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VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MENINAS: ENTRELAÇAMENTOS

ENTRE AS CATEGORIAS GÊNERO, INFÂNCIA E VIOLÊNCIA

Raquel Baptista Spaziani1


Ana Cláudia Bortolozzi Maia2

Resumo: A violência sexual contra meninas vai além de um ato impulsionado por um desejo sexual
que não pode ser contido, sendo produzida por discursos que promovem relações assimétricas entre
adultos/crianças e homens/mulheres. A maneira centralizada da masculinidade, enquanto o homem
performatizando o “macho” – referência às experiências de masculinidades que se relacionam à
agressividade, violência e ao uso de poder – o coloca em posição de privilégio dentre as outras
identidades. Esta hierarquia se materializa nas situações de violência sexual contra meninas,
demonstrando os lugares sociais naturalizados atribuídos às masculinidades e feminilidades. É
comum a representação da sexualidade masculina enquanto instintivamente incontrolável e
animalesca, sendo a socialização dos homens voltada para o exercício da agressividade e poder,
ensinando-os que não há limites para ter os seus desejos atendidos. Em contrapartida, desde pequenas
as meninas são educadas para a doçura e a disciplina, sendo representadas pela publicidade com
gestos e roupas remetendo à inocência, porém em posições sedutoras e erotizadas. Ao retratar o corpo
de meninas destas maneiras, constrói-se também um modo de representa-las: como objetos a serem
consumidos. Diante disso, faz-se necessário questionar sobre quais mecanismos têm propiciado o
borramento de fronteiras entre idade adulta e infância, bem como de que maneira a educação das
masculinidades e feminilidades “autoriza” a violência sexual contra meninas.
Palavras-chave: Violência sexual contra meninas. Gênero. Infância.

A violência sexual na infância pode ser compreendida como as situações em que adultos
utilizam as crianças como objetos sexuais a fim de ter os seus desejos pessoais atendidos, em
detrimento do bem-estar das vítimas. Nem sempre essa violência envolve a relação sexual,
relacionando-se também ao assédio, exibicionismo, carícias, voyeurismo etc. Esta violência é um ato
extremado de domínio, no qual a vítima não detém liberdade ou possibilidade de fuga. De forma
extremamente limitada a criança vitimizada pode oferecer resistência, como nas situações em que
demonstra indicadores da vitimização, em uma espécie de pedido de socorro (XAVIER FILHA,
2008).
Aliada a esta questão, há os índices que demonstram que a maior parte dos casos de violência
sexual contra crianças ocorre de modo intrafamiliar, ou seja, tem como perpetradores/as pessoas da
família da vítima. Isso faz com que as relações familiares de afeto, dependência, complacência e
medo dificultem a revelação da violência, silenciando as crianças de diversas maneiras.

1
Doutoranda em Educação Escolar. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras - Pós-
Graduação em Educação Escolar. Araraquara/SP - Brasil.
2
Docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e
Aprendizagem. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Bauru/SP - Brasil.

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De acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR,
2015), a maior parte dos casos notificados envolvem homens perpetradores e meninas vitimizadas.
Deste modo, podemos entender a violência sexual contra meninas como um entrelaçamento entre as
questões de gênero e de geração. Isso porque há, em nossa sociedade, aspectos estruturais que
promovem e legitimam essa forma de violência, como o investimento social nas masculinidades
hegemônicas e nas feminilidades idealizadas, bem como na assimetria de poder entre adultos/as e
crianças.
A fragilidade das mulheres produzidas nas relações de gênero que foram se
construindo por meio de discursos machistas e patriarcais aponta a maior
vulnerabilidade de meninas em relação às violências de qualquer natureza,
devido sua condição de mulher. Nessa mesma sociedade, essas meninas
vitimadas são culpabilizadas pelas violências que sofrem, tendo seus
comportamentos cobrados de acordo com as condutas e os comportamentos
ensinados e esperados para meninas e mulheres (MARTINS, 2016, p. 251).

