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Em 1969, Angela Yvonne Davis era uma jovem de 23 anos. Negra, comunista e doutora
em Filosofia pelo Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt/Alemanha. Na Europa, ela
estudou com Theodor Adorno, um dos intelectuais mais influentes da filosofia moderna
alemã. O texto a seguir trata da transcrição da sua aula inaugural em seu curso sobre
filosofia moderna. Nessa aula, o auditório com capacidade para 2500 pessoas do campus
da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA – EUA) lotou. Angela Davis, uma
jovem professora de filosofia, militante do Partido Comunista e atuante nos Panteras
Negras, demonstrou brilhantemente nessa aula inaugural sua visão de mundo e
interpretação filosófica da realidade dos negros norte-americanos. Temas como:
religião, identidade, subjetividade, liberdade dão o tom do seu brilhantismo e capacidade
singular de ler e descrever o mundo naqueles anos de luta e resistência.
Muitos de nós a conhecemos no Brasil por meio de seus textos sobre o feminismo negro,
mas o texto abaixo, publicado aqui pela primeira vez em português, mostra que suas
indagações são claramente filosóficas, uma filosofia preta e revolucionária. Para além do
feminismo negro, os escritos de Angela Davis mostram que é preciso construir a
libertação dos indivíduos pretxs, mas sem perder a noção de classe.
Introdução
O texto aqui apresentado é de autoria da professora Angela Davis. É sua palestra inicial
para o curso Os Temas Filosóficos Recorrentes na Literatura Negra, seu primeiro curso
na UCLA, durante o outono de 1969, no momento em que começava sua atuação como
professora assistente de Filosofia da UCLA. A primeira de duas palestras foi apresentada
no Royce Hall para um público de mais de 1.500 colegas interessados. No final da
palestra, a Professora Davis foi bastante ovacionada pelo público de pé. Foi, pensamos,
uma reivindicação de liberdade acadêmica e educação democrática. As palestras fizeram
parte de uma tentativa de trazer à tona a história proibida da escravidão e da opressão
do povo preto, e colocar essa história em um contexto filosófico esclarecedor. Ao mesmo
tempo, eles são sensíveis, originais e enfáticos: retratam o trabalho de uma excelente
professora e verdadeira estudiosa.
A professora Davis agora é uma prisioneira da sociedade que deve congratular-se com
seus talentos, honestidade e a contribuição feita para compreender e resolver o
problema mais crítico dessa sociedade – a divisão entre os seus opressores e oprimidos.
Primeiro, ela foi atacada pelo reitor da Universidade da Califórnia, que tentou demiti-la
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afirmando ser ilegal sua participação no Partido Comunista. Quando essa tentativa foi
anulada pelo Tribunal Superior de Los Angeles, o reitor negou a continuação normal da
sua nomeação para um segundo ano, apesar das recomendações do comitê de avaliação
e do Chanceler da UCLA para que ela fosse nomeada. Durante o verão de 1970, ela foi
acusada de sequestro, assassinato e fuga ilegal para evitar ser processada e colocada na
lista dos mais procurados do FBI. Quando apreendida ela foi mantida sob fiança
excessiva, tendo a fiança negada e, posteriormente, mantida em isolamento de outros
prisioneiros.
No primeiro texto, a Professora Davis assinala que manter uma classe oprimida na
ignorância é um dos principais instrumentos de controle do opressor. Como Frederick
Douglas, o escravo cuja vida e obra ela examina aqui, a Professora Davis também é uma
oprimida educada. Como ele, ela alcançou plena consciência do que é, e tem aumentado
essa consciência em seu próprio povo e nos outros. Não pode haver dúvida de que sua
eficácia na critica à ignorância forçada, na qual ela e seu povo tem sido mantidos, é o
principal motivo para seu banimento e o tratamento que ela recebe desde então.
