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VOZES SILENCIADAS: APONTAMENTOS SOBRE VIOLAÇÕES DE DIREITOS

HUMANOS CONTRA MULHERES NA DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA

Letícia Garcia Ribeiro Dyniewicz1

Resumo: Durante a ditadura civil-militar brasileira, milhares de mulheres sofreram violências


perpetradas pelo Estado para que esse se mantivesse autoritário mas também foram vítimas de
seus companheiros dentro dos movimentos de resistência. Assim, esse trabalho se propõe a
demonstrar de que forma a ditadura civil militar no Brasil violou os direitos das mulheres.
Para tanto, primeiramente, serão analisados os aspectos históricos e jurídicos que permitiram
a instauração da ditadura civil militar no Brasil, as violações de direitos humanos ali
perpetradas, bem como o processo de justiça de transição. Essa leitura leva em consideração
que a história não é uma categoria universal e que, portanto, é preciso que a história seja
narrada e contada pelas mulheres que também protagonizaram esse momento. Posteriormente,
o estudo se volta para as violações de direitos humanos cometidas contra as mulheres. Busca
compreender, a partir dos relatos das vítimas, principalmente no Relatório da Comissão
Nacional da Verdade, qual é a especificidade da violência contra a mulher nesse período.
Nesse sentido, conclui-se que há a necessidade do resgate da memória das mulheres
fundamental para que as instituições brasileiras não reproduzam tais violências.
Palavras-chave: direitos humanos, mulheres, ditadura civil militar

1 INTRODUÇÃO
Diante de um cenário de retrocesso no pensar e no fazer democrático brasileiro que
se instaura a partir do impichamento da Presidente Dilma Roussef, torna-se ainda mais
premente a necessidade de se repensar a ditadura civil-militar brasileira e, principalmente,
sobre o processo de justiça de transição brasileiro. Nesse sentido, propõe-se aqui uma breve
reflexão acerca do que foi a ditadura civil-militar brasileira (quem eram os grupos sociais que
a sustentaram), como se deu nosso processo de abertura democrática e de justiça de transição.
Em um segundo momento, será analisada a partir da hierarquização da sociedade entre
público e privado problematizada pelas teorias feministas, as violações de Direitos Humanos
sofridas pelas mulheres e de que forma a justiça de transição leva em conta essa questão.

2Ditadura Civil-Militar Brasileira e Processo de Justiça de Transição

1
Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Professora pesquisadora do
Núcleo Maria da Penha-UEM>Doutora em Direito pela PUC-Rio. Mestre em Direito pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
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Dentro do contexto das ditaduras militares da América Latina da década de 70, a
ditadura civil-militar brasileira que se inicia dentro do processo de Guerra Fria, em 1964, se
estenderá até 1985. Sob o pretexto da ameaça comunista, enquanto Jango se preparava para
realizar as reformas de base no país – reforma agrária e encanamento das refinarias de
petróleo -, as forças conservadoras do país apoiadas pelos Estados Unidos da América
(SILVA, p. 63) criavam a atmosfera no país para a deflagração do golpe.
Importante ressaltar que o golpe não teve apenas um caráter militar. Além de ter sido
apoiado pelos norte-americanos, teve também grande apoio, nas ruas e em financiamente, da
sociedade civil brasileira: empresários, imprensa e igreja.Napolitano (2014, p. 42) afirma que:
Envolveu um conjunto heterogêneo de novos e velhos conspiradores contra Jango e
contra o trabalhismo: civis e militares, liberais e autoritários, empresários e políticos,
classe média e burguesia. Todos unidos pelo anticomunismo, a doença infantil do
antirreformismo dos conservadores.

