essas mulheres são vistas como uma
ameaça ao sistema global. E mesmo no que diz respeito à estratégia de utilizar
sua capacidade produtiva “subutilizada” (Banco Mundial, 1975), talvez não
seja preciso utilizar tantas mulheres quanto existem, principalmente porque a
alta tecnologia está tornando cada vez mais redundante o trabalho humano.
Esta é uma conclusão dura demais?
Se observamos as estratégias, táticas e tecnologias usadas em países como
Índia, Bangladesh, China e Cingapura sob o pretexto de “planejamento fa-
miliar”, não podemos deixar de reconhecer uma tendência ao feminicídio.
Não apenas as mulheres do Terceiro Mundo, especialmente na Índia e em
Bangladesh, foram usadas sem hesitação como cobaias pelas indústrias far-
macêuticas multinacionais em testes de contraceptivos e métodos perigosos,
como a amniocentese80, como também foram massivamente despejados em
muitos países do Terceiro Mundo anticoncepcionais, como o Depo-Provera,
proibidos nos Estados Unidos devido às suas qualidades cancerígenas.81

80 A amniocentese foi testada em mulheres indianas há alguns anos. Atualmente, a amniocen-


tese está sendo usada na Índia principalmente como um teste para determinar o sexo, e uma
série de clínicas privadas têm oferecido seus serviços para abortar fetos femininos após esses
testes (Balasubrahmanyan, 1982; Patel, 1984).

81 O protesto feminista contra o despejo de Depo-Provera em países subdesenvolvidos não foi


capaz de impedir a venda desse anticoncepcional, mas deu à empresa estadunidense Upjohn
Co. uma má fama. Enquanto isso, um novo anticoncepcional hormonal injetável, o enantato
de noretisterona, desenvolvido pela empresa alemã Schering, em Berlim Ocidental, está sendo
236 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O governo de Bangladesh foi forçado não apenas a permitir que todos os


tipos de experimentos científicos fossem realizados em seu território, mas
também a comprar grandes quantidades de anticoncepcionais da indústria
farmacêutica ocidental (Minkin, 1979). Nesse processo, alguns dos “guardiões
científicos” da guerra internacional contra o crescimento populacional não
só defenderam medidas obrigatórias, como também o uso aberto e o fortale-
cimento de atitudes patriarcais ou sexistas. Já em 1968, William McElroy, em
uma polêmica com Kinglsey Davis, que defendia métodos coercitivos, disse:
“Na maioria das sociedades, os bebês do sexo masculino são mais desejáveis
do que os do sexo feminino, e se o primeiro filho for homem, a motivação
para ter mais descendentes diminui” (McElroy, 1968, citado por Mass, 1976,
p. 22). Em 1973, o biólogo Postgate deu um passo adiante ao defender de-
liberadamente a seleção do sexo como método de controle populacional.
Vimal Balasubrahmanyan se refere à utopia masculina propagada por pessoas
como Postgate:

Postgate argumenta que o controle de natalidade “não funciona” nos países


que “mais precisam” e que “métodos alternativos de controle populacional,
como guerra, doença, infanticídio legalizado e eutanásia são rejeitados por
não serem seletivos, aceitáveis, rapidamente eficazes ou permanentes o sufi-
ciente”. Ele sugere que “gerar uma descendência masculina é a única solu-
ção que atende a todos os critérios anteriormente destacados”. Incontáveis
milhões de pessoas aproveitariam a oportunidade de gerar homens (particu-

propagado como anticoncepcional na Índia. Enquanto o Departamento Federal de Saúde


da Alemanha restringiu o uso de anticoncepcionais injetáveis, a German Remedies, subsidiária
indiana da Schering, está buscando uma licença do Conselho de Controle de Drogas da Índia
para produzir enantato de noretisterona em grande escala nesse país (Mona Daswani, 1985).
Além disso, como Mona Daswani observou, o enantato de noretisterona e outros anticon-
cepcionais perigosos são testados em mulheres indianas pelos pesquisadores do Indian Council
of Medical Research [Conselho Indiano de Pesquisa Médica]. Em muitos casos, essas mulheres
sequer sabem que estão sendo usadas como cobaias para pesquisas. A Organização Mundial da
Saúde parece ser a principal força por trás da pesquisa sobre anticoncepcionais hormonais. Os
fundos de pesquisa do Indian Council of Medical Research provêm em grande parte da Organi-
zação Mundial da Saúde. Grupos feministas indianos começaram uma campanha para proibir
anticoncepcionais injetáveis, particularmente o enantato de noretisterona, por conta de seus
efeitos colaterais desconhecidos e por reduzirem ainda mais o controle das mulheres sobre seus
corpos (Daswani, 1985).
MARI A MI ES 237

larmente no Terceiro Mundo), e nenhuma coerção ou mesmo propaganda


seria necessária para sua promoção, apenas a evidência de seu sucesso pelo
exemplo. (Balasubrahmanyan, 1982, p. 1725)

Enquanto isso, com o avanço da tecnologia de pré-seleção de sexo, a am-


niocentese e o ultrassom, a perspectiva de “gerar um filho homem” tornou-se
uma prática não apenas na Índia, mas também na China, onde as consequên-
cias foram ainda mais longe. Na Índia, a prática de abortar fetos femininos
após a determinação do sexo por amniocentese tornou-se um problema pú-
blico somente quando se soube que, em Amritsar, alguns médicos bastante
astutos haviam construído um negócio próspero com base na preferência
dos pais indianos pela descendência masculina: eles anunciavam que realiza-
vam tanto a pré-seleção do sexo como o aborto de fetos femininos. Após os
protestos de muitos grupos de mulheres na Índia, a prática, como denuncia
Vimal Balasubrahmanyan, simplesmente continuou de forma mais discreta,
especialmente quando a ultrassonografia se tornou amplamente disponível.
Durante uma visita à Índia no verão de 1984, aprendi que a pré-seleção
por sexo e o aborto de fetos femininos já eram praticados por muitas pessoas
de castas baixas e pobres do interior de Maharashtra.
O caso da China é ainda mais horripilante, pois todo o poderoso Estado
e o aparato partidário são mobilizados para implementar a política do filho
único que constitui parte da estratégia de modernização da China pós-Mao.
“Reproduzir homens” pode não ser uma estratégia deliberada do governo
chinês, mas é, como Elisabeth Croll e outros autores mostraram, o resulta-
do inevitável das contradições entre a promoção da propriedade privada de
terras de pequenos camponeses, a manutenção do casamento patrilocal e dos
padrões familiares e a política estatal do filho único. Os camponeses, que
ainda dependem em grande parte dos filhos para sua segurança na velhice,
querem filhos homens, já que eles herdam o lote da família e permanecem no
povoado. As filhas se casam com alguém da família de outro povoado, como
também acontece na Índia. Por isso, filhas não são desejadas. Essa situação é
agravada pela política do governo de premiar aqueles que seguem a norma
do filho único: ganham mais terras privadas, se forem camponeses, e ganham
mais espaço, escola, facilidades de saúde e mais equipamentos modernos, se
morarem nas cidades.
238 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Sendo assim, aqueles que obtêm mais terras têm menos mão de obra fami-
liar para trabalhar nela. Essa contradição combinada com as medidas compul-
sórias do governo, a interação entre incentivos e desincentivos sob o controle
total do partido e as crescentes atitudes e relações neopatriarcais colocam as
mulheres sob pressão de todos os lados, de tal forma que o feticídio feminino
atingiu níveis alarmantes (Croll, 1983, p. 100).
Quando esses fatos foram relatados pela primeira vez na mídia ocidental,
pôde-se escutar um grito de indignação de muitos setores. Mas muitas vezes as
pessoas que agora condenam a China por sua política antimulher são as mes-
mas que há anos subscrevem o argumento de que o crescimento populacional
é a causa da pobreza nos países do Terceiro Mundo e defendem medidas mais
rígidas para reduzir a taxa de natalidade.
Ainda teríamos de analisar com maior profundidade por que um país,
depois de uma revolução que adotou um caminho de desenvolvimento so-
cialista, acaba desenvolvendo essa política flagrantemente antimulher. Porém,
basta dizer aqui que hoje, também na República Popular da China, é ocultado
o papel das mulheres como trabalhadoras e destacado seu papel como repro-
dutoras e consumidoras, papel pelo qual são indesejadas.

AS “BOAS” MULHERES

A dialética do ocultamento e do realce tem mais uma dimensão que, até


agora, foi totalmente excluída do discurso sobre mulheres e desenvolvimen-
to. Essa dimensão é o papel que as donas de casa desempenham nas classes e
países superdesenvolvidos.
Aqui, novamente, as mulheres são destacadas como mães e consumidoras
e ofuscadas como produtoras. Mas, enquanto o papel de procriadora é consi-
derado altamente indesejável nos países do Terceiro Mundo, todas as políticas
nos países e nas classes acumuladoras veem-no como altamente desejável para
“suas” mulheres. As mulheres do Primeiro Mundo devem, por todos os meios,
conseguir gerar mais filhos (brancos) do que estão fazendo atualmente, e de-
vem, por todos os meios, ser capazes de comprar mais bens e mercadorias para
suas famílias, seus filhos, para a casa e para si mesmas enquanto objetos sexuais.
A lógica por trás dessa valorização contraditória de “suas” mulheres e
“nossas” mulheres é a mesma que observamos nas primeiras fases do colo-
MARI A MI ES 239

nialismo. O capital precisa das mulheres nas colônias como produtoras mais
baratas, portanto, elas não podem ser definidas como “trabalhadoras livres”.
Mas, para comercializar as mercadorias produzidas por elas, o capital precisa
das mulheres nas metrópoles como especialistas em consumo, porque sem
consumo ou compra de mercadorias não há produção de capital! Mobilizar
as mulheres para o cumprimento de seu dever de consumidoras tornou-se
uma das principais estratégias do capital nos países industrializados. O “tra-
balho de consumo” (Bridges & Weinbaum, 1978) está, portanto, aumentando
imensamente nos países ricos e está usando cada vez mais o tempo “livre” das
mulheres trabalhadoras assalariadas e não assalariadas. Como a maioria das
pessoas nos países superdesenvolvidos está presa ao mercado para a satisfação
de suas necessidades básicas, elas são forçadas a fazer esse trabalho de consu-
mo se quiserem sobreviver. Com a substituição massiva do trabalho humano
por computadores e robôs, esse trabalho de consumo aumentará ainda mais.
Se há alguns anos a dona de casa tinha de percorrer os supermercados para
selecionar as mercadorias, comparar preços, pagar a conta no caixa, levar
as mercadorias para casa, desempacotar, armazenar e desembalar tudo etc.,
agora ela também é obrigada a colocar ela mesma as mercadorias na sacola,
pesá-las, inserir o preço no computador e depois colocar a etiqueta de preço
em sua mercadoria antes de pagá-la no balcão. Nesses supermercados, quase
não sobraram funcionários. Todo o trabalho necessário é feito pelos próprios
consumidores, exceto o de receber o dinheiro do cliente no caixa. Mas mes-
mo isso pode se tornar dispensável quando todos forem forçados a comprar
com cartões de crédito ou por meio de um computador, realizando o pedido
diretamente de casa.
Como vimos anteriormente, o capital internacional não apenas redes-
cobriu as mulheres – principalmente as dos países subdesenvolvidos – para
reduzir seus custos de produção, como também redescobriu as mulheres dos
centros do capitalismo como meio para reduzir os custos de produção crian-
do uma demanda adequada para suas mercadorias. Cada vez mais, os serviços
socializados (saúde, educação, informação, transporte), que em muitos países
eram pagos pelo Estado de bem-estar social, estão sendo novamente privati-
zados. Essa privatização significa que o trabalho das mulheres como donas de
casa aumentará enormemente no futuro. Como disse Jaques Attali, a produção
do consumidor adequado passa cada vez mais a ser uma obrigação dos pró-
240 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

prios consumidores. As novas mercadorias requerem um determinado tipo


de consumidor, e as novas tecnologias, em particular a microeletrônica, são
tais que, de fato, manipulam e produzem esse novo consumidor (Attali, 1979).
Quanto mais essas tecnologias atingem as famílias, mais forte é o controle
do capital sobre os consumidores individuais, especialmente as mulheres. No
futuro, as mulheres que foram “expulsas da esfera produtiva”, de fábricas e
escritórios, se encontrarão na frente de um computador, por meio do qual
realizarão o trabalho doméstico eletrônico, seguindo as linhas tradicionais do
sistema putting-out, para as mesmas empresas que as expulsaram dos antigos
postos de trabalho. Assim, cada vez mais “trabalho assalariado livre” está sendo
transformado em trabalho donadecasificado não livre, e o consumidor “livre”
é cada vez mais forçado a adentrar uma estrutura coercitiva que o faz não
apenas comprar mercadorias, mas também realizar mais trabalho de consumo
do que antes era preciso para sobreviver.
Nessa conjuntura, a dona de casa, e não o “proletário livre”, é a força de
trabalho ideal para o capital, tanto nos países subdesenvolvidos quanto nos
superdesenvolvidos (von Werlhof, 1983). Enquanto a dona de casa consu-
midora no Ocidente tem de fazer cada vez mais trabalho não remunerado
para diminuir os custos de realização do capital, a dona de casa produtora nas
colônias tem de fazer cada vez mais trabalho não remunerado para diminuir
os custos de produção. Ambas as categorias de mulheres estão cada vez mais
sujeitas não apenas a uma ideologia manipuladora acerca do que uma mulher
“moderna”, isto é, uma “boa” mulher, deveria ser, como também a medidas
diretas de coerção, como já evidenciado na questão do controle de natalidade
no Terceiro Mundo.
A nova estratégia de ocultamento do trabalho produtivo das mulheres para
o capital é propagada sob o lema da “flexibilização do trabalho”. Além de
serem expulsas do setor formal – como aconteceu algum tempo atrás com as
mulheres indianas –, as mulheres também são reintegradas ao desenvolvimen-
to capitalista em toda uma gama de relações de produção informais, desorga-
nizadas e desprotegidas, que vão desde o trabalho em regime parcial, por meio
de contratos de trabalho, até o trabalho em casa – o trabalho comunitário não
remunerado. Cada vez mais, o modelo dual segundo o qual a mão de obra do
Terceiro Mundo foi segmentada é reintroduzido nos países industrializados.
Assim, podemos dizer que a forma pela qual mulheres do Terceiro Mundo es-
MARI A MI ES 241

tão atualmente integradas ao desenvolvimento capitalista é o modelo também


para a reorganização do trabalho nos centros do capitalismo.
Ideologicamente, entretanto, argumentos racistas são cada vez mais usados
para camuflar a similaridade estrutural existente de facto entre os dois grupos
de mulheres. Enquanto as donas de casa consumidoras ocidentais são enco-
rajadas a consumir mais e a reproduzir mais descendência branca, as “donas
de casa” produtoras coloniais são encorajadas a produzir mais e mais barato e
a parar de reproduzir mais descendência negra. A nova onda de racismo que
encontramos hoje no Ocidente tem suas raízes mais profundas nessa contra-
dição e no medo crescente, por parte de um número cada vez maior de pes-
soas marginalizadas nos países ricos, de que possam se tornar tão dispensáveis
quanto as mulheres nos países do Terceiro Mundo.

LIGAÇÕES: ALGUNS EXEMPLOS

O padrão geral da interação entre a divisão sexual do trabalho e a nova


divisão internacional do trabalho pode ser evidente. O que é menos evidente,
contudo, são as ligações que existem de facto entre as donas de casa consu-
midoras e as donas de casa produtoras. Essa falta de compreensão se deve à
mistificação criada pela produção de mercadorias e à divisão entre consumo
e produção. Uma vez que a mercadoria chega ao seu consumidor, este não
é mais capaz de saber quais relações de produção foram incorporadas a ela.
Portanto, a seguir são analisados alguns exemplos das ligações que existem de
facto entre as mulheres do Primeiro e do Terceiro Mundo. Restrinjo minha
explicação a essa relação, embora não devamos esquecer que uma relação se-
melhante prevalece entre mulheres de classes diferentes nos países do Terceiro
e do Primeiro Mundo. Dos muitos exemplos possíveis, escolho apenas alguns
em que essas ligações são menos confusas do que na maioria dos outros:
a. Mulheres na agricultura e na indústria leiteira;
b. Mulheres na produção de artesanatos;
c. Mulheres na indústria eletrônica;
d. Mulheres na prostituição/turismo sexual.
Poderia ser acrescentada uma série de exemplos, como as mulheres que
produzem flores na Colômbia, as mulheres que trabalham na indústria têxtil
242 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

no sul da Ásia (Índia, Sri Lanka) ou na produção de alimentos e piscicultura.


Mas as relações e estruturas serão mais ou menos as mesmas. Baseio essa dis-
cussão nas conclusões de vários estudos empíricos realizados nos últimos anos
(Mies, 1982, 1984; Risseuw, 1981; Grossman, 1979; Phongpaichit, 1982; von
Werlhof, 1983; Mitra, 1984).

A) MULHERES NA AGRICULTURA E NA INDÚSTRIA LEITEIRA

Quando as feministas começaram a descobrir e analisar a função do tra-


balho doméstico para a acumulação de capital, algumas de nós, já em 1978,
apontamos a semelhança estrutural entre as relações de produção da dona de
casa ocidental e as da produtora camponesa empobrecida na Ásia, África ou
América Latina (cf. von. Werlhof, 1978; Bennholdt-Thomsen, 1981; Mies,
1980).
As relações de produção de ambas geralmente são consideradas como “ex-
ternas” ao capitalismo propriamente dito. Às vezes, são caracterizadas como
“pré-capitalistas”, “semifeudais”, “pequeno-burguesas” etc. pelos marxistas or-
todoxos. Uma análise mais detalhada, entretanto, revelou que essas produtoras
de subsistência, como as chamamos, ainda constituem a base oculta e não re-
munerada da reprodução ampliada do capital (cf. Bennholdt-Thomsen, 1981).
Inicialmente, porém, seguindo a análise de Carmen Diana Deere (1978),
pensávamos que as produtoras camponesas de subsistência apenas subsidiavam
o salário dos homens que migravam para as cidades ou para os centros indus-
triais do Ocidente. Com o Plano de Ação para Pequenos Camponeses [Small
Peasants Strategy] do Banco Mundial, ficou nítido, no entanto, que essa dimen-
são – ou seja, a redução dos custos salariais dos proletários “reais” – constitui
apenas uma das várias relações de produção pelas quais os camponeses empo-
brecidos em geral e as camponesas em particular são integrados ao processo de
acumulação de capital. A seguir, descrevo dois exemplos de como essa integra-
ção das mulheres na agricultura pode ocorrer. Um trata das trabalhadoras agrí-
colas típicas e camponesas marginalizadas na Índia (Mies, 1984; Mitra, 1984),
o outro é sobre as mulheres em um modelo de cooperativa na Venezuela que
produz cana-de-açúcar para o agronegócio (von Werlhof, 1983).
O estudo sobre mulheres trabalhadoras agrícolas e camponesas marginali-
zadas foi realizado no distrito de Nalgonda, no estado de Andhra Pradesh, no
MARI A MI ES 243

sul da Índia. Seu objetivo era descobrir até que ponto a produção orientada
para o mercado afetou as condições de trabalho e de vida das trabalhadoras
agrícolas típicas, que realizam a maior parte do trabalho nas áreas de produ-
ção de arroz do sul da Índia. O estudo de campo realizado por mim, Lalitha
e Krishna Kumari ocorreu em três aldeias e cobriu toda a gama de trabalho
das mulheres, seu trabalho dentro e ao redor de suas cabanas (limpeza, pro-
cessamento e preparação de alimentos, coleta de água e combustível, cuidado
com os búfalos etc.), bem como nos campos, que incluíam enxertia, capina e
colheita de arroz, além do processamento de safras comerciais como tabaco,
pimentas, sementes oleaginosas etc.
Embora a forma desse trabalho e as relações de produção visíveis não tives-
sem sofrido nenhuma mudança dramática – as mulheres ainda eram contra-
tadas principalmente como trabalhadoras ocasionais ou coolies por fazendeiros
médios e ricos, que desde tempos imemoriais cultivavam suas terras com a
ajuda de coolies, geralmente pessoas das comunidades de intocáveis –, a essência
dessas relações de produção havia sofrido mudanças significativas.
A relação entre os proprietários de terras e as castas coolies não era mais a
tradicional, em que os coolies tinham o direito de realizar determinados traba-
lhos (por exemplo, remover cadáveres, regar os campos, fazer sapatos, com as
mulheres fazendo todo o trabalho de enxerto e capinação no campo etc.) e
receber uma remuneração fixa, geralmente em espécie. Agora, os proprietários
não se sentiam mais responsáveis por essas pessoas. Devido ao endividamento
constante dos pobres, os senhorios conseguiram manter muitos dos homens
dessas comunidades como trabalhadores forçados. As mulheres, no entanto, ainda
eram contratadas como mão de obra temporária durante a época agrícola.
Mas elas não eram tratadas da maneira tradicional como coolies, com o direito
de fazer certos trabalhos, nem como trabalhadoras assalariadas “livres” que
tinham direitos contratuais de vender seu trabalho livremente, como fazem
os proletários propriamente ditos. Eram de facto tratadas como “donas de casa”
dependentes, cujo trabalho era considerado complementar ao do “chefe de
família”. Na realidade, essas mulheres não apenas faziam todo o trabalho do-
méstico, como também faziam a maior parte do trabalho na agricultura: cerca
de 80% dos trabalhos agrícolas eram realizados por elas. Elas constituíam a
maior parte da força de trabalho rural. Além disso, em muitos casos, elas eram
as verdadeiras provedoras, pois os homens estavam desempregados ou haviam
244 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

migrado para a cidade e não enviavam dinheiro para casa. Nos últimos anos,
muito se escreveu na Índia sobre a tendência a retirar as mulheres do trabalho
“produtivo” ou do emprego remunerado. A maioria desses estudos é basea-
da em dados de censos e outras fontes estatísticas que definem o trabalho
doméstico como não trabalho.82 Como todas as mulheres também realizam
tarefas domésticas, além dos outros trabalhos que podem fazer, grande parte
de seu trabalho desaparece das estatísticas e, portanto, da percepção pública.
Nossas descobertas, no entanto, sugerem que as mulheres rurais na Índia não
trabalham menos do que antes, e sim cada vez mais. Na verdade, os homens
parecem trabalhar menos, mas fazem os trabalhos modernos mais bem pagos
e de maior prestígio (por exemplo, com as novas máquinas). A modernização
e o desenvolvimento capitalista privaram as mulheres trabalhadoras de seus
direitos tradicionais sem lhes dar os novos direitos de “proletária”. Mas, uma
vez que são forçadas a produzir sua própria sobrevivência e a de seus filhos,
elas geralmente têm de aceitar salários que estão abaixo do salário mínimo e
fazer todos os tipos de trabalho para ganhar a vida. Assim, as mulheres não es-
tão apenas ficando mais pobres em termos absolutos, mas também em termos
relativos, sobretudo em comparação com os homens.
Desde que parte do processo de produção agrícola, até mesmo nessa área
empobrecida, foi voltada para o cultivo comercial e para a produção mercantil
e passou por certo grau de modernização, as mulheres das classes tradicional-
mente coolies têm sido marginalizadas e pauperizadas. Devido à introdução
de bombas elétricas e de outras máquinas, seus homens perderam o trabalho;
muitos deixaram os povoados e outros ficaram desocupados, de modo que
geralmente eram as mulheres que tinham de pagar as contas no fim do mês.
Além disso, como as castas que produziam artesanatos tradicionais nos vilare-

82 O Censo Indiano de 1971 define “trabalho” da seguinte maneira: o trabalho implica a “par-
ticipação em qualquer trabalho economicamente produtivo por meio de atividade física ou
mental”; o não trabalho é definido da seguinte maneira: “Um homem ou mulher que se ocupa
principalmente de tarefas domésticas, como cozinhar para a própria casa ou realizar suas pró-
prias tarefas domésticas, ou um menino ou uma menina que é principalmente um estudante
que frequenta uma instituição, mesmo que ajude na atividade econômica da família, não é um
trabalhador em tempo integral e não deve ser tratado como um trabalhador para a atividade
principal” (Instituto de Estatística da Índia, 1971, p. 240-242. Fonte: Ashok Mitra, Lalit Pathak
& Shekhar Mukherji: The Status of Women, Shifts in Occupational Participation, 1961-1971 [O
status das mulheres, mudanças na participação laboral], Nova Delhi, 1980).
MARI A MI ES 245

jos também haviam perdido grande parte suas ocupações devido à introdução
de produtos de fabricação industrial, suas mulheres também se juntaram à
massa de trabalhadores agrícolas, competindo com as tradicionais mulheres
coolies pelos escassos empregos, o que levou a uma redução de seus salários.
Nessa situação de pobreza crescente, programas de desenvolvimento dire-
cionados a pequenos agricultores foram introduzidos e também estendidos,
com a ajuda de uma organização de voluntários,83 às mulheres empobrecidas.
Esses programas incluíam, entre outros objetivos, atividades de geração de
renda com base em pequenos empréstimos bancários para comprar búfalas,
algumas cabras, abrir uma pequena loja etc. O programa de aquisição de bú-
falas era o item mais importante do pacote. Não só envolvia um maior valor
de empréstimo, como também era o item que estava mais diretamente inte-
grado aos mecanismos de mercado capitalistas e, portanto, submetido a seu
total controle e supervisão. O programa direcionado à aquisição de búfalas
nessas aldeias fazia parte de um plano de desenvolvimento da indústria de
laticínios denominado Operation Flood [Operação Inundação], por meio do
qual a produção de leite na Índia havia sido intensificada nos últimos anos.84
Esse programa também foi estendido a pequenos agricultores, mesmo os mais
marginalizados. Os “beneficiários” conseguiam um empréstimo bancário para
a compra de uma búfala de alta raça e, ao mesmo tempo, se tornavam mem-
bros das cooperativas de laticínios. Eles deveriam entregar todo o leite para os
centros de coleta, que o transportavam para a leiteria da cidade. O pagamento
do empréstimo era assegurado por meio de um mecanismo com o qual o
banco deduzia 50% do dinheiro que os produtores deveriam receber pelo
leite diretamente nos centros de coleta. Assim, os produtores reais não tinham
controle direto sobre o dinheiro do leite até que o empréstimo fosse pago.

83 A organização voluntária (CROSS) que organizava os camponeses empobrecidos e tra-


balhadores sem-terra na área de Bhongir, onde o estudo foi realizado, tinha como objetivo
principal a conscientização da população. Para isso, usaram escolas noturnas e adaptaram o
método de Paulo Freire ao contexto indiano. Essa organização também deu um passo pioneiro
ao organizar as mulheres empobrecidas das áreas rurais em associações auto-organizadas de
mulheres, chamadas Sanghams.

84 Para uma discussão e uma crítica da Operation Flood, ver: Operation Flood: Development or
Dependence? [Operação Inundação: desenvolvimento ou dependência?], Equipe de pesquisa
do Centre of Education and Documentation, 4 Battery Street, Mumbai 400 039, Índia, 1982.
246 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

A maior parte do trabalho necessário para a manutenção das búfalas era


realizado por mulheres. Estas tinham de coletar a grama para os animais e car-
regá-la para casa; também tinham de alimentar, limpar e ordenhar as búfalas.
Mas o dinheiro do leite era recebido pelos homens. Alimentar uma búfala
significava, para as camponesas marginalizadas e trabalhadoras sem-terra, que
elas tinham de caminhar quilômetros para encontrar grama e feno nas bordas
dos campos ou em terras não cultivadas. Anteriormente, esses terrenos eram
propriedade comum de todos. Os proprietários de terras sempre permitiram
que seus coolies coletassem forragem em seus campos. Após a introdução do
programa de laticínios, no entanto, os proprietários reivindicaram toda a gra-
ma que crescia nos campos ou ao redor deles como sua propriedade privada,
da qual necessitavam para seu próprio gado ou pretendiam vender como
mercadoria. As mulheres empobrecidas que continuavam a coletar grama da
maneira tradicional eram acusadas de roubo e muitas vezes eram agredidas e
assediadas pelos proprietários de terras.
O seguinte relato sobre uma mulher pode ilustrar o que significa a inte-
gração das mulheres empobrecidas a esse tipo de produção de mercadorias:
Abamma havia conseguido uma búfala dois anos antes. Por dois meses o ani-
mal produziu cinco litros de leite, durante outros dois meses produziu quatro
litros e, nos dois meses seguintes, apenas dois litros. Então a búfala parou de
produzir leite porque estava prenhe. O bezerro morreu, e durante quase um
ano ela não deu leite. O marido de Abamma levou o leite para a central de
coleta e recebeu o dinheiro correspondente à venda. O casal obteve, em
média, 1,50 rúpias por litro de leite, de acordo com o seu teor de gordura.
Ao todo, eles receberam 990 rúpias pela venda do leite. Destes, 50% foram
deduzidos para o reembolso do empréstimo. Assim, eles receberam 445 rúpias.
Abamma comprou ração por 76 rúpias para alimentar a búfala durante o seu
período de gestação. Depois que o animal pariu, ela parou de dar a mistura de
ração porque não tinha como pagar por ela. Como quase não tinham terra
própria, tiveram de pedir um empréstimo para comprar grama. Com o di-
nheiro, ela conseguiu pagar 150 rúpias desse empréstimo. Como seu marido
trabalhava como carregador no mercado da cidade vizinha e ela precisava
trabalhar como coolie, eles tiveram de contratar alguém para levar as búfalas ao
pasto. O principal problema era a manutenção das búfalas durante os meses
de verão – março, abril, maio e junho –, quando tudo está seco. Durante esses
MARI A MI ES 247

meses, as búfalas não dão leite, mas precisam ser alimentadas. Pessoas pobres
como Abamma, no entanto, não têm dinheiro para comprar forragem para
o animal quando não há produção de leite. Assim, ou elas descuidam dos
animais durante esses meses, ou precisam pedir mais dinheiro emprestado
para mantê-los vivos até o início das monções. A raça local de búfalos está
acostumada a viver com pouca forragem durante esses meses, sem adoecer,
mas a raça híbrida e cara que os camponeses empobrecidos têm de comprar
muitas vezes não sobrevive. Abamma não pôde tomar outro empréstimo para
alimentar suas búfalas durante os meses de verão.
O que Abamma ganhou com seu trabalho extra com a criação de búfalas,
que supostamente complementaria sua escassa renda com o trabalho assa-
lariado? A búfala deu leite por seis meses em dois anos. Após a dedução de
50% para o pagamento do empréstimo, Abamma ficou com 445 rúpias. Desse
montante, ela teve de pagar 76 rúpias para a mistura de ração e 150 rúpias para
o reembolso do empréstimo solicitado para a compra de grama. O menino
que levou as búfalas para pastar também teve de ser pago, mas ela não disse
quanto pagou a ele. Estimamos que ele tenha recebido algo em torno de 40
rúpias. Portanto, a receita líquida do programa de laticínios para Abamma foi
de 445 rúpias - 266 rúpias = 179 rúpias. Ao longo de dois anos, Abamma ga-
nhou 179 rúpias. O leite que ela havia produzido durante esses dois anos, no
entanto, era vendido na cidade por 2,50 rúpias por litro; isso equivale a 2.475
rúpias para 990 litros.
Se compararmos agora essa renda com o tempo de trabalho gasto na manu-
tenção da búfala e na produção de leite, poderemos ver como esse programa,
que supostamente deveria ajudar os pobres, não se diferencia muito da explora-
ção das mulheres como trabalhadoras rurais. Os lucros obtidos com a venda do
leite na cidade não são distribuídos aos produtores reais, mas apropriados, nesse
caso, principalmente pela empresa estatal Andhra Pradesh Dairy Corporation
e por várias empresas privadas que vendem laticínios na cidade. Como traba-
lhadora agrícola, ela recebia 2,50 rúpias por dia. Como trabalhava oito horas
por dia, isso equivalia a 0,31 rúpias por hora. A exploração de Abamma como
produtora de mercadorias é, portanto, mais do que o dobro daquela que ocor-
reria se ela fosse uma operária assalariada (Mies, 1984, p. 176-7).
Manoshi Mitra corrobora essas descobertas em um amplo estudo realizado
recentemente sobre os efeitos da Operation Flood nas mulheres camponesas
248 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

empobrecidas e marginalizadas do estado indiano de Andhra Pradesh. Ela


descobriu que a introdução da indústria de laticínios entre os camponeses
sem-terra e empobrecidos aumentou a carga de trabalho das mulheres sem
lhes dar acesso adequado aos frutos de seu trabalho ou a novas vias de par-
ticipação e gestão nas cooperativas de laticínios. Não apenas todos os traba-
lhos remunerados nas cooperativas eram ocupados por homens, como estes
também controlavam a renda derivada da produção leiteira. Além disso, as
mulheres de famílias camponesas empobrecidas e sem-terra que participavam
da produção de laticínios raramente consumiam leite. O pouco leite que essas
mulheres guardavam para suas famílias era consumido pelos homens ou pelos
filhos, já que não se costuma dá-lo às filhas. A autora também descobriu que,
graças à nova renda da produção de laticínios, muitos homens, com o objetivo
de controlar essa renda, pararam de trabalhar na agricultura sob o pretexto de
cuidar dos animais (Mitra, 1984).
Essas descobertas confirmam a tese de Veronika Bennholdt-Thomsen
(1980) acerca da lucratividade do “investimento nos pobres”, do controle
que, por meio da extensão do crédito, o capital exerce sobre as produtoras
donadecasificadas e do verdadeiro efeito “trickling up”85 que ocorre devido a
tais programas de desenvolvimento serem aparentemente destinados a ajudar
as mulheres empobrecidas. Essas descobertas também demonstram que esses
programas nitidamente aumentam a desigualdade entre homens e mulheres,
já que as mulheres estão trabalhando mais e recebendo uma fatia menor do
bolo. Assim, acentua-se a polarização entre os sexos.

O outro lado. A análise desse processo de “drenagem” do trabalho e da pro-


dução leiteira das mulheres camponesas empobrecidas e sem-terra na Índia
– um processo chamado de Operation Flood na tradição do novo linguajar
orwelliano (as cidades são “inundadas” e as aldeias e mulheres são “drenadas”)
– seria incompleta sem ao menos uma breve análise das conexões entre a su-
perexploração das mulheres indianas pobres integradas à produção capitalista

85 De acordo com a teoria do trickling up, políticas econômicas estatais que aumentam o poder
de compra das classes baixas e médias, por meio de melhorias salariais e programas sociais, am-
pliam o consumo, o que em médio e longo prazo também beneficia as classes altas por meio
do crescimento do mercado. [N. das T.]
MARI A MI ES 249

de leite e a superprodução de leite no Mercado Comum Europeu.86 O que


a dona de casa britânica, holandesa, alemã ou francesa, que pode escolher
entre centenas de variedades de queijos, iogurtes, laticínios, natas etc., tem a
ver com mulheres como Abamma? Uma dona de casa consumidora ocidental
comum dificilmente sabe que, antes da Operation Flood, o leite que era produ-
zido nos vilarejos da Índia também era consumido neles, e agora é exportado
para as cidades. Ela também não saberá o que a exploração da Abamma tem
a ver com o mar de leite e as montanhas de manteiga do Mercado Comum
Europeu. E, no entanto, essa é a razão pela qual a Operation Flood foi iniciada.
Em 1968, quando a Comissão Econômica Europeia procurava um lugar
para despejar seu excedente de leite e creme de manteiga, ela descobriu a
Índia. Inicialmente, os países da Comissão ofereceram seu excedente a or-
ganizações leiteiras indianas como presente. Essas organizações deveriam re-
constituir o leite desnatado em pó em leite e produtos lácteos para vender
aos mercados urbanos e, assim, ganhar o capital necessário para investir na
modernização da indústria de laticínios na Índia. O governo indiano então
abordou a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura
(FAO, na sigla em inglês) a fim de obter doações de creme de manteiga e leite
em pó da Comissão Econômica Europeia.
Com um investimento inicial de 954 milhões de rúpias (que uma revisão
estima que, na verdade, tenha sido de 1.164 milhões de rúpias), a Operation
Flood foi o maior programa de desenvolvimento lácteo lançado no mundo até
então. Prometia criar uma “revolução branca” ao copiar o modelo de uma co-
operativa de produtores de leite, a Kaira District Milk Union Ltd., que atuava
na cidade de Anand, no estado indiano de Gujarat, e “inundar” as cidades com
leite produzido na zona rural. Esperava-se que essa “inundação” fosse alcan-
çada graças à ampliação dos laticínios, à instalação de centrais rurais de coleta
e resfriamento de leite, ao desenvolvimento de animais leiteiros melhorados e

86 O Mercado Comum Europeu, nome popular dado à Comunidade Econômica Europeia,


foi o embrião da atual União Europeia. Criado em 1957 pelo Tratado de Roma, o Mercado
Comum Europeu englobou, a princípio, seis países: Alemanha Ocidental, França, Itália, Bél-
gica, Países Baixos e Luxemburgo. Nos anos seguintes, ingressaram o Reino Unido, Irlanda
e Dinamarca (1973), Grécia (1981), Portugal e Espanha (1986). Depois do Tratado de Maas-
tricht, de 1992, que criou a União Europeia, a Comunidade Econômica Europeia passou a ser
designada como Comunidade Europeia e a fazer parte da organização institucional da União
Europeia. [N. das T.]
250 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

à organização de produtores de leite em cooperativas, entre outros fatores. As


cidades receberiam mais leite e os produtores de leite, mais renda. Esperava-se
também que, dessa forma, os pobres obtivessem mais leite para seu consu-
mo. Muitos já reconhecem que essa expectativa não foi cumprida. As quatro
grandes cidades – Mumbai, Delhi, Madras e Calcutá –, no entanto, receberam
maior quantidade de leite. Mas como a maioria da população urbana pobre
não tem dinheiro para comprar leite ao preço de 2 rúpias, as empresas de lati-
cínios o convertem em outros itens de luxo, como sorvetes, doces ou comida
para bebês. Assim, são principalmente as donas de casa de classe média que se
beneficiam da Operation Flood e que têm acesso a produtos lácteos caros, não
os pobres rurais ou urbanos.
Em contrapartida, na Europa, a Operation Flood indiana, enquanto re-
ceptora do excedente de leite, tem desempenhado um papel importante
na manutenção da contínua superprodução, baseada na importação de ra-
ção para gado de países do Terceiro Mundo e dos Estados Unidos a preços
subsidiados pelo Estado. Os produtores de leite europeus, as multinacionais
alimentícias europeias e os governos europeus tinham todos um interesse
vital em manter a Operação funcionando e crescendo, uma vez que ela
os ajudou a resolver os problemas de superprodução de leite que, de ou-
tra forma, poderiam ter levado a distúrbios políticos. Ao mesmo tempo, a
superabundância de leite levou a uma tremenda proliferação de produtos
lácteos produzidos industrialmente, que competem pela atenção das donas
de casa europeias. As multinacionais alimentícias, que controlam o mercado,
mobilizam constantemente a dona de casa europeia por meio da televisão e
de outras propagandas para comprar mais laticínios. Essas empresas têm um
interesse vital em divulgar ainda mais a imagem da dona de casa como mãe,
consumidora e objeto sexual.
A integração das camponesas empobrecidas e sem-terra na Operation Flood
criou um vínculo objetivo entre as mulheres pobres, como produtoras que
não têm dinheiro para consumir leite, e as donas de casa de classe média nas
cidades indianas e na Europa, que devem comprar cada vez mais produtos
lácteos sofisticados. Entre os dois grupos de mulheres estão as grandes empre-
sas multinacionais de alimentos e rações para o gado, os governos e toda uma
série de empresas que lucram com esse arranjo.
MARI A MI ES 251

Mulheres que trabalham para o agronegócio. O modelo da dona de casa tem


importância estratégica não apenas no setor informal no meio rural, mas tam-
bém nos setores mais modernos do agronegócio. Claudia von Werlhof (1983)
mostrou que, na Venezuela, o trabalho feminino não é explorado apenas na
forma do trabalho familiar não remunerado das pequenas camponesas, mas
também nas grandes e modernas cooperativas de cana-de-açúcar, que foram
estabelecidas pelo Estado após a reforma agrária e que, por contrato e crédito,
produzem diretamente para o agronegócio. No modelo de cooperativa de
Cumaripa, na província de Yaracuy, os homens só podiam se tornar membros
da cooperativa se tivessem família, ou seja, se pudessem substituir o próprio
trabalho pelo de suas esposas e filhos. Se ficassem doentes, sua esposa ou fi-
lho deveriam trabalhar em seu lugar. Mas as mulheres não podiam se tornar
membros da cooperativa. Só poderiam fazê-lo por meio do casamento. Isso
significa que foram definidas como donas de casa, ligadas a um homem pro-
vedor. A mulher, portanto, tinha de estar pronta para fazer todo o trabalho de
seu marido, mas sem seus direitos, e até mesmo sem direito à renda monetária.
Assim, a posição econômica das mulheres era pior nesse tipo mais moderno
de cooperativa. Segundo Claudia von Werlhof, as mulheres eram definidas
como donas de casa nessa cooperativa porque, dessa forma, constituíam uma
reserva de mão de obra sempre pronta e disponível, que nem precisava ser
paga. Esse modelo, promovido pelo Estado, garantiu que não só os homens da
cooperativa pudessem usar o trabalho produtivo das mulheres em benefício
próprio, mas também a cooperativa como um todo e, por fim, a agroindústria
para a qual trabalhavam.
Além dessa integração invisível do trabalho feminino na produção de safras
comerciais, as mulheres também foram mobilizadas a agir como donas de casa
– com a ajuda de assistentes sociais rurais e por meio da promoção de “crédi-
tos para donas de casa” – e a mudar seus hábitos alimentares e aprender novas
habilidades (por exemplo, fazer bonecas), a fim de usar o chamado tempo de
lazer de forma produtiva, entrando diretamente na produção de mercadorias e
complementando a renda do chefe de família. Assim, o trabalho dessas mulhe-
res estava totalmente subordinado à produção de mercadorias e à acumulação
de capital, mas ainda aparecia como se fosse produção de subsistência das do-
nas de casa. Claudia von Werlhof conclui: “Ser dona de casa não significa não
ser produtora de mercadorias, mas sim figurar como produtora de subsistência
252 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

apesar de ser produtora de mercadorias” (von Werlhof, 1983, p. 148; com base
na trad. de Maria Mies). É essa mistificação que torna o modelo da dona de
casa tão lucrativo para o capital.
O modelo de cooperativa de Cumaripa produzia cana-de-açúcar para o
agronegócio por meio de um contrato. Não se sabe como e de que forma esse
açúcar acabou entrando no mercado mundial, nem quais foram os produtos
finais que podem ter chegado aos consumidores nos países ricos ou cida-
des do Terceiro Mundo. Por isso não se pode rastrear as ligações diretas que
podem existir entre as donas de casa nos Estados Unidos ou na Europa e as
donas de casa produtoras não remuneradas na Venezuela. Essa dificuldade em
traçar o caminho do produto desde o produtor primário até o consumidor
final é típica de muitos dos produtos que entram no mercado mundial por
meio do agronegócio. Se no caso de frutas e vegetais exóticos ainda pode ser
fácil traçar esse trajeto, o quadro fica totalmente borrado no caso de safras
comerciais como as de mandioca, tapioca, óleo de palma, açúcar, amendoim
etc., produtos que são usados como matéria-prima para a produção de ração
animal ou itens alimentares. Em linhas gerais, só podemos afirmar que o fato
de o trabalho não remunerado das mulheres ser aproveitado para a produção
dessas mercadorias deve ser visto como uma das razões pelas quais há uma
superabundância de mercadorias nos mercados ocidentais.
Dessa maneira, o trabalho donadecasificado não remunerado nos países do
Terceiro Mundo não é apenas aproveitado para a produção de mercadorias
que podem ser consumidas diretamente pelas donas de casa nos países ricos,
como também serve para a produção de mercadorias que podem ser usadas
como matéria-prima em uma variedade de outros processos produtivos, in-
cluindo a produção de armas. A transformação do açúcar em álcool como um
substituto do petróleo é um exemplo ilustrativo.

B) MULHERES NA PRODUÇÃO DE ARTESANATOS (DE RENDA E FIBRA DE COCO)

A produção de artesanatos tem sido propagada há muito tempo como uma


estratégia para “complementar” as escassas rendas para as mulheres empobreci-
das das áreas rurais e urbanas dos países do Terceiro Mundo. Essa estratégia se
baseia na indústria doméstica ou familiar. As mulheres fazem esse trabalho em
seu tempo de “descanso” em casa. Elas se consideram donas de casa, e não tra-
MARI A MI ES 253

balhadoras. O trabalho geralmente é organizado em um sistema de produção


por peça. As mulheres recebem um preço por peça que está muito abaixo do
salário mínimo dos trabalhadores rurais. Em nosso estudo sobre as rendeiras de
Narsapur, que estão nessa indústria desde o século XIX, vimos que o salário
médio diário era de cerca de 0,58 rúpias por uma jornada de oito horas de
trabalho. Mais de cem mil mulheres eram empregadas nessa indústria, mas não
eram inseridas como trabalhadoras em nenhuma estatística. Seu trabalho foi
definido como uma atividade realizada no tempo de lazer das donas de casa.
Toda a renda era exportada para os Estados Unidos, Europa, Austrália e
África do Sul. As próprias mulheres não encontravam absolutamente nenhu-
ma utilidade em suas casas para os produtos de renda que fabricaram. Elas
sequer sabiam que uso se fazia daqueles bens, pois a divisão do trabalho era tal
que nenhuma mulher produzia uma peça inteira, mas apenas um componente
separado, ou uma “flor”, como é chamado. Essa indústria foi introduzida por
missionários no século XIX; desde então, surgiram muitas empresas exporta-
doras de grande porte nessa área que lucraram milhões de rúpias por meio da
exploração dessas mulheres (Mies, 1982).
O outro lado da moeda são os importadores nos países industrializados.
Atualmente, a maior parte das cadeias de supermercado inclui em suas seções
produtos feitos à mão no Terceiro Mundo. Em um supermercado em Colônia,
encontrei rendas artesanais indianas de Narsapur lado a lado com rendas feitas
à mão na China, ambas a um preço bastante baixo. Isso significa que hoje as
mulheres da classe trabalhadora também podem dar às suas casas uma apa-
rência burguesa sofisticada adicionando algumas rendas feitas à mão aos seus
móveis, um luxo que antes não era encontrado nessas casas. Assim, as mulheres
da classe trabalhadora nos países ocidentais podem pagar por um estilo de vida
que antes só era possível para as mulheres burguesas, porque as mulheres rurais
empobrecidas da Índia produzem esses objetos em troca de um salário abaixo
de seu próprio nível de subsistência. Essa relação prospera com a definição das
mulheres como donas de casa em ambas as extremidades do globo.
Carla Risseeuw (1981) estudou um caso similar no Sri Lanka, em que as
mulheres foram incentivadas a produzir tapetes de fibra de coco para expor-
tação. Enquanto a confecção de rendas foi introduzida na Índia já no século
XIX, a habilidade de fazer belos tapetes de fibra de coco foi introduzida por
um projeto holandês de desenvolvimento para mulheres. A organização do
254 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

trabalho era semelhante à das rendeiras de Narsapur, mas as fabricantes de


tapetes do Sri Lanka montaram uma pequena oficina onde trabalhavam jun-
tas. Isso pode ser visto como um avanço no que diz respeito à atomização
das rendeiras. Por outro lado, a concorrência acirrada que surge entre essas
produtoras atomizadas é talvez ainda mais pronunciada do que entre as mu-
lheres de Narsapur. Carla Risseeuw enfatiza em seu estudo a dificuldade de
organização dessas trabalhadoras. Outra dificuldade que menciona é o fato de
que, apesar de todos os esforços bem intencionados das mulheres holandesas
em apoiar a organização de um sistema de mercado alternativo para a venda
dos tapetes na Holanda e na Europa, o resultado final foi que as grandes em-
presas começaram a comercializar esses tapetes. As pequenas lojas do Terceiro
Mundo não podiam competir com essas empresas. A conclusão é que esse
projeto criou uma nova mercadoria – novamente, outro item de luxo para
residências ocidentais – que foi então integrada à variedade de mercadorias
oferecidas pelas grandes redes de supermercados. Para as mulheres produtoras,
esse projeto proporcionou mais uma fonte de renda monetária, mas também
as tornou dependentes dos caprichos e das flutuações do mercado ociden-
tal. Não me surpreenderia se todas as mulheres que foram mobilizadas nos
últimos anos nos países do Terceiro Mundo para iniciar alguma produção de
artesanato voltada para a exportação fossem severamente atingidas pela crise
econômica que afeta os países industrializados hoje. O que as fabricantes de
tapetes de fibra de coco do Sri Lanka ou as rendeiras da Índia farão quando
as mulheres na Holanda ou na Alemanha não tiverem dinheiro para comprar
esses produtos ou quando simplesmente deixarem de comprá-los porque estão
fartas de tapetes de coco ou rendas?

C) MULHERES NA INDÚSTRIA ELETRÔNICA

Enquanto os exemplos acima ilustram os efeitos da subsunção do tra-


balho feminino ao capital por meio de indústrias domésticas, as mulheres
que trabalham nas zonas francas na Indonésia, Malásia, Cingapura, Hong
Kong, Tailândia, El Salvador, México, Filipinas etc. trabalham em fábricas
reais. Devemos acrescentar aqui que a indústria doméstica e o sistema pu-
tting-out não se restringem apenas ao trabalho artesanal ou aos países do
Terceiro Mundo. Com a chamada Terceira Revolução Tecnológica, a mesma
MARI A MI ES 255

organização atomizada do trabalho será utilizada em processos de produção


altamente sofisticados. Já há empresas eletrônicas dos Estados Unidos que
estão introduzindo o sistema de trabalho em domicílio na produção de com-
putadores domésticos, e as donas de casa estadunidenses, que fazem parte do
trabalho para essas empresas, o fazem da mesma forma que as rendeiras de
Narsapur: produzem componentes do produto final. Essa “revolução tecno-
lógica” baseada nos microchips está, no entanto, fundada no trabalho de mais
de um milhão de mulheres que trabalham nas indústrias de eletrônicos no
Sudeste Asiático. Enquanto todo mundo fala hoje sobre os efeitos dessa revo-
lução dos microchips no mercado de trabalho ocidental – a possibilidade de
deixar milhões de pessoas sem trabalho graças à automação e à informatiza-
ção –, quase ninguém menciona as “mulheres asiáticas de dedos ágeis, hábeis
e dóceis” que têm tornado tudo isso possível. Rachael Grossman estudou
as condições em que essas mulheres trabalham e os mecanismos pelos quais
são manipuladas.
As mulheres asiáticas empregadas na indústria de eletrônicos são colocadas
em uma linha de montagem global que vai do Vale do Silício, nos Estados
Unidos, ao sudeste da Ásia. Nessa linha de montagem, as mulheres asiáticas
realizam os trabalhos mais monótonos, demorados, estressantes e insalubres.
Elas têm de soldar, com ajuda de um microscópio, cabos tão finos quanto
um fio de cabelo; são eles que mantêm os minúsculos chips juntos para que
possam se tornar um circuito integrado. Esses componentes eletrônicos são os
“cérebros reais” por meio dos quais os computadores e as novas máquinas são
guiados. As empresas estadunidenses e japonesas desenvolveram um sistema
sutil de controle do trabalho que combina métodos de coerção direta com
métodos de manipulação psicológica. Nem é preciso dizer que a atividade
sindical é proibida nessas fábricas. Na Malásia, as mulheres são demitidas quan-
do se descobre que elas pertencem a algum sindicato.
As empresas contratam somente mulheres jovens, entre 14 e 25 anos de
idade, que normalmente são demitidas quando se casam. Assim, as empresas
economizam os custos relacionados à maternidade e sempre têm à disposi-
ção mulheres jovens e inexperientes que recebem algum treinamento rápi-
do durante o trabalho. As mulheres têm de produzir uma determinada cota
de chips por dia. Uma das mulheres de uma fábrica de semicondutores em
Penang, na Malásia, disse que todas as trabalhadoras tinham de completar
256 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

700 chips por dia, que não tinham permissão para falar entre si durante o
trabalho, que não podiam se afastar do local de trabalho e que não tinham
nenhum período de descanso. Os supervisores constantemente criticavam
as trabalhadoras. Oito horas de trabalho nos microscópios podem causar
dores nos olhos e ansiedade (Fröbel et al, 1977, p. 593). Cada mulher tinha
uma tabela ao seu lado onde deveria marcar sua cota diária de trabalho. No
chão de fábrica, as mulheres são constantemente colocadas umas contra
as outras, em clima de concorrência por produtividade para aumentar sua
cota. Uma mulher que não consegue cumprir a meta diária é demitida ou
tem de fazer horas extras. A mulher citada anteriormente disse: “Nos tratam
como lixo”. Ao mesmo tempo, as empresas manipulam as mulheres como
símbolos sexuais de uma maneira repulsiva. Nos fins de semana, as empre-
sas não apenas organizam bazares de cosméticos em que as mulheres são
encorajadas a gastar seu dinheiro suado em batons, maquiagem, cremes etc.
para imitar as mulheres glamourosas do Ocidente projetadas pela mídia e
em filmes, como também organizam concursos de beleza em suas fábricas,
nos quais as mulheres competem entre si pelo título de rainha da beleza
da empresa. Depois de um desses concursos de beleza, a revista da empresa
publicou a seguinte declaração: “Nossa última vencedora do concurso de
beleza da empresa gastou 40 dólares em seu vestido de noite, mas ela fez
tantas fendas para mostrar as pernas que não conseguirá vesti-lo novamente”
(Grossman, 1979).
As empresas organizam concursos de canto e de costura, e as fotos das
vencedoras são publicadas em suas revistas. Assim, as trabalhadoras não só
ficam totalmente sob controle da empresa em suas horas de trabalho, como
também nos momentos de lazer. A empresa se apresenta como uma gran-
de família com o empresário branco ou japonês como a figura do pai que
beija a vencedora da competição de beleza. Aqui, as estruturas e atitudes
patriarcais não são simplesmente usadas e reforçadas, a “submissão da mulher
asiática” não é apenas utilizada para atrair capital ocidental ou japonês para
esses países; qualquer que tenha sido a forma tradicional de patriarcado, o
novo patriarcado tem intenções e objetivos evidentemente capitalistas, assim
como novas formas de expressão. As mulheres asiáticas nas zonas francas de
produção não são vistas primordialmente como trabalhadoras, e sim como
mulheres. Em contraste com as mulheres nas indústrias domésticas, elas são
MARI A MI ES 257

definidas principalmente como símbolos sexuais. Isso mostra como toda a


mobilização de mulheres asiáticas na produção para o mercado mundial está
conectada ao que chamo de nexo da prostituição.
O outro lado. Neste caso, o outro lado da DIT significa não apenas que
milhões de mulheres (e homens) no Ocidente estão perdendo seus empre-
gos – e perderão cada vez mais – nas indústrias mecânica e eletrônica e, so-
bretudo, no setor terciário devido à introdução de computadores, máquinas
automáticas de venda, editores de texto etc., mas também que as mulheres
deverão ser mobilizadas como donas de casa, consumidoras e símbolos sexuais
nas estratégias de venda de todas essas coisas. Os planejadores econômicos e
políticos de hoje têm esperanças de que a crise econômica seja novamente
controlada e um novo ciclo de acumulação se inicie por meio do uso dessas
novas tecnologias que, espera-se, nos próximos anos serão compradas a cada
segundo por uma família no Ocidente. Prevê-se que, a cada duas residências,
uma tenha um computador doméstico até 1990, que as donas de casa tenham
fogões computadorizados, façam suas compras pela internet, enviem suas car-
tas por telex87 etc. Uma das maiores expectativas é com relação à indústria
audiovisual. Espera-se que os vídeos e os dispositivos de reprodução audio-
visual substituam em grande parte a velha televisão, de modo que, como foi
dito recentemente, todo marido seja o diretor de programação de sua família.
O que isso significa para as mulheres no Ocidente? Na Alemanha Ocidental,
um recente debate televisivo sobre uma nova onda de produção audiovisual
revelou que 40% da produção cinematográfica são filmes de terror e guerra,
30% são os chamados filmes de ação, em que carros esmagam outros carros
etc., 12% são filmes pornográficos e o resto é sobre educação, cultura etc. Se
adicionarmos os filmes de terror aos filmes pornográficos – porque as mu-
lheres, e cada vez mais as mulheres “negras”, são vítimas de violência machista
e sádica em ambos os gêneros –, podemos imaginar a extensão da violência
contra as mulheres, que já existe e que aumentará como resultado dessa in-
tegração das mulheres ao desenvolvimento capitalista. A violência contra as
mulheres se torna, ela mesma, uma nova mercadoria. Nesse estágio, também se

87 O Telex foi uma das principais formas de comunicação no período do pós-guerra e que
prevaleceu até o final do século XX. Consistia em um sistema de transmissão ponto a ponto
por teleimpressão, semelhante a uma rede telefônica e dela totalmente independente, cuja fi-
nalidade era o envio de mensagens de texto. [N. das T.]
258 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

torna evidente para as mulheres no Ocidente que esse tipo de desenvolvimen-


to, esse tipo de progresso tecnológico, esse tipo de riqueza prometida não é e
nunca poderá ser do interesse das mulheres. De fato, as mulheres estão sendo
usadas aqui da maneira mais cínica e sádica para criar novas “necessidades”
para os homens frustrados de nossas sociedades e para manter funcionando
um mercado já saturado.

