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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE ARTES - CAR


DEPARTAMENTO DE TEORIA DA ARTE E MÚSICA

Jean Carvalho de Oliveira

VIOLA CAIPIRA:

UM ESTUDO SOBRE OS ASPECTOS COMPOSICIONAIS NA OBRA

DO VIOLEIRO “ÍNDIO CACHOEIRA”

Vitória
2018
Jean Carvalho de Oliveira

VIOLA CAIPIRA:

UM ESTUDO SOBRE OS ASPECTOS COMPOSICIONAIS NA OBRA

DO VIOLEIRO “ÍNDIO CACHOEIRA”

Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado como requisito parcial para
conclusão do curso de Bacharelado em
Música.

Orientador: Victor Neves de Souza

Vitória
2018
RESUMO

OLIVEIRA, Jean Carvalho. VIOLA CAIPIRA: UM ESTUDO SOBRE OS ASPECTOS

COMPOSICIONAIS NA OBRA DO VIOLEIRO “ÍNDIO CACHOEIRA”. Trabalho de Conclusão de

Curso. Vitória: CAR-UFES, 2018.

O principal foco dessa pesquisa é o estudo formal de duas músicas do violeiro Índio Cachoeira com o

intuito de retratar algumas características e elementos utilizados na música tocada pela viola caipira.

Esse estudo, inicia-se com a comparação de alguns elementos do universo musical caipira fazendo

um paralelo entre deferentes períodos e suas particularidades, bem como um breve histórico da

utilização e surgimento de ritmos e a forma com que foram e são utilizadas as técnicas empregadas

nas duas composições fruto de nossa análise. A análise musical das duas obras é realizada de

maneira a evidenciar as principais características melódicas, harmônicas e rítmicas das composições

propostas nesse estudo. Com base no resultado obtido pretende-se demonstrar a relação existente

entre as técnicas utilizadas no processo composicional do violeiro Índio Cachoeira e as diferentes

fases da música caipira demonstrada nessa pesquisa.

Palavras Chave: Índio Cachoeira; viola caipira; análise musical; composição; pagode de viola.
ABSTRACT

OLIVEIRA, Jean Carvalho. VIOLA CAIPIRA: A STUDY ON COMPOSITIONAL ASPECTS IN THE

WORK OF THE VIOLEIRO "ÍNDIO CACHOEIRA". Final Paper.. Vitória: CAR-UFES, 2018.

The main focus of this research is the formal study of two songs by the “violeiro” Indio Cachoeira, with

the intention of portraying some characteristics and elements used in the music played by the “viola

caipira”. This study begins with the comparison of some elements of the universe of “música caipira”

(Brazilian country music), by making a parallel between different periods and their peculiarities, as well

as a brief history of the use and appearance of rhythms. It is followed by a presentation of how those

rhythms and musical universe determine the techniques used in two compositions analyzed. The

musical analysis of the two works is carried out in order to show the main melodic, harmonic and

rhythmic characteristics of the compositions proposed in this study. Based on the obtained results, it is

intended to demonstrate the relationship between the techniques used in the compositional process of

Indio Cachoeira and the different phases of the “música caipira” demonstrated in this research.

Keywords: Índio Cachoeira; viola caipira; musical analysis; composition; pagode de viola.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 5

2. BREVE HISTÓRIA DA VIOLA CAIPIRA ............................................................... 8


2.1 Origem da Viola ......................................................................................... 8
2.2 Viola no Brasil ............................................................................................ 9

3. O VIOLEIRO ÍNDIO CACHOEIRA ....................................................................... 15

4. TÉCNICAS UTILIZADAS NAS COMPOSIÇÕES ................................................ 18


4.1 Ornamentos e Recursos Técnicos .......................................................... 18
4.2 Elementos de composição ....................................................................... 20

5. TÉCNICAS UTILIZADAS NAS ANALISES DAS COMPOSIÇÕES .................... 22

6. ANÁLISE COMPOSICIONAL .............................................................................. 23


6.1 Viola Marruda .......................................................................................... 23
6.2 Prelúdio dos Pássaros ............................................................................. 30

7. CONCLUSÕES ................................................................................................... 41

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 43

APÊNDICE .............................................................................................................. 45

A) Tabelas de Análise .................................................................................... 45


B) Entrevistas ................................................................................................. 53
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1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa busca um estudo sobre os aspectos composicionais na

música do violeiro “Índio Cachoeira”. Para isso utilizaremos como base: entrevistas,

documentários, matérias publicadas, pesquisas relacionadas, análise de trechos

musicais e revisão bibliográfica.

Para compor nossa análise, iniciamos esse projeto com um breve histórico

sobre a viola caipira, abordando tanto a sua origem em Portugal, com destaque para

o ano de 1459 onde alguns pesquisadores apontam como sendo o primeiro registro

escrito encontrado relacionado à utilização da viola. Conforme o material

pesquisado, a viola até o século XIX era um dos instrumentos mais populares do

Brasil, muito utilizada para fins festivos e religiosos, um exemplo disso são as festas

do Divino Espírito Santo e as Folias de Reis apresentadas até hoje em algumas

localidades. Com a chegada do violão nos grandes centros urbanos, a nossa viola

acabou se isolando no interior do Brasil adquirindo as características e elementos

musicais diferenciados, os quais conhecemos hoje, que a fizeram ser denominada

como “viola caipira”.

Esse isolamento no interior do Brasil parece ter contribuído para que a música

caipira brasileira, e com ela a viola, não fosse tão fortemente influenciada, durante

largo lapso temporal, pelas transformações na música europeia. Ele parece ter

possibilitado o surgimento de vertentes musicais com elementos e características

particulares, dentre as quais os gêneros relacionados à viola caipira, nos quais até

hoje podemos notar peculiaridades estilísticas, tímbricas, rítmicas e texturais.

Podemos verificar em ritmos como cururu, catira ou cateretê, evidências das culturas

indígenas e as influências da miscigenação com a cultura portuguesa na formação

de outros ritmos como moda de viola e pagode de viola, todos considerados como
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ritmos genuínos brasileiros, ou por formação, ou por origem rudimentar

(MALAQUIAS, 2013, p.15).

Uma das referências publicadas para pesquisa acadêmica que possuímos é o

livro “A arte de Pontear a Viola”. Nele Roberto Correa acrescenta que:

A viola no Brasil, além de manter inalteradas as principais características do


instrumento português, preservou seu forte caráter popular. Ainda hoje é
instrumento muito difundido – encontrado em todas as regiões brasileiras – e
presente em várias de nossas manifestações tradicionais. (CORRÊA, 2002, p.24).

Neste trabalho realizaremos um estudo de caso, lastreado em breve

aproximação mais geral da história e de certas características do instrumento. Nosso

objeto são duas obras do violeiro José Pereira de Souza, conhecido como “Índio

Cachoeira”. Faremos um levantamento dos aspectos culturais e técnicas utilizadas,

que são peculiares ao instrumento. Nesse estudo, utilizaremos ferramentas de

análise para um melhor entendimento dos aspectos composicionais das obras

analisadas.

De acordo com o que pudemos apurar, por meio da entrevista presencial aos

violeiros Ricardo Vignini, Zé Helder, e o próprio Índio Cachoeira (incluída em anexo

a esse trabalho), assim como das referências bibliográficas que compõe essa

pesquisa, a cultura e a transmissão do conhecimento que norteiam a viola caipira,

na maioria das vezes, costumavam chegar a ele por meio de algum parente ou

amigo, possuindo pouco conhecimento de registros escritos em partitura e métodos

de ensino formais para o instrumento. Essa situação difere bastante daquela vigente

nos últimos anos, em que, com a maior facilidade na comunicação entre grandes

distâncias, e a pletora de informações disponíveis em tempo real via diversos meios

de comunicação, com destaque para a internet, novos registros, métodos de ensino,

e composições para a viola caipira, têm se difundido bastante no país.


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Na tradição anterior, à qual pertenceu Índio Cachoeira, o processo reiterado

de filtragem dos ensinamentos por elementos culturais operantes na própria cultura

local ou regional em que os artistas estavam imersos, acabou criando um grande

pluralismo na cultura da viola caipira, conforme podemos evidenciar no ensaio “A

Viola” de Ivan Vilela:

Curioso lembrarmos que a não existência de uma metodologia sistematizada para


o ensino da viola fez com que cada violeiro desenvolvesse uma maneira muito
própria de tocar. Assim, a diversidade de toques que soa hoje pelo país é imensa.
(VILELA PINTO, 2008, p.16).
Hoje, entretanto, tem se notado a falta de mais registros acadêmicos, tais

como: partituras, análise composicional, transmissão de métodos de ensino e

conhecimento formal. Não é que eles tenham feito falta aos violeiros do passado,

que criaram verdadeiras obras primas. O problema, hoje, é que esse tipo de material

pode favorecer a troca, a reflexão conjunta e mais abrangente. Pode, inclusive,

retornar aos violeiros de todo o país sob a forma de estímulo ao conhecimento de

possibilidades diferentes daquelas que se apresentam na vivência imediata,

podendo, ainda, ser de grande valia no tocante à produção de conhecimento que

atenda aos padrões de exigência teórico-científica vigentes na academia. Assim,

esperamos que muitos possam se beneficiar dos resultados deste tipo de pesquisa,

tanto no presente quanto no futuro. Com este trabalho, pretendemos dar apenas

uma pequena contribuição a esse grande universo de pesquisas que agora começa

a se consolidar, difundindo algumas obras e técnicas do compositor Índio Cachoeira.

Já existem pesquisas relacionadas à viola caipira no Brasil que, apesar de

ainda pouco numerosas face à riqueza do objeto, englobam dissertações, artigos e

teses. Dentre elas, escolhemos algumas que serão abordadas nesse projeto.

Antes de entrarmos na análise propriamente dita das músicas, que é o

principal foco dessa pesquisa, iremos fazer uma breve abordagem do instrumento
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viola caipira e parte do caminho percorrido dentro de nossa história, para que

possamos compreender melhor os elementos incluídos em nossa análise.