Neste sentido, a violência sexual contra meninas não é impulsionada por um ato de descontrole
de um homem com transtorno mental que não consegue conter os seus desejos – como o discurso da
pedofilia muitas vezes o representa. Do contrário, há um investimento constante para que os homens
se sintam legitimados a terem os seus “impulsos” atendidos por meninas, educadas para a submissão
e para a docilidade.

Cultura do estupro: as dimensões de gênero na produção da violência sexual contra meninas

Embora seja comum o discurso de que meninas precisam ser protegidas da violência sexual,
esta violência é frequente e naturalizada de diversas maneiras, seja pelo uso de linguagem misógina,
como pela objetificação dos corpos das meninas e pela espetacularização das situações de violência
sexual. Estas práticas culturais são denominadas de “cultura do estupro” e demonstram o desinteresse
pelos direitos e pela segurança das meninas (WOMEN’S CENTER MARCHALL UNIVERSITY,
2017).
Denominar esse fenômeno de “cultura do estupro” enfatiza que a violência sexual contra
meninas não são exceções, mas sim casos corriqueiros acarretados pelas desigualdades de gênero
entre homens e mulheres. A naturalização de ações misóginas e sexistas se expressam cotidianamente
por meio da culpabilização da vítima de violência sexual; das piadas e deboche com essa violência;
da transmissão de cenas de estupro em filmes e programas televisivos de modo banalizado; das
representações das expressões da sexualidade masculina como instintivamente agressiva e da

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feminina como passiva e submissa (ONUBR, 2016; WOMEN’S CENTER MARCHALL
UNIVERSITY, 2017).
Neste sentido, apesar da violência sexual contra meninas ser representada, muitas vezes, como
o resultado de uma preferência sexual e de um transtorno do autor da violência, analisando o
fenômeno de modo individualizado, há um investimento social para que os homens tenham
privilégios diante das outras identidades. As masculinidades são educadas para terem seus desejos
sempre atendidos, no que diz respeito à sexualidade, os homens são representados como possuidores
de impulsos agressivos e animalescos (FELIPE, 2006; MINAYO, 2005; XAVIER FILHA, 2012).
O que também não significa que, de maneira direta, todos os homens sejam
estupradores, nem que todos os seres humanos sejam diretamente
responsáveis pela prática do estupro, mas que, de muitas maneiras, a cultura
do machismo e da misoginia contribui para a perpetuação desse tipo de
violência focada, principalmente, contra a mulher (SOUSA, 2017, p. 10).

Isso porque, desde pequenos, a socialização dos meninos é voltada para o exercício da
agressividade e poder, ensinando-os que não há limites para ter os seus desejos atendidos, bem como
fazendo com que toleremos certos comportamentos agressivos neles, por compreendê-los como
naturalmente violentos (FELIPE, 2012). Já adultos, os homens são representados como os sujeitos da
sexualidade, entendendo as mulheres como seus objetos (MACHADO, 2001; MINAYO, 2005).
De acordo com Jane Felipe (2012, p. 219), nas diferentes instituições “se reproduz e se produz
um tipo de comportamento nos meninos e homens de forma a fazê-los ocupar uma espécie de
centralidade, como se eles nunca pudessem ser contrariados”. Assim, a violência sexual é
responsabilidade de toda a sociedade que educa as masculinidades para a violência.
Isso pode legitimar as situações em que os homens se apropriam do corpo de outra pessoa, na
medida em que se entende que ele não consegue conter o seu desejo sexual, independentemente da
idade da vítima ou da relação de parentesco entre eles/as (XAVIER FILHA, 2012). Segundo Machado
(2001), a única fragilidade permitida aos homens é em relação aos seus desejos sexuais, na medida
em que a “fraqueza sexual” é considerada como um impulso que os fariam protagonizar situações de
violência sexual.
Assim, as expressões da sexualidade dos homens são construídas a deixar-se levar pelos
“impulsos sexuais”, tidos como incontroláveis. Por outro lado, a sexualidade feminina é representada,
muitas vezes, sob a forma da passividade. Isso contribui para a cultura do estupro, na qual homens
são ensinados a insistir em seus investimentos sexuais contra mulheres/meninas, assim como essas
são educadas para realizar um ritual de sedução, esquivando-se para se oferecer.

