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Palestras sobre Libertação (Lectures on


Liberation)
POR REGINA MARIA DA SILVA · JULHO 25, 2015

Tradução de Jaque Conceição (Pedagoga e Mestra em Educação: História, Política,


Sociedade)

Revisão textual e seleção de imagens de Regina Maria da Silva (Pedagoga e Socióloga,


Especialista em Magistério do Ensino Superior, Mestra em Educação: História, Política,
Sociedade e Pós-graduanda em Educação Infantil e Políticas de Promoção da Igualdade
Racial na Escola)

 Preâmbulo

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 Em 1969, Angela Yvonne Davis era uma jovem de 23 anos. Negra, comunista e doutora
em Filosofia pelo Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt/Alemanha. Na Europa, ela
estudou com Theodor Adorno, um dos intelectuais mais influentes da filosofia moderna
alemã. O texto a seguir trata da transcrição da sua aula inaugural em seu curso sobre
filosofia moderna. Nessa aula, o auditório com capacidade para 2500 pessoas do campus
da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA – EUA) lotou. Angela Davis, uma
jovem professora de filosofia, militante do Partido Comunista e atuante nos Panteras
Negras, demonstrou brilhantemente nessa aula inaugural sua visão de mundo e
interpretação filosófica da realidade dos negros norte-americanos. Temas como:
religião, identidade, subjetividade, liberdade dão o tom do seu brilhantismo e capacidade
singular de ler e descrever o mundo naqueles anos de luta e resistência.

Muitos de nós a conhecemos no Brasil por meio de seus textos sobre o feminismo negro,
mas o texto abaixo, publicado aqui pela primeira vez em português, mostra que suas
indagações são claramente filosóficas, uma filosofia preta e revolucionária. Para além do
feminismo negro, os escritos de Angela Davis mostram que é preciso construir a
libertação dos indivíduos pretxs, mas sem perder a noção de classe.

Introdução

O texto aqui apresentado é de autoria da professora Angela Davis. É sua palestra inicial
para o curso Os Temas Filosóficos Recorrentes na Literatura Negra, seu primeiro curso
na UCLA, durante o outono de 1969, no momento em que começava sua atuação como
professora assistente de Filosofia da UCLA. A primeira de duas palestras foi apresentada
no Royce Hall para um público de mais de 1.500 colegas interessados. No final da
palestra, a Professora Davis foi bastante ovacionada pelo público de pé. Foi, pensamos,
uma reivindicação de liberdade acadêmica e educação democrática. As palestras fizeram
parte de uma tentativa de trazer à tona a história proibida da escravidão e da opressão
do povo preto, e colocar essa história em um contexto filosófico esclarecedor. Ao mesmo
tempo, eles são sensíveis, originais e enfáticos: retratam o trabalho de uma excelente
professora e verdadeira estudiosa.

A professora Davis agora é uma prisioneira da sociedade que deve congratular-se com
seus talentos, honestidade e a contribuição feita para compreender e resolver o
problema mais crítico dessa sociedade – a divisão entre os seus opressores e oprimidos.
Primeiro, ela foi atacada pelo reitor da Universidade da Califórnia, que tentou demiti-la

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afirmando ser ilegal sua participação no Partido Comunista. Quando essa tentativa foi
anulada pelo Tribunal Superior de Los Angeles, o reitor negou a continuação normal da
sua nomeação para um segundo ano, apesar das recomendações do comitê de avaliação
e do Chanceler da UCLA para que ela fosse nomeada. Durante o verão de 1970, ela foi
acusada de sequestro, assassinato e fuga ilegal para evitar ser processada e colocada na
lista dos mais procurados do FBI. Quando apreendida ela foi mantida sob fiança
excessiva, tendo a fiança negada e, posteriormente, mantida em isolamento de outros
prisioneiros.

No primeiro texto, a Professora Davis assinala que manter uma classe oprimida na
ignorância é um dos principais instrumentos de controle do opressor. Como Frederick
Douglas, o escravo cuja vida e obra ela examina aqui, a Professora Davis também é uma
oprimida educada. Como ele, ela alcançou plena consciência do que é, e tem aumentado
essa consciência em seu próprio povo e nos outros. Não pode haver dúvida de que sua
eficácia na critica à ignorância forçada, na qual ela e seu povo tem sido mantidos, é o
principal motivo para seu banimento e o tratamento que ela recebe desde então.

