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O FEMINISMO MATRICÊNTRICO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: A

MATERNAGEM COMO RESISTÊNCIA

Juddy Garcez Moron1

RESUMO

O campo de estudo das Relações Internacionais, que é marcado por teorias estadocêntricas
e profundamente masculinizadas e Ocidentais, possui certa tendência em rechaçar novas
abordagens e epistemologias não-normativas, visões que se posicionem contra o status quo
e que escancaram os limites das análises internacionais. Apesar disso, contudo, muitas
teorias floresceram no que pode ser considerada uma abordagem pós-positivista ou
reflexivista. Os feminismos, pós-colonialismos, pós-estruturalismos e outras vertentes que
se encaixam nessa perspectiva reflexivista atuam como fomentadores da crítica e da
desconstrução, buscando romper certas barreiras já postas tanto na produção do
conhecimento científico da área, quanto no conteúdo de tais estudos. No entanto, mesmo
nos frutos desses trabalhos há visões hegemônicas, que são por vezes silenciadoras de
determinados grupos que podem ser percebidos como “minorias das minorias”. No caso
específico dos feminismos, embora muitos partam da interseccionalidade, ainda há muitas
lacunas a serem preenchidas. Uma delas é referente a maternidade. A mulher mãe é
deixada de fora, repetidamente ignorada e invisibilizada. Partindo do pressuposto feminista
de que o pessoal é, também, internacional, e de que a mulher mãe é representa um corpo –
mas também um espaço – de luta e resistência frente a um Estado patriarcal e maculado
pelo machismo, o principal objetivo do presente artigo é o de fazer uma análise da
mobilização da maternagem como prática política. Para tal, o método escolhido é a análise
conceitual da ideia de maternidade e suas implicações para a adoção da maternidade como
resistência política. O estudo justifica-se pela necessidade de se explorar a
interseccionalidade mais a fundo nos feminismos nas Relações Internacionais, entendendo
seus limites e abrindo espaço para uma maior acolhida de todas as mulheres.

Palavras-chave: Relações Internacionais. Feminismo Matricêntrico. Maternidade.


Maternagem. Resistência.

1 Bacharela em Relações Internacionais pela Faculdade do Instituto Nacional de Pós-Graduação


(INPG), Mestranda em Relações Internacionais no Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais (PPGRI) pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), e-mail:
juddygarcez@hotmail.com
INTRODUÇÃO

O feminismo nas Relações Internacionais teve seu aparecimento em um


contexto mais recente. Enquanto muitas teorias ‘maturaram’ no ideário internacional
por anos, o feminismo, nessa área, surgiu apenas com o que é considerado o último
grande debate das Relações Internacionais. Nesse contexto é pertinente ressaltar
que o feminismo não é uno, havendo, mesmo dentro do campo internacional, uma
gama de diferentes abordagens. Há o feminismo marxista, o negro, o interseccional,
o pós-estruturalista e muitos outros.
Contudo, apesar da área dialogar com diferentes tipos de feminismo, ela
ainda não soube e/ou não foi capaz de abarcar o feminismo matricêntrico, termo
cunhado por Andrea O’Reilly e que diz respeito a um feminismo adequado as
mulheres que são mães, uma vez que o seu principal foco é exatamente esse grupo
de mulheres, suas vozes e seus saberes.
Objetivando, portanto, desvelar alguns limites do ideal de maternidade
patriarcal como já é vastamente conhecido, e, com isso, trazer o debate do
feminismo matricêntrico para dentro do campo das Relações Internacionais, o
presente texto utiliza a análise conceitual como metodologia, embasando-se na
bibliografia concernente ao tema, tendo como fontes principais textos de autoras da
filosofia, sociologia e psicologia.
O texto está dividido em três momentos, onde na primeira seção, ‘O
feminismo matricêntrico’ analisar-se-á o termo e a corrente, buscando entender qual
sãos suas bases e suas particularidades; na segunda seção, ‘A maternidade e a
maternagem’ serão observados ambos os termos e como eles recortam as vidas das
mulheres mães; na terceira e última parte, ‘A maternagem como resistência’
observar-se-á algumas das múltiplas formas de maternagem e maternar como luta
frente a maternidade patriarcal.
O presente artigo justifica-se pela sua relevância não apenas na esfera das
Relações Internacionais, mas também no seu alto valor emancipatório para as
mulheres mães, que buscam uma forma diferente de maternagem e maternar e que
almejam educar crianças empáticas, socializadas para buscarem a equidade de
gênero e o respeito ao próximo.
O FEMINISMO MATRICÊNTRICO