2. BREVE HISTÓRIA DA VIOLA CAIPIRA

Ivan Vilela, em sua tese “Contando a Própria História”, defendida em 2011,

apresentou algumas designações para a nossa viola.

Viola caipira, viola sertaneja, viola de dez cordas, viola cabocla, viola de arame,
viola de folia, viola nordestina, viola de repente, viola de festa, viola de feira, viola
brasileira são alguns dos nomes que encontramos para designar este instrumento
que, aos poucos, tornou-se um dos porta-vozes do Brasil Interior. (VILELA PINTO,
2011, p.113).

Esse autor dividiu a música caipira e sertaneja em quatro fases: a primeira, a

partir de 1929, inicia-se com os primeiros registros fonográficos de duplas caipiras. A

segunda, com início em 1959, tem como marco a criação do ritmo pagode de viola

pelo músico Tião Carreiro, destacando a viola caipira no cenário musical como

instrumento solista. A terceira fase surge em 1969, com a dupla Léo Canhoto e

Robertinho. Finalmente, temos a fase atual, a quarta, a partir da década de 1980,

onde a forma de se tocar a viola, assume um caráter mais contemplativo e

abrangente, onde o universo musical executado pela viola é mais explorado com

inserção de elementos de outras culturas e países.

Em nossa análise, abordaremos mais detidamente alguns elementos da

segunda fase, pois é a ela que está ligada mais diretamente a música Viola Marruda,

e outros da fase atual, à qual se vincula mais diretamente a música Prelúdio dos

Pássaros. Faremos, ainda, um paralelo entre os elementos composicionais dessas

duas fases.

2.1 Origem da Viola


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A viola caipira brasileira descende das violas de mão portuguesas. Conforme

se pode ver na pesquisa que vem sendo citada, o período de ouro dessas coincide

com os grandes descobrimentos ocorridos nos séculos XV e XVI.

Em Portugal, já no século XV, e sobretudo a partir do século XVI, o instrumento,


sob a designação corrente de viola, encontra-se largamente difundido pelo povo,
pelo menos nas zonas ocidentais. Sem falar nas violas trovadorescas, referimo-
nos já à representação apresentada pelos procuradores de Ponte de Lima às
cortes de Lisboa de 1459 ao rei D. Afonso V, em que se alude aos males que por
causa das violas se sentem por ‘todo o reino’; e são inúmeras as menções que a
ela faz Gil Vicente como instrumento de escudeiros. Philipe de Caverel, no relato
da sua embaixada a Lisboa em 1582, menciona as dez mil guiterres – que parece
sem dúvidas serem violas – que constava terem acompanhado os portugueses na
jornada de Alcácer-Quibir, e que teriam sido encontradas nos despojos dos
campos de D. Sebastião: o número é certamente exagerado, mas mostra
claramente que, como diz o cronista, ‘les portugais sont très grands amateurs de
leurs guitarres - ou sejam, violas. (OLIVEIRA, apud VILELA PINTO, 2011, p.117).

Também podemos ver na citação de Eric Martins, em sua dissertação

defendida em 2005, na Universidade de São Paulo, relatos sobre a origem da viola:

Em linha geral, havia dois instrumentos da mesma família na península ibérica


entre os séculos XIV e XVI: a guitarra e a vihuela. A primeira possuía quatro
ordens de cordas e era mais utilizada para o acompanhamento de danças e
romances com toque de rasgado. Já a vihuela tinha seis ordens e era mais
utilizada para o toque ponteado, sendo instrumento mais palaciano e da música
erudita. Ambos os instrumentos herdaram a forma da guitarra latina das Cantigas.
[...] Nos fins do século XVIII, esta ‘guitarra’ é, por toda a Europa, substituída pelo
instrumento a que aí hoje se dá esse nome – que é o nosso violão –, com seis
cordas de tripa simples [...]; a velha viola extingue-se por quase toda a Europa, e
nosso instrumento é uma das suas raras sobrevivências. (OLIVEIRA, apud
MARTINS, 2005, pp.15-17).

2.2 Viola no Brasil

Vilela (2008) mostra que a viola chegou ao Brasil ainda na época do

descobrimento, e logo foi incluída na catequese dos índios, como forma de

transmissão de cultura, costumes e religião. Muito utilizada em festas religiosas


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pelos colonizadores portugueses, a viola, ao longo dos anos, tendo se desenvolvido

no entroncamento entre a cultura indígena e outras culturas que também aportaram

em nosso continente, se transformou no instrumento que temos hoje no Brasil.

Pouco sabemos da prática da viola no Brasil no século XVI. O musicólogo José


Ramos Tinhorão afirma que a mais antiga referência expressa a versos cantados
pelo personagem de uma comédia encenada em 1580 ou 1581 na matriz de
Olinda, por ocasião da festa do Santíssimo Sacramento, aparece nas
Denunciações de Pernambuco, de 1593, confirmando desde logo a ligação da
viola com a canção citadina” (Tinhorão, 1990). No Sudeste, ela está presente em
inventários a partir do início do século XVII. Em 1613, violas foram catalogadas em
espólios deixados na cidade de São Paulo.
O padre José de Anchieta, o mais importante nome no processo de catequese dos
indígenas no início da colonização do Brasil pelos portugueses, sustentou todo o
seu projeto através do uso da música e das práticas teatrais. Ele percebeu que os
indígenas, com os quais travou contato, utilizavam a música como veículo de
intermediação com o mundo sagrado. O general Couto de Magalhães, sertanista
brasileiro do século XIX afirmou em seu clássico “O Selvagem” que o padre
Anchieta se utilizou do Cururu e do Cateretê, duas danças de origem Tupi, para
catequizá-los. Para isso inseria textos litúrgicos nas melodias e danças desses
índios. Anchieta tratou de aprender o tupi-guarani e o trouxe para um molde de
estruturação gramatical latino inserindo termos em espanhol e português aos
vocábulos faltantes na língua. Esta língua recebeu o nome de nheeng’atu. É
razoável imaginarmos que a viola, instrumento harmônico, possa ter sido utilizada
nos acompanhamentos dessas danças uma vez que até hoje a utilizamos para
acompanhar o cururu ou o sapateado e palmeado do cateretê. Junto das violas os
portugueses tocavam também flautas, pifes, tambores e gaitas e aliaram a isso as
maracas, buzinas e flautas indígenas. (VILELA PINTO, 2008, pp.5-6).

Em outro texto, o mesmo autor afirma:

A viola, por excelência, foi durante os dois primeiros séculos de colonização o


principal instrumento acompanhador do canto e apenas na segunda metade do
século XVIII cedeu lugar, na cena urbana, ao jovem violão, que pela afinação e
por ter cordas simples e não duplas se mostrou mais funcional ao ofício de
acompanhador do canto. Na Espanha e posteriormente na Europa, o violão
ganhou espaço e rapidamente tornou-se o mais usado instrumento de cordas
dedilhadas. (VILELA PINTO, 2011, p.125).
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Outro pesquisador mostra que o famoso compositor brasileiro, padre José

Mauricio Nunes Garcia (1767-1830), também era compositor de modinhas e

possuidor de uma viola:

“Numa viola de arame ele mesmo estudara na classe do seu professor Salvador
José, como também estudaram os mais célebres alunos de José Maurício, como
Cândido Ignácio da Silva e Francisco Manuel da Silva, o autor do Hino Nacional”.
(TABORDA, apud MARTINS, 2005, p.21).

Retomemos, agora, a periodização proposta por Ivan Vilela (2011), aludida

acima, aprofundando as características de cada fase do instrumento.

Na primeira fase, a viola caipira está muito ligada aos ritmos mais básicos da

música caipira, tais como o cururu, a toada e o cateretê. Trata-se de uma viola mais

voltada ao acompanhamento. Os primeiros registros dessa fase se iniciam com as

gravações de discos de duplas caipiras em 1929, pelo artista e produtor musical

Cornélio Pires.

Em 1929, Cornélio Pires, por intermédio de seu sobrinho Ariowaldo Pires,

mais tarde Capitão Furtado, teria proposto ao diretor da Columbia a gravação de

uma série de discos sobre a música dos caipiras. Diante da recusa de sua proposta,

Pires teria resolvido arcar, ele próprio, com os custos de gravação. Teria pedido,

então, ao seu sobrinho Ariowaldo, que o ajudasse na conversa com o representante

da Columbia no Brasil, na época representada pela Byington & Company.