René Armand Dreifuss (1981, p. 161) explicita que dois institutos tiveram
participação decisiva na derrubada de Jango. O autor afirma que “intelectuais orgânicos de
interesses orgânicos multinacionais e associados formaram um complexo político-militar, o
IPES/IBAD2“. Buscava-se por meio desse complexo agir contra o governo de Jango,
utilizando-se de campanhas ideológicas e políticas que pregavam ideias democráticas, cristãs
e liberais. Dreifuss (1981, p. 397) conclui que por meio de suporte material, “o complexo
IPES/IBAD e os oficiais do ESG organizaram a tomada do aparelho do Estado e
estabeleceram uma nova relação de forças políticas no poder”.
Para institucionalização do golpe e legitimação do próximo governo, edita-se o AI-1
(Ato Institucional nº1) objetivando justificar os atos de exceção como, por exemplo,
investigação de atividades tidas como subversivas. O ato encerra com o maior período
democrático que já tinha sido vivenciado no país, o qual teve início com a Constituição de
1946, a qual foi promulgada pelas forças populares logo após o fim da Segunda Guerra
Mundial. A partir desse momento, legitimam-se inúmeras violações de Direitos Humanos
perpetradas pelos agentes do Estado de forma sistemática. Instaurava-se um regime autoritário

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O IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), criado em 1961, era responsável por promover uma
campanha política, ideológica e militar, liderada por empresários brasileiros e multinacionais. Já o IBAD
(Instituto Brasileiro de Ação Democrática) teve início no final da década de 50 com o propósito de defender a
democracia e extinguir, através da imprensa e de sindicatos, qualquer evidência do comunismo. De acordo com
Dreifuss (1981), o “complexo IPES/IBAD” se tornou o verdadeiro partido da burguesia durante o regime militar.

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e violento, resultando em prisões, torturas e mortes de brasileiros e brasileiras que não se
alinhavam à ideologia golpista (FERREIRA, GOMES, 2014)3.
A Constituição de 1967, ao contrário da Constituição de 1946 – tida como a última
carta democrática anterior à de 1988 -, foi outorgada e tendia à centralização dos poderes,
fortalecendo o Poder Executivo e fornecendo mecanismos para que este legislasse, deixando o
Congresso Nacional em plano secundário (SILVA NETO, 2006, p.71). No ano seguinte, com
a publicação do AI-5 e o consequente fechamento do Congresso.A partir desse momento, as
brasileiras e os brasileiros passam a viver a exceção como normalidade (TELES, 2011).
Assim, em nome, na maioria das vezes, da segurança nacional, o instituto do estado de sítio,
além dos atos institucionais, permitiu que esse fosse um período marcado pela exceção
(SCHMITT, 2009).
A sinalização para o fim desse período de severas violações de Direitos Humanos não
foi propriamente uma vitória dos movimentos e da população que lutavam pela
redemocratização brasileira. Foi um processo de negociação, “processo lento e gradual” que
teve início em 1974 com a revogação do AI-5. Em 1979, promulga-se a chamada Lei da
Anistia, lei 6.638, a qual anistiava tanto os militantes e as militantes políticos que se
envolveram na luta contra a ditadura militar como os agentes e as agentes do Estado que
haviam cometido as violações de Direitos Humanos já citadas.
Tal legislação, tal qual afirma Mezzaroba (2006), teria sido elaborada com cerne em
valores como esquecimento e pacificação, os quais impedem que a sociedade conheça a
verdade. Isso fica muito claro quando se percebe que esses agentes, além de não terem sido
punidos, também não tiveram nomes divulgados. Tal transição atenuou nosso processo de
democratização.Uma Lei de Anistia imposta à sociedade pelo Estado não foi privilégio
brasileiro. Impôs-se a diversos países do Cone Sul que tiveram suas democracias dilaceradas
nesse mesmo período (QUINHALHA, 2012).

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Priori explica como a estrutura política do país e as liberdades individuais foram remodeladas. “Com esse ato,
os militares não só ditavam novas regras constitucionais, como impunham profundas remodelações no sistema
de segurança do Estado. Por meio do AI-1, foi institucionalizado o sistema de eleição indireta para Presidente da
República, bem como foi dado poderes ao presidente para ditar nova constituição, fechar o congresso, decretar
estado de sítio, impor investigação sumária aos funcionários públicos contratados ou eleitos, abrir inquéritos e
processos para apurar responsabilidades pela prática de crime contra o Estado ou contra a ordem política e
social, suspender direitos políticos de cidadãos pelo prazo de dez anos e cassar mandatos legislativos de
deputados federais, estaduais ou vereadores. (PRIORI et al, 2012, p. 200)