Estas são palestras que tratam da fenomenologia da opressão e libertação. E tem um


ponto fundamental: como pode ser possível, haver milhões de oprimidos, no país que é
anunciado como a sociedade mais livre do mundo. É necessário pensar as causas da
opressão e as formas em que ela se perpetuar; seu significado psicológico para o
opressor e os oprimidos; e o processo pelo qual o último torna-se consciente de que é
possível vencer a opressão. Esta foi a tarefa que a Professora Davis tomou para si
mesma. Ela traz para seu trabalho um fundo filosófico rico, um intelecto penetrante e o
conhecimento nascido da experiência.

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Seria talvez inevitável que a Professora Davis se tornasse um símbolo para grupos e
causas conflitantes. Mas é bom lembrar que por trás do símbolo encontra-se o ser
humano cujos pensamentos são registrados aqui, e que quando ela vai a julgamento não
apenas uma causa humana, mas também uma vida humana será julgada. Nesse meio
tempo, temos orgulho em apresentar estas duas palestras de uma ilustre colega e
amiga. Suas palavras, em todos os lugares, podem contribuir para a derrota da opressão.

Califórnia, Primavera de 1971. Prof. Matthew Skulicz – Departamento de Literatura


Inglesa

Palestras para libertação

New York, 1971. Comitê para libertação da Angela Davis e todos os prisioneiros políticos

A ideia de liberdade tem sido justificadamente um tema dominante na história das ideias
ocidentais. O homem tem repetidamente definido a sua liberdade como algo inalienável.
Um dos paradoxos mais agudos presentes na história da sociedade ocidental é que,
enquanto no plano filosófico, a liberdade foi delineada da forma mais elevada e sublime,
na realidade concreta, para alguns ela é marcada pela forma mais brutal que é a
escravidão. Na Grécia Antiga, onde a democracia teve a sua origem, não se pode
esquecer que, apesar de todas as afirmações filosóficas da liberdade do homem, apesar
da demanda de que o homem só podia realizar-se através do exercício da sua liberdade
como um cidadão da polis: a maioria das pessoas em Atenas não era livre. As mulheres
não eram cidadãs e a escravidão era uma instituição aceita. Mas lá, houve
definitivamente uma forma de racismo presente, e apenas para os homens gregos
foram concedidos os benefícios da liberdade: todos os não-gregos foram chamados
bárbaros e por sua natureza não poderiam ser merecedores ou mesmo capazes de
exercerem a liberdade.

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Neste contexto, não se pode deixar de evocar a imagem de Thomas Jefferson e outros
fundadores, chamados a formular os conceitos nobres da Constituição dos Estados
Unidos, enquanto seus escravos viviam na miséria. A fim de não estragar a beleza da
Constituição e ao mesmo tempo proteger a instituição escravidão eles escreveram sobre
pessoas mantidas sob serviço ou trabalho, um eufemismo para a palavra escravidão.
Essas pessoas eram tipos excepcionais de seres humanos, que não mereciam as
garantias e os direitos da Constituição.

O homem é livre ou não é livre? Deveria ele ser livre ou não deveria ser livre? A história
da Literatura Negra prevê, em minha opinião, uma explicação muito mais esclarecedora
da natureza da liberdade, sua extensão e os limites dos discursos filosóficos sobre este
tema na história da sociedade ocidental. Por quê? Por razões numéricas. Em primeiro
lugar, porque a Literatura Negra neste país e em todo o mundo projeta a consciência de
um povo que tem seu acesso à liberdade negado. Os negros têm exposto pela sua
própria existência as insuficiências da liberdade, não só em sua prática, como também
na sua formulação teórica. Porque se a teoria da liberdade fomenta a separação entre o
conceito e a prática, ou seja, o que se pensa, não se vivencia então isso significa que algo
deve estar errado com o conceito.

