Você está na página 1de 5

São inúmeras as lições

que a escola pode tirar


dos efeitos da
pandemia
Muito se articularam rapidamente para responder ao desafio de
oferecer continuidade na formação dos seus estudantes. Mas, de forma
virtual, repetimos as mazelas da prática educativa presencial

como num passe de mágica, a crise do coronavírus nos tirou do prumo e balançou, de forma
avassaladora, as fundações de um projeto civilizatório aparentemente sólido e vencedor.
Conceitos, pressupostos e formas de vida que nos pareciam secularmente consolidados ruíram
como um castelo de areia. Algo assim como se o “tudo que é sólido se desmancha no ar”, de
Marshall Berman, tivesse se concretizado.

Três dos pilares básicos do capitalismo moderno foram atingidos por esse tsunami: a
sacralização do dinheiro, traduzido em consumo desenfreado e na busca de status e poder; a
corrida frenética contra o tempo (time is money!) e a relação predatória com o espaço/natureza.
Nada de ócio criativo (Domenico de Masi), ou relações cordiais e respeitosas com os outros e o
entorno. Durante muito tempo fomos levados a crer que o nosso modo de vida deveria de ser
obrigatoriamente esse e ponto final.

Continua depois da publicidade

Essa mentalidade formatou e contaminou as nossas relações, familiares, sociais, com o meio
ambiente e com outras instâncias do nosso viver, como o ócio, a cultura e o entretenimento.
Evidentemente, a educação e todo seu entorno não escapuliram dessa visão dominante e
redutora, o que nos levou a graves problemas pelos quais agora nos sentimos presos.

Frases como “quando tudo voltar à normalidade”, faremos isso ou aquilo, ou “nada será como
era antes”, pois a experiência está sendo muito marcante, são escutadas diariamente. Ao final,
tudo vai ou nada vai mudar? Voltará tudo a ser como era antes ou algumas coisas
permanecerão? As mudanças afetarão por igual a economia, o trabalho, a saúde e a educação?
Conseguiremos lançar “um novo olhar” sobre os antigos problemas?

A grande chave de leitura é essa: estamos experimentando que é possível outra forma de viver;
que podemos nos relacionar com o tempo de forma mais sadia; que é possível subsistir de
maneira mais frugal e sustentável; que os nossos relacionamentos devem passar pela
colaboração e enriquecimento mútuos; que podemos conviver com a natureza de forma
respeitosa e harmônica. Enfim, que outra existência é possível.

Começar já: após algumas semanas de desorientação, compreensível pelo abrupto do novo
cenário, muitas escolas se articularam rapidamente para responder ao desafio de oferecer
continuidade na formação dos seus estudantes. O problema é que, inconscientemente e de forma
virtual, repetimos as mazelas da prática educativa presencial: muito conteúdo e normativa,
conduzindo o processo educativo de forma tutelada. A virtualidade da tecnologia não eleva o
nível de uma instituição escolar, ao contrário, a consolidada no seu posicionamento real. Escola
deficiente presencialmente, possivelmente o será mais ainda na modalidade virtual. Mas escola
considerada competente presencialmente não tem garantia de sê-lo também no formato virtual.

Redes colaborativas: nesse contexto, estamos perdendo uma ocasião única de promover práticas
colaborativas entre professores e estudantes e estudantes entre si, compartilhando conteúdos e
produção pessoal, criando redes de aprendizado e troca, e já estabelecendo, assim, alguns
padrões para o futuro da educação. Deveria ser preocupação das escolas criar uma rede de
formação e suporte para os professores nesse momento totalmente novo para a maioria deles.

A mudança como padrão: a mudança parece que será a única constante no futuro. Ela irá exigir
dos profissionais da educação flexibilidade mental, desenvolvimento de habilidades
socioemocionais e atitude contínua de aprendizado (aprender a aprender). Somado a isso, o
autoconhecimento e a clareza dos novos cenários, para poder organizar o aparente caos externo,
a partir de um ordenamento interior, e assim poder atuar de acordo.

Refundar a alma da escola: para repensar valores e alterar a sua escala, a escola deve aproveitar
o momento histórico da quarentena para estabelecer novos parâmetros que nos ajudem a definir
o que é sucesso e o que é fracasso (pessoal, escolar, social).

Isso exigirá passar de valores como a procura do sucesso individual, acima de tudo e por cima
de todos, ao respeito mútuo e ao estabelecimento de relações justas e de serviço.

Valorização do cotidiano: a riqueza do dia a dia escolar é incontestável, pois é nele que criamos
um clima adequado para a relação e o crescimento, propiciando o suporte para novos
desenvolvimentos pessoais e coletivos. Levando em conta que as pautas escolares, agora mais
do que nunca, deverão ir do real para o teórico, e não dos bancos escolares para a realidade,
devemos promover um olhar crítico e fundamentado sobre a realidade, a relação interpessoal e a
autonomia colaborativa

Apropriar-se da tecnologia, com tudo o que ela traz de bom, de facilitador, criando
compartilhamento, democratização e personalização do saber. Aliada fundamental no aprender
a reaprender, merece capítulo à parte.

Estimular outros modelos possíveis de futuro: combater a distopia, a desilusão, os cenários


catastróficos, alimentando uma sadia utopia, que colabore com a nossa saúde mental, abra
perspectivas de um futuro promissor e alimente um otimismo realista sobre o ser humano.
Humanização é a palavra-chave.

Sabemos que a pandemia poderá ser intermitente durante alguns meses. Preparemo-nos para
tempos novos que, apesar do sofrimento e da incerteza, poderão ser mais humanos, mais
fraternos e mais benévolos para todos nós.

Mãos à obra!