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A fase seguinte foi a luta popular por “Diretas Já!”, entre 1983 e 1984, o que garante a
eleição de um presidente civil pelo colégio eleitoral. Enquanto, o último momento desse
processo se deu com a redemocratização, que teve como base um processo constituinte4
envolvendo grande parte dos movimentos sociais brasileiros, o qual elaborou e promulgoua
Constituição de 1988, que salvaguardava direitos civis e políticos, além de consolidar direitos
sociais. Mesmo com a promulgação da Constituição Cidadã, a história brasileira do período
ditatorial permaneceu velada.
Vinte anos depois, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil propõe
Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental perante o Supremo Tribunal Federal. A
ação tinha como objetivo reverter a interpretação da Lei de Anistia. No entanto, essa foi
julgada improcedente por maioria (sete votos contra 2) em 28 de abril de 2010.
Internacionalmente, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos no Caso Araguaia por desaparecimento de 70 vítimas. Esse processo teve origem
em uma causa impetrada por 22 familiares de desparecidos perante a Justiça Federal
Brasileira no ano de 1982. Os familiares pediam informações sobre as circunstâncias do
desaparecimento. Depois de anos e sem decisão do Estado brasileiro, o caso foi levado ao
Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 2005.
Após a condenação, levando em consideração as recomendações da Corte, e no
sentido de aprofundar o processo democrático brasileiro, foi lançado por meio de decreto, o
Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que prevê o direito à memória e à
verdade. Tal Programa incorpora, por meio de suas Diretrizes 23, 24 e 25, resoluções da 11
Conferência Nacional de Direitos Humanos. Tais diretrizes são uma tentativa do governo
brasileiro em lidar com as cicatrizes de práticas autoritárias da ditadura civil militar
(SCHINCARIOL, 2014). Daí a criação da lei 15.288 que estabeleceu a Comissão nacional da
Verdade e da Lei 12.525 que prevê acesso aos documentos públicos5.
Tendo em vista esse panorama, o conceito de justiça de transição é tratado por
diversos autores, primeiramente no campo da Ciência Política, e, depois, no âmbito dos
Direitos Humanos quando se trata das reparações. Tradicionalmente essa pode ser

4
Ressalta-se, já que a finalidade deste trabalho é discutir a partir de uma perspectiva de gênero as violações de
Direitos Humanos, que durante o processo constituinte brasileiro de 1988, o “Lobby do Batom” garantiu a
eleição de 26 parlamentares mulheres. Apesar de um número reduzido, representavam quase 5% do Congresso
Constituinte. A bancada conseguiu uma certa coesão e a aprovação de uma pauta progressista. Ver mais em:
ALVES, Branca Moreira e PINTANGUY. O Que é Feminismo? Coleção Primeiros Passos. Brasiliense
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Quinalha, já em 2012, apontava para as “limitações dos processos democráticos dessas sociedades em relação às
experiências de autoritarismo recentemente vividas”.
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compreendida dentro dos seguintes âmbitos, tal qual afirma Quinalha (2012, p. 158): “(...)
dimensões que dizem respeito à verdade e à memória, à reforma profunda nas instituições no
sentido de democratizá-las, medidas de justiça que reparem as violações do passado e
reforcem o imperativo da não repetição”.
Esse conceito tradicional já é questionado por muitos autores. As críticas são
inúmeras. Pode-se citar aqui a amplitude do conceito de democracia, que é o que se deseja
recuperar; o padrão liberal e legalista aplicado ao conceito; a busca da reconstituição apenas
de direitos civis e políticos; e, por último, e o que nos aqui mais interessa, a dificuldade de se
passar de um modelo universal para um singular (SCHINCARIOL, 2014).