Os movimentos sociais, em sua maioria, possuem diferentes facetas que


variam de acordo com a sua localização e origem, as épocas de seu surgimento e
existência, os aportes teóricos, as práticas e atuações e inúmeras variáveis que
traduzem uma luta diversa e múltipla em um direcionamento básico. Com o
feminismo não é diferente, tendo o movimento passado por diferentes momentos e
contando com muitas vertentes atualmente, que perpassam diferentes abordagens,
a exemplo dos feminismos negro, pós-colonial e o interseccional.
De forma breve e apenas para fins explicativos, podemos demarcar o
surgimento do movimento pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, no
contexto da existência do Estado-Nação, como tendo ocorrido já na França
iluminista. Para Pougy (2017), as mulheres francesas faziam indagações acerca da
falta de representatividade feminina na famosa Declaração da Assembleia Nacional,
fato que se deu antes mesmo da difusão das ideias feministas com o nascimento do
movimento sufragista.
Os diferentes feminismos, com o passar do tempo, adentraram nos mais
diversos campos, tendo destaque especial na sociologia, antropologia e filosofia.
Contudo, no universo das Relações Internacionais também não foi diferente.
Segundo Tickner (2001), os estudos de gênero nesse campo tiveram início nos anos
60 e 70, sendo o feminismo liberal uma das primeiras abordagens adotadas na área.
Com o avanço dos debates teóricos, epistemológicos e metodológicos nas
Relações Internacionais, em especial após a eclosão do que ficou conhecido como o
último grande debate da área (SMITH, 2000), onde nos anos 90 racionalistas e
reflexivistas encontravam-se de lados opostos, novas perspectivas foram sendo
introduzidas nos estudos internacionais, sendo boa parte delas – se não todas –
adotadas no âmbito reflexivista.
As teorias feministas, de acordo com Tickner (1996, p.11, tradução minha)
“identificadas de várias maneiras como marxistas, radicais, psicanalíticas,
socialistas, ‘do ponto de vista’, existencialistas e pós-modernas, descrevem as
causas e consequências da opressão das mulheres e prescrevem estratégias para
removê-la.” Portanto, assim como já apontado anteriormente, é possível perceber
que, apesar de múltiplas variações do feminismo nas Relações Internacionais, suas
estudiosas e estudiosos têm como um de seus objetivos a formulação de
estratégias, tanto teóricas quanto práticas, para a emancipação das mulheres.
Tanto de uma forma mais ampla, quanto nas Relações Internacionais
especificamente, cada vertente do feminismo possui o seu foco particular. Para citar
alguns exemplos, há a teoria feminista marxista de uma forma mais ampla faz um
recorte de classe e gênero; a teoria feminista liberal pauta-se no gênero e nos ideais
liberais; a teoria feminista interseccional almeja entender e combater diferentes
formas de opressão feminina. A fim de aumentar e aprofundar esse debate, que
ocorre até mesmo dentro do feminismo, é preciso ir além de violências e
dominações explícitas e, com isso, olhar para a vozes silenciadas.