D) O TURISMO SEXUAL E A INTERNACIONAL DOS CAFETÕES

A mais crua manifestação da combinação da nova DIT com a divisão


neopatriarcal ou sexista do trabalho é o turismo sexual. O turismo em paí-
ses do Terceiro Mundo, especialmente na Ásia, tornou-se uma indústria em
crescimento na década de 1970 e continua a ser propagado como estratégia
de desenvolvimento por agências de ajuda internacional. Na verdade, essa
indústria foi inicialmente planejada e apoiada pelo Banco Mundial, pelo
Fundo Monetário Internacional e pela Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional. Entre 1960 e 1979, a entrada de turistas,
principalmente oriundos do Ocidente e do Japão, no Sudeste Asiático au-
mentou 25 vezes, e os países da região que abriram suas portas aos turistas
“arrecadaram mais de quatro bilhões de dólares em 1979” (Wood, em South-
East Asia Chronicle, n. 78). Mas não só Hong Kong,Tailândia, Malásia, Filipinas
e Cingapura fizeram do turismo uma de suas principais áreas de exportação
de serviços, como também muitos outros países do Terceiro Mundo, como
Quênia, Tunísia, México, Sri Lanka, Peru e alguns países do Caribe. O prin-
cipal produto de exportação que tem atraído fluxos de homens turistas do
Japão, Estados Unidos e Europa, talvez mais do que praias ensolaradas, são
as mulheres asiáticas, africanas e latino-americanas. Os governos tailandês e
filipino, em particular, estão oferecendo suas mulheres como parte do pacote
turístico. É o caso do vice-primeiro ministro da Tailândia, que, em outubro
de 1980, exortou os governadores das províncias do país a contribuir com
o esforço nacional para atrair mais turistas mediante a construção de pontos
turísticos para o encorajamento de “certas atividades de entretenimento que
alguns de vocês podem achar nojentas e vergonhosas por estarem relaciona-
das ao prazer sexual” (Santi Mingmonkol, em South-East Asia Chronicle, n. 78,
p. 24). De acordo com Pasuk Phongpaichit, entre 200 mil e 300 mil mulheres
MARI A MI ES 259

estão trabalhando na indústria do sexo em Bangcoc, camufladas em casas de


massagem, lojas de chás e hotéis (Phongpaichit, 1982). Oficialmente, a pros-
tituição é proibida na Tailândia desde 1960. De acordo com outra estimativa,
cerca de 10% das mulheres de Bangcoc estão trabalhando nessa indústria
(Santi Mingmonkol, em South-East Asia Chronicle, n. 78). Em Manila, o nú-
mero de prostitutas é de cerca de 100 mil.
A prostituição também é legalmente proibida no Quênia, mas o governo
faz questão de atrair turistas ocidentais e fecha os olhos para o que está acon-
tecendo nas praias famosas. Os raros protestos, como o de um parlamentar
que acusou os alemães e os suíços, em particular, de terem transformado as
províncias costeiras em suas províncias neocoloniais do sexo, não têm levado
a nenhum tipo de consequência para o turismo sexual. Há muito dinheiro
envolvido nesses esquemas, do qual a elite governante também recebe sua
parte (Tourismus, Prostitution, Entwicklung [Turismo, prostituição, desenvolvi-
mento]88, 1983, p. 52).
A cumplicidade entre a indústria do turismo, a indústria do sexo e o go-
verno é ainda mais flagrante nas Filipinas, onde os parentes e parceiros de
negócios do presidente Marcos e sua esposa Imelda estão entre os principais
beneficiários da bonança criada pelo turismo (Linda Richter, em South-East
Asia Chronicle, n. 78, p. 27-32).
Como é bem sabido, a primeira vez que as mulheres do Sudeste Asiático
foram transformadas massivamente em prostitutas foi no contexto da Guerra
do Vietnã e do estabelecimento de bases aéreas e navais estadunidenses na
região do Pacífico. Os três países que atualmente constituem os centros do
turismo sexual no Sudeste Asiático, Tailândia, Filipinas e Coreia do Sul, tive-
ram uma presença maciça de soldados estadunidenses a partir de meados da
década de 1960. Não apenas as mulheres vietnamitas foram prostituídas para
o exército dos Estados Unidos; as bases militares estadunidenses na Tailândia
eram rodeadas por bares, bordéis, boates e casas de massagem onde milha-
res de mulheres trabalhavam na “indústria do descanso e do lazer” [Rest and
Recreation Industry – R&R]89 para os soldados estadunidenses. A maioria das

88 Documento publicado pelo Zentrum für Entwicklungsbezogene Bildung [Centro de Educação


Relacionada ao Desenvolvimento]. [N. das T.]

89 “Rest and Recreation” (R&R) é uma expressão utilizada no contexto militar estadunidense
260 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

bases militares estadunidenses ficava no norte da Tailândia, e muitas meninas


foram recrutadas entre as famílias de pequenos camponeses da região. Quando
as tropas estadunidenses se retiraram em 1976, a maioria dessas mulheres foi
para Bangcoc e continuou a trabalhar no “setor de serviços” de sauna, dessa
vez para turistas europeus, japoneses e estadunidenses.
Um desenvolvimento semelhante ocorreu nas Filipinas, onde a Base Naval
Americana da baía de Subic, em Olongapo, e a Base Aérea de Clark, em
Angeles, deram origem a uma rápida expansão da indústria do R&R, a tal
ponto que a economia dessas cidades experimentou um enorme boom entre
1964 e 1973. O fim da guerra do Vietnã significou uma certa desaceleração
do crescimento dessa indústria, mas a base militar da baía de Subic também se
tornou uma área de crescimento para o desenvolvimento industrial propria-
mente dito. A Autoridade Nacional para o Desenvolvimento Econômico con-
vidou o capital estrangeiro a investir nessa área. A empresa japonesa Kawasaki
estabeleceu um estaleiro ali. Assim, o capital industrial imperialista segue o
mesmo caminho do imperialismo militar, ambos fortalecendo a indústria do
sexo. Os planejadores de desenvolvimento urbano estimam que a indústria
do R&R continuará sendo o maior complexo industrial da área, mesmo vin-
te anos após os fuzileiros navais dos Estados Unidos terem deixado a baía de
Subic (Moselina, 1981).
A estreita ligação entre o capital, os militares e a exploração sexual de mu-
lheres asiáticas também é ilustrada pelo seguinte relato pessoal de um enge-
nheiro peruano que trabalhava para uma empresa estadunidense em um can-
teiro de obras militares na Arábia Saudita. Devido às exigências de segurança,
os trabalhadores estavam completamente isolados dos arredores. A cada quinze
dias, eles voavam para Bangcoc, onde as mulheres tailandesas que trabalhavam
em casas de massagem e bares tinham de atendê-los sexual e emocionalmente.
Esse homem estava entusiasmado com as mulheres tailandesas que, segundo ele,
não eram simplesmente prostitutas que vendiam sexo por dinheiro, mas davam
aos homens o que eles dificilmente encontrariam no Ocidente, basicamente

para descrever um período de licença especial concedida aos homens alistados na ativa durante
o trabalho militar no exterior, isto é, durante a guerra. A indústria que se formou em torno
dos soldados estadunidenses na Segunda Guerra Mundial e nas guerras da Coreia e do Vietnã,
baseada no turismo sexual, prostituição e tráfico de mulheres, é designada como R&R Industry.
[N. das T.]
MARI A MI ES 261

amor. Ele não se perguntou por que aquelas mulheres estavam vendendo “amor”
a homens como eles ou a turistas homens da Alemanha Ocidental, da Suíça,
dos Estados Unidos ou do Japão. A maioria delas são filhas de camponeses
empobrecidos que se endividaram ou perderam suas terras no decorrer do mo-
vimento de modernização orientado pelos planejadores nacionais. Muitos dos
pais endividados dão suas filhas – muitas vezes ainda crianças – a algum agente
em troca de uma certa quantia de dinheiro. Esses agentes intermediários levam
as meninas para algum estabelecimento no qual elas têm de realizar trabalhos
forçados, seja para o intermediário ou para o proprietário do estabelecimento,
até que o empréstimo seja restituído. Geralmente, as mulheres sequer sabem
quando a dívida foi paga. A maioria das chamadas massagistas de Bangcoc
mandam a maior parte da sua renda para as suas famílias (Phongpaichit, 1982).
Os clientes das mulheres do Sudeste Asiático e da África – e cada vez mais
da América Latina – que trabalham nessa indústria em crescimento não são
apenas os empresários e burocratas da Europa, dos Estados Unidos, do Japão e
das elites asiáticas. Muitos turistas sexuais do Ocidente são trabalhadores co-
muns que se consideram no direito de passar suas férias e gastar o seu dinheiro
nas praias ensolaradas de países do Terceiro Mundo e que compram serviços
sexuais de mulheres “exóticas”. Dos dois milhões de turistas que visitaram a
Tailândia entre 1970 e 1980, 71,1% eram homens. Uma mulher vietnamita
que viajava a Bangcoc descreveu uma estranha situação no avião, onde se
sentou entre homens alemães – alguns trabalhadores, outros empresários –
que falavam inglês com sotaque marcadamente tailandês, que eles deviam ter
aprendido nos bares da Tailândia.
Outra dimensão dessa indústria é o mercado matrimonial de mulheres
asiáticas ou latino-americanas estabelecido por empresas privadas, principal-
mente na Alemanha Ocidental. Essas empresas anunciam abertamente mu-
lheres asiáticas “submissas, não emancipadas e dóceis” em suas propagandas
e até nas colunas matrimoniais de jornais respeitáveis. O alemão Karl-Heinz
Kretschmann, que mantém um Kontakt Club90 germano-filipino, anuncia as
filipinas não apenas como mulheres sexy, mas também baratas: “Uma empre-
gada doméstica não custa mais do que 30 marcos por mês, além da alimen-

90 O Kontakt Club funciona como uma agência de relacionamento entre pessoas de naciona-
lidades e gêneros específicos, no caso, entre homens alemães e mulheres filipinas. [N. das T.]
262 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tação. Por que então comprar uma máquina de lavar cara?” Todas as agências
“matrimoniais” ou de busca por uma “parceira” garantem a seus clientes ho-
mens que, com as mulheres asiáticas, eles podem ter a certeza de que conti-
nuarão sendo o amo e senhor da casa. Eles continuarão sendo quem “veste
as calças”. Um cliente escreveu: “Depois de dois casamentos desfeitos com
mulheres alemãs, estou farto da nossa emanzen alemã” (gíria para “mulher
emancipada”) (Schergel, 1983).
Além da submissão, os alemães são atraídos pela orientação familiar e pelo
caráter nada exigente das filipinas. Um cliente escreveu:

Muitos homens alemães querem uma filipina porque as mulheres alemãs


estão mais interessadas em seus trabalhos e na carreira do que na família.
As filipinas põem a família acima de tudo e não são tão irremediavelmente
materialistas quanto as mulheres alemãs. (Schergel, 1983; com base na trad.
de Maria Mies)

Um alemão comum – mesmo sem emprego – pode encomendar uma


dessas mulheres asiáticas por catálogo. Se ficar satisfeito, pode ficar com ela,
se não, pode mandá-la de volta para a Ásia ou para os bordéis de Frankfurt,
Hamburgo ou Berlim. Em uma pequena cidade perto de Hamburgo, um
pedreiro desempregado encomendou duas mulheres asiáticas por 9 mil mar-
cos alemães. Seu “investimento” trouxe grandes lucros porque ele as forçou
à prostituição. Em uma pequena cidade no distrito de Ruhr, um clube de
boliche encomendou uma mulher asiática que, embora estivesse formalmen-
te casada com um dos homens, tinha de servir a todos sexualmente. Muitos
homens alemães também se casam diretamente na Tailândia ou nas Filipinas.
O embaixador alemão em Bangcoc declarou que um grande número de ho-
mens alemães que tinham ido à cidade como turistas se casou com mulheres
tailandesas. Ele declarou publicamente que o único propósito desses casamen-
tos era levar essas mulheres para a Alemanha e forçá-las à prostituição (Ohse,
1981). O mais notável nessa declaração é o fato de que a embaixada alemã em
Bangcoc obviamente não cria grandes problemas para os homens alemães se
eles quiserem “se casar” com uma mulher tailandesa. Segundo uma comunica-
ção pessoal, as mulheres tailandesas casadas com homens alemães obtêm vistos
sem grandes dificuldades. Isso contrasta totalmente com as regras e a prática
MARI A MI ES 263

adotada quando as mulheres alemãs se casam com homens asiáticos, turcos


ou africanos, que podem ter ido para a Alemanha em busca de asilo político
ou emprego, ou que elas podem ter conhecido em seus países de origem.
Nesses casos, geralmente se presume que são casamentos de conveniência. O
casal é submetido a longas investigações, e muitas vezes é negada ao homem
uma autorização de residência ou visto. A razão é que, na Alemanha, homens
“exóticos” não são desejados como trabalhadores, mas mulheres “exóticas”
são obviamente muito procuradas na indústria do sexo, que constitui um dos
setores em crescimento nos países ocidentais. Assim, o Estado da Alemanha
Ocidental também aplica um padrão duplo no que diz respeito ao tráfico de
pessoas oriundas de países do Terceiro Mundo.

O outro lado. O outro lado da história é o fato de que os homens dos


países industrializados ricos, mesmo em tempos de crise econômica, ainda
têm dinheiro suficiente à disposição – principalmente se gastarem em países
de moeda fraca – para passar férias em países do Terceiro Mundo e comprar
mulheres exóticas como mercadoria. A fixação dos homens ocidentais, espe-
cialmente os alemães, por carros e férias sexuais exóticas é tão forte que os
governos fazem tudo o que podem para lhes proporcionar esses dois bens de
consumo de massa a um preço bastante baixo. Um governo que privasse os
trabalhadores alemães de seus carros e férias logo seria derrubado.
Assim, os governos, não apenas dos países do Terceiro Mundo, mas também
dos países ricos, desempenham um importante papel na “Internacional dos
cafetões”. Embora bastante invisibilizado, o papel mais importante nessa in-
dústria de exportação é desempenhado por empresas turísticas multinacio-
nais (como a Neckermann ou TUI, na Alemanha Ocidental), cadeias de ho-
téis (Hilton International, Holiday Inn, Intercontinental Hotel Corporation,
Sheraton, Hyatt etc.), companhias aéreas e uma ampla gama de setores e ser-
viços relacionados. É significativo que quase não existam dados concretos
disponíveis sobre os lucros que essas empresas obtêm com o turismo sexual e
o tráfico de mulheres. Elas preservam sua aparência de empresas “decentes” e
“limpas”; no entanto, não se pode negar que não há apenas vínculos estreitos e
diretos entre os diferentes ramos desse setor – por exemplo, a Intercontinental
Hotel Corporation é uma subsidiária da Pan Am (Wood, em South-East Asia
Chronicle, n. 78) –, mas também que a maior parte dos lucros obtidos com
264 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

o turismo sexual não fica nos países do Terceiro Mundo, e sim nos países
onde essas empresas multinacionais estão localizadas (Tourismus, Prostitution,
Entwicklung, 1983, p. 47-49). Com as novas tendências para a produção de
“mercadorias não materiais” – afinal, nossos mercados já estão saturados de
bens materiais – pode-se esperar que o comércio e envio de mulheres do
Terceiro Mundo para os países industrializados aumente. As tendências sexis-
tas, racistas e sádicas mais explícitas desse mercado também aumentarão. O ra-
cismo sempre foi parte integrante desse negócio, desde o início do colonialis-
mo até o presente. Cada vez mais, as mulheres negras e marrons são desejadas
por causa de seu “exótico” sex appeal e porque podem ser transformadas em
objetos de sadismo e violência. A indústria do audiovisual prospera com a
violência contra as mulheres, muitas das quais são mulheres de cor. Os tabus
contra a tortura e a violência contra as mulheres foram quebrados pela pri-
meira vez em relação às mulheres de cor. Agora, as mulheres brancas também
são cada vez mais “dadas de graça” para a satisfação do apetite aparentemente
irresistível dos homens brancos pela crueldade sexual.
Na Internacional dos cafetões, formada por capitais internacionais e na-
cionais, por governos locais e ocidentais e por militares e homens comuns,
não devemos perder de vista o papel desempenhado pelos turistas ditos “de
vanguarda” ou “alternativos”, aqueles que não querem se hospedar em gran-
des hotéis, mas explorar, com seu “turismo de mochilão”, novas áreas e novos
campos para a exploração sexual. Frequentemente, foram esses turistas de
vanguarda e guias de viagens alternativos que ousaram quebrar tabus locais e
ocidentais pela primeira vez, por exemplo, tomando banho nus nas praias de
Goa ou dando dicas aos turistas sobre onde encontrar “terras virgens ainda
não poluídas” para saciar sua fome de sexo e aventura. Enquanto, alguns anos
atrás, os autores de guias de viagem alternativos para a Ásia ainda advertiam
seus clientes a mostrar respeito pela cultura do povo local e a tratar as mulhe-
res como seres humanos, muitos deles agora estão oferecendo dicas, geralmen-
te recebidas de mochileiros, sobre onde encontrar as mulheres mais jovens e
mais baratas da Ásia. Seus clientes são os turistas “alternativos”, na maior parte
jovens e com pouco dinheiro. Entretanto, frequentemente são esses que criam
novas necessidades e modas (Frankfurter Rundschau, 24 de novembro de 1984).
Muitas organizações de mulheres começaram a protestar contra a explo-
ração sexual de mulheres do Terceiro Mundo por homens ocidentais e ja-
MARI A MI ES 265

poneses. Mas, em que pese toda a indignação moral que algumas dessas or-
ganizações expressaram, particularmente as organizações religiosas, elas não
combateram a raiz dessa manifestação, a mais flagrante de todas: a nova DIT.
Em Tourismus, Prostitution, Entwicklung (1983), documento publicado pelo
Zentrum für Entwicklungsbezogene Bildung [Centro de Educação Relacionada
ao Desenvolvimento], uma organização alemã patrocinada pela Igreja protes-
tante, uma variedade de ações é proposta para lutar contra o turismo sexual.
Mas o turismo do Terceiro Mundo como estratégia de acumulação de capital
não é exposto e criticado. Tampouco é rejeitada a divisão internacional do
trabalho, que integrou a exploração racista, sexista e sádica das mulheres do
Terceiro Mundo em sua estratégia de desenvolvimento, nem a divisão sexual
capitalista do trabalho, pela qual as mulheres são universalmente definidas
como donas de casa “dependentes” e objetos sexuais. É precisamente a intera-
ção objetiva e a manipulação dessas duas divisões do trabalho que constituem
a base da exploração sexual. Enquanto as mulheres no Ocidente e nos países
do Terceiro Mundo ficarem apenas moralmente aborrecidas com o uso flagran-
te e desumano de mulheres pobres do Terceiro Mundo por homens de países
e classes ricas, sem atacar abertamente o modelo de crescimento capitalista
nacional e internacional, elas continuarão subscrevendo objetivamente as jus-
tificativas apresentadas pelos pioneiros estadunidenses da indústria do R&R
na base militar de Olongapo nas Filipinas: “Em vez de expor nossas mulheres
decentes ao possível perigo de serem estupradas ou a outras formas de abuso
sexual, é melhor fornecer uma válvula de escape para o impulso sexual dos
marinheiros e, ao mesmo tempo, ganhar dinheiro” (Moselina, 1983, p. 78; com
base na trad. de Maria Mies).
Enquanto a “decência” da dona de casa de classe média estadunidense,
europeia, japonesa, tailandesa ou filipina for baseada na “violência” contra
mulheres pobres na Ásia ou em seus próprios países, enquanto as mulheres
em todo o mundo não rejeitarem esse conceito de decência que, como muitas
vezes se diz, implica a prostituição, o capital poderá usar essa divisão sexual e
internacional das mulheres “para ganhar dinheiro”.
266 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

CONCLUSÃO

Se olharmos para a nova divisão internacional do trabalho do ponto de


vista das mulheres, da libertação das mulheres, poderemos dizer que é sem-
pre necessário considerar os dois lados da moeda para compreender como as
mulheres nos dois extremos do globo estão divididas e, ainda assim, factual-
mente vinculadas entre si pelo mercado mundial e pelo capital internacional
e nacional. Nessa divisão, a manipulação das mulheres como produtoras invi-
síveis no Terceiro Mundo e como consumidoras atomizadas, visíveis, porém
dependentes (donas de casa), desempenha um papel crucial. Toda a estratégia
é baseada em uma ideologia patriarcal, sexista e racista sobre as mulheres, que
as define basicamente como donas de casa e objetos sexuais. Sem essa manipu-
lação ideológica combinada com a divisão estrutural das mulheres por classe
e pelo colonialismo, essa estratégia não seria lucrativa para o capital. Também
podemos observar que cada vez mais as mulheres são usadas como objetos
sexuais para a expansão de mercados nos países industrializados que, de outra
forma, se estagnariam. Nessa estratégia, os homens desempenham um papel
decisivo como “agentes do capital” (Mies, 1982). Esse papel, no entanto, deve
ser diferenciado de acordo com a classe, assim como com a raça e a localização
na divisão internacional de trabalho. Não apenas os Homens Grandes Brancos
ou o Sr. Capital lucram com a exploração de suas próprias mulheres e das
mulheres do Terceiro Mundo, mas também os homens pequenos brancos, os
trabalhadores. Não só os Homens Grandes Marrons ou Negros lucram com
a exploração de “suas” mulheres, mas também os homens pequenos marrons
ou negros. E as mulheres brancas grandes e pequenas também participam do
lucro da exploração dos pequenos homens e mulheres negros e marrons nas
colônias. O mesmo acontece com as mulheres grandes negras ou marrons,
que aspiram ao status de verdadeira dona de casa ocidental como um símbolo
de progresso e que foram descobertas como promotoras do capitalismo do
Terceiro Mundo.
Mas, ao contrário dos homens, as mulheres – sejam brancas ou negras – são
cada vez mais obrigadas a pagar com sua própria dignidade humana e sua vida
pela “honra” de ser prostituta ou dona de casa. Assim, penso que as mulheres
nos países ricos não têm nenhum interesse objetivo na manutenção desse
sistema integrado de exploração chamado de Nova Ordem Internacional,
MARI A MI ES 267

cujo alicerce é constituído pelas mulheres empobrecidas do Terceiro Mundo


(camponesas pobres e mulheres urbanas marginalizadas), porque essas mu-
lheres também são a “imagem do futuro” (von Werlhof, 1983) das mulheres
dos países industrializados. Esse futuro já começou para muitas mulheres nos
Estados Unidos e na Europa que foram “integradas ao desenvolvimento” da
mesma maneira e pelos mesmos métodos aplicados às suas irmãs do Terceiro
Mundo, ou seja: por seu trabalho “invisível” no novo setor informal e sua
prostituição, de diversas maneiras, para ganhar a vida.
5
A VIOLÊNCIA CONTRA
AS MULHERES E
A ACUMULAÇÃO
PRIMITIVA
PERMANENTE
QUAISQUER QUE sejam as diferenças entre as várias relações de produção
pelas quais as mulheres são “integradas ao desenvolvimento”, ou melhor, su-
bordinadas ao processo global de acumulação de capital, uma coisa é eviden-
te: essa integração não significa que elas se tornem trabalhadoras assalariadas
ou proletárias “livres”. Elas também não se tornam empreendedoras “livres”,
apesar de toda a retórica usada pelas agências de desenvolvimento. Nem se
tornam donas de casa “de verdade”. Pelo contrário. A característica comum a
todas as relações de produção e de trabalho descritas anteriormente é o uso da
coerção e da violência estrutural ou direta por meio das quais as mulheres são explora-
das e superexploradas.
As mulheres indianas que realizam trabalhos temporários nas lavouras
veem que as normas tradicionais de seu povoado, que garantiam seu trabalho
e sua renda, estão sendo destruídas sob o impacto da agricultura capitalista,
e elas estão cada vez mais sujeitas à violência direta se reivindicam o salário
mínimo garantido legalmente.
As mulheres camponesas, marginalizadas socialmente, são estupradas, suas
cabanas são queimadas e seus maridos são espancados se tentam cultivar a terra
legalmente distribuída a eles pela reforma agrária. Os homens são cada vez
mais transformados em trabalhadores forçados em vez de se tornarem prole-
tários “livres”. Nas cooperativas de laticínios na Índia, vimos que as mulheres
pobres do campo são forçadas a fazer todo o trabalho necessário para a pro-
dução de leite sem ter nenhum acesso à receita da indústria leiteira. Uma de-
dução automática de 50% do dinheiro do leite foi fixada para o pagamento de
empréstimos bancários. Consequentemente, o trabalho dessas mulheres já esta-
va penhorado aos bancos e à empresa estatal Dairy Development Corporation
antes que elas pudessem ver qualquer dinheiro. Seus próprios maridos se apro-
272 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

priavam do restante do dinheiro do leite. O trabalho das mulheres podia, assim,


ser explorado quase que sem custos pelas agências de acumulação.
A extração do trabalho feminino foi garantida pela violência inerente às
relações patriarcais homens-mulheres – assim como pelas relações de classe
existentes. As mulheres pobres envolvidas na produção leiteira se depararam
com a violência direta dos proprietários de terras quando tentaram exercer
seu direito tradicional de recolher gramíneas nos campos. A superexploração
das mulheres no modelo moderno de cooperativa de Cumaripa foi baseada
na introdução da dona de casa produtora. Este exemplo também revela que
as mulheres camponesas pobres nos países do Terceiro Mundo não adotam
voluntariamente o modelo da dona de casa, mas têm de ser colocadas sob
considerável pressão econômica e ideológica para abandonar a produção de
subsistência e aceitar a produção de mercadorias. Um dos temores constantes
dos planejadores do desenvolvimento é a ameaça de que os pequenos produ-
tores, que foram subsumidos à produção de mercadorias induzida pelo crédito
e que ainda controlam alguns meios de produção, possam usar os créditos para
seu próprio consumo em vez de produzir as mercadorias necessárias para a
exportação. Esse medo também existe em relação às donas de casa produtoras
(cf. Mies, 1982). Portanto, os processos produtivos são organizados de tal for-
ma que os produtores não são mais livres para não trabalhar para a produção
de mercadorias, nem para assumir o controle sobre o produto. O modelo
cooperativo de Cumaripa se organizou, assim, como uma instituição quase
total, com uma rígida hierarquia burocrática, em que todas e todos tinham de
se comprometer a trabalhar apenas para a cooperativa, em que as pessoas não
poderiam deixar o local de trabalho quando quisessem, mas deveriam estar o
tempo todo presentes. O efeito que tiveram essas relações de trabalho forçado
foi, como observa Claudia von Werlhof (1983), o fato de que os membros da
cooperativa se comportavam como internos de uma guarnição militar, de uma
prisão ou de um campo de trabalho forçado.
As características de uma instituição totalizadora com relações de traba-
lho quase forçado sob controle quase militar também podem ser observadas
nas mais modernas zonas francas ou nas fábricas para o mercado mundial.
Geralmente, não apenas os sindicatos não são permitidos nessas fábricas,
como também a maioria das leis trabalhistas não é implementada ou é con-
tornada por uma manipulação perspicaz do modelo da “mulher dona de
MARI A MI ES 273

casa”. Apenas mulheres jovens solteiras são recrutadas; quando se casam, são
demitidas. A pressão moral e direta é usada para fazer as mulheres trabalharem
mais e mais rápido.
A violência e a brutalidade contra as mulheres que trabalham na indústria
do sexo em países do Terceiro e do Primeiro Mundo não necessitam de ênfase
especial. Elas constituem o próprio meio pelo qual essa relação de produção
prospera. É o trabalho escravo em sua forma mais crua e desumana.
Em todas essas relações de produção, baseadas na violência e na coerção,
podemos observar uma interação entre os homens (pais, irmãos, maridos, ca-
fetões, filhos), a família patriarcal, o Estado e as empresas capitalistas.
Olhando para esses exemplos e para o fato de que a violência e a coerção
parecem estar presentes em todas as relações de trabalho femininas, a pergunta
que surge é se isso é necessariamente assim ou se essa violência deve ser ex-
plicada por outros motivos mais acidentais. Antes de responder essa pergunta,
quero apresentar mais alguns exemplos de violência contra as mulheres que,
nos últimos anos, foram trazidos à tona por feministas em países do Terceiro
Mundo.Vou me concentrar na situação da Índia, onde, desde o final da década
de 1970, grupos feministas iniciaram campanhas contra determinadas mani-
festações de violência contra as mulheres, em particular contra as exigências
excessivas de dote e o assassinato de noivas que não tivessem dote suficiente,
contra métodos de pré-seleção de sexo e feticídio feminino e, sobretudo,
contra o aumento dos estupros, agressões sexuais e brutalidades.

FEMINICÍDIOS POR DOTE

O processo de modernização na Índia rural não apenas agravou o con-


flito de classes entre ricos e pobres no campo, como também, desde o final
da década de 1960, tem levado à violência contra as mulheres em uma escala
sem precedentes. A forma habitual empregada pelas classes dominantes de
proprietários de terras para dar lições aos camponeses pobres e sem-terra era a
queima de suas cabanas, o espancamento e assassinato dos homens e o estupro
das mulheres (Mies, 1983).
De 1972 em diante, colecionei recortes de jornais indianos sobre as cha-
madas “atrocidades contra os setores mais fracos” que, em muitos casos, in-
274 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

cluíam estupro e abuso de mulheres pobres. Essas breves notícias dificilmente


provocavam protestos da classe média educada urbana. Para as organizações
de esquerda, o estupro de mulheres fazia parte das relações de produção feu-
dais ou semifeudais que ainda prevaleciam na Índia rural. Além disso, naquela
época, as alas femininas do Partido Comunista da Índia (PCI) e do Partido
Comunista da Índia (Marxista) (PCI-M) não consideravam o estupro e a vio-
lência contra as mulheres como uma questão importante.
Entre 1978 e 1980, entretanto, essa situação mudou. Pequenos grupos de
mulheres nas grandes cidades de Mumbai, Delhi, Haiderabade e Bangalore,
inspiradas pelo novo movimento de mulheres,91 começaram uma campanha
contra o estupro, bem como contra o assassinato de noivas jovens que não for-
neciam dote suficiente para as famílias dos maridos. Naquela época, tornou-se
cada vez mais óbvio que a violência contra as mulheres não se restringia a
áreas rurais remotas, mas também estava se tornando uma característica co-
mum das grandes cidades. Além do mais, as mulheres educadas de classe média
começaram a perceber que elas também haviam se tornado vítimas em poten-
cial de estupro, abuso sexual e, particularmente, de assédio sexual e, em último
caso, de assassinato, em função das exigências de dotes cada vez maiores.
O argumento frequentemente formulado por mulheres e homens “pro-
gressistas” de classe média segundo o qual a libertação das mulheres era útil
apenas para mulheres pobres rurais e urbanas porque as mulheres de classe
média não enfrentavam problemas não podia mais ser sustentado.
Os feminicídios por dote na Índia seguem todos mais ou menos o mesmo
padrão: os casamentos são arranjados pelas famílias do noivo e da noiva, que
muitas vezes se conhecem apenas pela troca de fotos. Durante as negociações
do casamento, a família do noivo exige uma certa quantia como “dote”. A
família da noiva não tem o direito de exigir nada, devendo fazer o possível
para atender às demandas da família do noivo. As exigências de dote aumen-
taram nos últimos anos, atingindo cifras astronômicas. Em famílias de classe

91 Para um primeiro balanço do novo movimento de mulheres na Índia, ver Gail Omvedt,
We Will Smash This Prison [Vamos quebrar essa prisão], Londres: Zed Books, 1980.Ver também
K. Lalitha, “Origin and Growth of POW, First ever Militant Women’s Movement in Andhra
Pradesh” [Origem e desenvolvimento da Organização Progressista para Mulheres (POW), o
primeiro movimento de mulheres militantes em Andhra Pradesh], HOW, vol. 2, n. 4, 1979.
Desde 1979, a revista feminista Manushi cobre os principais eventos do novo movimento de
mulheres indianas.
MARI A MI ES 275

média mais abastadas, são exigidos dotes da ordem de 500 mil rúpias ou mais
em espécie, além de artigos de prestígio como geladeiras, motocicletas, apa-
relhos de televisão, ouro, rádios, relógios, carros e viagens. As famílias comuns
de classe média ainda exigem e recebem dotes que variam de 5 mil a 30 mil
rúpias (Krishnakumari & Geetha, 1983). A família da noiva costuma estar
ansiosa para “casar” sua filha porque uma mulher solteira ainda não tem lugar
nem status na Índia patriarcal. Portanto, os pais das noivas acabam cedendo às
exigências de dote da “outra parte”. Se não têm dinheiro em mãos, pegam
empréstimos. Em uma pesquisa com 105 famílias em Bangalore, descobriu-se
que 66% delas haviam contraído dívidas para casar suas filhas. Ou haviam
prometido continuar pagando mais dote após o casamento. Depois do ca-
samento, a noiva deve ir para a casa dos sogros, pois a maioria das famílias é
patrilocal. O assédio costuma começar imediatamente. O marido, a mãe ou
outros parentes do noivo começam a assediá-la para extrair mais dote de seu
pai ou irmãos. Além dessas exigências, a mulher, muitas vezes, é submetida
a todos os tipos de humilhações e brutalidades. Se ela não puder oferecer
mais dote, um dia – como acontece em muitos casos – é encontrada morta.
Os sogros costumam informar o público de que a mulher cometeu suicídio
ateando fogo em si mesma ou de que ocorreu um acidente enquanto ela
cozinhava. Empregando o método de queimar as mulheres até a morte, todas
as provas são geralmente destruídas, de modo que quase nenhum dos casos
de morte por dote é levado adiante pela polícia e pelos tribunais. Esses casos
são noticiados pelos jornais em notícias de apenas três linhas, com títulos
como: “Mulher comete suicídio” ou “Mulher morre queimada em acidente
de cozinha”. A seguir estão alguns relatos de casos extraídos de diferentes
regiões, a partir de um recorte transversal da sociedade indiana, e que foram
divulgados tanto em publicações feministas como de outros tipos após o
início da campanha contra o feminicídio por dote, organizada por algumas
mulheres e pelo grupo feminista Stri Sangarsh, em Delhi, em junho de 1979
(cf. Manushi, n. 4, 1980).

Delhi: Abha é formada em zoologia pelo Daulat Ram College, professora


e mãe de uma filha de cinco meses. Seus pais denunciaram que, após seu
casamento com o Dr. Hari Shankar Goar, Diretor de Pesquisa Científica
(Classe I) do Instituto Indiano de Pesquisa Agrícola (IARI), Nova Delhi,
276 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

ela havia sido torturada por mais dote. Foi exigida uma geladeira, que seus
pais entregaram quatro meses antes de seu assassinato. Em 7 de julho de
1979, ela foi agredida pelo marido, que a golpeou na testa, e o ferimento
exigiu quatro pontos. Seu marido queria ir para a Alemanha Ocidental e
suspeita-se que ele desejasse se casar novamente para obter mais dote. Em
1º de outubro, Abha foi até a casa de seus pais para celebrar o Dussehra. Ao
voltar para casa à noite junto a seu irmão e sua irmã mais nova, eles notaram
que seu marido parecia irritado. No dia seguinte, uma pessoa desconhecida
informou seus pais de que Abha estava gravemente doente e hospitalizada.
Quando chegaram ao hospital, uma enfermeira comunicou que Abha havia
morrido envenenada. Seus pais denunciaram seu marido e seu sogro por
homicídio. Nenhuma prisão foi feita até o momento. (Manushi, dezembro
de 1979-janeiro de 1980)

Delhi: Dois meses depois de Prem Kumari, de Delhi, se casar, ela morreu
em maio deste ano devido a queimaduras graves.
“Desde que ela se casou, seu marido e seus sogros não pararam de reclamar
que tínhamos dado pouco dote”, disse-me Padmavati Khanna, a mãe de
Prem Kumari. “Eles reclamavam que não tínhamos dado geladeira, tele-
visão, ventilador e várias outras coisas (...) Depois [da cerimônia de casa-
mento], não nos foi permitido encontrá-la ou falar com ela. Só quando sua
saúde piorou é que ela teve permissão para vir à nossa casa. Ela nos contou
como a tratavam mal e como a espancavam porque não tínhamos dado
dote suficiente. Só a vimos novamente quando ela foi queimada”. (Sunday,
27 de julho de 1980)

Agra: A polícia de Tajganj prendeu quatro membros de uma família, in-


cluindo uma mulher, acusados de maus-tratos à Sra. Rajni Sharma, nora da
família, e de amputar seus seios em um dos casos de violência por dote mais
brutais da história desta cidade.
Segundo a polícia, a Sra. Rajni Sharma havia se casado, há alguns meses,
com Hari Shankar, da localidade de Tajganj.
Hari Shankar e seus familiares teriam pressionado a mulher para que lhes
trouxesse 10 mil rúpias para comprar uma motocicleta.
Diante da recusa da esposa, Hari Shankar teria arrancado seus dois seios.
MARI A MI ES 277

Ele teria sido encorajado por membros de sua família a realizar essa tortura.
(Indian Express, 10 de dezembro de 1980)

Bangalore: Phyllis pertencia a uma família cristã protestante de cinco filhas.


Seu pai é superintendente imobiliário. Seu casamento foi arranjado pelo
Sr. Thomas, que trabalhava no departamento de correios e telégrafos de
Bangalore. O irmão do Sr. Thomas exigiu 10 mil rúpias em dinheiro, 15
libras em ouro e participação em um imóvel. A família atendeu às duas
primeiras demandas, mas não concedeu a participação no imóvel. O ca-
samento ocorreu em setembro de 1981. O Sr. Thomas passou a torturar
Phyllis tanto física quanto psicologicamente e exigiu 50 mil rúpias a mais
em dinheiro, alegando que tinha dívidas a pagar. Ela foi obrigada a ficar
sem comida e água por muitos dias, o que a deixou muito fraca. Vendo o
estado da filha, a mãe pediu ao casal que ficasse com ela até o Natal. Ambos
concordaram. Em 15 de dezembro, Thomas enviou Phyllis para a casa de
sua mãe, mas, na mesma noite, levou-a de volta para sua casa, prometen-
do enviá-la novamente para a mãe no dia seguinte. Em 17 de dezembro,
Thomas informou à mãe de Phyllis que ela havia falecido após atear fogo
em si mesma. A família suspeita fortemente de crime. Afirma que Phyllis
não queria se divorciar porque tinha três irmãs solteiras. Alega ainda que,
embora a autópsia mostre que a mulher faleceu de asfixia e que apresentava
um edema cerebral, nenhuma ação foi tomada devido à atitude ineficaz das
autoridades. Assim terminava a vida de uma esposa, 88 dias após seu casa-
mento. (Manushi, junho-julho de 1983)

Chandigarh: Manorama, de 25 anos de idade, foi queimada até a morte em


agosto passado na casa de seus sogros, no 72-B Rani-ka-Bagh, em Amritsar.
Aparentemente, ela morreu porque seus irmãos, que desde seu casamento
tinham dado dinheiro para seus sogros, recusaram-se a cumprir outras exi-
gências de dote.
Manorama era casada com Kailash Chand havia três anos e teve com ele
um filho e uma filha. De acordo com os vizinhos, Manorama era constan-
temente perseguida por sua sogra, Savitri Devi. Os sogros de Manorama
sempre a insultavam por ter dado um dote insuficiente, e suas exigências se
tornaram mais persistentes quando o filho do vizinho conseguiu um carro
278 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

como dote. Dois dias antes da aterradora morte de Manorama, uma briga
violenta havia ocorrido entre seus sogros e seus irmãos. Manorama e seus
irmãos foram espancados brutalmente.
A bhabi (cunhada) da moça implorou para que ela voltasse a morar na casa
de seus irmãos. Sua bhabi esperava o pior dos sogros de Manorama, visto
que eles haviam queimado sua nora mais nova apenas dez meses antes, em
sua cidade natal, Fatehgarh Churian. O caso não foi investigado porque os
pais da nora mais nova eram pobres e, além disso, sua madrasta demonstrou
pouco interesse. Outra razão pela qual seus sogros escaparam da conde-
nação por esse crime hediondo foi que eles conseguiram forçar a pobre
moça a assinar uma declaração dizendo que ela havia cometido suicídio.
(Manushi, dezembro de 1979-janeiro de 1980)

Uma policial,Veena Sharma, também foi queimada até a morte por seu ma-
rido em Delhi em 1980. Estes são trechos do relatório publicado pelo Manushi:

Delhi: Ela estava na cozinha, cozinhando para o marido, quando ele des-
pejou um material altamente inflamável sobre ela e a incendiou. Ele então
saiu correndo gritando que o cilindro de gás havia estourado. No entanto,
descobriu-se que isso não era verdade, e o filho de quatro anos testemu-
nhou que o pai havia posto fogo em sua mãe.
Veena era subinspetora da polícia de Delhi (...)
Veena se casou com Nagrathe (seu marido) contra a vontade de seus pais.
Ela era mestre em literatura hindi pela Universidade de Delhi, enquanto
ele havia concluído apenas o sétimo ano, era deficiente físico e nunca tivera
um emprego regular. Veena era a principal provedora da família. Embora
Nagrathe não tivesse uma renda regular e desperdiçasse muito dinheiro
bebendo e jogando, ainda assim se ressentia da renda independente de
Veena, estava loucamente desconfiado dela, a proibira de se misturar com
colegas e amigos e se recusava a ajudar nas tarefas domésticas ou no cuidado
das crianças [...] (Manushi, julho-agosto de 1980)

Depois que a campanha contra os feminicídios por dote foi iniciada, mui-
tos outros casos de jovens esposas mortas por maridos e parentes, ou levadas
ao suicídio, apareceram na imprensa. Grupos e organizações de mulheres pres-
MARI A MI ES 279

sionaram o governo por ações legais mais rigorosas contra os culpados e por
uma reforma da Dowry Prohibition Act [Lei de Proibição dos Dotes] de 1961,
que era apenas mais uma lei que não havia saído do papel, não tendo sido nem
mesmo defendida pelos próprios políticos. Também exigiam mais investiga-
ções sobre as circunstâncias sob as quais jovens esposas morriam na Índia e o
número real de tais mortes. No dia 10 de junho de 1980, foram debatidas no
Parlamento as atrocidades cometidas contra as mulheres. A polícia de Delhi
revelou que, no ano de 1979, 69 mulheres haviam morrido em decorrência
de queimaduras, enquanto em julho de 1980 esse número já chegava a 65.
Durante o Ano Internacional da Mulher de 1975, suspeita-se que 350 meni-
nas e mulheres foram queimadas devido a exigências de dote. De acordo com
o Ministro do Interior, 2.670 mulheres morreram dessa forma na Índia em
1976 e 2.917 em 1977. Esses foram apenas os casos registrados pela polícia
(Sunday, 27 de julho de 1980).
Apesar do movimento crescente contra os feminicídios por dote e outras
atrocidades contra as mulheres, o número de mulheres jovens mortas por seus
maridos e/ou por seus familiares aumentou rapidamente depois de 1980. Em
1983, a Suprema Corte indiana impôs pela primeira vez a pena de morte ao
marido, à sogra e ao cunhado de uma mulher de 20 anos, Sudha, que estava
no nono mês de gravidez. Eles jogaram querosene sobre ela e atearam fogo
porque ela não havia oferecido dote suficiente. No entanto, mesmo esse jul-
gamento severo não teve o efeito dissuasor esperado. Na mesma semana, mais
dez assassinatos por dote foram registrados.
Em 1981, apenas no estado de Uttar Pradesh, 1.053 mulheres supostamen-
te cometeram suicídio (Maitreyi, n. 4, outubro-novembro de 1982). Em uma
conferência em Madras em 6 de novembro de 1982, a Dra. K. Janaki, professora
de medicina legal, disse que o padrão das relações sociais havia mudado dras-
ticamente nos últimos anos. “Desde 1977, o número de mulheres que mor-
rem queimadas triplicou e o das que se suicidam por enforcamento dobrou”.
Citando estatísticas de hospitais, ela disse que só em South Madras o número
de mulheres que morriam queimadas a cada ano havia subido de 52 para 178
nos últimos cinco anos. O número de pessoas que morreram por enforcamento
subiu de 70 para 146 (Hindu, 4 de novembro de 1982, em Maitreyi, n. 4, 1982).
De acordo com outro comunicado de imprensa do estado de Madhya
Pradesh, em média, pelo menos uma mulher por dia dá entrada por queima-
280 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

duras no maior hospital do estado. A maioria delas é jovem. As razões apon-


tadas pelos maridos são principalmente a explosão de botijões de gás ou in-
cêndios acidentais enquanto estão cozinhando. Um terço dessas mulheres não
resiste aos ferimentos (Sunday, 4 de outubro de 1982, em Maitreyi, n. 4, 1982).

AMNIOCENTESE E “FEMINICÍDIO”

A diminuição da proporção de mulheres nascidas na Índia desde 1911,92


as demandas exorbitantes por dote dos últimos anos, a disseminação do dote
para comunidades e setores pobres que anteriormente não conheciam esse
costume e seguiam a prática do preço da noiva (Epstein, 1973; Mies, 1984;
Rajaraman, 1983) e o fato de que as exigências excessivas de dote são um
fator decisivo no crescente endividamento dos pobres (Sambrani & Sambrani,
1983; Krishnakumari & Geetha, 1983) são evidências suficientes do fato de
que as mulheres não são desejadas na Índia; na verdade, elas são cada vez me-
nos desejadas do que os homens. Antes de analisarmos as causas dessa nova
tendência do neopatriarcado, é necessário fazer um breve relato dos últimos
desenvolvimentos dessa tendência.Trata-se das possibilidades abertas pela nova
tecnologia de pré-seleção sexual por meio da amniocentese e do ultrassom,
combinada com políticas de controle populacional e com o fortalecimento
das instituições patriarcais e das atitudes de dominação masculina.
Vários anos atrás, uma notícia apareceu em um jornal indiano com o tí-
tulo: “Doutor, mate-a se for uma menina”. Essa frase foi atribuída a mulheres
grávidas usadas como cobaias em uma clínica indiana em experimentos de
pré-seleção de sexo. Muitas das mulheres nas quais os testes foram realizados
pediram aos médicos para abortar o feto caso ele fosse do sexo feminino.
Quando o assunto apareceu na imprensa, não houve reação do público.
As pessoas estão tão acostumadas com atitudes antimulheres que sequer se

92 Na Índia, a proporção da população feminina em relação à masculina está diminuindo


desde 1911. O declínio mais acentuado foi, no entanto, registrado entre 1961 e 1971, quando
foram contadas apenas 930 mulheres para mil homens, enquanto em 1921 a proporção ainda
era de 955 mulheres para mil homens (cf. Mies, “Capitalist Development and Subsistence
Reproduction: Rural Women in India” [Desenvolvimento capitalista e reprodução de subsis-
tência: mulheres na Índia rural], Bulletin of Concerned Asian Scholars, vol. 12, n. 1, 1980).
MARI A MI ES 281

questionam diante do fato de que mulheres grávidas não queiram dar à luz
outras mulheres. Quando li essa notícia, me perguntei o que teria acon-
tecido se as grávidas tivessem dito ao médico: “Doutor, mate-o se for um
menino”.
Como se tornou socialmente aceito que o nascimento de uma filha é
um desastre, não é de surpreender que, anos depois, em julho de 1982, al-
guns médicos astutos de Amritsar tenham visto uma grande oportunidade
para estabelecer negócios baseados no preconceito antimulher e pró-homem
da sociedade patriarcal indiana. Eles anunciavam e vendiam a amniocentese
como um método de pré-seleção do sexo, acompanhada do aborto de fetos
femininos. Como aconteceu com as campanhas antidote e antiestupro, a
imprensa começou a noticiar a extensão e as circunstâncias do feticídio femi-
nino somente depois que grupos de mulheres começaram a protestar contra
a perigosa tendência ao extermínio de mulheres. Revistas populares publica-
ram reportagens sobre a utilização da amniocentese e a prática do aborto de
fetos femininos. Sobre esta última controvérsia,Vibhuti Patel escreve:

Uma estimativa que chocou a todos, dos planejadores e formuladores de


políticas aos acadêmicos e ativistas, foi: entre 1978 e 1983, cerca de 78 mil
fetos femininos foram abortados após exames de identificação de sexo em
nosso país.
O governo e os médicos privados envolvidos nesse comércio lucrativo
justificam o teste de identificação de sexo como uma medida de controle
populacional. (Patel, 1984, p. 70)

Apesar dos protestos do movimento feminista, exames de identificação de


sexo e feticídios femininos foram realizados em hospitais privados e públi-
cos em cidades como Mumbai, Delhi, Amritsar, Chandigarh, Baroda, Kanpur,
Ahmedabad e Meerut. Uma equipe de pesquisa do Centro de Mulheres de
Mumbai descobriu, em uma pesquisa realizada em seis hospitais, que dez
mulheres eram submetiadas ao exame diariamente. Um dos prestigiosos hos-
pitais “não vegetariano” e “antiaborto” realizava os exames e encaminhava
as mulheres grávidas a outras clínicas para o “trabalho sujo” do aborto. Eles
pediam às mulheres que trouxessem de volta os fetos femininos abortados para
pesquisas adicionais (Abraham & Sonal, 1983, citado por Patel, 1984, p. 69).
282 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O custo da amniocentese seguida do aborto de fetos femininos é bastante


baixo.Varia entre 80 a 500 rúpias. Isso significa que não são apenas as famílias
mais abastadas da classe média que podem se dar ao luxo de “criar machos”
(Postgate), mas também as famílias pobres nas áreas rurais. Enquanto isso, clí-
nicas e profissionais preocupados principalmente com dinheiro também or-
ganizaram serviços para pacientes ambulatoriais. Mulheres que moram longe
das grandes clínicas onde é feito o exame recebem o resultado pelo correio, o
que leva pelo menos uma semana. “No momento em que decidem abortar, o
feto já tem mais de 18 semanas. O aborto em um estágio tão tardio é bastante
prejudicial para a mãe”, escreve Vibhuti Patel (1984, p. 69).
Enquanto isso, os exames de identificação de sexo e o aborto de fetos fe-
mininos também se espalharam pelas áreas rurais de Maharashtra.93 Uma pes-
quisa em favelas de Mumbai revelou que muitas mulheres pobres passam por
esse tratamento e pagam o valor cobrado pelo exame e pelo aborto de fetos
femininos porque argumentam que é melhor gastar 80 rúpias nesse momento,
ou até mesmo 800 rúpias, do que gastar milhares de rúpias com a menina no
momento do seu casamento (Patel, 1984, p. 69).
A polêmica sobre a amniocentese foi desencadeada, segundo Vimal
Balasubrahmanyan, não tanto pelo fato de que esse método constitui uma
ameaça para o sexo feminino como um todo, mas devido “ao erro [dos mé-
dicos de Amritsar] de uma publicidade agressiva e de sua promoção voltada
para as vendas” (Balasubrahmanyan, 1982, p. 1725). Ele é da opinião de que,
com métodos mais sofisticados como a ultrassonografia e formas mais dis-
cretas por parte dos médicos e clínicas na venda dessa tecnologia, o feticídio
feminino se tornaria ainda mais difundido do que é agora. Ele culpa não
apenas a preferência patriarcal pela prole masculina por essas tendências fe-
minicidas, mas também a “filosofia internacional que inspira muito do pensa-
mento elitista dos cientistas que hoje se envolvem em pesquisa fetal, transfe-
rência de embriões e no vasto e complicado campo da engenharia genética”
(Balasubrahmanyan, 1982, p. 1725).
O aborto de fetos femininos foi defendido já em 1974 por uma das pes-
soas-chave no estabelecimento de controle da população indiana, a saber, o
Dr. D. N. Pai (Balasubrahmanyan, 1982, p. 1725). Mas não apenas os médicos

93 Comunicação pessoal dirigida a mim em agosto de 1984.


MARI A MI ES 283

e cientistas do sexo masculino defendem o feticídio feminino como a melhor


maneira de resolver o “problema populacional” da Índia. Existem também
mulheres como Dharma Kumar, que tenta aplicar a lógica capitalista da oferta
e da demanda para a valorização das mulheres na sociedade. Em resposta ao
economista Bardhan, que, como tantos outros, vê as tendências antimulheres
na Índia como um resultado direto da mudança na participação econômica
das mulheres na agricultura (Bardhan, 1983), ela escreve:

Mas por que não enxergar esta lógica econômica? A seleção do sexo na
gestação irá reduzir a oferta de mulheres, elas se tornarão mais valiosas e as
crianças do sexo feminino serão mais bem cuidadas e viverão mais. Temos
aqui um bom instrumento para equilibrar a oferta e a demanda das mu-
lheres e para equacionar seus preços em toda a Índia (já que as barreiras de
castas, regionais, religiosas e outras impedem o movimento das mulheres).
Portanto, com o tempo, deve-se esperar que os dotes caiam no Norte.
(Kumar, 1983, p. 63)

Dharma Kumar chega mesmo a defender a amniocentese e o feticídio fe-


minino como uma solução mais humana do que o infanticídio feminino: “O
feticídio feminino não é melhor do que o infanticídio feminino ou mesmo
que os maus-tratos de meninas? Quais são as políticas alternativas para me-
lhorar o tratamento dado às mulheres?” (Kumar, 1983, p. 64).
Não acredito que se possa encontrar uma expressão mais nítida do ódio à
mulher nutrido pela sociedade patriarcal-capitalista, internalizado pelas pró-
prias mulheres e utilizado contra seu próprio sexo do que o conselho de
Dharma Kumar. As relações sociais patriarcais e sexistas nem mesmo são men-
cionadas e nenhuma mudança com relação a elas é defendida; em vez disso,
o extermínio das próprias mulheres é sugerido como uma solução. Isso me
faz lembrar a lógica do estabelecimento de controle populacional que sugere
eliminar a pobreza por meio da aniquilação dos pobres. Mas esse caso é ainda
pior, pois é uma mulher que está sugerindo essa solução final feminicida.
284 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

ESTUPRO

Na época em que grupos e organizações de mulheres lançaram um mo-


vimento contra os assassinatos por dote na Índia, outra campanha foi iniciada
contra o aumento dos estupros e outras brutalidades contra as mulheres. A
campanha antiestupros foi, mais uma vez, impulsionada por pequenos grupos
feministas em Mumbai e Delhi.
Como no caso dos feminicídios por dote, o estupro foi por muito tem-
po considerado normal, uma característica das relações “atrasadas” ou feudais
aparentemente prevalecentes na Índia rural. Após uma série de incidentes
ocorridos nas grandes cidades, ficou evidente que estupradores também eram
encontrados entre a classe média instruída. Além disso, os casos de estupro
pareciam estar aumentando nas cidades. Mas o que acabou horrorizando e
enfurecendo os pequenos grupos feministas mais do que qualquer outra coisa
foi o fato de que, a partir de 1978, as mulheres não eram apenas estupradas por
todos os tipos de homens, mas cada vez mais por policiais, os guardiões da lei
e da ordem. A maioria desses estupros ocorria dentro das próprias delegacias
de polícia e as mulheres quase sempre eram vítimas de estupros coletivos.
A primeira história horrível desse gênero aconteceu em Haiderabade em
30 de março de 1978. Uma jovem muçulmana do interior, Rameeza Bee, foi
a Haiderabade com o marido para visitar seus parentes. Quando o casal es-
tava voltando de uma sessão noturna de cinema, Rameeza Bee foi presa pela
polícia municipal e arrastada para uma delegacia. Ela ficou detida lá durante
toda a noite, e foi espancada e estuprada por pelo menos três policiais. Depois
disso, seu marido também foi levado à delegacia. A polícia extorquiu 400 rú-
pias dele. Quando soube que Rameeza Bee havia sido espancada e estuprada
pelos policiais, ele protestou. Em seguida, foi tão espancado pela polícia que
morreu no mesmo dia (Relatório da Comissão Muktadar, 1978).
O caso foi investigado pela Comissão Muktadar e os policiais foram decla-
rados culpados. O juiz Muktadar exigiu uma ação enérgica contra os policiais
culpados, mas a polícia encontrou uma forma de se vingar. Um produtor de fil-
mes de Haiderabade pediu que Rameeza Bee, que já havia retornado à sua ci-
dade natal, fosse a Haiderabade porque queria fazer um filme sobre ela. Quando
ela estava voltando da casa do produtor de cinema, três garotas se aproximaram
e conversaram com ela. De repente, dois policiais apareceram e perguntaram
MARI A MI ES 285

qual era a relação dela com aquelas meninas. As meninas disseram que Rameeza
Bee as havia agenciado para a prostituição. Rameeza Bee foi então presa sob a
acusação de ser uma cafetina. Ela foi declarada prostituta e sentenciada a dois
anos de prisão. A polícia espalhou todo tipo de calúnia contra ela. Quando o
julgamento dos estupradores estava para começar em outubro de 1980, a polícia
solicitou a transferência do caso para um estado diferente e distante. A Suprema
Corte concordou com o fundamento de que os acusados poderiam não obter
um “julgamento justo” em Haiderabade. Em fevereiro, os policiais acusados
foram absolvidos das acusações de estupro, assassinato e extorsão. Apenas dois
policiais foram declarados culpados por “prisão ilegal” (Manushi, n. 7, 1981).
O caso Rameeza Bee provocou protestos em massa, principalmente de
jovens muçulmanas, na cidade de Haiderabade. Houve também protestos na
revista feminista Manushi e por parte de algumas organizações de mulheres.
Essas manifestações feministas se tornaram mais articuladas quando, um ano
após os eventos em Haiderabade, uma mulher chamada Shakila sofreu uma
agressão de similar brutalidade pela polícia da pequena cidade de Bhongir.
A mulher foi presa pela polícia em uma sala próxima à delegacia. Ela teve
de cozinhar para os policiais durante o dia e, à noite, vários policiais a estu-
praram. Seu marido foi preso sob acusação de roubo e mantido sob custódia
policial. Em 10 de outubro de 1979, ela e o marido foram internados pela
polícia como pessoas não identificadas em um hospital, onde Shakila morreu
no mesmo dia. Seu marido disse a uma comissão de apuração que ela havia
sido estuprada várias vezes durante a noite e que ele havia sido espancado e
forçado a engolir pílulas para dormir. O corpo de Shakila foi enterrado às
pressas pela polícia antes que uma autópsia pudesse ser feita.
Esse caso gerou uma mobilização em todo o estado, da qual também par-
ticiparam várias organizações de mulheres. Milhares de mulheres protestaram
contra as atrocidades policiais contra as mulheres (Farooqui, 1980).
O caso que desencadeou uma campanha nacional contra o estupro foi,
no entanto, o de Mathura. Mathura não tinha nem dezesseis anos. Ela foi
estuprada por dois policiais em uma delegacia. Chhaya Datar descreve os
eventos da seguinte maneira:

Mathura era uma trabalhadora sem-terra que estava sob custódia da de-
legacia de polícia de Desaiganj no distrito de Chandrapur, no estado de
286 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Maharashtra. Dois policiais da delegacia de Chandrapur foram acusados de


estuprá-la dentro da delegacia enquanto a interrogavam com relação a outra
denúncia. O processo durou oito anos. Os acusados foram absolvidos em
primeira instância. No recurso ao Tribunal Superior, eles foram considera-
dos culpados e condenados. Finalmente, em novo recurso à Suprema Corte,
a decisão do Tribunal Superior foi revertida e os policiais foram absolvidos.
O caso foi encerrado. (Datar, 1981)

Os policiais foram absolvidos porque a Suprema Corte acatou a decla-


ração feita por eles de que o estupro havia ocorrido com o consentimento
de Mathura.
Quando esse julgamento apareceu na imprensa em 1979, um pequeno
grupo de mulheres de Mumbai, que posteriormente criou o Forum Against
Rape [Fórum contra o estupro], divulgou uma carta aberta escrita por quatro
professores de Direito que solicitavam a reabertura do caso Mathura, acusan-
do a Suprema Corte de basear o julgamento em uma perspectiva enviesada
e masculinizada. Essa carta e a exigência de reabertura do caso Mathura se
tornaram o ponto de encontro para uma campanha nacional de mulheres
contra o estupro. A mobilização foi iniciada por pequenos grupos feministas
em Mumbai e Delhi, mas apoiada pelas organizações femininas dos partidos
de esquerda e por um grande número de outras organizações de mulheres.
Nos anos de 1979, 1980 e 1981, vários casos de estupro foram relatados na
imprensa indiana, e o movimento das mulheres, que naquele momento havia
crescido em número e força, com um foco bem definido na violência contra
as mulheres, apresentava um caso após o outro e exigia uma mudança na lei,
punições mais severas para os culpados e uma mudança nos valores, normas e
instituições sociais patriarcais e sexistas.
Não vou me alongar aqui sobre o desenvolvimento desse amplo movimento
que reuniu mulheres de todas as classes, de todas as regiões da Índia e de todas
as filiações políticas em torno da questão da violência contra as mulheres,94

94 Chhaya Datar realizou, em 1981, um trabalho de documentação e análise da Campanha


Antiestupro em Mumbai. Que eu saiba, essa é a única tentativa até agora de documentar o
desenvolvimento dessa importante campanha feminista na Índia. O seguinte panfleto foi pu-
blicado pelo Forum Against Rape em 23 de fevereiro de 1980:
MARI A MI ES 287

Não é hora de encararmos de frente o estupro?