3 As violações de direitos humanos contra às mulheres no período da ditadura e o


Relatório da Comissão Nacional da Verdade
Analisando os depoimentos realizados por pessoas mulheres coletados pela
Comissão Nacional da Verdade e pelos processos judiciais consolidados no projeto Brasil
Nunca Mais, é possível perceber que as mulheres sofreram diversas formas de violência:
física, sexual, moral, psicológica. Tendo em vista esse fato, procura-se nesse item demonstrar
a especificidade da violência contra as mulheres, a qual tentou destitui-las do seu lugar
feminino, fosse ele de mulher, de mãe.
O primeiro ponto que merece ser destacado é que para a compreensão da violência
contra às mulheres perpetrada pelo Estado nesse período implica a discussão que remete a
principal discussão do feminismo, qual seja, a dicotomia público/privado.
CarolePateman(PATEMAN, 1988), nesse sentido, afirma que essa dicotomia é essencial na
luta e no pensamento feminista dos últimos dois séculos. A partir dessa dualidade foi possível
naturalizar o papel da mulher no espaço privado, que seria necessário para a própria
sobrevivência da espécie (BIROLI, 2014).
Constrói-se, a partir da teoria liberal de Estado, a noção da esfera pública totalmente
dissociada da privada. Enquanto a primeira é o lugar da razão e da universalidade, a partir da
modernidade, a segunda liga-se ao campo do íntimo e, portanto, do afeto. Percebe-se que
dentro do liberalismo, essa última deve permanecer como um espaço que deve ser mantido
livre de interferência do Estado, o que isolaria “a política das relações de poder na vida
cotidiana, negando ou desligando o caráter político e conflitivo das relações de trabalho e das
relações familiares” (BIROLI, 2014, p. 31).
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Essa construção incide diretamente na vida das mulheres pois ao impedir a
interferência do Estado na vida privada das mulheres, impede que se altere a estrutura da
sociedade na qual não há igualdade entre homens e mulheres. Além disso, ao naturalizar o
espaço privado como naturalmente das mulheres, passa a atribuir valor as mulheres que se
ligam às atividades compreendidas como do espaço privado, como o cuidado com os filhos,
com os idosos e com a casa e a desvalorizar mulheres que não se comportem dessa maneira.
Por último, impedem que de fato as mulheres façam suas escolhas de forma autônoma. Sendo
assim, Biroli (2014, p. 36) conclui que em uma sociedade justa, é necessário que as relações
familiares também o sejam, consequentemente, uma sociedade só será democrática se houver
igualdade em “todas as esferas da vida”.
Esse breve panorama sobre a discussão do público e do privado em relação às
mulheres se reflete na resistência ao golpe tanto no que diz respeito ao seus vínculos com o
Estado quanto com seus companheiros de luta. As mulheres participaram ativamente de todo
o processo, bem como sofreram gravíssimas violências por parte do Estado. Nesse sentido,
verifica-se de que forma esse processo foi compreendido mantendo assimetria nas relações de
gênero.
A participação de mulheres na luta armada, que durou de 1969 a 1974, fez com que
elas sofressem discriminações por parte de seus companheiros e de seus rivais, tanto pela
superproteção, como pela subestimação de sua capacidade física e intelectual. Não se
compreendia as mulheres como sujeitas autônomas, que podiam escolher participar e agir
dentro de uma luta política. Mesmo seus companheiros tratavam-na como alguém a ser
tutelada, mantendo assim a mulher como indigna do espaço público.
Quando caíram nas mãos dos inimigos, enfrentavam a tortura e seus algozes
aproveitaram-se delas para a prática de violência sexual” (Teles, 1999, p. 70). Além da
presença de guerrilheiras na selva, o cenário urbano também contou com a presença de
mulheres. Por não chamarem a atenção de militares – que estavam acostumados com homens
barbados e armados – e por terem facilidade para obtenção de documentos falsos, as mulheres
desempenharam papel bastante importante na guerrilha urbana.
Esse período de participação das mulheres na resistência é marcado nos Estados
Unidos e na Europa Ocidental pela eclosão dos feminismos. Nos países do Cone Sul, a
repressão tornou quase impossível, devido às ditaduras, a organização de movimentos
feministas. A organização política, além de reprimida pelo Estado, quando permitida, estava