Nos últimos quarenta anos, à medida que a teoria feminista e os


estudos das mulheres cresceram e desenvolvidos como um campo
acadêmico, eles incorporaram vários e diversos modelos teóricos
para representar as perspectivas/preocupações específicas de
grupos específicos de mulheres; feminismo global, feminismo queer,
feminismo de terceira onda e feminismo de forma mais geral. Por
outro lado, argumentarei que os estudos das mulheres também não
reconheceram ou abraçaram um feminismo desenvolvido a partir de
necessidades/preocupações das mães, o que chamei de feminismo
matricêntrico. (O’REILLY, 2014, s.p., tradução minha)

É importante ressaltar que o feminismo matricêntrico é diferente do feminismo


materno. Há pressupostos políticos, teóricos e estratégicos que pautam o feminismo
matricêntrico, sendo o seu cerne o foco na mãe. Sua existência se dá no âmbito do
século XXI, sendo ele muito específico a esse momento. O feminismo matricêntrico
partilha de algumas técnicas utilizadas no maternalismo, compreendendo também,
para além disso, concepções e filosofias do feminismo, da luta por direitos iguais e
da ética do cuidado. (O’REILLY, 2014)
Tanto nesse texto, quanto nas referências aqui utilizadas, a mãe é
compreendida como sendo uma mulher. Conforme apontado por Ruddick (1995),
embora o ‘trabalho materno’ possa ser realizado, a priori, por qualquer adulto
considerado responsável, historicamente são as mulheres aquelas que, de maneira
exageradamente desproporcional, não apenas parirem como por cuidam das
crianças. Assim sendo, a opção aqui adotada foi a de considerar mães como
mulheres.
Isto posto, é imprescindível pensar em um feminismo que seja capaz de
abarcar mulheres que são mães, haja vista que elas sofrem uma dupla opressão:
por serem mulheres e por serem mães. As mães precisam, portanto, de um
feminismo que parta de suas necessidades e preocupações, tanto do ponto de vista
teórico quanto do prático, atingindo o ativismo feminista e a forma como se
empodera as mulheres. (O’REILLY, 2014)
O pensamento feminista matricêntrico é expresso em três temas
complementares e interrelacionados: (1) a descoberta e o desafio da e a instituição
patriarcal opressiva do que é entendido por ‘maternidade’; (2) o foco na formulação e
articulação de um contradiscurso a esse ideal patriarcal de maternidade, redefinindo
a maternidade sob um olhar feminista; (3) compreensão de que as mães, através da
valorização do poder materno e de sua agência enquanto mãe e mulher, podem
levar a grandes mudanças sociais, especialmente na operacionalização de suas
capacidades por meio da socialização dos filhos. (O’REILLY, 2004)
Assim sendo, o feminismo matricêntrico, conceito cunhado por Andrea
O’Reilly, pode ser entendido, de forma bem resumida, como o feminismo que é feito
por e para mães, tendo como seu cerne o foco na mulher mãe e na atuação dessas
mulheres enquanto mães tanto no processo de maternagem quanto na
desconstrução da maternidade patriarcal.