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Lia Machado (2001), em uma pesquisa que buscou relacionar a construção social de gênero
com a violência, por meio da escuta de detentos acusados de vitimizar sexualmente mulheres,
observou que estes homens tinham ciência do que seus atos configuravam como crimes, porém eles
se percebiam como fracos diante de seus impulsos sexuais de homens, bem como, apesar do “não”
da vítima, compreendiam que ela pudesse estar consentindo com o ato sexual.
A pesquisadora analisou esse fenômeno entendendo que, caso o “não” fosse compreendido
em seu real significado, os homens seriam postos à prova em sua capacidade de sedução e virilidade,
na medida em que faz parte da representação das dimensões da sexualidade masculina transformar
um “não” em “sim”. Isso revelaria uma contradição ao perpetrar a violência sexual, na medida em
que o autor da violência estaria impondo um ato no qual a vítima não consente.
Ensina-se, por diversos meios, que o “não” das meninas/mulheres escondem a sua real
intenção e desejo de dizer “sim”, fazendo com que homens se sintam no direito de insistirem para ter
seus desejos atendidos e, até mesmo, violarem os corpos femininos (MACHADO, 2001; MINAYO,
2005). A socialização e a sexualidade das meninas/mulheres são aquelas voltadas para a submissão
aos homens, vistos como os tutores de seus corpos, de suas vontades e ações.
As meninas/mulheres são entendidas como se não fossem sujeitos, mas sim “corpos
disponíveis” (MACHADO, 2001). No que diz respeito às meninas, a maneira como os artefatos
culturais, como músicas, publicidades, programas televisivos etc. as representam acabam por
objetificá-las, tornando-as modelos de beleza a ser atingidos, bem como mostrando-as como corpos
desejáveis (FELIPE, 2006).
Desde pequenas as meninas são educadas para a doçura, a disciplina, a vaidade. Os seus
brinquedos são bonecas como a Barbie ou Polly, que remetem a um ideal de beleza relacionado à
magreza, cabelos lisos e loiros, à pele branca, bem como ao mundo adulto. Já as propagandas voltadas
às meninas estimulam o consumo desenfreado e o cultivo à beleza, reafirmando uma “essência
feminina”. Estas publicidades também trazem as meninas com gestos e roupas remetendo à inocência,
porém em posições sedutoras e erotizadas. Muitas propagandas veiculam imagens de meninas com
calcinhas brancas à mostra, remetendo à pureza e, também, como um sinal de disponibilidade e
erotização. Outros referenciais que aparecem nas publicidades sugerem o quanto os homens estão à
mercê da sensualidade destas meninas (FELIPE; GUIZZO, 2003).
As imagens das meninas propagadas pela publicidade apresentam garotas maquiadas,
altamente erotizadas, com olhares sedutores para as câmeras, em tomadas fotográficas semelhantes à
pornografia infantil. Entretanto, estranhamente, tais imagens fazem parte do cotidiano e da cultura,

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estando presentes na televisão, em revistas, programas infantis, não sendo consideradas imagens
pornográficas (WALKERDINE, 1999).
Segundo Felipe (2006), é preciso:
pontuar as contradições existentes na sociedade atual, que busca criar leis e
sistemas de proteção à infância e adolescência contra a violência/abuso
sexual, mas ao mesmo tempo legitima determinadas práticas sociais
contemporâneas, seja através da mídia – publicidade, novelas, programas
humorísticos –, seja por intermédio de músicas, filmes etc., onde os corpos
infanto-juvenis são acionados de forma extremamente sedutora. São corpos
desejáveis que misturam em suas expressões gestos, roupas e falas, modos de
ser e de se comportar bastante erotizados (p. 216).