Não foi estupro, disse a Suprema Corte, foi apenas uma relação sexual. Mathura, uma trabalha-
dora rural, entre 14 e 16 anos, de uma aldeia em Maharashtra, “submeteu-se voluntariamente”
a uma relação sexual com Ganpat, um policial que ela nunca tinha visto antes. Outro policial,
Tukaram, assistia à cena – bêbado demais para frear seu amigo, mas não bêbado demais para
abusar dela.
Isso aconteceu no dia 26 de março de 1972. No meio da madrugada. Em um banheiro próxi-
mo a uma delegacia de polícia. Onde a porta estava trancada e as luzes apagadas. A “firme resis-
tência” que Mathura apresentou era falsa, declarou a Suprema Corte, uma “trama de mentiras”.
“A alegada relação sexual ocorreu de forma pacífica”. “Seus gritos de alerta foram, é claro, uma
invenção de sua parte”, e ela disse ter sido estuprada para provar que era íntegra. A Suprema
Corte decidiu que não havia “nenhuma evidência razoável de culpa por parte dos policiais”.
O sêmen no pijama de Ganpat e no corpo e nas roupas de Mathura não provou nada. Já que
a menina não era virgem, insinuou-se que ela poderia ter dormido com mais alguém entre o
suposto estupro e o exame médico na manhã seguinte. Desnecessário dizer que ele poderia
ter feito o mesmo.
E assim a Suprema Corte fez justiça de acordo com seus interesses – revertendo o julgamen-
to da Alta Corte de Mumbai que condenou Ganpat a cinco anos de prisão e Tukaram a um
ano. Os dois policiais ficaram impunes. Mais uma vez, como na maioria dos casos de estupro,
a vítima tornou-se a ré e o promotor, o defensor. E o caso foi esquecido, relegado às páginas
mofadas de um jornal jurídico.
Um ano depois. Setembro de 1979. Quatro advogados – Upendra Baxi, Lotika Sarkar, Ra-
ghunath Kelkar e Vasudha Dhagamwar – analisaram o julgamento e ficaram estupefatos com
o “legalismo a sangue frio” da sentença. Enviaram uma carta aberta ao Chefe de Justiça da
Índia pedindo a reabertura do caso e condenando a sentença que “extingue toda aspiração de
proteção dos direitos humanos de milhões de Mathuras”.
O que isso significa? O caso de Mathura é apenas um exemplo. Jogar luz sobre ele significa
questionar todos os julgamentos de casos de estupro, questionar a lei do estupro, começar a se
perguntar por que tão poucos estupradores são condenados e perceber que o Código Penal
Indiano torna praticamente impossível provar a ocorrência de um estupro. Isso chamaria muita
atenção para algo que por muito tempo fingimos não existir. Não é hora de encararmos de
frente o estupro?
Não é hora de admitirmos que ele ocorre o tempo todo e em toda parte? De assumirmos que
todas as mulheres são vítimas em potencial – sejam elas jovens ou velhas, “bonitas” ou “feias”,
“boazinhas” ou “más”, ricas ou pobres? Claro que se você não for Mathura, uma trabalhadora
rural analfabeta, suas chances são menores. As Mathuras do país são duplamente oprimidas, são
mulheres e pertencem a um setor já oprimido de uma nação em que a justiça é privilégio de
poucos. Por isso, as mulheres não enfrentam o terror do estupro como indivíduos – mas como
uma categoria. O estupro em massa é frequentemente usado como uma arma para demonstrar
poder. Não é preciso procurar muito para encontrar exemplos. Já se esqueceram do que acon-
teceu com as esposas dos ferroviários durante a greve de 1974? Com as esposas dos mineiros
de Baila Dilla em 1977? Com as mulheres Dalit em Chandigar, Bhojpur e Agra? Ou com as
mulheres muçulmanas em Jamshedpur, Aligarh e em quase todas as revoltas comunais? Com as
mulheres Mizo e Nepali nas mãos do exército indiano?
288 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mas quero pontuar que os protestos contra os feminicídios por dote e contra
os estupros marcaram uma mudança no movimento de mulheres indiano pois
evidenciaram que o feminismo não era somente uma ideologia ocidental im-

Mas ninguém precisa ser estuprada para ser contra. Você já não sabe disso? Toda mulher não
sabe disso? Quando você assiste a um filme e durante a cena explícita de estupro ouve os gri-
tos e assobios de aprovação do público, isso não revira seu estômago? Você anda pela rua, viaja
de ônibus ou de trem tentando ignorar os comentários e provocações, mas a mão de alguém
apalpa você, roça em você.Você pediu? Provocou?
E se amanhã você for estuprada, o que fará? E se você for homem e sua irmã, filha ou mãe
for estuprada, o que você fará? Depois que todos os seus tão valiosos mitos se desintegrarem
ao seu redor e você se der conta de que o estupro ocorre sem que as mulheres “peçam”.Você
será um dos 800 casos denunciados em Mumbai neste ano e terá a coragem de dizer “Eu fui
estuprada”? Ou será um dos outros 8.000, pois para cada estupro notificado há entre 10 e 12
casos não relatados.
Sim, há segurança nesses números. E força. Então, vamos mudar a balança. Junte-se a nós.Vamos
encarar de frente o estupro e exigir:
1) Uma reabertura imediata do caso
2) Uma emenda à lei do estupro.
Se enfrentamos as coisas, elas podem mudar.
* Em Bhatinda, Punjab, a Associação por Direitos Democráticos de Punjab fez exatamente
isso. Quando Lakshmi Devi, uma mulher deficiente em situação de rua, foi estuprada repe-
tidamente por três ou quatro policiais e deixada sangrando em uma área deserta da cidade,
alguns trabalhadores dessa organização a internaram no hospital e deram seguimento ao caso,
de forma obstinada, até que os culpados fossem presos.
* Em Maharashtra, quando uma mulher adivasi foi estuprada por um proprietário de terras, as
mulheres da aldeia se reuniram e realizaram um julgamento presidido pelo povo. O culpado
foi exibido pela aldeia e humilhado publicamente.
* Em Haiderabade, houve um levante popular espontâneo depois do estupro de Rameeza Bee.
* Em Dombivli, Mumbai, há algumas semanas, quando se espalhou a notícia de um caso de estu-
pro, mais de 500 pessoas se reuniram em torno da casa do estuprador e exigiram sua punição.
Convocamos a todos os sindicatos, organizações de mulheres, organizações defensoras dos
direitos democráticos, organizações estudantis, advogados, estudantes, professores, jornalistas,
grupos dalit e demais grupos e organizações a se juntarem a nós em uma
REUNIÃO PÚBLICA NO DIA 23 DE FEVEREIRO DE 1980, ÀS 15H, NO ATCAMA
HALL (EM FRENTE AO LION GATE), FORT.
MANIFESTAÇÃO DO DIA INTERNACIONAL DA MULHER NO DIA 7 DE MAR-
ÇO DE 1980, ÀS 15H, DE AZAD MAIDAN A HUTATMA CHOWK.
FORUM AGAINST RAPE
Sra. Meera, c/o apt. 3, Carol Mansion, Sitladevi Temple Road, Mahim, Mumbai 400 016.
Publicado pela Sra. Meera, Forum Against Rape, c/o apt. 3, Carol Mansion, Sitladevi Temple
Road, Mahim, Mumbai 400 016 e impresso por ela na New Age Printing Press, 85 Sayani
Road, Prabhadevi, Mumbai 400 025.
MARI A MI ES 289

portada, mas que sua luta contra as relações patriarcais e sexistas entre homens
e mulheres também tinha relevância para as mulheres indianas. O que ficou
igualmente evidente no decorrer dessas campanhas foi o fato gritante de que
a violência contra as mulheres também ameaçava as mulheres de classe média.
Assim, a explicação padrão da esquerda indiana de que estupros e atrocidades
contra as mulheres eram apenas parte das relações de classe feudais e/ou capita-
listas não podia mais ser mantida. Não apenas trabalhadoras sem-terra e mulhe-
res tribais pobres estavam entre as vítimas de estupro, mas também mulheres de
classe média respeitadas e educadas, como mostra o caso de Maya Tyagi.
Maya, uma mulher de 23 anos de uma família de fazendeiros abastados,
estava viajando de carro com o marido para assistir ao casamento de sua so-
brinha. Ela estava grávida. Quando um dos pneus furou, eles pararam perto
de uma delegacia de polícia em Baghpat. Um policial à paisana aproximou-se
do carro e começou a assediar Maya. Seu marido então deu uma surra nele. O
homem foi até a delegacia e voltou com uma unidade policial inteira, que co-
meçou a atirar neles. Eles tentaram escapar da polícia, mas duas pessoas dentro
do carro, incluindo o marido de Maya, foram mortas a tiros. Outro homem
também foi morto a tiros. Depois disso, Maya foi arrastada para fora do carro
e espancada, roubaram suas joias, despiram-na e fizeram com que ela desfilasse
pelo mercado. Ela foi então levada para a delegacia onde foi estuprada por sete
policiais e presa. Eles também lhe deram sua urina para beber.
A polícia alegou em seu relatório que aquele não era um caso de estupro,
mas que os homens mortos eram ladrões e que Maya era a “amante” de um de-
les (Economic and Political Weekly, 26 de julho de 1980; Manushi, agosto de 1980).
Esse caso, mais do que qualquer outro, provocou manifestações em massa,
alvoroço no parlamento, jornadas de protesto de muitas organizações de mu-
lheres e clamor pela punição dos culpados. O governo, no entanto, mostrou-se
relutante em tomar medidas firmes contra a polícia, porque temia que sua
própria legitimidade e a daqueles que deveriam proteger a “lei e a ordem”
fossem prejudicadas. O Ministro do Interior recebeu Maya Tyagi e recomen-
dou ao comitê de investigação que a levasse à Primeira-Ministra, a Sra. Indira
Gandhi. Eis o que o comitê de investigação escreveu:

Percebendo que a aprovação dela (de Indira Gandhi) era necessária até para
fazer justiça em um caso em que uma mulher havia sido tratada de forma
290 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

bárbara, solicitamos um encontro com a Primeira-Ministra e fomos até ela


com Maya. A Primeira-Ministra nos ouviu e, em seguida, apenas comen-
tou em inglês: “Bem, existem diferentes pontos de vista”. Ela queria falar
com Maya sozinha. Mais tarde, soubemos que ela havia feito apenas duas
perguntas a Maya: primeiro, quanto ouro ela carregava e se tinha uma lista
das joias roubadas, e, segundo, quem havia recomendado que a levassem a
Delhi. (Economic and Political Weekly, 26 de julho de 1980)

Citei essa reação do governo indiano por completo porque ela revela que,
para os políticos, incluindo a Primeira-Ministra, esse caso abominável era
apenas algo a ser usado em suas manobras políticas. Os partidos da oposição
usaram-no para demonstrar que o governo de Indira Gandhi não era capaz
de “proteger” a “honra” das mulheres na Índia.
Na esteira desses eventos, houve uma enxurrada de notícias na imprensa
sobre estupros e outras atrocidades contra mulheres. Enquanto os estupros
coletivos cometidos pela polícia aumentavam, ficou evidente que não eram
apenas os policiais que estupravam mulheres, mas que estupradores eram en-
contrados entre homens comuns. Entre eles estavam os sacerdotes, sadhus [as-
cetas hindus], carteiros, cunhados, adolescentes, empregadores, trabalhadores,
proprietários de terras etc. Os estupros coletivos pareciam ter se tornado moda
em todo o país. Além disso, casos de estupro ocorriam em todas as comuni-
dades, entre hindus, muçulmanos e cristãos. Não só as mulheres de “outras”
comunidades eram estupradas, mas também as mulheres da comunidade dos
estupradores. Rameeza Bee foi estuprada por vários policiais muçulmanos.
Por fim, foi necessário admitir que o estupro ocorria em todas as classes e
que estava aumentando nos últimos anos. Assim, o Ministro do Interior teve
de declarar abertamente que, nos anos de 1972 a 1978, o seguinte número de
casos de estupro havia sido oficialmente registrado:

1972 2.562 casos 1976 3.611 casos


1973 2.861 casos 1977 2.821 casos
1974 2.862 casos 1978 3. 781 casos
1975 3.283 casos

(Sunday, 27 de julho de 1980)


MARI A MI ES 291

Essas cifras certamente subestimam a realidade, mas mostram a tendência


de aumento dos estupros. Peter Layton, da Marie Stopes Society, declarou que
dois milhões de mulheres eram vítimas de estupro todos os anos (Sunday, 27
de julho de 1980). E o ministro-chefe do estado de Karnataka declarou que a
cada 15,3 horas uma mulher era estuprada e a cada 34 horas uma mulher era
sequestrada (Maitreyi, junho-julho de 1982).

ANÁLISE

Não é mais possível negar que a violência contra as mulheres está aumen-
tando na Índia. Não só o movimento das mulheres, mas também a imprensa,
os políticos e alguns acadêmicos começaram a apurar as causas das crescentes
“atrocidades contra as mulheres”. Os demógrafos na Índia estão preocupados
com o encolhimento da população feminina no país, mas não sabem como
explicá-lo.95 Para a classe média educada, foi uma espécie de choque admitir
que a Índia estava longe do ideal gandhiano de sociedade pacífica. Assim, os
movimentos contra os feminicídios por dote e o estupro eram acompanhados
por reflexões de organizações de mulheres, da imprensa e, por vezes, também
de alguns acadêmicos a respeito das razões pelas quais as mulheres na Índia
estavam sendo cada vez mais vitimadas pela violência masculina ou por que
eram indesejadas. A explicação clássica da esquerda é de que as mulheres não
são economicamente iguais aos homens nos países capitalistas e que, portanto,
estão sujeitas à violência masculina. Ou então que leis são aprovadas, mas não
executadas, e que o governo é responsável pela degeneração da situação da lei
e da ordem (Gita Mukherjee, 1980). Outra explicação à esquerda é dada por
Vimla Farooqui. Ela diz:

95 Em uma reportagem de jornal sobre o encolhimento da população feminina na Índia desde


1950, os demógrafos indianos admitem “que não há explicação” para essa tendência. Como
disse um deles, o abandono das mulheres e o baixo status social delas não explicam totalmente a
situação: “Se estes fossem os únicos fatores, então a melhora no status das mulheres nos últimos
anos teria levado a uma melhora correspondente na proporção mulher-homem, mas a situação
é exatamente a oposta. Embora o status das mulheres tenha melhorado consideravelmente nos
últimos anos, seu número diminuiu. Isso mostra que há mais aspectos do problema do que
parece. Estamos realmente intrigados”. (“Shrinking Population of Women”, em The Statesman,
14 de agosto de 1980)
292 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Nas últimas três décadas houve uma degeneração alarmante de nossos va-
lores sociais, porque nossos governantes estão seguindo um caminho de
desenvolvimento capitalista enquanto mantêm intacto o sistema de valores
feudais que não oferece aos setores mais fracos nenhuma proteção. As mu-
lheres, sendo as mais fracas entre os setores mais fracos, naturalmente sofrem
mais. Trata-se de uma situação que exige séria reflexão das organizações
femininas, dos partidos políticos e de todos os que trabalham pelo bem estar
e pelo avanço da Nação. (Farooqui, 1980)

As atrocidades contra as mulheres, particularmente as exigências de dote e


os assassinatos, como parte do “passado feudal” da Índia foram também o que
expressou a seguinte declaração de um periódico liberal:

Mas o aumento do número de tais denúncias e a atenção que atraíram por


meio do fervor de organizações como Stree Sangarsh Samiti, Nari Raksha
Samiti e Mahila Dakshata Samiti criaram a impressão bastante errônea (...)
de que os noivos indianos estão se tornando mais extorsivos. O sistema
social sempre os encorajou a fazer o melhor negócio concebível: quanto
mais rico e em melhor posição está o noivo, maiores serão suas demandas.
Essa é uma das situações em que a sociedade urbana rica e educada preserva
fervorosamente os valores da Índia rural. (Editorial, Sunday Statesmen, Delhi, 10
de agosto de 1980; destaque da autora)

Um traço característico de muitas explicações encontradas no discurso in-


diano sobre a violência contra as mulheres é o olhar da maioria delas sobre as
manifestações das relações sociais patriarcais e capitalistas pela perspectiva estrei-
ta do determinismo econômico. Assim, Indira Rajaraman explica a disseminação do
dote entre as camadas mais pobres da sociedade indiana, que até então pratica-
vam o preço da noiva, como resultado do declínio da força de trabalho femini-
na rural. Esse declínio foi causado, segundo ela, pelo aumento da produtividade
da agricultura moderna. Em seu artigo “Economics of Bride Price and Dowry”
[Economia do preço da noiva e do dote] (Economic and Political Weekly, 19 de
fevereiro de 1983), ela aplica cálculos capitalistas simplistas de custo-benefício
ao preço da noiva e ao dote. Como ignora totalmente as diferentes raízes histó-
ricas e culturais do preço da noiva ou do dote, pode definir ambos como uma
MARI A MI ES 293

espécie de valor equivalente para a mulher, que pode ser positivo (preço da
noiva) ou negativo (dote). Para ela, o dote é uma espécie de “preço negativo da
noiva”, que surge quando a contribuição econômica ou produtiva da mulher,
ou seja, o trabalho doméstico, a capacidade de engravidar e a participação no
trabalho gerador de renda, é superada pelos custos de alimentá-la e vesti-la. Essa
situação surgiu, de acordo com Rajaraman, quando as mulheres foram expulsas
de empregos produtivos das classes do “setor informal”. O dote é, portanto,
definido como “valor do custo de sustentar uma mulher ao longo da vida se a
renda dela for igual a zero; esse valor será menor se a renda feminina for infe-
rior ao custo de subsistência, mas não chegar a zero” (Rajaraman, 1983, p. 276).
Como todo o seu argumento é baseado na suposição equivocada de que o
dote se destina a compensar “de forma parcial ou total a subsistência vitalícia
de uma mulher”, ela também pode defender o argumento, frequentemente
ouvido na Índia, de que o dote é basicamente um fundo rotativo, ou seja,
pressupõe-se que as famílias tenham número igual de filhos e filhas e que o
valor que pagam como dote por suas filhas, recebem de volta quando seus
filhos se casam. Esta suposição quanto ao caráter circular do dote e do preço
da noiva – baseada, muito provavelmente, na teoria de Lévi-Strauss da equipa-
ração entre noivas e bens matrimoniais, que se produz em tais círculos – não
apenas ignora a realidade indiana, como também a relação basicamente assi-
métrica, não recíproca e hipergâmica entre famílias que dão e recebem noivas
na Índia (Ehrenfels, 1941; Dumont, 1966).
Devido à estreita argumentação economicista, Rajaraman não consegue
explicar a situação atual, notadamente o fato de que agora todas as famílias
com filhas do sexo feminino são punidas devido ao sistema de dote, e não
apenas aquelas que têm mais filhas do que filhos. Devido ao pressuposto de
que existe uma troca de valores equivalentes entre a família que dá a noiva e a
que a recebe, ela acredita que a família que dá a noiva tem algum poder de
barganha frente à família que a recebe. A realidade, porém, é que a família do
noivo pode determinar quase que totalmente o valor do dote. As qualidades
do noivo – sua educação, casta, riqueza familiar, situação de emprego etc. – são
a medida para o cálculo do dote. A beleza da noiva, a educação, o emprego, a
riqueza de sua família etc. não podem ser usados na negociação para reduzir as
exigências do dote por parte da família do noivo. As demandas vêm apenas de
um lado, e o outro lado deve fornecer os bens além da mulher.
294 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mas Rajaraman tenta construir um modelo econômico abstrato para uma


realidade que nada tem a ver com ele. Portanto, ela pode argumentar que o
dote e o preço da noiva são basicamente a mesma coisa e que a transição do
preço da noiva para o dote nas camadas mais pobres da sociedade não tem por
que ter um efeito mais negativo do que o preço da noiva:

Seja qual for a causa da transição [do preço da noiva para o dote], é claro
que o sistema resultante de pagamento do dote não terá impacto punitivo
mais extenso do que o sistema de preço da noiva que ele substitui, desde
que mantenha um caráter rotativo puramente compensatório. (Rajaraman,
1983, p. 278)

Não surpreende que as implicações políticas que decorrem dessa argu-


mentação não exijam mudanças estruturais nas relações sociais patriarcais e
capitalistas, nem exijam uma mudança na relação homem-mulher ou uma
valorização diferente da contribuição das mulheres, mas apenas uma redução
das despesas, aliada a mais atividades geradoras de renda para as mulheres.
O economista Bardhan, em sua resenha do livro de Barbara Miller (1981)
sobre o abandono de crianças do sexo feminino no norte da Índia, também
explica a queda das chances de sobrevivência delas nessa parte do país pela
mesma lógica economicista: como as mulheres no sul são ainda empregadas
em grande número no cultivo de arroz, a proporção dos sexos nessas regiões
é melhor do que no norte, particularmente nas áreas de cultivo de trigo de
Punjab e Haryana, onde as mulheres não participam muito do trabalho no
campo. Ele também acredita que mais empregos para as mulheres é o me-
lhor remédio contra as tendências antimulheres na Índia. De acordo com sua
análise:

A probabilidade de sobrevivência de uma criança do sexo feminino aumen-


ta com a maior taxa de emprego feminino ou com um menor diferencial
de renda diária entre homens e mulheres. Se isso está correto, significa que
a expansão das oportunidades de emprego para as mulheres ou a redução
do diferencial entre homens e mulheres na Índia rural não é apenas uma
causa “feminista”: de fato, é algo que pode salvar a vida de muitas meninas
em famílias rurais. (Bardhan, 1982, p. 1450)
MARI A MI ES 295

O problema de explicações como as mencionadas acima, independente-


mente de serem defendidas por marxistas ou não marxistas, é que todas são
baseadas no conceito essencialmente capitalista de “economia”. Esse conceito
exclui, por definição, o trabalho doméstico, a gestação, o parto e criação de
crianças da categoria de “trabalho produtivo”, reduzindo as mulheres a uma
unidade de consumo. Assim, no centro dessa argumentação está o conceito
de mulher como uma dona de casa dependente “não produtiva”. Toda vio-
lência contra as mulheres, assassinatos por dote, feticídio feminino, estupro,
negligência de bebês do sexo feminino etc. é, em última análise, atribuída ao
pressuposto teórico de que as mulheres são um prejuízo, um fardo, porque são
entidades economicamente “não produtivas”. As tendências antimulheres só
podem ser remediadas, segundo esses teóricos, se o sexo feminino, seguindo a
famosa afirmação de Engels, for “reintroduzido na produção social”, isto é, se
as mulheres tiverem “trabalho remunerado”.
Essa lógica, entretanto, não é suficiente para explicar a realidade existente
em nenhuma parte do mundo, muito menos na Índia. Sabe-se que a violên-
cia contra as mulheres está aumentando no Ocidente, onde pelo menos 40%
das mulheres estão envolvidas em trabalhos “socialmente produtivos” fora do
âmbito doméstico. A violência doméstica e a violência contra as mulheres
ocorrem em todas as classes e afetam tanto as mulheres que são “meras” do-
nas de casa quanto as que têm empregos remunerados. A violência contra as
mulheres também é encontrada na União Soviética (cf. Almanaque Women
in Russia [As mulheres na Rússia], 1981), na China (cf. Croll, 1983) e no
Zimbábue (onde as prostitutas são perseguidas), assim como em outros países
socialistas, como a Iugoslávia.96
Na Índia, também é mais do que evidente que mulheres de todas as classes
são espancadas, independentemente de serem “economicamente independen-
tes” ou não. Entre as mulheres assassinadas por exigência de mais dote, havia
muitas que eram altamente educadas, que tinham um bom emprego e que

96 De acordo com o relato pessoal de uma amiga iugoslava, a violência doméstica é bastante
habitual na Iugoslávia. Mas não há movimento de mulheres que possa assumir essa questão. A
violência doméstica é considerada parte da cultura nacional, segundo essa amiga. Para obter
informações sobre o movimento antiprostitutas no Zimbábue e a reação das mulheres a ele, ver
Women of Zimbabwe Speak Out: Report of the Women’s Action Group [As mulheres do Zimbábue
tomam a palavra: relatório do Grupo de Ação das Mulheres], Workshop Harare, maio de 1984.
296 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

eram, na verdade, geradoras de renda para a família. Como é que Bardhan,


Rajaraman e outros autores explicam o assassinato dessas mulheres “economi-
camente produtivas”? Além disso, conheço várias mulheres indianas solteiras
que procuram emprego para conseguir guardar dinheiro e ter um dote para si,
porque seus pais são muito pobres ou têm muitas filhas. Suspeito de que mais
e mais “mulheres assalariadas” serão solicitadas por suas próprias famílias a ga-
nhar sozinhas o dote necessário para se libertar da odiosa solteirice. Também
aprendemos com Manoshi Mitra que os homens deixam de trabalhar assim
que suas esposas recebem algum dinheiro por meio de atividades geradoras de
renda. Esse breve olhar para a realidade pode ser suficiente para abandonar o
argumento economicista simplista de que a introdução das mulheres no tra-
balho socialmente produtivo as libertará da opressão patriarcal, da exploração
e da violência.
A dura realidade da violência existente e crescente contra as mulheres em
todo o mundo não é apenas uma crítica histórica à famosa utopia de Engels,
mas também ao conceito de capitalismo que ainda prevalece, intocado, tanto
entre marxistas como entre não marxistas. A questão do dote demonstra de
forma assertiva que a lei capitalista da troca de equivalentes não funciona ou
não se aplica quando se trata da contribuição das mulheres para a economia,
independentemente de essa contribuição ser trabalho doméstico, geração ou
criação de filhos, trabalho assalariado ou outro emprego remunerado. Isso não
é apenas um descuido ou um resquício “atrasado” ou “feudal” da “Índia rural”,
mas uma pré-condição genuína para a “modernização e o desenvolvimento”.
Na verdade, a lei da troca de equivalentes não deve ser aplicada quando se
trata de trabalho feminino. Dessa forma, este trabalho é separado da economia
(capitalista) e apagado. As mulheres não deixam de trabalhar nas casas, nos
campos, nas fábricas, não deixam de parir e educar os filhos, mas esse trabalho
já não é considerado trabalho socialmente produtivo, é invisibilizado.
Portanto, o dote não pode ser uma compensação para a subsistência vita-
lícia de uma mulher, porque ela própria é de facto a principal trabalhadora da
subsistência da família, muitas vezes até em famílias de classe média. Se recu-
sarmos a separação capitalista entre trabalho “produtivo” e “não produtivo”,
veremos que, efetivamente, há mais homens que dependem do trabalho das
mulheres do que mulheres que dependem do “provedor” masculino.
MARI A MI ES 297

O DOTE COMO TRIBUTO

Histórica e estruturalmente, o dote não tem nada a ver com uma compen-
sação pelo provimento de subsistência vitalícia à noiva. Ele é, efetivamente,
uma espécie de tributo da família que dá a noiva para a família que recebe a
noiva. O tributo é exigido por uma das partes em função da “honra” que o
homem e sua família concedem à mulher por fazer dela uma “esposa” e por
incorporá-la à sua família. Esse é o significado original do dote. Ele não pode
ser entendido a menos que seja estudado no contexto do sistema patriarcal
indiano, do sistema de castas e do capitalismo. O dote foi desenvolvido e le-
gitimado pelos brâmanes em suas teorias do casamento e da família patriarcal.
De acordo com o conceito de casamento bramânico, a filha é “dada” pelo
pai. E “aquele que dá sempre deve dar”. A relação entre as famílias que dão e
as que recebem a noiva nunca é igualitária. A família que recebe a noiva, ou
seja, a família do noivo, tem, por definição, um status superior. A relação entre
as duas famílias é sempre assimétrica e não recíproca (Kapadia, 1968). Já que
quem dá sempre deve dar, como acontece no caso do tributo, é estritamente
proibido que o lado que dá também se atreva a exigir alguma coisa. Por exem-
plo, no Rajastão, em algumas comunidades, a família da noiva não tem nem
mesmo permissão para visitar os sogros de sua filha e aceitar comida deles até
que ela “dê” um filho homem para sua família de procriação.
O dote, portanto, é uma manifestação evidente de uma relação estrutural-
mente hipergâmica, não recíproca, assimétrica e extrativa entre: a) as famílias
que dão e as que recebem as noivas, e b) entre homens e mulheres. Nessa relação
social, um lado exige (mulher, bens, dinheiro, serviços, prole) e o outro tem de
fornecer esses bens. A única coisa que o lado que fornece “recebe” é a “honra”
de ter “dado” uma filha para este ou aquele homem e para esta ou aquela família.
Os brâmanes tinham um interesse vital no estabelecimento dessa relação
tributária não recíproca porque essa casta de sacerdotes não vivia nem do
próprio trabalho, como as outras castas, nem da guerra, como os kshatriyas.
Eles viviam dos presentes que lhes eram dados pelos ricos e pelos pobres. Aos
doadores eram prometidos apenas ganhos espirituais por seus presentes. Essa é
justamente a relação entre homem e mulher segundo a concepção bramânica
patriarcal (Mies, 1980). A mulher dá ao marido seu corpo, seu trabalho, seus
filhos, além de dinheiro e outros bens, e “recebe” a honra de ser esposa. Se há
298 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

uma troca, é entre bens materiais e “espirituais”. Devido ao alto prestígio que
os brâmanes e outras castas importantes da Grande Tradição97 têm na Índia,
mesmo agora, as famílias que dão o dote são consideradas portadoras de status
social mais elevado do que as famílias que dão o preço da noiva. Esse status
foi ainda mais elevado devido à modernização e à ocidentalização. Como
Srinivas apontou em 1966, os processos de sanscritização98 andam lado a lado
com os processos de ocidentalização. Mas enquanto Srinivas descobriu que a
prosperidade econômica geralmente precedia o processo de sanscritização de
uma comunidade, a disseminação do dote entre as castas que pagam o preço
da noiva é bastante indicativa de uma tendência a usar o sanscrítico – ou seja,
os costumes patriarcais bramânicos – para conquistar a prosperidade econômica
e a ocidentalização (Srinivas, 1966).
Igualar o preço da noiva ao dote mistifica totalmente o caráter básico das
relações sociais que são expressas nessas transações. Enquanto o preço da noi-
va, que deriva de uma tradição originalmente matrilinear, constitui de fato
uma compensação pela contribuição das mulheres para a subsistência de sua
família, o sistema do dote é um tributo unilateral, no qual apenas as qualidades
do noivo contam. Assim, há valores diferenciados para o dote pago a médicos,
funcionários do Serviço Administrativo Indiano (IAS) e àqueles que obtive-
ram um doutorado nos Estados Unidos ou na Inglaterra, os quais figuram
entre os que atraem os dotes mais elevados.
Sob o sistema do preço da noiva, o valor da mulher como produtora de
subsistência ainda é reconhecido e valorizado positivamente. Sob o sistema

97 Os conceitos de “Grandes” e “Pequenas” tradições foram aplicados pela primeira vez à Índia
por McKim Mariott. A Grande Tradição é mais ou menos idêntica à cultura bramânica-sans-
crítica. É caracterizada pelo reconhecimento da santidade dos vedas, pelo vegetarianismo, pelo
ritual bramânico, pela crença nos conceitos teológicos bramânicos, pela crença no sistema de
castas e pela subordinação das mulheres às instituições e normas patriarcais (cf. McKim Ma-
riott, “Little Communities in an Indigenous Civilization”, em Village India, Studies in the Little
Community; The American Anthropologist, vol. 57, n. 3, 1955, p. 181).

98 O conceito de “sanscritização” foi desenvolvido por M. N. Srinivas. Descreve o processo


pelo qual as castas baixas que se tornam economicamente prósperas tentam imitar os valores,
normas, instituições das castas sanscríticas (bramânicas) e, depois de certo tempo, reivindicar
um status de casta mais elevado. Hoje, esses processos de sanscritização acompanham os proces-
sos de ocidentalização (Srinivas, “A Note on Sanscritization and Westernization” [Nota sobre
sanscritização e ocidentalização], The Far Eastern Quarterly, vol. XV, novembro de 1955-agosto
de 1956, p. 492-536).
MARI A MI ES 299

do dote, essa contribuição é desvalorizada e apagada. Os analistas que apli-


cam lógicas capitalistas de oferta e demanda para essas transações contribuem
ainda mais para a ocultação da contribuição das mulheres.
Observar a realidade histórica concreta também pode ajudar a desbancar
outro mito geralmente utilizado para explicar a violência contra as mu-
lheres, particularmente na Índia. Trata-se do argumento de que o dote e as
“atrocidades contra as mulheres” são manifestações de relações de produção
ainda “atrasadas”, “feudais” ou semifeudais que desapareceriam com as re-
lações de produção modernas, capitalistas ou socialistas. Na verdade, é exa-
tamente o contrário.
Os dotes são ainda mais exorbitantes nas cidades grandes, entre os ho-
mens mais “avançados”: funcionários do IAS,99 médicos, engenheiros, dentistas,
empresários e fazendeiros capitalistas “progressistas”. O estupro e a violência
contra as mulheres não ocorrem apenas na Índia rural, mas cada vez mais nas
grandes cidades. A mais moderna tecnologia é usada para exterminar o sexo
feminino em testes de seleção sexual e aborto. Portanto, não é a “Índia rural”
que está atrasando o “processo civilizatório” entre a classe média urbana e
educada, mas é a própria civilização capitalista-patriarcal que é o “pai da barbárie”.
As atrocidades contra as mulheres também não são estranhas ao capitalismo,
mas sim manifestações de seu caráter basicamente predatório, que ele nunca
perdeu no curso de sua história.
O caso do dote e dos negócios feitos por médicos em exames de pré-sele-
ção sexual podem ajudar a entender esse caráter. Cada vez mais, os dotes não
são usados pela família que recebe a noiva – como muitas vezes se presume
–, mas pelo próprio noivo. Esse é particularmente o caso dos requerentes dos
dotes mais elevados. De acordo com uma pesquisa realizada com 105 famílias

99 Funcionários do Serviço Administrativo Indiano, juntamente com médicos, engenheiros


e executivos são os mais prestigiados recebedores de dote, como ilustra o seguinte anúncio
matrimonial:

Aceitam-se propostas de casamento


De cavalheiros bem empregados, com educação superior, inteligentes, ou de seus pais para uma
jovem nair de 21 anos, rica, bonita, com excelente formação educacional, talentosa em artes,
titulada e ganhadora de prêmios, filha do diretor governamental. Preferência por funcionários
do Serviço Administrativo Indiano, executivos bancários, engenheiros, médicos, doutores e
executivos. BOX n. 2136-CN, c/o INDIAN EXPRESS, COCHIN-682001.
300 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

da cidade de Bangalore, no sul da Índia, o dote foi entregue ao genro em


57% dos casos (Krishnakumari & Geetha, 1983). Esses homens podem exigir
grandes dotes em espécie como uma compensação pelo dinheiro gasto em
sua educação, mas, em muitos casos, usam o dote recebido como investimento
inicial para um novo negócio, um escritório de advogados, uma clínica priva-
da, um escritório de engenharia etc. As exigências do dote também incluem
cada vez mais itens caros e prestigiados de consumo moderno, como carros,
televisões, motocicletas, videocassetes, que são apropriados pelo próprio ma-
rido. Apenas alguns desses itens são para a família toda, como geladeiras ou
móveis. Entre as camadas mais pobres, essas mercadorias modernas podem ser
um terno ocidental, um rádio, um relógio de pulso ou camisetas ocidentais. A
instituição do dote pode, então, ser vista como uma fonte de riqueza acumu-
lada não por meio do próprio trabalho do homem ou de um investimento
de seu próprio capital, mas por extração, extorsão e violência direta. A autoridade
sobre o dote dá a todos os homens a possibilidade de obter dinheiro que não
ganharam com seus próprios meios e acessar itens de consumo modernos
que, de outra forma, não seriam capazes de comprar. O dote cria um mercado
para esses bens, mesmo entre as pessoas que têm de fazer empréstimos para
garantir sua sobrevivência. Ele abre caminho para a disseminação dos valores
de mercado e das mercadorias, mesmo entre os pobres.

OS HOMENS SÃO ESTUPRADORES POR NATUREZA?

Enquanto principalmente razões economicistas são usadas para explicar o


aumento do dote e dos assassinatos por questões de dote, a rápida dissemi-
nação do estupro, os estupros policiais, estupros coletivos e outras agressões
sexuais contra as mulheres são explicadas geralmente com a argumentação
biologizante de que a sexualidade dos homens é basicamente agressiva e ba-
seada em impulsos irresistíveis, ao passo que a das mulheres é basicamente
passiva e masoquista.
Os grupos de mulheres que exigiram uma revisão da definição do con-
ceito de consentimento no parágrafo sobre estupro do Código Penal Indiano
apontaram que é praticamente impossível para uma mulher provar que não
consentiu com uma relação sexual, pois a resistência à agressão só é reconhe-
MARI A MI ES 301

cida como não consentimento sob ameaça de morte ou frente a lesão grave.
Isso significa que, a menos que uma mulher seja capaz de apresentar provas de
que quase foi assassinada, presume-se que ela consentiu em manter a relação
sexual. Essa definição foi modificada graças à pressão de protestos públicos
realizados pelas mulheres, mas a ideologia expressa na legislação sobre o es-
tupro na Índia, como na maioria dos outros países, permanece a mesma. Essa
ideologia consiste em uma série de mitos masculinos sobre mulheres e sexo,
os quais são encontrados na maioria das sociedades dominadas por homens,
e são as instituições e as relações sociais sobre as quais elas se apoiam que de-
terminam o comportamento das pessoas, e não as leis escritas. É útil observar
alguns dos mitos sobre o estupro apresentados por homens em todas as socie-
dades patriarcais, assim como na Índia.

1. O estupro não existe, já que nenhuma mulher pode ser estuprada contra
sua vontade. As mulheres gostam de ser estupradas.
2. As mulheres são masoquistas por natureza; elas não gostam de sexo, a me-
nos que sejam forçadas a ter relações sexuais. Elas querem ser espancadas
e subjugadas à força. (Nos refúgios para mulheres agredidas organizados
por feministas na Alemanha e em outras partes da Europa, muitas mulheres
afirmam que seus homens costumavam bater nelas e depois forçá-las a ter
relações sexuais com eles.)
3. Uma mulher estuprada provocou o homem com seu comportamento, ou
seja, ela se comportou como uma prostituta. (A maioria das mulheres em
todo o mundo precisa primeiro provar em juízo que não é prostituta. Elas
são consideradas a parte culpada, não o homem. O caso Rameeza Bee é
uma evidência inquestionável disso.)
4. É culpa da mulher se ela for estuprada. Por que ela usa roupas que pro-
vocam os homens ou por que anda sozinha depois de um certo horário
à noite? Por que ela anda sem proteção masculina etc.? (No entanto, os
casos na Índia, assim como em muitos outros lugares, provam que os
“protetores” (por exemplo, a polícia ou parentes do sexo masculino) são
os próprios estupradores.
5. O estupro ocorre apenas fora do casamento. Uma relação sexual dentro do
casamento é, de acordo com a definição da lei, baseada no consentimento
mútuo. (Todas nós sabemos que acontece tanta – ou até mais – violência
302 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

sexual dentro do casamento quanto fora dele. A violência doméstica está


frequentemente relacionada à recusa das mulheres em ter relações sexuais.)
6. O estupro ocorre principalmente nas camadas mais pobres e menos ins-
truídas da sociedade. É, portanto, uma manifestação de pobreza e atraso.
(Entretanto, vimos que o estupro, ou mais genericamente, a violência se-
xual, está aumentando nos centros urbanos e também nos chamados seto-
res avançados, principalmente se incluirmos a violência sexual exercida por
familiares e maridos nessa categoria.)
7. O estupro é uma característica das relações de produção feudais ou se-
mifeudais, ou seja, é principalmente uma questão de classe. Os senhores
feudais e seus filhos estupram as mulheres dos camponeses pobres. Há
harmonia entre o camponês pobre e sua esposa. Essas formas feudais de
violência sexual desaparecerão com uma mudança nas relações de proprie-
dade. (Esse mito é geralmente apresentado pela esquerda. Ele não é capaz
de explicar o aumento da violência sexual nos centros urbanos, em áreas
de maior desenvolvimento capitalista, nem o aumento da violência contra
as mulheres nas camadas mais pobres da sociedade por parte dos homens
dessas mesmas camadas.)

Muitos desses mitos culpam a mulher, ou seja, a vítima. Esses mitos tam-
bém dizem algo a respeito dos homens e sua relação com o sexo. Eles im-
plicam que um homem, se provocado, não pode resistir e precisa agredir a
mulher. Isso significa que seu desejo sexual – ou, como a maioria das pessoas
diz, seu instinto sexual – precisa de satisfação imediata. Como as mulheres são
vistas como basicamente masoquistas e mudas, seres subumanos, os homens
são vistos como agressivos, senão sádicos, por natureza. Tal natureza só pode
ser controlada por leis severas, por tabus sociais rígidos sobre certas categorias
de mulheres (mães, irmãs) e pelas próprias mulheres, de quem se espera que
se comportem de tal forma que o “instinto” sexual agressivo e sádico dos
homens não saia do controle.
Eu me pergunto se legisladores e acadêmicos do sexo masculino já pen-
saram na caricatura de ser humano que fizeram de si mesmos ao afirmarem
essas ideias. Mas não foram apenas esses mitos populares que influenciaram a
ideologia comum sobre mulheres, homens e sexo. O que é mais importante é
o fato de que a maioria desses mitos foi sustentada, cientificamente elaborada
MARI A MI ES 303

e “provada” por uma série de estudiosos altamente respeitados e suas teorias.


Bibliotecas inteiras estão repletas de livros que tentam provar que os impulsos
sexuais dos homens são basicamente agressivos e incontroláveis e que as mu-
lheres não têm sexualidade própria ou que é seu destino biológico satisfazer
as necessidades agressivas dos homens. Para mencionar apenas o mais famoso
entre esses estudiosos e suas escolas, Darwin sustentava que a evolução se ba-
seava no controle dos instintos agressivos e perturbadores dos homens em sua
competição pelo controle sexual das mulheres.
Os neodarwinistas, os darwinistas sociais e toda a escola de ciências do
comportamento que domina as ciências sociais estadunidenses – e, em espe-
cial, os biólogos sociais – basicamente concordam com esse conceito de ho-
mem. Em particular, estudiosos como Konrad Lorenz, Lionel Tiger e Robert
Fox popularizaram esse conceito nos últimos vinte anos, sintetizado, como
vimos, no “modelo do homem-caçador”. Portanto, a agressividade faz parte
da natureza do homem e não pode ser mudada por meio de reformas sociais
ou da revolução. Tenho certeza de que existem muitos cientistas sociais do
sexo masculino (e feminino) que são contra o estupro por razões morais, mas
que, apesar disso, concordam com esses conceitos e teorias. Se tivessem uma
atitude mais crítica quanto aos preconceitos ocultos no pensamento científico,
seriam capazes de ver que as chamadas ciências “livres de valores morais” são
baseadas em certos mitos que servem para legitimar a opressão, exploração e
subordinação de outros seres humanos: mulheres, castas baixas, classes, povos e
nações. Eles veriam, por exemplo, que a biologia ou a natureza não obrigam
nenhum homem a estuprar. O estupro não existe no mundo animal. É uma
invenção do humano do sexo masculino.
“A sobrevivência dos mais aptos” – os homens fortes – significa que os
conquistadores, os vencedores, estão sempre certos. É precisamente essa a
ideologia por trás das leis e dos mitos sobre o estupro. Não somos capazes de
ver que aqueles que concordam com esse tipo de ciência também concordam
com o fascismo e o imperialismo?
Mesmo Sigmund Freud, fundador da escola psicanalítica e descobridor do
subconsciente, foi influenciado por esses mitos e por sua legitimação “cien-
tífica” realizada pelos evolucionistas. Ele também acreditava que a cultura
se baseava na repressão e na sublimação desses impulsos sexuais masculinos
violentos. Sua teoria do complexo de Édipo é basicamente uma teoria da
304 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

competição sexual masculina, entre pais e filhos, por um objeto sexual, a mãe.
Além disso, Freud concorda com a teoria de que a sexualidade masculina é
ativa, agressiva – e, em suas formas neuróticas, por vezes sádica. E a sexuali-
dade feminina é considerada passiva e até masoquista. As mulheres, de acordo
com Freud, só podem atingir sua sexualidade adulta plena aceitando seu papel
feminino “natural”, isto é, desistindo de sua sexualidade clitoriana “imatura”
e passando para a sexualidade vaginal, necessária para que o homem satisfaça
seu desejo sexual. É surpreendente que um estudioso sério como Freud tenha
consolidado a teoria do orgasmo vaginal como a forma “madura” da sexua-
lidade feminina, embora devesse saber que a vagina não contém terminações
nervosas e, portanto, não “produz” o orgasmo.100 Ele sabia que o clitóris é o
órgão sexual ativo da mulher e que pode produzir o orgasmo feminino sem
penetração vaginal. Mas em sua preocupação com a sexualidade masculina, ele
definiu as mulheres como homens incompletos ou castrados, o clitóris como
um pênis pequeno e a tentativa das mulheres de mudar seu papel subordinado
na sociedade como resultado da inveja do pênis.
Os acadêmicos fariam bem em ter uma visão muito crítica dessas teorias
antes de adotá-las como seu quadro teórico, porque elas implicam que tanto a
sexualidade masculina quanto a feminina são apenas biologicamente determi-
nadas. Essas teorias não explicam por que certas partes dos corpos masculino
e feminino receberam destaque em um determinado momento da história
e outras não. Foi preciso, por exemplo, que o movimento feminista surgisse
no Ocidente para que o clitóris fosse redescoberto como um órgão sexual
feminino independente. Em muitas partes da África, o clitóris é removido por
circuncisão quando as meninas têm entre nove e doze anos de idade. Mas as
mulheres na Europa e em outras partes do mundo também foram psicolo-
gicamente circuncidadas para que não conhecessem mais seus corpos e não
soubessem o que era um orgasmo.
Não se pode falar dos homens sem falar das mulheres. A ideologia do
estupro e da sexualidade masculina criticada acima teve suas características
complementares nos autoconceitos das mulheres em todo o mundo.

100 Embora a teoria de Freud sobre o orgasmo vaginal seja equivocada, tampouco é correta
a informação de que a vagina não possui terminações nervosas. A vagina possui um número
limitado de terminações nervosas, o que é considerado importante para ajudar as mulheres a
lidar com a dor do parto. [N. das T.]
MARI A MI ES 305

Nenhum agressor consegue manter um controle permanente sobre a víti-


ma que conquistou e subordinou se ela não for obrigada a aceitar a situação
como algo imposto pela natureza ou, o que dá no mesmo, como algo dado
por Deus. Os inventores da ideologia patriarcal sobre os homens também
inventaram uma ideologia pertinente sobre as mulheres. É a ideologia da
vítima eterna, a ideologia do autossacrifício (na versão ocidental moderna, é
a ideologia do masoquismo feminino). A religião hindu e a crença popular
idealizam a mulher que se autossacrifica no papel da mãe e da Pativrata.101
A mulher não tem identidade própria, ela nasce para servir os outros, prin-
cipalmente o marido e os filhos. Ela não tem autonomia sobre sua própria
vida, seu próprio corpo, sua sexualidade. Ela é um meio, um objeto, não um
sujeito. As figuras de Sati, Sita e outras mulheres da religião hindu que se au-
tossacrificam são promovidas como modelos para meninas, mesmo hoje em
dia. Elas são amplamente popularizadas por livros didáticos, filmes e romances.
Não surpreende que as vítimas de estupro, em vez de revidar ou se defender,
cometam suicídio porque sua “honra” de “boa” mulher foi destruída. Na au-
topercepção da maioria das mulheres, há o sentimento de que elas são fracas,
de que precisam de proteção masculina, de que não podem ou não devem
revidar; a “autoimolação”, seja de facto ou simbolicamente, é o ato pelo qual
elas tentam recuperar a humanidade.
Como no caso dos homens, as mulheres, em geral, não reconhecem que
estão reafirmando a ideologia dos estupradores ao se agarrarem ao ideal de
feminilidade como autossacrifício. Os homens, particularmente aqueles que
ganham dinheiro propagando essa ideologia da mulher fraca, colocam cinica-
mente a culpa nas mulheres, tal qual o cineasta Dinesh Thakur, que disse em
uma discussão sobre estupro: “Por que as mulheres glamourizam e idolatram
uma mulher que faz sacrifícios?” (The Times of India, 15 de junho de 1980).
Mas ele nega que, mostrando cenas de estupro e de mulheres que se autos-
sacrificam em seus filmes, contribua para essa ideologia em nome do lucro.
Trata-se de outro caso clássico em que se coloca a culpa na vítima enquanto
se lucra com as atitudes criticadas. Não é suficiente dizer que as mulheres
querem ser vítimas e idolatram o autossacrifício. É preciso dizer que essa ideo-

101 A Pativrata – esposa que venera seu marido e faz sacrifícios a ele como seu primeiro deus
– é o ideal de feminilidade nas escrituras hindus clássicas (cf. Mies, 1980).
306 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

logia foi inventada e é mantida pelo interesse dos homens que exercem poder
sobre as mulheres. Mas, o que é mais importante, essa ideologia é resultado de
milhares de anos de violência direta e estrutural contra as mulheres, praticada
pela primeira vez em algumas sociedades patriarcais, mas universalizada hoje
pelo capitalismo. As pessoas que são constante e diretamente oprimidas – e as
mulheres não têm autonomia sobre suas vidas nem mesmo hoje em dia – não
têm outra escolha psicológica a não ser interpretar o que se veem forçadas
a fazer como algo voluntário, se não quiserem perder todo o respeito por si
mesmas como seres humanos. Essa é a razão mais profunda pela qual as mu-
lheres também compartilham da ideologia de seus opressores e concordam
com a noção de que sua “honra”, a honra de sua família, é violada quando
são estupradas. Essa é a razão pela qual a mãe de Maya Tyagi foi capaz de dizer
que desejava que sua filha estivesse morta porque, como resultado do estupro,
ela havia diminuído a honra de sua família. Enquanto as próprias vítimas de
estupro, suas mães e irmãs acreditarem nesse conceito de “honra” e prezarem
mais por ele do que pela autonomia de uma mulher sobre seu corpo e sua
vida, elas serão, tacitamente, cúmplices dos estupradores. Por isso, é importante
que grupos de mulheres, como o Stree Sangarsh em Delhi, ataquem a noção
de que o estupro é uma questão que “desonra” as mulheres, que “humilha”
as mulheres. Esse grupo afirma que: “Para nós, o estupro é um ato de ódio e
desprezo – é uma negação de nós mesmas como mulheres, como seres huma-
nos –, é a afirmação final do poder masculino”.102

102 O seguinte panfleto foi criado pelo grupo feminista Stree Sangarsh em Delhi em 8 de
março de 1980:

“Havia mais estupros sob o governo do Partido Janata ou o do Congresso Nacional


Indiano (Cong-I)?”
A questão não é essa!
O incidente de Baghpat desencadeou o estranho fenômeno de políticos de diversas vertentes
se desesperando para “proteger a honra das mulheres”. O Parlamento ecoa seus apelos estri-
dentes para açoitar, apedrejar e enforcar estupradores. O mesmo Charan Singh, sob cuja admi-
nistração foram emitidas circulares proibindo mulheres funcionárias do Serviço Administrativo
Indiano de servir em seu estado, hoje orgulha-se de “combater” as atrocidades cometidas con-
tra as mulheres. O Partido Janata [Bharatiya Janata Party – BJP], que silenciou os incidentes de
estupro em massa em Santhal Parganas, hoje condena a “humilhação” das mulheres. Ouvimos
Raj Narian dizer que uma “onda de estupros” varreu o país desde que a Sra. Gandhi chegou
ao poder, exigindo sua renúncia.
Ele se esqueceu de Narianpura? E de Basti?
MARI A MI ES 307

Se os homens fossem estupradores por natureza, não deveríamos estar tes-


temunhando um aumento dos casos de estupro na Índia e no resto do mundo.
A questão mais urgente para homens e mulheres hoje é entender as razões desse
aumento da violência sexual. Quais são os fatores que contribuem para isso?
Como o conceito de homem-caçador não oferece explicação para esse aumen-
to, deve haver motivos que não estão na natureza masculina, em sua infraestrutu-
ra genética, mas que são sociais, econômicos e históricos – como sempre foram.

Para o Cong-I, é óbvio, toda essa conversa sobre estupro inflou a questão de forma despropor-
cional – a história deles não registra os incidentes de Telengana, Bailadila, os estupros na greve
ferroviária de 1974... o incidente de Goonda...
Estupro não é apenas uma questão de honra
O vocabulário dos políticos indianos sempre foi limitado. Do BJP ao Cong-I, os termos-chave,
em seu som e fúria, são “honra e humilhação”. Dizem que a “desonra das mulheres” é a “de-
sonra do nosso país” – dizem que a “honra de nossas mulheres é a honra do nosso país”. No
entanto, é neste país que as mulheres são forçadas à prostituição, vendidas como mão de obra
escrava, mortas por dote e estupradas por seus maridos, cunhados e sogros. Recentemente, um
homem cometeu suicídio porque sua esposa havia sido estuprada. Há dois meses, uma mulher
se matou em vez de contar ao marido que havia sido estuprada. Famílias expulsaram irmãs,
filhas e noras por terem sido estupradas. Como alguém pode tirar sua honra se você mesma não
cometeu nenhum crime? É neste país que o próprio Estado permite que estupros em massa se-
jam praticados por sua polícia, pela Força Policial Central de Reserva [Central Reserve Police
Force – CRPF] e pela Força de Segurança das Fronteiras [Border Security Force – BSF]. Se
essas são ações honrosas, então nós cuspimos na honra.
Para nós, o estupro é um ato de ódio e desprezo – é uma negação de nós mesmas como mu-
lheres, como seres humanos – é a afirmação final do poder masculino.
Estupro não é um problema de lei e ordem
A oposição diz que a situação da lei e da ordem piorou sob o governo do Cong-I. O Cong-I
diz que “maus elementos” estão usando o estupro para “desmoralizar a polícia”. Ambos con-
cordam que é um problema político partidário. Ambos dão a entender que podem resolver o
problema do estupro policial.
No entanto, para as mulheres de Bailadila e de Santhal Parganas, para Rameeza Bee, Mathura
e Maya Tyagi, não se trata de uma questão de quem está no poder – o Cong-I ou o Janata.
Para elas, a imagem de um policial evoca medo, intimidação e violência sexual. A autoridade
que um homem adquire quando coloca um uniforme da polícia/da CRPF/da BSF e pega
seu lathi/arma permite que ele bata, torture e estupre. É uma autoridade dada pelo Estado, e as
armas de sua autoridade são a tortura, o incêndio criminoso e o estupro, na maioria dos casos.
É o defensor da lei e da ordem que comete estupro em casas da classe trabalhadora e aldeias
camponesas, lei e ordem correspondem a atrocidades policiais.
Por décadas, nossa história repetiu essa verdade sem cessar – não podemos combatê-la fingindo,
como os políticos fazem, que isso é mentira. Se hoje permitirmos que eles transformem nossa
verdade em sua mentira, perderemos os poucos ganhos pelos quais lutamos em 8 de março.
STREB SANGARSH
New Age Printing Press, Rani Jhansi Road, Nova Delhi-55.
308 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O que testemunhamos hoje é uma brutalização geral da vida, uma luta


impiedosa dos fortes contra os fracos, dos ricos contra os pobres, dos homens
contra as mulheres. Essa, claro, é a manifestação das contradições de uma so-
ciedade cujo conceito de homem é baseado no modelo do homem-caçador
e em uma relação predatória e dominadora entre homem e natureza, um
conceito que, como vimos, surgiu com o capitalismo. Mas por que essas con-
tradições se manifestam mais agora do que antes? A violência sexual sempre
foi parte integrante da relação patriarcal homem-mulher. Por que, então, as
mortes por dote estão aumentando? Por que os estupros estão aumentando?
Por que os assim chamados setores avançados da sociedade – a classe média
urbana – são afetados por essas contradições?
O que parece estar acontecendo é o seguinte: os tradicionais limites e
controles da moral patriarcal repressiva estão desmoronando na Índia e em
outros países do Terceiro Mundo, mas não por meio da liberalização da mo-
ralidade sexual, e sim pela maneira peculiar pela qual o capitalismo penetra
nessas sociedades. A ruptura da moralidade tradicional é mais rápida nas
classes que ganharam muito dinheiro nos últimos anos. Os homens dessas
classes “libertam” a si mesmos de muitos limites e obrigações que antes ti-
nham em relação às mulheres das classes mais baixas e de sua própria classe.
Eles imitam os Homens Grandes Brancos do Ocidente, que são seu modelo
de homem moderno. É por isso que adotam o modo ocidental de se vestir,
viajam ao exterior para continuar sua educação, aceitam a ciência ocidental,
importam filmes pornográficos, mas não querem que “suas” mulheres se
emancipem. O capitalismo dá a eles os meios para ascender e compartilhar
da nova cultura internacional (masculina), mas querem que suas mulheres
continuem sendo as depositárias do que consideram ser sua cultura “tradi-
cional”. As mulheres devem continuar a seguir os ideais “tradicionais” de
feminilidade.
A contradição entre uma cultura masculina cada vez mais internacional de
homens da classe média educada em países subdesenvolvidos e o afã com que
preservam a chamada cultura tradicional de suas mulheres como o principal
símbolo de sua identidade nacional está levando a uma crescente polarização
entre homens e mulheres nesses países. O exemplo mais conhecido é o Irã e
o fundamentalismo muçulmano. As mulheres iranianas são obrigadas a usar
o véu, mas os homens não voltam às suas vestes tradicionais.
MARI A MI ES 309

A essa dimensão da relação dos homens dos países colonizados com os ho-
mens dos países colonizadores gostaria de chamar de “síndrome dos Homens
Grandes-homens pequenos”. Os homens pequenos imitam os Homens
Grandes. Aqueles que têm dinheiro podem comprar todas as coisas que os
Homens Grandes possuem, inclusive mulheres. Aqueles que não têm dinheiro
suficiente ainda têm os mesmos sonhos.
É nessa contradição que a indústria cinematográfica indiana prospera. Os
homens são retratados como heróis modernos, na moda e ocidentalizados,
enquanto as mulheres representam a Índia tradicional. E, embora os censores
não permitam cenas de beijos, sempre tem de haver uma cena de estupro
nesses filmes.
A manutenção dessa contradição não é apenas uma questão moral, mas
está intimamente relacionada com o modo específico de desenvolvimento
capitalista na Índia. O cinema e o sexo são indústrias em expansão no país.
O excedente gerado pela exploração da mão de obra rural, por exemplo, nas
áreas da Revolução Verde, não é investido produtivamente para dar trabalho
e melhores salários às pessoas; é, em vez disso, exportado para as cidades e
investido nos cinemas, as fábricas de sonhos e ilusões (Mies, 1982). Há uma
conexão evidente entre os interesses de lucro da classe capitalista e a propa-
gação da violência sexual e do estupro nos filmes. Os “homens pequenos”,
que não têm empregos e oportunidades e que não irão para o estrangeiro
como os heróis do cinema, e os homens ricos das áreas urbanas são o público
principal desses filmes e geram muito lucro para os Homens Grandes. Para
compensar todas as suas frustrações na vida real, os cineastas mostram a eles
uma cena de estupro para que possam se identificar com o agressor, de uma
maneira que não coloque em risco a dominação de classe. Como alvos de
suas tendências agressivas, oferecem as mulheres, e não os Homens Grandes.
No entanto, quando analisamos concretamente os relatórios sobre casos de
estupro na Índia, encontramos muito pouco ou nada sobre a necessidade
de satisfazer um desejo sexual irresistível. Se algum “impulso” aparece nessas
cenas, é o desejo de humilhar, estuprar, torturar, para mostrar que o homem
é o senhor. Verificamos que o estupro é, em muitos casos, usado como ins-
trumento de uma classe de homens para punir ou humilhar outra classe de
homens. Isso fica ainda mais manifesto em muitos casos de estupro que estão
ocorrendo em áreas rurais. Sempre que camponeses pobres e trabalhadores
310 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

rurais tentam obter seus direitos legais, como o salário mínimo ou a terra que
lhes foi prometida, “eles aprendem uma lição”, são “colocados em seu lugar”.
E isso envolve, invariavelmente, estuprar suas mulheres. Por quê? Qual é a
conexão entre o estupro de algumas mulheres e as reivindicações por terras
de seus homens? Isso mostra nitidamente a ligação, na mente das classes domi-
nantes, entre o controle sobre os meios de produção (terras) e o controle dos
trabalhadores sobre as mulheres. Se as pessoas exigem terras, são punidas com
o estupro das mulheres de sua classe. O estupro é, portanto, um instrumento
para a manutenção tanto das relações de classe quanto das relações existentes
entre homens e mulheres. A luta que ocorre é entre Homens Grandes e ho-
mens pequenos, e as mulheres são usadas nessa luta como objetos para provar
a masculinidade dos Homens Grandes, para demonstrar seu poder. Esse poder
não consiste apenas em dinheiro ou no controle sobre um maior número de
propriedades, mas é também decorrente do controle das armas e do uso da
violência direta. Isso se torna particularmente evidente no caso dos estupros
cometidos por policiais ou militares. O poder da polícia não está no dinheiro
nem na propriedade, mas a polícia tem armas. E o controle sobre as armas lhes
dá a chance de imitar os Homens Grandes. Nos últimos anos, a polícia indiana
tem sido tão frequentemente dirigida contra o povo, contra os fracos e para
a proteção dos economicamente fortes que, é claro, ela simplesmente toma
o que pode graças às suas armas. Não creio que se possa dizer que policiais
estupram porque desejam satisfação sexual. O estupro e a tortura sexual têm
sido usados com tanta frequência pela polícia que, muito provavelmente, os
motivos sádicos são mais fortes do que a necessidade de satisfazer seus desejos
sexuais. Os estupros policiais são talvez a manifestação mais clara do resultado
de um sistema patriarcal basicamente repressivo. Aqueles que deveriam manter
a lei e a ordem burguesa estão de fato acima de qualquer lei porque contro-
lam as armas. Pedir mais policiais, mesmo que sejam mulheres, para verificar
o aumento dos estupros é, portanto, contraproducente. Os estupros policiais
também mostram a interconexão entre o objetivo econômico de “enriquecer
rapidamente” por meio do uso da violência direta e da chantagem e a violên-
cia contra as mulheres.
MARI A MI ES 311

CONCLUSÃO

A discussão sobre a violência contra as mulheres se concentrou princi-


palmente na situação na Índia, com a qual estou mais familiarizada. Mas não
seria difícil encontrar outros exemplos de violência direta e estrutural como
parte integrante das relações de sexo e classe, bem como da divisão inter-
nacional do trabalho. O movimento feminista ocidental, desde o seu início,
vem destacando esse aspecto nos países capitalistas “avançados”. O debate
sobre a clitoridectomia e sua modernização na África revelou outra dimen-
são da violência contra as mulheres (Hosken, 1980; Dualeh Abdalla, 1982).
O almanaque Women in Russia103, produzido como um samizdat104 por um
grupo de feministas na União Soviética, dá provas da brutalização da relação
homem-mulher também na pátria da revolução socialista. E os relatórios que
surgiram recentemente na China sobre o feticídio feminino e as tendências
antimulheres na esteira das políticas de controle da população do Estado são
provas do fato de que as políticas de “modernização” andam lado a lado com
as tendências neopatriarcais, mesmo em um país socialista.
A violência contra as mulheres parece ser, portanto, o principal denomi-
nador comum que sintetiza a exploração e a opressão das mulheres, inde-
pendentemente de sua classe, nação, casta, raça e de se vivem sob um sistema
capitalista ou socialista, no Terceiro ou no Primeiro Mundo.
Se esse é o caso, quais conclusões teóricas e práticas devemos tirar desse
reconhecimento? Após a discussão acima, estamos agora em uma posição me-
lhor para responder à pergunta de se a violência e a coerção são necessariamente
parte de todas as relações de produção nas quais as mulheres estão envolvidas
ou se são periféricas a elas.
A partir de nossa discussão, deve ficar evidente que a violência contra as
mulheres não pode ser explicada adequadamente por argumentos econo-
micistas estreitos, basicamente inerentes aos cálculos capitalistas de oferta e

103 Esse almanaque, Women in Russia, foi o primeiro documento feminista que deu infor-
mações sobre a situação da relação homem-mulher na União Soviética. Ele, na na verdade,
era o grito de raiva, amargura e nojo das mulheres pela indiferença e brutalidade das relações
patriarcais (Women in Russia, 1980).

