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2006
O CAMPONÊS E A FOTOGRAFIA1
RESUMO
Recorrendo a uma etnografia da aldeia do Sudoeste francês onde o autor passou sua infância, este artigo
analisa os usos sociais e o sentido das fotografias e da prática fotográfica na sociedade camponesa do
Béarn nos inícios de 1960. A fotografia surgiu ali, pela primeira vez, durante as grandes cerimônias da vida
familiar e coletiva, como os casamentos, em que preenchia a função de afirmar a unidade, posição e frontei-
ras das linhagens envolvidas. Tais cerimônias podiam ser fotografadas porque estavam fora da rotina
diária, e deviam ser fotografadas para solenizar e materializar a imagem que o grupo pretendia apresentar
de si próprio. Por isso, as fotografias são vistas e apreciadas não em si mesmas e por si mesmas, isto é, em
termos das suas qualidades técnicas ou estéticas, mas como sociogramas leigos que possibilitam um regis-
tro visual das relações e papéis sociais existentes.
PALAVRAS-CHAVE: fotografia; campesinato; tecnologia; parentesco; estética; cultura local; Béarn.
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para acontecer […]. Eram eles que se apresenta- sos. Nos batizados, que nunca deram lugar a gran-
vam, as famílias não precisavam perguntar nada. des cerimônias, e onde estavam presentes apenas
Hoje em dia são as pessoas que os chamam. Mas os parentes mais próximos, a fotografia perma-
isso deu, de fato, um grande salto com o fim da nece excepcional. Mas a primeira comunhão dá a
Guerra Mundial, em 1919. O hábito de ir a Pau tirar muitas mães a oportunidade de ter uma fotografia
uma fotografia vem também deste tempo […]. Era dos seus filhos7: só se pode aplaudir uma mãe
o fotógrafo que aparecia, oferecia os seus servi- que age assim, e tanto mais quanto maior for a
ços. Senão, talvez eles nunca o chamariam. Mas, importância da criança na sociedade. Na antiga
uma vez que ele estava lá, não se atreviam a dizer
sociedade camponesa, uma criança nunca era o
que não. Nada era muito caro naquele tempo.
centro das atenções, como acontece hoje em dia.
A fotografia de casamento só se impôs tão ra- As grandes festas e cerimônias da aldeia eram
pidamente porque encontrou as suas condições sobretudo eventos para os adultos, e foi apenas a
sociais de existência: os gastos e o desperdício partir de 1945 que as celebrações destinadas às
são parte dos comportamentos festivos, particu- crianças (por exemplo, o Natal e a Primeira Co-
larmente as despesas ostentatórias que ninguém munhão) se tornaram importantes. À medida que
podia evitar sem ver diminuída a sua honra. a sociedade dedica mais atenção às crianças e,
dessa forma, às mulheres enquanto mães, o hábi-
No começo, o fotógrafo andava com as foto-
to de tirar fotografias de crianças aumenta. Num
grafias, para ver quem as queria. Recolhia os
nomes e mais tarde as enviava. Tinha que pa- álbum de fotografias de um pequeno proprietário
gar adiantado. Oh! Não era assim, tão caro. Dois das aldeias (B. M.), os retratos de crianças tiradas
francos por pessoa. E ninguém ousava recusar. depois de 1945 somavam mais da metade, enquan-
E então ficavam contentes ao vê-las em casa to que nos anos anteriores a 1939 não há quase
depois do casamento. O cavalheiro pagava a nenhuma (três, para ser mais preciso). Nessa épo-
fotografia para a dama. Era o que devia ser feito ca, fotografava-se sobretudo os adultos. Em se-
num dia como aquele” (J.-P. A.). “A fotografia gundo lugar, grupos familiares, pais e filhos jun-
de grupo era obrigatória. Alguém que não a tos, e só excepcionalmente crianças sozinhas.