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toda centrada no processo de redemocratização, o que impediu que as pautas feministas
fossem desenvolvidas (PEDRO, 2010).
Apesar disso, é importante notar, tal como faz Joana Maria Pedro (2010), que
existiram grupos feministas durante o período ditatorial. Estes estavam sempre ligados à
esquerda, o que significava, dentro deste contexto estar vinculado ou ser simpatizante da
resistência. Ao mesmo tempo, algumas mulheres exiladas também envolveram-se em
movimentos feministas foram do país, o que, ao mesmo tempo que contribuiu para o debate
na redemocratização, também a trouxe colonizada para o país.
Nesse sentido cabe analisarmos dois casos de violência sexual para compreendermos o
que foi acima mencionado. Já no primeiro depoimento no Relatório da Comissão Nacional da
Verdade, de 27 de abril de 2013, Izabel Fávero afirma:
Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um karma, a
gente além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra era
mesmo “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que
está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”
(CNV, 2014, p. 400)

Seguindo o mesmo raciocínio, Colling (1997) sustenta a tese de que o Estado tentava
descaracterizar a “normalidade” da mulher, tratá-la como desviante. Por isso, a alusão à
“promiscuidade” era bastante comum entre os torturadores. Reforçando a cisão entre público
e privado e, portanto, a desvalorização de características da mulher que atuava politicamente.
Pagu, entrevistada por Colling, militante desde os 17 anos relata que “eles queriam, na
verdade, era atingir a mulher, era dizer que a mulher que se mete em atividades políticas, ou
em militância política, é uma mulher que no mínimo é prostituta, dada a vícios, dada a
qualquer outra coisa menos séria” (COLLING, 1997, p. 102).
Desse modo, o regime militar reforçava o estereótipo de gênero que podem ser
deduzidos da clivagem público e privado. Sendo assim, as mulheres deveriam se enquadrar
em características que nos remetem ao espaço do privado (da família e do cuidado), tais como
fraqueza, submissão, dependência, castidade, pudor, manutenção de valores e tradições
familiares (CNV, 2014, p. 400). Ana Maria Gomes em seu relato comenta que foi
aconselhado pelo delegado a não se “desviar do seu caminho” de moça de família:
Ele [delegado] disse: “vocês são moças, jovens, que provavelmente pretendem casar,
constituir família e fica muito mal, moças como vocês estarem frequentando
sindicato, estarem metidas nesse tipo de coisa, então vocês vão para casa, tenham
juízo e nunca mais se metam nessa” [...] E [é interessante ver] como ele também nos
ameaçava com o perigo de não casar, com o perigo de não cumprir com aquilo que
toda mulher sonha. (CNV, p. 405)

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Além de estarem preocupados com o “bom caminho” que as moças deveriam seguir,
também se nota que se atribui a mulher militante as qualidades de mal amada e mal educada.
Denominações de amante e amásia também eram comuns (COLLING, 1997). Interessava,
portanto aos torturadores compreender se as mulheres se relacionavam com algum militante,
se algum homem era responsável pela sua presença no movimento, bem como se ocupava
algum papel desviante do tradicional: adúltera, esposa que não cumpria com seu papel, mãe
que havia abandonado o filho.A ativista política também era rotulada de prostituta, “puta
comunista” e, por isso, seria merecedora de violações de natureza sexual. Maria Aparecida
Costa relata nesse sentido:
Pelo fato de você ser mulher, também você percebe que há talvez, às vezes, uma
raiva muito maior, eu não sei se é pela questão de achar “por que uma mulher está
fazendo isso? Por que uma moça está fazendo isso?” E é uma forma, talvez, muito
de querer te desqualificar de todas as maneiras. Inclusive, o mínimo que você ouve é
que você é uma “vaca”. São as boas vindas. É a maneira como você é chamado. E
isso foi crescendo e eu acho que você se sente exposto e você é exposto, você enfim,
se encontra diante deles de uma dupla maneira: você está inteiramente nas mãos
enquanto ser humano e na tua condição feminina você está nu, você está à mercê,
não é? Disso tudo. [...] Como os homens também foram, mas talvez, por ser uma
mulher, eu acho que isso tem um peso terrível. Pela tua formação, pela formação
social, ideológica. Por si já é uma exposição e aumenta ainda mais a tua exposição
[...] Normalmente você é educado e visto para proteger a sua feminilidade para que
ela se exponha em outras situações [...] de escolha. (CNV, 2014, p. 404)