Ao retratar o corpo de meninas como objetos a serem consumidos, constrói-se um modo de


representa-las aos homens, que passam a deseja-las sexualmente, e às mulheres adultas, que investem
neste apelo de beleza jovem e infantilizado, em uma supervalorização da juventude (CÂMARA,
2007; FELIPE, 2006; FELIPE; GUIZZO, 2003). De acordo com Adriane Câmara (2007), as revistas
eróticas voltadas ao público masculino heterossexual possuem um forte apelo à erotização dos corpos
infantis, na medida em que muitas das publicações exibem mulheres adultas em posições sensuais,
porém com roupas e cenários remetendo ao universo infantil e à disponibilidade sexual desta “falsa
criança”.
A demanda para que as mulheres adultas se vistam como meninas,
enfatizando dessa maneira, uma imagem de sedução e ingenuidade atrelada a
uma possível disponibilidade da ‘falsa criança’; da ‘falsa menina’ para o sexo,
não seria uma demanda para a sedução, conquista e consumo masculino em
nossa sociedade? Através das revistas masculinas, especialmente a revista
Sexy, é que pergunto, se as fantasias adultas sobre as crianças em nossa
cultura, não por acaso, são também as fantasias adultas masculinas de sexo e
poder (CÂMARA, 2007, p. 56).

Por outro lado, as representações sobre a sexualidade, corpo e gênero não fazem parte apenas
do imaginário dos/as adultos/as, mas também da formação de identidade das meninas que, desde
pequenas, aprendem a se identificar com as imagens propagadas, buscando reproduzi-las. É ensinado
já na infância que, para as meninas serem desejadas, amadas e valorizadas, precisam se comportar de
maneira amável e sedutora, pois “ser mulher” está relacionado ao paradoxo da sedução e inocência
(FELIPE, 2006; FELIPE, GUIZZO, 2003).
Tal processo de erotização tem produzido efeitos significativos na construção
das identidades de gênero e identidades sexuais das crianças, especialmente
em relação às meninas, como apontou Valerie Walkerdine (1999). Segundo
ela, garotinhas atraentes e altamente erotizadas têm sido visibilizadas em
propagandas que refletem maior similaridade com imagens provenientes da

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pornografia infantil do que com imagens "psicoeducacionais" (FELIPE,
GUIZZO, 2003).

De acordo com Felipe (2006, p. 221), “nesse movimento, temos, portanto, o consumo de
corpos infantis, por um lado, por outro, imagens de mulheres adultas vestidas e posicionadas como
menininhas. A contradição entre a intenção de proteger as crianças de possíveis violências e a
legitimação da utilização das imagens de suas imagens de modo erotizado e sensual é denominada
por essa autora como pedofilização.
O conceito de pedofilização tem sido por mim utilizado no intuito de pontuar
as contradições existentes na sociedade atual, que busca criar leis e sistemas
de proteção à infância e adolescência contra a violência/abuso sexual, mas ao
mesmo tempo legitima determinadas práticas sociais contemporâneas, seja
através da mídia – publicidade, novelas, programas humorísticos –, seja por
intermédio de músicas, filmes, etc., onde os corpos infanto-juvenis são
acionados de forma extremamente sedutora. São corpos desejáveis que
misturam em suas expressões gestos, roupas e falas, modos de ser e de se
comportar bastante erotizados (FELIPE, 2006, p.216).