104 Autopublicação clandestina utilizada por dissidentes na União Soviética para driblar a
censura. [N. das T.]
312 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

demanda, nem por argumentos biológicos sobre uma “natureza” masculina


inerentemente sádica.
Todos os nossos exemplos explicitam o fato de que a violência contra
as mulheres é um fenômeno produzido historicamente e que está intima-
mente relacionado com relações exploradoras homem-mulher, de classe e
internacionais. Todas essas relações estão hoje mais ou menos integradas em
sistemas de acumulação. Esses sistemas de acumulação podem ser capitalis-
tas (orientados para o mercado) ou socialistas (centralmente planificados).
Independentemente de suas diferenças ideológicas, a acumulação de capital
em ambos os sistemas se baseia na expropriação dos produtores de subsistência
de seus meios de produção. Nos centros das economias de mercado capitalis-
tas, os homens expropriados foram transformados na nova classe de assalariados
“livres”, que não possuem nada além de sua força de trabalho. Mas como
proprietários de sua força de trabalho, eles pertencem formalmente à categoria
de cidadãos burgueses “livres”, que são definidos como aqueles que possuem
propriedade e que podem, assim, estabelecer relações contratuais entre si com
base no princípio da troca de equivalentes. Portanto, os homens proletários
podiam ser vistos como sujeitos históricos, como pessoas livres, também pelos
teóricos de uma transformação socialista.
As mulheres, entretanto, nunca foram definidas como sujeitos históricos
livres no sentido burguês. Nem as mulheres da classe dos proprietários dos
meios de produção, nem as mulheres da classe dos proletários eram donas de
sua própria pessoa. Elas próprias, toda sua pessoa, seu trabalho, sua afetividade,
seus filhos, seu corpo, sua sexualidade não eram seus, mas pertenciam a seus
maridos. Elas eram propriedade; portanto, seguindo a lógica formal do capita-
lismo, elas não poderiam ser donas de propriedade. Se não estão formalmente
incluídas na categoria de proprietárias – tal qual os proletários do sexo mascu-
lino, no sentido de serem proprietários de sua força de trabalho, de seus corpos
–, elas também não podem se tornar cidadãs “livres”, ou sujeitos históricos.
Isso significa que as liberdades civis da revolução burguesa não foram feitas
para elas. Essa, na minha opinião, é a razão mais profunda pela qual o direito
ao voto foi concedido tão tarde às mulheres e por que o estupro no casamento
não é considerado crime.
Se as mulheres, de acordo com a lógica burguesa, não podem ser sujei-
tos livres porque são propriedade, e não possuidoras de propriedade, ou seja,
MARI A MI ES 313

objetos em si mesmas, então também não é possível estabelecer um contrato


com elas, tal como é possível com o proletário “livre”, que é, pelo menos for-
malmente, dono de sua força de trabalho, a qual pode vender a quem quiser.
O contrato de trabalho entre capitalista e proletário é baseado no pressuposto
de que dois sujeitos livres entram em uma relação de troca de equivalentes.Tal
contrato não é possível com as mulheres. Se alguém quiser extrair delas qual-
quer coisa em termos de trabalho ou serviços, é necessário aplicar a violência
e a coerção porque, embora as mulheres não sejam definidas como sujeitos
livres, elas têm, ainda assim, sua própria vontade, que deve ser subordinada pela
força à vontade dos sujeitos “livres” da sociedade civilizada, os homens, bem
como às leis da acumulação de capital.
Essa subordinação violenta das mulheres aos homens e ao processo de acu-
mulação de capital foi representada pela primeira vez em grande escala duran-
te a caça às bruxas na Europa. Desde então, constituiu a infraestrutura sobre a
qual as chamadas relações de produção capitalistas puderam ser estabelecidas,
ou seja, a relação contratual entre os proprietários da força de trabalho e os
proprietários dos meios de produção. Sem essa infraestrutura de trabalho não
livre e coagido, feminino ou colonial no sentido mais amplo, as relações de
trabalho não coagidas e contratuais dos proletários livres não seriam possíveis.
Tanto as mulheres quanto os povos coloniais foram definidos como proprie-
dade, como natureza, não como sujeitos livres, que podiam estabelecer con-
tratos. Ambos tiveram de ser subordinados pela força e pela violência direta.
Economicamente, essa violência é necessária sempre que as pessoas ainda
têm algum acesso aos meios de produção. Por exemplo, os camponeses não
começam a produzir mercadorias para o mercado externo voluntariamente.
Primeiro precisam ser forçados a produzir bens que eles próprios não conso-
mem. Ou são expulsos à força de seus campos, ou tribos são expulsas à força
de seus territórios e reassentadas em aldeias estratégicas.
O primeiro e último “meio de produção” das mulheres é seu próprio
corpo. O aumento mundial da violência contra as mulheres está basicamente
concentrado nesse “território”, sobre o qual os Homens Grandes ainda não
conseguiram estabelecer seu domínio firme e duradouro. Esse domínio não
se baseia apenas em considerações econômicas estreitamente definidas, em-
bora elas desempenhem um papel importante, mas os motivos econômicos
estão intrinsecamente entrelaçados com os políticos, com questões de poder e
314 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

controle. Sem violência e coerção, nem os homens modernos nem os Estados


modernos seriam capazes de seguir seu modelo de progresso e desenvolvi-
mento baseado no domínio sobre a natureza.
Nas economias de mercado capitalistas, a violência contra as mulheres
pode, portanto, ser explicada pela necessidade de uma “acumulação primitiva
permanente” que, de acordo com Andre Gunder Frank (1978), constitui a
pré-condição para o chamado processo de acumulação “capitalista”. Em um
país do Terceiro Mundo como a Índia, são poucas as pessoas que se tornaram
sujeitos “livres” no sentido descrito acima. O fato de os direitos civis estarem
consagrados na Constituição indiana não afeta as relações de produção de fac-
to, as quais são, em grande medida, baseadas na violência e na coerção.Vimos
que a violência contra as mulheres como elemento intrínseco da “acumulação
primitiva permanente de capital” constitui o método mais rápido e “produ-
tivo” para um homem que deseja ingressar na irmandade dos sujeitos “livres”
possuidores de propriedade privada.
A violência contra as mulheres e a extração do trabalho feminino por
meio de relações de trabalho coercitivas são, portanto, parte integrante do
capitalismo. Elas são necessárias para o processo de acumulação capitalista, e
não periféricas a ele. Em outras palavras, o capitalismo tem de usar, fortalecer
e mesmo inventar as relações patriarcais homem-mulher se quiser manter seu
modelo de acumulação. Se todas as mulheres do mundo tivessem se tornado
assalariadas “livres”, sujeitos “livres”, a extração de excedente seria, para dizer
o mínimo, severamente prejudicada. É isso que as donas de casa, as trabalhado-
ras, as camponesas e as prostitutas de países do Terceiro e do Primeiro Mundo
têm em comum.
6
LIBERTAÇÃO
NACIONAL E
LIBERTAÇÃO DAS
MULHERES
QUANDO APONTO a necessária inter-relação entre o desenvolvimento ca-
pitalista e a exploração e opressão das mulheres, analisada nos capítulos an-
teriores, muitas vezes me perguntam: mas e o socialismo? Dependendo da
orientação política de quem pergunta, ou o socialismo é visto como a solução
para a “questão das mulheres” ou os países socialistas “realmente existentes”
são criticados porque neles as mulheres também parecem estar longe de ser
libertadas das relações patriarcais entre homens e mulheres.
Para muitas mulheres do Terceiro Mundo, a questão da libertação das mu-
lheres estava – e está – intimamente ligada à questão da libertação nacional
da dependência colonial e/ou neocolonial e à perspectiva de construir uma
sociedade socialista. Até mesmo muitas feministas no Ocidente viam com
grande esperança a combinação de uma luta anti-imperialista com uma luta
antipatriarcal, pelo menos no início dos anos 1970. Como aconteceu com o
movimento estudantil, também grandes setores do movimento feminista no
Ocidente esperavam que o verdadeiro avanço feminista viesse dos movimen-
tos de mulheres nos países do Terceiro Mundo que estavam travando uma luta
de libertação anti-imperialista.
Lembro-me de um pôster pendurado acima de minha mesa durante a
guerra do Vietnã. Sobre um fundo vermelho, havia três mulheres com armas
nas mãos. Abaixo delas estava escrito: “Camboja, Laos,Vietnã.Vitória!” As mu-
lheres simbolizavam as lutas de libertação nacional desses povos.Todas e todos
conhecemos cartazes como esses; eles são vendidos em encontros solidários
de movimentos de libertação nacional na Ásia, África e América Latina. A
mulher com a arma em uma mão e um bebê nas costas é a imagem padrão
que simboliza a unidade entre a libertação nacional e a libertação das mulhe-
res. Por muitos anos, muitas de nós fomos inspiradas por essa imagem, sem
318 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

questionar por que os movimentos de libertação nacional sempre escolhem


as mulheres para simbolizar uma nação livre, ou se de fato havia essa conexão
supostamente lógica entre a libertação nacional e a libertação das mulheres.
Hoje, esses cartazes evocam em mim um sentimento de tristeza. Se per-
guntarmos o que aconteceu com a libertação das mulheres após a vitória em
alguma das guerras de libertação nacional, seremos confrontadas por evidên-
cias crescentes da persistência – ou mesmo de uma renovada introdução – de
atitudes e instituições sexistas e patriarcais nesses países (Rowbotham, 1974;
Weinbaum, 1976; Urdang, 1979; Reddock, 1982). Relatórios recentes sobre
o infanticídio e o feticídio feminino na China, assim como sobre a campanha
lançada pelo governo do Zimbábue contra as prostitutas, destruíram a ilusão
de que haveria um caminho direto da libertação nacional para a libertação
das mulheres.
Diante desses acontecimentos, algumas feministas ocidentais que se inspi-
raram na participação das mulheres nas lutas de libertação na Ásia, América
Latina ou África agora evitam perguntar por que a libertação das mulheres
não veio depois da libertação nacional. Elas abandonam sua antiga orientação
internacionalista com o argumento de que nós, feministas ocidentais, não
temos o direito de criticar esses países, que não sabemos o suficiente sobre o
que está acontecendo lá, que, cultural e historicamente, essas sociedades são
tão diferentes das sociedades ocidentais que nossa crítica representaria mais
uma manifestação de paternalismo ou imperialismo cultural eurocêntrico.
Como muitas têm medo de ser acusadas de “racismo feminista” por homens
e mulheres do Terceiro Mundo, elas preferem evitar por completo a questão e
se concentrar no que está acontecendo em sua própria sociedade. Outras, que
ainda são ativas em grupos solidários e que acreditam em algum tipo de in-
ternacionalismo socialista, frequentemente argumentam que as mulheres nos
países socialistas deram grandes passos para sua libertação, que a emancipação
não é alcançada de uma só vez, que essas sociedades estão em uma fase de
transição do capitalismo/imperialismo para o socialismo/comunismo e que
estão, em todo caso, mais bem preparadas para trazer total libertação para as
mulheres do que as sociedades capitalistas.
Acredito que nenhuma das duas posições seja muito útil para aprofundar
nossa compreensão sobre o que está acontecendo no mundo ou para fo-
mentar a libertação das mulheres. Além disso, os acontecimentos nos Estados
MARI A MI ES 319

Unidos e na Europa forçam as feministas ocidentais a desenvolver um posicio-


namento um pouco mais profundo sobre a relação entre a libertação nacional
e a libertação das mulheres porque, atualmente, as mulheres estão novamente
sendo lembradas em muitos países ocidentais de seus “deveres nacionais” de
gerar filhos para “a raça e a nação” (Women and Fascism Study Group, 1982)
e/ou de estar dispostas a entrar para as forças militares para a defesa da pátria,
como está acontecendo na Alemanha Ocidental hoje. Além disso, essas políti-
cas se baseiam no pressuposto de que os interesses das mulheres são idênticos
aos interesses nacionais. E há até algumas feministas que acreditam que a par-
ticipação das mulheres no serviço militar poderia aumentar a igualdade entre
homens e mulheres.105
A maioria das feministas europeias, no entanto, não acredita nessa igual-
dade criada pela “irmandade nas armas”. Muitas aderiram ao movimento
de paz nos anos de 1982 e 1983 porque sentiram que a ameaça de um ho-
locausto atômico, provocado pelo posicionamento de mísseis de cruzeiro e
mísseis balísticos SS 20 e Pershing II pelas duas superpotências, era a causa
imediata a combater. Mas, dentro do movimento pacifista, as feministas tam-
pouco podiam escapar da questão da libertação nacional e da libertação das
mulheres. Muitas delas eram absolutamente contrárias ao uso de armas, às
vezes com base numa hipótese mais ou menos implícita de que as mulheres,
devido à sua capacidade de dar vida, não poderiam também estar do lado
daqueles que destroem a vida. Essa também tem sido basicamente a posição
do movimento das mulheres de esquerda pela paz e das organizações que o
sucederam.106

105 Durante o II Congresso Interdisciplinar de Estudos das Mulheres em 1984, em Groningen


(Holanda), ocorreram várias oficinas sobre “Mulheres nas Forças Armadas”. Em algumas delas,
a participação das mulheres nas forças armadas foi discutida como forma de “empoderar” as
mulheres e alcançar a igualdade com os homens. Além disso, na Alemanha Ocidental, femi-
nistas conhecidas, como Alice Schwarzer, tinham uma posição um tanto ambivalente sobre a
questão de se as mulheres deveriam ser recrutadas para o exército. O argumento dessas femi-
nistas geralmente é que elas são, em princípio, contra a guerra e o exército, mas, “enquanto
as coisas estiverem como estão”, as mulheres também poderiam se alistar no exército como
iguais aos homens.

106 Essa noção de que as mulheres são pacifistas “por natureza” se reflete em muitas publi-
cações do movimento das mulheres pela paz, inclusive nos países socialistas. Essa também é a
premissa básica do, de resto, excelente estudo de 1915 sobre “Militarismo versus Feminismo”,
mencionado anteriormente.
320 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mas essas mulheres enfrentam um dilema quando se trata da questão da


participação das mulheres nas lutas de libertação nacional. Muitas reconhe-
cem a necessidade de uma luta anti-imperialista e, às vezes, também apoiam
os movimentos de libertação nacional. Mas elas não sabem como equilibrar
sua concepção implícita ou explícita de uma “natureza” feminina basicamen-
te pacifista ou não violenta com a realidade de que todos os movimentos de
libertação nacional também estão atraindo as mulheres para a luta armada. Se
a imagem da mulher com o bebê e a arma não tem significado positivo para
elas em sua própria situação, como podem então apoiá-la no caso das mulhe-
res em lutas de libertação nacional? Ou basta dizer que há uma diferença bá-
sica entre uma guerra em que uma nação ou um povo luta por sua libertação
contra a dependência imperialista e colonial e uma guerra interimperialista?
As mulheres do Terceiro Mundo envolvidas em lutas de libertação ou na
construção de uma nação após essas lutas podem achar esses dilemas morais
das feministas ocidentais um luxo que elas talvez não tenham tempo de se
permitir. Mas, cedo ou tarde, nem mesmo elas conseguem fugir da questão, a
não ser que deliberadamente fechem os olhos para a realidade. Esse momento
chegará quando elas tiverem de se perguntar se foi por este Estado ou socie-
dade que seus irmãos morreram, como a mulher detida pela política em uma
batida antiprostituição no ano passado, no Zimbábue (Sunday Mail, Harare,
27 de novembro de 1983).107
A relação entre libertação nacional e libertação das mulheres está longe de
ser evidente, não só para feministas de países imperialistas, mas também para
feministas de colônias e ex-colônias. No entanto, resolver essa questão é hoje
mais necessário do que nunca, uma vez que não apenas mulheres de economias
de mercado superdesenvolvidas e subdesenvolvidas estão ligadas umas às outras

107 Isto é o que essa mulher escreveu quando foi presa:


“Eu cultivava alimentos e cuidava do gado do meu pai em Chibi quando tinha 15 anos, e não
preciso de um homem, policial ou não, para me dizer o que fazer. Estas são a independência e
a liberdade pelas quais meus dois irmãos morreram lutando no mato e meu irmão mais velho
perdeu a perna direita desde a altura do quadril?
Não precisamos de comitês que perdem tempo perguntando por que existe prostituição.Todos
sabemos por quê – porque meninas que não tiveram educação não conseguem encontrar tra-
balho e precisam de dinheiro para alimentar suas famílias na estação seca.
Não paguem mais funcionários públicos para desperdiçar o tempo e o dinheiro de nossos
países. Deem emprego a essas meninas. Nenhuma mulher quer vender seu corpo para homens
estranhos” (Patricia A. C. Chamisa, Sunday Mail, Harare, 27 de novembro de 1983).
MARI A MI ES 321

e integradas ao mercado mundial pela divisão internacional do trabalho, mas


também as mulheres de economias socialistas centralmente planificadas. Uma
discussão a respeito da relação entre libertação nacional e libertação das mulhe-
res terá, portanto, de tomar conhecimento da divisão internacional do trabalho
existente e de sua relação com uma determinada divisão sexual do trabalho.
As questões a serem investigadas não são apenas quanto a se as mulheres,
após uma luta por libertação nacional, têm mais acesso ao poder político do
que antes, mas também se o objetivo socialista de uma sociedade sem classes
foi alcançado e se ocorreu a abolição de uma divisão sexual do trabalho ex-
ploratória e opressiva. Uma resposta a essas perguntas dependerá, em última
análise, do conceito de sociedade e do modelo de desenvolvimento que é
buscado durante e após essa luta de libertação nacional. Nisso, o conceito
de Estado-nação desempenha um papel importante, porque os Estados-nação
pós-libertação são os sujeitos políticos que determinam o destino vindouro
dos povos, assim como o das mulheres.
Antes de entrarmos nessa discussão, pode ser útil observar brevemente al-
guns dos Estados socialistas pós-libertação e perguntar o que aconteceu com a
libertação das mulheres depois da vitória. Essa análise não pode pretender ser
exaustiva e fazer justiça à complexa realidade histórica que emergiu durante e
após as guerras de libertação e/ou revolução nesses Estados.Vou me concen-
trar apenas em algumas sociedades que seguiram uma perspectiva socialista e
combinaram a transformação das relações de produção da propriedade privada
para a propriedade coletiva ou estatal com a afirmação de que isso levaria à
emancipação das mulheres do domínio masculino “feudal” ou patriarcal. As
mais proeminentes são a União Soviética, que forneceu o modelo inicial de
uma sociedade socialista, a China e o Vietnã. Os desenvolvimentos em outros
países socialistas que passaram por lutas de libertação nacional, como Iugoslávia,
Cuba, Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Argélia etc., apresentam variações
dos padrões observados nos três casos mencionados acima, mas também há se-
melhanças fundamentais quanto à estratégia de libertação das mulheres porque,
em todos esses Estados, a estratégia adotada para libertação das mulheres foi/é
baseada nos fundamentos teóricos desenvolvidos por Marx e Engels.
Os fundamentos teóricos para a suposta inter-relação entre as lutas de
libertação das mulheres e as lutas de libertação nacional – e o consequen-
te estabelecimento de relações de produção socialistas – foram formulados
322 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

por Marx e, mais particularmente, por Engels, que enfatizou a necessidade


de “reentrada” das mulheres no “trabalho socialmente produtivo” como pré-
-condição para sua libertação das amarras patriarcais. Seguindo a economia
política burguesa, que define o trabalho doméstico como não produtivo e
privado (ver capítulo 2) e a esfera da produção de mercadoria e geração de
excedente como produtiva e pública, Engels via uma correlação direta entre
a participação das mulheres no trabalho assalariado e uma melhoria de sua
condição econômica, assim como de sua condição humana e política. Como
Marx e Engels consideravam o trabalhador assalariado “livre” como objeto da
história, as mulheres só podiam se tornar sujeitos históricos ao adentrar a força
de trabalho assalariada. August Bebel, Clara Zetkin e Lênin elaboraram uma
teoria da emancipação das mulheres pouco depois, mas não acrescentaram ne-
nhum elemento substancialmente novo. Onde os líderes das lutas de libertação
nacional revolucionária adotaram o socialismo científico, desenvolvido por
Marx, Engels e Lênin, como arcabouço teórico e estratégico, também incluí-
ram suas ideias sobre a libertação das mulheres em seu projeto revolucionário.
Os principais pontos estratégicos derivados dessa teoria geral podem ser
resumidos da seguinte forma:

- A “questão da mulher faz parte da questão social” (ou seja, da questão das
relações de produção, de propriedade e de classe) e será resolvida no curso
da derrubada do capitalismo.
- As mulheres têm, portanto, de entrar na produção social (ou seja, no traba-
lho remunerado fora do domicílio) para poder ganhar uma base material
para sua independência econômica e emancipação.
- Como o capitalismo eliminou as diferenças entre homens e mulheres,
porque todos são transformados em trabalhadores assalariados sem proprie-
dade (Zetkin), não há mais uma base material para a opressão das mulheres
entre os proletários e, portanto, não há necessidade de um movimento
especial de mulheres na classe trabalhadora.
- As mulheres da classe trabalhadora devem, portanto, participar da luta geral
contra o inimigo da classe, juntamente com seus companheiros de classe,
e, assim, criar a pré-condição para sua emancipação.
- As mulheres, como mulheres, podem ser oprimidas ou subordinadas, mas
não são exploradas. Se elas são trabalhadoras assalariadas, são exploradas
MARI A MI ES 323

da mesma forma que os trabalhadores do sexo masculino. Essa exploração


pode ser combatida, junto com os homens, na luta pela mudança das rela-
ções de produção (luta de classes).
- A luta contra sua opressão específica como mulheres tem de ocorrer em
um plano ideológico (por meio de ação jurídica, educação, propaganda,
exortação e persuasão), e não no nível das relações básicas de produção, em
que o problema da exploração é abordado.
- Essa luta é, em todo caso, secundária à luta de classes, que é primária.
Portanto, as mulheres não devem formar organizações separadas e autôno-
mas. Suas organizações devem estar sob a direção do partido (revolucioná-
rio). Organizações femininas separadas provocariam a divisão da unidade
da classe oprimida. Também produziria uma ênfase excessiva nas queixas
particulares das mulheres.
- Após uma mudança revolucionária nas relações básicas de produção e com
a entrada das mulheres na produção social ou no trabalho assalariado, deve
haver também uma coletivização (socialização) do trabalho doméstico pri-
vado e do cuidado das crianças. Isso permitirá que as mulheres participem
não apenas do trabalho assalariado, mas também da atividade política.
- No nível das relações homem-mulher ou da família, é preciso tomar me-
didas para que se alcance a verdadeira igualdade ou democracia entre ho-
mem e mulher. Isso é possível pela luta ideológica, uma vez que a família
perdeu seu significado econômico.

A seguir, farei um breve panorama de alguns dos principais países que


passaram por uma revolução ou por uma luta de libertação nacional e que
seguiram os princípios de libertação das mulheres supramencionados, combi-
nados a uma estratégia de desenvolvimento socialista. As principais questões
serão sobre se as mulheres, que na maioria dos casos participaram em grande
número das verdadeiras guerras de libertação, também foram capazes de con-
quistar a libertação das relações patriarcais.
Elisabeth Croll (1979) analisou as experiências de mulheres rurais na “pro-
dução e reprodução” em quatro países que passaram por uma transformação
socialista das relações de produção, alguns deles após um esforço revolucioná-
rio, em particular a União Soviética, China, Cuba e Tanzânia. Como suas con-
clusões são muito relevantes para nossa pergunta, vou resumi-las brevemente.
324 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Todos os quatro países criaram programas de coletivização no setor agrário


para transformar as relações de produção, passando da propriedade privada
da terra para formas socializadas de propriedade: fazendas estatais, comunas
e cooperativas. Esperava-se que essa coletivização libertaria as mulheres do
campo do controle patriarcal no âmbito doméstico, já que elas poderiam se
tornar membros individuais e assalariadas desses coletivos: “(...) seu trabalho
devia tornar-se visível, individualmente remunerado e fonte de independência
econômica” (Croll, 1979, p. 2). Mas, com exceção dessas unidades coletiviza-
das, todos os quatro países mantiveram, ou mesmo restabeleceram, como está
acontecendo na China hoje, a propriedade privada da terra.
Nos quatro países ocorreram grandes esforços para mobilizar as mulheres
para “entrar na produção social”, isto é, para participar da produção agrária
coletiva, porque, seguindo a teoria geral marxista sobre as mulheres, elas eram
vistas como donas de casa e, por isso, envolvidas na produção privada.
Na Rússia e na Tanzânia, entretanto, as mulheres sempre haviam participa-
do amplamente da produção agrícola. Na Tanzânia, elas constituem, de fato, a
principal força de trabalho agrícola. Na China, sua participação distinguia-se
entre o norte e o sul produtor de arroz. Enquanto as mulheres do norte quase
não trabalhavam no campo, as mulheres do sul, sim. Em Cuba, as mulheres
foram conduzidas em grandes números para o trabalho agrícola assalariado
apenas nos anos 1970.

MULHERES “NA ECONOMIA DUAL”

Hoje, nos quatro países, as mulheres não apenas participam amplamente


do setor agrícola coletivizado, como também são a principal força de trabalho
no setor privado ainda existente ou recriado.Vamos examinar os exemplos da
União Soviética, da China e do Vietnã como modelos ilustrativos.

UNIÃO SOVIÉTICA

Devido à sua política de rápido crescimento industrial, que deslocou mui-


tos homens da agricultura para os centros industriais urbanos, as mulheres
camponesas na União Soviética tiveram de carregar nas costas grande parte da
MARI A MI ES 325

produção agrícola. Elas compõem 56,7% da força de trabalho em fazendas co-


letivas, 41% em fazendas estatais, 65,2% em fazendas camponesas individuais e
90,7% em fazendas subsidiárias privadas (Dodge, 1966, 1967, 1971, citado por
Croll, 1979, p. 15-16). Entretanto, o número de dias por ano que as mulheres
têm de trabalhar em fazendas coletivas é menor do que o dos homens. Isso
acontece principalmente por sua participação no setor subsidiário privado,
que fornece entre 75% e 90% do alimento de subsistência para os domicílios
rurais. Ademais, são principalmente mulheres mais velhas que trabalham nesses
lotes privados. Assim, a força de trabalho feminina na agricultura na União
Soviética é dividida entre um setor informal de lotes privados com produ-
ção de subsistência e um setor formal de fazendas estatais coletivizadas. Elas
constituem a maior parte dos produtores de subsistência e ainda compõem
em torno de 50% da força de trabalho nas fazendas estatais. Além dessa dupla
jornada, elas são responsáveis por todo o trabalho doméstico. Os homens
geralmente não participam do trabalho doméstico na União Soviética, e a
socialização do trabalho doméstico na forma de creches, jardins de infân-
cia, refeitórios públicos etc. não foi adequadamente desenvolvida. Exceto por
um curto período de reformas e experiências radicais imediatamente após a
revolução de 1917, o fornecimento de serviços públicos não foi a principal
preocupação do governo. Creches e berçários continuaram amplamente con-
centrados nas cidades, onde 37% das crianças em idade pré-escolar vão a uma
creche ou a um berçário. Além disso, as poucas cantinas públicas que ainda
restam estão nas cidades.
Nas fazendas estatais, geralmente as mulheres executam as tarefas não espe-
cializadas e sem qualificação que requerem trabalho físico e não a utilização
de máquinas. Elas têm menos instrução e formação do que os homens e, por
isso, são menos numerosas nos trabalhos de gerência e supervisão. É raro que
elas sejam as encarregadas ou administradoras das fazendas, brigadas ou de-
partamentos de laticínios.
Devido à pesada carga de trabalho e à divisão sexual do trabalho domés-
tico inalterada, a participação política das mulheres na União Soviética é
geralmente baixa, especialmente nas áreas rurais. Como as reuniões políticas
ocorrem fora do horário de trabalho, ou seja, principalmente à noite, as mu-
lheres que têm de fazer compras, cozinhar e cuidar da casa depois do traba-
lho em fazendas ou fábricas não podem participar dessas reuniões. Todos os
326 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

relatórios admitem que, devido ao peso das responsabilidades domésticas, as


mulheres não podem competir com os homens em termos de compromisso
e de horas dedicadas às atividades políticas. A consequência é que elas são
ainda mais sub-representadas entre os órgãos políticos de tomada de decisão
(Croll, 1979, p. 17-18).
O alto índice de mulheres empregadas nos setores socializados e nos assim
chamados setores subsidiários, a disponibilidade limitada de serviços públicos
e de instalações comunitárias, a falta de aparelhos e eletrodomésticos moder-
nos e a recusa dos homens em dividir o trabalho doméstico significam que as
mulheres têm muito menos tempo de lazer do que os homens e estão cons-
tantemente sobrecarregadas.
O ressentimento das mulheres russas com essa situação, particularmente
com as atitudes patriarcais e machistas persistentes e renovadas dos homens,
que ocupam o tempo livre bebendo e assistindo televisão, sem se preocupar
nem um pouco com o trabalho doméstico, também encontrou expressão
vívida e amarga no almanaque Women in Russia [As mulheres na Rússia],
trazido como um samizdat por um grupo de feministas russas em 1980. Esse
é um fenômeno que poderia ser observado em todas as quatro sociedades:
“(...) parece ter sido estabelecida uma nova divisão do trabalho: não entre
empregos qualificados e não qualificados ou mais leves e mais pesados dentro
da agricultura, como antes, mas sim entre empregos agrícolas e não agrícolas”
(Croll, 1979, p. 5). Normalmente, os empregos não agrícolas estão nas mãos
dos homens, situação que já conhecemos tanto nas economias de mercado
superdesenvolvidas quanto nas subdesenvolvidas.
As mulheres na União Soviética tentaram diminuir sua dupla ou tripla
jornada de trabalho recusando-se a ter mais filhos. Como o Estado as tratava
principalmente como trabalhadoras, mas sem incluir o trabalho doméstico e
a criação dos filhos na categoria de trabalho produtivo, sem oferecer serviços
coletivos suficientes porque estes eram considerados muito caros e sem efe-
tuar qualquer mudança na divisão sexual do trabalho, as mulheres responde-
ram com uma espécie de “greve de ventres”. Isso levou a uma tendência de
queda na taxa de natalidade, o que causou grande preocupação nos círculos
governamentais, que temiam os efeitos negativos dessa tendência na econo-
mia e no poder político e militar. Da mesma forma que nos países capitalistas
industrializados (por exemplo, na Alemanha Ocidental), o governo ofereceu
MARI A MI ES 327

incentivos financeiros para mulheres casadas – e por um tempo também para


as solteiras – para que tivessem mais filhos: “A maternidade foi exaltada como
um dever patriótico, e aquelas que tinham muitos filhos eram homenageadas
em conformidade” (Croll, 1979, p. 19).
No entanto, como nada mais havia mudado na configuração patriarcal, na
definição de trabalho produtivo e não produtivo, as mulheres resistiram em
cumprir a dupla exigência do governo de entrar no “trabalho produtivo” e ter
vários filhos. Como observou uma médica, todas as teorias sobre a melhoria
do status das mulheres foram feitas por homens que não tinham interesse na-
quela área negligenciada, a da reprodução, que permeava a vida das mulheres
(Croll, 1979, p. 20).

CHINA

A República Popular da China também seguiu os princípios socialistas de


emancipação feminina descritos acima. Mas, devido à prolongada luta pela
libertação nacional, na qual as mulheres tiveram grande participação, aliada à
transformação revolucionária e à prioridade que Mao Tsé-Tung conferiu ao
desenvolvimento rural em vez de a uma rápida industrialização, as mudanças
que ocorreram na vida das mulheres pareciam ser menos dramáticas do que
as da União Soviética. Além disso, Mao Tsé-Tung havia incluído especifica-
mente o poder patriarcal dos homens sobre as mulheres como um dos quatro
poderes que mantinham o povo chinês oprimido e que devia ser derrubado
pela revolução. As histórias heroicas de mulheres que participaram da luta re-
volucionária, tanto como combatentes quanto na manutenção da economia,
são bem conhecidas. Uma das mudanças estruturais necessárias para a guerra
de libertação foi a tomada, por parte das mulheres, do trabalho no campo,
que, de acordo com uma pesquisa de 1937, era um domínio tradicionalmente
masculino na China.
Após a revolução, foi introduzida na legislação uma série de mudanças
que tentavam unir a abolição do poder patriarcal do marido à introdução das
mulheres na “produção social”. O novo Código Matrimonial de 1950 foi,
então, ligado à Lei da Reforma Agrária. A liderança chinesa tomou a decisão
de distribuir terras não para as famílias, o que teria significado distribuí-las
para os homens chefes de família, mas para aqueles que de fato trabalhavam na
328 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

terra. Assim, as mulheres que trabalhavam na terra também receberam títulos.


Mesmo quando as famílias recebiam os direitos da terra como unidade, uma
cláusula especial garantia que as mulheres tinham os mesmos direitos que os
homens, inclusive o direito de vender a terra, o que era uma medida verdadei-
ramente revolucionária porque vinculava as demandas emancipatórias à mu-
dança das relações básicas de produção entre homens e mulheres. Mulheres e
homens podiam se tornar proprietários de terras. Como a reforma agrária foi
feita em conjunto com a reforma matrimonial, que facilitava o divórcio para
as mulheres, a consequência foi uma onda de pedidos de divórcio, a maioria
deles por parte de mulheres. Como relatou Delia Davin (1976, p. 46), mui-
tas mulheres das zonas rurais imediatamente entenderam o significado dessa
reforma combinada e diziam que pediriam o divórcio quando recebessem
o título de terra, pois aí seus maridos não poderiam mais oprimi-las. Meijer
(1971, p. 120) estima em 800 mil o número de divórcios ocorridos nos pri-
meiros quatro anos após a reforma matrimonial. Os conflitos que surgiram
no campo por causa dessas mudanças foram tais que, após o período em que
as mulheres foram encorajadas a compreender seus novos direitos em face de
seus maridos e das famílias deles, os quadros das organizações de massa foram
aconselhados a ir devagar com a implementação da reforma matrimonial e
tentar resolver conflitos conjugais mediante persuasão, e não por divórcio.
Com o passar do tempo, as reformas matrimoniais radicais das fases revolu-
cionária e pós-revolucionária foram novamente alteradas de acordo com um
sentido mais conservador e patriarcal das relações familiares. Segundo Delia
Davin (1976) e Batya Weinbaum (1976), a política oficial da China em relação
às mulheres oscilou várias vezes após a revolução, seguindo as prioridades eco-
nômicas e políticas gerais estabelecidas pela liderança comunista. Essa política
colocaria, segundo o caso, ora mais ênfase nas mulheres como trabalhadoras
produtivas, ora como donas de casa reprodutivas e consumidoras.
Após a criação da República Popular da China, foi necessário mobilizar
todo o povo para a reconstrução da economia e o aumento da produção. No
início da década de 1950, as mulheres eram encorajadas a entrar na produção
social tanto na agricultura quanto na indústria. Com a participação no traba-
lho fora de casa, elas aumentaram sua renda, mas tiveram de negligenciar sua
responsabilidade doméstica. Essa contradição foi parcialmente resolvida pela
mobilização de mulheres mais velhas, como as avós, para cuidar de crianças
MARI A MI ES 329

pequenas. Quando as mulheres não contavam com tal ajuda, elas tinham de
reduzir o seu trabalho assalariado e, portanto, aceitar postos de trabalho mais
baixos. Em algumas áreas as mulheres conquistaram apenas metade dos postos
de trabalho dos homens (Davin, 1976, p. 149). O cuidado das crianças e outras
tarefas domésticas ainda não haviam sido amplamente coletivizados.
Em 1955, sob a influência de Liu Shaogi, houve um breve período de
glorificação renovada do trabalho doméstico como o verdadeiro domínio
das mulheres. Durante aquele ano, exigiu-se que as mulheres fizessem mais
trabalhos semi-remunerados ou não remunerados em “organizações para pes-
soas dependentes” nas cidades, a fim de abrir espaço para os homens no setor
socializado em expansão, particularmente a indústria (Davin, 1976, p. 66).
Essa política foi alterada novamente com o Grande Salto Adiante e o esta-
belecimento de comunas em 1958. A campanha tinha como objetivo integrar
todos os membros da família à produção social. Isso significava que os serviços
domésticos também tinham de ser socializados até certo ponto para liberar as
mulheres para o trabalho no campo. Foram criadas creches, jardins de infância,
refeitórios e moinhos de grãos comunitários etc. Segundo uma estimativa de
1959, foram criadas 4.980.000 creches em áreas rurais e 3.600.000 refeitórios
públicos (Croll, 1979, p. 25). Mas grande parte dessa coletivização foi feita
com base na mesma divisão sexual do trabalho de antes: os homens em geral
iam para os setores coletivizados ou estatais da indústria e da agricultura com
maior capital intensivo, enquanto as mulheres tinham de construir o chamado
setor de risco em serviços coletivizados tanto na educação e na saúde como
na produção de pequena escala de bens básicos de consumo, em fábricas de
rua e oficinas. Esse setor é caracterizado por um baixo nível de desenvolvi-
mento tecnológico, baixo investimento de capital, produção de subsistência de
bens de consumo e baixa renda. Em 1958, 83% dos trabalhadores das unidades
de produção estatais eram homens, enquanto nas fábricas de rua, entre 1959
e 1960, 85% dos trabalhadores eram mulheres (Weinbaum, 1976). Assim, a
divisão sexual do trabalho coincidiu com uma divisão setorial da economia
na conhecida estrutura de um setor formal e outro informal, onde as mulheres
constituíam o grosso da força de trabalho.
Os esforços para a coletivização dos serviços domésticos, no entanto, não
duraram muito tempo. Após 1960, a maioria das creches rurais foi fechada por
falta de pessoal qualificado e porque as avós “privadas” eram mais baratas. Os
330 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

refeitórios comunitários também se mostraram mais caros do que o trabalho


doméstico privado realizado gratuitamente pelas mulheres (Croll, 1979, p. 25).
Desde a realização desse experimento no final da década de 1950, não houve
nenhum esforço particular para socializar o trabalho doméstico. Durante a
revolução cultural, e particularmente durante a campanha anti-Confúcio, as
atitudes patriarcais ou – como dizia a linguagem oficial, “feudais” – dos ho-
mens foram criticadas; eles foram convidados a dividir as tarefas domésticas,
mas esses esforços em geral permaneciam no nível cultural, ou seja, no nível
ideológico, e não tocavam em relações sociais de produção e reprodução.
Em função de sua contínua responsabilidade pela “reprodução” e pelo tra-
balho intensivo pobremente remunerado no setor informal, as mulheres geral-
mente obtinham menos postos de trabalho do que os homens. Isso também se
devia ao fato de que os critérios para a medição do trabalho eram baseados na
energia física gasta. Assim, o trabalho dos homens era supostamente um traba-
lho “pesado” e, consequentemente, eles obtinham mais postos de trabalho do
que as mulheres, cujo trabalho era considerado leve (Davin, 1976, p. 145-146).
Como na União Soviética, a participação das mulheres em atividades po-
líticas, e particularmente nos processos de tomada de decisão, não era propor-
cional à sua participação no processo econômico como um todo. Nos anos
1970, as mulheres representavam de um terço a dois quintos dos membros
do Partido Comunista (Croll, 1979, p. 23). Nos comitês revolucionários, em
que eram tomadas as principais decisões a respeito da execução da política
de governo, sua representação estava longe de ser satisfatória. Mesmo onde a
maioria dos trabalhadores eram mulheres, os comitês de gestão muitas vezes
eram compostos por uma maioria de homens. Ainda hoje, a representação das
mulheres, especialmente nos escalões mais elevados do poder econômico e
político, continua a ser baixa. E, apesar de um considerável estímulo para que
as mulheres avancem na liderança de organizações políticas, sua participação
nessas entidades não representa seu número e sua importância na sociedade.
Sua participação no Congresso Nacional do Povo entre 1954-1978 aumentou
inicialmente de 11,9% para 22,6% em 1975, mas depois caiu novamente para
21,1% em 1978 (Croll, 1983, p. 119).
Como observa Elisabeth Croll, essa falta de participação política não pode
ser atribuída somente a atitudes feudais retrógradas, mas deve ser explicada pe-
las necessidades estruturais do modelo de desenvolvimento seguido pela China.
MARI A MI ES 331

Pode-se esperar que a virada para a modernização, o rápido crescimento


e a industrialização agravarão os dilemas que as mulheres chinesas já tinham
de enfrentar, principalmente a contradição entre serem, ao mesmo tempo,
ideologicamente mobilizadas a ingressar na produção social e empurradas de
volta para a esfera do domicílio privado e do setor informal. Isso acontece
porque a manutenção ou a reconstituição de uma divisão sexual patriarcal do
trabalho, em que as mulheres são as responsáveis pela casa e pela produção de
subsistência, ainda é a forma mais barata não apenas de reprodução da força
de trabalho, mas também de redução dos custos de produção das mercadorias
de consumo comercializáveis. Assim, uma política de rápida modernização
necessariamente conduzirá à reconstituição do modelo da dona de casa, tal
como temos visto em outras sociedades do Terceiro e do Primeiro Mundo.
De fato, as análises sobre o efeito das novas políticas para mulheres do go-
verno chinês depois de Mao (Croll, 1983; Andors, 1981) revelam que, como
na Índia e em outras partes do mundo subdesenvolvido, as mulheres na China
não são mais definidas principalmente como produtoras ou trabalhadoras,
mas cada vez mais como “dependentes”, consumidoras e “reprodutoras”. Se
nos anos 1960 e começo dos anos 1970 a contradição entre uma estratégia
socialista para a emancipação das mulheres e a política de facto de fazer com
que fossem elas, e não os homens, as responsáveis pelo trabalho doméstico não
assalariado e pela mal paga produção de subsistência (jardinagem, plantio pri-
vado, artesanato, cuidado das crianças) ainda era camuflada por uma retórica
revolucionária que enfatizava a contribuição das mulheres para a revolução,
essa retórica parece ter sido abandonada junto com a estratégia socialista de
libertação das mulheres.

DO POVO À POPULAÇÃO

Limitarei a discussão ao aspecto da nova política pública para as mulheres


que mostra mais nitidamente do que qualquer outra o deslocamento para a
donadecasificação na China, a saber, a nova política populacional.
Antes da morte de Mao, as “massas”, o “povo”, eram vistas principalmente
como produtoras, capazes de resolver seus problemas por si mesmas. No en-
tanto, o novo governo tem enfatizado os custos de consumo de uma popu-
lação em crescimento. Desde 1979, o governo difunde uma campanha para
332 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

a promoção de famílias com um só filho. Foram calculados os custos para


educar e empregar a nova geração, levando em consideração os custos para
cobrir as necessidades básicas em um país de um bilhão de pessoas.Tal cálculo
demonstrou que, com mais de um filho em cada família, restariam poucos
recursos para acumulação, investimento, modernização e aumento do padrão
de vida das famílias urbanas e rurais. Também seria difícil oferecer emprego
para uma população em crescimento (Croll, 1983, p. 91).
A ênfase no povo como consumidor é parte da política das “quatro mo-
dernizações”, pois os consumidores não são apenas um fator de custo, mas
também constituem o mercado necessário para os bens de consumo e apare-
lhos tecnológicos considerados indicadores de um padrão de vida moderno.
O atual governo chinês vê a grande e crescente população como um dos
principais obstáculos para alcançar seus objetivos de modernização. Antes de
1979, o planejamento familiar fazia parte do trabalho da medicina geral e do
trabalho com mulheres, e a decisão de limitar o número de filhos ficava a
cargo dos casais ou das mulheres. Atualmente, o controle do comportamento
reprodutivo do povo tornou-se diretamente um assunto de Estado. A decisão
de um casal de ter ou não outro filho tornou-se uma questão de responsabili-
dade com o bem-estar da nação. Essa responsabilidade é depositada principal-
mente sobre os ombros das mulheres. São elas o alvo principal das medidas de
planejamento familiar. Temos, assim, uma situação peculiar em que o Estado
na União Soviética declarou ser um dever “patriótico” das mulheres ter mais
filhos, ao passo que o Estado na China tornou um dever “patriótico” das mu-
lheres reduzir o número de filhos para um. Em ambos os casos, as mulheres
praticamente não tiveram nenhuma voz na formulação dessas políticas públi-
cas. É o Estado que regula e controla sua capacidade de ter filhos.
Na China, o Estado está usando um elaborado sistema de coerção, puni-
ções e recompensas para controlar essa capacidade. Esse sistema da coerção,
projetado primeiramente pelos conselheiros científicos do sistema de controle
populacional dos Estados Unidos (Massa, 1976), depois aplicado em países
como Cingapura e Índia, estabelece o uso de recompensas ou punições eco-
nômicas para forçar casais a baixar o número de filhos ao número almejado
pelo governo.
O governo chinês estabeleceu uma taxa de crescimento populacional de
1% até o fim de 1979, 0,5% até o fim de 1985 e zero crescimento populacio-
MARI A MI ES 333

nal para o fim do século (Croll, 1983, p. 89). Isso significa que as famílias não
podem ter mais de um filho.
As sanções econômicas usadas contra famílias que não realizam por si
mesmas o dever patriótico de aderir à regra do filho único incluem uma “co-
brança por filho excedente” como compensação econômica ao Estado pelo
custo que mais um filho tem para a comunidade. A renda total desses casais é
reduzida em 5% a 10% por um período de 10 a 16 anos após o nascimento do
segundo filho. Às vezes a taxa por um terceiro ou quarto filho é de 15% a 20%
da renda do casal. “O salário dos casais pode ser diretamente descontado por
seus empregadores ou, nas áreas rurais, uma parcela equivalente de sua renda
pode ser retida pela unidade de produção” (Croll, 1983, p. 89). A mãe com
mais de um filho é excluída dos serviços de assistência gratuita à maternidade.
O casal deve arcar com todas as despesas de assistência médica e educação do
filho extra. A criança não tem prioridade de admissão em jardins de infância,
escolas ou instituições médicas. No campo, a porção de grãos para a criança
“excedente” é reduzida ou fica disponível a um preço mais alto. Nas cidades,
as famílias com mais de um filho não adquirem espaço adicional para morar;
nas áreas rurais, elas não recebem terras adicionais para plantio privado nem o
direito aos grãos coletivos em tempos de enchentes e secas. Os membros das
comunas são punidos com a perda de três a cinco dias de trabalho por mês. Os
pais passam quatro anos sem ser promovidos, podendo ser rebaixados ou ter
seus salários reduzidos (Andors, 1981, p. 52; Croll, 1983, p. 90). Por outro lado,
as famílias com um único filho obtêm recompensas e privilégios econômicos.
Isso inclui um subsídio em dinheiro para saúde ou auxílio social, pago mensal
ou anualmente ao casal até a criança completar 14 anos. Nas áreas rurais, os
pais têm direito a lotes privados adicionais da comuna; nas cidades, a espaço
habitacional extra. O filho único tem direito a educação gratuita, serviço de
saúde gratuito e recebe prioridade na admissão em creches, escolas e hospitais.
Ele também recebe uma porção de grãos como a dos adultos. Os pais dessa
criança recebem um subsídio adicional à aposentadoria na velhice (Croll,
1983, p. 89).
O Estado está utilizando seu maquinário organizacional instalado nas cida-
des e no campo durante o programa de coletivização para implementar essa
política de controle populacional, formulada por comitês de planejamento
familiar que atuam sob o controle dos comitês do partido. Quase não há mu-
334 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

lheres nesses órgãos de decisão. Mas a implementação efetiva das medidas de


controle populacional tem de ser realizada por unidades locais da organização
de mulheres, por médicos “de pés descalços”108 e trabalhadores da área da saú-
de, que são principalmente mulheres (Andors, 1981, p. 52).
O fato de cada pessoa ser membro de algum tipo de organização torna
possível um controle quase total da capacidade geradora das mulheres. Cada
família é visitada individualmente por membros do comitê de planejamento
familiar do bairro, da fábrica, da unidade de produção rural etc. Mulheres e
homens são pressionados a cumprir a norma do filho único. Às mulheres é
oferecido o certificado de filho único, que lhes confere vários privilégios. A
cada mulher é designado o ano específico em que ela deveria ter um filho
(Andors, 1981, p. 52).
Esse controle estatal massivo da atividade reprodutiva das mulheres encon-
trou certa resistência, especialmente nas áreas rurais. Nelas, a porcentagem de
famílias com um único filho é menor do que nas cidades e, de fato, durante
1981, a taxa de natalidade aumentou, em vez de cair (Croll, 1983, p. 96). Os
motivos apresentados por Elisabeth Croll para a resistência das camponesas à
intervenção do Estado em sua decisão de ter filhos apontam para o dilema
básico da política de modernização do governo:

Ao mesmo tempo que o valor dos recursos de mão de obra da família


camponesa é maximizado pelas novas políticas econômicas, a política do
filho único tenta restringir radicalmente o nascimento de trabalhadores
em potencial. A oposição às demandas do Estado chinês sobre a família
camponesa, como unidade tanto de produção quanto de reprodução, pro-
vavelmente nunca havia sido tão grande. (Croll, 1983, p. 96)

As famílias com um único filho recebem mais terras privadas e têm redu-
zida sua cota de produção que deve ser entregue ao coletivo. Porém, maior
quantidade de terras também exige mais mão de obra familiar, que, por outro
lado, está sendo restringida por essa política. As famílias com um único filho
que trabalham no campo só podem resolver essa contradição básica traba-

108 Profissionais de saúde sem formação médica superior. Recrutados pelo governo chinês,
recebiam treinamento de curta duração para atuar na área de saúde básica, especialmente no
campo e em regiões a que não chegavam profissionais da medicina. [N. das T.]
MARI A MI ES 335

lhando mais e durante mais horas. Como não ocorreram mudanças na divisão
sexual do trabalho, isso só pode significar que as mulheres que cumprem as
políticas do governo terão de trabalhar mais nas terras privadas. Essa política
contraditória tem suas raízes na nova concepção das mulheres, principalmente
como reprodutoras e consumidoras, e dos filhos, principalmente como fatores
de custo. No entanto, para as famílias camponesas, seja onde for, os filhos e
as mulheres são os principais produtores, e não apenas consumidores, como
poderia ser o caso das classes médias urbanas e dos trabalhadores.
Na esteira das medidas estatais de controle populacional, surgiu outro con-
flito que, em última análise, é capaz de desfazer qualquer progresso emanci-
patório realizado pelas mulheres na China. A família de filho único constitui
uma ameaça ao antigo sistema de seguridade social dos idosos nas áreas rurais.
Como os filhos têm o dever de cuidar dos pais quando estes envelhecem, as
mulheres no campo ainda preferem ter três ou mais filhos (Croll, 1983, p.
97-98), e sua preferência costuma ser por meninos, já que os pais idosos cos-
tumam morar com os filhos do sexo masculino.
Isso é um resultado direto dos padrões de casamento e parentesco patri-
linear e patrilocal que permanecem inalterados. Ainda que a reforma da lei
do casamento tenha previsto uma série de mudanças para as mulheres, como
o processo facilitado de divórcio e a livre escolha do parceiro, ela deixou in-
tacta a estrutura tradicional patrilocal e patrilinear das famílias. Tal estrutura
supõe que a mulher se mude para a residência e para o povoado do marido
no momento do casamento, perdendo a base que tinha na aldeia dos seus pais
e sendo incorporada à linhagem familiar do marido, e gere filhos que cuidem
dos pais idosos e deem continuidade à linhagem masculina de parentesco.
Assim, mesmo após a coletivização da terra, os homens dos povoados per-
maneceram dentro de seus grupos de parentesco e relações familiares, en-
quanto as mulheres foram todas inseridas como estranhas. Lanny Thompson
mostrou que essas estruturas patriarcais eram usadas durante o impulso socia-
lizador, até mesmo deliberadamente, para acabar com a resistência dos campo-
neses à coletivização. A brigada era equivalente a um povoado; uma unidade
de produção, a um grupo de parentesco patrilinear:

Juntos como uma equipe, um grupo de parentes do sexo masculino detinha


os direitos de uso da terra, da água e dos equipamentos socializados. Muitas
336 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

das pequenas equipes eram chamadas pelo nome familiar e, no povoado, os


membros de uma única família às vezes ocupavam as posições mais proe-
minentes. (Thompson, 1984, p. 195; Diamond, 1975)

Os quadros locais também são, em sua maioria, oriundos desses grupos de


linhagem masculina. Como nesse sistema as mulheres são consideradas uma
perda econômica para as famílias diretas, os pais não investem muito em sua
educação e formação.
Com a nova política econômica de reprivatização de partes da terra, essas
estruturas patriarcais são fortalecidas. Mas a combinação de políticas econômi-
cas, políticas populacionais e estruturas patriarcais é prejudicial para as mulhe-
res. O partido põe enorme pressão moral e econômica sobre as mulheres para
que tenham apenas um filho. O grupo de parentes patrilocal e patrilinear exi-
ge que essa criança seja do sexo masculino e que a mulher tenha mais filhos.
Como foi relatado pela imprensa, as consequências dessa política vão des-
de o assassinato de meninas até o feticídio feminino – quando há tecnologia
de pré-seleção sexual para a interrupção forçada da gravidez, até mesmo em
gestações avançadas – e a esterilização forçada.
Como aconteceu na Índia durante o estado de exceção de 1975 a 1977,
os quadros do partido recebem recompensas financeiras de até 100 iuanes ao
atingir certas cotas de esterilização ou aborto; se não cumprirem essas cotas,
recebem uma multa de 10 iuanes. Assim como na Índia, os quadros fazem uso
da força na China para cumprir as metas estabelecidas pelo governo. O uso
da força e da coerção indireta não é resultado de resquícios inerentemente
agressivos ou “feudais”, e sim de contradições estruturais, em especial na eco-
nomia rural, mas também no modelo de modernização seguido pelo Estado
como um todo. O Estado não pode alcançar sua meta de modernização a
não ser que extraia mais “excedente” do campo. Por outro lado, o Estado não
pode prover alimentação adequada, abrigo, cuidado aos idosos, assistência de
saúde e educação para todos os seus cidadãos rurais. Nessa situação, não é de
surpreender que os camponeses na China resistam à política governamental
de controle populacional dizendo: “Cultivamos nossa própria terra, comemos
nossos próprios grãos e criamos todos os nossos filhos sozinhos. Assumimos
a responsabilidade pela terra; não há necessidade de [o Estado] se preocupar
com nosso índice de natalidade” (citado por Croll, 1983, p. 97).
MARI A MI ES 337

A Federação de Mulheres da China parece totalmente desamparada em


seu esforço de criticar as tendências antimulheres que vieram à tona recente-
mente. Ela sempre foi um instrumento para a implementação das políticas do
partido projetadas principalmente por líderes masculinos. Assim, a federação
também foi instrumental ao trazer as políticas do novo governo para as mas-
sas de mulheres (Andors, 1981, p. 45-46). Seguindo a teoria socialista oficial
e a estratégia de libertação das mulheres, as tendências antimulher são vistas
como resquícios ideológicos do “feudalismo”. A organização das mulheres
não é capaz de identificar essas tendências como parte das novas relações de
produção. Tais tendências não são apenas uma reconstrução das relações “feu-
dais-patriarcais”, mas são estruturalmente as mesmas encontradas em outros
países subdesenvolvidos que estão sendo integrados ao sistema capitalista. Ao
definir as mulheres como donas de casa e reprodutoras, ofusca-se o fato de que
elas estão subsidiando, como trabalhadoras familiares não remuneradas e como
trabalhadoras de baixa remuneração, o processo de modernização. E, como em
outras economias aparentemente duais, a violência aqui também é a última
palavra para garantir a acumulação primitiva permanente socialista de capital.