A MATERNIDADE E A MATERNAGEM

Conforme visto na seção anterior, assim como há diferença entre o feminismo


matricêntrico e o feminismo materno, também há o que pode ser considerado um
‘abismo’ entre os conceitos ‘maternidade’ e ‘maternagem’. “Em outras palavras,
embora a maternidade como instituição seja um local de opressão definido pelo
homem, as próprias experiências de maternidade das mulheres podem, no entanto,
ser uma fonte de poder” (O’REILLY, 2004, p.159, tradução minha).
Quando se fala de “maternidade” automaticamente fala-se, também, de um
ideal do que é ser mãe. Uma mãe ideal é compreendida socialmente como uma
mulher heterossexual, que fica em casa e cuida dos filhos enquanto o marido, pai
dessas mesmas crianças, trabalha a fim de angariar recursos financeiros para o
sustento da família. Ainda nesse contexto, a mãe ideal é aquela que tem a
capacidade de ser mãe intrínseca a si, que possui um ‘amor incondicional’ por seu
marido e suas crianças; é uma mulher desprovida de desejos e vontades próprios.
Sua vida ocorre em torno de, e como base da, vida de seus familiares próximos. É
essa mulher a responsável por cuidar das crianças e nutrir todos os membros de sua
família. (GREEN, 2004)
“A definição patriarcal de maternidade coloca as mulheres em uma situação
sem vitória; o padrão da maternidade é impraticável e irracional e pune aqueles que
não cumprem seus critérios.” (GREEN, 2004, p.128, tradução minha). Logo, a
maternidade, conforme definida nos termos patriarcais, é uma prática impossível de
ser completada com sucesso, que carrega mulheres ao longo do caminho conforme
se impregna e é reiterada dia após a dia.
Para se atingir um processo de maternagem emancipatório é preciso, então,
desconstruir o que é a maternidade patriarcal para, a partir disso, repensar novas
teorias e ações. Para Rich (1976, p.280, tradução minha), “Destruir a instituição não
é abolir a maternidade. É liberar a criação e o sustento da vida no mesmo campo de
decisão, luta, surpresa, imaginação e inteligência consciente, como qualquer outro
trabalho difícil, mas livremente escolhido.”
Segundo O’Reilly (2016) o termo “mothering”, ou ato de maternar em
português, inicialmente pensado por Adrienne Rich (1976), pode ser entendido como
uma ação ou processo contínuo. Já o termo “motherhood”, que pode ser traduzido
como maternagem, relaciona-se ao poder biológico e fundamente-se em significados
institucionais, simbólicos e culturais. Assim sendo, os conceitos ‘maternar’ e
‘maternagem’ pressupõem ação, eles indicam a tomada dessa agência por parte das
mães.
Tanto a teoria quanto a ação perpassam os corpos dessas mães. Para
Ruddick (1995), embora os trabalhos de parir e amamentar sejam exclusivamente
femininos, podendo o processo de maternar ser compartilhado e dividido com outras
pessoas, quer sejam elas mulheres ou homens, não é possível diminuir o papel das
mulheres na maternagem e nem o fato de que são majoritariamente mulheres que
atuam como mães.
Ainda para a autora, “Gravidez, nascimento e lactação são diferentes de
outros trabalhos maternos e, medidos pela vida de um filho, são breves episódios
nos anos de maternagem.” (RUDDICK, 1995, p.48, tradução minha). Portanto,
embora a utilização física do corpo das mulheres mães seja, em alguns casos
limitados a esse curto período, a maternagem é uma prática que perdura até mesmo
ao fim da vida dessas mulheres.
É preciso notar que a maternagem vai muito além desses atos. “A
maternagem também pode envolver a escolha de não trazer um filho ao mundo,
desde que a sociedade não permita que uma lésbica seja o tipo de mãe que ela
escolhe ser" (HOAGLAND, 1988, p. 96, tradução minha). Retomando a ideia de mãe
ideal, já trabalhada anteriormente, observa-se que a todo e qualquer tipo de
maternagem que foge a esse modelo patriarcal é ignorado e repudiado ferozmente.
Ser apontada como uma mãe ruim ou desviante devido a fuga do padrão de
‘maternidade’ patriarcal e idealizado traz severas consequências para as mães.
Muitas mulheres mães sofrem com sentimentos de inadequação e culpa por não se
enxergarem como ‘boas’, por não conseguirem emular o estereótipo de mãe padrão
ou até mesmo por conseguirem, mas não se sentirem felizes desempenhando tal
papel. (GREEN, 2004)
A concepção de um feminismo matricêntrico, que aborde a maternagem e o
maternar como meios emancipatórios e de resistência frente a maternidade
patriarcal, portanto, de vital importância não apenas para as mães, mas para a
sociedade de uma forma mais ampla. Em uma discussão um pouco mais
aprofundada e dentro do próprio meio feminista, O’Reilly (2004) afirma que, se por
um lado as teóricas feministas da maternagem reivindicam o fim da instituição
‘maternidade’ a fim de tornar esse processo menos opressivo para as mulheres, por
outro, estudiosas feministas que se preocupam particularmente com a questão da
“criação dos filhos”, advogam em prol de uma criação feminista, bem como a favor
da utilização de práticas feministas de socialização de gênero, pretendendo, assim,
a formulação de uma nova geração de meninas e meninos empáticos.
Assim sendo,