O tema central deste curso será a ideia de liberdade: como ela é retratada na produção
literária do povo negro. Começando com a vida e os tempos de Frederick Douglass,
vamos explorar a experiência do escravo, do seu cativeiro e, assim, a experiência
negativa de liberdade. O mais importante aqui será a transformação fundamental do
conceito de liberdade como princípio estático da luta para libertação. Vamos passar por
W. E. B. Dubois, de Jean Toomer, Richard Wright e John A. Williams. Intercalando com as
poesias dos vários períodos da História Negra neste país e as análises teóricas de Fanon

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e Dubois. Finalmente, vamos discutir alguns poemas de Nicolas Guillen, um poeta


cubano negro, e compará-los com o trabalho dos negros americanos.

Durante o curso, a noção de liberdade será o eixo em torno do qual vamos tentar
desenvolver outros conceitos filosóficos. O tipo de filosofia da história que emerge das
obras que estamos estudando será crucial. A moralidade peculiar a um povo oprimido é
algo que terá que ser debatido. À medida que progredimos ao longo do caminho do
desenvolvimento da liberdade na literatura negra, devemos recuperar toda uma série de
temas relacionados.

Antes de entrar no material, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre os tipos de


questões que devemos nos fazer quando nos aprofundamos na natureza da liberdade
humana. Primeiramente, é a liberdade totalmente subjetiva, totalmente objetiva, ou é
uma síntese de ambos os pólos? Deixe-me tentar explicar o que quero dizer. A liberdade
é concebida apenas como uma dada característica inerente do homem? A liberdade está
confinada apenas dentro da mente humana? A liberdade é algo que permite nos
movermos, para agir de uma forma ou fazer uma escolha? Vamos colocar a questão
original como a subjetividade ou objetividade da liberdade da seguinte maneira: É
liberdade a liberdade de pensamento ou a liberdade de ação? Ou, mais importante, é
possível conceber uma forma de liberdade sem a outra?

Isso nos leva diretamente para o problema de saber se a liberdade é possível dentro dos
limites do cativeiro material. Pode o escravo ser considerado livre de alguma maneira?
Isto traz à mente uma das demonstrações mais notórias que o existencialista francês
Jean-Paul Sartre fez. Mesmo o homem na cadeia, para eliminar a sua condição de
escravidão, luta, mesmo que isso signifique a sua morte. Isto é, a sua liberdade está
estreitamente definida como a liberdade de escolher entre o seu estado de cativeiro e
sua morte. Agora, este é ponto. Certamente, isso não seria compatível com a noção de
liberdade, quando o escravo tem que optar por sua morte, ele faz muito mais do que
destruir sua condição de escravidão, por que ao mesmo tempo em que ele cria sua
própria liberdade, ele acaba com sua vida. No entanto, há mais a ser dito, quando o
escravo toma a decisão de morrer para ter sua liberdade e assim, na luta pela liberdade,
encontra sua morte, ele nos ensina que, para alguns, vida e liberdade parece ter o
mesmo sentido.

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A consciência autêntica de um povo oprimido implica uma compreensão da necessidade


de abolir a opressão. O escravo encontra no final da sua, elementos para a verdadeira
compreensão do que significa liberdade. Ele sabe que isso significa a destruição da
relação senhor-escravo. E, nesse sentido, o seu conhecimento da liberdade é mais
profundo do que o de mestre. O mestre sente-se livre, e ele sente-se livre porque ele é
capaz de dar liberdade a outro individuo. O escravo experimenta a liberdade do mestre
em sua verdadeira luz, à medida que ele entende que a liberdade do senhor é a liberdade
abstrata para suprimir outros seres humanos. O escravo entende que este é um pseudo
conceito da liberdade e neste momento é mais iluminado do que o seu mestre, por que
ele percebe que o mestre é um escravo de seus próprios equívocos, dos seus próprios
erros, da sua própria brutalidade, do seu próprio esforço para oprimir.