comprasse era visto como um miserável Agora, acontece exatamente o contrário. Mas fo-
(picheprim). Isso era considerado um insulto tografar crianças é em si mesmo aceito, em gran-
para aqueles que os tinham convidado. Signifi- de medida, por ter uma função social. A divisão
caria falta de consideração. À mesa, à vista de do trabalho entre sexos atribui à mulher a tarefa
todos, é impossível dizer não (J. B.). de manter relações sociais com os membros do
Comprar as fotografias é um tributo prestado grupo que se encontram longe, começando pela
àqueles que fizeram o convite. A fotografia é ob- sua própria família. Assim como as cartas, e bem
jeto de trocas reguladas; pertence ao circuito dos melhor do que elas, as fotografias assumem um
dons e contra-dons obrigatórios a que os casa- importante papel na atualização contínua do reco-
mentos e outras cerimônias dão lugar. Sendo um nhecimento mútuo8. É costume levar as crianças
celebrador, cuja presença confirma a solenidade para visitar os parentes (pelo menos uma vez e,
do ritual, o fotógrafo oficial pode ser secundado se for possível, periodicamente) que vivem fora
pelo fotógrafo amador, mas nunca poderá ser da aldeia e, em primeiro lugar, a mãe da esposa,
substituído por esse último6. quando esta vem de fora. É a mulher que toma a
iniciativa destas viagens, e que as faz, por vezes,
É só por volta de 1930 que fotografias da pri- sem a presença do marido. Enviar uma fotografia
meira comunhão começam a surgir, enquanto que tem a mesma função: através da imagem, apre-
as fotografias de batizados são ainda mais recen-
tes e raras. Durante os últimos anos, alguns cam-
7 Tal como nas festas de casamento, a fotografia insere-se
poneses tiraram proveito da presença dos fotó-
no circuito das trocas ritualmente impostas. É acrescenta-
grafos em feiras agrícolas para tirarem uma foto- da à imagem-recordação que a criança traz aos parentes e
grafia com o gado, embora sejam raros esses ca- vizinhos em troca de um presente.
8 O envio das fotografias após o casamento provoca,
geralmente, um ressurgimento da correspondência: “Os ‘exi-
6 A fotografia marca a transição do ritual religioso para o lados’ pedem para que os casais que aparecem na foto
ritual secular: a festa de casamento. Ela é tirada nos degraus sejam identificados, particularmente os jovens de quem
da igreja. apenas conhecem os pais” (A. B.).
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senta-se o novo descendente a todo o grupo que porque está situada fora daquilo que é a rotina
deve “reconhecê-lo”. diária, e deve ser fotografada porque materializa a
imagem que o grupo, qua grupo, pretende apre-
Nessa perspectiva, é compreensível que as
sentar de si próprio. O que é fotografado, e apre-
fotografias devam ser objeto de uma leitura soci-
endido pelo leitor da fotografia, não são propria-
ológica; e que nunca sejam consideradas em si
mente indivíduos na sua particularidade singular,
mesmas e por si mesmas em termos das suas
mas sim papéis sociais – o marido, o rapaz na
qualidades técnicas e estéticas. Parte-se do prin-
primeira comunhão, o militar – ou relações soci-
cípio de que o fotógrafo sabe fazer o seu trabalho
ais – o tio da América ou a tia de Sauvagnon. Por
e não se tem qualquer base para fazer compara-
exemplo, a coleção de B. M. inclui uma fotografia
ções. A fotografia deve apenas possibilitar uma
que ilustra, de forma perfeita, o primeiro tipo. É a
representação suficientemente crível e precisa para
imagem do cunhado do pai vestido como carteiro
permitir o reconhecimento. É metodicamente ins-
da cidade: com o boné de pala na cabeça, uma
pecionada e observada, à distância, de acordo com
camisa branca de gola alta, uma gravata com qua-
a lógica que governa o conhecimento dos outros
drados brancos, uma sobrecasaca de corte arre-
no quotidiano. Através do confronto de conheci-
dondado, sem lapelas, ao peito o distintivo com o
mentos e experiências, situa-se cada pessoa por
número 471, um colete alto adornado com botões
referência à linhagem a que pertence e, frequen-
dourados e uma corrente de relógio pendurada.
temente, a leitura de fotografias antigas assume a
Ele posa de pé, com a mão direita repousada numa
forma de uma conferência sobre ciência
mesinha de estilo oriental. O que a filha emigrante
genealógica, quando a mãe, a especialista no as-
enviou para a família não foi a imagem do seu
sunto, ensina à criança as relações que a unem a
marido, mas o símbolo do seu sucesso social10.
cada uma das pessoas na imagem. Mas, acima de
O segundo tipo é ilustrado por uma fotografia ti-
tudo, averigua-se quem participou da cerimônia;
rada no período de uma estadia do cunhado de B.