Uma revisão do pensamento feminista sobre a maternidade revela


que uma crítica à instituição da maternidade e uma preocupação com
novos modos de criar os filhos se desenvolveram
independentemente uma da outra e que feministas comprometidas
com a abolição da maternidade e a conquista da maternidade
raramente consideraram o que isso significa para a própria mãe, a
parte do problema da educação das crianças. (O’REILLY, 2004,
p.171, tradução minha)

Em suma, as problemáticas conceitual e prática que envolvem a maternidade,


a maternagem e o maternar envolvem uma série de fatores, que se inicia na forma
patriarcal de maternidade, recortam as resistências e lutas da maternagem e do
maternar e culminam na discussão feminista e feminista matricêntrica acerca do
significado desses processos para a mulher mãe, que é a base social,
epistemológica e política desse debate.

A MATERNAGEM COMO RESISTÊNCIA

Partindo do pressuposto de que “a maternagem é uma relação recíproca; ela


[uma mãe] não pode deixar sua criança segura até que ela mesma esteja segura”
(RUMSEY, 1990, p.129, tradução minha) é preciso pensar nesse processo como
sendo transcendente ao particular, ao privado. É preciso analisá-lo a partir de um
olhar também do público. Ainda para Rumsey (1990), quando uma mulher percebe
que há ameaças tais como armas nucleares e venenos ambientais, ela entende que
seus filhos não estarão seguros até que todos estejam.
Conforme já foi visto anteriormente, uma narrativa feminista oposta às
condições limitantes da maternidade patriarcal encarrega-se de pensar e
implementar uma visão da maternagem que seja capaz de empoderar mulheres
mães (O’REILLY, 2004). Seria, portanto, uma prática capaz de aceitar os processos
do maternar enquanto se extingue o viés patriarcal.
Nesse ponto é importante destacar que a abordagem acerca da maternidade
aqui trabalhada é a visão ocidentalizada e da mulher branca, cuja forma ideal de
maternidade difere substancialmente de outras formas, especialmente daquelas
praticadas por mulheres negras e de territórios como África e América Latina. Posto
isto, há de se olhar, nesse momento, para essas outras práticas maternas não
somente para compreendê-las, mas para adotá-las quando e se possível.
James (1999) traz em seu texto o conceito de “othermothering”, que pode ser
traduzido livremente como uma “outramaternagem”, ou seja, nesse cenário haveria a
aceitação de uma criança que não é ‘sua’, através de um arranjo formal ou não.
Nesse processo, todas as crianças seriam cuidadas como sendo filhos e filhas da
rede de suas mães. Outra definição pertinente de ser observada é aquela oferecida
por Wane (2000). A ideia de “mães da comunidade”, que muito se assemelha com a
“outramaternagem” trata do papel de mulheres, que por vezes já são mães em outro
contexto, na criação das crianças das comunidades nas quais elas estão inseridas.
Conforme apontado por O’Reilly (2004), essas duas formas de maternagem
podem ser entendidas como estratégias de sobrevivência frente as opressões
vivenciadas pelas mães, uma vez que elas asseguram o bem-estar físico e
psicológico das crianças, possibilitando o empoderamento delas, quer as mães
biológicas estejam presentes ou não. Essas são, portanto, duas das possíveis
formas de resistência contra a maternidade patriarcal já debatida ao longo do
presente texto.
Há, ainda, diferentes formas de luta contra tal modelo. Em seu texto, Green
(2004) afirma que, ao entrevistar uma mãe lésbica de trinta e sete anos, Willow, e
indaga-la acerca da criação de sua filha adolescente, pôde observar que, em um