Agora eu gostaria de ir para o material. A primeira parte de A vida e os Tempos, de


Frederick Douglass, chamada “A vida de escravo”, constitui uma viagem física da
escravidão para a liberdade, que é ao mesmo tempo a celebração e reflexão de uma
viagem filosófica da escravidão para a liberdade.

Frederick Douglass

O ponto de partida para esta viagem é a seguinte pergunta que Frederick Douglass faz a
si mesmo como uma criança: “Por que eu sou um escravo? Por que algumas pessoas são
escravos e outros mestres?” (página 50). Sua atitude crítica quando ele não consegue
aceitar a resposta habitual – que Deus tinha pessoas negras para serem escravos e
pessoas brancas para serem mestres – é a condição básica que deve estar presente
antes da liberdade poder se tornar uma possibilidade na mente do escravo. Não
devemos esquecer que em toda a história da sociedade ocidental há uma abundância

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das justificativas apresentadas para a existência da escravidão. Tanto Platão e


Aristóteles argumentaram que alguns homens nasceram para serem escravos, pois não
nasceram em estado de liberdade. Justificativas religiosas para a escravidão são
encontradas em todos os momentos.

Vamos tentar chegar a uma definição filosófica do escravo, já dissemos a essência: ele é
um ser humano que, por alguma razão ou outra tem a liberdade negada. Mas não é a
essência do ser humano a sua liberdade? Ou o escravo não é um homem ou em sua
própria existência é uma contradição. Nós podemos descartar a primeira alternativa,
embora não devemos esquecer que a ideologia dominante definiu o negro como sub-
humano. A incapacidade de lidar com a natureza contraditória da escravidão, a
ignorância da realidade imposta é exemplificada na noção de que o escravo não é um
homem, pois se ele fosse um homem, ele certamente deveria ser livre.

Todos nós sabemos das tentativas calculadas para roubar o homem negro de sua
humanidade. Sabemos que, a fim de manter a instituição da escravidão, os negros foram
forçados a viver em condições que nem animais viveriam. Os brancos proprietários de
escravos foram determinados para moldar as pessoas negras na imagem do ser sub-
humano que eles tinham inventado para justificar suas ações. Um círculo vicioso onde
escravo-propriedade perde toda a consciência de si mesmo.

O círculo vicioso continua a girar, mas para o escravo, há uma saída: a resistência.
Frederick Douglass parece ter tido a sua primeira experiência desta possibilidade de um
escravo tornar-se livre ao observar um escravo resistir a uma flagelação: “Esse escravo
que teve a coragem de se levantar por si mesmo em primeiro lugar, tornou-se livre,
apesar de juridicamente ser escravo, ‘você pode atirar em mim’, disse um escravo para
Rigby Hopkins, ‘mas você não pode me chicotear’, e o resultado foi que ele não foi nem
chicoteado nem alvejado”.

Já podemos começar a concretizar a noção de liberdade como ela apareceu ao escravo. A


primeira condição da liberdade é o ato de resistência – resistência física, resistência
violenta. Nesse ato de resistência, os rudimentos da liberdade já estão presentes. E a
retaliação violenta significa muito mais do que o ato físico: é não só a recusa em
submeter-se à flagelação, mas também a recusa em aceitar as definições de escravo e
mestre; é implicitamente uma rejeição da instituição da escravidão, seus padrões, sua
moralidade, um esforço no sentido microcósmico em busca da libertação.

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A forma mais extrema de alienação humana é a redução ao status de propriedade. Isto é


como o escravo foi definido: algo a ser possuído. Segundo Frederick Douglass, ser
escravo era ter a personalidade absorvida pelo mestre, “nós não tínhamos mais valor
que as vacas e os bois no pasto, não podíamos nem sequer decidir se poderíamos comer
ou não”.