como eram constituídos os casais; o campo de
M. em Lesquire. Ela soleniza o encontro das duas
relações sociais de cada família é analisado; repa-
famílias juntando tios e sobrinhas, tias e sobri-
ra-se em quem falta, indicador de discórdias, e as
nhos. Como se a intenção fosse a de manifestar
presenças que conferem honra. Para cada convi-
que o verdadeiro objeto da fotografia não são os
dado, a fotografia é uma espécie de troféu, um
indivíduos, mas as relações entre eles. Os pais de
sinal e uma fonte de importância social (“tem-se
uma família seguram nos braços os filhos da ou-
orgulho em poder mostrar que se esteve no casa-
tra família11.
mento”, diz J. L.). Para as famílias dos recém-
casados, e para o próprio casal, a foto testemu-
nha a posição hierárquica da família, ao relembrar não tem valor aos olhos das pessoas. Nunca vi nenhuma”
o número e a qualidade dos convidados. Os con- (J. L.).
vidados de B. M., filho de uma “pequena família” 10 De maneira análoga, entre as fotografias expostas nas
da aldeia, são sobretudo parentes e vizinhos, pre- casas, vê-se freqüentemente a foto anual da equipe de rúg-
dominando o princípio da seleção tradicional. Já bi, alinhada numa pose formal; e só muito raramente foto-
na fotografia de casamento de J. B., um habitante grafias representando fases do jogo, que são relegadas para
da vila, com posses, pode-se ver, ao lado dos con- a “caixa das fotografias”.
vidados ilustres, os amigos do trabalho e da esco- 11 A maioria das fotografias recentes no álbum de B. M.
la do noivo, e até mesmo os da noiva. Em suma, a foram tiradas por amadores. Algumas das fotografias da
fotografia de casamento é um verdadeiro esposa e da filha de B. M. foram tiradas durante as visitas
sociograma, e é visto como tal. à cunhada (que vive em Oloron, uma pequena cidade a 80
quilômetros de distância), no mercado ou na feira. As crian-
Fotografar grandes cerimônias é possível por- ças estão alinhadas à frente, e os adultos atrás delas. Estas
que – e apenas porque – essas imagens captam outras fotos amadoras, como a agora descrita, foram tira-
comportamentos que são socialmente aceitos e das durante a visita do cunhado, que mora em Paris. À
primeira vista, há quatro delas que se distinguem: aquelas
socialmente regulados, ou seja, já solenizados.
que mostram B. M. em frente ao gado, com o aguilhão ao
Nada além do que deve ser fotografado pode ser ombro, e o sobrinho com a mesma postura. Serão, de fato,
fotografado9. A cerimônia pode ser fotografada instantâneos da vida quotidiana? Na realidade, elas são en-
cenadas e alegóricas: por um lado, o pequeno parisiense,
fingindo ser um camponês; por outro, não B. M. como uma
9 “Não, o fotógrafo nunca tira fotografias do baile. Isso pessoa singular, mas como uma fotografia-postal do Béarn,
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Na maioria das casas camponesas, as foto- Mesmo hoje, enquanto entre os camponeses
grafias são mantidas “fechadas” numa caixa, com das aldeias é freqüente haver apenas um homem,
exceção da fotografia do casamento e de certos ainda jovem e solteiro, que tira fotografias, na vila
retratos. Seria indecente, ou ostentatório, mos- existe um pequeno número de amadores que as
trar imagens de membros da família a qualquer tira de forma mais ou menos regular. Dependen-
um que pudesse aparecer. As fotos das cerimôni- do fortemente da renda, a prática da fotografia
as são demasiado solenes ou íntimas para serem está manifestamente ligada ao local de residência,
exibidas no espaço da vida quotidiana12; o local pela mediação do grau com que se aspira ou se
próprio para elas é ou o compartimento nobre, a adere aos valores urbanos. De fato, nada seria mais
sala de estar, ou, para as mais íntimas, como as errado do que tentar explicar a raridade da prática
fotografias de parentes falecidos, o quarto, junto fotográfica, na sociedade camponesa, através de
às imagens religiosas, como o crucifixo e o ramo simples determinismos negativos. Nem as barrei-
benzido. As fotografias amadoras são guardadas ras econômicas, tais como o elevado custo do
em gavetas. De maneira oposta, em casas da pe- equipamento, nem as barreiras tecnológicas, e nem
quena burguesia da aldeia elas adquirem um valor mesmo o baixo nível de informação podem expli-
decorativo ou afetivo: ampliadas e enquadradas, car esse fenômeno. Os camponeses usam a foto-
decoram as paredes da sala de estar, juntamente grafia, e podem usá-la, estritamente como consu-
com as recordações de viagens. Chegam mesmo midores; e usam, pois, de forma seletiva porque o
a invadir o altar até então apropriado aos valores sistema de valores que partilham, cujo ponto cen-
de família, a chaminé do fogão da sala, tirando o tral é uma determinada imagem do camponês per-
lugar das medalhas, prêmios e diplomas da escola feito, os impede de se tornarem produtores.