VIETNÃ

No Vietnã, o Partido Comunista também fez da emancipação das mulheres


uma das dez principais tarefas da luta revolucionária contra o colonialismo e
o capitalismo. Parece que os líderes marxistas viram desde o início a necessi-
dade tática de mobilizar as mulheres para a luta anticolonial e de classes. Eles
tentaram incorporar uma perspectiva marxista ao movimento de mulheres já
existente. De acordo com Truong Than Dam, homens revolucionários chega-
ram até mesmo a publicar livros sobre a questão da mulher com pseudônimo
feminino e propuseram estratégias para unir mulheres burguesas e marxistas em
uma frente unida para lutar contra o inimigo colonial comum (Truong Than
Dam, 1984). Ao fazer isso, o Partido Comunista seguiu a conhecida estratégia
de denunciar ideais feministas de igualdade como “ideologias burguesas” e su-
bordinar as lutas das mulheres pela emancipação à tarefa de libertação nacional:

O Partido deve libertar as mulheres das ideologias burguesas, erradicar a


ilusão de “igualdade sexual” defendida por teorias burguesas. Ao mesmo
338 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tempo, deve fazer com que as mulheres participem da luta revolucionária


dos trabalhadores e camponeses: esta é a tarefa essencial. Porque se as mu-
lheres não participarem dessas lutas, nunca poderão se emancipar. Para isso,
é necessário combater os costumes feudais ou religiosos e a superstição, dar
às trabalhadoras e camponesas uma educação política séria, aumentar sua
consciência de classe e fazê-las participar de organizações da classe trabalha-
dora. (Mai Thi Tu & Le Thi Nham Tuyet, 1978, p. 103-4, citado por Truong
Than Dam, 1984)

A mobilização das mulheres para a luta pela libertação nacional foi cru-
cial. Tanto teórica quanto estrategicamente, o Partido Comunista seguiu os
princípios estabelecidos sobre a questão da mulher por Marx, Engels e Lênin.
Isso significa, sobretudo, que a entrada das mulheres na “produção social” era
vista como pré-condição para sua libertação. Mas essa suposição marxista-
-leninista clássica de que as mulheres em sociedades pré-revolucionárias não
estão envolvidas na produção social pública simplesmente não se baseia em
uma análise concreta da realidade vietnamita. Porque, como diz Christine
White (1980, p. 7), as massas de mulheres camponesas no Vietnã não eram
enclausuradas ou limitadas a trabalhar em casa, mas trabalhavam nos campos,
no cultivo de arroz, viajavam por todo o país como comerciantes, de modo
que desempenhavam um papel crucial na produção social.109
Os líderes do Partido Comunista entenderam que era absolutamente ne-
cessário mobilizar as mulheres para a continuidade dessa produção social (e não
para a reentrada nela) se quisessem travar uma guerra de libertação nacional.
O desempenho heroico das mulheres durante as guerras anticoloniais contra o

109 Christine White cita uma declaração de Le Duan, secretário-geral do Partido Comunista
Vietnamita, na qual ele diz que as mulheres sob o regime feudal eram enclausuradas e com-
pletamente isoladas, que por “milhares de anos as atividades das mulheres foram confinadas ao
círculo estreito de sua família”, que as mulheres “devem ter uma posição de classe clara, parti-
cipar de atividades públicas e pensar mais coletivamente (...)”. Sobre essa declaração, Christine
White comenta: “Essa afirmação simplesmente não é verdadeira; somente nas classes altas a
teoria de Confúcio de que ‘os homens vivem fora e as mulheres vivem dentro da família’ se
aplicava. As mulheres camponesas vietnamitas comuns, a esmagadora maioria da população,
não estavam nem enclausuradas nem limitadas a trabalhar em casa. Não só trabalhavam nos
campos, fosse para suas próprias famílias ou como trabalhadoras contratadas, mas muitas vezes
trabalhavam em grupos transplantando ou colhendo arroz. As mulheres eram comerciantes,
viajavam pelo país e trabalhavam em grupos” (White, 1980, p. 6-7).
MARI A MI ES 339

imperialismo francês e americano é bem conhecido. As mulheres compunham


80% da força de trabalho rural e 48% da força de trabalho industrial durante
a guerra contra os Estados Unidos. Elas atuavam em áreas da administração,
educação e saúde e também participavam como combatentes na guerrilha. O
mais importante, no entanto, foi o seu papel em manter a economia funcio-
nando enquanto a maioria dos homens estava na guerra. E após a vitória, em
1975, a participação das mulheres era alta em todos os setores da economia.
De acordo com estatísticas de 1979, a participação das mulheres em todos os
setores da produção social era de 65%, 62,3% na indústria leve, 85% na agri-
cultura, 63% no comércio estatal, 61% na saúde e 69% na educação (Mai Thu
Van, 1983, p. 329; citado por Truong Than Dam, 1984, p. 22).
Mas, após a guerra, muitas mulheres que haviam ocupado postos de lide-
rança durante a luta de libertação foram substituídas por homens. Mulheres
proeminentes foram enviadas para as províncias. A promoção das mulheres
aos cargos de gestão não reflete seu alto índice de participação no trabalho. O
percentual de mulheres presidentes de cooperativas apenas subiu de 3% em
1966 para 5,1% em 1981. Essa porcentagem foi maior em cooperativas de
artesanato, em que a maior parte dos trabalhadores são mulheres (Eisen, 1984,
p. 248). Parece que os homens vietnamitas não só se ressentem das mulheres
em cargos de liderança, mas também menosprezam ou ridicularizam as con-
tribuições objetivas das mulheres para a sociedade e a economia (Eisen, 1984,
p. 248-254; White, 1980; Truong Than Dam, 1984).
Apesar de todo o seu heroísmo durante a guerra de libertação, a partici-
pação das mulheres nas organizações políticas após a vitória não reflete em
nada sua contribuição econômica. Não há mulheres no politburo do Partido
Comunista. Elas também são pouco numerosas em outros postos de respon-
sabilidade política. O número de mulheres ministras ou vice-ministras au-
mentou de cinco em 1975 para 23 em 1981. Madame Binh, que foi ministra
das Relações Exteriores durante a guerra, assumiu o Ministério da Educação,
um típico ministério de “mulheres”. O percentual de mulheres na Assembleia
Nacional aumentou acentuadamente durante os anos de guerra, de 18,2% em
1965 para 32,3% em 1975, mas depois caiu novamente para 26,8% em 1976
e 21,8% em 1981 (Eisen, 1984, p. 244).
A mesma tendência de declínio pôde ser observada nos Conselhos do
Povo, o escalão logo abaixo da Assembleia Nacional na estrutura governa-
340 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

mental. Nos três níveis, provincial, distrital e dos povoados, o percentual de


mulheres representantes diminuiu de 1975 a 1981: nos Conselhos Provinciais,
de 33% para 23%; nos Conselhos Distritais, de 38% para 22%; nos Conselhos
das Aldeias, de 41% para 23% (Eisen, 1984, p. 246).
Essa tendência de declínio era explicada pelos porta-vozes do partido ou
da União de Mulheres pelo fato de que, após a reunificação do Vietnã em
1976, as estatísticas também incluíam o sul do país, mais “atrasado”, ou en-
tão era justificada pela manifestação de persistentes atitudes “feudais”. Arlene
Eisen cita uma vice-presidente da União de Mulheres que disse:

A herança do confucionismo, do feudalismo e do capitalismo é profunda.


Nenhuma geração poderia ter mudado tanto quanto a nossa. Fomos em-
purrados pela história. Mas ainda não conseguimos a completa igualdade.
Temos uma das constituições mais progressistas e maravilhosas do mundo;
mas não podemos libertar as mulheres com uma canetada. É muito mais
difícil lutar contra costumes obsoletos do que contra o inimigo (...). (Eisen,
1984, p. 248)

Os “resquícios feudais” são os principais culpados por qualquer


manifestação de desigualdade entre os sexos ou por tendências antimulheres
que podem ser observadas quando as mulheres competem com homens por
cargos de liderança, particularmente em posições executivas e políticas (Eisen,
1984, p. 242). Isso significa que o problema é visto como ideológico, e não
como estrutural. Sugere que as atitudes e a consciência das pessoas mudam
muito mais lentamente do que as relações de produção, que pode levar “ge-
rações” para erradicar o “feudalismo”, que esse é um processo lento e gradual
que exige paciência e uma luta ideológica contínua. Assim, Arlene Eisen,
ao observar as tendências negativas do movimento de mulheres no Vietnã
após a libertação, sente que é “cedo demais” para julgar e que as feministas
ocidentais devem olhar para as conquistas das mulheres vietnamitas em vez
de trabalhar para os inimigos do Vietnã, criticando essas tendências. A autora
entende que “é necessário um olhar mais atento aos aspectos culturais da luta
das mulheres”, na medida em que a persistência da ideologia patriarcal feu-
dal é considerada o maior obstáculo para a libertação feminina (Eisen, 1984,
p. 65, 254).
MARI A MI ES 341

Como já comentado em relação à China, as explicações ideológicas e


culturais dessas tendências pouco contribuem para uma compreensão da si-
tuação. No Vietnã, assim como na China e na União Soviética, a reconstrução
da economia acabou seguindo o modelo da chamada economia dual, que
consiste em um setor “moderno”, formal, socializado ou estatal, particular-
mente na indústria e na agricultura coletivizada, e em um setor informal,
chamado setor subsidiário, composto pela produção doméstica, plantios pri-
vados, cooperativas de artesanato e subcontratação de trabalho na agricultura
socializada. Como em outras partes do mundo, o setor do capital intensivo,
tecnologicamente mais avançado e socializado com melhores rendimentos, é
principalmente um território masculino, enquanto a maior parte da força de
trabalho no setor informal é feminina.
Conforme Jayne Werner analisou, no Vietnã, esse padrão foi introduzido
após um período de coletivização que, no entanto, resultou em uma grave
crise econômica. Obviamente, o governo vietnamita pós-libertação enfren-
tou o mesmo problema que muitos governos têm de enfrentar nas socie-
dades pós-revolucionárias agrárias, ou seja, que os camponeses, que haviam
apoiado os esforços de guerra, estavam satisfeitos produzindo para si mesmos,
mas resistiam a produzir mais “excedentes” para o Estado. Essa resistência
devia-se, em parte, ao fato de que o Estado não era capaz de oferecer-lhes
melhores preços ou fornecer insumos baratos para aumentar a produtividade.
Nessa situação, quando a ajuda da China e da União Soviética foi drastica-
mente cortada, o povo enfrentou uma grave crise agrícola, que teve seu auge
entre 1977 e 1978. No sexto plenário do Quarto Congresso do Partido,
o partido propôs uma série de reformas, conhecidas como “Reformas do
Sexto Plenário”.
Os principais pontos dessa nova política eram: a descentralização da pro-
dução, o fortalecimento do sistema de lotes familiares privados e, sobretudo,
o sistema de subcontratação de tarefas agrícolas em cooperativas e fazendas
estatais. A última medida, em particular, mostrou-se muito bem-sucedida. A
produção em algumas cooperativas que subcontrataram mão de obra aumen-
tou 30% ao longo de um ano (Werner, 1984, p. 49). A subcontratação significa
que o Estado estabelece um sistema de contratos duais com produtores cam-
poneses: “Esses contratos obrigam os camponeses a entregar uma quantidade
negociada de grãos ao Estado em troca da obrigação do Estado de fornecer
342 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

fertilizantes, sementes e certos tipos de equipamentos a um preço razoável


para os camponeses” (Werner, 1984, p. 49).
Em 1981, esse sistema de subcontratação foi complementado pela subcon-
tratação de tarefas agrícolas específicas para o trabalho familiar privado, princi-
palmente de mulheres. As tarefas subcontratadas para o trabalho familiar são de
enxerto, capinagem e parte da colheita, atividades que, desde tempos imemo-
riais, são realizadas por mulheres tanto Vietnã como em outras áreas que culti-
vam arroz. Por outro lado, o trabalho dos homens, como o arado do campo, o
controle da água e de pragas e também algumas tarefas de colheita, permaneceu
como parte do trabalho coletivizado nas cooperativas. Seria interessante saber
se são as próprias mulheres que assinam esses contratos de trabalho com o
Estado ou se o “chefe da família”, geralmente um homem, assina esse contrato
e depois aloca o trabalho para vários membros da família. Provavelmente esse é
o caso, já que esse trabalho é definido como “trabalho familiar”.110
Os lotes privados, que correspondem a 5% do total de terras coletivas,
também são cultivados pelo “trabalho familiar”. O sistema contratual, ba-
seado no trabalho familiar, também é utilizado para a produção de suínos e
de peixes. Os suínos e peixes produzidos acima da cota do governo podem
ser consumidos ou vendidos pela família. A produção artesanal também é
feita por meio de contratos sazonais. O sistema contratual, combinado com
a economia familiar dos lotes privados, mostrou-se bastante efetivo no que
diz respeito ao aumento da produção. As cooperativas agrícolas que usavam
mão de obra subcontratada foram capazes de elevar consideravelmente sua
produção, de modo que a economia familiar passou a fornecer 90% da carne
de porco e de frango consumidas e mais de 90% das frutas produzidas no
Vietnã. Jayne Werner observa que, embora a economia familiar seja altamente
produtiva, ainda é considerada uma “economia subsidiária” ou uma “econo-
mia suplementar”, porque os trabalhadores e administradores também podem

110 Essa situação se assemelha à das cooperativas na Venezuela, descrita por Claudia von Wer-
lhof, onde apenas o chefe de família masculino poderia ser membro de uma cooperativa e
assinar contratos, enquanto sua esposa e filhos tinham de trabalhar sem remuneração quando
ele não podia trabalhar (cf. Claudia von Werlhof, “New Agricultural Co-operatives on the
Basis of Sexual Polarization Induced by the State: The Model of ‘Cumaripa’,Venezuela” [No-
vas cooperativas agrícolas baseadas na polarização sexual induzida pelo Estado: o modelo de
cooperativa de “Cumarip”, Venezuela], Boletín de Estudios Latino-americanos y del Caribe, n. 35,
Amsterdã, dezembro de 1983).
MARI A MI ES 343

ter uma “economia familiar” (Werner, 1984, p. 50). Isso revela que o conceito
de “economia familiar” está baseado na conhecida divisão social, sexual e
capitalista do trabalho entre a esfera privada ou familiar “não produtiva” e a
esfera pública, socializada, industrializada e “produtiva”. Como essas divisões
não foram abolidas nos países socialistas, a “economia familiar” ou, como a
denomino, a produção de subsistência, subsidia o setor moderno socializado.
Também não surpreende, portanto, que o sistema de contratação seja in-
terpretado como um meio de usar o “tempo de lazer” dos camponeses, par-
ticularmente das camponesas, de forma produtiva (Werner, 1984, p. 50).111
Como o setor formal e coletivizado não é capaz de gerar emprego sufi-
ciente ao longo do ano, a economia familiar “subsidiária” também contribui
para aliviar a pressão excessiva no mercado de trabalho. São normalmente os
homens que recebem emprego no setor socializado, enquanto as mulheres
são habitualmente chamadas para realizar as tarefas na “economia familiar
subsidiária”. A “economia familiar” constitui de 40% a 60% da renda total
dos camponeses. Segundo uma estimativa, 90% das tarefas subcontratadas na
agricultura são realizadas por mulheres. Elas também executam a maior parte
do trabalho na economia familiar privada. Isso significa que, junto com as
tarefas já desempenhadas no setor coletivo, as mulheres também têm de tra-
balhar cada vez mais e por mais horas e dispõem de menos tempo para lazer,
educação ou atividade política, dado que elas trabalham como “donas de casa”
e não como trabalhadoras com jornada de trabalho fixa e com um salário.
A carga horária de trabalho das mulheres também é aumentada pelo fato de
não haver muitos serviços socializados de cuidado infantil. A mudança para o
fortalecimento da família como unidade de produção significa não apenas um
duplo, mas um triplo fardo para as mulheres: trabalho doméstico, incluindo
cuidados infantis, produção de subsistência para sua própria família e trabalho
“subsidiário” ou contratual para o Estado. Esse trabalho donadecasificado é
particularmente barato para o Estado, pois não precisa ser tão visível e equi-
tativamente remunerado quanto o trabalho das mulheres em coletivizações,
onde elas recebem salários individuais em dinheiro ou em bens e serviços.
Talvez seja esse o segredo por trás do sucesso dessa nova política.

111 “Argumentava-se que os camponeses agora podiam usar o trabalho adicional em sua van-
tagem. Ou seja, as horas de lazer gastas para a cooperativa seriam remuneradas – uma vez que
a cota é atingida, o excedente pertence ao produtor” (Werner, 1984, p. 50).
344 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Isso é ainda mais evidente no setor artesanal, em que 85% da força de


trabalho é feminina. A produção de artesanatos é obviamente vista no Vietnã,
como em outras economias de mercado subdesenvolvidas, como a solução
para todos os problemas do desenvolvimento agrícola, e também da economia
como um todo. Os artesanatos são produzidos principalmente para expor-
tação, proporcionando, assim, divisas estrangeiras para o Estado, as quais são
extremamente necessárias para a importação de tecnologia e equipamentos
modernos. A produção de artesanatos, por outro lado, não requer muito inves-
timento de capital, pois grande parte dela é realizada na indústria doméstica
ou em cooperativas que não exigem grande quantidade de maquinário. O
artesanato também gera mais renda para os produtores, já que os preços dos
produtos dependem do mercado, enquanto os preços do arroz são fixados
pelo Estado. As mulheres do setor artesanal produzem tapetes, esteiras, borda-
dos, tricôs e peças de vestuário, cerâmicas, vidros, móveis e produtos em laca.
Esses itens são exportados principalmente para a União Soviética e outros
países do Comecon (Conselho para Assistência Econômica Mútua)112. Mas as
cooperativas artesanais também produzem itens para o mercado doméstico,
como peças de reposição, ferramentas, bicicletas, tijolos e pequena maquinaria
(Werner, 1984, p. 53). O setor de artesanato expandiu-se rapidamente, em
particular a produção voltada para a exportação. Isso levou à descoletivização
de grande parte do trabalho feminino e a uma mudança da produção de bens
de necessidade básica para o consumo interno para a produção de itens de
luxo destinados ao mercado exterior. É impossível evitar a impressão de que
a mesma estratégia de donadecasificação usada no Vietnã é a que vem sendo
proposta por agências capitalistas em outros países do Terceiro Mundo para
integrar as mulheres ao desenvolvimento por meio de “atividades geradoras
de renda”, artesanato e produção em pequena escala de artigos de luxo para
consumidores ocidentais ou urbanos (Mies, 1982). A estratégia é respaldada
pelo argumento de que a produção de artesanatos, a subcontratação e a eco-
nomia familiar estão “absorvendo o trabalho excedente” nas áreas rurais. Jayne
Werner questiona a definição de “trabalho excedente” usada aqui. O conceito

112 O Comecon foi uma organização existente entre 1949 e 1991 e que tinha como objeti-
vo integrar economicamente nações do Leste europeu pertencentes ao bloco soviético. Mais
tarde, também se juntaram a ele países como Mongólia (1962), Cuba (1972) e Vietnã (1978).
[N. das T.]
MARI A MI ES 345

não contabiliza o trabalho doméstico e outros trabalhos que as mulheres já


têm de fazer. Além disso, o trabalho subcontratado é o mesmo trabalho que
elas já faziam antes como trabalho coletivo. Assim, ela conclui que a economia
familiar e o trabalho contratado aumentam a jornada de trabalho das mulheres
mais do que ocupam seu tempo livre (Werner, 1984, p. 54).
É interessante considerar o fato de que os fabricantes capitalistas que
exportavam renda artesanal da Índia para o Ocidente diziam que, ao “dar traba-
lho” a mais de cem mil mulheres rurais pobres, eles estavam simplesmente uti-
lizando produtivamente o “tempo livre” ocioso dessas mulheres (Mies, 1982).
Em ambos os casos, o trabalho doméstico das mulheres é visto como
“tempo de lazer”. Como conclusão, podemos dizer que as novas políticas
econômicas no Vietnã, com ênfase no trabalho familiar, lotes privados, sub-
contratação e produção artesanal feita por mulheres, definem estas mais como
donas de casa dependentes do que como trabalhadoras economicamente in-
dependentes. Isso permite ao Estado utilizar o trabalho das mulheres para seu
processo de acumulação socialista em pelo menos quatro das cinco relações
de produção: 1. como trabalho doméstico não remunerado; 2. como tra-
balho para o mercado, pago por produto; 3. como trabalho de subsistência
familiar não remunerado, realizado nos terrenos privados; 4. como trabalho
contratado, pago por tarefa; 5. como trabalho assalariado propriamente dito.
Analiticamente, podemos dizer que a subordinação das mulheres vietnamitas
ao processo de acumulação de capital tem tomado as formas de subsunção
donadecasificada, subsunção formal, subsunção mercantil, subsunção marginal
e subsunção real (Bennholdt-Thomsen, 1979, p. 120-124).
Como essa estratégia é baseada na família nuclear com o homem como
seu chefe “natural” e presumido provedor, não é de surpreender que os ho-
mens em geral tenham interesse em amarrar as mulheres ao trabalho familiar
e à economia familiar. Isso não é apenas lucrativo para o Estado socialista, mas
também para os homens. Elimina a concorrência das mulheres por empregos
escassos e mais lucrativos no setor formal, subsidia os salários dos homens,
garantindo uma base sólida de subsistência, vincula as mulheres a uma jor-
nada de trabalho sem fim, de modo a liberar os homens para a atividade po-
lítica que não só é prestigiada, mas também oferece privilégios econômicos
(Eisen, 1984, p. 152). Por fim, dá ao homem o controle sobre o trabalho de
sua esposa. Essas me parecem ser as razões materiais pelas quais os homens
346 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

vietnamitas minimizam as contribuições das mulheres, se ressentem da ascen-


são destas a posições de autoridade e não têm interesse em que as relações
familiares sejam igualitárias.
As tendências patriarcais criticadas pelas mulheres vietnamitas (cf. Eisen,
1984, p. 248 ss) não são feudais, mas manifestações do neopatriarcado interna-
cional, já descrito em outros capítulos. Independentemente da intensidade da
luta ideológica feita em prol do estabelecimento da “nova família democrá-
tica” (cf. Eisen, 1984, p. 180-200), esta não será capaz de tornar essas relações
de produção igualitárias e liberadas, porque a família nuclear é a instituição
par excellence por meio da qual o trabalho feminino é explorado.
A análise da situação das mulheres nas três nações socialistas demonstrou
que, apesar das mudanças ocorridas no status das mulheres durante e após as
lutas de libertação, as políticas econômicas adotadas pelos governantes nesses
países tiveram um efeito semelhante para as mulheres. Embora haja diferenças
políticas entre esses Estados socialistas, suas políticas de integração das mulhe-
res ao desenvolvimento socialista são bastante semelhantes. São todas mais ou
menos baseadas na divisão sexual do trabalho que relega as mulheres à família
e/ou ao trabalho não remunerado. Essa família, no entanto, não é uma família
“feudal”, mas uma família nuclear moderna. Os problemas que aparecem para
as mulheres nessas sociedades estão intimamente ligados à criação ou reconsti-
tuição desse modelo familiar que, segundo Engels e Marx, deveria desaparecer
com a propriedade privada. A situação que se desenvolveu em outros países
que passaram por uma transformação socialista das relações de produção é
semelhante às descritas acima.
O que é impressionante com relação à situação das mulheres nos países
socialistas é a semelhança com os problemas das mulheres nas economias de
mercado.
Antes de determinarmos se o socialismo criou melhores pré-condições
para a libertação das mulheres do que o capitalismo, é necessário fazer duas
perguntas:

1. Por que as mulheres são mobilizadas a participar das lutas de libertação


nacional ou revolucionárias que têm uma perspectiva socialista?
2. Por que as mulheres são “devolvidas” à situação anterior uma vez que a
vitória é conquistada?
MARI A MI ES 347

POR QUE AS MULHERES SÃO MOBILIZADAS PARA AS LUTAS POR


LIBERTAÇÃO NACIONAL?

Por sua própria natureza, uma luta de libertação nacional é a luta de uma
frente ampla de pessoas que vivem em um determinado território, têm uma
certa história e cultura comuns, uma certa comunidade de interesses e se en-
tendem como uma nação. O inimigo é geralmente uma potência externa im-
perialista ou colonial e/ou seus representantes dentro do país. Às vezes, como
é o caso de muitos países africanos, o conceito de “nação” não existia antes da
luta de libertação, e as entidades políticas e econômicas criadas artificialmente
pelas potências coloniais atravessam e desfazem fronteiras tribais e territoriais
historicamente desenvolvidas. Nesses casos, pode-se dizer que a própria luta
por libertação nacional criou algo como uma identidade nacional que até
então não existia. Para que a luta de um povo inteiro ou nação contra um
opressor colonial militar e economicamente superior seja bem sucedida, é
necessário que todos os setores desse povo sejam mobilizados para essa luta.
Ou seja, é preciso que se trate de uma revolta realmente popular e não de uma
guerra travada por um exército profissional. A contribuição das mulheres para
esse tipo de guerra popular é importante por duas razões principais: 1) Como
produtoras da próxima geração, elas são as garantidoras do futuro da nação.
Isso é particularmente importante nas guerras de libertação que muitas vezes
exigem sacrifícios pesados dos vivos em prol de um futuro melhor e mais fe-
liz. 2) Como os homens adultos estão no front de batalha, seja como soldados
regulares ou nas forças guerrilheiras, as mulheres no “front doméstico” têm de
manter a economia. Além do trabalho doméstico não remunerado, elas têm de
manter a produção agrícola e industrial funcionando e, assim, atender as ne-
cessidades das pessoas em casa e dos homens na guerra. Sem a responsabilidade
das mulheres pela continuação da economia, nenhuma guerra de libertação
bem-sucedida pode ser travada.
Além disso, em muitos casos, as mulheres também se juntam ao exército ou
às forças guerrilheiras diretamente como combatentes. Isso é particularmente
necessário no caso de lutas que duram muito tempo e quando o número de
homens não é suficiente. As mulheres também realizam uma série de serviços
para os combatentes pela libertação: trabalham como enfermeiras, mensagei-
ras, profissionais de saúde, administradoras etc.
348 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Muitos viram essa participação direta das mulheres na luta guerrilheira


como uma contribuição direta para a libertação das mulheres. Seu raciocínio
é que mulheres com uma arma na mão não aceitariam mais opressão e ex-
ploração masculinas. Mas a história das guerras de libertação nacional, assim
como de outras guerras, nos ensinou outra lição.
A necessidade de mobilizar grandes massas de mulheres, quando não to-
das, de uma “nação” para essas tarefas patrióticas requer a fundação de orga-
nizações nacionais de mulheres. Essas organizações parecem necessárias para
superar a forma localizada e individualizada de existência da maioria das
mulheres que não são membros de grupos sociais maiores do que suas famí-
lias, grupos parentais ou povoados. As mulheres não são capazes de realizar
os programas desenhados para elas pelo partido revolucionário a menos que
estejam organizadas.
Além dos esforços para recrutar o maior número possível de mulheres
para a organização de mulheres, que, como organização de massa, está sempre
sob a autoridade e direção do partido revolucionário, os líderes da luta pela
libertação têm de realizar uma série de mudanças estruturais e ideológicas
para garantir que as mulheres sejam capazes de cumprir as tarefas econômi-
cas e militares necessárias. Por exemplo, na maioria dos casos, uma série de
instituições e relações patriarcais precisam ser alteradas. A tradicional divisão
sexual do trabalho deve ser abandonada: é necessário que as mulheres façam
o trabalho dos homens e os homens, o trabalho das mulheres. Na China, por
exemplo, as mulheres nas zonas liberadas do norte que não estavam acostuma-
das a trabalhar nos campos tiveram de aprender a cultivar terras, usar o arado e
dar continuidade à produção agrícola e artesanal. Para isso, elas tiveram de sair
de casa, formar equipes de trabalho e aprender novas habilidades. No Vietnã,
as mulheres não só continuaram encarregadas da produção agrícola, na qual
sempre desempenharam um papel crucial, como também produziam outros
bens de consumo e materiais de guerra.
Na guerra de guerrilhas, os homens também têm de fazer trabalhos fe-
mininos, como cozinhar ou cuidar dos doentes. Uma ex-guerrilheira do
Zimbábue relatou que as mulheres que se juntaram à guerrilha primeiro
cuidavam dos doentes e feridos, mas depois também se tornaram combaten-
tes. Porém, quando essas mulheres queriam participar das reuniões políticas,
muitas não podiam porque tinham de cuidar dos bebês nascidos ali. Essas
MARI A MI ES 349

mulheres criticaram os homens e exigiram que fossem estabelecidas creches


e que os pais dos bebês compartilhassem o trabalho com as mães. Durante
a atual luta de guerrilha, os homens também realizam parte do trabalho nas
creches.113
O fato de as mulheres se agruparem em uma organização nacional repre-
senta uma mudança no status quo que tem consequências mais amplas. Em
alguns casos, como na Nicarágua, Somália, Vietnã e China, as organizações
de mulheres haviam sido formadas por mulheres comprometidas com a li-
bertação feminina antes da luta pela libertação nacional. Quando os partidos
revolucionários, particularmente aqueles que seguem os princípios marxis-
tas-leninistas, assumem a liderança da luta, essas organizações femininas são
geralmente subordinadas ao partido e “expurgadas” das chamadas tendências
“feministas burguesas” (Truong Than Dam, 1984). Após a revolução, essas
organizações perdem a autonomia que porventura tinham e se tornam ins-
trumentos para a implementação das políticas partidárias.
Podemos observar que as mudanças na divisão sexual do trabalho eram
possíveis, que a organização das mulheres era possível. Na verdade, passos
notáveis na direção da libertação das mulheres foram possíveis porque eram
necessários para a luta geral. Esses sucessos, no entanto, não podem ser inter-
pretados como resultado de uma profunda mudança subjetiva e objetiva nas
relações homem-mulher. Devemos lembrar que durante as guerras imperia-
listas a divisão sexual do trabalho também foi alterada, e as mulheres faziam o
trabalho dos homens nas fazendas e nas fábricas. Mas, depois dessas guerras, a
velha ordem foi imediatamente restaurada. O fato é que essas guerras são vis-
tas como situações excepcionais que exigem medidas extraordinárias. Elas não
necessariamente provocam uma profunda mudança de consciência. Depois
da guerra, as pessoas voltam ao que consideram o estado “normal” de coisas
nas relações homem-mulher. A atitude dos homens no Vietnã pós-libertação
é um exemplo revelador.
Isso nos leva à segunda pergunta:

113 Cf. Maria Mies e Rhoda Reddock (ed.), National Liberation and Women’s Liberation [Liber-
tação nacional e libertação das mulheres]. Haia: Institute of Social Studies, 1982, p. 123-124.
350 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

POR QUE AS MULHERES SÃO “DEVOLVIDAS” À SITUAÇÃO


ANTERIOR APÓS AS LUTAS DE LIBERTAÇÃO?

Uma resposta a essa pergunta deve levar em conta as condições objetivas


que prevalecem após uma guerra de libertação, bem como a consciência sub-
jetiva dos homens e mulheres. Esses dois níveis estão interrelacionados.
Um dos maiores problemas após uma guerra de libertação anticolonial
ou uma revolução bem-sucedida é a reorganização da economia. Toda a
energia deve ser mobilizada para a reconstrução do país, que pode ter sido
amplamente devastado pela guerra, como foi o caso no Vietnã. O primeiro
objetivo é fornecer alimentos, roupas, abrigo e assistência de saúde suficientes
para as pessoas. Muitas vezes, isso está além da capacidade do novo governo,
não só porque os bombardeios destruíram as fábricas, o sistema de transpor-
te, os equipamentos, as habitações e os campos, mas também porque muitos
dos povos colonizados produziam safras comerciais voltadas principalmente
à exportação para os países industrializados e quase não tinham indústrias
desenvolvidas para si mesmos.
Nas situações em que toda a economia está atada às potências coloniais
ou à divisão internacional do trabalho, é particularmente difícil para o novo
governo construir uma economia independente a serviço do povo. Um
dos maiores problemas é o desemprego dos ex-soldados e ex-guerrilheiros.
No Zimbábue, por exemplo, o governo não podia oferecer empregos sufi-
cientes para os ex-guerrilheiros que haviam lutado por ele. Nessa situação,
decidiu-se oferecer os escassos empregos remunerados na indústria ou nos
serviços governamentais aos homens, e não às mulheres. Mao Tsé-Tung
tentou resolver esse problema mobilizando todo o povo para um aumento
da produção agrícola e industrial. Mas na China, assim como no Vietnã, o
objetivo socialista de transformar todos os trabalhadores em assalariados
livres ou proletários entrou em conflito com a necessidade premente de
aumentar a produção agrícola e, ainda mais, com o objetivo de acumular
capital socialista para o desenvolvimento industrial. Geralmente se argumen-
ta que, devido ao baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, o
excedente gerado na agricultura e na indústria era muito baixo para pagar
a cada trabalhador um salário adequado, ou mesmo para definir todos os
trabalhadores como assalariados.
MARI A MI ES 351

Vimos que a saída buscada pela maioria dos governos pós-revolucionários


é uma espécie de divisão da economia seguindo o modelo conhecido de ou-
tros países subdesenvolvidos, isto é, em que há um setor moderno, “formal”,
de emprego intensivo de capital, socializado e com mão de obra assalariada
como a relação produtiva predominante, e um setor “subsidiário”, de mão
de obra intensiva, não socializado (“privado”), tecnologicamente atrasado e
“informal”, onde é produzida não apenas a maior parte da subsistência da
população, mas também mercadorias para exportação para países capitalistas
ou socialistas. Esse setor produz essas mercadorias a custos muito menores do
que se todos os produtores tivessem de ser remunerados como trabalhadores
assalariados livres. Aqui, como nos países capitalistas, o trabalhador assalariado
livre, o proletário, o herói de quem os marxistas esperavam a transforma-
ção revolucionária, é, como disse Claudia von Werlhof, caro demais, trabalha
muito pouco, não é flexível o suficiente e não pode ser facilmente “espre-
mido” para a geração de excedentes porque é mais bem organizado do que
os camponeses e, particularmente, mais bem organizado do que as mulheres,
que, como vimos, são as que fornecem a maior parte da força de trabalho
no setor “subsidiário” (von Werlhof, 1984). Assim, as mulheres, ou melhor,
as mulheres definidas como donas de casa, e não como trabalhadoras, são a
força de trabalho ideal para o desenvolvimento socialista, bem como para o
desenvolvimento capitalista, e não os proletários.
As dificuldades econômicas dos governos pós-libertação não devem ser
explicadas apenas pelas condições objetivas nacionais e internacionais nas
quais as nações liberadas se encontram, mas também são resultado do fato de
que os novos governos desejam construir uma economia nacional moderna.
O modelo que a maioria deles segue é o dos países industrializados. Mesmo
quando a prioridade é dada à agricultura, como foi o caso da China sob o
governo de Mao, o modelo básico de desenvolvimento baseia-se no modelo
de crescimento das sociedades industrializadas. O investimento de capital
nesse modelo ou tem de vir de fora – por meio de ajudas econômicas – ou
tem que ser gerado internamente explorando alguns setores da sociedade
para a construção de uma indústria nacional moderna. Os estratos e grupos
que geralmente são explorados para esse fim são as mulheres e os campone-
ses. E, como nesse modelo de desenvolvimento o conceito de trabalho é o
mesmo do capitalismo – a divisão social entre a esfera do trabalho público,
352 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

“produtivo”, e a do trabalho privado, “não produtivo” ou reprodutivo –, a


divisão sexual do trabalho não pode ser abolida porque garante que a pro-
dução de mercadorias e de subsistência realizada por mulheres e camponeses
permaneça socialmente invisível. Seu trabalho pode, assim, ser aproveitado
em um processo de acumulação primitiva permanente de capital, que pode
então alimentar a construção de uma economia e de um Estado modernos.
Essa é a principal razão pela qual as mulheres têm de ser “devolvidas” à si-
tuação anterior.
A parte subjetiva do problema está em que pode ter havido mudanças
de facto na divisão sexual do trabalho durante a luta de libertação, mas isso
não significa que a consciência dos homens ou das mulheres tenha sofrido
uma mudança radical. Tal mudança só poderia ocorrer se um movimento de
mulheres independente travasse uma luta contra as relações patriarcais entre
homens e mulheres durante e após a guerra de libertação. No entanto, foi
precisamente uma luta antipatriarcal independente desse tipo que foi impedi-
da pelos partidos marxista-leninistas que conduziram as guerras de libertação,
porque todas as contradições entre o povo, incluindo a contradição entre ho-
mens e mulheres, foram subordinadas à contradição principal entre a nação e
a potência imperialista. Os marxistas-leninistas geralmente consideram a mo-
bilização independente e a organização das mulheres em torno da contradição
entre homens e mulheres uma ameaça à unidade dos oprimidos, à unidade da
frente única, e como inerentemente contra-revolucionária. Em seu conceito
de revolução, a “questão da mulher” constitui uma contradição secundária que
deve ser abordada, ideologicamente, depois que for resolvida a contradição
primária do imperialismo e das relações de classe.114
É por isso que as feministas que não queriam subordinar a luta contra o
patriarcado a outras lutas “gerais” foram isoladas e “esquecidas”, como aconte-
ceu com Ding Ling na China e Alexandra Kollontai na União Soviética. Mas
a experiência das tendências antimulheres na China e as queixas da União

114 Em relação às atitudes dos governos socialistas de separar as organizações das mulheres,
Elisabeth Croll observa: “Declarações do governo sobre o estabelecimento de organizações
femininas separadas em todas as quatro sociedades sugeriram que, embora a presença delas seja
uma questão de conveniência revolucionária prática, elas deveriam eventualmente se tornar
desnecessárias em qualquer sociedade socialista em que os níveis de consciência são tais que as
políticas que afetam as mulheres não são uma parte separada, mas integrante das estratégias de
desenvolvimento” (Croll, 1979, p. 13).
MARI A MI ES 353

de Mulheres do Vietnã sobre as atitudes “feudais obstinadas” dos homens são


prova de que a consciência das pessoas não pode ser mudada apenas por re-
voluções culturais ou lutas ideológicas, tal como, mais do que em qualquer
outro lugar, foi tentado na China.
Apesar das constituições progressistas, da igualdade jurídica entre ho-
mens e mulheres e da enorme contribuição das mulheres para o esforço de
guerra e para a reconstrução da economia, as mulheres não são devidamente
representadas nos órgãos de decisão política e, além disso, são enviadas de
volta à família e à “economia subsidiária”, enquanto os homens progridem.
Isso confirma que a mudança de consciência, que pode ter ocorrido durante
a luta aqui e lá, de fato, não durou muito.
Quero propor a tese de que tal mudança de consciência não poderia ocor-
rer porque houve pouca mudança nas relações materiais de produção, das
quais a relação patriarcal homem-mulher é parte integrante. Na “economia
dual” estabelecida após a revolução, a manutenção ou criação de relações pa-
triarcais homem-mulher e sua institucionalização no núcleo familiar são ab-
solutamente cruciais para a construção de uma “economia moderna”, baseada
no modelo de crescimento. O fato de que, após a libertação, um governo
nacional tenha conquistado o poder do Estado e que certos setores da econo-
mia tenham sido socializados ou estatizados não significa ainda que todas as
relações de produção tenham sido revolucionadas de tal maneira que alguns
setores da população deixem de ser explorados para o benefício de outros.
Mas o modelo de desenvolvimento seguido pela maioria dos governos
pós-libertação requer a continuidade dessa exploração. Isso geralmente é jus-
tificado pelo argumento de que o excedente assim acumulado pelo Estado
seria benéfico também para aqueles que foram mais “explorados”, os campo-
neses e as mulheres. Mas aqueles que têm controle sobre o poder político e
estatal podem decidir o que deve acontecer com o “excedente”; eles também
podem decidir que eles próprios devem receber uma parte maior do que
os outros. Isso pode levar ao surgimento de uma nova classe estatal que vive
do monopólio da política. Em uma situação em que pouco “excedente” é
gerado por meio do trabalho “produtivo” propriamente dito, é plausível que,
após a vitória, a competição por esse tipo de emprego estatal lucrativo seja
particularmente acirrada. Essa, eu suspeito, é a principal razão por trás da baixa
representação das mulheres em todos os órgãos de decisão política nos esta-
354 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

dos pós-revolucionários. Os homens, especialmente aqueles que integravam


o partido revolucionário, monopolizam o poder do Estado.
As mulheres, entretanto, são relegadas à família e à economia “subsidiária”,
privada ou informal. Esse modelo garante que os Homens Grandes não sejam
desafiados em seu monopólio sobre o poder do Estado. As mulheres são ex-
cluídas dessa esfera e os homens pequenos são “comprados” graças ao poder
relativo que recebem sobre suas famílias.
Esse processo também se reflete na mudança de ênfase que está ocorrendo
da nação para o Estado. Enquanto durante a luta de libertação a nação inteira
representava a comunalidade psicológica e histórica, depois da libertação o
Estado e seus órgãos afirmam representar o bem comum. Portanto, a constru-
ção de uma economia moderna se tornou idêntica à criação de um Estado
forte. Nessa fase, a imagem feminina da nação, presente nos cartazes revolu-
cionários mencionados anteriormente, é substituída pelas imagens dos pais
fundadores: Marx, Engels, Lênin, Stálin, Mao, Ho Chi Minh, Castro, Mugabe,
para citar apenas alguns. Como é característico, nessa galeria de patriarcas
socialistas não há mulheres. Eles são, de fato, os pais dos Estados socialistas,
não das nações. Assim como em outros patriarcados, o papel das mulheres em
todo o processo de construção da nação é apagado pela idealização dos pais
fundadores do Estado socialista.115

115 Tive a oportunidade de testemunhar a criação dessa genealogia patriarcal-socialista em 8


de março de 1982 em Granada. O falecido primeiro-ministro Maurice Bishop, em um discur-
so às mulheres reunidas em assembleia em Granada, elogiou sua contribuição para a construção
econômica do país e sua luta contra o imperialismo estadunidense. Mas então ele concluiu:
“Vocês são filhas de Fidel Castro.
Vocês são filhas de Che Guevara.
Vocês são filhas de Rupert Bishop.”
Rupert Bishop era o pai de Maurice Bishop. Ele foi morto pela polícia do antigo primei-
ro-ministro Gary. O que me impressionou nesse discurso não foi só que Maurice Bishop
rebaixou as trabalhadoras e “mães” a “filhas”, mas que ele nem mesmo mencionou a mãe de
Fidel Castro, de Che Guevara ou sua própria mãe. Essa degradação de “mães” a “filhas” de
pais fundadores patriarcais revolucionários significa uma perda de poder para as mulheres e a
legitimação de um novo “governo dos pais”, dessa vez socialista. Essa genealogia patriarcal e
socialista é tão idealista quanto outras genealogias patriarcais, porque as mulheres, as verdadeiras
criadoras de pessoas, não têm lugar nela.
MARI A MI ES 355

BECOS TEÓRICOS SEM SAÍDA

Christine White atribuiu a cegueira de muitos marxistas-leninistas do


Terceiro Mundo em relação à realidade histórica concreta de seus próprios
países à adoção acrítica da estrutura analítica desenvolvida por Marx, Engels
e Lênin em suas análises da sociedade europeia do século XIX (White, 1980).
Isso é particularmente evidente no conceito de “feudalismo” usado para des-
crever as relações não capitalistas nesses países. Poderíamos dizer o mesmo
do uso das palavras “classe trabalhadora”, “trabalho”, “trabalho produtivo”,
“excedente” e outras.
No entanto, o problema não é apenas que esse marco teórico foi desenvol-
vido para a Europa do século XIX e que as condições das colônias da África,
Ásia e América Latina podem não se encaixar nesse arcabouço. A questão é
também se esse quadro foi e é adequado para a análise até mesmo da situação
europeia ou estadunidense. A recente crítica feminista à análise marxista (ou
melhor, à ausência de uma análise) do trabalho doméstico já apontou um dos
“pontos cegos” dessa teoria (von Werlhof, 1978, 1979). Mas não é só isso. A
teoria marxista-leninista da sociedade e da revolução foi desenvolvida bus-
cando uma mudança fundamental nas sociedades capitalistas. Mas a questão
da mulher e a questão colonial foram analiticamente excluídas dessa teoria,
embora constituíssem uma parte central e integrante da realidade social mol-
dada pelo capitalismo. De acordo com a teoria marxista, a contradição entre
trabalho assalariado e capital e a reprodução ampliada do capital por meio da
exploração contínua do trabalho excedente de proletários sem propriedade
constituem a força motriz dessa época histórica. Em sua ganância pela acu-
mulação sempre crescente, o capital desenvolveria as forças produtivas a tal
ponto – e assim produziria tal abundância de mercadorias – que eventualmen-
te a contradição entre as relações de produção (relações de propriedade) e as
forças produtivas (progresso tecnológico) levariam à ruptura das relações de
produção por meio de uma revolução do proletariado despossuído. Isso então
levaria a uma nova sociedade socialista.
No entanto, já vimos que a exploração das colônias, assim como a das
mulheres e de outros trabalhadores não assalariados, é absolutamente crucial
para o processo de acumulação capitalista, e não apenas acidental ou perifé-
rica. Sem a exploração do trabalho não assalariado, a exploração do trabalho
356 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

assalariado não seria possível (ver capítulo 1). Deixar essas duas áreas principais
da extração de “super-excedente” fora da análise levou a um beco sem saída
não apenas para a classe trabalhadora da Europa, mas também para os povos
que passaram por lutas de libertação.
Isso fica evidente se olharmos para a história da social-democracia alemã, o
primeiro partido socialista europeu que adotou o marxismo ou o socialismo
científico como base teórica. Com exceção dos radicais agrupados em torno
de Rosa Luxemburgo, os social-democratas alemães não eram contra a expan-
são colonial. As tentativas de obter controle sobre as colônias eram criticadas
apenas quando acompanhadas de violência e brutalidade desumana.

Onde se esperava que a expansão fosse pacífica, o partido geralmente


não via motivo para levantar objeções. Quando, por exemplo, o contra-
to de arrendamento da província chinesa de Kiautschu foi discutido no
Reichstag alemão, os delegados social-democratas condenaram a violência
que acompanhou a operação, mas não o contrato de arrendamento como
tal. (Mandelbaum, 1974, p. 17)

No órgão do Partido, Der Vorwärts, esse contrato era até mesmo justificado
pelo fundamento de que a “abertura da China” era uma necessidade histórica.
Seguindo a análise de Marx, os social-democratas alemães esperavam a
derrocada do capitalismo e a vitória do socialismo – que eles interpreta-
vam principalmente como o Estado assumindo o controle dos meios de
produção – graças a um rápido desenvolvimento das forças produtivas, em
particular, da tecnologia e da indústria nos países industrializados “mais avan-
çados”. Os social-democratas consideravam, assim, a expansão colonial, tal
como um deles (David) expressou, como uma “parte integrante da missão
cultural universal do socialismo”, porque iria promover o crescimento do
capital nas metrópoles e remover os obstáculos ao aumento da produção nos
“países bárbaros” (Mandelbaum, 1974, p. 19). Nesse sentido, os social-demo-
cratas compartilhavam do chauvinismo cultural da classe burguesa alemã.
Eles sempre se referiam aos países industriais capitalistas como Kulturnationen
(nações civilizadas), em contraste com as colônias, que eram mencionadas
como “ferozes” ou “selvagens” Naturvolker (povos nativos ou naturais). O
social-democrata Quessel argumentava inclusive que as políticas coloniais
MARI A MI ES 357

dos países europeus poderiam colocar todas as forças produtivas do planeta a


serviço dos Kulturmenschen (povos civilizados) europeus e, ao mesmo tempo,
desenvolver os “povos nativos” por meio de uma espécie de “despotismo
do bem-estar”. Esse despotismo do bem-estar ensinaria aos povos de cor a
disciplina de trabalho necessária para produzir mais do que precisavam para
sua subsistência imediata. Ele via nessa disciplina de trabalho um valor ético
particular (Mandelbaum, 1978, p. 17-18).
Também Bernstein, um dos teóricos da ala “direita” do partido, escreveu:
“Condenaremos certos métodos pelos quais os selvagens são submetidos, mas
não condenaremos que os selvagens sejam submetidos, e reivindicamos o di-
reito de uma civilização superior em relação a eles” (citado por Mamozai,
1982, p. 212; com base na trad. de Maria Mies). O núcleo material des-
sas ideias chauvinistas era o fato de que as massas proletárias nas chamadas
Kulturnationen não poderiam ter esperanças de um rápido desenvolvimento
das forças produtivas, assim como de suas próprias condições de vida, a menos
que as nações industriais estabelecessem seu “direito” de explorar livremente
a mão de obra das colônias, extrair suas matérias-primas pelo menor pre-
ço possível e usar as colônias como mercados para a realização do capital
(Luxemburgo, 1923). Aqui, as necessidades de sobrevivência material, assim
como a autonomia dos povos nessas colônias, eram de importância secundária.
Com relação a isso, não havia muita diferença entre a classe operária alemã,
francesa ou britânica, já que todas apoiavam não somente os esforços coloniais
de seus Estados, mas também a guerra imperialista.
Pode-se tentar desprezar esse “pró-colonialismo proletário” dos social-de-
mocratas alemães como manifestação de um “revisionismo”, mas é difícil não
encontrar suas fundações teóricas mais profundas na teoria marxista sobre o
desenvolvimento das forças produtivas. O próprio Marx via o colonialismo,
apesar de toda a sua brutalidade, como uma espécie de parteira que “abriria”
as terras “virgens” até então fechadas, estagnadas, da Ásia e da África e as joga-
ria no processo de modernização capitalista. As grandes esperanças com que
ele acompanhou a “abertura” da Índia graças à construção das ferrovias pelo
poder colonial britânico são bem conhecidas.
Foi precisamente por meio da existência de colônias externas e internas
(as donas de casa) que o capitalismo europeu foi capaz de evitar a ruptura
revolucionária das relações de produção, que Marx esperava que ocorresse.
358 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Lênin foi um dos que condenaram o revisionismo dos social-democratas


alemães. Em seus escritos sobre as questões nacionais e coloniais, ele defende o
internacionalismo proletário. Apoia os povos coloniais em sua luta pela inde-
pendência nacional e convoca as classes trabalhadoras europeias e os partidos
comunistas dos “países avançados da Europa Ocidental” a apoiar também
as lutas de libertação nacional nas colônias. Mas ele já havia observado que
essa solidariedade dos trabalhadores europeus não poderia ser dada como
certa. Os trabalhadores britânicos não estavam preparados para lutar contra a
política colonial de seu governo. No entanto, Lênin só condena essa atitude
como uma manifestação da corrupção das aristocracias trabalhistas na Europa
Ocidental (Lênin, 1917). Ele não tratou de problemas teóricos inerentes à
teoria marxista da sociedade e da revolução. Como todos os socialistas cientí-
ficos, ele acreditava que a transformação socialista viria dos “setores mais avan-
çados do proletariado”, ou seja, dos trabalhadores industriais. Seu progresso,
entretanto, baseia-se, como vimos, no livre acesso a matérias-primas baratas,
mão de obra e mercados nas colônias. Além disso, o modelo de Lênin de uma
sociedade futura era o de uma nação industrial com o mais alto desenvolvi-
mento das forças produtivas. Para esse modelo, colônias internas e externas
eram necessárias. Pedir às aristocracias trabalhadoras dos países colonizadores
que lutem contra o colonialismo significa, em última análise, pedir a elas que
coloquem em questão o próprio modelo social que as tornou uma “aristo-
cracia” de “trabalhadores”.116
Como os governos das nações recém-libertadas estão em sua maioria com-
prometidos com o mesmo modelo de desenvolvimento e progresso, eles en-
frentam um sério dilema. Durante a luta de libertação, tiveram de mobilizar

116 Isso já foi reconhecido por Kim Chow, um delegado coreano no Primeiro Congresso
dos Trabalhadores do Extremo Oriente realizado em 1922 em Moscou. Esse delegado viu um
paralelo entre as massas indianas, irlandesas e coreanas oprimidas pelo imperialismo britânico
e japonês. Ele também viu que as massas trabalhadoras britânicas e japonesas lucravam com
essa exploração. Ele disse: “(...) as massas trabalhadoras na Inglaterra foram criadas com a ideia
de que suas próprias condições podem ser melhoradas, mas as massas trabalhadoras da Índia e
de outras colônias devem realmente ser usadas para efetuar esta melhoria (...) Agora, a mesma
coisa é verdadeira para as massas trabalhadoras japonesas em geral, se não mais (...) A classe tra-
balhadora japonesa é um dos opressores das massas trabalhadoras coreanas. Embora trabalhem
lado a lado, ela olha para os seus irmãos operários coreanos com desprezo e também ajuda o
governo imperialista e capitalista japonês a oprimi-los” (Primeiro Congresso dos Trabalhadores
do Extremo Oriente. Relatórios. Moscou, 1922).
MARI A MI ES 359

todos os setores do povo para a luta anticolonial. Fizeram isso com a promessa
de igualdade, do fim da exploração e da opressão e também de uma visão
socialista da sociedade. Mas, em suas políticas econômicas, muitas vezes o que
querem é seguir o modelo de crescimento, induzindo um rápido desenvolvi-
mento das forças produtivas.
De acordo com os princípios do socialismo científico, só isso colocaria fim
à pobreza e traria melhores padrões de vida e a abundância de mercadorias
e bens que, sob as relações capitalistas, são produzidos por meio da explora-
ção dos trabalhadores.Vimos, no entanto, que esse “progresso” das sociedades
capitalistas não se baseia apenas na exploração dos trabalhadores assalariados
“livres”, mas também na exploração de trabalhadores não assalariados, nor-
malmente as donas de casa, assim como na pilhagem e na exploração de povos
coloniais e subdesenvolvidos. Se os governos das nações libertadas quiserem
seguir esse modelo, não podem fazê-lo, em última análise, sem exploração ou
tratando todas as pessoas como iguais no processo de acumulação. Na ausência
de colônias externas, eles viram uma saída na divisão da economia em um se-
tor estatal moderno coletivizado e um setor privado “subsidiário”. Essa divisão
social, no entanto, é quase congruente com a clássica divisão sexual capitalista
do trabalho: os homens, definidos como trabalhadores assalariados e “chefes
de família”, dominam o setor prioritário socializado e as mulheres, definidas
como donas de casa, são relegadas ao setor subordinado, familiar, “subsidiário”.
Essa divisão aumentou de fato a produção, melhorou os padrões de vida dos
produtores, incluindo as mulheres rurais, e acelerou o processo de acumulação.
Mas também levou a um aumento da carga de trabalho para as mulheres, à in-
tensificação da descoletivização e da privatização de seus espaços, à sua retira-
da ou expulsão dos processos de tomada de decisão política, que são cada vez
mais dominados pelos homens, particularmente por homens da classe estatal.
Essa divisão também resultou no fato de que o objetivo da libertação das mu-
lheres é tratado como uma questão de superestrutura, de ideologia e cultura,
como é o caso da maioria dos países capitalistas, e não como um problema
que está na base das estruturas econômicas. Mas essa divisão é, em si mesma,
contraditória. Enquanto no nível da superestrutura se mantém ainda a retórica
revolucionária sobre a emancipação das mulheres no socialismo, marcadamen-
te nas comemorações do 8 de março, no nível da base político-econômica sua
situação está cada vez mais próxima à da das mulheres que se encontram sob
360 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

relações capitalistas nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Elas também


constituem a “última colônia” para o processo de acumulação socialista (von
Werlhof, Mies & Bennholdt-Thomsen, 1983).
7
RUMO A UMA
PERSPECTIVA
FEMINISTA DE UMA
NOVA SOCIEDADE
APÓS A análise da interação entre a divisão sexual e a internacional do tra-
balho no contexto da acumulação de capital e do efeito que isso tem na vida
das mulheres e na humanidade, a questão mais candente agora é: como sair
dessa situação? E como seria uma sociedade em que as mulheres, a natureza e
as colônias não fossem exploradas em nome da acumulação de cada vez mais
riquezas e dinheiro? Antes de tentar responder a essas perguntas, gostaria de
explicitar minha posição a respeito das potencialidades do movimento femi-
nista internacional.