Os negros eram tratados como coisas, eles foram definidos como objetos. “O escravo era
um dispositivo elétrico”, observa Frederick Douglass. Sua vida devia ser vivida dentro dos
limites dessa objetificação, dentro dos limites da definição do homem branco do que é
ser um homem negro. Forçado a viver como se fosse um dispositivo elétrico, a
percepção do escravo do mundo está invertida. Porque a sua vida é relegada à de um
objeto, ele deve esquecer a sua própria humanidade dentro desses limites. “Ele não tinha
escolha, nenhuma meta, e foi ficando para baixo a um único local, e deveria lançar raízes
lá ou então em lugar nenhum. “O escravo não tem qualquer determinação sobre as
circunstâncias externas de sua vida. Um dia uma mulher poderia estar vivendo em uma
plantação entre seus filhos, família e amigos; no dia seguinte, ela poderia ser levada a
milhas de distância, sem esperança de alguma vez encontrá-los novamente. A ideia da
viagem perde a sua conotação de exploração, ela perde o entusiasmo de aprender o
desconhecido. A viagem torna-se uma jornada para o inferno, não longe da coisificação
da existência do escravo, mas uma acentuação ainda mais intensificada da sua não
existência humana.

O proprietário de Frederick Douglass revela-lhe involuntariamente o caminho em


direção à consciência da sua alienação: “Um “nigger não deve saber nada, somente a
vontade do seu senhor, e aprender a obedecê-la”. “O escravo é alienado totalmente à
medida em que ele aceita a vontade de seu mestre como a autoridade absoluta sobre
sua vida; o escravo não tem vontade, não há desejos, ele não existe; sua essência, seu
ser devem encontrar-se totalmente na vontade de seu mestre”. Isto quer dizer que, em
parte, é com o consentimento do escravo que o homem branco é capaz de perpetuar a
escravidão – quando dizemos consentimento, no entanto, não é o consentimento livre,
mas o consentimento sob a força e pressão brutal e violenta.

Frederick Douglass aprendeu a partir de observações de seu dono precisamente como


devia combater a sua própria alienação: “Muito bem, pensei, conhecimento incapacita
uma criança para ser um escravo: a partir desse momento, eu entendi o caminho direto

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da escravidão para a liberdade”. Se olharmos atentamente as palavras de Frederick


Douglass poderemos detectar o tema da resistência, mais uma vez. Sua primeira
experiência concreta da possibilidade de liberdade dentro dos limites da escravidão vem
quando ele observa um escravo resistir a uma surra. Agora, ele transforma esta
resistência em uma resistência da mente, na recusa em aceitar a vontade do mestre e
em determinação para encontrar meios independentes de avaliar o mundo.

Assim como o escravo tem usado a violência contra a violência do agressor, Frederick
Douglass usa o conhecimento de seu proprietário, para ir contra ele: ele nos diz que o
conhecimento impede o homem de ser escravo. Resistência, rejeição, em todos os
níveis, em todas as frentes, são elementos integrantes da viagem em direção a
liberdade. Alienação vai dando espaço para a consciência através do processo de
conhecimento.

Na luta contra a ignorância, ao resistir à vontade de seu mestre, Frederick Douglass,


apreende que todos os homens devem ser livres e, portanto, aprofunda seu
conhecimento da escravidão, do que significa ser um escravo, o que significa ser
contraparte negativa de liberdade. “Quando eu tinha uns 13 anos de idade, e tinha
conseguido aprender a ler, cada aumento de conhecimento, especialmente qualquer
coisa respeitando os estados livres, era um peso adicional à escravidão. Era uma
realidade terrível e eu nunca mais seria capaz de aceita-la em meu espírito jovem, que
queria ser livre”.

Sua alienação torna-se real, vem à tona e Frederick Douglass vai experimentar
existencialmente tudo que torna impraticável a liberdade, por estar vinculada a um
estado de não-liberdade materialmente falando, ao mesmo tempo encontrar quais
elementos mentais para a libertação. A tensão entre o subjetivo e o objetivo, é o que cria
o impulso em direção à liberação total. Mas antes que esse objetivo seja alcançado toda
uma série de fases deve ser percorrida.

O escravo, Frederick Douglass, portanto, transcende mentalmente sua condição para a


liberdade. Aqui reside a consciência da alienação. Ele vê a liberdade concretamente
como a negação da sua condição – que está presente no próprio ar que respira. “A
liberdade, como a criação inestimável de cada homem, é um direito que nos é dado,
desde a nossa primeira respiração, ainda na barriga de nossas mães. Está em cada som,
em cada objeto, mas sua ausência me atormenta mostrando-me minha miséria, o quão

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horrível e desolada era minha condição. A liberdade estava em tudo: eu a ouvia sem
nada ter ouvido. Não estou exagerando quando digo que ela olhou para mim em cada
estrela, sorriu em cada calmaria, respirou em cada vento e me banhou em cada
tempestade”.