primária que antigamente costumavam ali estar
Se a fotografia é vista como um luxo, é pri-
expostos, mas que a jovem esposa da aldeia rele-
meiramente porque o ethos camponês exige que
gou, discretamente, considerando-os um pouco
os gastos dedicados ao aumento do patrimônio,
ridículos, para o canto mais obscuro, atrás da
ou da modernização do equipamento agrícola, te-
porta, de modo a não chocar os “mais velhos”.
nham prioridade sobre os gastos com o consu-
III. UMA INOVAÇÃO SUSPEITA: A PRÁTICA mo. De uma forma geral, qualquer despesa que
FOTOGRÁFICA E O ETHOS DOS CAMPO- não seja sancionada pela tradição é considerada
NESES um desperdício. Mas isso não é tudo: a inovação
é sempre suspeita aos olhos do grupo, e não só
Enquanto as imagens fotográficas, e especial-
em si mesma, isto é, enquanto negação da tradi-
mente as fotografias de casamentos, foram
ção. As pessoas estão acostumadas a ver nela uma
adotadas pela comunidade inteira desde o início,
forma de se distingüir, de se sobressair, de fasci-
sem qualquer resistência, como um momento
nar ou de desmerecer os outros. E isso é uma
obrigatório do ritual social, a prática fotográfica
afronta ao princípio que domina toda a existência
foi inicialmente restringida a alguns fotógrafos
social, e que nada tem a ver com igualitarismo.
amadores isolados, todos pertencentes à burgue-
De fato, a ironia, a gozação e a fofoca têm como
sia da aldeia.
função trazer de volta à ordem, isto é, à confor-
No meu tempo, só os fidalgos das aldeias e al- midade e à uniformidade, alguém que, pelo seu
guns emplegats (‘empregados’, isto é, trabalha- comportamento inovador, parece querer dar uma
dores de colarinho branco e profissionais libe- lição ou desafiar toda a comunidade. Seja esta ou
rais) tiravam fotos: os cobradores, os inspetores, não a sua intenção, não há como escapar à sus-
os professores e o doutor Co (J.-P. A.). peita. Ao invocar experiências passadas e chamar
os outros para testemunharem, pretende-se negar
que a inovação corresponda a uma necessidade
representando um camponês à frente do gado, com o corpo real. Daí, ela só pode ser ostentatória.
direito, a boina inclinada por cima da orelha, o aguilhão ao
ombro. Mas a desaprovação coletiva varia de acordo
12 O grande cômodo comum, ou seja, a cozinha, possui com a natureza da inovação e da área em que é
somente uma decoração impessoal, igual em todo lugar: o introduzida. Quando diz respeito às técnicas agrí-
calendário dos correios ou dos bombeiros, postais compra- colas e formas de colheita, nunca provoca a total
dos em Pau (a cidade mais próxima, a doze quilômetros de e brutal condenação porque, apesar de tudo, é dado
distância) ou trazidos de uma ida a Lourdes. o benefício da dúvida ao inovador: é que, não
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obstante as aparências, o seu comportamento pode Associada à vida urbana, a prática da fotogra-
estar repleto dos mais louváveis motivos, isto é, a fia é vista como uma manifestação do desejo de
vontade de aumentar o valor do patrimônio. Nes- parecer urbano, de se armar como um cavalheiro
ses casos, ele trai a tradição camponesa mas per- (moussureya). E então é vista como uma traição
manece um camponês. Além disso, a condenação de novo-rico. “S’en-monsieurer” (literalmente,
moral pode adotar uma aparência de ceticismo do “encavalheirar-se”, en-moussuri’s em Béarnais) é
técnico e do homem experiente: a sanção da inici- uma dupla ofensa aos imperativos fundamentais
ativa [técnica] dependerá dos resultados. De qual- da ética camponesa. Na verdade, isso significa
quer forma, como corre o risco de falhar ou de se sobressair-se renegando a sua existência como
sujeitar ao ridículo, o inovador inspira respeito. membro do grupo e como camponês14. Ao ver-
dadeiro morador da cidade, totalmente estranho