“Chegava ao fim do ano de 1928 quando isto ocorreu. E a conversa entre


Ariowaldo e Wallace Downey deu certo... Downey encaminhou Cornélio Pires ao
proprietário da empresa, Byington Jr. Este para não fugir à regra geral do
preconceito quanto ao ‘não artístico’, rejeitou a proposta de Cornélio Pires para
que se gravassem discos com material caipira autêntico em seu selo. “Não há
mercado para isso, não interessa.” Cornélio insistiu: “E se eu gravar por conta
própria?” Aí Byington Jr. tentou opor dificuldades: “bem, nesse caso você teria que
comprar mil discos. Quero dinheiro à vista, nada de cheque, e se o pagamento
não for feito hoje mesmo, nada feito.” Era uma forma, note-se, de descarte
peremptório ou, em outras palavras, propostas de quem não quer mesmo fazer
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negócio. Ariowaldo Pires jamais pressentiu nessa atitude de Byington Jr. qualquer
intenção malevolente. Ao contrário: “Byngton gostava muito de meu tio –
esclarecia ele- e só queria evitar-lhe prejuízos na certeza de um empreendimento
(ou investimento) malsucedido. Essa foi, na verdade, a intenção”. Cornélio Pires
fez com Byngton Jr. o cálculo de quanto custariam os mil discos e saiu. Foi à
procura de um amigo na rua Quinze de Novembro (centro de São Paulo), um tal
de Castro, e pediu-lhe dinheiro emprestado. Retornou logo em seguida à sede da
empresa e, entrando na sala de Byinton Jr., jogou sobre a mesa deste um grande
pacote emaçado de jornal. “O que é isso?”, perguntou-lhe Byington espantado.
“Uai, dinheiro! Você não queria dinheiro?”, respondeu Cornélio. Byington abriu o
pacote e não disfarçou o seu assombro: “Mas aqui tem muito dinheiro!” ”É que, ao
invés de mil discos, eu quero cinco mil”, explicou Cornélio Pires. Meio aturdido,
Byinton Jr. tentou convencê-lo de que cinco mil discos era muita coisa, era ‘uma
loucura’. Naquele tempo não se faziam prensagens iniciais em tais quantidades
nem para artistas famosos! Cornélio, porém, foi mais além no espanto em que
deixou o dono da gravadora: “Cinco mil de cada, porque já no primeiro suplemento
vou querer cinco (seis?) discos diferentes. Então são vinte e cinco (trinta) mil
discos.” Notemos que na época as tiragens de discos eram pequenas, pois não
havia no Brasil uma quantidade de aparelhos reprodutores, gramofones, que
justificasse altas tiragens. Voltando: “Deixando de lado a perplexidade e
encolhendo os ombros, Byington Jr. mandou chamar alguns funcionários e pôs-se
com estes a contar o dinheiro. Passado o recibo, Cornélio entrou sem rodeios no
assunto: “Bem, agora eu é que vou fazer minhas imposições. Quero uma série só
minha. Vou querer uma cor diferente: o selo vai ser vermelho. E cada disco vai
custar dois mil réis mais que seus sucessos. Mais ainda: você não vai vender
meus discos, só eu poderei fazê-lo”. Byington Jr. deu uma ligeira risada, como que
querendo dizer: “Mas, também, quem é que vai querer comprar seus discos?! ”E
partiu-se para a produção e prensagem. Os discos ficariam prontos mais ou
menos por volta de maio de 1929 – no cálculo de Ariowaldo Pires... O desastre
comercial que Byington Jr. esperava não ocorreu. Ao contrário: Cornélio Pires saiu
em dois carros na direção de Bauru, fazendo do automóvel de trás uma verdadeira
discoteca, tendo por intenção, antes, parar em Jaú. Ao chegar a esta cidade,
todavia, já tinha vendido os vinte e cinco (trinta) mil discos que transportava
consigo! Teve de telegrafar para Byinton e pedir-lhe uma nova prensagem a ser
distribuída em Bauru”. (FERRETE, apud VILELA PINTO, 2011, pp. 76-78).

A segunda fase, conforme Ivan Vilela, se inicia por volta de 1959, com a

criação do ritmo pagode de viola, tendo Tião Carreiro, um dos nomes mais citados

da viola caipira, como o seu maior representante. A criação do pagode deu à viola
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um ar mais virtuosístico, pelos solos, ponteios e utilização de escalas modais.

Segundo Vilela, essa fase é marcada pela música onde a viola passa a ser também

o centro das atenções, com um ar mais solista, uma viola mais presente e mais

destacada.

Grandes violeiros foram marcantes nesta fase. Bambico, Zé do Rancho e Tião


Carreiro, talvez os três mais virtuosos. Tião Carreiro foi o violeiro que deixou uma
marca mais forte na música sertaneja por conta de suas introduções de pagodes,
verdadeiros estudos para viola. Neste período, a figura do violeiro começou a se
solidificar no segmento e a se firmar diante do público urbano. Observamos que a
maior escola deste segmento foram Tião Carreiro e Pardinho. Ainda hoje
escutamos ecos de suas interpretações e cópias da sua maneira de cantar nas
vozes de jovens duplas. (VILELA PINTO, 2008, p.16).

Existe um certo debate sobre as circunstâncias do momento exato da criação

do ritmo pagode de viola, mas em toda nossa pesquisa, elas apontam para Tião

Carreiro com a música “Pagode”, sendo considerado o primeiro pagode gravado,

conforme afirma Denis Rilk Malaquias em sua dissertação:

Numa viagem a Maringá, norte do Paraná, apresentando-se na Rádio Cultura, que


tanto mexeu e remexeu nas cordas da viola que descobriu um jeito diferente de
tocá-las, numa outra levada. “Primeiro gravei uns acordes de violão e depois os
mesmos acordes, de trás pra frente, na viola”, explicou. Em Minas, contou, pagode
era sinônimo de baile, e quando mostrou aquele batidão diferente a Teddy e a
Lourival dos Santos, outro dos seus compositores preferidos, eles lhe perguntaram
por que não adotava “pagode” para definir aquele toque. “O Tião chegou com
aquele batidão de viola, misturando o ritmo de coco com o calango de roda, um
tipo de calando que tem lá na nossa região. Aí fundiu os dois estilos. Botou o
violão fazendo a batida do coco, e a viola, a do calango de roda. (NEPOMUCENO,
apud MALAQUIAS, 2013, pp. 54-55).

Na terceira fase, Ivan Vilela destaca a inclusão de instrumentos elétricos e a

inserção de elementos da música influenciada pela Jovem Guarda e a música

Country estrangeira, adotando o romance como base das letras. Nessa fase, a

música sertaneja passa a ter um caráter mais pop, afastando-se um pouco do lado

caipira.
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Léo Canhoto e Robertinho foram protagonistas, e a primeira dupla do gênero a


fazer sucesso. Aliado ao novo visual e nova poemática ocorreu também uma forte
mudança no que toca à sonoridade destas duplas. Aboliu-se a viola e inseriu-se o
aparato instrumental de bandas pop. Esta vertente ocupou, no mercado do disco,
parte do espaço de vendagem da autêntica música sertaneja e utilizou também o
nome Música Sertaneja. Na realidade esta música se aproxima mais da música
romântica, pois não guarda nenhum dos elementos da música que a precedeu,
quais sejam, “a tipicidade dos instrumentos, a utilização do romance como base
poemática, o uso constante das duas vozes em intervalos de terças ou sextas e a
presença de ritmos que brotaram ou foram acolhidos no seio da cultura caipira”.
(VILELA PINTO, 2011, p.99).

E por fim, em entrevista ao programa Globo Rural, Vilela informa que na fase

atual temos uma viola mais contemplativa, mais abrangente onde ela participa e

serve para diversos ritmos e estilos musicais. Essa fase se consolida no início dos

anos 80 com violeiros como Renato Andrade que levou novamente a viola caipira

para dentro das salas de concerto, e o violeiro Almir Sater com grande divulgação na

mídia e novelas. Esses dois violeiros apresentaram um toque mais cosmopolita,

marcado por influências externas ao universo estrito da viola caipira trazendo

elementos musicais encontrados em outras culturas e nações.

Hoje podemos ver a viola brasileira servindo a diversos propósitos, podendo

citar dentre outros, além do estilo tradicional que segue firme com violeiros como

João Mulato, Marcos Violeiro e Cleiton Torres, Zé Mulato e Cassiano, também a

viola com caráter mais erudito, sendo representada nas salas de concerto, por

violeiros como Fernando Degh e Ivan Vilela. A viola ligada ao chorinho, com o

pernambucano Cacai Nunes. A viola representando o sertão brasileiro, com os

violeiros Paulo Freire e Levi Ramiro. E até mesmo o rock, sendo representado pelos

violeiros Ricardo Vignini e Zé Helder, do grupo Matuto Moderno.

Em nossa pesquisa, examinaremos mais elementos da segunda fase e da

fase atual, apresentando a música Viola Marruda, que possui características que se
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assemelham à 2ª fase da música caipira, e a música Prelúdio dos Pássaros, que

possui características mais próximas à fase atual. O motivo pelo qual foi

possibilitado, em nossa pesquisa, abordar essas duas fases da música caipira, é

que o compositor Índio Cachoeira, conforme entrevista, vivenciou ativamente os dois

períodos, e a sua música, assim como a viola caipira, foi agregando novos

elementos.

3. O VIOLEIRO ÍNDIO CACHOEIRA

Conforme o Dicionário Cravo Albin da

Música Popular Brasileira, acesso em

16/12/2017:

José Pereira de Souza (Índio Cachoeira) nasceu no dia 27 de junho de 1952 em


Junqueirópolis/SP, divisa com Mato Grosso e teve contato com a viola aos 8 anos
de idade, ouvindo um velho violeiro da região; sua mãe não gostava que ele
frequentasse as rodas de viola e folias de reis, ele fugia de casa para ouvir de
perto os ponteados. Tornou-se violeiro e também construtor de violas. Aos 17
anos, começou sua vida profissional tocando nas rádios da região, já com o nome
de Índio Cachoeira. Formou sua primeira dupla com Tião do Gado
(posteriormente, Carreiro, da dupla Carrreiro e Carreirrinho).
Em 1995, tornou-se o Pajé, da dupla Cacique e Pajé, na qual atuou por 5 anos e
gravou 5 CDs. Virtuose da viola, seu toque, elogiado por Inezita Barroso,
apresenta influência da cultura musical da fronteira entre Mato Grosso e Minas
Gerais. Seguindo a tradição dos velhos violeiros, fabrica sua própria viola, que é
personalizada e outros instrumentos, como violões cavaquinhos, harpas e um
instrumento denominado por ele como Canaã, que é uma pequena viola de 15
cordas. (DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Índio
Cachoeira. Disponível em: <http://dicionariompb.com.br/indio-cachoeira-e-
cuitelinho>. Acesso em 12 out. 2017).
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Por último, Índio Cachoeira formou dupla com Santarém, que fazia dupla com

Tião do Carro. Além do seu trabalho de dupla caipira, Índio Cachoeira desenvolveu

um trabalho paralelo com o produtor musical e também violeiro Ricardo Vignini.

Nessa parceria, Índio Cachoeira interpretou músicas no estilo “instrumental”, de sua

própria autoria. Duas dessas composições: Prelúdio dos Pássaros e Viola Marruda

são os objetos principais de estudo nessa pesquisa.