Ele chegou a um verdadeiro reconhecimento de sua condição. Este reconhecimento é ao


mesmo tempo a rejeição da referida condição. A consciência da alienação implica na
recusa absoluta a aceitar a alienação. Mas na situação do escravo, por sua natureza
muito contraditória, é impossível: o conhecimento não traz felicidade, nem traz a
verdadeira liberdade – traz a desolação e a miséria, enquanto o escravo não conseguir
ver um caminho concreto para fora da escravidão, ele sofre com ela. “Eu era ignorante, e
resolvi saber, mas o conhecimento só aumentou minha miséria”, diz Douglass.

Nesta estrada para a liberdade, Frederick Douglass experimenta a religião como um


reforço e justificativa para o seu desejo de ser livre. A partir da doutrina cristã, ele deduz
a igualdade de todos os homens diante de Deus. Se isso for verdade, ele infere, os
senhores de escravos devem estar desafiando a vontade de Deus e devem ser tratados
de acordo com Sua ira. Liberdade é a abolição da escravidão, libertação é a destruição da
alienação – essas noções recebem uma justificativa metafísica e um impulso através da
religião. Um ser sobrenatural deseja a abolição da escravatura: Frederick Douglass,
escravo e crente em Deus, deve cumprir a vontade Dele, trabalhando em prol das
libertações dos homens escravizados.

Douglass não era a única pessoa a inferir isso no cristianismo. Nat Turner retirou uma
parte importante de sua inspiração e da sua fé no cristianismo. John Brown foi outro
exemplo.

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         Nat Turner                                                                                


                                                       
     John Brown

Nós todos sabemos que a partir da perspectiva da


sociedade dos brancos, a ideia predominante por trás da
junção escravidão e religião era fornecer uma justificativa
metafísica, não para a liberdade, mas sim para a
escravidão.

Uma das declarações mais notórias de Karl Marx é que a


religião é o ópio do povo. Isto é – a religião ensina os
homens a estarem satisfeitos com sua condição neste mundo – com sua opressão -,
orientando as suas esperanças e desejos em um domínio sobrenatural. Um pouco de
sofrimento durante a existência de uma pessoa neste mundo não significa nada em
comparação com uma eternidade de bem-aventurança.

Marcuse nos diz muitas vezes que a religião é o desejo e o sonho de uma humanidade
oprimida. Por um lado, esta afirmação significa, naturalmente, que os desejos se tornam
sonhos projetados para uma esfera sobre a qual os seres humanos não têm controle: um
reino imaginário. Mas, por outro lado, temos de nos perguntar: há alguma coisa implícita
na declaração de Marcuse sobre a noção de sonhos e desejo de uma humanidade
oprimida? Pense por um momento: necessidades e desejos são transformados em
sonhos através do processo das religiões, porque parece não termos mais esperança
neste mundo (e é justamente esta a perspectiva de um povo oprimido, a falta de
esperança). Mas o que é importante, é que esses sonhos sempre retornam ao seu status
original – a realidade material da terra. Há sempre a possibilidade de redirecionar esses
sonhos e desejos para o aqui e agora.

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Frederick Douglass foi redirecionado a esses sonhos; Nat Turner colocou os sonhos
dentro do âmbito do mundo real. Assim, não pode haver uma função positiva da religião,
porque sua própria natureza é satisfazer as necessidades urgentes das pessoas que são
oprimidas. (Estamos falando apenas da relação do povo oprimido com a religião, não a
tentativa de analisar a noção de religião em si e para si). Não pode haver uma função
positiva da religião. Tudo o que precisa ser feito é dizer: vamos começar a criar essa
eternidade de bem-aventurança para a sociedade humana neste mundo. Vamos
converter a eternidade na história.