Pelo contrário, a comunidade vive inovações
ao grupo, admite-se que tire fotografias porque
que suspeita serem desprovidas de qualquer justi-
isso faz parte da imagem estereotipada que o cam-
ficação racional ou razoável como um desafio e
ponês tem dele. A máquina fotográfica é um dos
uma desaprovação. Isso acontece porque, à ma-
atributos distintivos do veranista (“vacancier” –
neira de um dom que exclui um contra-dom, o
lou bacancié). Os camponeses aceitam suas fan-
comportamento ostentatório, ou o comportamento
tasias, com uma certa ironia, e fazem a pose es-
percebido enquanto tal, coloca o grupo numa si-
perada, diante da junta de bois, pensando: “Esta
tuação de inferioridade, e só pode ser entendido
gente tem tempo para desperdiçar, e dinheiro para
como uma afronta, em que todos se sentem atin-
esbanjar”. Há muito menos tolerância com os na-
gidos na sua auto-estima. Nesse caso, a reprova-
tivos da aldeia que regressam da cidade, e menos
ção e a repressão são imediatas e impiedosas.
ainda com os habitantes da vila que são suspeitos
“Com quem é que ele pensa que está brincando?
de tirarem fotografia para se parecerem com gen-
Quem é que ele pensa que é?” Como sinal de status,
te da cidade. Em outras palavras: não é a prática
a prática fotográfica não pode senão exprimir um
fotográfica em si que é recusada. Como um ca-
esforço para alguém se elevar socialmente. Essa
pricho e uma futilidade de gente da cidade, ela
vontade de distinção é contrariada pela lembrança
convém perfeitamente aos “outsiders” – mas só a
das raízes comuns: “Nós sabemos de onde ele
eles. Nesse aspecto, o comportamento inovador
veio”. “O pai dele usava tamancos!”13.
dos habitantes da cidade não pode inspirar imita-
Considerado um luxo fútil, a prática fotográfi- ção [por parte do camponês] porque a tolerância
ca seria considerada para um camponês uma bar- de que goza não é mais que a expressão da vonta-
baridade; entregar-se a tal fantasia seria mais ou de de ignorá-lo, ou da recusa em identificar-se
menos como um homem dar um passeio com a com ele15.
mulher numa noite de verão, como fazem os apo-
No entanto, assim como varia de acordo com
sentados da vila:
a natureza da inovação, a reprovação também va-
Isso é bom para os que estão de férias. Isso ria segundo a posição social e o status do inova-
são coisas da cidade. Um camponês que an-
dasse com uma máquina dependurada no om-
bro não seria mais que um cavalheiro fracas- 14 Isso explica a atitude ambígua do camponês em relação
sado (u moussu manquat). É necessário mãos ao funcionário do bourg. Por um lado, como representante
delicadas para mexer naquelas coisas. E o di- da administração central e depositário da autoridade gover-
nheiro então? É caro. Toda aquela parafernália namental, suscita respeito e consideração. Mas, por outro
custa uma fortuna! (F. M.). lado, o homem do bourg é, de fato, o burguês, alguém que
abandonou a terra e rompeu ou renegou os laços que o
prendiam ao seu ambiente social original.
15 A maioria dos camponeses entrevistados mencionaram
parentes que adotaram a fotografia desde que deixaram a
aldeia. Mas um camponês que vê a irmã ou o primo, o filho
13 “Ele quer tirar fotografias! Está se tornando um verda-
ou o irmão, que saiu para ir trabalhar na indústria, regressar
deiro senhor (s’en-monsieure), não está? Daqui a pouco com uma máquina, é levado a associar a fotografia à adoção
vai estar tirando fotografias dos porcos e do chiqueiro”. de modos de vida urbanos. Assim sendo, esses exemplos,
“Seria melhor se trocasse o arado e aquele miserável par de em vez de o seduzirem, mesmo quando dizem respeito a
vacas que tem para lavrar!” “Um aparelho daqueles, e com parentes próximos, apenas vêm confirmar a convicção de
aquele terno horrível!” que a fotografia “não é para nós”.