momento de crise, essa mãe recorreu a uma amiga próxima, com quem
compartilhou, por alguns meses, as responsabilidades maternas. Dessa forma, mãe
e filha permaneceram em diálogo, ainda que em alguns dias ou semanas isso não
ocorresse no mesmo espaço. Através dessa estratégia, e da adoção de “reuniões
familiares” entre as duas mulheres e a filha, discussões ocorreram e a crise foi
solucionada, tendo a menina voltado a morar com Willow.
Outro exemplo citado por Green (2004) foi o de Beverly, mulher mãe que
busca compartilhar a sua autoridade de adulta com as suas filhas. “Ela também
encoraja suas filhas a observarem como todas as pessoas, incluindo elas mesmas,
são responsáveis por suas próprias escolhas e condutas pessoais.” (GREEN, 2004,
p. 134, tradução minha)
Tais exemplos são imprescindíveis na promoção de novas formas de
maternar. Para Lemes (2018), educar as crianças através da desconstrução dos
estereótipos de gênero significa opor-se a muitas instituições sociais, dentre elas a
própria maternidade, pois, ao se questionar o espaço privado como sendo lugar da
mulher mãe – a entender-se aqui as mulheres ocidentais e brancas, em sua maioria
– escancara-se os limites do público.
Por fim, trazendo tais debates para o âmbito das Relações Internacionais de
forma mais clássica, é possível observarmos que a maternagem disruptiva e não
conformada com os ideias patriarcais desafia a crença de que as mulheres foram
feitas para serem mães; de que foram feitas para servirem aos seus filhos e
maridos; ela impõe limites a construção do papel da mãe no imaginário social,
sempre associado ao cuidado ao lar, aquilo que é doméstico, privado, ao mostrar
que o maternar pode ser compartilhado por diferentes pessoas, em comunidades
menos ou mais amplas. Assim, essa forma de maternagem escancara a construção
social do que é a mulher mãe no imaginário social e torna possível o rompimento de
suas amarras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme é possível observar, o feminismo matricêntrico possui inúmeras


discussões acerca do papel da mulher mãe feminista na educação de suas crianças
e na sua atuação social, assim como uma vasta compreensão das estruturas
opressoras que a maternidade patriarcal implica na vida de mulheres mães. A
centralidade da mulher mãe nessa abordagem deve ser sempre considerada, sendo
a sua maior distinção do feminismo materno exatamente o foco que o feminismo
matricêntrico oferece a esse grupo de mulheres.
Conceitos como ‘maternidade’, ‘maternagem’ e ‘maternar’ fazem parte tanto
dos debates e aportes oferecidos por e para as mulheres mães. Apesar da falta de
um consenso entre os diferentes grupos feministas sobre a pertinência de cada
enfoque e ponto de partida, as estudiosas do feminismo matricêntrico partilham do
mesmo objetivo, que é o de emancipar as mães e fornecer uma educação para suas
crianças pautada na equidade de gênero e na empatia.
Para tal, é preciso que haja resistência. A mulher mãe deve ser capaz de se
reinventar, dentro e fora do contexto da maternagem. A inspiração para tais
mudanças pode se encontrar disponível em outras partes do mundo, em outras
culturas ou até mesmo em outras casas, mais próximas fisicamente. E é nesse
cenário que o internacional se confunde com o privado e o público: uma mulher
enquanto mãe existe em todos os lugares, independente de onde esteja e através
do poder da sua militância materna, da sua maternagem, que essa mulher mãe pode
ser capaz de quebrar os padrões da maternidade patriarcal.

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