A escolha do violeiro Índio Cachoeira se deu pelas características de suas

obras, que representam, de certo modo, a segunda fase e a fase atual da música

caipira (tais como definidas em VILELA PINTO, 2011, pp.89-101), o que torna

possível lançar luz sobre afinidades e afastamentos entre esses períodos da música

de viola. Índio Cachoeira foi um sobrevivente de sua época, e nomes como Tião

Carreiro, Renato Andrade e Zé Coco do Riachão, infelizmente, já não estão mais

entre nós há certo tempo, para poderem contar as histórias relacionadas à viola e

suas composições. Vimos em Índio Cachoeira a oportunidade de estudar os

aspectos composicionais dentro dessa tradição.

É aqui o momento de registrar, com pesar, o falecimento do Índio Cachoeira

no decurso da presente pesquisa. Ele ocorreu poucos meses antes da defesa de

nosso trabalho, que fica, então, como uma pequena homenagem ao pesquisado -

para a qual ele próprio contribuiu com entrevistas e materiais disponibilizados ao

pesquisador.

Na entrevista em anexo a essa pesquisa, Índio Cachoeira afirma que teve

contato com violeiros tais como Tião Carreiro, Carreirinho e Bambico, e também com

violonistas como Dilermando Reis, instrumentista versátil que fez fama como solista,

e que conhecia muito bem o repertório clássico do violão. Essa junção de

referências explica bem o estilo das composições de Índio Cachoeira, principalmente


17

no que tange a algumas técnicas utilizadas pelo músico, tais como: ligados,

arrastados, harmônicos, vibratos, glissandos, mordentes, apojaturas, staccatos e

notas percussivas.

Conforme relata em sua entrevista, Índio Cachoeira sempre esteve envolvido

com outros violeiros e músicos de outros instrumentos, e não teve dentro de sua

família grandes referências musicais.

Seu principal divulgador e produtor musical, Ricardo Vignini, no Programa

Passagem de Som do projeto Sesc TV, afirmou que:

O Índio Cachoeira possuía uma influência latina em sua música por ter convivido
uma época com Bolivianos e Paraguaios, e que o Cachoeira mesmo não tendo
tido um estudo formal de musica, ele conseguiu construir formas de executar
muito bem a sua música, diferente da música convencional. (Índio Cachoeira e
Ricardo Vignini. Programa Passagem de Som do SESC/SP. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=Pd98Ll_ZlDw&t=2s > 26:14 minutos. Acesso
em 17 jun. 2018).

Para a análise das músicas Prelúdio dos Pássaros e Viola Marruda,

utilizamos nessa pesquisa, além da transcrição das partituras, o áudio e as imagens

do compositor extraídas do DVD Índio Cachoeira: um Violeiro Nato, para um melhor

entendimento das técnicas utilizadas pelo músico. Segundo informações extraídas

do site http://www.tratore.com.br/um_dvd.php?id=1625 cujo acesso ocorreu em

16/03/2018:

“Um Violeiro Nato” é o primeiro DVD do violeiro Índio Cachoeira que retrata vários
momentos da sua carreira. Filmado no ano de 2009, foi dirigido e produzido por
Ricardo Vignini e Eduardo Gaspar. Participam do DVD Ricardo Vignini e Marcelo
Berzotti, ambos do grupo Matuto Moderno; Cuitelinho e Carreiro. O Projeto foi
realizado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo através do ProAC. O
DVD contém 17 faixas. (DVD Um Violeiro Nato. Disponível em:
<http://www.tratore.com.br/um_dvd.php?id=1625>. Acesso em: 15 jun. 2018).

Nesse DVD podemos encontrar, além das músicas analisadas, vários estilos

e ritmos musicais, tais como: cururu, moda de viola, pagode de viola, dentre outros.
18

4. TÉCNICAS UTILIZADAS NAS COMPOSIÇÕES

4.1 Ornamentos e Recursos Técnicos

Um dos objetivos do presente estudo é demonstrar ao leitor algumas técnicas

utilizadas pelos violeiros no processo composicional, tendo Índio Cachoeira como

caso em estudo. Nesse sentido, a presente pesquisa visa ao estudo e ao registro de

duas composições musicais no estilo instrumental, com a utilização da viola caipira

brasileira.

Para atingir nossos objetivos, utilizamos como exemplo duas músicas do

violeiro e compositor Índio Cachoeira, analisando os aspectos rítmicos, harmônicos,

melódicos e funcionais. Para fins de estudo, transcrevemos e consideramos, para a

análise das duas obras, a viola afinada em Ré Maior, também chamada de Cebolão

em Ré Maior (D). Seguindo o sentido ascendente, do par situado na parte inferior

das cordas ao superior, as notas das cordas na afinação Cebolão em Ré Maior são,

sequencialmente:

Nas músicas Viola Marruda e Prelúdio dos Pássaros, Índio Cachoeira utiliza a

viola afinada meio tom acima – prática comum entre os violeiros. Portanto, a

tonalidade a ser ouvida no DVD Um violeiro Nato será de Mi bemol Maior (Eb).
19

Ao longo dos estudos, identificamos alguns tipos de ornamentos, articulações

e elementos técnicos utilizados pelo violeiro em suas composições. A utilização

desses recursos geralmente varia de violeiro para violeiro. Costuma-se dizer, no

meio da viola, que cada região tem um jeito diferente de fazer o recortado do

pagode. Segundo Amaral (2002, p. 91): “Alguns violeiros diferenciam a batida do

recortado na viola em variações, como o recortado mineiro e o paulista, aparecendo

tais diferenças também nos registros de gênero das gravações fonográficas desde

os discos de 78rpm”.

Harmônicos, arrastes, ligados e arpejos são alguns ornamentos utilizados nas

composições estudadas nessa pesquisa. Essas características também são

encontradas no repertório interpretado por outros violeiros de diferentes regiões de

nosso país, conforme definições de sinalizações de efeitos do livro A Arte de

Pontear Viola (CORREA, 2002, pp.84,89):

Definições:

Harmônicos Naturais: Soará uma oitava acima da nota original.

Arrastes: Toca-se a primeira nota e arrasta-se o dedo até a


segunda nota sem tocá-la, deixando soar a nota inicial.

Ligados: Toca-se a primeira nota e bate-se algum dedo da mão


esquerda para emitir a segunda nota.

Arpejos rasgados: São obtidos ferindo-se as cordas em um


movimento rasgado, para cima ou para baixo. Pode ser com o polegar,
ou com qualquer outro dedo da mão direita.
20

Na música Prelúdio dos Pássaros, podemos localizar nos compassos 12, 18 e

34, e na música Viola Marruda, no compasso 12, alguns exemplos desses

ornamentos:

4.2 Elementos de composição

Quanto aos elementos de composição, consideramos em nossa análise os

aspectos rítmicos, harmônicos, melódicos e funcionais. Conforme discutido na tese

de doutoramento de Antenor Corrêa (2009), o processo de análise musical é o

inverso do processo composicional, pois ao invés de juntar as partes para compor


21

uma obra, como faz o compositor, o analista musical decompõe a obra em partes

para uma melhor compreensão dos recursos utilizados:

Análise é entendida como o processo de decomposição em partes dos elementos


que integram o todo. Essa fragmentação tem como objetivo permitir o estudo
detido em separado desses elementos constituintes, possibilitando compreender
quais são, que função desempenham e como se conectam de modo a gerar o
todo de que fazem parte. Justifica-se esse procedimento por admitir-se que a
explicação do detalhe sobre o conjunto conduz a um melhor entendimento global.
No caso da música, o processo pode ser pensado em duas etapas básicas:
identificação dos diversos materiais que compõem a obra em questão (as
estruturas gerativas) e definição (constatação e explicação) da maneira como se
articulam e interagem fazendo a obra “funcionar” (o processo composicional).
Análise é decomposição. Composição é síntese. (CORRÊA, 2009, p.36).

Outro aspecto a ser abordado em relação à viola caipira, é a utilização de

cordas soltas na execução dos solos e acompanhamentos. Quanto a isso, João

Paulo Amaral chama atenção ao seguinte aspecto: “Uma das principais

características do toque de viola caipira no Brasil é a utilização de cordas soltas

(campanelas), e de terças e sextas paralelas. Muitas vezes esses paralelismos são

executados com arrastes entre as notas”. (MARTINS 2004, apud PINTO, 2008,

p.137).

Na música Viola Marruda, por conta da técnica da rabanada ou recortado

utilizada no pagode, é bem aproveitada a sonoridade da afinação aberta em Mi

bemol (que, no caso das transcrições com que estamos trabalhando, aparece como

tonalidade de Ré Maior).

O recortado, ou rabanada, é definido por Roberto Corrêa deste modo:

É um dos efeitos do pagode-de-viola, no qual os dedos da mão direita, a partir do


anelar, ou do quinto dedo, descem um após o outro e, imediatamente, o indicador
ou o polegar sobe, arrematando o movimento. O movimento é muito rápido e é
realizado, geralmente, nos pares superiores, podendo ser somente no quinto par;
no quarto e quinto; ou nos terceiro, quarto e quinto pares. (CORREA, 2002, p.89).
22

5. TÉCNICAS UTILIZADAS NAS ANALISES DAS COMPOSIÇÕES

Como forma de análise iremos fazer um levantamento dos aspectos

melódicos, harmônicos e rítmicos das duas composições, evidenciando trechos e

células específicas, bem como a identificação dos principais temas e frases musicais

utilizadas pelo compositor. Para isso, utilizaremos como base os estudos e técnicas

de análise já desenvolvidas, conforme detalhadas nas referências bibliográficas

citadas nesse trabalho.

Também levaremos em conta, para compor as nossas análises, os contextos

históricos relatados nas pesquisas dos músicos violeiros Ivan Vilela Pinto, João

Paulo do Amaral Pinto, Eric Avessari Martins, Roberto Corrêa, Denis Rilk Malaquias,

além de entrevista presencial realizada com os violeiros, e parceiros em projetos do

compositor analisado, Ricardo Vignini e Zé Helder. Além de entrevista realizada com

o próprio músico Índio Cachoeira, compositor das obras analisadas.