No Relatório da Comissão Nacional da Verdade há inúmeros outros relatos de


mulheres que foram violentadas pelo Estado brasileiro nesse período da ditadura civil-militar.
No entanto, tal como discutido num momento anterior, sabe-se que nem o Estado nem os
agentes violentadores de mulheres não foram punidos.
Faz-se necessário um aprofundamento de justiça de transição no Brasil. Nesse sentido,
a primeira crítica que deve ser feita e que pode ser feita a partir das teorias feministas refere-
se a necessidade se pensar a justiça de transição, em seu aspecto memória e verdade, de modo
não universalizante. Tal qual Walter Benjamin afirma, o historicista sempre terá uma empatia
maior pela história do vencedor, o que beneficia os dominadores (BENJAMIN, 2004). Nesse
caso, primeiro é dominador o Estado mas também, como será apresentado, os homenssão
dominadores. Há, portanto, uma invisibilização da luta das mulheres, bem como a
manutenção daquela clivagem inicial entre público e privado.
Constata-se que no Relatório da Comissão Nacional da Verdade há um capítulo
dedicado às mulheres e às crianças. Ora, atrelar as crianças as mulheres reitera a discussão do

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feminismo no sentido de que cabe a mulher cuidar da família e, portanto, manter-se no espaço
privado.
Importante também rememorar que ao contrário do que se pactuou na Declaração
Universal em 1948, no qual não se privilegiou nenhuma minoria, justamente pelo temor
próximo do que havia ocorrido com os judeus no holocausto, atualmente, reconhece-se a
necessidade de tutelar o direito de grupos específicos. As mulheres, devido a diversos
processos de lutas dos movimentos feministas, conquistaram proteção específica
(MACHADO e GROSSI, 2015). Desde a década de 90 que os pactos internacionais relativos
aos direitos humanos das mulheres o direito à diferença, o que permite tratar da questão de
gênero como uma construção social6.
Sendo a justiça de transição uma questão de Direitos Humanos, deve também levar em
conta às diferenças das formas de violências perpetradas contra as mulheres. Essas passavam
por um duplo processo de discriminação. O primeiro dentro do próprio movimento político. A
esquerda tratava a mulher como coadjuvante, nunca ocupavam papel de liderança, por
exemplo. Aquelas que queriam se destacar passavam por um processo de masculinização
(COLLING, 1997). Tal narrativa precisa ser inserida dentro da história oficial para de fato
ocorra uma redemocratização. Já, para os agentes repressores, essas ou estavam lá por
desejarem estar próxima de algum homem ou porque não teriam recebido boa educação em
casa ou por serem prostitutas, ou ainda, homossexuais. Em lugar algum, a mulher militante
política tinha sua luta reconhecida.7
Levando em consideração esse contexto, há a necessidade de se pensar a história de
forma crítica, para além do seu viés positivista ou historicista8. Uma concepção de história
que leve em consideração a narrativa dos vencidos é a proposta por Walter Benjamin, que
percebe o tempo como uma justaposição de momentos com sentidos diferentes e que não se
somam em direção ao progresso.

6
Dentro da teoria feminista, Butler questiona até mesmo a construção social do gênero. Para a autora, a
construção do sexo também pode ser considerada social, já que a determinação do sexo sempre passa por uma
escolha, seja ela genética, anatômica ou hormonal. Ver mais em: BUTLER, Judith. Problemas de Gênero:
feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
7
Angela Davis, em Mulheres, raça e classe, trabalho que ressalta também a história as mulheres, aponta para o
fato de que até mesmo a os estudos em relação a essas mulheres apontavam apenas para sua “promiscuidade
sexual” ou suas habilidades “matriarcais”, sem apontá-las como sujeitos protagonistas da resistência contra a
escravidão e também na luta dos direitos das mulheres. Ver mais em: DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe.
Rio de Janeiro: Boitempo, 2016.
8
Ver mais em FONSECA, Ricardo Marcelo. Walter Benjamin, a temporalidade e o direito. In: Anais do Curso
“A Escola de Frankfurt no Direito, realizado pelo Centro Acadêmico Hugo Simas de 15 a 18 de julho de 1987.
Curitiba: EDIBEJ, 1997.
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Perceber, portanto, a história como um espaço repleto de fragmentos muito
diferenciados, sem linearidade, sem relação de causa e consequência (BENJAMIN, 2004) é
essencial para contar a história das mulheres que participaram da ditadura civil-militar. Isso
porque tal concepção permite uma acepção da história a partir de um viés não universalizante.
A história repleta de cacos, ruídos, fragmentos do passado, complexa, não linear ressalta as
diferenças e nos aproxima da “verdadeira imagem do passado” a partir de uma imagem
dialética. Isso é necessário porque o historicismo tradicional “quer apagar sãos os buracos da
narrativa, que indicam tantas brechas possíveis no continuum da dominação” (GAGNEBIN,
1999).