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Seria talvez inevitável que a Professora Davis se tornasse um símbolo para grupos e
causas conflitantes. Mas é bom lembrar que por trás do símbolo encontra-se o ser
humano cujos pensamentos são registrados aqui, e que quando ela vai a julgamento não
apenas uma causa humana, mas também uma vida humana será julgada. Nesse meio
tempo, temos orgulho em apresentar estas duas palestras de uma ilustre colega e
amiga. Suas palavras, em todos os lugares, podem contribuir para a derrota da opressão.
New York, 1971. Comitê para libertação da Angela Davis e todos os prisioneiros políticos
A ideia de liberdade tem sido justificadamente um tema dominante na história das ideias
ocidentais. O homem tem repetidamente definido a sua liberdade como algo inalienável.
Um dos paradoxos mais agudos presentes na história da sociedade ocidental é que,
enquanto no plano filosófico, a liberdade foi delineada da forma mais elevada e sublime,
na realidade concreta, para alguns ela é marcada pela forma mais brutal que é a
escravidão. Na Grécia Antiga, onde a democracia teve a sua origem, não se pode
esquecer que, apesar de todas as afirmações filosóficas da liberdade do homem, apesar
da demanda de que o homem só podia realizar-se através do exercício da sua liberdade
como um cidadão da polis: a maioria das pessoas em Atenas não era livre. As mulheres
não eram cidadãs e a escravidão era uma instituição aceita. Mas lá, houve
definitivamente uma forma de racismo presente, e apenas para os homens gregos
foram concedidos os benefícios da liberdade: todos os não-gregos foram chamados
bárbaros e por sua natureza não poderiam ser merecedores ou mesmo capazes de
exercerem a liberdade.
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Neste contexto, não se pode deixar de evocar a imagem de Thomas Jefferson e outros
fundadores, chamados a formular os conceitos nobres da Constituição dos Estados
Unidos, enquanto seus escravos viviam na miséria. A fim de não estragar a beleza da
Constituição e ao mesmo tempo proteger a instituição escravidão eles escreveram sobre
pessoas mantidas sob serviço ou trabalho, um eufemismo para a palavra escravidão.
Essas pessoas eram tipos excepcionais de seres humanos, que não mereciam as
garantias e os direitos da Constituição.
O homem é livre ou não é livre? Deveria ele ser livre ou não deveria ser livre? A história
da Literatura Negra prevê, em minha opinião, uma explicação muito mais esclarecedora
da natureza da liberdade, sua extensão e os limites dos discursos filosóficos sobre este
tema na história da sociedade ocidental. Por quê? Por razões numéricas. Em primeiro
lugar, porque a Literatura Negra neste país e em todo o mundo projeta a consciência de
um povo que tem seu acesso à liberdade negado. Os negros têm exposto pela sua
própria existência as insuficiências da liberdade, não só em sua prática, como também
na sua formulação teórica. Porque se a teoria da liberdade fomenta a separação entre o
conceito e a prática, ou seja, o que se pensa, não se vivencia então isso significa que algo
deve estar errado com o conceito.
O tema central deste curso será a ideia de liberdade: como ela é retratada na produção
literária do povo negro. Começando com a vida e os tempos de Frederick Douglass,
vamos explorar a experiência do escravo, do seu cativeiro e, assim, a experiência
negativa de liberdade. O mais importante aqui será a transformação fundamental do
conceito de liberdade como princípio estático da luta para libertação. Vamos passar por
W. E. B. Dubois, de Jean Toomer, Richard Wright e John A. Williams. Intercalando com as
poesias dos vários períodos da História Negra neste país e as análises teóricas de Fanon
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Durante o curso, a noção de liberdade será o eixo em torno do qual vamos tentar
desenvolver outros conceitos filosóficos. O tipo de filosofia da história que emerge das
obras que estamos estudando será crucial. A moralidade peculiar a um povo oprimido é
algo que terá que ser debatido. À medida que progredimos ao longo do caminho do
desenvolvimento da liberdade na literatura negra, devemos recuperar toda uma série de
temas relacionados.
Isso nos leva diretamente para o problema de saber se a liberdade é possível dentro dos
limites do cativeiro material. Pode o escravo ser considerado livre de alguma maneira?