SOBRE UM MOVIMENTO FEMINISTA DE CLASSE MÉDIA

O movimento feminista ocidental é frequentemente acusado por pessoas


de esquerda, particularmente em países do Terceiro Mundo, de ser apenas um
movimento de mulheres educadas de classe média e de não ter sido capaz
de construir uma base entre as mulheres da classe trabalhadora. Mulheres de
classe média em países subdesenvolvidos são aconselhadas a ir antes às favelas
das grandes cidades ou às aldeias e ajudar as mulheres pobres a escapar das
garras da miséria e da exploração. Já ouvi muitas mulheres de classe média
urbana na Índia dizerem que elas próprias eram privilegiadas, que não eram
oprimidas, e que o trabalho pela libertação das mulheres deveria começar
despertando nas mulheres pobres a consciência de seus direitos. Essas mulhe-
res de classe média, que começaram a discutir a opressão das mulheres entre
si, eram frequentemente acusadas de serem egocêntricas e elitistas. Muitas
vezes, elas reagiam com enorme sentimento de culpa por pertencer à classe
das mulheres “privilegiadas”.
364 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O raciocínio por trás dessa crítica ao assim chamado feminismo de classe


média é baseado no pressuposto de que as mulheres que têm de lutar para
garantir sua sobrevivência no dia a dia não podem se dar ao luxo de lutar
pela “libertação das mulheres” ou pela “dignidade humana”. Diz-se que as
mulheres pobres precisam primeiro de “pão” antes de poderem pensar na
libertação. Por outro lado, as mulheres que, devido ao seu status de classe,
têm acesso a educação moderna e emprego são consideradas já emancipadas,
principalmente se vivem em um ambiente familiar liberal. É óbvio que esse
conceito de emancipação das mulheres exclui precisamente as dimensões
sensíveis da relação patriarcal homem-mulher, em torno das quais o novo
movimento de mulheres se mobilizou, particularmente com relação à vio-
lência contra as mulheres.
Vimos que o aumento da violência contra as mulheres foi o problema na
Índia e em outras partes do mundo que deu início a movimentos feministas
genuínos em muitos países. O aumento dos feminicídios por dote, dos es-
tupros, da violência doméstica e de outras tendências antimulheres na Índia
fez com que as mulheres de classe média urbana percebessem que sua assim
chamada posição de classe privilegiada não as protegia contra a violência se-
xual dos homens de sua própria classe ou família, nem da de outros homens,
e nem mesmo dos protetores da lei e da ordem, a polícia. Apesar de todas essas
experiências nos últimos anos, ainda se pode ouvir o argumento de que não
há necessidade de lutar pela libertação das mulheres de classe média urbana
instruídas porque elas já estariam libertadas ou porque já teriam os meios
para se libertar. Essa argumentação é um exemplo do tipo de cegueira em
relação à realidade frequentemente encontrada entre pessoas de classe média,
também em países do Terceiro Mundo. É também um exemplo da equação
economicista da libertação pela riqueza. Ao contrário dessa posição, considero
um movimento feminista de classe média, tanto nos países superdesenvolvidos quanto
nos subdesenvolvidos, uma necessidade histórica absoluta.
Há uma série de razões para apoiar essa posição, e a mais óbvia é o fato já
mencionado de que a opressão e a exploração patriarcais, o assédio sexual e
a violência são tão desenfreados entre as classes médias, em todos os lugares,
quanto entre as classes trabalhadoras ou camponesas. Poderíamos dizer até que
são mais predominantes entre as classes médias do que entre as classes campo-
nesas, em que velhos tabus sexuais ainda funcionam melhor. A segunda razão
MARI A MI ES 365

é que os próprios privilégios, a que as mulheres de classe média tantas vezes


se referem como algo que as distingue favoravelmente das mulheres pobres, na
verdade as expõem mais a esse tipo de violência. Enquanto mulheres “prote-
gidas” – protegidas pelos homens de suas famílias –, elas não aprenderam a se
deslocar livremente e/ou a se defender quando são atacadas. Além disso, são
donas de casa “privilegiadas”; isso significa que estão isoladas em casa e quase
não têm nenhuma rede de sociabilidade com outras mulheres ou homens para
apoiá-las. Elas são tão autossuficientes em tudo que não têm de pedir nada
emprestado de amigas e vizinhas. Tudo isso as torna muito mais vulneráveis
à opressão patriarcal do que as mulheres da classe trabalhadora ou rurais, que
geralmente ainda vivem e trabalham dentro de um contexto coletivo, pelo
menos nos países do Terceiro Mundo.
Além disso, a educação recebida pelas mulheres de classe média dificilmen-
te as prepara para lutar contra a opressão masculina. As virtudes ensinadas às
meninas em todas as instituições educacionais, incluindo a família, são tais que
fazem com que elas percam toda a confiança em si mesmas, toda a coragem
e independência de pensamento e ação. Como o casamento e a família ainda
são vistos como destinos naturais das mulheres, a formação que as meninas
recebem as prepara para esse papel de dona de casa e mãe.
Essa preparação para a domesticidade pode ter sido complementada por
algum tipo de formação profissional, mas, fundamentalmente, não mudou.
A ideologia de que a mulher é basicamente uma dona de casa é defendida
e difundida pela classe média. As meninas dessa classe recebem aulas de eco-
nomia doméstica para dar a essa ideologia uma perspectiva científica. Todos
os meios de comunicação, em particular o cinema, fomentam uma imagem
de mulher com base nessa ideologia. Parte dessa imagem também é o ideal
do amor romântico, que, mais do que qualquer outra coisa, acorrentou emo-
cionalmente as mulheres do Ocidente às relações homem-mulher patriarcais
e sexistas.117 Tudo isso, aliado ao fato de que a mulher de classe média, como

117 Quando trabalhávamos com mulheres vítimas de violência em Colônia, na Alemanha,


descobrimos que não era a dependência econômica de um “ganha-pão” masculino que as
acorrentava aos homens que lhes infligiam maus-tratos e tortura, às vezes por muitos anos, mas
seu autoconceito de mulher. Elas não eram capazes de ter identidade própria, a menos que
fossem “amadas” por um homem. As surras que levavam dos homens eram frequentemente
interpretadas como sinais de amor. É por isso que várias mulheres voltavam para seus homens.
Em nossa sociedade, uma mulher que não é “amada” por um homem não é ninguém.
366 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

tipo ideal, é economicamente dependente de um marido como provedor, é


suficiente para nos permitir a conclusão de que ser mulher de classe média ou
dona de casa não é um privilégio, mas um desastre.118
Na maioria dos países subdesenvolvidos, entretanto, a imagem da mulher
de classe média, a dona de casa, ainda é mantida, consciente ou inconscien-
temente, e difundida como símbolo do progresso. Isso é feito não apenas por
agências e organizações explicitamente “burguesas”, como as organizações
conservadoras de mulheres, mas também pela comunidade científica, por po-
líticos e administradores, particularmente pelos planejadores de desenvolvi-
mento, tanto nacional quanto internacionalmente, e, sobretudo, pela comu-
nidade empresarial. Além do mais, as organizações de esquerda, que almejam
difundir a consciência de classe entre trabalhadores e camponeses, não têm
basicamente nenhuma outra imagem da mulher em mente quando se dirigem
a elas. Não só os seus quadros são principalmente homens e mulheres de classe
média, mas também as questões que consideram como questões específicas
das mulheres (o cuidado das crianças, saúde, planejamento familiar, trabalho
doméstico) estão relacionadas com essa imagem.Vimos que, mesmo em países
socialistas que passaram por mudanças revolucionárias nas relações de proprie-
dade, a imagem da mulher de classe média como dona de casa (dependente)
foi mantida no centro das novas políticas econômicas de criação de um setor
subsidiário ou informal.
Os “privilégios” das mulheres de classe média não são apenas o fato de
serem domesticadas, isoladas, dependentes de um homem, emocionalmente
acorrentadas, enfraquecidas e amarradas a uma ideologia que as objetifica to-
talmente. Tudo isso se soma ao fato de que elas, como donas de casa, têm de
gastar o dinheiro que seus maridos ganham. Elas se tornaram – pelo menos
nas áreas urbanas – as principais agentes do consumo doméstico, que propor-
cionam o mercado necessário para as mercadorias produzidas. É essa classe
de mulheres que, em grande medida, é sujeito e objeto do consumismo. No
Ocidente, é um fenômeno comum que as mulheres compensem suas muitas
frustrações indo às compras. Mas as mulheres de classe média em países pobres

118 Essa afirmação pode ser lida como uma analogia do que Marx escreveu sobre o “trabalha-
dor produtivo”, o proletário clássico. Em O capital, ele diz: “ser trabalhador produtivo [sob o
capitalismo] não é, portanto, sorte, mas azar” (O capital, vol. I, 1974, p. 532 [ed. bras. O capital,
vol. I, tomo II, 1996, p. 138]).
MARI A MI ES 367

também seguem o mesmo padrão. As mulheres africanas, asiáticas ou latino-


-americanas de classe média urbana seguem mais ou menos o mesmo estilo
de vida e modelo de consumo. Uma olhada nas revistas femininas africanas
ou indianas é suficiente para perceber como as mulheres de classe média são
mobilizadas como consumidoras.
Os capitalistas nacionais e internacionais têm um grande interesse em
defender e difundir essa imagem de mulher, e o modelo de consumo que
a acompanha, como símbolo do progresso. Onde as corporações nacionais
e multinacionais venderiam seus cosméticos, detergentes, sabonetes, tecidos
sintéticos, plásticos, fast food, comida para bebês, leite em pó, pílulas etc. se as
mulheres de classe média não fornecessem o mercado?
Logo, é a mulher de classe média, como dona de casa, mãe e símbolo se-
xual, que é constantemente mobilizada para acompanhar todas as modas e
modismos, de modo que não poderia deixar de ser um dos principais itens
da estratégia publicitária de todas as agências de marketing. Como Elisabeth
Croll observou, essa imagem da mulher também apareceu nos outdoors de
Pequim, onde a mulher como a “trabalhadora modelo” foi substituída pela
“mulher consumidora” de cosméticos, televisão, máquinas de lavar, pasta de
dente, relógios e panelas modernas. Nesses outdoors, a nova mulher chinesa
está cacheando seus cabelos lisos, usando batons e embelezando os olhos. Os
protestos da Federação de Mulheres contra esse tipo de publicidade tiveram
pouco efeito, porque essa imagem da mulher está intimamente ligada aos
crescentes interesses e conexões comerciais que o governo chinês está estabe-
lecendo com o Ocidente (Croll, 1983, p. 105). Assim, a mulher de classe média
ocidental como consumidora aparece como símbolo de progresso também na
República Popular da China. Feministas ocidentais estão desafiando essa ima-
gem da mulher e a realidade social por trás dela não apenas porque perceberam
o blefe gigantesco por trás dessa imagem da “mulher feliz” diante de tanta
brutalidade direta e indireta contra as mulheres, mas também porque muitas
estão percebendo que o consumismo é a droga pela qual mulheres e homens
são levados a aceitar condições de vida desumanas e cada vez mais destrutivas.
As novas “necessidades”, criadas pela indústria em seu esforço desesperado para
manter o modelo de crescimento em funcionamento, seguem todas o padrão
dos vícios. A satisfação desses vícios não está mais contribuindo para uma maior
felicidade e realização humana, mas para mais destruição da essência humana.
368 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

No início da década de 1970, o movimento de mulheres, juntamente com


outros movimentos de protesto, pode ter acreditado que, uma vez que “temos
o suficiente de tudo”, a questão da mulher poderia ser resolvida por meio
de um processo de redistribuição simples e do eventual cumprimento das
promessas das revoluções burguesas. Contudo, agora é evidente que a própria
superabundância de mercadorias e o paradigma por trás dessa superprodução
destroem o meio ambiente, bem como a vida humana e a felicidade. Além
disso, o ódio sádico e cínico de toda a civilização capitalista-patriarcal pela
mulher é tão abertamente demonstrado hoje que as feministas não podem
mais ter a ilusão de que a libertação das mulheres será possível dentro do
contexto desse paradigma social.
Essa percepção ainda não é muito difundida entre as feministas de classe
média nos países subdesenvolvidos. Mas penso que elas também têm moti-
vos suficientes para não se desculpar pelo movimento feminista existente e
crescente em sua classe. Esse movimento é, de fato, necessário se as mulheres
urbanas quiserem se defender das crescentes tendências antimulher que po-
demos observar em todo o mundo. Mas também é necessário que as pró-
prias mulheres de classe média comecem a destruir os mitos, as imagens e os
valores sociais que as tornam um falso símbolo de progresso. Se as mulheres
de classe média na Índia, por exemplo, começarem a questionar valores pa-
triarcais como a virgindade, os ideais de feminilidade abnegada propagados
por meio de figuras mitológicas, como Sita ou Savitri, ou a ideologia da
dona de casa moderna, contribuirão não apenas para a própria libertação,
mas também para a libertação das mulheres operárias e camponesas. Porque,
como símbolos de progresso, essas imagens da mulher, esses mitos e valores
são agora levados a todos os povoados e aldeias indianas pela mídia, pelo
cinema, pelo sistema de educação, bem como por planejadores de desen-
volvimento, ativistas e assistentes sociais. O problema da disseminação da
ideologia da dona de casa de classe média nas áreas rurais e periferias urbanas
não é apenas a desvalorização intrínseca da mulher, mas também o fato de
que, para a maioria das mulheres rurais e urbanas pobres, essas imagens nunca
se tornarão realidade. E, no entanto, essas imagens exercem um grande fas-
cínio sobre elas, e muitas podem tentar desesperadamente chegar ao padrão
dessas mulheres modernas de classe média. Com a televisão também dispo-
nível em muitas áreas rurais, as produções da televisão estadunidense (como
MARI A MI ES 369

Dallas119), ou as imitações locais, chegarão a todos os cantos. É, portanto,


necessário que as mulheres de classe média urbana, particularmente aquelas
que desejam trabalhar entre mulheres rurais e urbanas pobres em países do
Terceiro Mundo, comecem a criticar a ideologia e a realidade da condição
da mulher de classe média. A existência de um forte movimento feminista
de classe média com uma perspectiva bem definida é uma salvaguarda contra
a propagação da falsa imagem da mulher dona de casa e consumidora como
modelo para a libertação e o progresso das mulheres. Sem esse movimento,
e sem a crítica feminista da mulher de classe média como a portadora de um
futuro mais feliz, as ativistas que trabalham entre as mulheres pobres trans-
portarão subconscientemente essa imagem a mulheres para as quais ela não
tem nenhuma utilidade.
Há ainda outro aspecto. Sem uma crítica feminista radical ao ideal de
feminilidade de classe média – com suas manifestações nacionais e culturais
específicas –, existe o perigo de que as mulheres de classe média, mesmo que
estejam genuinamente comprometidas com a libertação das mulheres e com
a libertação de todos os povos oprimidos e explorados, permaneçam cegas
para os elementos verdadeiramente progressistas e humanos que podem ser
encontrados nas chamadas classes e comunidades “atrasadas” no que diz res-
peito às mulheres. Podem ser elementos de uma tradição que ainda não foi
totalmente subsumida ao patriarcado, resquícios de tradições matriarcais ou
matrilineares, ou pode haver bolsões de poder das mulheres que derivam de
seu modo de vida e trabalho ainda comunitário e coletivo ou mesmo de sua
longa tradição de resistência à opressão masculina, de classe e colonial (Mies,
1983; Chaki-Sircar, 1984; Yamben, 1976; van Allen, 1972).
Como Christine White observou com relação aos líderes comunistas
vietnamitas, sua cegueira em relação às tradições matriarcais no Vietnã e o
foco quase exclusivo nas tradições feudais e confucionistas é uma manifes-
tação da preocupação da classe média masculina com a civilização patriarcal
(White, 1980, p. 3-6). Enquanto a burguesia europeia tentava emular o es-
tilo de vida da aristocracia, as classes trabalhadoras imitavam a burguesia. O
mesmo processo de emulação e imitação está ocorrendo entre os países do

119 Dallas foi uma série de televisão estadunidense exibida entre 1978 e 1991. Com quatorze
temporadas, o enredo gira em torno de uma rica família proprietária de uma empresa petro-
leira no Texas. [N. das T.]
370 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Terceiro e do Primeiro Mundo. Em todo esse processo, todas as tradições


nacionais e locais pelas quais as mulheres tiveram ou ainda têm algum tipo
de autonomia e força são definidas como “atrasadas”, “primitivas”, “selva-
gens”. Não pode ser do interesse das mulheres contribuir para essa destrui-
ção da história das mulheres. Um movimento feminista de classe média
poderia obter força, inspiração e orientação na história e na cultura dessas
mulheres “atrasadas”.
Isso é urgente e necessário porque o mito do “homem provedor”, o sol em
torno do qual as mulheres de classe média se movem como um planeta, está
colapsando. Cada vez mais evidências estão surgindo de que o casamento e a
família não são mais um seguro de vida econômico para as mulheres, de que
um número cada vez maior de homens está se esquivando da responsabilidade
com as mulheres e as crianças, e isso também entre as classes médias instruídas.
Portanto, as mulheres de classe média fariam bem em procurar suas irmãs mais
pobres e aprender com elas como sobreviver nessas circunstâncias. E como
sobreviver com dignidade.

PRINCÍPIOS E CONCEITOS BÁSICOS

É mais fácil saber o que não se deseja do que o que se deseja. Formular
uma perspectiva feminista para uma sociedade futura é uma tarefa
formidável que não pode ser realizada por um único indivíduo. Além disso,
não existe um centro ideológico ou teórico no movimento de mulheres
que possa assumir a tarefa de formular uma teoria, uma estratégia e uma
tática consistentes. O movimento feminista internacional é um movimento
verdadeiramente anárquico no qual qualquer mulher que se sinta compro-
metida e tenha algo a dizer pode contribuir para a formulação da visão da
sociedade futura. Há quem considere isso uma fraqueza do movimento, há
quem veja aí a sua força. Mas, seja qual for a posição que alguém possa to-
mar, o fato é que o movimento feminista não funciona de outra forma. Isso
vale ao menos para todos os grupos, organizações e mulheres individuais
que não subordinam a questão da mulher a nenhuma outra questão supos-
tamente mais geral, que, em outras palavras, desejam manter a autonomia
do movimento.
MARI A MI ES 371

As reflexões a seguir devem, portanto, ser entendidas como uma dessas


contribuições ao nosso esforço comum de elaborar uma utopia feminista
concreta de uma nova sociedade. A perspectiva que desejo apresentar não
pretende ser totalmente abrangente, embora deva tentar partir de uma consi-
deração da totalidade da realidade social em que vivemos. Nem tudo é novo
e original; muitas ideias já foram expressas por outras mulheres. Mas vou
tentar tirar algumas conclusões de nossas lutas e das experiências, estudos,
reflexões e querelas do passado recente, bem como da história do primeiro
movimento de mulheres. É um esforço para aprender com nossa história. Eu
sinto que, se não fizermos isso agora, as tendências de retrocesso, observáveis
em todos os lugares hoje, podem conseguir destruir novamente a história de
nossas lutas e ideias. Além disso, eles ameaçam destruir a própria essência do
que até agora foi entendido como “humano”.
Desenvolver uma nova perspectiva requer primeiro dar um passo para trás,
fazer uma pausa e ter uma visão panorâmica da realidade que nos rodeia. Isso
significa que devemos partir de uma visão de mundo que tente, na medida do
possível, abarcar a totalidade de nossa realidade.
Nossa análise mostrou que o paradigma capitalista-patriarcal do homem-
-caçador que moldou nossa realidade atual é caracterizado em todos os níveis
por divisões dualistas e hierarquicamente estruturadas, que são a base das pola-
rizações exploradoras entre as partes do todo: entre humanos e natureza, entre
homem e mulher, entre diferentes classes e entre diferentes povos, mas tam-
bém entre diferentes partes do corpo humano, por exemplo, entre a “cabeça”
e “o resto”, entre racionalidade e emocionalidade. No nível das ideias, essas
divisões dualistas são encontradas na valorização hierárquica e na polarização
dos conceitos de natureza e cultura, mente e matéria, progresso e retrocesso,
lazer e trabalho etc. Eu as chamo de divisões colonizadoras. Segundo esse pa-
radigma, a totalidade não está apenas dividida dessa forma, mas, como já foi
dito, a relação que se estabelece entre as duas partes é dinâmica, hierárquica e
exploradora, de modo que uma progride em detrimento da outra.
E não poderia ser de outra forma, uma vez que o mundo é finito, pelo
menos o mundo em que vivemos. No entanto, o Homem Branco, a encar-
nação do patriarca capitalista, não aceita a finitude da realidade; ele quer ser
como Deus: todo-poderoso, eterno, onisciente. Assim, ele inventou a ideia de
progresso infinito e de evolução infinita dos níveis inferiores, mais primitivos,
372 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

para níveis cada vez mais elevados e complexos do ser. Essa ideia, é claro, está
materialmente enraizada nas experiências históricas de conquista dos povos
nômades patriarcais, principalmente os judeus e os arianos. As teologias ju-
daica e cristã deram a necessária sanção religiosa à ideia do direito de do-
minar e subordinar a natureza e à expansão ilimitada. A revolução científica
na Europa, nos séculos XV e XVI, apenas secularizou essa ideia religiosa (cf.
Merchant, 1983).
Uma vez que a finitude dos seres humanos e do planeta não poderia ser
pensada ou especulada e que os princípios de igualdade e liberdade foram
formulados com uma pretensão de aplicabilidade universal, o retrocesso do
“outro lado”, empurrado para o escuro, não poderia ser simplesmente inter-
pretado como ordenado por Deus. Foi interpretado como um “atraso”, como
um “estágio inferior” da evolução. Na verdade, a ideia de uma mudança evo-
lutiva tornou-se a peça central na ideia de progresso dos povos “avançados”
do Ocidente. Eles se tornaram o símbolo do progresso para todos os povos
“atrasados”, da mesma forma que os homens se tornaram o símbolo do pro-
gresso para as mulheres.
Vimos, no entanto, que o progresso evolutivo para os colonizados, ou seja,
sua ascensão ao nível dos opressores, é uma impossibilidade lógica dentro de
um mundo finito. No entanto, a ilusão de que eles acabarão alcançando isso
é sustentada pelo lado “avançado” e “sempre em progresso”. Esse progresso,
porém, é mais do que nunca baseado na destruição progressiva dos funda-
mentos da vida, da natureza, da natureza humana, das relações humanas e,
particularmente, das mulheres. Na verdade, é uma produção da morte. Isso é
particularmente verdadeiro para as últimas invenções tecnológicas do homem
branco: a energia atômica, a microeletrônica e, acima de tudo, a engenharia
genética, a biotecnologia e a pesquisa espacial. Nenhuma dessas assim chama-
das revoluções tecnológicas será capaz de resolver qualquer um dos grandes
problemas sociais baseados na exploração. Em vez disso, contribuirão para a
destruição da natureza e da essência humana.
Nos últimos anos, tanto feministas quanto muitas outras pessoas come-
çaram a articular sua rejeição radical do paradigma do Homem Branco ou
homem-caçador (Daly, 1978; Fergusson, 1980; Merchant, 1983; Griffin, 1980;
Singh, 1976; Capra, 1982). Em seu posicionamento, rejeitam particularmente
as divisões dualistas dentro desse modelo, e procuram constituir uma aborda-
MARI A MI ES 373

gem holística, primeiro para nossos corpos, depois para a realidade em geral.
Muitas feministas, em sua busca por um novo paradigma holístico, limitam sua
análise e sua nova perspectiva aos fenômenos “culturais” ou ideológicos ou à
esfera da visão de mundo ou religião. Por mais importante que isso seja, não é
suficiente para chegar a um conceito realista e politicamente concreto de uma
nova sociedade, um conceito que inclua a vida material da maioria das pessoas
no mundo. Para elaborá-lo, é preciso não apenas rejeitar as divisões coloniais
no reino das ideias, mas também aquelas que existem na realidade material,
que moldam nossa vida cotidiana e o mundo em geral.
Assim, uma perspectiva feminista deve começar com alguns princípios
básicos, que podem orientar a ação política em todos os níveis. Os seguintes
me parecem os mais fundamentais:

1. Rejeição e abolição do princípio das divisões dualistas colonizadoras


(entre homens e mulheres, entre diferentes povos e classes, entre ser huma-
no e natureza, entre espírito e matéria) baseadas na exploração em benefí-
cio da produção de mercadorias em constante expansão e da acumulação
de capital.
2. Isso implica a criação de relações não exploradoras, não hierárquicas e
recíprocas entre partes de nosso corpo, entre as pessoas e a natureza, entre
mulheres e homens, entre diferentes setores e classes de uma sociedade e
entre diferentes povos.
3. Uma consequência necessária das relações não exploradoras entre nós
mesmas, a natureza, os outros seres humanos e os outros povos ou na-
ções será a recuperação da autonomia sobre nossos corpos e nossas vidas.
Essa autonomia significa, em primeiro lugar e acima de tudo, que não
podemos ser chantageadas ou forçadas a fazer coisas que vão contra a
dignidade humana em troca dos meios de nossa subsistência ou de nossa
vida. Autonomia, nesse sentido, não deve ser entendida de forma indi-
vidualista e idealista – como muitas vezes acontece com feministas –,
porque nenhuma mulher sozinha em nossa sociedade atomizada é capaz
de preservar sua autonomia. Na verdade, essa é a antítese da autonomia,
se for entendida nesse sentido egoísta e estreito. Porque a escravidão dos
consumidores, sob as condições capitalistas de produção generalizada de
mercadorias, ocorre precisamente pela ilusão de que cada indivíduo pode
374 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

comprar sua independência de outros seres humanos e das relações sociais


mediante a compra de mercadorias.120
A autonomia, entendida como liberdade de agir sem coerção e chantagem
sobre nossas vidas e corpos, só pode ser alcançada pelo esforço coletivo de
forma descentralizada e não hierárquica.
4. Rejeição da ideia de progresso infinito e aceitação da ideia de que nosso
universo humano é finito, nosso corpo é finito, a terra é finita.
5. O objetivo de todo trabalho e atividade humana não é uma expansão sem
fim da riqueza e das mercadorias, mas a felicidade humana (tal qual a visão
dos primeiros socialistas), ou a produção da vida em si.

Se tentarmos traduzir esses princípios mais ou menos abstratos em práticas


históricas e cotidianas, perceberemos imediatamente que os conceitos básicos
em torno dos quais a vida cotidiana se organiza são enormes obstáculos para
a realização desses princípios. O conceito que mais do que qualquer outro
moldou a vida no patriarcado capitalista é o conceito de trabalho. Para uma pers-
pectiva feminista, o conceito de trabalho, prevalente em todas as sociedades
capitalistas e socialistas, deve ser mudado radicalmente. A transformação desse
conceito deverá ser seguida por uma mudança do trabalho em si, da orga-
nização do trabalho, da divisão sexual do trabalho, dos produtos, da relação
entre trabalho e não trabalho, da divisão entre trabalho manual e intelectual,
da relação entre seres humanos e natureza, da relação com nossos corpos.
No que diz respeito ao conceito de trabalho prevalente em nossas socieda-
des, não há diferença qualitativa entre as sociedades capitalistas e as sociedades
socialistas. Em ambas, o trabalho é considerado um fardo necessário, que deve ser
reduzido, tanto quanto possível, pelo desenvolvimento das forças produtivas
ou da tecnologia. Liberdade, felicidade humana, realização de nossas capacida-
des criativas, relações amigáveis não alienadas com outros seres humanos, pra-
zer da natureza, das brincadeiras infantis etc., tudo isso está excluído do reino

120 Considero que esse individualismo, que em última análise se baseia na “liberdade” dos pro-
prietários privados e em seu poder de compra, é a mais séria debilidade do feminismo ociden-
tal. Em vez de buscar uma solução social para alguns dos problemas que afligem as mulheres, o
mercado e a tecnologia oferecem-lhes uma solução individual em forma de mercadoria, pelo
menos para quem tem dinheiro. Assim, as mulheres que podem comprar um carro estão muito
menos expostas à violência masculina nas ruas do que as que não podem.
MARI A MI ES 375

do trabalho e só é possível no reino do não trabalho, ou seja, nas horas de lazer.


Como o trabalho necessário é definido como aquele trabalho que é necessário
para a satisfação das necessidades humanas básicas – comida, roupas, abrigo –,
uma redução desse trabalho com o uso de máquinas é então o objetivo.
Supõe-se que as outras necessidades “superiores” mencionadas acima (liber-
dade, felicidade humana, “cultura” etc.) não podem ser satisfeitas ao mesmo
tempo que se realiza o trabalho necessário para a manutenção básica da vida.
O “progresso” é definido como uma redução progressiva do tempo de traba-
lho necessário e um aumento do tempo de lazer, quando as pessoas podem
finalmente satisfazer suas “necessidades superiores”. A utopia capitalista, assim
como a socialista, é aquela em que as máquinas (computadores, autômatos –
escravos clonados artificialmente?) fazem todo o trabalho necessário e em que
as pessoas podem se entregar a atividades consumistas e criativas.
Antes de tentar especificar um conceito feminista de trabalho, pode ser útil
dar mais uma olhada no conceito marxista de trabalho porque, em contraste
com os capitalistas, o trabalho para os socialistas não é apenas a maldição ou o
fardo necessário, mas também o motor que leva a humanidade à transição para
a verdadeira sociedade comunista. Vejamos se o conceito de trabalho usado
por Marx é adequado para cumprir essas promessas.
Em O capital, Marx escreve:

O reino da liberdade só começa, de fato, onde cessa o trabalho determina-


do pela necessidade e pela adequação a finalidades externas; portanto, pela
própria natureza da questão, isso transcende a esfera da produção material
propriamente dita. Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza
para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim
também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas
de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desen-
volvimento, amplia-se esse reino da necessidade natural, pois se ampliam
as necessidades; mas, ao mesmo tempo, ampliam-se as forças produtivas
que as satisfazem. Nesse terreno, a liberdade só pode consistir em que o
homem social, os produtores associados, regulem racionalmente esse seu
metabolismo com a Natureza, trazendo-o para seu controle comunitário,
em vez de serem dominados por ele como se fora por uma força cega; que
o façam com o mínimo emprego de forças e sob as condições mais dignas
376 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

e adequadas à sua natureza humana. Mas esse sempre continua a ser um


reino da necessidade. Além dele é que começa o desenvolvimento das forças
humanas, considerado como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade,
mas que só pode florescer sobre aquele reino da necessidade como sua base.
A redução da jornada de trabalho é a condição fundamental. (O capital, vol. III,
1974, p. 799-800; destaques da autora)121

A ideia mais importante nessa passagem é que o “reino da liberdade” só


virá quando “cessa[r] o trabalho determinado pela necessidade”. Portanto, o
objetivo de todo empreendimento econômico, científico e político é a “re-
dução da jornada de trabalho” como “condição fundamental” para o advento
do reino da liberdade, ou como escreve Alfred Schmidt: “O problema da li-
berdade humana é reduzido por Marx ao problema do tempo livre” (Schmidt,
1973, p. 142; ênfase do original). Reduzir o tempo necessário para a produção
dos requisitos básicos para manter nossa existência física continuará a ser um
objetivo social principal quando a propriedade privada e a produção de mer-
cadorias forem abolidas. Marx escreve sobre isso nos Grundrisse:

Pressuposta a produção coletiva, a determinação do tempo permanece na-


turalmente essencial. Quanto menos tempo a sociedade precisa para pro-
duzir trigo, gado etc., tanto mais tempo ganha para outras produções, ma-
teriais ou espirituais. Da mesma maneira que, para um indivíduo singular,
a universalidade de seu desenvolvimento, de seu prazer e de sua atividade
depende da economia de tempo. Economia de tempo, a isso se reduz afinal toda
economia. (Grundrisse, 1974, p. 89; destaque da autora)122

A redução do “tempo de trabalho socialmente necessário” e o salto para


o reino da liberdade são resultado de dois processos: 1) o desenvolvimen-
to sempre crescente das forças produtivas, da ciência e da tecnologia; 2)
a abolição da propriedade privada, da sociedade de classes, a socialização

121 O capital, vol. III, tomo II. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cul-
tural, 1996, p. 273. [N. das T.]

122 Grundrisse. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 119. [N.
das T.]
MARI A MI ES 377

dos meios de produção e a socialização ou associação dos produtores. O


primeiro processo não só levaria a uma redução do tempo de trabalho ne-
cessário, mas também à racionalização dos próprios produtores associados,
cujo domínio sobre a “força cega” da natureza é, assim, imensamente au-
mentado. Essa “racionalização” não significa apenas dominação e controle
sobre a natureza externa, mas, ainda mais importante, a supressão de seus
“instintos”, da mera “natureza” ou “natureza animal” “cega” no homem. A
colonização dessa natureza “inferior” no homem é tanto um pré-requisito
quanto uma consequência do desenvolvimento em expansão da ciência e
da tecnologia, ou, como dizem os marxistas, das forças produtivas. Enquanto
para Engels (1936, p. 311-312) o salto para o reino da liberdade se dá com a
abolição da propriedade privada e o desenvolvimento contínuo da ciência,
Marx é mais cético, pois não espera que, mesmo com a socialização dos
meios de produção e o mais alto grau de progresso tecnológico, o trabalho
(também como um “fardo”) possa ser totalmente abolido, mesmo em uma
sociedade comunista. Pois, como vimos no capítulo 2, o trabalho, segundo
Marx, não é apenas um fardo, cujo peso é historicamente determinado pelo
desenvolvimento das forças produtivas, mas também, independentemente da
história, uma interação humana com a natureza, a “condição natural eterna da
vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo
antes igualmente comum a todas as suas formas sociais” (O capital, 1974, vol.
I, p. 183-184)123.
A esse respeito, Marx era mais realista e materialista do que Engels, mas
ambos eram otimistas e idealistas com relação à potencialidade da ciência e da
tecnologia para transformar a sociedade, especialmente para abolir as divisões
do trabalho que, em seus primeiros escritos, consideravam a causa principal da
alienação do homem de si mesmo: a divisão social do trabalho pela sociedade
de classes, a divisão do trabalho no processo de trabalho (capitalista), com a
consequente alienação do trabalhador de seu produto, e a divisão do trabalho
entre manual e intelectual.
A utopia comunista é aquela em que o trabalho socialmente necessário foi
reduzido a quase zero, em que o homem tem tempo de lazer abundante para
sua autorrealização e desenvolvimento humano de sua rica individualidade.

123 O capital, vol. I, tomo I, 1996, p. 303. [N. das T.]


378 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Na Ideologia Alemã, eles escrevem:

(...) assim que o trabalho começa a ser distribuído, cada homem tem um
círculo de atividade determinado e exclusivo que lhe é imposto e do qual
não pode sair; será caçador, pescador ou pastor ou crítico, e terá de conti-
nuar a sê-lo se não quiser perder os meios de subsistência – ao passo que na
sociedade comunista, na qual cada homem não tem um círculo exclusivo
de atividade, mas pode se formar [ausbilden] em todos os ramos que prefe-
rir, a sociedade regula a produção geral e, precisamente desse modo, torna
possível que eu faça hoje uma coisa e amanhã outra, que cace de manhã,
pesque de tarde, crie gado à tardinha, critique depois da ceia, tal como me
aprouver, sem ter de me tornar caçador, pescador, pastor ou crítico. (Marx
& Engels, vol.V, 1976, p. 47)124

Marx e Engels esperavam que a realização dessa visão utópica de uma so-
ciedade comunista (da qual, aliás, as mulheres parecem estar ausentes) nascesse
do desenvolvimento das forças produtivas, da abolição da propriedade privada
e da socialização da produção. Nas obras posteriores de Marx, no entanto, a
imagem idílica de como o homem comunista passa seus dias torna-se um
pouco confusa.
Como Alfred Schmidt observa, de acordo com Marx, o processo de subs-
tituição do trabalho humano por máquinas e autômatos seria relativamente
independente da organização social. Sob o comunismo, esse processo seria
mais acelerado do que desacelerado ou interrompido:

Marx enfatizou nos Grundrisse que a transformação incessante da natu-


reza na indústria também ocorre sob condições socialistas. A unidade de
conhecimento e transformação da natureza, realizada em larga escala na
indústria, deve tornar-se no futuro uma característica ainda mais determi-
nante dos processos de produção. Ele tinha em mente a automação total
(Verwissenschaftlichung) da indústria, que mudaria o papel do trabalhador
cada vez mais para o de um “supervisor e regulador” técnico. (Schmidt, 1973,
p. 147; destaque do original)

124 A ideologia alemã, 2009, p. 49. [N. das T.]


MARI A MI ES 379

A total impregnação do processo de trabalho industrializado pela ciência, a


crescente redução do tempo de trabalho e o desenvolvimento da automação
acabam por tornar obsoleto o trabalhador como principal agente da produção:

Ele se coloca ao lado do processo de produção, em lugar de ser o seu agen-


te principal. Nessa metamorfose, o que aparece como a grande coluna de
sustentação da produção e da riqueza não é nem o trabalho imediato que o
próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropria-
ção de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza
por sua existência como corpo social – em suma, o desenvolvimento do
indivíduo social. (Grundrisse, 1974, p. 592; destaque da autora)125

Tratei do conceito marxista de trabalho, dos pontos de vista marxistas sobre


o progresso tecnológico e da visão comunista de uma verdadeira sociedade
porque essas ideias são compartilhadas pela maioria dos socialistas, bem como
por muitas feministas socialistas. Especialmente a visão de que o progresso
ilimitado da ciência e da tecnologia é uma espécie de “lei da natureza” ou his-
tórica e será a principal força motriz da transformação da sociedade humana
e das relações sociais tornou-se uma nova fé para muitas pessoas. Mesmo as
pessoas que estão procurando seriamente por uma alternativa ao capitalismo
destrutivo ainda baseiam seu projeto de uma nova sociedade nas maravilhas
da inovação tecnológica.
Assim, para André Gorz (1983), chegou a hora em que podemos mar-
char diretamente para o paraíso marxista porque, com a microeletrônica, os
computadores e a automação, o trabalho necessário pode quase ser reduzido
a zero. Para ele, o único problema que ainda persiste é distribuir o resto des-
se trabalho entre a população e, assim, avançar rumo à realização do paraíso
marxista, no qual o principal problema das pessoas será preencher seu tempo
livre com atividades criativas. O que Gorz e outros autores sistematicamente
excluem de suas análises é a parte inferior do paraíso, o “inferno”. Esse paraíso
do Admirável Mundo Novo é baseado na exploração imperialista contínua de
colônias externas e das mulheres, a colônia interna do Homem Branco. Essas
seriam as pessoas que ainda produziriam vida, e, em grande parte, em formas

125 Grundrisse, 2011, p. 588. [N. das T.]


380 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

de trabalho não livres e domésticas no chamado setor informal. Porque apesar


da automação completa e da informatização, as pessoas ainda têm corpos que
precisam de alimentos, cuidados humanos etc., e isso não vem das máquinas.
Como Claudia von Werlhof apontou, esse paraíso não é para as mulheres, mas
sim baseado em sua exploração permanente e mundial. É o último esforço
desesperado do Homem Branco para realizar sua utopia tecnocrática, fundada
na dominação da natureza, das mulheres e das colônias (von Werlhof, 1984).
O conflito que Alfred Schmidt observa em relação ao otimismo de Marx
sobre o desenvolvimento quantitativo de uma rica individualidade humana
como o principal objetivo do comunismo foi resolvido por teóricos moder-
nos e alternativos desta forma: as colônias (natureza, mulheres, povos exóticos)
são mantidas em cativeiro pelo Homo economicus e pelo Homo scientificus
para que o homem não seja totalmente isolado da natureza, da terra, de sua
própria sensualidade, a eterna condição de toda a existência humana e da
felicidade. Enquanto essa base estiver garantida, ele pode continuar com seu desen-
volvimento ilimitado das forças produtivas para a satisfação ilimitada de seus desejos
ilimitados (ou melhor, de seus vícios). Para esse homem, o reino da liberdade está
realmente na próxima esquina, mas às custas da escravidão das mulheres e do
Terceiro Mundo.

RUMO A UM CONCEITO FEMINISTA DE TRABALHO

É óbvio, a partir de nossa discussão acima, que o desenvolvimento de um


conceito feminista de trabalho tem de começar com uma rejeição da distinção
entre trabalho socialmente necessário e lazer, como na visão marxista de que
a autorrealização, a felicidade humana, a liberdade, a autonomia – o reino da
liberdade – só podem ser alcançadas fora da esfera da necessidade e do trabalho
necessário e por uma redução (ou abolição) deste último.

1. Se tomarmos como nosso modelo de “trabalhador” não o trabalhador


industrial branco (independentemente de ele trabalhar sob condições
capitalistas ou socialistas), mas uma mãe, poderemos ver imediatamente que
seu trabalho não se encaixa no conceito marxista. Para ela, o trabalho é sem-
pre ambos: um fardo, mas também fonte de prazer, autorrealização e felicida-
MARI A MI ES 381

de. As crianças podem dar-lhe muito trabalho e problemas, mas esse trabalho
nunca está totalmente alienado ou morto. Mesmo quando as crianças acabam
por ser uma decepção para a mãe, quando eventualmente a deixam ou sentem
desprezo por ela – como na verdade muitos fazem em nossa sociedade –, a
dor que ela sente por tudo isso ainda é mais humana do que a indiferença
fria do trabalhador industrial ou do engenheiro face a seus produtos, isto é, as
mercadorias que eles produzem e consomem.
A mesma unidade do trabalho como fardo e prazer pode ser encontrada
entre os camponeses cuja produção ainda não está totalmente subsumida à pro-
dução de mercadorias e às compulsões do mercado. Os camponeses que têm de
trabalhar do nascer ao pôr do sol durante a época de colheita, por exemplo, sen-
tem, mais do que outro trabalhador, o fardo do trabalho em seus corpos e em
seus músculos. Mas, apesar das dificuldades desse trabalho, ele nunca é apenas
“uma maldição”. Lembro-me dos tempos de feitura do feno e colheita em nos-
sa pequena fazenda de subsistência onde passei minha infância como tempos de
extrema intensidade de trabalho para todos, mãe, filhos, pai, e como tempos de
grande excitação, prazer, interação social. Encontrei o mesmo fenômeno entre
camponesas pobres e trabalhadoras agrícolas da Índia durante a temporada de
transplante de arroz. Embora nesse caso o trabalho devesse ser feito para um
senhorio explorador, a combinação de trabalho e prazer, de trabalho e lazer
ainda existia. Além disso, essa época de intenso trabalho era também a época
da mais pronunciada atividade cultural das mulheres. Durante os processos de
trabalho coletivos no campo, elas cantavam um número infinito de canções que
as ajudavam a suportar o fardo do trabalho com mais facilidade. E, após a refei-
ção da noite, elas dançavam e cantavam juntas até tarde (Mies, 1984). Qualquer
pessoa que tenha tido a oportunidade de observar o processo de trabalho das
pessoas envolvidas na produção de subsistência, não orientada para o mercado,
terá encontrado essa interação entre o trabalho como necessidade e fardo e o
trabalho como uma fonte básica de prazer e expressão pessoal.126
O mesmo vale para o trabalho do artesão e outros trabalhos manuais en-
volvidos na produção artesanal, desde que ainda não estejam totalmente sub-
metidos às compulsões do mercado.

126 Percebi a mesma unidade de trabalho como prazer e como fardo entre os povos tribais em
Andhra Pradesh, na Índia.
382 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

A principal característica dos processos de trabalho descritos acima é que


todos estão ligados à produção direta de vida ou de valores de uso. Um conceito
feminista de trabalho deve ser orientado para a produção de vida como a meta
do trabalho, e não para a produção de coisas e de riqueza (ver a citação de Marx
acima), da qual a produção de vida torna-se uma derivação secundária. A
produção de vida imediata em todos os seus aspectos deve ser o conceito central
para o desenvolvimento de um conceito feminista de trabalho.

2. Além da unidade do trabalho como fardo e como expressão de nossa na-


tureza humana e prazer, um conceito feminista de trabalho não pode ser
baseado na economia do tempo marxista (e capitalista). A redução do tempo de
trabalho diário ou do tempo de trabalho ao longo de uma vida não pode ser
um método para a realização de uma utopia feminista. As mulheres já perce-
beram que a redução do tempo gasto na produção de mercadorias não leva
a mais liberdade para elas, mas sim a mais trabalho doméstico, mais trabalho
não remunerado na produção doméstica, mais trabalho relacional ou emocio-
nal, mais trabalho de consumo. A visão de uma sociedade na qual quase todo
o tempo é tempo de lazer e o tempo de trabalho é reduzido ao mínimo é, para
as mulheres, em muitos aspectos, uma visão de horror, não apenas porque o
trabalho doméstico e o trabalho não assalariado nunca foram incluídos no
trabalho que se supõe ser reduzido pelas máquinas, mas também porque serão
as mulheres que terão de devolver aos então ociosos homens um senso de rea-
lidade, sentido e vida.
Um conceito feminista de trabalho deve, portanto, ser orientado para um
conceito diferente de tempo, no qual o tempo não é segregado em porções de
trabalho pesado e porções de suposto prazer e lazer, mas em que o tempo de
trabalho e o tempo de descanso e prazer são alternados e entremeados. Se tal
conceito e tal organização do tempo prevalecerem, a duração da jornada de
trabalho deixará de ser muito relevante. Assim, uma longa jornada de trabalho
e mesmo uma vida inteira de trabalho não será sentida como uma maldição,
mas como uma fonte de realização e felicidade humana.
Esse novo conceito de tempo não pode, evidentemente, se fazer possível
sem que a divisão sexual do trabalho existente seja abolida. Tal mudança,
no entanto, não virá, como algumas mulheres esperam, por uma redução
da jornada ou da semana de trabalho graças à racionalização e à automação.
MARI A MI ES 383

Os homens cujo tempo de trabalho semanal ou diário já foi reduzido pela


tecnologia moderna não compartilham mais as tarefas domésticas, preferem
beber mais, assistir televisão ou fazer outras atividades de lazer masculinas
(como assistir filmes ou jogar no computador).127 Toda a redução da jornada
de trabalho desde os tempos de Marx e Engels não resultou, em nenhum
lugar, em uma mudança na divisão sexual do trabalho, não fez com que os
homens se sentissem mais responsáveis pelo trabalho doméstico, pelos filhos
ou pela produção da vida.

3. O terceiro elemento que deve ser enfatizado em um conceito feminista


de trabalho é a manutenção do trabalho como uma interação direta e sensual
com a natureza, com a matéria orgânica e os organismos vivos. No conceito mar-
xista de trabalho, essa interação sensual, corporal com a natureza – natureza
humana e natureza externa – é amplamente eliminada porque cada vez mais
máquinas são inseridas entre o corpo humano e a natureza. É evidente que
essas máquinas deveriam dar ao homem domínio e poder sobre a natureza
“selvagem” “cega”, mas ao mesmo tempo reduzem sua própria sensualidade.
Com a eliminação do trabalho como necessidade e fardo, elimina-se também
o potencial do corpo humano para o prazer, a sensualidade e a satisfação
erótica e sexual. Como nosso corpo sempre será a base para nosso prazer e
felicidade, a destruição da sensualidade, resultante da interação com máqui-
nas e não com organismos vivos, só resultará em uma busca patológica por
uma “natureza” idealizada. Em um esforço desesperado para restaurar essa
sensualidade perdida do corpo (masculino), o corpo feminino é mistificado
tanto como “natureza pura” quanto como objetivo de satisfação de todos
os desejos.128 A expropriação e eventual destruição da sensualidade humana

127 Li que, na Inglaterra, uma nova categoria de “viúvas” foi identificada pelas sociólogas.
Depois da “viúva do futebol”, agora é a “viúva do computador” que perde o marido, dessa vez
para a máquina.

128 Essa parece ser uma espécie de lei não escrita do patriarcado capitalista. Ela se aplica às
mulheres, à natureza e às colônias. O patriarcado capitalista e a ciência devem primeiro destruir
a mulher, a natureza ou outros povos como sujeitos autônomos. Eles então são adorados e pro-
jetados como objetivo de todos os desejos masculinos. Essa é a base de todo amor romântico,
da romantização da natureza e da romantização dos povos exóticos ou “nativos”.
384 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

pelas máquinas modernas não é mais pronunciada do que no culto ao com-


putador que atualmente pode ser observado em todos os lugares. É um culto
masculino típico e destinado a homens cuja sensualidade já foi em grande
parte destruída pelo fato de que o progresso tecnológico os colocou “ao lado
do processo de produção, em lugar de ser o seu principal agente” (Marx, ver
a citação acima). Longe de levar à “apropriação de sua própria força produ-
tiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza” (Marx, ver citação
acima), a tecnologia da computação está, de fato, destruindo toda a força
produtiva humana, toda a compreensão da natureza e, em particular, toda a
capacidade de prazer sensual. Considero que essa seja uma das razões pelas
quais a violência contra as mulheres tem aumentado nas sociedades industrializa-
das. Homens que não sentem mais seu corpo no processo de trabalho em si
tentam recuperar algum sentimento corporal e emocional atacando mulheres.
Essa também é a razão pela qual filmes de terror e pornografia violenta estão
entre os mais vendidos da indústria do audiovisual. Seus principais consumi-
dores são homens, muitos deles desempregados, em empregos informatizados
ou de serviço na indústria.

4. No entanto, a interação direta e sensual com a natureza no processo de


trabalho ainda não é suficiente. Ela também pode ser alcançada por meio de
algum esporte ou hobby. E, de fato, os arquitetos da sociedade moderna estão
visualizando o aumento de atividades físicas como uma espécie de terapia
para pessoas que foram despedidas por conta da automação. Mas por quanto
tempo hobbies e esportes fornecerão um senso de propósito e significado para
as pessoas, mesmo que suas necessidades diárias sejam cobertas pelo Estado
de bem-estar social?
Um conceito feminista de trabalho tem de afirmar que o trabalho deve
manter seu senso de propósito e seu caráter de utilidade e necessidade para as pessoas
que o fazem e para aquelas ao seu redor. Isso também significa que os produ-
tos desse trabalho devem ser úteis e necessários, e não apenas alguns luxos ou
lixo supérfluo como são a maioria dos artesanatos feitos hoje por mulheres
em “atividades geradoras de renda” em países do Terceiro Mundo.

5. Esse senso de utilidade, de necessidade e de finalidade em relação ao traba-


lho e seus produtos, entretanto, só pode ser restaurado à medida que a divisão
MARI A MI ES 385

e a distância entre a produção e o consumo sejam gradualmente abolidas.


Hoje, divisão e alienação são, como vimos, globais. As mulheres do Terceiro
Mundo produzem coisas que desconhecem e as mulheres do Primeiro Mun-
do consomem objetos que lhes são estranhos.
Dentro de uma perspectiva feminista, a produção de vida é o objetivo prin-
cipal da atividade humana. Isso exige que os processos de produção das coisas
necessárias e os processos de consumo sejam novamente reunidos. Porque
apenas consumindo as coisas que produzimos podemos julgar se elas são úteis,
se têm sentido, se são salutares, se são necessárias ou supérfluas. E somente
produzindo o que consumimos podemos saber quanto tempo é realmente ne-
cessário para produzir as coisas que queremos consumir, quais habilidades são
necessárias, quais conhecimentos são necessários e qual tecnologia é necessária.
A abolição da enorme divisão entre produção e consumo não significa, é
claro, que todo indivíduo, ou mesmo toda pequena comunidade, deva pro-
duzir tudo o que precisa e encontrar todas as matérias necessárias em seu
ambiente ecológico. Mas implica que a produção da vida se baseie em uma
relação autárquica específica de uma comunidade específica de pessoas de
uma região específica, cujo tamanho deve ser determinado com base nos
princípios enunciados no início desta seção. Os bens e serviços importados
para tal região devem ser o resultado de relações de não exploração com a
natureza, as mulheres e outros povos. A união tendencial da produção e do
consumo reduzirá drasticamente as possibilidades dessa exploração e aumen-
tará amplamente o potencial de resistência à chantagem e coerção econômica
e política.

UMA ECONOMIA ALTERNATIVA

É óbvio que tal conceito de trabalho transcende o quadro de uma econo-


mia baseada na permanente expansão da receita monetária e na permanente
expansão das forças produtivas em termos de desenvolvimento de alta tec-
nologia. Na medida em que esse paradigma levou ao superdesenvolvimento
de algumas nações e ao subdesenvolvimento das mulheres, da natureza e das
colônias, uma concepção de trabalho orientada para a produção da vida exige
uma inversão e uma transcendência desse quadro.
386 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Podemos não estar ainda em posição de apresentar um quadro alternati-


vo totalmente elaborado para uma economia não baseada na exploração da
natureza, das mulheres e das colônias, mas muitas características importantes
para a nova sociedade foram explicitadas nos últimos anos por pessoas que
compreenderam que o superdesenvolvimento não é apenas prejudicial para as
pessoas na Ásia, América Latina e África, mas também está destruindo a pró-
pria essência da vida humana nos centros do superdesenvolvimento (Caldwell,
1977; Singh, 1976, 1980).
O primeiro requisito básico de uma economia alternativa é a mudança,
tanto nas sociedades superdesenvolvidas quanto nas subdesenvolvidas, de uma
situação de dependência de economias externas às suas fronteiras nacionais
para satisfazer suas necessidades básicas de subsistência – alimentos, roupas,
abrigo – em direção a uma maior autarquia. Somente sociedades que são
em grande medida autossuficientes na produção dessas necessidades básicas
podem manter-se livres da chantagem política e da fome. Para isso, a autossu-
ficiência alimentar é o primeiro requisito.
Malcolm Caldwell mostrou que, com a terra cultivável disponível e a po-
pulação atual, esse modelo de autossuficiência alimentar e energética seria
perfeitamente possível na Grã-Bretanha. Seria igualmente possível em qual-
quer outro dos países superdesenvolvidos da Europa ou da América do Norte
(Caldwell, 1977, p. 178). Além do mais, se os governos desses países superde-
senvolvidos não tivessem subornado seus trabalhadores importando alimentos
baratos, roupas baratas, matérias-primas baratas etc. dos chamados países de
mão de obra barata, esses países da Ásia, África e América Latina poderiam
ser todos autossuficientes em alimentos, roupas, abrigos etc. É curioso que
as pessoas no Ocidente já tenham esquecido que todos os países subdesen-
volvidos não são apenas ricos em recursos naturais e humanos, mas também
eram sociedades autossuficientes antes da conquista do Homem Branco. Se
a proteína alimentar importada para a Europa de países do Terceiro Mundo
na forma de ração animal para produzir mares de leite, montanhas de man-
teiga etc. fosse usada para alimentar a população local, não haveria fome em
nenhuma dessas regiões (Collins & Lappe, 1977). Em 1977, 90% dos concen-
trados de proteína com os quais os fazendeiros britânicos alimentavam seus
rebanhos eram importados de países subdesenvolvidos. Sabemos também que
a eficiência energética (relação entre a energia utilizada para a produção de
MARI A MI ES 387

alimentos e a energia obtida com o consumo desses alimentos) é menor nos


países superdesenvolvidos, cujos alimentos são produzidos principalmente pela
agroindústria. Assim, a eficiência energética de uma alface cultivada em uma
estufa é de apenas 0,0023 e a do pão branco fatiado é de 0,525, enquanto o
milho mexicano local, cultivado sem o uso de maquinário, tem um fator de
eficiência energética de 30,60 (Caldwell, 1977, p. 179-180).
Uma economia amplamente autárquica129 levaria necessariamente a uma
mudança na divisão internacional – exploradora e não recíproca – do trabalho
existente e a uma contração do mercado mundial e da produção orientada para
a exportação, tanto nos países superdesenvolvidos (cujas economias dependem
da exportação de produtos industriais) quanto nos países subdesenvolvidos,
que têm de pagar os créditos recebidos exportando suas matérias-primas.
Outra consequência de uma economia mais ou menos autossuficiente
seria uma redução drástica de todo o trabalho não produtivo, no sentido
em que uso o termo, particularmente no setor terciário, uma mudança na
composição da força de trabalho com um movimento de afastamento do
emprego nas indústrias em direção ao emprego na agricultura. Se as pessoas
de uma determinada região quiserem viver principalmente dos recursos
naturais e do trabalho disponíveis naquela região, então muito mais pessoas
terão de fazer o trabalho braçal necessário para a produção de alimentos.
Conscientes da finitude de tal região, as pessoas também teriam o cuidado
de não destruir seu ambiente ecológico, de cujo equilíbrio depende a so-
brevivência de todos, com o abuso de produtos químicos agrícolas e excesso
de maquinário, os quais consomem demasiada energia. Como diz Malcolm
Caldwell, com a redução do uso de energia inanimada, um aumento da
produção só poderia vir de um aumento da força muscular (Caldwell, 1977,
p. 180). Em vez de uma agricultura de capital intensivo, haveria uma agri-
cultura de trabalho intensivo. Essa agricultura não estaria concentrada em
grandes latifúndios e fábricas do agronegócio, mas em pequenas proprieda-
des descentralizadas. Com uma mudança desse tipo na divisão internacional

129 Em todas as discussões sobre uma economia alternativa, é necessário enfatizar que o con-
ceito de “economia autárquica” não implica total autossuficiência. Uma economia ou socieda-
de totalmente autossuficiente é uma abstração, mas uma economia amplamente autossuficiente
é possível.
388 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

do trabalho e na divisão do trabalho entre a agricultura e a indústria, com a


agricultura voltada para a autossuficiência alimentar, muitos dos elementos
necessários para um conceito feminista de trabalho já seriam alcançados
– por exemplo, a restauração do trabalho como necessário e provido de
sentido, com contato direto com a natureza ou com os organismos vivos;
possivelmente haveria também uma noção diferente de tempo de trabalho,
uma redução da lacuna entre a produção e o consumo e mais autonomia
dos produtores-consumidores sobre o que produzem e consomem. Em tal
economia não haveria espaço nem utilidade para a produção de coisas des-
necessárias e para o puro desperdício, como é o caso do modelo de cres-
cimento. Porque as decisões relativas à produção seriam baseadas em uma
avaliação realista dos recursos naturais, ecológicos e humanos, bem como
nas verdadeiras necessidades das pessoas para uma vida humana. Isso nos
afastaria da criação e manutenção de vícios cada vez mais destrutivos que, na
conjuntura atual, são a única maneira de o capital ainda continuar a expan-
dir seus mercados nas regiões superdesenvolvidas. Devolveria às pessoas mais
autonomia sobre suas vidas e sobre a produção de vida. Como Caldwell
aponta, essa reestruturação radical da economia não é apenas um lindo so-
nho ou um caso de política exortativa, mas se tornará cada vez mais uma
necessidade, especialmente para os trabalhadores que se tornaram definiti-
vamente dispensáveis devido ao rápido desenvolvimento da alta tecnologia
e da automação. Ele nos lembra que já em 1976 o desemprego massivo na
Itália levou uma grande quantidade de trabalhadores de volta à terra. Cerca
de 100 mil trabalhadores voltaram à agricultura (Caldwell, 1977, p. 181).
Um movimento semelhante de volta ao trabalho com a terra ocorreu há
dois anos na Índia durante a greve dos trabalhadores têxteis em Mumbai,
que durou quase um ano.
Embora atualmente esse movimento de retorno ao campo possa parecer
uma opção disponível principalmente para as classes médias urbanas frustra-
das, a crescente pobreza nos centros metropolitanos, principalmente entre os
trabalhadores estrangeiros, os jovens e, sobretudo, entre as mulheres, acabará
transformando o romantismo campestre de muitos desses excêntricos em
uma estratégia de sobrevivência necessária. Essas pessoas podem ser as pri-
meiras a perceber que não se pode comer dinheiro e que os alimentos não
nascem de computadores.
MARI A MI ES 389

A maioria dos ecologistas e das pessoas que buscam uma alternativa ra-
dical para a sociedade destrutiva em que vivemos concordaria com as ideias
acima. O mesmo aconteceria com muitas feministas. Mas descobririam que
a breve descrição de uma economia alternativa feita por Caldwell é também
omissa quanto à divisão do trabalho não recíproca e exploradora entre os
sexos. A perspectiva de uma economia relativamente autárquica baseada em
relações não exploratórias com o meio ambiente, com outros povos, com as
pessoas da mesma região, organizada em pequenas unidades descentralizadas
de produção e consumo, para as feministas, não é ampla o suficiente se não
começar com uma mudança radical da divisão sexual do trabalho. Na verdade,
na maioria dos escritos ecológicos, a “questão da mulher” não é mencionada
de forma alguma ou é simplesmente adicionada a uma longa lista de outras
questões mais urgentes e mais “gerais”. Já disse, no primeiro capítulo, que esse
“acréscimo” não será suficiente se quisermos mudar a desumana relação atual
homem-mulher. A concepção de uma economia alternativa é, portanto, não
apenas incompleta sem o objetivo de transcender a divisão sexual patriarcal
do trabalho, mas será baseada em uma ilusão de mudança e, consequentemente,
não será capaz de realmente transcender o status quo.
Uma concepção feminista de uma economia alternativa deve incluir tudo
o que foi dito anteriormente sobre autarquia e descentralização. Mas colo-
cará a transformação da divisão sexual do trabalho atual (baseada no modelo
da mulher dona de casa-homem provedor) no centro de todo o processo de
reestruturação. Isso não é mera autoindulgência narcisista das mulheres, mas
o resultado de nossa pesquisa histórica, bem como de nossa análise do fun-
cionamento do patriarcado capitalista. As feministas não partem da ecologia,
da economia e da política externas, mas da ecologia social, cujo centro é
a relação entre homens e mulheres. Autonomia sobre nossos corpos e vidas é,
portanto, a primeira exigência, e a mais fundamental, do movimento femi-
nista internacional. Qualquer busca por uma autarquia ecológica, econômica
e política deve partir do respeito à autonomia do corpo feminino, sua ca-
pacidade produtiva de criar vida nova, sua capacidade produtiva de manter
a vida pelo trabalho, sua sexualidade. Uma mudança na divisão sexual do
trabalho atual implicaria, antes de mais nada, que a violência que caracteriza
as relações homem-mulher patriarcais capitalistas em todo o mundo fosse
abolida não pelas mulheres, mas pelos homens. Os homens têm de recusar sua
390 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

autodefinição como homem-caçador. Os homens devem iniciar movimentos


contra a violência contra as mulheres se quiserem preservar a essência de sua
própria humanidade.130
Essa exigência de autonomia em relação aos corpos das mulheres também
implica que qualquer controle do Estado sobre a fertilidade das mulheres deve ser
rejeitado. As mulheres têm de ser libertadas de seu status de recurso natural para
os homens como indivíduos, assim como para o Estado como o Patriarca Total.
A verdadeira libertação das mulheres será o método mais barato e eficiente
para restaurar o equilíbrio entre o crescimento populacional e a produção de
alimentos. Essa é, de fato, a principal falha na excelente exposição de Caldwell
de uma sociedade homeostática alternativa. O “controle populacional” ainda é
considerado responsabilidade do Estado; não está nas mãos das mulheres. Elas
não serão consideradas sujeitos humanos totalmente responsáveis enquanto os
homens ou o Estado tentarem exercer controle sobre sua fertilidade.
Em segundo lugar, em uma economia alternativa, os homens têm de com-
partilhar a responsabilidade pela produção imediata da vida, pelo cuidado dos
filhos, pelo trabalho doméstico, pelo cuidado dos doentes e dos idosos, pelo
trabalho emocional, todos esses trabalhos que até agora foram incluídos no
termo “trabalho doméstico”. Mesmo onde esse trabalho já foi socializado até
certo ponto – o que pode ser útil –, os homens têm ainda de compartilhá-lo
em termos iguais com as mulheres. Em uma comunidade que deseja preser-
var sua autossuficiência e seguir um caminho de desenvolvimento humano
não exploratório, esse “trabalho doméstico” não poderia ser pago. Teria de
ser um trabalho gratuito para a comunidade. Mas cada homem, cada mulher
e também as crianças teriam de compartilhar esse trabalho tão importante.
Ninguém, e particularmente nenhum homem, poderia se livrar desse traba-
lho na produção da vida imediata. Isso teria o efeito imediato de fazer com
que os homens passassem mais tempo com as crianças, cozinhando, limpando,
cuidando dos doentes etc., de modo que teriam menos tempo para sua pro-
dução destrutiva na indústria, menos tempo para suas pesquisas destrutivas,
menos tempo para suas atividades destrutivas de lazer, menos tempo para suas

130 Há sinais de esperança de que ao menos alguns homens estão começando a entender isso.
Em Hamburgo, os homens criaram uma nova iniciativa chamada “Homens contra a violência
masculina contra as mulheres”.
MARI A MI ES 391

guerras. Positivamente, eles recuperariam a autonomia e a integridade de seus


próprios corpos e mentes, reexperimentariam o trabalho como fardo e pra-
zer e, finalmente, também desenvolveriam uma escala de valores totalmente
diferente em relação ao trabalho. Somente fazendo esse trabalho de produção
e preservação da vida é que eles mesmos serão capazes de desenvolver um con-
ceito de trabalho que transcenda o conceito patriarcal capitalista explorador.
Uma mudança na divisão sexual do trabalho teria no nível dos indivídu-
os o mesmo efeito que uma mudança na divisão internacional do trabalho
teria no nível de regiões ou nações inteiras. Se os países superdesenvolvidos
tomassem a decisão política de desvincular suas economias do sistema do
mercado mundial explorador e estabelecer mecanismos para autossuficiência
nas áreas principais, abririam caminho para o desenvolvimento de uma eco-
nomia autárquica nos países subdesenvolvidos. Da mesma forma, uma decisão
consciente por parte dos homens “superdesenvolvidos” de renunciar à cons-
trução de seu ego e identidade com a exploração e a subordinação violenta
das mulheres e de aceitar sua parte do trabalho não remunerado para a criação
e preservação da vida tornaria mais fácil o estabelecimento, pelas mulheres, da
autonomia sobre suas vidas e corpos e a elaboração de uma nova definição do
que é a identidade feminina.
Esses processos de libertação estão inter-relacionados. As mulheres em nos-
sas sociedades não podem escapar das jaulas das relações patriarcais a menos
que os homens comecem um movimento na mesma direção. O movimento
dos homens contra o patriarcado não deve ser motivado por um paternalismo
benevolente, mas pelo desejo de restaurar para si mesmos um senso de dig-
nidade humana e respeito. Como os homens podem se respeitar se não têm
respeito pelas mulheres? Da mesma forma, os povos superdesenvolvidos de-
vem começar a rejeitar e a transcender o paradigma econômico de produção
e consumo cada vez maior de mercadorias como um modelo de progresso
para as economias subdesenvolvidas.
De toda maneira, uma mudança na exploradora divisão internacional do
trabalho não pode ocorrer em um curto espaço de tempo e, de modo si-
milar, o estabelecimento de economias ecologicamente equilibradas e au-
tossuficientes levará tempo e exigirá um imenso esforço intelectual, moral
e físico. Mas a mudança na divisão sexual do trabalho poderia ser iniciada
imediatamente. Cada homem e cada mulher poderiam começar a mudar as
392 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

coisas individualmente; grupos de mulheres e homens poderiam desenvolver


modelos diferentes uns dos outros; movimentos políticos maiores, como o
movimento pela paz, o movimento ecológico, os movimentos de libertação
nacional, poderiam imediatamente experimentar uma nova divisão sexual do
trabalho e desenvolver as ideias alternativas sobre uma sociedade melhor a
partir dessas experiências centrais. Se isso acontecesse, as feministas perderiam
seu ceticismo em relação a muitos desses movimentos, porque, de tempos em
tempos, vemos que a mobilização das mulheres por tais movimentos acaba
reincorporada à antiga ou à nova divisão patriarcal do trabalho.
Há ainda outra razão pela qual as feministas devem insistir na centralidade
da mudança na divisão sexual do trabalho. Nossa análise dos países socialistas
mostrou que a manutenção, ou a criação, da família nuclear e da divisão se-
xual, burguesa e patriarcal do trabalho é a porta de entrada, aparentemente
insignificante, pela qual as forças reacionárias podem novamente encontrar
lugar em uma sociedade que tentou se libertar das garras do imperialismo
e do capitalismo. Enquanto a divisão sexual do trabalho não for alterada no
contexto de uma economia alternativa, o capitalismo não será abolido. Por
enquanto, porém, as feministas nas sociedades subdesenvolvidas e superde-
senvolvidas fazem bem em manter seu ceticismo e senso crítico. Elas devem
insistir, repetidamente, que não haverá libertação para as mulheres a menos
que se ponha também fim à exploração da natureza e de outros povos. Por
outro lado, também devem insistir que não haverá uma verdadeira libertação
nacional a menos que haja libertação das mulheres e um fim da destruição da
natureza, e que não pode haver uma verdadeira sociedade ecológica sem uma
mudança na divisão sexual e internacional do trabalho.
Graças, precisamente, à estratégia de colocar uma dessas contradições sob os
holofotes e empurrar as outras para a escuridão é que o patriarcado capitalista
foi capaz de construir e manter seu domínio. Essa estratégia é, no momento,
seguida por uma grande quantidade de pessoas no movimento ecológico e
alternativo. Seguindo a velha estratégia marxista-leninista das contradições
primárias e secundárias, a crise ecológica é agora colocada no centro. Mas
não se fala mais da exploração capitalista dos países do Terceiro Mundo. No
entanto, sabemos que os governos da Europa e dos Estados Unidos tentarão
resolver as crises ecológicas e econômicas em seus países despejando suas pe-
rigosas fábricas e produtos em países subdesenvolvidos. Comida barata, roupas
MARI A MI ES 393

baratas, serviços sexuais baratos etc. serão fornecidos para essa classe de rentistas
brancos pela exploração cada vez maior de países e povos do Terceiro Mundo.
É evidente que há também mulheres brancas nessa classe internacional de
rentistas não produtores mantidos e alimentados pelo aumento da exploração
dos países do Terceiro e do Segundo Mundo, mas, em geral, as mulheres nos
países superdesenvolvidos compartilharão cada vez mais o destino dos países
subdesenvolvidos. Com seu trabalho invisível, mal pago ou não remunerado,
elas fornecerão a base sobre a qual a classe internacional masculina branca
marchará para o paraíso “pós-industrial”.