A análise será conduzida de forma a retratar os aspectos formais utilizados na

música e nos estudos acadêmicos. Para isso, utilizaremos as músicas transcritas em

partituras e áudios extraídos do DVD Índio Cachoeira: um Violeiro Nato, citado nas

referências.
23

6. ANÁLISE COMPOSICIONAL

O processo de análise das composições será realizado individualizado por

composição, fazendo um comparativo entre as obras e as fases da música caipira a

que elas estão relacionadas. A proposta é demonstrar as principais características, e

relacioná-las ao estilo musical de cada época.

6.1 Viola Marruda

A primeira música tema de nossa análise é a música Viola Marruda, composta

pelo violeiro Índio Cachoeira. A partitura abaixo foi transcrita pelo também violeiro Zé

Helder. Iremos direcionar nossa análise por tópicos, ilustrando os trechos da música

conforme vai se dando a análise. Para uma apresentação inicial, segue a partitura

completa da música a ser analisada.


24
25

Para um melhor entendimento da obra descrita acima segue link para vídeo cuja

interpretação se aproxima das características expostas em nossa análise:

https://www.youtube.com/watch?v=kgSQ6xmsCFc.

A música Viola Marruda, composta pelo violeiro Índio Cachoeira, foi transcrita

na tonalidade de Ré Maior, e o andamento para a peça está em torno de 96 BPMs.

A fórmula de compasso é binária (2/4), enquanto a estrutura formal é ternária

(A/B/C).

A parte A é composta por um período simples de 08 compassos, indo do 01

ao 08, que, por sua vez, é composto de 02 frases de 04 compassos cada, a primeira

terminando com impressão de suspensão, e a segunda de repouso.

O que vem depois são quatro compassos de acordes batidos, movimentos

conhecidos na viola caipira como rabanada, responsáveis por manter a música

pulsando e por cimentar a transição entre as reexposições e as diferentes partes.

Isso acontece ao longo dessa música toda vez que se vai transitar de uma parte à

outra, ou reexpor/repetir partes.


26

A parte B é composta por uma frase irregular de 07 compassos, construída

sobre o pedal agudo de ré, precedidos pela mesma sequência de 04 compassos de

acordes batidos transicionais que foram executados na parte A, que, neste caso,

preparam a ida para a parte C. A parte B pode ser entendida como uma transição da

música para a parte C.

A parte C é composta por um período simples de 08 compassos (ainda que o

sinal de repetição, do modo como foi posicionado pelo responsável pela transcrição,

dê a entender outra coisa), composto por duas frases de 04 compassos. A primeira

tem terminação suspensiva e a segunda conclusiva, e o período é seguido pelos

mesmos quatro compassos de acordes batidos transicionais, antes de voltar à 1ª


27

parte. Quatro compassos de acordes batidos de transição, para voltar então à 1ª

parte e fazer a música toda de novo e finalizar na coda, compassos 37 e 38.

Quanto à análise do ritmo, conforme já abordado anteriormente, a música

possui um ritmo característico da viola caipira que é o pagode de viola. O pagode de

viola é um ritmo que normalmente tem o acompanhamento do violão que faz uma

base percussiva marcando os tempos fracos. A parte do violão, por se tratar de um

acompanhamento rítmico e harmônico, não foi transcrita na partitura, mas com base

na figura 10 abaixo e os apontamentos de harmonia registrados nessa análise,

podemos identificar claramente as funções rítmicas e harmônicas do violão na

música.
28

Analisando harmonicamente a música Viola Marruda, podemos verificar que

se trata de uma harmonia simples com apenas três acordes, configuração comum

no repertório da música caipira, porém com uma parte rítmica sofisticada, fazendo

do acompanhamento uma parte importante na sustentação melódica. A viola caipira,

nesse tipo de ritmo, está em constante movimento, com a utilização de ornamentos

dentro de movimentos harmônico-rítmicos conhecidos por “recortados”, que mudam

a ordem intervalar dos acordes, variando as alturas das notas empregadas na

condução.

Na melodia, podemos destacar as pequenas frases e a utilização de

ligaduras, dando uma sensação musical de constante continuidade, sendo

arrematadas abruptamente por recortes rítmicos e percussivos.

No estudo das formas funcionais, podemos destacar o caráter das funções

expositiva e contrastante, reapresentando constantemente o tema e suas variações,

interpolando partes com material novo e que contrasta com o anterior, conforme

sugestão de análise proposta por Antenor Corrêa:


29

Considero útil e esclarecedora a classificação funcional de partes (frases,


períodos, seções), sendo denominadas como expositivas, desenvolvimental,
elaborativa, de prolongação, transitiva, aditiva (acréscimo de novos materiais),
contrastante, re-expositiva ou de recapitulação e ornamental. Na literatura
encontra-se também o designativo ‘seção subsidiária’, porém não se trata de uma
função, mas de uma qualificação. Algumas das definições são evidentes por si,
como a função expositiva, que tem por finalidade expor o material a ser trabalhado
na composição. Ao passo que re-expositiva é justamente a reapresentação desse
material inicial, que pode ocorrer de maneira renovada. Funções de
desenvolvimento e elaborativa objetivam a expansão do material musical inicial de
acordo com algumas operações, como transformações (tratadas no Capítulo 4).
Há partes em que acontecem adições de novos materiais (por interpolação, por
exemplo) ou de estruturas derivadas das anteriores, estas partes possuem função
aditiva. Se o material for totalmente novo de modo a contrastar com os já expostos
a função será, então, contrastante. (CORRÊA, 2009, pp. 173-174).

O ritmo utilizado na música Viola Marruda é o pagode1, ritmo musical criado

por Tião Carreiro no final da década de 1950. Segue relato do próprio Tião Carreiro

sobre o assunto, colhido na tese do pesquisador João Paulo Amaral:

Primeiro gravei uns acordes de violão, e depois os mesmos acordes de trás para
frente na viola, tentou explicar o violeiro. Ele teria então mostrado o novo ritmo aos
compositores Lourival dos Santos e Teddy Vieira, que o batizaram de pagode, já
que o caráter rítmico lembrava a ocasião das festas, bailes e cantorias caipiras do
interior, também chamados de pagodes, fandangos, cateretês etc.
(NEPOMUCENO, apud PINTO, 2008, p.81).

Ainda sobre o pagode, João Paulo Amaral destaca o virtuosismo e a


complexidade do ritmo:
O Pagode caracteriza-se principalmente pela combinação polirrítmica entre uma
complexa batida executada na viola com outra no violão.

1
Pagode: No que diz respeito aos conceitos relacionados ao termo pagode, inicio tomando como
referência algumas definições apresentadas pelos dicionários Aurélio e Soares Amora. São elas:
brincadeira, pândega; reunião informal em que se cantam ritmos populares; gênero de música e
dança popular. Severiano (2008) atesta que essa palavra já era empregada pelos portugueses no
século XVI para designar diversão. Nos anos 1950, o termo ressurgiu no Brasil, denominando
reuniões festivas em que havia música e dança. A designação do gênero como pagode, no entanto,
segundo Nepomuceno (1999, p.341), sem se desvincular totalmente do que vem sendo mencionado,
se efetivou quando Tião Carreiro mostrou seu experimento aos compositores Lourival dos Santos e
Teddy Vieira, que o chamaram de pagode em razão de seu caráter rítmico que lembrava ocasião de
festas, bailes e cantorias do interior (MALAQUIAS, 2013, p.19).
30

(...). Desta forma, uma das principais inovações e contribuições do gênero pagode
foi a criação bem-sucedida da polirritmia entre os dois instrumentos de cordas
característicos das duplas sertanejas, a viola e o violão. Esta contraposição das
duas células rítmicas complementares funciona musicalmente na medida em que
o violão, com seu timbre mais aveludado e grave, toca fora das cabeças dos
tempos fortes do compasso e acentua os contratempos. Assim, ele cria um pano
de fundo que realça a viola, de timbre mais brilhante e que ora preenche e
acentua os espaços deixados pelo violão (primeira, segunda e quarta
semicolcheia do primeiro tempo e primeira e segunda semicolcheia do segundo
tempo), ora dobra as suas acentuações (terceira semicolcheia do segundo tempo):
(AMARAL PINTO, 2008, pp.80 e 87).

6.2 Prelúdio dos Pássaros

A nossa segunda música a ser analisada é Prelúdio dos Pássaros, e a partitura a

seguir foi transcrita pelo violeiro César Petená, formado em viola caipira pela

Faculdade Cantareira.
31
32
33

Para um melhor entendimento da obra descrita acima segue link para vídeo

cuja interpretação se aproxima das características expostas em nossa análise:

https://www.youtube.com/watch?v=R70GQmOBPCU.

O repertório musical de Índio Cachoeira nos fez despertar para essa

pesquisa, em especial a música Prelúdio dos Pássaros, pois, conforme detalhado

abaixo em nosso estudo, esse repertório possui muitos elementos de composição,

ornamentos e recursos musicais utilizados, que se destacam entre os violeiros de

sua geração.

Essa música foi transcrita com armadura de clave com dois sustenidos,

indicando a tonalidade de Ré Maior, e o andamento é variado. A fórmula de

compasso é quaternária (4/4), enquanto a estrutura formal é binária (A/B).

A parte “A” da música vai do compasso 1 ao 21. Pode-se argumentar que ela

é composta de um período, composto, por sua vez, de duas frases bastante

irregulares. Cabe a nós interpretar as razões desta irregularidade, o que tentaremos

a seguir.

Temos uma primeira frase de 12 compassos, se estendendo do c. 01 ao c.

08, que, harmonicamente, parte da tônica, passa por dominante e subdominante, e

termina de modo suspensivo. Mas segue-se a essa suspensão um conjunto de

ornamentos e efeitos, que se estende por quatro compassos, ao longo do qual o

violeiro nos conduz a uma terminação conclusiva. Pode-se, então, interpretar esses

quatro compassos como se fossem uma pequena coda, uma codeta, dentro da

exposição inicial, tendo por objetivo equilibrar a forma, fazendo o ouvinte retornar à

tônica antes de prosseguir.