4 CONCLUSÃO
Sendo assim, o que se pode constatar dessa breve análise, bem como do momento
político que vivemos, no qual o déficit democrático de forma alguma foi superado, é que é
urgente o aprofundamento da justiça de transição no Brasil. Apesar da dificuldade em
vislumbrar uma possibilidade desse aprofundamento agora, é preciso registrar que os
governos Lula e Dilma tinham essa obrigação.
Em segundo lugar, há a necessidade de que esse processo leve em consideração a
questão de gênero. É possível por meio de processos como esses ressignificar narrativas.
Nesse sentido, uma justiça de transição afinada com as teorias feministas pode permitir no
âmbito da memória uma redefinição dos papeis. Por último, a criação de espaços de memória
e de documentos de memória que levem a sério os feminismos contribuiriam para
desnaturalizar a dualidade entre público e privado ao demonstrar o papel fundamental das
mulheres nos movimentos de resistência.

5 REFERÊNCIAS
ALVES, Branca Moreira e PINTANGUY. O Que é Feminismo? Coleção Primeiros Passos.
Brasiliense
ARQUIDIOCESE de São Paulo. Projeto“Brasil: Nunca Mais”. São Paulo, 1985.
BAGGIO, R. C. Marcas da Memória: a atuação da Comissão de Anistia no campo das
políticas públicas de transição no Brasil. Ciências Sociais Unisinos, São Leopoldo, Vol. 48,
N. 2, p. 111-118, mai/ago 2012.

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BENJAMIN, Walter. O Anjo da História. Obras Escolhidas 4. Lisboa: Assirio e Alvim,
2004.
BIROLI, Flávia. MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo:
Boitempo, 2010.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório final, Volume 1. Disponível em:
<http://www.cnv.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_digital.pdf>. Acesso em: 21 set.
2016.
COLLING, Ana Maria. A Resistência da Mulher à Ditadura Militar no Brasil. Rio de
Janeiro: Record, 1997.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Rio de Janeiro: Boitempo, 2016.
DREIFUSS. René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de
Estado. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1981.
FONSECA, Ricardo Marcelo. Walter Benjamin, a temporalidade e o direito. In: Anais do
Curso “A Escola de Frankfurt no Direito, realizado pelo Centro Acadêmico Hugo Simas de 15
a 18 de julho de 1987. Curitiba: EDIBEJ, 1997.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1999.
MACHADO, Isadora Vier; GROSSI, Miriam Pillar. Da dor no corpo à dor na alma: o
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SilentVoices: A
briefstudyaboutHumanRightsviolationsagainstwomenduringtheBrazilian civil
militarydictatorship
Abstract: Duringthe civil militarydictatorship,
Brazilianstatetorturedandusedviolenceagainstthousandsofwomenwhoresistedtotheauthorithari
angovernment. Thesewomenwerealso in na assimetricrelationwiththeir male
partnerswhowerealsoresisting. Taking it intoaccount, thispaperaimstodemonstratehowthe
militar civil dictatorship in Brazilcontributedtomaintainthedichotomypublic-private in
womenrelationships. Furthermore, it higlightstheimportanceof a deepertransitional justice
processwhichtakesintoaccountfemministtheories.
Key-words: civil militarydictatorship; womenrights; transitional justice

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11& 13 Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X

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