PASSOS INTERMEDIÁRIOS

Nos debates sobre as alternativas à “ordem” destrutiva existente, surgem


imediatamente as perguntas: “Como saímos daqui e chegamos até lá? Como
essas belas utopias podem nos ajudar a mudar a realidade na direção que
queremos? Não são esmagadores os poderes que enfrentamos: o capital inter-
nacional, as grandes corporações transnacionais, a interação cada vez maior
entre ciência, economia, política e poder militar, a rivalidade das duas su-
perpotências e sua espiral interminável de produção de armas cada vez mais
destrutivas, a extensão da ação dessas armas destrutivas para o espaço sideral
etc. etc.?” Quando se veem cara a cara com essa imensa ameaça não só à toda
vida humana, mas também à vida como tal, muitas mulheres e homens no
Ocidente se sentem totalmente indefesos e tendem a fechar os olhos e esperar
de forma derrotista pelo holocausto inevitável.
Penso que as feministas não podem permitir tal derrotismo, não só por-
que seria suicida, mas também porque é irrealista. Desde que a sociedade de
classes existe, o colapso de uma classe dominante tem sido projetado como o
colapso do universo. Esse também é o caso hoje, com a ameaça de colapso do
modelo de crescimento capitalista-patriarcal. Mas nossa análise mostrou que as
mulheres em todo o mundo não têm nada a ganhar em seu desenvolvimento
humano com o crescimento desse gigantesco parasita. Muito pelo contrário.
Portanto, devemos começar aqui e agora a recusar nossa lealdade e cumplici-
dade com esse sistema, pois as mulheres não são apenas vítimas do patriarcado
capitalista, mas têm também, em graus variados e de formas qualitativamente
394 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

diferentes, colaborado com ele. Isso vale sobretudo para as mulheres de classe
média em todo o mundo e para as mulheres brancas em países industrializa-
dos. Se queremos recuperar a autonomia sobre nossos corpos e sobre nossa
vida, devemos começar renunciando a essa cumplicidade com o patriarcado.
Como é que isso pode ser feito?
Acho que a estratégia pode ser a mesma para mulheres em países super-
desenvolvidos e subdesenvolvidos, mas os passos táticos podem ser diferentes.
Na sequência, discutirei alguns passos concretos que podem ser dados em
direção à nossa libertação das garras do patriarcado capitalista anti-humano e
antimulher. Começarei com o que pode ser feito pelas feministas ocidentais.

AUTONOMIA SOBRE O CONSUMO

Uma área quase totalmente abandonada pela luta política no Ocidente


tem sido a área do consumo. Sindicatos, grupos políticos de oposição, bem
como o movimento das mulheres, têm endereçado seus protestos e demandas
aos dirigentes da economia ou do Estado ou então aos homens em geral.
Raramente discutem seu próprio papel no sistema exploratório. No entanto,
é de conhecimento geral que o capitalismo não pode funcionar se não for
capaz de criar e expandir o mercado para sua contínua e crescente produção
de mercadorias materiais e não materiais. Esse mercado é parcialmente com-
posto por nós, compradores dessas mercadorias. É composto principalmente
pelas massas dos países superdesenvolvidos que, devido à exploradora divisão
internacional e sexual do trabalho, são as que têm maior poder aquisitivo.
Também é composto, em menor grau, pelas classes médias urbanas dos países
subdesenvolvidos. E é composto em grande parte pelos Estados e seus mo-
nopólios sobre grandes áreas da economia como, por exemplo, a educação, a
saúde, o sistema de correios e a defesa.
Podemos não ser capazes de influenciar todo o sistema do mercado. Mas
um movimento de libertação dos consumidores, iniciado pelas feministas entre
aquelas mulheres que, como donas de casa, são importantes agentes de consu-
mo e pilares cruciais do mercado, poderia ter um importante papel para minar
o sistema capitalista-patriarcal.Tal movimento tem uma série de vantagens em
contraste com outros movimentos sociais:
MARI A MI ES 395

– Pode ser iniciado imediatamente de maneira individual por cada mulher.


A decisão sobre o que comprar e o que não comprar não é totalmente pré-
-determinada pelas nossas necessidades e pelo que é oferecido no mercado.
Talvez mais de 50% do que é comprado e consumido em domicílios em
países superdesenvolvidos e classes superdesenvolvidas não seja apenas supér-
fluo, mas também prejudicial. Isso inclui não só o consumo de álcool, tabaco,
drogas, inúmeros alimentos de luxo, frutas, flores, mas também a maior parte
do que é produzido hoje pela indústria eletrônica: computadores, aparelhos
de vídeo, música, televisões. Particularmente os produtos das novas indús-
trias em crescimento não são mais destinados à satisfação das necessidades
humanas básicas, mas à criação e expansão de novos vícios em consumidores
passivos. Não podemos dizer que não temos a escolha de comprar ou não
comprar essas coisas, a não ser que concordemos em entregar a última parte
de nossa liberdade individual subjetiva ao Senhor Capital e em nos tornar
meros fantoches de consumo. Sendo assim, a recusa individual em comprar
itens de luxo, e basicamente prejudiciais, ampliaria a área de liberdade dentro
de cada mulher.

– Além de boicotar as mercadorias supérfluas, as feministas, se quiserem ser


fiéis aos seus objetivos políticos, devem boicotar todos os itens que reforçam
uma imagem machista das mulheres, assim como as tendências antimulheres
em nossa sociedade. Se as mulheres boicotarem abertamente os cosméticos
e as tendências da nova moda sexy, a nova onda da “mulher embelezada”,
criada pelas indústrias de vestuário e cosméticos como uma espécie de con-
tra-ataque à recusa feminista em moldar os corpos das mulheres de acordo
com o modelo padronizado de mulher “atraente e sexy”, pode ser perturba-
da com sucesso.131

– Da mesma forma, a manipulação das mulheres como donas de casa e mães,


realizada pelas indústrias multinacionais de alimentos, farmacêuticas e outras,
pode ser frustrada se as mulheres se recusarem conscientemente, na medida

131 Muitas mulheres, inclusive feministas, costumam argumentar que as mulheres precisam se
embelezar. Pode ser, como pode ser verdade para os homens, mas isso não significa que tenha-
mos de aceitar os padrões de beleza estabelecidos pelas indústrias de vestuário e cosméticos.
396 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

do possível, a comprar certos itens, como, por exemplo, os laticínios com


chocolate, fast food, drogas etc., produzidos por multinacionais como Nestlé,
Unilever, Bayer ou Hoechst. É evidente que a escravização das donas de casa
ocidentais pelo Senhor Capital já atingiu tal ponto que um boicote consis-
tente de todos esses itens levaria à fome imediata. Por isso, o boicote a itens
que reforçam as tendências que definem as mulheres como objetos sexuais e
supermães não tem como não ser seletivo.

– Outro critério essencial para a seleção de mercadorias a serem boicotadas


é o grau de exploração dos produtores do Terceiro Mundo, particularmente
das mulheres, incorporadas e materializadas nas mercadorias. As mulheres que
compram batons feitos pela Unilever, ou por qualquer uma de suas filiais ou
subsidiárias, podem ter certeza de que também estão contribuindo para a
exploração e desapropriação de mulheres tribais pobres na Índia.132 Também
elas são responsáveis pela destruição da autonomia que essas mulheres tinham
sobre sua produção de vida. Um boicote a tais itens significaria, portanto,
tanto a libertação das mulheres nos países superdesenvolvidos de uma imagem
sexista de mulher quanto o aumento da autonomia das mulheres pobres do
Terceiro Mundo sobre seu meio ambiente e produção de subsistência.

– Batons e cosméticos dão um bom exemplo de outro critério que pode ser
adotado na seleção de artigos a serem boicotados pelas mulheres: precisamen-
te, o grau de violência a que são submetidos os organismos vivos necessários
para a produção dessas mercadorias e até que ponto o equilíbrio ecológico
de suas áreas de produção tem sido perturbado. Em suma, a destruição da na-

132 A Unilever, com sua subsidiária indiana, a Hindustan Lever, desenvolveu um método para
extrair o óleo das sementes do sal, um tipo de árvore que cresce de maneira selvagem nas áreas
florestais de Bihar, na Índia. Anteriormente, essas sementes eram coletadas pelas mulheres da
tribo Santhal para produzir óleo para seu próprio uso. Agora, essas mulheres coletam as se-
mentes das árvores do sal para os agentes da Hindustan Lever por uma quantia irrisória. Os
derivados do óleo de sal são usados como substitutos da manteiga de cacau e na produção de
cosméticos de todos os tipos. Devido à sua capacidade de fundição característica, é particular-
mente útil para a produção de batons. Assim, a produção de batons ou chocolate pela Unilever
priva as mulheres tribais de Bihar do controle sobre sua produção de óleo (cf. Mies: “Gesch-
lechtliche und internationale Arbeitsteilung” [Gênero e divisão internacional do trabalho], em
Heckmann & Winter, 1983, p. 34 ss).
MARI A MI ES 397

tureza – inerente à produção de mercadorias – também deve ser um critério


para recusar a compra de certas mercadorias. Esse aspecto mobilizou defen-
sores dos animais, como, por exemplo, associações de proteção animal, a fazer
campanha pela proibição de experimentos com animais vivos pela indústria
cosmética. As feministas certamente podem apoiar tal campanha. Mas se elas
querem não apenas ter sentimento pela “humanidade” dos animais que são
torturados como cobaias na produção de cosméticos, mas também estar cien-
tes de sua própria humanidade, devem estender essa campanha a um boicote
aos cosméticos produzidos por esse tipo de empresa.

Mas como podemos saber quais são as diferentes relações exploratórias


materializadas nas mercadorias que compramos e consumimos? Como pode-
mos saber se o batom que compramos contém a fome de mulheres em Bihar
ou tortura de milhares de porquinhos-da-índia e camundongos nos laborató-
rios das multinacionais? De fato, a produção capitalista de mercadorias, com
a divisão quase total entre produtores e consumidores em uma divisão inter-
nacional, social e sexista do trabalho, tem sido capaz de mistificar quase total-
mente as relações exploratórias incorporadas às mercadorias. Consumidores
cegos estão ligados a produtores cegos!
Portanto, um movimento feminista de libertação dos consumidores tem
de começar com a eliminação dessa cegueira, com uma desmistificação das
mercadorias, com uma redescoberta da exploração das mulheres, da natureza
e das colônias inerente a essas mercadorias e com um esforço para transformar
as relações de mercado que nos ligam de facto a mulheres, homens, animais,
plantas, à terra etc. em verdadeiras relações humanas. Isso significa redescobrir
as pessoas concretas por trás das mercadorias abstratas. E pode acontecer se
tentarmos traçar o caminho que uma determinada mercadoria percorreu até
chegar às nossas mesas ou aos nossos corpos. No final dessa jornada, encon-
traríamos, em muitos casos, mulheres e homens pobres nos países subdesen-
volvidos, e aprenderíamos como eles produzem certos itens para o mercado
mundial, o que ganham por seu trabalho, como isso mudou sua autonomia
sobre a produção de vida, o que eles sentem a respeito e como lutam para
manter ou recuperar sua humanidade.
Dessa forma, um movimento de libertação dos consumidores implicaria
também um processo de aprendizagem novo e fascinante, uma conscientiza-
398 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

ção diferente da dos primeiros grupos de conscientização feministas, e que,


de fato, nos apresentaria e explicaria as relações atuais nas quais realmente
vivemos e trabalhamos, como objetos e como sujeitos. O renascimento da
consciência social a respeito de todas as relações de exploração inerentes às
mercadorias ampliaria a área de liberdade subjetiva dentro das pessoas mui-
to mais do que toda a “sabedoria” acumulada pelos chamados especialistas.
Aumentaria nossa autonomia sobre o conhecimento da natureza, de outros
povos, de suas vidas e lutas, e nos permitiria decidir de que precisamos e de
que não precisamos.
Concretamente, isso significa que os grupos feministas nos países super-
desenvolvidos e subdesenvolvidos poderiam começar a realizar esses estudos
concretos de certos produtos, selecionados de acordo com os critérios enun-
ciados acima, publicando em seguida seus resultados e compartilhando-os
com as redes internacionais de grupos e organizações de mulheres que estive-
rem preparadas para aderir a esse movimento de libertação dos consumidores.
Esse último ponto nos leva à questão da política de um movimento desse
tipo. Embora possam e devam ser iniciados por cada mulher individualmente
em seu entorno imediato, onde ela tem uma certa quantidade de poder e
liberdade de escolha, é claro que apenas atos individuais de renúncia ou boi-
cote não provocarão o impacto desejado nas grandes corporações capitalistas.
Somente um movimento de boicote social e político poderia ter um efeito
importante. Isso significa que grupos ou organizações de mulheres devem
anunciar publicamente suas campanhas de boicote, fornecer junto delas infor-
mações e análises sobre as relações de exploração presentes no produto sele-
cionado como alvo da campanha e criar uma publicidade tão ampla para esse
movimento quanto seja possível sem trair seus princípios básicos. A formação
de tais grupos de ação e reflexão teria por si mesma outro efeito libertador:
libertaria as mulheres das sociedades ricas, principalmente as donas de casa, de
sua existência atomizada e isolada dentro de suas minúsculas jaulas chamadas
de lares, as libertaria de suas depressões, do vício em drogas, da síndrome da
dona de casa e de sua necessidade de consumo compensatório. Isso as levaria
de volta à esfera pública e as tornaria cientes de seu lugar na rede mundial de
relações sociais.
A política de um movimento feminista de libertação dos consumidores
incluiria e iria além das estratégias dos movimentos de consumo crítico ini-
MARI A MI ES 399

ciados nos Estados Unidos e na Europa por pessoas como Ralph Nader ou
Hans A. Pestalozzi. Na maioria dos movimentos, o interesse pessoal do con-
sumidor em ter produtos limpos, saudáveis, não contaminados quimicamente
e não adulterados está ligado à preocupação ecológica de preservar os escassos
recursos energéticos e manter o equilíbrio ambiental; no entanto, a questão
da exploração das mulheres e dos países subdesenvolvidos é frequentemente
excluída. Assim, Pestalozzi é o porta-voz de um movimento de consumo
crítico na Suíça, mas ele acredita que consumidores críticos e ecologicamente
conscientes não colocariam em risco “nosso sistema de sociedade e econo-
mia livres”. Ele defende que os administradores das corporações capitalistas
adotem novas estratégias comerciais (Pestalozzi, 1979, p. 31 ss).
As feministas não podem ficar satisfeitas se o capital internacional usar nos-
so boicote ao consumo de certos itens apenas para desenvolver uma nova es-
tratégia de marketing que nos faça consumir os chamados alimentos saudáveis,
produzidos talvez por empresas alternativas autônomas que podem trabalhar
como contratadas de corporações multinacionais de alimentos, como já vimos
acontecer nos países subdesenvolvidos. Já sabemos que qualquer libertação
parcial que ocorra dentro dos marcos do capital internacional será compensa-
da por uma maior exploração e sujeição de outras categorias de pessoas e da
natureza em outros lugares.
Um movimento feminista de libertação dos consumidores certamen-
te poderia adotar o lema cunhado pela organização francesa Terre des
Hommes – Frères des Hommes: “Ici vivre mieux / Là-bas vaincre la faim”
(Viver melhor aqui / Vencer a fome lá). Teria de ter em mente, no entanto,
que “viver melhor aqui” não pode significar uma extensão do princípio
egoísta do interesse pessoal, mas deve receber um novo conteúdo, criando
relações recíprocas e não exploradoras com nossos corpos, entre homens e
mulheres, com nosso ambiente natural e com os povos dos países subdesen-
volvidos. Por outro lado, esse lema expressa o desejo de que a definição do
que é a “vida boa” ou felicidade humana não seja mais deixada nas mãos
dos soldados do capital transnacional, mas que nós mesmas comecemos a
defini-las. Nós, mulheres, nunca devemos esquecer que somos nós que pro-
duzimos vida, não o capital.
400 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

AUTONOMIA SOBRE A PRODUÇÃO

Um movimento feminista de boicote ao consumo seria um passo na


direção da nossa libertação. Outro passo, igualmente necessário e que se
seguiria ao primeiro, seria um movimento para retomar o controle sobre
os processos de produção como tais. Isso, é claro, implica em última aná-
lise que as mulheres e os produtores em geral recuperem o controle sobre
os meios de produção. Mas antes que isso possa ser alcançado, o controle
sobre as decisões de produção pode se tornar uma meta para os sindicatos e
outras organizações das classes trabalhadoras. É totalmente absurdo que as
classes trabalhadoras ocidentais aceitem decisões de produção – como, por
exemplo, a automação da produção, a produção de armas, a produção de
produtos químicos perigosos e de artigos de luxo – em nome da preservação de
seus empregos e de uma ideia abstrata de progresso. É óbvio que essas decisões
de produção impostas não salvarão seus empregos, nem evitarão a produção
destrutiva. Mas os trabalhadores do sexo masculino frequentemente defen-
dem o argumento de que não têm escolha porque precisam “alimentar suas
famílias”. Esse argumento é em parte um pretexto, porque as mulheres são
tão provedoras de suas famílias quanto os homens. Mas as mulheres que
levam a sério nossa libertação podem dar grandes passos para reconquistar
maiores medidas de autonomia sobre a produção. Poderíamos começar essa
reconquista produzindo algumas coisas de que necessitamos. Da mesma for-
ma, as populações urbanas poderiam pensar em maneiras e meios de cultivar
seus alimentos nas cidades.
Também poderiam ser estabelecidos novos mercados locais entre peque-
nos produtores com orientação ecológica e mulheres urbanas, em que uma
ligação direta entre produção e consumo seria restabelecida. Por meio dessa
ligação, não seria difícil que mulheres e crianças urbanas fossem para o campo
em suas férias, não como turistas ociosos, mas como trabalhadoras rurais que
ajudariam nos cultivos das fazendas desses pequenos camponeses em troca
dos produtos produzidos de forma comunal. Isso se aproximaria da visão de
Caldwell de desviar parte da mão de obra industrial para o trabalho agrícola
intensivo, mas, em contraste com sua visão, não seria o Estado, e sim os pró-
prios produtores-consumidores que organizariam tal sistema de intercâmbio
de trabalho entre a cidade e o campo.
MARI A MI ES 401

Seria importante, entretanto, assegurar que tal sistema de produção-consu-


mo não degenerasse no conhecido setor “informal”, que, em uma economia
dual, serviria apenas para alimentar o setor formal. Esse setor continuaria,
como tem feito até agora, a produzir sua alta tecnologia destrutiva e outras
mercadorias inúteis, e a produção do setor informal mais uma vez subsidia-
ria principalmente os salários do setor formal. Portanto, a autonomia sobre
a produção também deve em algum momento se tornar uma exigência dos
sindicatos, dos homens e mulheres que compõem esses sindicatos, assim como
outros movimentos, como o ecológico e o alternativo. Um amplo movimento
de libertação dos consumidores poderia ser um desafio direto à autoimagem
clássica dos trabalhadores assalariados de que eles são os “provedores” necessá-
rios de suas famílias. Com mais e mais pessoas dedicadas a alguma nova forma
de produção de subsistência, o mito do capital e dos trabalhadores assalariados
como os produtores da vida teria de desaparecer.

LUTAS PELA DIGNIDADE HUMANA

Eu estaria em desacordo com os princípios do movimento autônomo de


mulheres se tentasse apresentar um catálogo do que as feministas na África,
Ásia e América Latina deveriam fazer. Desde o surgimento do movimento
feminista em muitos países subdesenvolvidos, o debate sobre a análise de sua
situação, sobre os possíveis passos estratégicos e táticos, sobre as ações neces-
sárias é realizado pelas próprias mulheres desses países. Mas, uma vez que, de
acordo com nossa análise, as mulheres de países superdesenvolvidos e subde-
senvolvidos estão ligadas umas às outras pelo mercado mundial, seria irreal
fingir que podemos nos concentrar apenas em nossas respectivas situações e
movimentos e fechar os olhos para o que está acontecendo em outras partes
do mundo. Se considerarmos, por exemplo, que a rebelião das mulheres do
Terceiro Mundo contra a exploração e a opressão patriarcal foi desencadeada
por questões semelhantes às que enfrentam as mulheres do Primeiro Mundo,
como a questão da violência contra as mulheres, poderemos identificar vários
pontos de união entre as mulheres do Terceiro e do Primeiro Mundo. Eles
estão sobretudo na área da política do corpo, por meio da qual mulheres em
todo o mundo exigem autonomia sobre suas vidas e corpos.
402 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

O que vou desenvolver a seguir não é uma estratégia completa para ações
conjuntas entre feministas de países superdesenvolvidos e subdesenvolvidos.
Quero apenas apontar algumas áreas em que a união das lutas poderia ocorrer
e refletir sobre algumas experiências dessas lutas.
A política do corpo implica uma luta contra todas as formas de violên-
cia direta contra as mulheres (estupro, violência doméstica, clitoridectomia,
feminicídios por dote, molestamento) e contra todas as formas de violência
indireta ou estrutural contra elas inseridas em outras relações de exploração e
opressão, como as relações imperialistas e de classe, bem como em instituições
patriarcais como a família, a medicina e os sistemas educacionais. Dentro dessa
esfera da política do corpo, há unidade entre as mulheres quanto ao objetivo
central de suas lutas. Em última análise, trata-se da exigência de reconhe-
cimento da essência humana das mulheres, de sua dignidade, integridade e
inviolabilidade como seres humanos e da recusa em serem transformadas em
objetos ou recursos naturais para outros.
Creio que, se essa dimensão mais profunda e mobilizadora das lutas acima
mencionadas fosse reconhecida, não seria mais possível que um grupo explo-
rado e oprimido continuasse a esperar que sua “humanização” fosse produzida
às custas de outro grupo, classe ou pessoas também exploradas e oprimidas.
Por exemplo, as mulheres brancas não poderiam esperar se humanizar ou
se libertar às custas de homens e mulheres negras; as mulheres oprimidas de
classe média do Primeiro e do Terceiro Mundo, às custas das mulheres rurais
e urbanas pobres; os homens oprimidos (trabalhadores e camponeses negros
ou brancos), às custas de “suas” mulheres. A luta pela essência humana, pela
dignidade humana, não pode ser dividida e não pode ser vencida a menos que
todas essas divisões colonizadoras, criadas pelo patriarcado e pelo capitalismo,
sejam rechaçadas e transcendidas.
Quando estudamos a breve história do novo movimento de mulheres em
países subdesenvolvidos e superdesenvolvidos, podemos identificar uma série
de lutas que se iniciaram com o objetivo de preservar a integridade humana
e a dignidade das mulheres e em cujo contexto essas divisões colonizadoras
foram transcendidas, ao menos tendencialmente, dando origem à perspectiva
de uma nova solidariedade. Essa solidariedade não se baseia no estreito in-
teresse próprio de cada grupo específico, mas no reconhecimento de que o
patriarcado capitalista destrói a essência humana não apenas dos oprimidos,
MARI A MI ES 403

mas também, e talvez ainda mais, daqueles que aparentemente lucram com
a opressão.
Assim, as lutas feministas contra a violência masculina, contra o estupro, a
violência doméstica, o molestamento e a humilhação de mulheres têm sido
um ponto de encontro para as mulheres dos países do Primeiro e do Terceiro
Mundo. A bibliografia sobre essas questões foi traduzida e lida em muitos países.
Quando as mulheres começam a lutar contra a violência masculina podem se
identificar com “as outras mulheres”, superando barreiras de classe, raciais e im-
perialistas. Por isso, na Índia, a luta contra o estupro e os feminicídios por dote
transcendeu barreiras de casta e classe. Havia uma solidariedade genuína entre
as mulheres nessas questões, embora essas divisões não tenham desaparecido.
As barreiras entre mulheres e homens também podem ser superadas se
mulheres e homens começarem a lutar corajosamente contra a violência
masculina. Nas organizações de esquerda tradicionais, as questões do estu-
pro, da violência doméstica e molestamento de mulheres são frequentemen-
te minimizadas por seus líderes. Supõe-se que uma campanha em torno de
tais questões criaria divisões na unidade da classe oprimida (trabalhadores,
camponeses). Por isso, as mulheres nessas organizações são instruídas a subor-
dinar suas queixas sobre tais questões “privadas” ao objetivo geral da luta de
classes, da luta anticolonial, da luta pela terra etc. As mulheres de classe média
do Terceiro Mundo são particularmente suscetíveis a essa linha de pensamento
e, muitas vezes, estão dispostas a adiar as lutas em torno da relação homem-
-mulher para um futuro distante.
Porém, em minha experiência com mulheres camponesas pobres na Índia,
pude perceber que elas não estavam dispostas a aceitar essa estratégia de “sub-
sunção”. Elas mostraram que uma luta determinada contra a violência mas-
culina não mina a unidade da classe camponesa pobre contra os proprietários
opressores, e sim dobra sua unidade e força.133

133 Esta luta ocorreu nos anos 1980-1981 no distrito de Nalgonda, Andhra Pradesh, entre
camponesas e agricultoras pobres que, junto com os homens, se organizaram em associações
rurais e de mulheres. O fato de terem organizações femininas separadas, não sob a liderança dos
homens, deu-lhes coragem para travar uma luta contra a violência doméstica. O caso de uma
das mulheres, que era regularmente espancada pelo marido quando comparecia às reuniões
femininas, foi o disparador dessa luta. Isso levou a discussões prolongadas entre as campone-
sas pobres em todas as aldeias da área. Nessas discussões, a maioria das mulheres decidiu que,
quando uma mulher era regularmente espancada pelo marido e os dois não podiam mais se
404 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Um exemplo de como a divisão entre as mulheres do Terceiro Mundo e


do Primeiro Mundo pode ser superada com sucesso foi/é a luta internacio-
nal realizada de modo coordenado por feministas da Holanda e da Alemanha
Ocidental e por feministas da Tailândia e das Filipinas, que lançaram uma cam-
panha contra o turismo sexual e a prostituição em países do Terceiro Mundo.
Uma das ações dessa campanha conjunta foi organizada por um grupo de
mulheres do Terceiro e do Primeiro Mundo em 1982 e realizada paralela-
mente nos aeroportos de Schiphol (Holanda) e de Bangcoc. No aeroporto
de Schiphol, as mulheres informaram os passageiros de um voo para Bangcoc
sobre a exploração desumana de mulheres e meninas na Tailândia pela indústria
europeia do turismo sexual. No aeroporto de Bangcoc, um grupo semelhante
recebia os homens europeus, que haviam voado para lá para um tour sexual,
com pôsteres dizendo que as mulheres tailandesas não eram suas prostitutas.
Essa ação foi tão embaraçosa para o Ministro do Turismo que ele foi obrigado
a fazer uma declaração dizendo que o governo recebia turistas, mas que não
queria que mulheres tailandesas fossem usadas como prostitutas por estrangei-
ros. Outro resultado dessa campanha conjunta foi a criação de um centro para
mulheres asiáticas em Frankfurt, porta de entrada para a Europa para muitas
mulheres da Ásia que são trazidas como “esposas” por homens alemães e que,
na maioria dos casos, acabam em bordéis de Frankfurt ou Hamburgo.
Embora essa campanha tenha começado com a rebelião espontânea das
mulheres contra essa forma cínica de neopatriarcado, inevitavelmente as le-
vou a reconhecer os interesses comerciais compartilhados pela indústria do
turismo e pelos homens.
Mulheres do Terceiro e do Primeiro Mundo também trabalharam jun-
tas em outras companhas e ações conjuntas similares, em que trataram de

entender, era o marido quem deveria sair de casa, “porque a casa é da mulher”. Essa decisão foi
então discutida entre as organizadoras e os homens. Estes reconheceram que, se tratassem suas
mulheres da mesma maneira que os proprietários as tratavam, nunca poderiam esperar escapar
da opressão e da exploração. As mulheres tornaram pública a violência doméstica e sugeriram
sanções sociais contra esses homens. Numa luta posterior contra os latifundiários, os homens
perceberam que as mulheres que não subordinavam sua “luta de mulheres” à “luta de classes”
eram muito mais militantes, corajosas e perseverantes do que os homens. Elas também mos-
travam mais compromisso com a “causa geral” do que muitos dos homens, que poderiam ser
facilmente subornados ou corrompidos pelos proprietários. Isso foi compreendido por pelo
menos alguns dos homens (Mies, 1983).
MARI A MI ES 405

questões relacionadas ao planejamento familiar, controle de fertilidade, en-


genharia genética e reprodutiva.134 Aqui, também, o princípio da autonomia
sobre nossas vidas e corpos foi o ponto de partida. Enquanto as feministas
no Ocidente lutam há anos contra o Estado, que exige delas mais crianças
brancas, as mulheres do Terceiro Mundo têm começado a perceber que estão
sujeitas à coerção e ao feminicídio porque não deveriam gerar mais filhos.
Em tais campanhas e ações conjuntas, as feministas não estão apenas em
posição de expor a política de “seleção e aniquilação” fascista, mas também
de identificar os interesses corporativos e as pessoas por trás deles, as quais
manipulam as mulheres em todo o mundo em sua avidez pela acumulação
sempre crescente.
O caso do Depo-Provera, proibido nos Estados Unidos por ser cancerí-
geno, mas liberado em países do Terceiro Mundo, é talvez o exemplo mais
conhecido de como feministas do Terceiro Mundo e do Ocidente podem tra-
balhar juntas para expor as táticas capitalistas. Com os novos desenvolvimentos
na engenharia reprodutiva e genética, a combinação das experiências, análises
e informações das mulheres do Terceiro e Primeiro Mundo será absolutamen-
te crucial para qualquer movimento de resistência (cf. Corea, 1984).
Todas essas lutas ocorreram/estão ocorrendo na esfera da política do corpo.
Uma combinação de lutas e ações por parte das feministas em países super-
desenvolvidos e subdesenvolvidos pode expor e minar a política de duas caras
do capital internacional em relação às mulheres. Feministas do Terceiro e do
Primeiro Mundo podem superar as divisões coloniais lutando conjuntamente
contra as tendências desumanizantes e antimulheres do patriarcado capitalista.
É mais difícil descobrir pontos em comum entre as mulheres de países
superdesenvolvidos e subdesenvolvidos na esfera da economia ou das lutas
econômicas porque essa esfera é, como vimos, quase totalmente controlada
pela divisão internacional e sexual do trabalho. Nesse contexto, as mulhe-
res produtoras do Terceiro Mundo relacionam-se com as consumidoras do
Primeiro Mundo de maneira contraditória e até antagônica. Se as fábricas para
o mercado mundial, que produzem vestuário e roupas íntimas para consu-
midoras ocidentais, entrassem em greve por melhores salários e condições de

134 Ver o congresso internacional “Mulheres contra a Engenharia Genética e Tecnologia Re-
produtiva”, que aconteceu de 19 a 22 de abril de 1985 em Bonn, e a Rede Feminista Interna-
cional de Resistência contra a Engenharia Genética e Reprodutiva (FINRRAGE).
406 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

trabalho, as empresas poderiam subir os preços dos produtos que vendem para
as consumidoras ocidentais. Mas, mesmo que as mulheres ocidentais fossem
informadas de que os preços mais altos são resultado de greves em uma das
fábricas realocadas, não é certo que esses preços mais altos atingiriam as pro-
dutoras reais. Por um lado, se as feministas iniciassem um boicote a tais produ-
tos em apoio às mulheres em greve nessas fábricas, as mulheres de lá poderiam
não ser capazes de entender tal ação porque, dentro das atuais estruturas, seu
interesse imediato em manter o emprego e a ter um salário está intimamente
ligado ao interesse do capital na venda de seus produtos.
Por outro lado, as mulheres na Europa que trabalhavam em indústrias têx-
teis transferidas para a Ásia ou África perderam seus empregos para mulheres
asiáticas ou africanas extremamente mal remuneradas. E entre essas duas cate-
gorias de mulheres trabalhadoras não existe base material para a solidariedade.
Se um grupo de mulheres tenta melhorar suas condições materiais como
trabalhadoras assalariadas ou como consumidoras, e não como seres humanos, o
capital tentará compensar suas possíveis perdas espremendo outros grupos de
mulheres. Assim, dentro dos marcos da divisão internacional do trabalho e dos
interesses dos trabalhadores assalariados, intimamente ligados aos do capital, há
pouco espaço para uma verdadeira solidariedade entre as mulheres do Terceiro
e do Primeiro Mundo, pelo menos não para o tipo de solidariedade que pode
ir além da retórica paternalista e da caridade.
Mas se as mulheres estiverem dispostas a transcender as fronteiras estabe-
lecidas pela divisão internacional e sexual do trabalho e pela produção e
comercialização de mercadorias tanto no mundo superdesenvolvido quanto
no subdesenvolvido; se assumirem os princípios de uma economia autossufi-
ciente, mais ou menos autárquica; se estiverem dispostas, nos países do Terceiro
Mundo, a substituir a produção voltada para a exportação pela produção vol-
tada para as necessidades do povo, então será possível combinar as lutas das
mulheres de ambas as extremidades do globo de tal forma que a vitória de
um grupo de mulheres não será a derrota de outro grupo de mulheres. Isso
poderia acontecer, por exemplo, se as lutas das mulheres do Terceiro Mundo
pelo controle de seu território e de sua produção de subsistência – muitas
vezes travadas contra os interesses combinados de corporações internacionais
ou nacionais e de seus próprios homens – fossem apoiadas por um boicote de
consumidoras dos países superdesenvolvidos.
MARI A MI ES 407

Um movimento de libertação dos consumidores liderado por feministas


nos países superdesenvolvidos poderia preparar o terreno, em muitos aspec-
tos, para um movimento de libertação da produção feminina nos países sub-
desenvolvidos. Seria um movimento popular para usar a terra e os recursos
humanos e materiais disponíveis em uma determinada região para a produ-
ção daquilo de que as pessoas precisam primordialmente: alimentos, roupas,
abrigo, saúde e educação. Ao mesmo tempo, sua economia seria parcialmente
desvinculada do mercado mundial, especialmente da armadilha do crédito
internacional. A combinação de um movimento de libertação dos consumi-
dores no Ocidente com um movimento de libertação da produção na Ásia,
África e América Latina não deixaria muito incentivo para as multinacionais
colonizarem ainda mais esses países por meio da injusta divisão internacional
do trabalho. Muitas delas fechariam suas fábricas e voltariam a seus países de
origem. As indústrias locais teriam então de produzir para o mercado inter-
no, e não para os já saturados mercados das sociedades ricas. No Ocidente, a
escassez de importações baratas de países do Terceiro Mundo levaria a um au-
mento dos preços de todos os bens de consumo básicos, forçaria as economias
a retornar à sua própria base agrícola e acabaria com a atual produção hiper-
trofiada, desperdiçadora e destrutiva. Como consequência lógica de tais mo-
vimentos, os modelos do homem-provedor e da mulher-dona de casa teriam
de ser abandonados. Pois, sem a exploradora divisão internacional do trabalho,
muito poucos homens nos países anteriormente superdesenvolvidos estariam
em posição de “alimentar” e manter uma dona de casa “não trabalhadora”.
Todos teriam de trabalhar para a produção da vida ou para sua subsistência. E
as mulheres teriam de exigir que também os homens fizessem sua parte nessa
produção da vida. O modelo burguês da dona de casa acabaria perdendo seu
atrativo como símbolo de progresso.
REFERÊNCIAS
Ahmad, Z.; M. Loutfi. Women Workers in Rural Development. Genebra: Organização
Internacional do Trabalho – OIT, 1982.
Allen Van, J. “Sitting on a Man: Colonialism and the Lost Political Institutions of Igbo
Women”. Canadian Journal of African Studies, vol. IV, n. 2, 1972.
Amos, V.; Parmar, P. “Challenging Imperial Feminism”. Feminist Review, n. 17, julho de
1984.
Andors, P. “‘The Four Modernizations’ and Chinese Policy on Women”. Bulletin of
Concerned Asian Scholars, vol. 13, n. 2, 1981, p. 44-56.
Arditti, R.; Duelli-Klein, R.; Minden, S. (ed.). Test-Tube Women: The Future of Motherhood.
Boston & Londres: Pandora Press, 1984.
Ardrey, R. The Territorial Imperative. Nova York: Atheneum, 1976.
Ardrey, R. The Hunting Hypothesis. Nova York: Atheneum, 1976.
Atkinson, T. G. “Die Frauenbewegung hat versagt”. Courage, 9 set. 1982.
Attali, J. L’Ordre Cannibale: vie et mort de la médecine. Paris: B. Grasset, 1979.
Aziz, A. “Economics of Bride-Price and Dowry”. Economic and Political Weekly, 9 abr. 1983.
Badinter, E. L’amour en plus: histoire de l’amour maternel (XVIIè – XXè Siècle). Paris:
Flammarion, 1980.
Balasubrahmanyan,V. “Medicine and the Male Utopia”. Economic and Political Weekly, vol.
XVII, n. 43, 23 out. 1982.
Bandarage, A. “Towards International Feminism”. Brandeis Review, vol. 3, n. 3, 1983.
Bardhan, P. “Little Girls and Death in India”. Economic and Political Weekly, vol. XVII, n.
36, 4 set. 1982.
Barret, M.; Mcintosh, M.The “‘Family Wage’: Some Problems for Socialists and Feminists”.
Capital and Class, n. 11, 1980.
Bauer, M. Deutscher Frauenspiegel: Bilder aus dem Frauenleben in der deutschen Vergangenheit.
Berlim: Miinchen, 1917.
Bazin, J. “Guerre et Servitude a Sego”. Em: Meillassoux, C. (ed.), L’esclavage dans l’Afrique
pre-coloniale. Paris: Maspero, 1975.
Bebel, A. Die Frau und der Sozialismus. Berlim Oriental: Dietz Verlag, 1964.
Becker, B.; Bovenschen, S.; Brackert, H. et al. Aus der Zeitder Verzweiflung: Zur Genese und
Aktualitdt des Hexenbildes. Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1977.
Bennholdt-Thomsen, V. & Boekh, A. “Zur Klassenanalyse des Agrarsektors”. Em:
Arbeitsgruppe Bielefelder Entwicklungssoziologen. Breitenbach: Saarbrücken, 1979.
412 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Bennholdt-Thomsen, V. “Investment in the Poor: Analysis of World Bank Policy”. Social


Scientist, vol. 8, n. 7, fev. 1980 (parte I); vol. 8, n. 8, mar. 1980 (parte II).
Bennholdt-Thomsen, V. “Subsistence Production and Extended Reproduction”. Em:
Young, K. et al (ed.), Of Marriage and the Market. Londres: Routledge and Kegan Paul,
1981, p. 16-29.
Bennholdt-Thomsen,V. “Auch in der Dritten Welt wird die Hausfrau geschaffen warum?”.
Deutsche Gesellschaft filr Hauswirtschaft e.V. DGH Bericht ii. d. 33. Jahrestagung am
22/23 91983 in Bonn.
Bennholdt-Thomsen, V. “Zivilisation, moderner Staat und Gewalt. Eine feministische
Kritik an Norbert Elias ‘Zivilisationstheorie’”. Beitriige zur feministischen Theorie und
Praxis, n. 13, 1985, p. 23.
Bock, G. & Duden, B. “Labor of Love – Love as Labor”. Development, Special Issue:
Women: Protagonists of Change, n. 4, 1984, p. 6-14.
Bonte, P. “Esclavage et relations de dependance chez les Touareq de Kel Gress”. Em:
Meillassoux, C. (ed.). L’esclavage dans l’Afrique pre-coloniale. Paris: Maspero, 1975.
Bornemann, E. Das Patriarchal: Ursprung und Zukunft unseres Gesellschafts-systems. Frankfurt:
S. Fischer, 1975.
Boserup, E. Woman’s Role in Economic Development. Nova York: St. Martin’s Press, 1970.
Briffault, R. The Mothers: The Matriarchal Theory Of Social Origins. Londres: Atheneum, 1952.
Brooks, G. E. “The Signares of Saint-Louis and Goree: Women Entrepreneurs in
Eighteenth Century Senegal”. Em: Hafkin, N. J.; Bay, E. B. (ed.), Women in Africa.
Stanford: Stanford University Press, 1976.
Brown, J. “Economic Organisation and the Position of Women among the Iroquois”.
Ethnohistory, n. 17, 1970, p. 151-67.
Bunch, C. & Castley, S. (ed.). Report of the Bangkok Workshop: Feminist Ideology and Structures
in the First Half of the Decade for Women. Bangkok, 23-30 jun. 1979.
Bunch, C. & Castley, S. (ed.). Developing Strategies for the Future: Feminist Perspectives. Report
of the International Workshop. Nova York: Stony Point, 20-25 abr. 1980.
Caldwell, M. The Wealth of Some Nations. Londres: Zed Books, 1977.
Capra, F. The Turning Point: Science, Society, and the Rising Culture. Nova York: Simon &
Schuster, 1982.
Carr, M. Technology and Rural Women in Africa, ILO World Employment Programme. Research
Working Paper. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1980.
Centre of Education and Documentation (ed.). Operation Flood: Development or Dependence?
4 Battery Street, Mumbai 400 039, Índia, 1982.
Chaki-Sircar, M. Feminism in a Traditional Society. Nova Delhi: Shakti Books & Vikas
Publishing House, 1984.
MARI A MI ES 413

Chattopadhyaya, D. Lokayata: A Study in Ancient Indian Materialism. Nova Delhi: People’s


Publishing House, 1973.
Childe, G. What Happened in History. Londres: Penguin Books, 1976.
Cohn, N. The Pursuit of the Millenium. Londres: Paladin, 1970.
Collins, J. & Moore Lappe, F. Food First – Beyond the Myth of Scarcity. São Francisco:
Institute for Food and Development Policy, 1977.
Corea, G. “How the New Reproductive Technologies Could be used to Apply to
Reproduction the Brothel Model of Social Control over Women”. Artigo apresenta-
do no II International Interdisciplinary Congress on Women, Groningen, Holanda, 17-21
abr. 1984.
Croll, E. J. “Socialist Development Experience: Women in Rural Production and
Reproduction in the Soviet Union, China, Cuba and Tanzania”. Artigo de discussão,
Institute of Development Studies da University of Sussex (IDS), set. 1979.
Croll, E. J. The Politics of Marriage in Contemporary China. Londres: Cambridge University
Press, 1981.
Croll, E. J. Chinese Women after Mao. Londres: Zed Books, 1983.
Croll, E. J. “Chinese Women: Losing Ground”. Inside Asia, fev.-mar. 1985, p. 40-41.
Dalla Costa, M.; James, S. The Power of Women and the Subversion of the Community. Bristol:
Falling Wall Press, 1972.
Dalla Costa, M.; James, S. “Die Macht der Frauen und der Umsturz der Gesellschaft”.
Internationale marxistische Diskussion, vol. 36. Berlim: Merve, 1973.
Daly, M. Gyn-Ecology:The Metaethics of Radical Feminism. Boston: Beacon Press, 1978.
Daswani, M. “Women and Reproductive Technology in India”. Artigo apresentado no
congresso Frauen gegen Gentechnik und Reproducktionstechnik, Bonn, 19-22 abr. 1985.
Datar, C. “The Anti-Rape Campaign in Bombay”. Artigo submetido ao Anthropological
Congress em Amsterdã, abr. 1981.
Datar, C. In Search of Feminist Theory: A Critique of Marx’s Theory of Society with Particular
Reference to the British Feminist Movement. Dissertação de Mestrado – Institute of Social
Studies, Erasmus University Rotterdam, Haia, 1981.
Datar, C. “The Left Parties and the Invisibility of Women: A Critique”. Em: Teaching
Politics, vol. X, Annual N., Mumbai 1984, p. 71-82.
Davin, D. Women-Work, Women and the Party in Revolutionary China. Oxford: Clarendon
Press, 1976.
Deere, C. D. “Rural Women’s Subsistence Production in the Capitalist Periphery”. Em:
The Review of Radical Political Economy (URPE), vol. 8, n. 1, primavera de 1976, p. 9-17.
414 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Diamond, N. “Collectivization, Kinship and Status of Women in Rural China”. Bulletin of


Concerned Asian Scholars, vol. 7, n. 1, jan.-mar. 1975, p. 25-32.
Diwan, R. “Rape and Terror”. Economic and Political Weekly, vol. XV, n. 28, 12 jul. 1980.
Dodge, N. Women in the Soviet Economy: Their Role in Economic, Scientific and Technical
Development. Baltimore: John Hopkins Press, 1966.
Dodge, N. & Feshback, M. “The Role of Women in Soviet Agriculture”. Em: Karcz, J. F.
(ed.), Soviet and East European Agriculture. Berkeley: University of California Press, 1967.
Dodge, N. “Recruitment and the Quality of the Soviet Agricultural Labour Force”. Em:
Millar, J. R. (ed.), The Soviet Rural Community. Champaign: Illinois Press, 1971.
Dross, A. Die erste Walpurgisnacht: Hexenverfolgung in Deutschland. Frankfurt: Verlag Rater
Stern, 1978.
Dualeh Abdalla, R. H. Sisters in Affliction: Circumcision and Infibulation of Women in Africa.
Londres: Zed Books, 1982.
Dube, L. “The Seed and the Field: Symbolism of Human Reproduction in India”. Artigo
lido na X International Conference of Anthropological and Ethnological Sciences, Nova Delhi,
1978.
Dumont, L. Homo Hierarchicus: Essai sur le systeme des castes. Paris: Gallimard, 1966.
Dutt, P. India Today. Calcutá: Manisha, 1970.
Ehrenfels, O. R. Mother-Right in India. Hyderabad: Government Central Press, 1941.
Ehrenreich, B. & English, D. Witches, Midwives and Nurses: A History of Women Healers. Nova
York: Feminist Press, 1973.
Ehrenreich, B. & English, D. “The Manufacture of Housework”. Socialist Revolution, 26,
1975.
English, D. For her own good: 150 years of the Experts’ Advice to Women. Londres: Pluto Press,
1979.
Eisen, A. Women and Revolution in Vietnam. Londres: Zed Books, 1984.
Eisenstein, Z. Capitalist Patriarchy and the Case for Socialist Feminism. Nova York: Monthly
Review Press, 1979.
Elias, N. Uber den Prozefi der Zivilisation. Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
Elson, D. & Pearson, R. “The Latest Phase of the Internationalisation of Capital and its
Implications for Women in the Third World”. Artigo de discussão 150, Institute of
Development Studies, Sussex University, jun. 1980.
Engels, F. Herr Eugen Duhring’s Revolution in Science (Anti-Dühring). Londres, 1936 [ed. bras.:
Anti-Düring. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2015].
Engels, F. “Origin of the Family, Private Property and the State”. Em: Marx, K. & Engels, F.
Selected Works, vol. 3. Moscou: Progress Publishers, 1976 [ed. bras.: A origem da Família,
da Propriedade Privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984].
MARI A MI ES 415

Epstein, S. South India Yesterday,Today and Tomorrow. Londres: Macmillan, 1973.


Evans, R. J. Sozialdemokratie und Frauenemanzipation im deutschen Kaiserreich. Berlim &
Bonn: Dietz Verlaag, 1979.
Farooqui,V. Women: Special Victims of Police & Landlord Atrocities. Delhi: National Federation
of Indian Women Publication, 1980.
Fergusson, M. The Aquarian Conspiracy: Personal and Social Transformation in Our Time. Los
Angeles: Jeremy P. Tarcher Inc., 1980.
First Congress of the Toilers of the Far East. Reports. Moscow, 1922.
Fisher, E. Woman’s Creation: Sexual Evolution and the Shaping of Society. Nova York:
Doubleday Garden City & Anchor Press, 1979.
Flandrin, J. L. Families in Former Times: Kinship, Household and Sexuality. Cambridge:
Cambridge University Press, 1980.
Ford Smith, H. “Women, the Arts and Jamaican Society”. Artigo não publicado, Kingston,
1980.
Ford Smith, H. “From Downpression Get a Blow up to Now: Becoming Sistren”. Artigo
apresentado no workshop Women’s Struggles and Research, Institute of Social Studies,
Erasmus University Rotterdam, Haia, 1980.
Frank, A. G. Capitalism and Underdevelopment in Latin America. Nova York: Monthly Review
Press, 1969.
Frank, A. G. World Accumulation 1492-1789. Londres: Macmillan, 1978.
Friedan, B. The Feminine Mystique. Londres: Penguin, 1968.
Fröbel, F.; Kreye, O. & Heinrichs, J. The New International Division of Labour: Structural
Unemployment in Industrialised Countries and Industrialisation in Developing Countries.
Cambridge: Cambridge University Press, 1980 [publicado originalmente em ale-
mão com o título Die neue internationale Arbeitsteilung: Strukturelle Arbeitslosigkeit in den
Industrielaendern und die Industrialisierung der Entwicklungslaender. Hamburgo: Rowohlt
Taschenbuch Verlag, 1977.]
Gandhi, N. “StreeShakti SangahitJhaliHo!”. Eve’s Weekly, 16-22 fev. 1985.
Gay, J. “A Growing Movement: Latin American Feminism”. NACLA Report, vol. XVII,
n. 6, nov.-dez. 1983, p. 44.
Goodale, J. “Tiwi Wives: A Study of the Women of Melville Island”. Em: North Australia.
Seattle & Londres: University of Washington Press, 1971.
Gorz, A. Les chemins du paradis. Paris: Éditions Galilée, 1983.
Gough, K. “The Origin of the Family”. Em: Reiter, R. (ed.), Toward an Anthro-pology of
Women. Nova York & Londres: Monthly Review Press, 1975.
416 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Governo da Índia, Ministério da Educação e Assistência Social [Ministry of Education


and Social Welfare]. Towards Equality. Relatório sobre o Committee on the Status of Women
na Índia, dez. 1974.
Griffin, S. Woman and Nature: The Roaring Inside Her. Nova York: Harper Colophone
Books, 1980.
Grossman, R. “Women’s Place in the Integrated Circuit”. Southeast Asian Chronicle, n. 66,
1979 & Pacific Research, vol. 9, n. 5-6, 1978.
Guillaumin, C. “Pratique du pouvoir et idée de nature. L’appropriation des femmes”.
Questions Feministes, n. 2, fev. 1978.
Guillaumin, C. “Le Discours de la Nature”. Questions Feministes, n. 3, maio 1978.
Hall, H. F. A People at school. Londres, Macmillan and co, s/d.
Hammes, M. Hexenwahn und Hexenprozesse. Berlim: Fischer Taschenbuch, 1977.
Handwerker, W. P. “Changing Household Organisation in the Origins of Market Place in
Liberia”. Economic Development and Cultural Change, jan. 1974.
Hartmann, H. et al. The Unhappy Marriage of Marxism and Feminism: A Debate on Class and
Patriarchy. Londres: Pluto Press, 1981.
Hawkins, E. K. Statement on Behalf of World Bank Group. Washington: International Bank
for Reconstruction and Development, 1968.
Heinsohn, G. & Knieper, R. Theorie des Familienrechts, Geschlechtsrollenauf-hebung,
Kindesvernachliissigung, Geburtenruckgang. Frankfurt: Suhrkamp, 1976.
Heinsohn, G.; Knieper, R. & Steiger, O. Menschenproduktion: Allgemeine Bevol-kerungslehre
der Neuzeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1979.
Heinsohn, G. & Steiger, O. “Die Vernichtung der weisen Frauen Hexenverfolgung,
Menschenkontrolle, Bevolkerungspolitik”. Em: Schroder, J. (ed.), Mammut. Marz Texte
1 & 2. Herbstein: Marz Verlag, 1984.
Heritier, F. “Des cauris et des hommes: production d’esclaves et accumulation de cauris
chez Jes Samos (Haute Volta)”. Em: Meillassoux, C. (ed.), L’esclavage dans l’Afrique pre-
-coloniale. Paris: Maspero, 1975.
Honneger, C. (ed.). Die Hexen der Neuzeit: Studien zur Sozialgeschichte eines kulturellen
Deutungsmusters. Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
Hosken, F. “Female Sexual Mutilations: The Facts and Proposals for Action”. Women’s
International Network News, 1980.
Hosken, F. “The Hosken Report – Genital and Sexual Mutilation of Females”. Women’s
International Network News, 1980.
Illich, I. Gender. Nova York: Pantheon, 1983.
MARI A MI ES 417

Irrigaray, L. Speculum, Spiegel des anderen Geschlechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1980.