Glória e fracasso: a
educação escolar está
sendo chamada a se
reinventar
A escola está obrigada, neste momento histórico, a educar para opções alternativas de vida e
somar na construção de novos valores

A quarentena está sendo, sem dúvida, um momento propício para intentar


refundar valores e elaborar novos parâmetros, que ajudem a definir o que são
“sucesso e fracasso” na vida. Algo assim como descolonizar o nosso
intoxicado imaginário e construir caminhos, estimulando a capacidade de
enxergar modelos alternativos de futuros possíveis, para cada um de nós e
para toda a humanidade. Nesse sentido, o isolamento pode ser criativo e nos
incentivar à procura de novas fontes de esperança e inspiração, centrando a
atenção no diálogo interior. A solidão é a glória de estar só, pois “todo
pensamento, falando estritamente, é elaborado em solidão e é um diálogo
entre eu e eu mesmo” (Hanna Arendt).
Nesse sentido, a crise originada a partir da pandemia, tem devolvido para o centro da
nossa vida, e espera-se que também para dentro das escolas, temas fundamentais  que
nos preocupam e que eram ou tabus ou inconscientemente escamoteados e, portanto,
banidos da abordagem nas rodas sociais, nas reflexões pessoais ou dentro do ambiente
escolar.
 
Estou me referindo a temas tão essenciais como a procura pelo sucesso, o
reconhecimento social, a realização pessoal e a felicidade. Contrapostos, geralmente, a
outros como fracasso, solidão, não reconhecimento social e infelicidade. O cume dos
poucos privilegiados apontando para a glória e o reconhecimento eterno; o destino da
maioria, determinado para o fracasso e a morte inconsequente. Como se o destino final
não fosse comum: “O horror da morte é a emoção, o sentimento ou a consciência da
perda de sua individualidade” (Edgar Morin).
 
Continua depois da publicidade

No interior mais profundo do Brasil, nesse brasil que o Brasil desconhece, o povo
simples distingue entre “morte morrida” e “morte matada”. Faz-se assim, no imaginário
popular, um corte necessário para a compreensão e explicação do que seja a morte
“natural”, a que vem de Deus e do processo de finitude da vida, e aquela na qual o ser
humano se arvora em deus, para poder dispor da vida e da morte dos outros ao seu bem
entender. Bela e trágica, ao mesmo tempo, a narra assim o poeta pernambucano João
Cabral de Melo Neto (1920-1999): “E se somos Severinos iguais em tudo e na vida,
morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de
velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia, de
fraqueza e de doença/ é que a morte severina ataca a gente em qualquer idade e até a
gente não nascida” (em Morte e Vida Severina).
 
Empurrada pela agenda do modelo neoliberal, a procura desenfreada por “felicidade”,
“dignidade” e “amortalidade”, a escola também fixou seu fazer educacional nesse
modelo maluco e estressante, perdendo de vista os fundamentos do ser humano e seu
desenvolvimento individual e social. Obrigada a focar  o “sucesso” dos estudantes e sua
realização pessoal e profissional, a escola cavalgou no lombo de alguns conceitos que se
tornaram mágicos: “ser vencedor”, “para sempre”, “ter a vida resolvida”, “ser alguém” e
assim trabalhou no imaginário de crianças e adolescentes ideais e atitudes que ajudaram
a consolidar esses valores como os únicos autênticos.
 
Preparamos os nossos estudantes para a glória e a realização pessoal, passando, se
necessário for, em cima de tudo e de todos. A glória é se “formar bem”, conseguir um
bom emprego e ganhar dinheiro para poder encarar o resto da vida tranquilo, com a
certeza de que isso lhe consolidará como um vencedor e durará “para sempre”. Assim,
brincamos de imortalidade.
 
Continua depois da publicidade

A COVID 19 nos desvendou uma realidade cruel e insofismável, mostrando que tudo
pode se desmanchar no ar, que tudo é efêmero, que a finitude é uma realidade presente
nas nossas vidas e que a morte, como horizonte real, nos invade de forma avassaladora.
Em poucos meses, os fundamentos do modelo de sociedade dominante ruíram como um
castelo de cartas e, de repente, nos sentimos conscientes e ameaçados. Será que,
finalmente, assumiremos que todos somos humanos, todos mortais, todos finitos, todos
com a grandeza da glória e do fracasso incorporados na nossa vida? Reconhecer isso
será o nosso grande ganho, como pessoas e como humanidade.
 
A escola, pilhada nesse sucateamento pessoal e comunitário, não pode e não deve
reproduzir, pura e simplesmente, a dinâmica social dominante. Muito pelo contrário, ela
está obrigada, neste momento histórico, a educar para opções alternativas de vida e
somar na construção de novos valores, que ajudem nossos estudantes a entender que
suas vidas devem estar a serviço da vida, de forma colaborativa e complementar. A
escola deverá aprender a conjugar os verbos incluir, cuidar, educar e humanizar. Glória
ou fracasso de todos!
 
A pandemia, que teve força suficiente para colapsar hospitais, fechar fábricas e
comércios e trancar as portas de escolas e universidades, não conseguiu acabar com a
educação. Muito pelo contrário, a potencializou: multiplicaram-se o número de salas de
aula, de professores, de metodologias e de trocas, abrindo novos e impensados
caminhos. Isso nos mostra que a educação é maior, muito maior, do que as escolas e os
sistemas escolares. Surgirá um “novo modelo educativo”? Tomara que sim, pois,
parafraseando Walter Benjamim, “que após uma crise, as coisas continuem como antes,
eis a catástrofe”.

Francisco Morales Cano foi diretor geral do Colégio Santo Agostinho BH durante 20
anos. Atualmente é sócio diretor da DOXA Educacional

Você também pode gostar