Por que os negros não mudam a história? Por que houve um esforço calculado por parte
do branco, delimitando o espaço do negro, reforçando a noção e a mentalidade de
escravo com um tipo especial de religião que serve aos interesses dos senhores brancos,
servindo para perpetuar a existência da escravidão. O cristianismo foi utilizado para fins
de lavagem cerebral, doutrinação e pacificação dos negros escravizados.

Kenneth Stampp em seu trabalho “The Peculiar Institution” discute extensivamente o


papel da religião na criação de métodos de doutrinar as pessoas negras, de suprimir a
revolta potencial. Na primeira parte, os africanos não foram convertidos ao cristianismo,
porque isso poderia ter dado aos escravos uma reivindicação de liberdade. No entanto,
as várias colônias que utilizavam mão-de-obra escrava, aprovaram leis no sentido de
que os cristãos negros não se tornariam automaticamente homens livres em virtude de
seu batismo. Stampp formula as razões pelas quais os senhores brancos finalmente
decidiram deixar escravos entrarem através das portas sagradas da cristandade: “Por
meio de instrução religiosa, conhecimento bíblico que os escravos deveriam obedecer
seus mestres, eles ouviriam dos castigos aguardando o escravo desobediente, ouviriam
sobre a recompensa para o serviçal fiel e que, no dia do juízo final, Deus iria lidar com a
imparcialidade para com os pobres e os ricos, o homem negro e o branco, sempre a partir
de sua fidelidade e temeridade à Deus e ao cristianismo”.

Assim, as passagens da Bíblia que enfatizam obediência, a humildade, o pacifismo,


paciência, foram apresentados ao escravo como a essência do cristianismo. As
passagens, que por outro lado, falavam sobre a igualdade, a liberdade, e aqueles que
Frederick Douglass foi capaz de descobrir porque diferentemente da maioria dos
escravos, ele aprendeu a ler sozinho – estas foram eliminadas dos sermões para os
escravos, ministrados aos domingos. Uma versão com muita censura do cristianismo foi

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desenvolvida especialmente para os escravos. Um escravo piedoso, portanto, nunca


teria atingido um homem branco, seu mestre estava sempre certo, mesmo quando ele
estava humanamente errado. Este uso da religião, ensinava aos homens negros que
eles não eram homens por completo; tais passagens bíblicas foram usadas para abolir o
último remanescente de identidade que o escravo possuía. Mas, em longo prazo, eles
não foram bem-sucedidos como nos mostraram Frederick Douglass, Gabriel Prosser,
Denmark Vesey, Nat Turner e inúmeros outros que transformaram o cristianismo contra
os missionários. O Antigo Testamento foi especialmente útil para aqueles que
planejaram revoltas – os Filhos de Israel foram libertados da escravidão no Egito por
Deus – mas eles lutaram e lutaram, a fim de cumprir a vontade de Deus, e a resistência
foi a lição aprendida a partir da Bíblia.

A reação de Frederick Douglass à revolta de Nat Turner é reveladora, como nos conta
Douglass: “A insurreição de Nat Turner havia sido debelada, mas o alarme e terror que
originaram não haviam diminuído. A cólera foi, então, em direção a seu país e eu me
lembro de pensar que Deus estava com raiva dos brancos por causa de sua maldade
contra os escravos. É claro que era impossível para mim não me envolver com o
movimento da abolição, principalmente depois que o movimento foi apoiado pelo Todo-
Poderoso”.

Eu gostaria de terminar aqui, apontando para a essência do que eu tenho tentado


atravessar hoje. A estrada para a liberdade, o caminho da libertação é marcado pela
resistência em cada encruzilhada: a resistência mental, resistência física, resistência
direcionada para a tentativa de obstruir o caminho do cativeiro. Acho que podemos
aprender com a experiência do escravo. Temos de desmascarar o mito de que as
pessoas negras eram dóceis e aceitar que o negro resistiu desde que pisou nessa terra.
Nenhum individuo que tenha conhecimento e consciência de si mesmo preferirá a
escravidão à liberdade. Nem o individuo mais temente a Deus.

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