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dor. A lógica da seleção que preside os emprésti- IV. POSTURA FOTOGRÁFICA E SENTIMEN-
mos e, da mesma forma, os valores que coman- TO DE HONRA
dam esta seleção, podem ser apreendidos não ape-
Até a postura que o camponês adota em frente
nas nas defesas que o ethos camponês opõe a tudo
à máquina parece expressar os valores campone-
aquilo que o ameaça, mas também, e sobretudo,
ses e, mais precisamente, o sistema de modelos
nas exceções que admite. Se a fotografia pode ser
que governa as relações com os outros na socie-
permitida às mulheres, ou melhor, às mães de fa-
dade camponesa. Os indivíduos apresentam-se,
mília, é porque serve a propósitos socialmente
geralmente, de frente, no centro da fotografia, de
aceitos; e se, como atividade fútil, é tolerada na
pé e em corpo inteiro, o que quer dizer que ficam
adolescência, o período fútil da vida, estas são
colocados a uma distância respeitável. Em foto-
transações e compromissos com a regra que pro-
grafias de grupo, eles ficam perto uns dos outros,
vêm dos próprios valores de que a regra partici-
muitas vezes abraçados. Seus olhares convergem
pa. Assim, os adolescentes sempre tiveram um
para a lente de modo que toda a imagem indique o
direito estatutário à frivolidade lícita, ou seja, sim-
seu centro ausente. Quando um casal é fotogra-
bólica e onírica; o mesmo é verdade, então, para
fado, seguram-se pela cintura numa pose inteira-
a fotografia como para a dança e, de uma forma
mente convencional. As normas de conduta fren-
mais geral, para todas as técnicas de cortejo e de
te à câmera às vezes se tornam conscientes, de
festejar: “Eles tiram fotografias quando estão apai-
uma forma positiva ou negativa. Por exemplo: um
xonados (cuan s’amourouseyen), nos dias de bai-
membro de um grupo reunido para uma ocasião
le”.
solene, como um casamento, que adote uma pos-
No campo, assim que um casal se casa, há outras tura relaxada, ou que deixe de olhar direto para a
coisas em que pensar. Be., o camponês mais rico, máquina ou fazer pose, é objeto de reprovação.
tirou fotografias do seu noivado e, posteriormen- Como é costume dizer, “ele não está realmente
te, do casamento. Agora vivem sem dinheiro (ils lá”.
tirent la guignorre), pior do que pequenos pro-
prietários como nós. Pequenos caprichos como Fazer parte de uma fotografia é garantir o teste-
esses são rapidamente esquecidos quando as munho da presença, o que é a contrapartida obri-
necessidades da família surgem, como acontece, gatória da homenagem recebida ao ter sido convi-
aliás, com o gosto por dançar. E, na minha opi- dado; é expressar que se valoriza esta honra e que
nião, isso é normal. E depois, quanto a fotografi- se está presente para retribuí-la16. Como poderia a
as, os profissionais estão lá para isso, pelo me- disposição e a postura dos participantes deixar de
nos nas grandes ocasiões (R. M., de Debat, uma ser marcadas pela solenidade? Ninguém pensa em
aldeia no vale Gave, a 10 quilômetros de Lacq). infringir as instruções dadas pelo fotógrafo, falan-
do com o vizinho ou olhando para outro lado. Isso
Estas práticas, aceitáveis para os mais novos,
seria uma indecência e, sobretudo, uma afronta ao
são de qualquer forma abandonadas a partir do
grupo e, ainda mais, àqueles que são “homenagea-
momento do casamento, que marca uma acentu-
dos naquele dia”: os recém-casados. A posição cor-
ada ruptura na existência. De um dia para o outro,
reta e digna consiste em ficar de pé, direito, olhan-
acabaram-se os bailes da aldeia ou as saídas e,
do em frente com a gravidade que convém a uma
por conseguinte, a fotografia que muitas vezes
ocasião solene.
lhes estava associada. “Parei logo depois da mi-
nha lua-de-mel”, diz J. B. “[…] Agora tenho mui- Não deixa de ser razoável admitir que a busca
tas outras coisas com que me preocupar”. E a espontânea de frontalidade está ligada aos valores
mulher intervém: “Oh!, de fato, agora ele tem culturais mais enraizados17. Nesta sociedade que
outras coisas com que se preocupar”. Esse ho-
mem, que antigamente relatava com orgulho as
suas férias em Biarritz, ou as visitas a Paris; que 16 “Se você assistir ao casamento de alguém e não estiver
afirma não ter o prazer de tirar fotografias, embo- na fotografia, as pessoas vão reparar. ‘Não estava no gru-
ra gaste muito do seu tempo na caça ao pombo po’, eles disseram que M. não estava na foto. Eles acham
que você escapou, e isso cai mal” (J. L., dirigindo-se ao
selvagem, fala agora apenas de trabalho, a única marido, durante uma entrevista).
atividade digna de um adulto responsável.