Desta maneira, observa-se uma contradição cultural, na medida em que, ao mesmo tempo em
que se criam leis para a proteção da infância, principalmente contra a violência e a exploração sexual,
legitima-se, por meio da mídia televisiva, impressa e internet, que os corpos infantis sejam veiculados
de maneira extremamente sedutora e desejável, fazendo com que as crianças protagonistas de tais
campanhas atuem de maneira sensualizada (CÂMARA, 2007; FELIPE, 2006; FELIPE, GUIZZO,
2003).
Faz-se necessário questionar sobre quais mecanismos têm propiciado o borramento de
fronteiras entre idade adulta e infâncias (FELIPE, 2006). Segundo Walkerdine (1999, p. 79), “a
erotização das garotinhas é um fenômeno complexo, no qual um certo aspecto da sexualidade
feminina e da sexualidade infantil é entendido como corruptor de um estado de inocência”.
Paradoxalmente, o olhar construído sobre as meninas é o de que elas devem ser protegidas, apesar de
serem pequenas sedutoras.
A violência sexual contra menina ocorre de maneira mais frequente dentro do âmbito familiar,
salientando aspectos da organização das famílias que acabam por permitir que esta violência ocorra
e fique restrita a este espaço privado, chegando poucas vezes a ser denunciada. De acordo com Felipe
(2006, p. 209), “as relações de gênero estão envolvidas em relações de poder não somente entre
homens e mulheres, mas entre adultos e crianças e o quanto estas se acirram quando se trata da própria
família”.

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Neste sentido, os homens são legitimados a se sentirem no direito de tratar e se relacionar de
modo violento com as esposas e as suas filhas, na medida em que elas seriam percebidas como suas
propriedades. Compreendendo a família como uma instituição na qual sexualidade, gênero e idade se
entrelaçam, as relações de poder se acirram no espaço familiar, visto que este evoca a ideia de
privacidade e propriedade. Neste sentido, é dado ao “chefe” da família o direito de se relacionar
sexualmente quando quiser e lhe convier, independente da relação de parentesco e afetividade com a
vítima.
O que parece claro, porém, é que o elo mais frágil na rede familiar, no que
tange às relações de poder e formas de violência, é, sem dúvida, composto
por crianças e adolescentes. Nestas situações, a liberdade quase inexiste,
subjugando e, em muitos casos, “aniquilando” o sujeito, especialmente
quando o abuso é praticado contra crianças. Esta constatação instiga-nos a
pensar sobre as relações que se estabelecem entre os membros da família e as
formas pelas quais os relacionamentos de poder ganham proporções de
limitação da liberdade e de “coisificação” do sujeito. Nesta discussão, urge
ressaltar como esse tipo de abuso se configura como violência de gênero
(XAVIER FILHA, 2008, p. 130).

Neste tipo de relação, o sexo com as meninas é encarado como extensão dos direitos de pai,
bem como o papel das filhas como extensão dos “deveres” da esposa. Além da violência sexual contra
crianças, esta concepção também acarreta na violência sexual contra suas parceiras íntimas, que são
representadas como mulheres com o dever de fazer sexo com seus parceiros para a manutenção do
“bom” relacionamento (MACHADO, 2001).
Desta maneira, a violência intrafamiliar pode se constituir como uma maneira privilegiada de
violência de gênero. A família, “apesar de idealizada e representada por muitos como um lugar
seguro, espaço onde reinam a proteção e o cuidado, é denunciada por vários estudos como local de
delitos, especialmente contra mulheres e crianças” (XAVIER FILHA, 2008, p. 131). As dimensões
de gênero são fatores importantes para a compreensão das relações de poder dentro do espaço
familiar, que transformam as diferenças de gênero e de idade em desigualdades e violência.
Diante dessa realidade, entendemos que a vitimização sexual de meninas não é resultado de
uma sexualidade masculina impulsiva e doentia, mas sim reflexo de uma cultura onde as meninas são
exploradas e transformadas em objeto de desejo e consumo (FELIPE; GUIZZO, 2003), bem como
tratadas como propriedades. Deste modo, a violência sexual contra crianças está entrelaçada às
dimensões da sexualidade e de gênero, expressando as desigualdades de poder que envolvem estas
categorias.

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Referências

CÂMARA, Adriane Peixoto. Masculinidade heterossexual e pedofilização: apontamentos iniciais


para um debate. Revista Ártemis, v. 6, n. 1, p. 49-57, 2007.