Jain, D. Women’s Quest for Power. Nova Delhi:Vikas Publishing House, 1980.
Janssen-Jurreit, M. L. Sexismus. Munique e Viena: Carl Hanser Verlag, 1976.
Jelpke, U. (ed.). Das hochste Gluck auf Erden: Frauen in linken Organisationen. Hamburgo:
Buntbuch Verlag, 1981.
Kagal, A. “A girl is born”. Times of India, 3 fev. 1985.
Kapadia, K. M. Marriage and Family in India. Londres & Calcutá: Oxford University Press,
1968.
Karve, I. Kinship Organisation in India. Mumbai: Asia Publishing House, 1965.
Khudokormov, G. N. (ed.). Political Economy of Socialism. Moscou: Progress Publishers, 1967.
Krishnakumari, N. S. & Geetha, A. S. “Dowry – Spreading Among More Com-munities”.
Manushi – A Journal about Women and Society, vol. 3, n. 4, 1983.
Kumar, D. “Male Utopias or Nightmares”. Economic and Political Weekly, vol. XVIII, n. 3,
15 jan. 1983.
Lakey, B. “Women help Women – Berit Lakey of the WOAR talks to Vibhuti Patel”.
Manushi – A Journal about Women and Society, março-abril de 1979.
Lalitha, K. “Origin and Growth of POW, First ever Militant Women’s Movement in
Andhra Pradesh”. HOW, vol. 2, n. 4, 1979, p. 5.
Land, H. “The Family Wage”. Feminist Review, n. 6, 1980, p. 55-78.
Leacock, E. “Women’s Status in Egalitarian Society: Implications for Social Evolution”.
Current Anthropology, vol. 19, n. 2, jun. 1978.
Lee, R. B. The Kung San: Men, Women and Working a Foraging Society. Londres, Nova York,
New Rochelle, Melbourne & Sydney: Cambridge University Press, 1980.
Lênin,V. I. “Imperialism, the Highest Stage of Capitalism”. Em: Lênin,V. I., Selected Works,
vol. I. Moscou: Progress Publishers, 1970.
Leukert, R. Weibliche Sinnlichkeit. Tese não publicada, University of Frankfurt, 1976.
Lorenz, K. On Aggression. Londres: Methuen, 1966.
Luxemburgo, R. Die Akkumulation des Kapitals, Ein Beitrag zur okonomischen Erkliirung des
Kapitalismus. Berlin, 1923 [ed. bras: A acumulação de capital. Trad. Luiz Alberto Moniz
Bandeira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021].
Luxemburgo, R. Einfuhrung in die National Okonomie. Berlin: Levi P., 1925.
Mamozai, M. Herrenmenschen: Frauen im deutschen Kolonialismus. Reinbeck: rororo Frauen
aktuell, 1982.
Mandel, E. Marxist Economic Theory. Calcutá, Allahabad, Mumbai & Nova Delhi: Rupa &
Co., 1971.
418 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mandelbaum, K. “Sozialdemokratie und Imperialismus”. Em: Sozialdemokratie und


Leninismus, Zwei Aufsiitze. Berlim: Wagenbach, 1974.
Manushi, D. “‘Women’s Safety is Women’s Right’ Beldiha, Bihar – Mass Rape-Police, the
Culprits”. Manushi – A Journal about Women and Society, mar.-abr. 1979.
Manushi, D. “Such Lofty Sympathy For a Rapist!”. Manushi – A Journal about Women and
Society, n. 5, maio-jun. 1980.
Marcuse, H. Dereindimensionale Mensch. Neuwied-Berlin: Luchterhand, 1970.
Martin, M. K. & Voorhies, B. Female of the Species. Nova York & Londres: Columbia
University Press, 1975.
Marx, K. Capital: A Critique of Political Economy. Engels, F. (ed.), 3 vols. Londres: Lawrence &
Wishart, 1974 [ed. bras.: O capital: crítica da economia política. 3 vols. Trad. Regis Barbosa
e Flávio R. Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1996].
Marx, K. Grundrisse. Berlim: Dietz Verlag, 1974 [ed. bras.: Grundrisse. Trad. Mario Duayer
e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011].
Marx, K. & Engels, F. Collected Works, vol.V. Moscou: Progress Publishers, 1976.
Marx, K. & Engels, F. The German Ideology. Em: Selected Works, vol. 1. Moscou: Progress
Publishers, 1977 [ed. bras.: A ideologia alemã. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Expressão
Popular, 2009].
Mass, B. The Political Economy of Population Control in Latin America. Montreal: Women’s
Press, 1975
Mass, B. Population Target: The Political Economy of Population Control in Latin America.
Ontario: Women’s Press, 1976.
MAY, R. M. “Human Reproduction reconsidered”. Nature, vol. 272, 6 abr. 1978.
Mckim, M. “Little Communities in an Indigenous Civilisation.Village India, Studies in the
Little Community”. The American Anthro-pologist, vol. 57, n. 3, 1955.
Metha, M. “Urban Informal Sector Concepts, Indian Evidence and Policy Implications”.
Economic and Political Weekly, 23 fev. 1985.
Meijer, M. J. Marriage Law and Policy in the Chinese People’s Republic. Hong Kong: Hong
Kong University Press, 1971.
Meillassoux, C. Femmes, greniers et capitaux. Paris: Maspero, 1974.
Meillassoux, C. (ed.). L’esclavage dans l’Afrique pre-colonial. Paris: Maspero, 1975.
Meillassoux, C. The Progeny of the Male. Artigo lido no X International Congress of
Anthropological and Ethnological Sciences, Nova Delhi, dez. 1978.
Merchant, C. The death of nature: women, ecology, and the scientific revolution. São Francisco:
Harper & Row, 1983.
MARI A MI ES 419

Mies, M. “Towards a Methodology of Women’s Studies”. ISS Occasional Papers, n. 77. Haia:
Institute of Social Studies, nov. 1979.
Mies, M. Indian Women and Patriarchy. Nova Delhi: Concept Publishers, 1980a.
Mies, M. “Capitalist Development and Subsistence Reproduction: Rural Women in
India”. Bulletin of Concerned Asian Scholars, vol. 12, n. 1, 1980b.
Mies, M. “Social Origins of the Sexual Division of Labour”. ISS Occasional Papers, n. 85.
Haia: Institute of Social Studies, jan. 1981.
Mies, M. “Marxist Socialism and Women’s Emancipation: The Proletarian Women’s
Movement in Germany”. Em: Mies, M. & Jayawardena, K, Feminism in Europe: Liberal
and Socialist Strategies 1789-1919. Haia: Institute of Social Studies, 1981.
Mies, M.; Reddock, R. (ed.). National Liberation and Women’s Liberation. Haia: Institute of
Social Studies, 1982.
Mies, M. (ed.). Fighting on Two Fronts: Women’s Struggles and Research. Haia: Institute of
Social Studies, 1982.
Mies, M. The Lacemakers of Narsapur: Indian Housewives Produce for the Worldmarket. Londres:
Zed Books, 1982.
Mies, M. “Landless Women Organize: Case Study of an Organization in Rural Andhra”.
Manushi, vol. 3, n. 3, 1983a.
Mies, M. “Geschlechtliche und internationale Arbeitsteilung”. Em: Heckmann, F.; Winter,
P. (ed.), 21. Deutscher Soziologentag 1982 Beitriige der Sektions und ad hoc Gruppen.
Westdeutscher Verlag, 1983b.
Mies, M. “Wer das Land besitzt, besitzt die Frauen des Landes. Klassenkfunpfe und
Frauenkampfe auf dem Land. Das Beispiel Indien”. Em:Von Werlhof, C.; Mies, M. &
Bennholdt-Thomsen,V., Frauen, die letzte Kolonie. Reinbeck: rororo, 1983c.
Mies, M. (com colaboração de Lalita, K. & Kumari, K.). “Indian Women in Subsistence
and Agricultural Labour”. Em: World Employment Programme (WEP),Working Paper n.
34. Genebra: Organização Internacional do Trabalho – OIT, 1984(2).
Mies, M. “Frauenforschung oder feministische Forschung”. Beitriige zur Feministischen
Theorie und Praxis, n. 11, 1984b.
Miller, B. D. The Endangered Sex: Neglect of Female Children in Rural North India. Ithaka &
Londres: Cornell University Press, 1981.
Millett, K. Sexual Politics. Nova York: Doubleday & Company, 1970.
Mingmonkol, S. “Official Blessing for the Brothel of Asia”. Southeast Asia Chronicle, n. 78.
Minkin, S. “Bangladesh: The Bitter Pill”. Frontier, Calcutá, 17 out. 1979.
Mitchell, J. Women’s Estate. Londres: Pelican, 1973.
420 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mitchell, J. Psychoanalysis and Feminism: Freud, Reich, Laing and Women. Nova York:Vintage
Books, 1975.
Mitra, A. “The Status of Women”. Frontier, Calcutá, 18 jun. 1977.
Mitra, A., L. Pathak & S. Mukherji. The Status of Women: Shifts in Occupational Participation
1961-7. Nova Delhi, 1980.
Mitra, M. “Women in Dairying in Andhra Pradesh”. Mimeo. Haia: Institute of Social
Studies, 1984.
Moller, C. Ungeschiitzte Beschiiftigungsverhiiltnisse – verstiirkte Spaltung der abhiingig
Arbeitenden. Beitriige zur Frauenforschung am 21. Bamberga & Munique: Deutschen
Soziologentag, 1982.
Moselina, L. M. “Olongapo’s R&R Industry: A Sociological Analysis of Institu-tionalized
Prostitution”. Ang Makatao, jan.-jun. 1981.
Mukherjee, G. “Laws discriminate against women”. Sunday, 27 jul. 1980.
Muktadar, S. Report of the Commission of Inquiry. Hyderabad, 1978.
Niggemann, H. Emanzipation zwischen Sozialismus und Feminismus Die Sozial-demokratische
Frauenbewegung im Kaiserreich. Wuppertal: Peter Hammer Verlag, 1981.
Oakley, A. Sex, Gender and Society. Londres: Harper Colophon Books, 1972.
Obbo, C. African Women:Their Struggle for Economic Independence. Londres: Zed Books, 1980.
O’faolain, J.; Martines, L. Not in God’s Image: Women in History from the Greeks to the
Victorians. Nova York: Harper Torchbooks, 1973.
Ohse, U. “Miidchenhandel und Zwangsprostitution asiatischer Frauen”. Evangelische
Pressekorrespondenz, n. 5, 1981.
Omvedt, G. We will smash this Prison: Indian Women in Struggle. Londons: Zed Books, 1980.
Ortner, B. S. “Is Female to Male as Nature is to Culture?”. Em: Rosaldo, M. Z.; Lamphere,
L. (ed.), Women, Culture and Society. Stanford: Stanford University Press, 1973, p. 67.
Pasquinelli, C. “Feminism and Politics in Italy:Theoretical Aspects”. Artigo apresentado no
Women’s Symposium of the International Union of Anthropological and Ethnological Sciences
(IUAES), Intercongress, Amsterdã, 23-24 abr. 1981.
Patel, V. “Amniocentesis and Female Foeticide- Misuse of Medical Technology”. Socialist
Health Review, vol. 1, n. 2, 2 set. 1984.
Pearson, R. “Women’s Response to the Current Phase of Internationalisation of Capital”.
Artigo apresentado no Women’s Symposium of the International Union of Anthropological
and Ethnological Sciences (IUAES), Intercongress, Amsterdã, 23-24 abr. 1981.
Pestalozzi, H. A. “Der neue Konsument-Fiktion oder Wirklichkeit”. Em: Der neue
Konsument. Frankfurt: Fischer Alternativ, 1979.
MARI A MI ES 421

Phongpaichit, P. From Peasant Girls to Bangkok Masseuses. Genebra: Organização


Internacional do Trabalho (OIT), 1982.
Radhakrishnan, P. “Economics of Bride-Price and Dowry”. Economic and Political Weekly,
vol. XVIII, n. 23, 4 jun. 1983.
Rajaraman, I. “Economics of Bride-Price and Dowry”. Economic and Political Weekly, vol.
XVIII, n. 8, 19 fev. 1983.
Rao, A.;Vaid, S. & Juneja, M. “Rape, Society and State”. People’s Union for Civil Liberties and
Democratic Rights, Nova Delhi, s/d.
Ravaioli, C. Frauenbewegung und Arbeiterbewegung Feminismus und die KP!. Hamburgo:VSA,
1977.
Reddock, R. “Women’s Liberation and National Liberation: A Discussion Paper”. Em:
Mies, M.; Reddock, R. (ed.), National Liberation and Women’s Libera-tion. Haia: Institute
of Social Studies, 1982.
Reddock, R. Women, Labour and Struggle in 20th Century Trinidad and Tobago 1898-1960.
Haia: Institute of Social Studies, 1984.
Reed, E. Woman’s Evolution from Matriarchal Clan to Patriarchal Family. Nova York: Path-
finder Press, 1975.
Reed, E. Sexism and Science. Nova York & Toronto: Pathfinder Press, 1978.
Reiter, R. R. (ed.). Toward an Anthropology of Women. Nova York; Londres: Monthly Review
Press, 1975.
Reiter, R. R. (ed.). “The Search for Origins”. Critique of Anthropology, Women’s Issue, 9 &
10, vol. 3, 1977.
Richter, L. Tourism by Decree. Southeast Asia Chronicle, n. 78, 1981.
Risseeuw, C. “The Wrong End of the Rope: Women Coir Workers in Sri Lanka”.
Research Project: Women and Development, University of Leiden, 1980.
Risseeuw, C. “Organization and Disorganization: A Case of Women Coir Workers in
Sri Lanka”. Artigo apresentado no Women’s Symposium of the International Union of
Anthropological and Ethnological Sciences (IUAES), Intercongress, Amsterdã, 23-24 abr.
1981.
Rowbotham, S. Women, Resistance & Revolution: A History of Women and Revolution in the
Modern World. Nova York:Vintage, 1974.
Rowbotham, S.; Segal, L. & Wainwright, H. Beyond the Fragments: Feminism and the Making
of Socialism. Londres: Merlin Press Ltd, 1980.
Rushin, D. K. “The Bridge”. Em: Moraga, C. & Anzaldua, G. (ed.). This Bridge Called My
Back:Writings by Radical Women of Color. Watertown: Persephone Press, 1981.
422 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Safa, H. I. “Export Processing and Female Employment: The Search for Cheap Labour”.
Artigo preparado para o Wenner Gren Foundation Symposium: The Sex Division of Labour,
Development and Women’s Status, Burg Wartenstein, 2-10 ago. 1980.
Sambrani, R. B.; Shreekant, S. “Economics of Bride-Price and Dowry”. Economic and
Political Weekly, vol. XVIII, n. 15, 9 abr. 1983.
Schergel, H. “Aus Fernost ein ‘Kiitzchen fiirs Leben’”. Em: Tourismus, Prostitution,
Entwicklung, Dokumente. Stuttgart: Zentrum für Entwicklungsbezogene Bildung, 1983.
Schmidt, A. The Concept of Nature in Marx. Londres: New Left Books, 1973.
Schwarzer, A. So finges an. Colônia: Emma Buch, 1980.
Singh, N. Economics and the Crisis of Ecolog. Nova Delhi: Oxford University Press, 1976.
Singh, N. “The Gaia Hypothesis: An Evaluation”. Artigo de discussão n. 9, Zakir Hussain
Centre for Educational Studies, Jawaharlal Nehru University, Nova Delhi, 1980.
Sistren Theatre Collective. “Women’s Theatre in Jamaica”. Grassroots Development, vol. 7,
n. 2, 1983, p. 44.
Slocum, S. “Woman the Gatherer”. Em: Reiter, R. R. (ed.), Toward an Anthropology of
Women. Nova York: Monthly Review Press, 1975.
Sohn-Rethel, A. Geistige und korperliche Arbeit. Frankfurt: Suhrkamp, 1972.
Sohn-Rethel, A. Warenform und Denkform. Frankfurt: Suhrkamp, 1978.
Sombart, W. Liebe, Luxus und Kapitalismus: Uber die Entstehung der modernen Welt aus dem
Geist der Verschwendung. Berlim: Wagenbachs Taschenbucherei 103, 1922.
Srinivas, M. N. “A Note on Sanscritization and Westernization”. The Far Eastern Quarterly,
vol. XV, nov. 1955-ago. 1956.
Srinivas, M. N. Social Change in Modern India. Berkeley & Los Angeles: Allied Publishers,
1966.
Srivastava, A. “Police did it again”. Frontier, Calcutá, dez. 1978.
Stoler, A. “Social History and Labour Control: A Feminist Perspective on Facts and
Fiction”. Em: Mies, M. (ed.), Fighting on Two Fronts: Women’s Struggles and Research.
Haia: Institute of Social Studies, 1982.
Tangangco, L. The Family in Western Science and Ideology: A Critique from the Periphery.
Dissertação de Mestrado (Mulheres e Desenvolvimento), Institute of Social Studies,
Erasmus University Rotterdam, Haia, 1982.
Than-Dam,T. “Social Consciousness and the Vietnamese Women’s Movement in the 20th
Century”. Artigo não publicado, Institute of Social Studies, Women & Development,
1984.
Thomson, G. Studies in Ancient Greek Society: The Prehistoric Aegean. Nova York: Citadel
Press, 1965.
MARI A MI ES 423

Thomson, L. “State, Collective and Household. The Process of Accumulation in China


1949-05”. Em: Smith, J.; Wallerstein, I. & Evers, H. D. (ed.), Households and the World
Economy. Londres: Sage, 1984.
Thonnessen, W. Frauenemanzipation, Politik und Literatur der deutschen Sozial-demokratie zur
Frauenbewegung 1863-1933. Frankfurt: Europiiische Verlagsanstalt, 1969.
Tiger, L. Men in Groups. Nova York: Random House, 1969.
Tiger, L.; Fox, R. The Imperial Animal. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1971.
Turnbull, C. M. The Forest People: A Study of the Pygmies of the Congo. Nova York: Simon
and Schuster, 1961.
Ullrich, W. Weltniveau. Frankfurt: EVA, 1979.
Unidad de Comunicación Alternativa de la Mujer, Instituto Latinoamericano de Estudios
Transnacionales – ILET. Santiago, Chile, 1984.
Urdang, S. Fighting Two Colonialisms:Women in Guinea-Bissau. Nova York: Monthly Review
Press, 1979.
Vargas-Valente, V. “The Feminist Movement in Peru: Balance and Perspectives”. Artigo
apresentado no Women’s Symposium of the International Union of Anthropological and
Ethnological Sciences (IUAES), Intercongress, Amsterdã, 23-24 de abril de 1981.
De Vries, P. “Feminism in the Netherlands”. International Women’s Studies Quarterly, Londres,
1981.
Wallerstein, I. The modern world-system: capitalist agriculture and the origins of the European
world economy in the sixteenth century. Nova York: Academic Press, 1974.
Weinbaum, B. “Women in Transition to Socialism: Perspectives on the Chinese Case”.
Review of Radical Political Economics, vol. 8, n. 1, 1976.
Weinbaum, B. & Bridges, A. “Die andere Seite der Gehaltsliste: Das Monopolkapital und
die Struktur der Konsumtion”. Monthly Review, n. 3, set. 1976.
Von Werlhof, C. “Frauenarbeit, der blinde Fleck in der Kritik der Politischen Okonomie”.
Beitriige zur feministischen Theorie und Praxis, n. 1, Munique, 1978.
Von Werlhof, C. “Women’s Work: The Blind Spot in the Critique of Political Economy”.
Journades D’Estudi sabre el Patriarcat, Universitat Autònoma de Barcelona, 1980.
Von Werlhof, C.; Mies, M. & Bennholdt-Thomsen,V. Frauen, die letzte Kolonie. Reinbeck:
rororo Frauen aktuell, 1983.
Von Werlhof, C. “New Agricultural Co-operatives on the Basis of Sexual Polarization
Induced by the State: The Model Co-operative ‘Cumaripa’, Venezuela”. Boletin de
Estudios Latino-americanos y del Caribe, n. 35, Amsterdã, dez. 1983.
Von Werlhof, C. “The Proletarian is Dead. Long live the housewife?”. Em:Wallerstein, I. &
Evers, H. D. (ed.), Households and the World Economy. Nova York: Sage, 1984.
424 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Von Werlhof, C. “Der WeiBe Mann versucht noch einmal durchzustarten. Zur Kritik
dual-wirtschaftlicher Ansiitze”. Kommune, n. 11, 2 nov. 1984.
Werner, J. “Socialist Development: The Political Economy of Agrarian Reform in
Vietnam”. Bulletin of Concerned Asian Scholars, vol. 16, n. 2, 1984.
White, C. “Women and Socialist Development: Reflections on the Case of Vietnam”.
Artigo apresentado na PSA Conference, Exeter University, abr. 1980.
Wolf-Graaf, A. Frauenarbeit im Absseits. Munique: Frauenoffensive, 1981.
Women and Fascism Study Group. Breeders for Race and Nation: Women and Fascism in
Britain Today. Londres: Bread and Roses, 1982.
Women in Russia. Almanac, Zamisdat, 1981.
Wood, R. E. “The Economics of Tourism”. Southeast Asia Chronicle, n. 78, 1979.
Banco Mundial. Integrating Women into Development. Washington DC, 1975.
Banco Mundial. Recognizing the “Invisible” Woman in Development. The World Bank’s
Experience. Washington DC, 1979.
Yamben, S. “The Nupi Lan:Women’s War of Manipur 1939”. Economic and Political Weekly,
21 fev. 1976.
Youssef, N. & Hetler, C. B. “Rural Households Headed by Women: A Priority Concern
for Development”. World Employment Programme Research, Working Paper, Genebra:
Organização Internacional do Trabalho (OIT), 1984.
Zentrum für Entwicklungsbezogene Bildung (ZEB). Tourism us, Prostitution, Entwicklung,
Dokumente. Stuttgart, 1983.
Zetkin, C. Zur Geschichte der proletarischen Frauenbewegung Deutsch/ands. Frankfurt: Verlag
Roter Stern, 1971.

JORNAIS, REVISTAS E DOCUMENTAÇÃO

Der Spiegel, n. 43, 1984.


Economic and Political Weekly, 26 jul. 1980.
Indian Express, 10 dez. 1980.
Maitrey, n. 1, abr.-maio 1982.
Maitrey, n. 4, out.-nov. 1982.
Sunday, 27 jul. 1980.
Sunday Mail, Harare, 27 nov. 1983.
Sunday Statesman, 10 ago. 1980.
The Times of India, 15 jun. 1980.
ÍNDICE REMISSIVO
aborto: 126, 172, 185, 197, 237, 281, 282, bruxa(s): 150, 158, 169, 171-2, 176-7; bru-
299, 336; liberalização do aborto: 66, xa moderna: 54; bruxa parteira: 151, 172;
87; campanhas contra as leis do aborto: bruxaria: 139, 168-9, 171, 175-6, 179;
80-2, 207. bruxas assassinadas ou executadas: 171-
acumulação: 63, 68-70, 79, 91-2, 94-7, 101-4, 2, 174-5; bruxas e métodos científicos:
114, 116, 141, 146-7, 152, 157, 166, 171, 178; bruxas e pogroms: 173, 176; caça às
176, 178, 180-3, 185, 191, 203, 213, 217, bruxas: 127, 149-50, 159, 162, 168, 170,
221, 223, 234-5, 242, 251, 257, 265, 271- 172 e ss., 183, 199, 313; confisco de pro-
2, 312-4, 332, 337, 345, 352, 355, 359-60, priedade das bruxas: 174-6; julgamen-
363, 373, 405; acumulação de capital: 68, to por bruxaria: 169, 173 e ss.; sabá de
79, 91-2, 95, 114, 116, 146, 152, 176, 185, bruxas: 168.
213, 217, 234, 242, 251, 312-3; acumula- budismo: 187-8.
ção primitiva: 171, 178, 180-1; acumula-
ção e caça às bruxas: 177 e ss. Caldwell, M.: 386-400.
agricultoras/es: 127, 136, 140 e ss., 245. campanha de autoacusação: 81.
agronegócio: 117, 221, 225, 242, 251, 252, capitalismo: 54, 64, 69, 70, 77, 85, 93-4, 105,
387. 144, 146-7, 182, 200, 211, 232, 296.
ambientes e estratos não capitalistas: 95-6. capitalista: 68, 99, 112, 151, 165, 241; pro-
Associação Caribenha para Pesquisa e cesso de acumulação capitalista: 69,
Ação Feminista (Cafra): 57. 101, 103, 355; sistema-mundo capitalis-
Associação Nacional de Estudos das Mu- ta: 102, 158; exploração capitalista de
lheres: 57. mulheres: 96, 99, 111, 206; patriarcado
atividade(s) geradora(s) de renda: 224, 234. capitalista: 58, 60-1, 70, 79, 97, 100, 124-
autarquia: 386, 389. 6, 149, 161, 205, 223, 283, 299, 389, 392,
autodeterminação: 104. 394.
autonomia: 64, 87, 104-6, 180, 349, 357, 370, Childe, G.: 127-8.
374, 388, 391, 396; autonomia produtiva: China: 158, 166, 235, 237-238, 253, 295, 311,
149, 397, 400-1; autonomia sexual: 149, 318, 321, 323-4, 327-8, 331, 335, 337,
151; autonomia dos corpos: 150, 207, 341, 348-9, 352, 356, 367.
305-6, 373, 380, 389-90, 394, 405. ciência e tecnologia: 97, 159, 178-80, 372,
374-5; automação: 378; microeletrônica:
Bacon, F.: 158, 172, 178, 179. 378; novas tecnologias: 76; racionaliza-
Balasubrahmanyan, V.: 235, 236, 237, 282. ção: 377; utopia tecnocrática: 380.
Banco Mundial: 226, 232-3, 235, 242, 258. classe trabalhadora: 54, 56, 74,148, 198, 203-
Bardhan, P.: 283, 294, 296. 4, 207-208, 210, 212-4, 253, 307, 322,
Bebel, A.: 54, 88, 210-1, 322. 338, 356, 358, 363, 365.
Bennholdt-Thomsen, V.: 85, 95, 234, 242, clitoridectomia: 311, 402.
248, 345, 360. coerção: 82, 104, 140, 144, 179, 237, 240, 255,
Bishop, M.: 354. 271, 311; coerção econômica: 146, 148,
Bodin, J.: 172. 151, 385; armas como meio de coerção:
boicote: 396-400, 406. 138, 143.
brâmane/bramânico: 297-8. coletoras/es e caçadores: 126, 132.
428 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

colônias/colonialismo/colonização. colô- Cuba: 184-185, 323.


nias: 64, 68, 70, 94, 95, 97, 102, 115, 148,
158, 159, 161, 180, 183, 193, 196, 198, Dalla Costa, M.: 91-93, 99.
217, 224, 228, 239, 266, 320, 355, 357, Davin, D.: 328.
380, 385, 397; mulheres, a última co- De Gouges, O.: 72.
lônia: 360; colonialismo: 54, 60, 70, 95, defasagem cultural: 73, 76.
183, 193, 196, 264, 337, 357; colonização: desenvolvimento. plano de desenvolvi-
93, 162, 180, 182, 193, 199, 201, 214, 377; mento da indústria de laticínios: 245-
trabalho doméstico como colônia: 93. 247; integrar as mulheres ao desenvol-
comissões para a emancipação das mulhe- vimento: 116, 223, 226-7, 344.
res: 66.
comunismo: 144, 318, 378, 380; Partido desigualdade: 52, 55, 73, 79, 99, 111, 132,
Comunista da Itália (PCI): 88; PCI e 136, 139, 248, 340.
feminismo: 88. determinismo biológico: 110, 122.
conscientização: 52, 56, 58, 81, 86, 398. direitos humanos: 71, 72, 83, 287.
Constitutio Criminalis: 174-5. discriminação: 79, 99
consumidor(as/es)/consumo/consumismo. divisão do trabalho: 58, 112, 120-2; assi-
consumidoras/es: 112, 221, 224, 230, 234, metria entre os sexos: 110, 152; divi-
240, 252, 332, 335, 344, 367, 369, 373, 384, são capitalista do trabalho: 126; divisão
394, 397 e ss.; consumidores cegos: 397; internacional do trabalho: 54, 60, 71,
produtores-consumidores: 388; movi- 95-6, 103, 217-26, 257-8, 350, 405; nova
mento de libertação dos consumidores: divisão internacional do trabalho: 217-
394-9; 401, 407; consumo: 123, 127, 165, 32, 235, 241, 266-67, 320; divisão na-
203, 220, 221, 227; agentes de consumo: cional do trabalho: 116; divisão natural
207; consumo de (artigos de) luxo: ver do trabalho: 121; divisão patriarcal do
luxo; bens de consumo: 74, 163, 218, 220- trabalho: 125, 144-153, 158, 392; divisão
1, 231, 263, 329, 332, 348, 407, trabalho social do trabalho: 72, 205, 359; divisão
de consumo: ver trabalho; consumismo: sexual do trabalho: 96, 98, 109-17, 145,
74, 105, 366-7; anticonsumismo: 74. 149, 157, 193-214, 222-4, 320, 348-9,
359, 381-2, 387-93, 405; divisão do tra-
controle da atividade reprodutiva/da ferti- balho sob o capitalismo: 145-53; divisão
lidade: 334, 390. sexual e internacional: 98, 405; divisão
controle de natalidade: 126. do trabalho na China: 327-31, 367; di-
controle populacional: 233-4, 236, 280-1, visão do trabalho na União Soviética:
283, 332-6, 390. 324-7; origens sociais da divisão sexual
corpo: 62, 78, 90, 96, 104, 112, 297, 304, 371, do trabalho: 109-53.
373, 383, 399; corpo feminino: 80, 126- divisões dualistas: 90, 98, 101, 371-2.
7, 146, 169, 171, 305-6, 312, 389-90, 395; dona de casa: 92, 223-4, 227, 229, 231, 239,
corpo como meio de produção: 122-5, 240, 253, 257, 273, 359, 365, 369, 389,
131, 380; política do corpo: 79, 80, 82, 394, 395, 407.
83, 86, 87, 401, 402, 405; corpo como donadecasificação: 68, 149, 192-3, 199, 201,
produtivo: 129, 130. 207-8, 213, 227, 331; donadecasificação
créditos: 234, 239, 248, 272, 407; créditos de mulheres proletárias: 212-4, 228; do-
para donas de casa: 251. nadecasificação na China: 331-2; dona-
Croll, E.: 323, 330, 334, 367. decasificação no Vietnã: 344.
MARI A MI ES 429

dote: 56; feminicídios por dote: 273-80; de excedente: 128, 203, 322, 341, 350-1;
campanha contra feminicídio por dote: trabalho excedente: ver trabalho; super-
275; economia do dote e preço da noi- -excedente: 356.
va: 280-1, 291-8; dívida por dote: 281; exploração: 51, 70, 92, 98-100, 103, 111, 145,
Lei de Proibição dos Dotes: 279; dote 219, 312, 353, 359; conceito de explora-
como tributo: 297-300. ção: 112-3; domínio e exploração: 110-
1; exploração de uma classe para outra:
ecologia: 51, 389-99. 159-60; exploração das colônias: 160-1,
economia. economia alternativa: 385-93; 385-6; exploração da natureza: 159-60,
economia de tempo: 376, 379; econo- 385-6; exploração das minorias: 74; ex-
mia subsidiária: 342-3, 353-4; econo- ploração do trabalho não remunerado:
mia-mundo europeia: 165-6; economia 92; exploração das mulheres: 160-1,
dual: 68, 324-41, 353, 401; setor da eco- 385-6; exploração nas relações sociais:
nomia: ver setor econômico; economia do 112-3; superexploração: 115, 119, 224,
dote: ver dote. 229, 235, 271-2
Ehrenreich, B. & English, D.: 158.
Eisen, A.: 340. família: 111-2, 117-8, 205-6; desenvolvi-
Engels, F.: 118-9. mento da família: 119; família nuclear:
engenharia genética e reprodutiva: 405. 63, 202-3, 344-5; família patriarcal: 119;
escravidão: 141; escravidão na África pré- família patriarcal: 67, 119, 145, 194, 204,
-colonial: 141-145; escravidão como 273, 297; família patrilocal/patrilinear:
modo de produção masculino: 149; 275, 335-6; economia familiar: 342-5;
mulheres sob escravidão: 183-6. trabalho familiar: 251, 342, 345; leis da
estabelecimento de classes: 144. família: 116-7, 194.
Estado: 72-73, 177-178, 205, 354; como pa- feminismo: 51-8; burguês 61, 72; ocidental
triarcado: 83-84; classe estatal: 353, 359; 55; radical 61-2; liberal 61; do Terceiro
Estado-nação: 321; Estado socialista: Mundo: 54-5; socialista: 61-2; marxista:
345, 354. 61-2; de tempo bom: 65-6, 69; acadêmi-
estratégia de reversão: 66-7. co: 66; cultural: 76-7, 79.
estruturalismo: 63. feminista(s). conceito feminista de traba-
estupro: 82-84, 87, 135, 140, 284-291, 295, lho: 380-5; crítica feminista à análise
312, 402-3; estupro na Índia: 56, 299, marxista: 355-60; crítica da classe mé-
403; campanha contra o estupro: 65, dia: 369-70; ideologia: ver ideologia; re-
273-274, 281, 284; estupro e classe: 307- vistas feministas: 57; Rede Feminista:
310; Fórum contra o estupro: 286; ca- 57; perspectiva(s) feminista(s): 109, 370,
sos de estupro: Rameeza Bee: 284-5, 373-4, 385; separatismo feminista: 53, 62;
288, 290, 301, 307 / Mathura: 286-288 / solidariedade feminista: 61, 105; utopia
Maya Tyagi: 289-290; homens como es- feminista: 371, 382; feminista: 51-65, 69,
tupradores: 300-310; mulheres de classe 73, 76-7; feministas estadunidenses: 77;
média e estupro: 286-291; mitos sobre o feministas autônomas: 87, 105; ecofemi-
estupro: 301-302; estupros por policiais: nistas: 97; feministas marxistas: 98; femi-
284-91, 300, 307, 310. nistas New Age: 97; feministas socialistas:
excedente: 128, 143, 249-50; 309, 353; con- 62, 379; feministas ocidentais 54-6, 70,
ceito de excedente: 143-4, 355; extra- 77, 318-20; feministas brancas: 59-60; fe-
ção de excedente: 314, 327; produção ministas do Terceiro Mundo: 405.
430 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

ferramentas: 119, 125, 127, 130,131,134,136, Guerra Franco-Prussiana: 207; Guerra


137, 138, 344. Fria: 34; pós-guerra: 74, 257; Primeira
feudalismo: 72, 101, 145-6, 340, 355; divisão Guerra Mundial: 193; Segunda Guerra
sexual do trabalho sob o feudalismo: Mundial: 26, 46, 74, 218, 260, 339; tecno-
144-6; resquícios ideológicos da socie- logia de guerra: 157.
dade feudal: 77. guildas femininas: 163-5.
Fisher, E.: 126, 128, 134, 139.
forças geradoras: 126-7, 149-50. Hammes, M.: 173-4, 176-7.
Friedan, B.: 52, 75. Heinsohn, G./Knieper, R./Steiger, O.: 162,
Freud, S.: 303 e ss. 205.
funcionalismo: 63, 109. Heinsohn, G./Knieper, R.: 204, 206-8, 212.
funcionalismo estrutural: 63. herero: 197-8.
Fundação Ford: 57. hipergamia: 145, 293, 297.
história social: 117-8.
gênero: 77-9; gênero e sexo: 77-9; violên- homem(ns). conceito materialista de ho-
cia de gênero: 78; hierarquia de gênero: mem: 117; contradição entre homens
110. e mulheres: 352; homem-caçador: 132
gestão doméstica científica da casa: 208, e ss., 144, 146-7, 149, 151, 153, 188, 303,
365. 307-8, 372, 390; homem-provedor: 67,
Gorz, André: 379. 251, 370, 389, 407.
Grande Tradição: 298. honra: 266, 290, 297, 305, 306, 307.
greve de ventres: 185, 197, 326. humano/a. corpo humano: 112, 124, 171,
Grossman, R.: 225, 255. 209, 371, 383; dignidade humana: 74,
grupos autônomos de mulheres: 56, 80. 104, 266, 364, 373, 391, 401-2; essência
grupos de conscientização: 52, 66, 81, 86, humana: 104-5, 367, 371-2, 386, 390,
398. 402; felicidade humana: 75, 103-4, 367-
guerra: 31, 36, 44-5, 97, 101, 133, 136, 139, 8, 374-5, 380-3, 399; história humana:
144, 146, 149, 151, 157-8, 165, 172, 176, 116-8, 132; natureza humana: 65, 78,
178-9,187, 206, 297, 318-9, 320, 341, 117, 122, 372, 376, 382-3.
348-9, 353, 357, 391; arte da guerra:
179; filmes de guerra: 257; guerra anti- ideologia. debates sobre ideologia: 64; ide-
colonial: 338; guerra contra a natureza: ologia feminista: 55, 77, 288; ideologia
151; guerra contra a sujeira: 208; guer- da maternidade: 66; ideologia sexista:
ra contra as mulheres: 83, 150; guerra 67, 114, 178, 208, 240, 266, 301-6, 340,
contra o aborto: 66; guerra contra o 366; ideologia da dona de casa: 227,
crescimento populacional: 236; guerra 365, 368; ideologia do autossacrifício
contra os Estados Unidos: 339; guerra das mulheres: 305; ideologia do ho-
da Birmânia: 187; guerra de guerrilha: mem-caçador: 188.
348; guerra de libertação: 321, 323, 327, ideologia alemã: 118-20, 167, 378.
338, 339, 347, 348, 350, 352; Guerra do igualdade: 99-100; igualdade entre sexos
Afeganistão: 35; Guerra do Iraque: 35; como um atraso: 187-8, 372; Equal
Guerra do Vietnã: ver Vietnã; Guerra Rights Amendment – ERA: 75-6.
dos Trinta Anos: 174, 175; guerra en- Índia: 199, 219, 235-7, 242-5, 248-9, 253-4,
tre os segu: 142; guerra feudal: 164; 271, 273-5, 279-80, 283-4, 286-7, 290-
MARI A MI ES 431

301, 307-11, 314, 331-2, 336, 345, 357-8, Marx, K.: 14, 20, 26-8, 43-5, 93-5, 99, 114-5,
363-4, 368, 381, 388, 396, 403; mulhe- 118, 122-3, 138, 167, 206, 209-10, 213,
res indianas: 235-7, 240, 243-4, 254, 271, 321, 356-7, 366, 375-8, 380, 382, 384;
274, 280, 289-90, 295, 305, 368. Marx e Engels: 42, 44, 72, 117, 120-2,
individualismo: 61, 105, 203, 374. 143, 205, 209, 21, 321-2, 338, 346, 354-5,
informatização: 67, 255, 380. 378, 380, 383.
iniciativas de apoio: 82, 87. marxismo: 20, 26, 43, 45, 62, 356.
inquisição: 158, 178-9. marxista. teoria do valor marxista: 94.
integrar as mulheres ao desenvolvimento: masculino/a. atividade(s) masculina(s): 112;
116, 223, 226-7, 344. chauvinismo masculino: 80; classe (in-
internacionalismo: 318, 358. ternacional) masculina: 393; cooperação
irmandade: 52-53, 60. masculina: 135, 136; cultura (internacio-
nal) masculina: 308; descendência mas-
James, S.: 91-93. culina: 237, 282, 335, 336; dominação
masculina: 52, 80, 82, 84, 90, 99-100, 280,
Kumar, D.: 383. 337, 348, 365, 369; domínio masculino:
321, 327; hegemonia masculina: 151, 171;
lazer: 251, 253, 256, 259, 326, 343, 345, 371, hierarquia masculina: 135; masculinida-
375, 377, 380, 381-3, 390. de: 123, 310; mitos masculinos: 301; mo-
Lenin, V. I.: 88, 95, 322, 338, 354, 355, 358. nopólio masculino das armas/dos meios
lésbicas: 59, 62; movimento lésbico: 106. de coerção: 141, 143; natureza masculi-
Leukert, R.: 109, 116, 124. na: 124, 307, 312; poder masculino: 306,
Libertação Nacional: 18, 54, 315-23, 327, 307; produtividade masculina: 130-2,
337-8, 346-9, 358, 392. 137. 150; provedor masculino: 296; psi-
luta de classes: 54, 131, 323. que/psicologia masculina: 84; sexo mas-
Luxemburgo, R.: 11, 28, 42-7, 95, 96, 112, culino: 100, 140, 147, 151, 159, 236, 283,
151, 249, 356. 301-3, 312, 323, 335, 336, 400; sexualida-
luxo. consumo de (artigos de) luxo: 159, de masculina: 304; trabalhador(es) mas-
163, 199, 200-3, 250, 253; produção de culino(s): 27, 68, 148; supremacia mas-
(artigos de) luxo: 29, 220, 234, 254, 344; culina: 136; utopia masculina: 236; viés
boicote a artigos de luxo: 284, 395, 400. masculino: 111, 286; violência masculina:
26, 65, 82-5, 291, 374, 390, 403.
mãe: 30-1, 81, 124, 127-8, 158, 169, 185, 203, Mass, B.: 231-2, 332.
209-12, 230-1, 238, 250, 275-8, 282, 288, matéria e espírito: 373.
302, 304-6, 333, 349, 354, 365, 367, 381, materialismo histórico dialético: 118.
395. maternidade: 66, 91, 124, 185, 186, 197, 255,
Mãe Terra: 33, 147, 158-9, 178. 327, 333.
Mamozai, M.: 193-8, 204, 357. matrilinearidade: 124, 298, 369.
Mandel, E.: 180-2. matrilocal: 124.
Mao Tsé Tung: 327, 350. Merchant, C.: 78, 147, 158-9, 162, 172, 178-
Marcuse, H.: 74. 9, 372.
marginalização: 68, 94, 224, 241-2, 244-6, metrópoles e periferias: 102, 116, 166.
248, 267, 271. Mies, M.: 67-8, 114, 213, 234, 242, 247, 253,
Martin M. K./Voorhies, B.: 109, 129, 133. 266, 273, 297, 309, 344-5, 369, 381, 404.
432 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Mitchell, J.: 74. mulheres de classe média: 66, 186; mu-


Mitra, M.: 247-8, 296. lheres de cor: 59, 60, 264; mulher dona
modelo de crescimento: 75, 97, 103, 265, de casa: 92, 223-4, 227, 229, 231, 239-40,
351, 353, 359, 388. 253, 257, 273,359,365,369, 389, 394,395,
movimento(s). movimento(s) contra o es- 407; mulheres do terceiro mundo: 54-
tupro: 63, 82, 87, 274, 285-6, 303, 403; 7, 70, 94, 96, 221-5, 227-2, 234-5, 240-1,
movimento alternativo: 51, 86, 89; mo- 252, 264-6, 272-3, 317-8, 320, 344, 363,
vimento cultural: 73; movimento ecoló- 365-6, 369-70, 380, 384-6, 401-6; mulher
gico: 51, 389; movimento(s) feminista(s): coletora: 127-8, 133, 138, 141; mulheres
41-3, 46, 53-6, 59, 61-3, 66, 69, 71-3, 75, e ONU: 54, 57, 226; mulheres escraviza-
79-80, 83, 88-90, 94, 96, 99-100, 102, 104- das: 92, 138, 142, 159, 182-6; mulheres e
6, 281, 304, 311, 317, 363-4, 368-70, 389, esfera privada: 73, 84, 90-1, 98, 101, 151;
397-9, 400-1; movimento de massa: 80; mulheres e esfera pública: 73, 84, 205,
novo movimento social: 54; movimento 209; mulheres indianas: ver Índia; mulhe-
pela paz: 83, 319, 392; movimento(s) de res lésbicas: 59, 62; mulher mercadoria:
mulheres: 54, 69, 71, 73, 109, 187, 274, 145; mulheres muçulmanas: 285, 308;
288, 295, 337, 340, 352, 363, 368, 370-1; mulheres negras e marrons: 60-1, 195,
novo movimento de mulheres: 54, 58, 257, 402; mulheres no meio acadêmico:
66, 24, 71, 207, 274, 364, 402; movimento 87; mulheres rendeiras (de Narsapur):
de mulheres proletárias: 72-3; protesto: 253-5; mulheres vietnamitas: ver Vietnã,
74-5; movimento feminista do terceiro opressão das mulheres: 60, 63, 64, 73,
mundo: 106; movimento feminista de 77-8, 98-9, 100, 102, 151, 323; questão
classe média: 363-4, 369-70. da mulher: 51, 54-5, 58, 62-4, 71, 76-8,
mulher(es). emancipação e libertação das 105, 317, 322, 355, 370, 389; suicídio de
mulheres: 54, 55, 62-3, 66, 69, 70, 73, 77, mulheres: 275, 278-9, 305, 307; violência
83, 84, 88, 99, 110, 113, 125, 210-12, 227, contra as mulheres: ver violência; troca e
316 e ss., 363-4, 390, 392, 396, 398, 400; venda de mulheres: 135, 141, 163.
mulheres empobrecidas: 67, 72, 222-3, mundial. Conferência Mundial sobre a
227, 233-4, 245, 246, 248, 250, 252, 271, Mulher (México): 55, 117, 223, 233;
274, 345; espancamento de mulheres: Conferência Mundial das Nações
82-3, 150; estudos das mulheres: 57, 76, Unidas sobre a Mulher (Copenhague):
87; estupro de mulheres: 36, 82-3, 140, 225-6; Conferência Mundial da Nações
273-4, 284 e ss., 306-7, 310, 402; expe- Unidas sobre a População (Bucareste):
riência sexual das mulheres: 52, 82, 231, 233.
179, 303; exploração das mulheres: 70, mundo finito: 104, 371-4.
78, 98-101, 104, 109-10, 113, 151, 158-
9, 161, 271-2; ferramentas de mulheres: nação, conceito de: 347, 354.
137 e ss.; guerra contra as mulheres: ver natureza. natureza e cultura: 371; apro-
guerra; história das mulheres: 30, 31, 71, priação da natureza: 117-8, 123-4; na-
93, 116, 125, 189, 200; irmandade entre tureza corporal: 123-8, 130; conceito
mulheres: 52-3, 60; mulher artesã: 150, de natureza: 111, 124, 147; separação
163-5, 204, 252 e ss., 344, 345; mulhe- entre homem e natureza: 158; natureza
res colonizadas: 70, 162, 182-3, 187, 191, de mulheres e homens: 117; mulheres
193-9, 224, 239, 355, 380, 383, 386; mu- definidas como natureza: 148, 178-80;
lher consumidora: 230 e ss., 366-7, 394; relação-objeto de mulheres com a na-
MARI A MI ES 433

tureza: 125-29; a relação-objeto de ho- preço da noiva: 280, 292-4, 298.


mens e mulheres com a natureza: 124-
32; naturalização: 148-9, 191. racionalização: 43, 44, 67, 69, 377, 382.
racismo: 60, 190, 241, 264; racismo e sexis-
Oakley, A.: 77, 79. mo: 60.
Operation Flood: 245, 247-50. Rajaraman, I.: 280, 292-4, 296.
Organização das Nações Unidas (ONU): Ravaioli, C.: 88-89.
54, 57, 226, 231-2, 254. Reddock, R.: 182-186, 191, 193.
Organização Internacional do Trabalho reducionismo biológico: 60, 84.
(OIT): 223, 232-3. reino da liberdade: 375-377, 380.
Organização Nacional Americana de reino da necessidade: 375-376.
Mulheres [National Organization of relações patriarcais de produção: 72, 115,
Women (NOW)]: 75. 162, 191, 294.
organização nacional de mulheres: 347. rendeiras (de Narsapur): ver mulher(es).
rentistas: 393.
Partido Social-Democrata da Alemanha revolução burguesa: 69, 72, 73, 75, 312.
(SPD): 208-210, 356-358. revolução cultural: 76.
pastores nômades: 139-40, 147. Risseeuw, C.: 253-254.
Patel, V.: 281-2.
patriarcado: 51, 70, 82, 100, 144-5; conceito Schmidt, A.: 376, 378-380.
de patriarcado: 100; patriarcado capita- Schwarzer, A.: 81.
lista: 58-9, 79, 85-6, 100, 394; patriarcado sensualidade: 383.
capitalista como sistema, 101; neopa- setor econômico. setor formal: 66-69, 231,
triarcado: 101, 280, 344-5; patriarcado 240, 329, 343, 401; setor informal: 68-
ginocêntrico: 158; movimento de ho- 9, 117, 221-5, 235, 251, 293, 325, 230-1,
mens contra o patriarcado: 391; Estado 341, 401; setor subsidiário: 325, 341, 366;
como o patriarca-mor: 83. setor socializado: 329, 343.
patriarcal. relações patriarcais capitalistas: sexismo: 52, 396-397.
102; civilização patriarcal: 64, 85, 145, sexo e gênero: ver gênero.
369; processo civilizatório patriarcal: sexualidade feminina: 304-5.
126; controle patriarcal de mulheres: sistema de subcontratação: 342, 344.
145; modos de produção patriarcais: 152. sistema mundial capitalista: 19, 61, 95, 104.
pauperização dos camponeses: 218 Sistren Theatre Collective: 53, 56.
propriedade privada: 142 socialista. acumulação socialista: 337, 346,
produção. meios corporais de produção: 350, 352; países socialistas: 77, 320-354;
112; modo de produção capitalista: 97, teoria socialista da emancipação das
112; modo de produção predatório: mulheres: 210-213, 322-323, 327.
139; produção da subsistência: 114-5, socialização: 63, 376-377; socialização do
137, 141, 146, 222, 225, 227, 251, 272, trabalho doméstico: 325.
325, 329, 331, 343, 381, 397, 401, 406; sociedade civilizada: 64-5, 83-4, 126, 158,
produção da vida: 64, 111, 114-5, 120- 160-1, 313.
4, 374, 383, 385, 390, 470; produção e sociobiologia: 66.
reprodução da vida: 119. Sombart, W.: 199-203.
psicanálise: 63. Stoler, A.: 191-2.
público versus privado: 71. subdesenvolvimento: 103, 385-8.
subjetividade: 104-5, 198. troca de equivalentes: 116, 293, 296, 312-3.
subsistência. produtores de subsistência: turismo sexual: 56, 258.
152, 242; produção de subsistência: 141-
2; mulheres como produtoras de sub- União Soviética: 321, 324-327.
sistência: 129.
superdesenvolvimento: 103, 385-8. valor de uso: 221, 234.
Venezuela: 242, 251-2, 342.
tabu: 52-3, 65, 79, 82, 109, 119, 159, 178, 264, vícios: 367, 380, 388, 395.
302, 364. Vietnã: 321, 324, 337-8, 340-1, 344-5, 349-
Tanzânia: 57, 323-4.
50, 369; artesanato vietnamita: 344;
Tiger, L./R. Fox: 134, 135, 303.
guerra do Vietnã: 74, 135, 259, 260, 317;
Tiger, L.: 135, 136, 303.
frutas do Vietnã: 342; homens vietna-
trabalho doméstico: 26-28, 67-68, 90-5,
mitas: 339, 345, 349; mulheres vietna-
99, 207-8, 240, 243, 293, 296, 323, 325-
6, 329-30, 343-5, 366, 382; debates so- mitas: 259, 261, 338, 340, 342, 345, 346,
bre o trabalho doméstico: 78, 111, 209, 348, 353.
213, 242, 244, 295, 322, 355; Campanha violência. violência contra as mulheres:
Salários para o Trabalho Doméstico: 93; 65, 84-5, 87, 159, 180, 257, 271 e ss.; 364;
trabalho doméstico não remunerado: violência de gênero: ver gênero; violên-
331, 345, 347, 382, 383, 390. cia direta: 56, 83, 85, 143, 148-9, 271-2,
trabalho. carga de trabalho: 248, 325-26, 300, 306, 310-1, 313, 402; violência eco-
343, 359; conceito capitalista de traba- nômica: 85; violência extraeconômica:
lho: 115; conceito marxista de trabalho: 85; 148, 151; violência do Estado: 85;
375, 379, 380, 383; contrato de trabalho: violência indireta: 84, 402; violência
313; flexibilização do trabalho: 67-9, estrutural: 56, 146, 148, 271; violência
240; teoria feminista do trabalho: 93; masculina: 82, 280-5, 291, 374, 390, 403;
trabalho remunerado: 68, 92, 224, 295, monopólio da violência: 83, 85, 140-1,
322; trabalho não remunerado: 92, 114, 143, 146-8, 152.
240, 252, 346, 382, 389, 391; trabalho Von Werlhof, C.: 68, 78, 95, 229, 240, 242,
não assalariado: 92, 94, 95, 96, 115, 355, 251, 252, 267, 272, 342, 351, 355, 360,
382; trabalho produtivo: 92, 111, 114-
380.
5, 138, 234, 240, 251, 295, 326-7, 355;
trabalho não produtivo: 387; trabalho
Wallerstein, L.: 103, 146-7, 152-3, 158,
reprodutivo: 90; trabalho de consumo:
165-7.
231, 239, 240, 282; trabalho excedente:
99, 115, 344, 355; trabalho forçado: 147, Werner, J.: 192, 341-5.
272; trabalho humano: 94, 112, 152, 235, White, C.: 338-39, 355, 369.
239, 378; trabalho produtor de mais-va- Wolf-Graaf, A.: 119.
lia: 114; trabalho produtor da vida: 114; Wollstonecraft, M.: 72.
precarização do trabalho: 68; processo
de trabalho: 114, 122, 123, 130, 131, 151, Zetkin, C.: 54, 72, 88, 210-2, 322.
377, 379, 381, 384; produtividade do tra- Zimbábue: 295, 318, 320, 348, 350.
balho: 114, 128, 224; tempo de trabalho zonas francas/fábricas para o mercado
necessário: 375, 377. mundial: 219, 221, 225, 254, 256, 272.
QUEM FEZ ESTE LIVRO
ANA BASAGLIA – Designer gráfica, especialista e mestre em Design, dou-
toranda em Design na Universidade Anhembi Morumbi (UAM). Ativista
e atuante em prol do aleitamento materno, é uma das fundadoras da Ma-
trice, grupo voluntário mais antigo em atuação na cidade de São Paulo. É
proprietária do estúdio Uniqua Design e publisher da Editora Timo. Já ganhou
um prêmio Jabuti de Projeto Gráfico.

CECILIA FARIAS – Integrante do Coletivo Sycorax. Linguista, pesquisadora


e tradutora. Atualmente, é doutoranda em linguística. Sua pesquisa se volta
a realidades multilíngues, línguas minorizadas e as relações sociocognitivas
ligadas à linguagem. Faz o Babel Podcast e pesquisa no Laboratório Lingua-
gem, Interação, Língua, Cultura e Cognição da Universidade de São Paulo
(LLICC-USP).

CECÍLIA ROSAS – Integrante do Coletivo Sycorax. É tradutora, mestre e


doutora em Literatura e Cultura Russa pela Universidade de São Paulo. Tra-
balhou como editora assistente na Editora 34 e integrou a Revista Geni.
Entre suas traduções mais recentes estão A guerra não tem rosto de mulher, de
Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2016) e A menininha do hotel
metropol, de Liudmila Petruchévskaia (Companhia das Letras, 2020).

ISABEL LOUREIRO – Professora aposentada do Departamento de Filosofia


da Universidade Estadual Paulista (Unesp). É autora, entre outros, de Rosa Lu-
xemburgo, os dilemas da ação revolucionária (Editora Unesp, 2019) e A Revolução
Alemã (Editora Unesp, 2020).

JULIANA BITTENCOURT – Integrante do Coletivo Sycorax. Fotógrafa,


pesquisadora, tradutora e mestranda em Museologia pela Universidade de São
Paulo. Foi integrante do coletivo editorial da Revista Geni entre 2014 e 2016.

LEILA GIOVANA IZIDORO – Integrante do Coletivo Sycorax. Advogada,


pesquisadora e tradutora. Atualmente é doutoranda em Direitos Humanos
pela Universidade de São Paulo e integrante do Grupo de Pesquisa Direitos
438 PAT R IAR C ADO E AC U M U LA Ç Ã O E M E SC A LA M U N D I A L

Humanos, Centralidade do Trabalho e Marxismo (DHCTEM). Foi colabora-


dora da Revista Geni entre 2015 e 2016.

LUCIANA CARVALHO FONSECA – Professora no Departamento de Letras


Modernas da Universidade de São Paulo e tradutora e intérprete. Seus temas
de pesquisa são tradução na intersecção entre poder e militância e ativismo,
tradução feminista, tradução coletiva e historiografia da tradução. Coordena
o Grupo de Estudos, Pesquisa e Ação em Feminismos, Gênero e Tradução e o
projeto Mulheres Tradutoras do Século XIX, ambos na USP. É colaboradora
do Coletivo Sycorax.

MARIA TERESA MHEREB – Tradutora e doutoranda em Estudos da Tra-


dução pela Universidade de São Paulo, onde também coordena o Grupo de
Estudos, Pesquisa e Ação em Feminismos, Gênero e Tradução. Sua pesquisa,
centrada no conceito de divisão sexual do trabalho, conecta os Estudos da
Tradução, a Sociologia e os Estudos de Gênero. Já traduziu, entre outras/os,
Eleanor Marx, Sylvia Pankhurst e Louise Michel. É colaboradora do Coletivo
Sycorax.

SILVIA FEDERICI – Italiana radicada nos Estados Unidos, é professora emé-


rita da Universidade Hofstra, em Nova York. Entre suas obras estão Calibã e
a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Elefante, 2017), O ponto zero da
revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista (Elefante, 2019) e Reecan-
tando o mundo: feminismo e a política dos comuns (Elefante, 2022), todas traduzi-
das pelo Coletivo Sycorax.

SHISLENI DE OLIVEIRA-MACEDO – Integrante do Coletivo Sycorax.


Mestre em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e em Estudos
Feministas e de Gênero pelo programa Genre(s), Pensées de la Différence,
Rapports de Sexe, da Universidade Paris 8.
ESTE O BRA, CO MPO STA EM BEMBO E F RUTI G ER,
FO I FI NALI ZADA NO O UTO NO D E 2 0 2 2 .
A LEITURA feminista sobre acu-
mulação primitiva foi recuperada
por uma vertente do feminismo
alemão a partir do legado de
Rosa Luxemburgo, como apre-
senta Isabel Loureiro no texto
As feministas descobrem Rosa
Luxemburgo: o caldo de cultura
em que encontramos Maria Mies,
escrito especialmente para esta
edição brasileira. Para Luxem-
burgo, o violento processo de
acumulação que lançou as bases
do sistema capitalista dependeria
da exploração e destruição dos
povos e modos de vida não capi-
talistas, e não só da exploração das
classes trabalhadoras. Além dis-
so, esse processo de acumulação
não estaria circunscrito tempo-
ralmente, mas seria permanente
e necessariamente renovado ao
longo do desenvolvimento capi-
talista. Escrito na década de 1980,
Patriarcado e acumulação em esca-
la mundial insere-se nessa genea-
logia. Entre as inúmeras questões
de que trata – e cujo panorama
você pode conferir no prefácio
de Silvia Federici –, destacamos
a relação interdependente entre
a exploração das mulheres, dos
povos colonizados e da natureza,
que, para Maria Mies, é funda-
mental para compreender a di-
nâmica capitalista nos seus des-
dobramentos históricos.
Para Mies, a relação entre a exploração das mulheres,
dos povos colonizados e da natureza é essencial
para compreender a dinâmica capitalista nos seus
desdobramentos históricos.
As tradutoras

Como Mies coloca, as mulheres não são um grupo


particular de seres humanos entre outros; elas são
aquelas que, em todos os tempos e em todas as
sociedades, produziram vida no planeta e de cujo
trabalho dependem, portanto, todas as demais atividades.
Assim, rastrear as origens da exploração das mulheres
é perguntar por que e onde a história “deu um passo
errado”, quais são as forças impulsionadoras da
história mundial e qual é a verdade do sistema
capitalista em que vivemos. Essa é a missão assumida
por Patriarcado e acumulação, e o resultado é a
reconstrução histórica e teórica cujo escopo tem sido
definido por “arrebatador”.
Silvia Federici

Você também pode gostar