Isto traz à mente uma das demonstrações mais notórias que o existencialista francês
Jean-Paul Sartre fez. Mesmo o homem na cadeia, para eliminar a sua condição de
escravidão, luta, mesmo que isso signifique a sua morte. Isto é, a sua liberdade está
estreitamente definida como a liberdade de escolher entre o seu estado de cativeiro e
sua morte. Agora, este é ponto. Certamente, isso não seria compatível com a noção de
liberdade, quando o escravo tem que optar por sua morte, ele faz muito mais do que
destruir sua condição de escravidão, por que ao mesmo tempo em que ele cria sua
própria liberdade, ele acaba com sua vida. No entanto, há mais a ser dito, quando o
escravo toma a decisão de morrer para ter sua liberdade e assim, na luta pela liberdade,
encontra sua morte, ele nos ensina que, para alguns, vida e liberdade parece ter o
mesmo sentido.
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Frederick Douglass
O ponto de partida para esta viagem é a seguinte pergunta que Frederick Douglass faz a
si mesmo como uma criança: “Por que eu sou um escravo? Por que algumas pessoas são
escravos e outros mestres?” (página 50). Sua atitude crítica quando ele não consegue
aceitar a resposta habitual – que Deus tinha pessoas negras para serem escravos e
pessoas brancas para serem mestres – é a condição básica que deve estar presente
antes da liberdade poder se tornar uma possibilidade na mente do escravo. Não
devemos esquecer que em toda a história da sociedade ocidental há uma abundância
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Vamos tentar chegar a uma definição filosófica do escravo, já dissemos a essência: ele é
um ser humano que, por alguma razão ou outra tem a liberdade negada. Mas não é a
essência do ser humano a sua liberdade? Ou o escravo não é um homem ou em sua
própria existência é uma contradição. Nós podemos descartar a primeira alternativa,
embora não devemos esquecer que a ideologia dominante definiu o negro como sub-
humano. A incapacidade de lidar com a natureza contraditória da escravidão, a
ignorância da realidade imposta é exemplificada na noção de que o escravo não é um
homem, pois se ele fosse um homem, ele certamente deveria ser livre.
Todos nós sabemos das tentativas calculadas para roubar o homem negro de sua
humanidade. Sabemos que, a fim de manter a instituição da escravidão, os negros foram
forçados a viver em condições que nem animais viveriam. Os brancos proprietários de
escravos foram determinados para moldar as pessoas negras na imagem do ser sub-
humano que eles tinham inventado para justificar suas ações. Um círculo vicioso onde
escravo-propriedade perde toda a consciência de si mesmo.
O círculo vicioso continua a girar, mas para o escravo, há uma saída: a resistência.
Frederick Douglass parece ter tido a sua primeira experiência desta possibilidade de um
escravo tornar-se livre ao observar um escravo resistir a uma flagelação: “Esse escravo
que teve a coragem de se levantar por si mesmo em primeiro lugar, tornou-se livre,
apesar de juridicamente ser escravo, ‘você pode atirar em mim’, disse um escravo para
Rigby Hopkins, ‘mas você não pode me chicotear’, e o resultado foi que ele não foi nem
chicoteado nem alvejado”.
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Os negros eram tratados como coisas, eles foram definidos como objetos. “O escravo era
um dispositivo elétrico”, observa Frederick Douglass. Sua vida devia ser vivida dentro dos
limites dessa objetificação, dentro dos limites da definição do homem branco do que é
ser um homem negro. Forçado a viver como se fosse um dispositivo elétrico, a
percepção do escravo do mundo está invertida. Porque a sua vida é relegada à de um
objeto, ele deve esquecer a sua própria humanidade dentro desses limites. “Ele não tinha
escolha, nenhuma meta, e foi ficando para baixo a um único local, e deveria lançar raízes
lá ou então em lugar nenhum. “O escravo não tem qualquer determinação sobre as
circunstâncias externas de sua vida. Um dia uma mulher poderia estar vivendo em uma
plantação entre seus filhos, família e amigos; no dia seguinte, ela poderia ser levada a
milhas de distância, sem esperança de alguma vez encontrá-los novamente. A ideia da
viagem perde a sua conotação de exploração, ela perde o entusiasmo de aprender o
desconhecido. A viagem torna-se uma jornada para o inferno, não longe da coisificação
da existência do escravo, mas uma acentuação ainda mais intensificada da sua não
existência humana.