Essa frase é seguida de outra, toda localizada na região da dominante, que

se estende por cinco compassos, também tem terminação suspensiva e também é


34

seguida por quatro compassos de ornamentação e efeitos nos reconduzindo à

tônica. Ou seja, vale, aqui também, a sugestão de que se trata de uma codeta

dentro da exposição que parece ter por objetivo equilibrar a forma, reconduzindo o

ouvinte à tônica antes de prosseguir e apresentar material novo.


35

A partir do compasso 22, inicia-se a parte “B” da música. Ela consiste de um

período paralelo, de seis compassos, composto por duas frases de três compassos

cada, em que uma é, aproximadamente, a repetição da outra.

Do compasso 29 até o fim, temos uma coda finalizando a composição.


36

Foram identificadas na música, cinco frases principais e oito semi-frases além

de codas e ornamentos.
37

Quanto à análise do ritmo da música Prelúdio dos Pássaros recorremos ao

violeiro Zé Helder, que além de violeiro e professor de música, acompanhou o

violeiro Índio Cachoeira em parcerias de shows e oficinas, conhecendo bem o seu

repertório. Conforme comunicação privada recebida, Zé Helder2 faz o seguinte relato

sobre a música Prelúdio dos Pássaros:

Bem, eu não diria que essa música pode ser descrita simplesmente como um
ritmo, pois ela é tocada à vontade sem uma definição rítmica, chega a ficar
ritmada em alguns momentos, mas não dá para resumir assim. Eu prefiro ir pelo
título prelúdio, que é uma parte introdutória de alguma obra maior, como um
concerto ou sinfonia. O Cachoeira certamente não pensou nisso, mas apropriou-
se muito bem do nome. Prelúdio dos Pássaros poderia ser descrita
figurativamente como um prelúdio aos passarinhos, uma introdução ao canto dos
pássaros, não introdução de uma suíte ou obra maior, porque ela termina aí. Mas
é uma bela homenagem. (Zé Helder, 2017, comunicação privada).

Em relação à palavra “prelúdio”, suas origens e significados, recolhemos a

seguinte informação do site conceitos.com:

2
Zé Helder é bacharel em música formado pelo Conservatório de Pouso Alegre/MG e formado em
Licenciatura Plena em Música pelo Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro/RJ.
38

A palavra prelúdio vem do latim praeladium e significa a experiência prévia de


algo. Assim, prelúdio é aquilo que permite introduzir algo diferente.
Originariamente, o prelúdio se refere aos momentos iniciais de uma atuação na
qual um músico ou vários deles tocam seus instrumentos e improvisam algum tipo
de som para preparar antes da apresentação. Com o passar do tempo, este
sentido original foi mudando e a partir do século XV o conceito de prelúdio passou
a ser usado como peça independente e como gênero musical definido. Na
linguagem musical, o prelúdio é uma peça livre que precede a outra, por exemplo,
uma fuga ou uma toccata. Também há prelúdios musicais para algumas
apresentações de dança ou como parte introdutória de uma ópera. A partir do
século XIX, o prelúdio musical passou a ser entendido de maneira totalmente
independente, portanto, não antecedia nenhuma peça musical, da mesma forma
que acontece com os 24 prelúdios de Chopin ou algumas criações de Debussy.
(https://www.conceitos.com acesso em 28/12/2017).

O Prelúdio também pode ser uma espécie de fuga da estrutura rígida musical,

e não necessariamente anteceder outra peça. Por muito tempo, o termo prelúdio

serviu para identificar uma música ou uma preparação para algo maior, mas, com a

prática musical e o desenvolvimento das obras, os prelúdios passaram a ser

desenvolvidos de forma autónoma, como nos casos dos prelúdios de Chopin.

O Dicionário Groove define o Prelúdio da seguinte forma:

Um termo de aplicação variada que, em seu uso original, indicava uma peça que
precedia outras músicas cujo modo ou tom foi projetado para introduzir; foi
instrumental (as raízes ludus e Spiel significam "tocadas" em oposição a
"cantadas"); e foi improvisado (daí o prélude francês e o präludieren alemão, que
significa "improvisar"). O termo "praeambulum" (preâmbulo) acrescenta a função
retórica de atrair a atenção de um público e de introduzir um tópico.
Os primeiros prelúdios notados são para órgão e foram usados para introduzir a
música vocal na igreja. Um pouco mais tarde, para outros instrumentos de cordas,
como o alaúde, surgiram da improvisação e eram um meio de verificar a afinação
do instrumento e a qualidade de seu tom, e de afrouxar os dedos do músico [...]. O
propósito de notar a improvisação era geralmente fornecer modelos para os
alunos, de modo que uma intenção instrutiva, muitas vezes preocupada com um
aspecto particular da técnica instrumental, permaneceu uma parte importante do
prelúdio. Como a improvisação pode abranger uma ampla variedade de maneiras,
39

estilos e técnicas, o termo foi posteriormente aplicado a uma variedade de


protótipos formais e a peças de gênero de outra forma indeterminado.
[...]
Com Bach, o prelúdio alcançou o ápice de seu desenvolvimento, tanto em sua
qualidade de composição quanto em sua gama de estilos, maneiras e protótipos
formais. [...]

Quanto à análise harmônica, consideramos, nesse tópico, apenas a função

harmônica dos acordes encontrados na melodia, mas podemos verificar, de uma

forma mais detalhada, que a música Prelúdio dos Pássaros se inicia em Ré Maior,

seguindo para Lá com sétima, logo após é feita uma preparação em Ré com sétima

para o acorde de Sol Maior, depois a música passa pelo acorde de Sol menor

voltando novamente ao Ré Maior. No compasso sete temos mais uma inclinação

com uma progressão de Mi com sétima, Lá com sétima, passamos novamente pelo

Ré maior, temos uma progressão no baixo de Lá com sétima para Lá com sétima

com baixo de Dó sustenido, acorde de primeira inversão, para finalizar a exposição

do tema principal com o acorde de Ré Maior.

Na reexposição do tema temos uma sequência em Dó sustenido menor, Sol e

Lá com sétima em um mesmo desenho melódico. Depois, temos um longo arpejo e

um ornamento com fermata, dando ao intérprete mais liberdade para a execução do

trecho conforme proposta de performance. Entre o compasso 18 e 21 temos uma

cadência descendente até a dominante marcando o fim da frase por um harmônico

de intenção suspensiva, em resposta uma cadência ascendente finaliza o período na

tônica com mais um harmônico.

Entre os compassos 22 e 28 temos um logo desenvolvimento na passagem

pela dominante, Lá com sétima, contrastando o tema principal ritmicamente

finalizando com uma coda marcada por harmônicos, fermatas e ligados do


40

compasso 29 até o 34, podendo ser retornada ao início para prolongar a

apresentação.

Em relação à análise melódica, podemos destacar que o discurso se apoia na

condução de vozes, criando uma textura variada. O compositor mantém essa textura

através de uma falsa polifonia, na maioria do tempo ele utiliza a melodia

acompanhada tendo a voz principal no baixo, e por vezes ele emprega uma voz em

textura monofônica conforme figura abaixo:

Normalmente, encontramos na música caipira apenas uma voz, e na música

Prelúdio dos Pássaros podemos verificar que a textura é predominantemente

homofônica, com sugestões de falsa polifonia decorrentes da condução das vozes

no encadeamento dos acordes .

Com a análise da música Prelúdio dos Pássaros, podemos identificar uma

utilização pelo compositor de diversos recursos técnicos, implicando no emprego de

técnicas de outros cenários musicais que não o da viola caipira tal como existia em

sua segunda fase. Comparecem aqui, não apenas nas progressões harmônicas,

mas também no modo de conduzir as vozes e no emprego de notas de tensão nos

acordes – decorrentes da insistência em cordas soltas na afinação aberta da viola –,

elementos que apontam para o cosmopolitismo marcante na quarta fase da viola

caipira, aproximando essa composição das de outros violeiros contemporâneos,

como Almir Sater, Fernando Deghi, Ivan Vilela, Paulo Freire, Roberto Corrêa, dentre

outros.
41

7. CONCLUSÕES

O objetivo geral desse trabalho foi o desenvolvimento de um estudo sobre os

aspectos composicionais de duas obras do violeiro Índio Cachoeira, mapeando uma

parte das técnicas utilizadas pelos violeiros na música caipira brasileira. Para atingir

nossos objetivos, foi necessária a realização de análises levando em conta os

recursos técnicos utilizados e a avaliação dos aspectos rítmicos, harmônicos,

melódicos e funcionais da composição. Acreditamos que, estudos como esse

possibilitam um melhor entendimento do universo musical em análise. Nesse

sentido, o presente trabalho é apenas o primeiro passo em uma pesquisa em que

espero analisar outras peças de violeiros importantes como Índio Cachoeira, assim

como considerar outros aspectos que ainda não puderam ser abordados aqui.

Verificamos diferentes técnicas utilizadas entre as obras analisadas nos

direcionando a momentos distintos da história da música caipira brasileira. A música

Viola Marruda, mesmo sendo uma música atual, assemelha em características a 2ª

fase da música caipira, principalmente pela utilização do ritmo pagode de viola. Já a

música Prelúdio dos Pássaros possui características que se aproximam mais da

música contemporânea tocada pela viola, onde vários elementos culturais passaram

a ser incluídos pelos violeiros.

Todo o levantamento de informações, revisão bibliográfica, entrevistas e

demais tipos de dados coletados foram muito importantes para o resultado desse

estudo, mas, pelas dificuldades que encontramos em nossa pesquisa,

principalmente pela falta de registros acadêmicos, verificamos ser importante a

continuidade dessa pesquisa. A viola caipira teve por muitos anos como principal

forma de transmissão do conhecimento a divulgação de forma oral, sem registros em

partituras ou métodos formais de ensino. Isso parece ter tido efeitos muito positivos,
42

como a grande variedade de modos de tocar o instrumento, tanto entre regiões,

quanto de um intérprete a outro. Entretanto, consideramos que a proliferação de

estudos acadêmicos pode contribuir para o aprofundamento da compreensão sobre

diversos aspectos da performance, da composição e da história da viola, assim

como para a maior propagação desse conhecimento.