FELIPE, Jane. Relações de gênero: construindo feminilidades e masculinidades na cultura. In:


XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Sexualidades, gênero e diferenças na educação das
infâncias. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2012, p. 217-226.

______. Afinal, quem é mesmo pedófilo? Caderno Pagu, n.26, p.201-223, 2006.

FELIPE, Jane; GUIZZO, Bianca Salazar. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo.
Pro-posições, v. 14, n. 3, p. 119-130, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da sexualidade. IN: LOURO, Guacira Lopes (Org.). O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 07-34.

MACHADO, Lia Zanotta. Masculinidades e violências: gênero e mal-estar na sociedade


contemporânea. Série Antropológica UNB: Brasília, 2001.

MINAYO, Maria Cecília de Souza. Violência: um velho-novo desafio para a atenção à saúde.
Revista Brasileira de Educação Médica, v. 29, n. 1, p. 55-63, 2005.

ONUBR. Por que falamos de cultura do estupro? Disponível em: https://nacoesunidas.org/por-que-


falamos-de-cultura-do-estupro/. Acesso em: 27 de março de 2017.

SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SDH/PR).


Disque 100: Quatro mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes foram
registradas no primeiro trimestre de 2015. Disponível em:
http://www.sdh.gov.br/noticias/2015/maio/disque-100-quatro-mil-denuncias-de-violencia-sexual-
contra-criancas-e-adolescentes-foram-registradas-no-primeiro-trimestre-de-2015. Acesso em: 13 de
março de 2016.

SOUSA, Renata Floriano. Cultura do estupro: prática e incitação à violência sexual contra
mulheres. Estudos Feministas, v. 25, n. 1, p. 9-29, 2017.

WALKERDINE, Valerie. A cultura popular e a erotização das garotinhas. Educação & Realidade,
v. 24, n. 2, p. 75-88, 1999.

WOMEN’S CENTER MARCHALL UNIVERSITY. Rape culture, 2017. Disponível em:


https://www.marshall.edu/wcenter/sexual-assault/rape-culture. Acesso em: 28 de janeiro de 2017.

XAVIER FILHA, Constantina. Violência sexual contra crianças: ações e omissões nas/das
instituições educativas. In: XAVIER FILHA, Constantina (Org.). Sexualidades, gênero e diferenças
na educação das infâncias. Campo Grande, MS: Ed. UFMS, 2012, p.131-165.

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______. O “despertar de um homem” e as “marcas do silêncio” na violência sexual contra crianças
e adolescentes: gênero e relações de poder. In: SILVA, Paulo Vinicius Baptista; LOPES,
Jandicleide Evangelista; CARVALHO, Arianne. Por uma escola que protege: a educação e o
enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2008, p.
125-160.

Sexual violence against girls: intersections between the categories of gender, childhood and
violence

Astract: Sexual violence against girls goes beyond an act driven by a sexual desire that cannot be
contained, being produced by discourses that promote asymmetrical relationships between
adults/children and men/women. The centrally masculinity, while the man performing the "male" –
reference to the experiences of masculinities that are related to aggression, violence and the use of
power – puts him in a position of privilege among other identities. This hierarchy materializes in
situations of sexual violence against girls, demonstrating the naturalized social places attributed to
masculinities and femininities. It is common the representation of male sexuality as instinctively
uncontrollable and animalistic, the socialization of men being turned to the exercise of aggressiveness
and power, teaching them that there are no limits to having their desires attended. On the other hand,
girls have been educated for sweetness and discipline since childhood and are represented by
advertising with gestures and clothes referring to innocence, but in seductive and erotic positions. By
representing the body of girls in these ways, we also construct a way of representing them: as objects
to be consumed. In view of this, it is necessary to question what mechanisms have led to the blurring
of boundaries between adulthood and childhood, as well as how the education of masculinities and
femininities "authorizes" sexual violence against girls.

Keywords: Sexual violence against girls. Genre. Childhood.

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