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Assim como o escravo tem usado a violência contra a violência do agressor, Frederick
Douglass usa o conhecimento de seu proprietário, para ir contra ele: ele nos diz que o
conhecimento impede o homem de ser escravo. Resistência, rejeição, em todos os
níveis, em todas as frentes, são elementos integrantes da viagem em direção a
liberdade. Alienação vai dando espaço para a consciência através do processo de
conhecimento.
Sua alienação torna-se real, vem à tona e Frederick Douglass vai experimentar
existencialmente tudo que torna impraticável a liberdade, por estar vinculada a um
estado de não-liberdade materialmente falando, ao mesmo tempo encontrar quais
elementos mentais para a libertação. A tensão entre o subjetivo e o objetivo, é o que cria
o impulso em direção à liberação total. Mas antes que esse objetivo seja alcançado toda
uma série de fases deve ser percorrida.
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horrível e desolada era minha condição. A liberdade estava em tudo: eu a ouvia sem
nada ter ouvido. Não estou exagerando quando digo que ela olhou para mim em cada
estrela, sorriu em cada calmaria, respirou em cada vento e me banhou em cada
tempestade”.
Douglass não era a única pessoa a inferir isso no cristianismo. Nat Turner retirou uma
parte importante de sua inspiração e da sua fé no cristianismo. John Brown foi outro
exemplo.
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Marcuse nos diz muitas vezes que a religião é o desejo e o sonho de uma humanidade
oprimida. Por um lado, esta afirmação significa, naturalmente, que os desejos se tornam
sonhos projetados para uma esfera sobre a qual os seres humanos não têm controle: um
reino imaginário. Mas, por outro lado, temos de nos perguntar: há alguma coisa implícita
na declaração de Marcuse sobre a noção de sonhos e desejo de uma humanidade
oprimida? Pense por um momento: necessidades e desejos são transformados em
sonhos através do processo das religiões, porque parece não termos mais esperança
neste mundo (e é justamente esta a perspectiva de um povo oprimido, a falta de
esperança). Mas o que é importante, é que esses sonhos sempre retornam ao seu status
original – a realidade material da terra. Há sempre a possibilidade de redirecionar esses
sonhos e desejos para o aqui e agora.
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Frederick Douglass foi redirecionado a esses sonhos; Nat Turner colocou os sonhos
dentro do âmbito do mundo real. Assim, não pode haver uma função positiva da religião,
porque sua própria natureza é satisfazer as necessidades urgentes das pessoas que são
oprimidas. (Estamos falando apenas da relação do povo oprimido com a religião, não a
tentativa de analisar a noção de religião em si e para si). Não pode haver uma função
positiva da religião. Tudo o que precisa ser feito é dizer: vamos começar a criar essa
eternidade de bem-aventurança para a sociedade humana neste mundo. Vamos
converter a eternidade na história.
Por que os negros não mudam a história? Por que houve um esforço calculado por parte
do branco, delimitando o espaço do negro, reforçando a noção e a mentalidade de
escravo com um tipo especial de religião que serve aos interesses dos senhores brancos,
servindo para perpetuar a existência da escravidão. O cristianismo foi utilizado para fins
de lavagem cerebral, doutrinação e pacificação dos negros escravizados.
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A reação de Frederick Douglass à revolta de Nat Turner é reveladora, como nos conta
Douglass: “A insurreição de Nat Turner havia sido debelada, mas o alarme e terror que
originaram não haviam diminuído. A cólera foi, então, em direção a seu país e eu me
lembro de pensar que Deus estava com raiva dos brancos por causa de sua maldade
contra os escravos. É claro que era impossível para mim não me envolver com o
movimento da abolição, principalmente depois que o movimento foi apoiado pelo Todo-
Poderoso”.
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