Esperamos ter podido contribuir um pouco para isso através do presente

trabalho.
43

REFERÊNCIAS:

A) BIBLIOGRÁFICAS

BENNET, Roy. Elementos básicos da música: tradução de Maria Teresa de Resende Costa Ed.
Zahar, Rio de Janeiro, 1990.

_______ . Forma e Estrutura na Música: tradução de Luiz Carlos Cseko. Ed. Zahar, Rio de Janeiro,
1986.

CACHOEIRA Índio. DVD Um Violeiro Nato. Direção: Ricardo Vignini. Fotografia Eduardo Gaspar.
São Paulo. Tratore, 2009. 1 DVD (76 min), NTSC, color.

CORRÊA, Antenor Ferreira. Integração de Técnicas como Princípio de um Modelo


Composicional. São Paulo, 2009. 292f. Tese (Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Música)
– Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

_______ . Análise como Princípio Composicional. DF: UNB, 2014.

CORRÊA, Roberto. A arte de Pontear Viola. 2 ed. Brasília, Curitiba: Editora Viola Corrêa, 2002.

DICIONÁRIO CRAVO ALBIN DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Índio Cachoeira. Disponível em:
<http://dicionariompb.com.br/indio-cachoeira-e-cuitelinho>. Acesso em . .

GUEST, Ian. Harmonia, Método Prático Vol I e II. Lumiar Editora: Rio de Janeiro, 2006.

HOWARD, John. Aprendendo a Compor. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1991.

MAGALHÃES, Couto de, 1940. O Selvagem. (4a edição) São Paulo, Cia Editora Nacional.

MALAQUIAS, Denis Rilk. O Pagode de Viola de Tião Carreiro. 272f. Dissertação (Mestrado em
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MARTINS, Eric Avessari. A Viola Caipira, a Modinha e o Lundu. São Paulo, 2005. Dissertação
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PINTO, João Paulo do Amaral. A viola caipira de Tião Carreiro. 371f. Dissertação (Mestrado em
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SCHOENBERG, Arnold, Fundamentos da Composição Musical: tradução de Eduardo Seincman.


(3a edição) Editora da USP. São Paulo, 1996.
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VILELA PINTO, Ivan. Cantando a própria história. São Paulo, 2011. 351f. Tese (Doutorado -
Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Social) - Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo.

_______ . A viola, Ensaio elaborado especialmente para o projeto Músicos do Brasil: Uma
Enciclopédia, patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet. 2008. Disponível em: <
https://pt.scribd.com/document/50445785/Ivan-Vilela-Viola>. Acesso em: 17 jun. 2018.

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Índio Cachoeira. 2009. DVD. Índio Cachoeira Um Violeiro Nato. São Paulo, Brasil.

Índio Cachoeira e Ricardo Vignini. Programa Passagem de Som do SESC/SP. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=Pd98Ll_ZlDw&t=2s > 26:14 minutos. Acesso em 17 jun. 2018.

Ivan Vilela Pinto. Entrevista “Globo Rural” da Tv Globo, matéria Globo Rural conta a história da
música caipira e sertaneja. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xUwxxfYEAl0>
10:23 minutos. Acesso em 06 nov. 2017.
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APÊNDICE

A) TABELAS DE ANÁLISE

VIOLA MARRUDA
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PRELÚDIO DOS PÁSSAROS


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B) ENTREVISTAS

Índio Cachoeira

Entrevista realizada como o violeiro Índio Cachoeira realizada durante um encontro

anual de violeiros realizado na cidade de São Paulo no final de janeiro de 2016.

Nesse evento, vários violeiros se encontraram por alguns dias participando de

seminários, máster-class e shows com violeiros, onde também estava presente o

violeiro pesquisado Índio Cachoeira.

1. Para você a viola caipira chegou como herança familiar, ou você buscou

outras fontes de aprendizado? Tem alguém na sua família que tocava? Como foi

quando você começou?

Índio - A música sertaneja raiz, ela é uma inspiração para mim. Eu me inspirei nos

violeiros antigos, como Zé Carreiro e Carreirinho, Tião Carreiro e Pardinho e mais

duplas que já deixaram essa terra e hoje a gente tem a lembrança deles e escuta

algumas modas deles com prazer, porque as músicas deles são destacadas por

inteiro, o compositor começa a música e tem meio e tem fim, você entende a música

inteira. Entendeu? O conteúdo dela é a perfeição. Do caboclo da vida da roça, é o

violeiro natural. Olha, tem irmãos na minha família que não são violeiros, mas eu

tenho um irmão que foi radialista em Guarulhos, o Agenor de Souza, que é muito

conhecido por lá, eu não sei se ele trabalha com rádio ainda porque faz tempo que

eu não tenho contato com ele. O que acontece é o seguinte, na minha família só

teve eu que gosta de viola, parece que eu já nasci dentro da viola, né? Risos. Só eu

que mexo com viola e de vez em quando meus irmãos vem me ver cantar. Tive outro

irmão que era cantor sertanejo, mas hoje ele não canta mais aqui não, porque hoje

ele está na rádio do céu, está cantando lá.


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2. Quais foram as maiores influências da sua carreira?

Índio - A Como eu já ia dizendo, minhas influências vieram dos violeiros antigos e

solistas também, que o Brasil conheceu: Bambico da viola que foi músico de muitas

duplas do Brasil, e músico também não só sertanejo, eu também vi coisas boas com

violões clássicos, e vou citar um nome que o Brasil conhece muito que é Dilermando

Reis que fez eu me aperfeiçoar na viola ladeando as técnicas do Dilermando Reis na

clássica do violão. Eu acabei aprendendo um pouquinho graças a eles violeiros

antigos e ele que é violeiro clássico, e por isso que eu tenho as minhas melodias

musicais tocadas na viola tem um pouquinho de Dilermando Reis e mais alguns

violonistas clássicos.

3. Você consegue identificar alguma diferença na forma de tocar viola entre os

violeiros mais antigos e os atuais?

Índio - A O que eu vejo nas músicas instrumentais tocadas de viola, solos de viola,

eu vejo as músicas tocadas diferente por que cada um tem um estilo, eu vejo nessa

época de agora em um estilo diferente, mas sabe o que acontece? Me viram para

um lado, mudo do outro e no fim das contas acaba todo mundo tocando viola, e

acaba influenciando para divulgar a viola caipira.

4. Os ritmos que você conhece que influenciaram a música de viola que temos

hoje, tais como querumanas, chamamés, você tem visto o pessoal gravando ainda

hoje esses ritmos no estilo instrumental?

Índio – Ah! Modificou muito, moda de viola está difícil ouvir no rádio, quando você

pega uma rádio sertaneja raiz de madrugada, é que você ouve uma moda bonita.

Mas durante o dia é difícil ouvir essas modas, mas de vez em quando você ouve a

violinha pelo meio das outras músicas também. Risos.


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5. Uma de suas músicas mais divulgadas hoje é a música Prelúdio dos

Pássaros, eu gostaria que você descrevesse o que você pensou quando você

compôs essa música? Como que foi juntar as partes da música, qual a interface que

existe com a natureza e o que lhe vem na memória quando você a interpreta?

Índio - A O Prelúdio dos Pássaros eu fiz em homenagem aos pássaros, pensando

neles e ao tempo, também compus ela para alguns violeiros dela se aproveitar, e

ensaiar, mas não gostaria que tirassem ela em estilos diferentes. A coisa mais

bonita é quando você levanta cedo e vê um cantar de um passarinho, eu tento com

essa composição falar a língua deles para tentar me comunicar com eles. Para tocar

a música você pode inverter a ordem do dedilhado ou utilizar um arpejado mantendo

o estilo e o desenho da música.

6. Qual a mensagem que você deixa para as pessoas que estão iniciando pelos

caminhos da composição no estilo instrumental para viola caipira?

Índio - A Para quem quer compor música, primeiro observe a natureza, observe as

formas das plantas e dos animais, os movimentos, os sons e toda a liberdade que

nos proporciona esse clima da roça. Dessas paisagens você pode tirar vários versos

de música, essa é a verdadeira inspiração para quem quiser fazer música sertaneja

de verdade. Para começar o processo de composição o violeiro tem que ter carinho

com a viola, como se fosse a sua namorada, a viola precisa de muito carinho e

cuidados, afinação em primeiro lugar, fazer com perfeição para a música sair bonita.

Outra coisa, sempre gravar o áudio das frases criadas para não perder o que você

criou, depois você vai juntando as partes até virar uma música inteira. A maior parte

das minhas composições eu fiz de madrugada, eu tentava dormir, mas não

conseguia, era a música batendo na minha orelha, temos que aproveitar todas as

ideias e sempre com um gravador perto para registrar tudo, a música vem na hora
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que você menos espera. A pessoa que quer começar a compor música tradicional

de viola ele tem que se ladear com violeiros antigos, trocar ideias, tocar junto com

eles. Procure fazer arranjos curtos para não ficar enjoativos, arranjos simples

também são muito bonitos e ajudam quem está começando. Um exemplo é a

música Saudades de Araraquara que tem pequenas frases mas mantém sempre

uma condução firme.

Ricardo Vignini

Entrevista realizada com o violeiro e produtor musical Ricardo Vignini no mês de

junho de 2018. Ricardo Vignini além de violeiro, guitarrista é proprietário do estúdio

Bojo Elétrico. Ricardo Vignini produziu diversos artistas inclusive o Índio Cachoeira,

além de acompanhá-lo em apresentações por diversos Estados brasileiros e em

uma turnê pela Europa.

1. Quando e onde você conheceu o violeiro Índio Cachoeira?

Ricardo - Conheci o Cachoeira através do pessoal dos Favoritos da Catira do Seu

Oliveira. Eles iam fazer um disco comigo, que era o “Mensageiro dos Santos Reis e

os Favoritos da Catira”, e eles trouxeram o Cachoeira pra gravar as violas. Eu já

sabia que ele era um cara genial, e assim, quando eu comecei a gravar mesmo, eu

falei: eu tenho que fazer um disco de solo desse cara. E com isso foi acontecendo, e

a gente acabou fazendo 5 discos e um DVD.

2. Qual foi a sua primeira impressão sobre a música que o Cachoeira tocava?

Ricardo - A primeira vez que eu gravei ele, eu percebi que eu estava diante de um

gênio, que era um cara especial, e era o violeiro mais completo que eu já tinha

conhecido. Ele unia tanto essa coisa da música raiz, quanto alguns elementos de

alguns lugares que eu nem sabia de onde que vinha.


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3. Quais foram os trabalhos e projetos que vocês desenvolveram juntos?

Ricardo – Eu produzi diversos projetos com o Cachoeira, fizemos vários shows pelo

Brasil por meio de projetos, um deles foi bem bacana que foi o projeto do Sesc das

Artes, nós fomos para a França em 2012 em um projeto que deu uma excelente

visibilidade pois nós tocamos no Festival Brésilien Espirito Provence, tocamos no

projeto Musique Dans La Rue na praça L’Archevêché, tocamos na Basílica Chapelle

du Sacre Coeur, tocamos no museu Des Tapisseries e também tocamos em um bar

bem bacana chamado Au Goût du Monte. Quanto aos discos, nós gravamos o CD

Solos de Viola Caipira de Índio Cachoeira, o CD Violeiro Bugre patrocinado pela

Petrobras, o CD Convite de Violeiro da dupla Índio Cachoeira e Cuitelinho, o DVD

Um Violeiro Nato, o CD Ricardo Vignini e Índio Cachoeira Encontro de gerações que

ganhamos o Prêmio da Música Brasileira realizado pela Funarte e por último o CD

Índio Cachoeira e Santarém Ponteando Tradições. A música Viola Marruda foi

gravada, além do Índio na viola, ainda tivemos o privilégio de contar com o músico

Julio Santin tocando violão base e o Milton Araújo, que é sobrinho da Helena

Meireles, tocando o baixo.

4. Você sabe dizer se além das influências do meio caipira o Índio Cachoeira

teve influências e inspirações de músicos outras áreas?

Ricardo - Teve uma época que o Cachoeira conviveu com uns músicos bolivianos e

ele acabou absorvendo esse tipo de cultura também. Você pode ver que tem

bastante coisa de viola que ele faz que é latino, tem essa influência né. Ele sabia

tocar bastante essa coisas, e muito bem.

5. O próprio Índio Cachoeira me disse, certa vez, que teve contato com

Dilermando Reis, e que aprendeu coisas através deste contato. Você tem alguma

informação de outros contatos do Índio com o violão solo, em particular, e com a


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música de concerto, em geral? Chegaram a conversar sobre como exatamente esse

contato com o Dilermando, e outros que ele possa ter tido, o influenciaram?

Ricardo - O que ele me disse do Dilermando Reis, foi que uma vez ele assistiu um

show dele lá em Guarulhos. Mas o Cachoeira tirava muita coisa de disco, eu já vi ele

tocando, por exemplo: Sons de carrilhões no violão. Se ele pegava um violão ele

tocava bastante coisa também. E era coisas assim, a metodologia era tirar de ouvido

esse tipo de coisa.

6. Você como produtor de alguns trabalhos do Índio, como era a forma de

registro musical do Índio, quais os recursos que ele usava para registrar suas

músicas. Ele usava cifras? Ele conhecia algum tipo de registro melódico tais como

tablatura e partitura?

Ricardo - Eu sei que ele lia cifras, mas nunca a gente usou esse tipo de coisa. Esse

último disco que a gente fez do Cachoeira com o Santarém, nem metrônomo foi

usado, e nem afinador digital para afinar viola. Ele afinava de ouvido, e era

impressionante o jeito que ele fazia os overdubs que ele ia dobrando as coisas. Ele

no estúdio ele sabia fazer tudo que precisava pra uma música caipira raiz, era desde

o, ele fazia a base de viola, o solo de viola, a base do violão, o baixo no violão e a

primeira e a segunda voz. Se deixasse ele fazia até percussão. Então ele sabia fazer

muito bem isso. Tem uma história que é interessante, que ele foi gravar com o

Cacique e Pajé, e tem um maestro que se chama Oscar Safuán, acho que era um

Paraguaio, que o Cacique queria que o Cachoeira gravasse, o Cachoeira começou

gravar os discos do Cacique e Pajé antes de ser da dupla, ele gravou assim que o

Bambico morreu, o Cacique conheceu ele e chamou ele pra gravar. Eles ensaiavam,

só que ele não sabia essa coisa de ler, chegou na hora de gravar ele tinha

esquecido todas as introduções que ele tinha feito, só que estava esse maestro
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junto, Oscar Safuán, e esse Oscar ele escreveu essas introduções que o Cachoeira

bolava, na hora de gravar ele solfejava isso pra ele, aí ele lembrava, e foi assim que

ele gravou esse disco. Eu não tenho certeza, mas acho que é um disco que se

chama viola no samba do Cacique e Pajé, que é antes do Cachoeira ser o Pajé, ele

fez parte desse trabalho.

Zé Helder

Entrevista realizada com o violeiro e professor de viola Zé Helder Vignini no mês de

junho de 2018. Zé Helder assim como Ricardo Vignini, acompanhou o Índio

Cachoeira por diversos shows, palestras, cursos e oficinas de viola caipira.

1. Quando e onde você conheceu o violeiro Índio Cachoeira?

Zé Helder - Eu conheci o Cachoeira na casa do Seu Oliveira na época eles estavam

gravando o disco dos Mensageiros dos Santos Reis e os Favoritos da Catira, que é

na ocasião que o Ricardo conheceu o Cachoeira como músico gravando nesse

disco, e eu ouvi falar pela boca do Ricardo, tem um cara extraordinário gravando, e

eu frequentava muito a casa do Seu Oliveira, e um belo dia eu encontrei com o

Cachoeira pessoalmente ali. Então, o meu primeiro contato foi ali por volta da casa

do Seu Oliveira, onde aconteceram vários outros encontros desse tipo da música

caipira da música de viola em geral. Mai não sei te dizer exatamente quando, faz

muito mais de dez anos atrás.

2. Qual foi a sua primeira impressão sobre a música que o Cachoeira tocava?

Zé Helder – A primeira impressão foi o que ele foi a vida inteira, um sujeito simples

de baixa escolaridade, intelectualmente um cara muito simples, mas quando ele

tocava ele tinha uma universalidade na música dele que impressionava todo mundo,

aquele Prelúdio dos Pássaros dele, eu lembro do Paulo Freire falando de onde ele
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tirou aquela música. E muitas outras coisas tinha uma inspiração muito sofisticada

para o tipo de pessoa que ele era, então ele realmente impressionava pela

musicalidade que era única dele.

3. Quais foram os trabalhos e projetos que vocês desenvolveram juntos?

Zé Helder – Teve um curso de viola que a gente desenvolveu juntos por mais de dez

anos aqui em São Paulo, todo ano em janeiro você mesmo participou por vários

anos seguidos, era uma ocasião que nós estávamos sempre juntos. A gente gravou

uma música juntos, uma música que eu fiz parceria com ele, que eu escrevi a letra

da música dele que foi Seresta na Roça. E teve muitos shows, a gente fez circuito

Sesc das Artes rodando junto em ônibus em muitas viagens. E tivemos muitas

ocasiões de encontro com amigos, o Cachoeira era do círculo ali do Seu Oliveira, do

pessoal do Matuto Moderno que eu faço parte, então teve muito encontro que nós

nos encontramos fora de obrigação profissional.

4. Você sabe dizer se além das influências do meio caipira o Índio Cachoeira

teve influências e inspirações de músicos outras áreas?

Zé Helder – O Cachoeira com eu disse era um cara muito simplório e ele não falava

muito do que ele ouvia, a musicalidade dele era muito espontânea por um lado, mas

por outro ele teve contato com gente da Bolívia e outros vizinhos nossos latino

americanos de onde ele tirou algumas coisas assim que influenciaram bastante a

música dele, ele tinha um toque que lembrava um pouco a Cordilheira dos Andes,

aquela coisa de musica latina mesmo. Ele tinha muita segurança de tocar com

qualquer um, ele sentava e se garantia com a sua viola na mão.

5. O próprio Índio Cachoeira me disse, certa vez, que teve contato com

Dilermando Reis, e que aprendeu coisas através deste contato. Você tem alguma
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informação de outros contatos do Índio com o violão solo, em particular, e com a

música de concerto, em geral? Chegaram a conversar sobre como exatamente esse

contato com o Dilermando, e outros que ele possa ter tido, o influenciaram?

Zé Helder – Bom, talvez eu tenha perdido um bom tempo de ter tido uns papos mais

legais assim com o Cachoeira a esse respeito, sobre Dilermando Reis etc, e tal, mas

Dilermando influenciou a geração do Cachoeira inteirinha, não tem que tenha

passado, da faixa de idade do Cachoeira, sem ter contato com as serestas, com a

coisa do violão brasileiro, a linguagem toda que esses caras desenvolveram. O

Cachoeira era um cara muito atento à influências, eu tive algumas oportunidades de

mostrar algumas coisas pra ele tipo Lenine e outras coisas que eu tinha em casa, e

como ele tinha um ouvido muito apurado ele falava: Esse cara é bom músico. Ele

sabia apreciar, ele tinha um senso crítico muito bacana.

6. Você como amigo e parceiro em alguns trabalhos do Índio, você sabe dizer

como era a forma de registro musical do Índio, quais os recursos que ele usava para

registrar suas músicas? Ele usava cifras? Ele conhecia algum tipo de registro

melódico tais como tablatura e partitura?

Zé Helder – Bom o Cachoeira não sabia registrar absolutamente nada, quando muito

ele talvez ele tivesse algum gravador na casa dele, mas ele tinha uma memória

incrível, ele gravava tudo de memória, escrevia as letras, mas assim, cifra e partitura

ele não conhecia nada, a música dele era cem por cento auditiva, o registro dele era

realmente memória.

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