17 Entre os cabílas, um homem de honra é aquele que dá a
cara, que olha de cabeça erguida, que olha os outros na cara,
mostrando a cara (BOURDIEU, 1965a).
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exalta o sentimento de honra, dignidade e respon- confrontado com um olhar que fixa e imobiliza
sabilidade; neste mundo fechado em que se sente aparências, adotar a mais digna das atitudes, a mais
a cada momento, e sem escapatória possível, os sóbria e a mais cerimonial, colocar-se de forma
olhares constantes dos outros, é importante apre- rígida e imóvel, com os pés juntos, os braços es-
sentar aos outros a imagem de si o mais honrosa tendidos, como um soldado em sentido, é reduzir
possível: a postura fixa, rígida, que tem na “posi- o risco de parecer desajeitado e inconveniente, é
ção de sentido” dos soldados a expressão máxi- apresentar aos outros uma imagem controlada,
ma, parece ser a expressão dessa intenção incons- preparada, aprimorada de si. Dar uma imagem
ciente. A imagem axial, em conformidade com o controlada de si é uma forma de impor regras à
princípio de frontalidade, fornece uma impressão própria percepção de si.
tão claramente legível quanto possível, como se
A convencionalidade da postura e da roupa
se quisesse evitar qualquer mal-entendido ou con-
adotada para as fotografias parece derivar do es-
fusão. A mesma intenção se manifesta no emba-
tilo das relações sociais promovidas por uma so-
raço sentido pelo sujeito fotografado, na preocu-
ciedade ao mesmo tempo hierárquica e estática,
pação de corrigir a postura e vestir as melhores
na qual a linhagem e a “casa” têm mais realidade
roupas, na recusa instintiva em ser apanhado com
do que os indivíduos particulares que a compõem,
as roupas do dia-a-dia, fazendo as coisas do coti-
definidos essencialmente pelo grupo a que per-
diano. Assumir a postura correta é uma forma de
tencem19; grupo em que as regras sociais de com-
respeitar a si próprio e de exigir respeito. O per-
portamento e o código moral estão mais presen-
sonagem oferece ao espectador um ato de reve-
tes do que os sentimentos, as vontades ou os pen-
rência, de cortesia, que é governado por conven-
samentos dos indivíduos singulares, onde as tro-
ções, e demanda que o espectador obedeça às
cas sociais, rigidamente reguladas por convenções
mesmas convenções e às mesmas normas. Ele
consagradas, são cumpridas sob a ameaça do jul-
encara e pede para ser olhado frontalmente e à
gamento dos outros, sob o olhar de uma opinião
distância. Essa exigência de deferência recíproca
coletiva pronta a condenar em nome de normas
constitui a essência da frontalidade. O retrato fo-
incontestáveis e incontestadas, e que são sempre
tográfico leva a cabo, assim, a objetivação da ima-
dominadas pela preocupação em apresentar a
gem de si. Enquanto tal, ele é simplesmente o caso
melhor imagem de si, aquela que melhor se con-
limite da relação com os outros18.
forma com o ideal de dignidade e de honra20.
Tudo se passa como se, obedecendo ao prin-
A solenização, o comportamento hierático e a
cípio da frontalidade e adotando a postura mais
eternização são inseparáveis. Na linguagem de to-
convencional, se procurasse assumir tanto quan-
das as estéticas, a frontalidade exprime o eterno,
to possível o controle da objetivação da sua pró-
por oposição ao profundo, através do qual a
pria imagem. Olhar os outros sem ser visto; sem
temporalidade é reintroduzida. Na pintura, o pla-
ser visto olhando e sem ser olhado; “roubar um
no exprime ser ou essência; numa palavra, o
olhar”, como se diz, e, acima de tudo, fotografá-
intemporal (cf. BONNEFOY, 1959). Se uma ação
los desta maneira é roubar a imagem dos outros.
é representada na pintura, ela é sempre um movi-
Ao olhar para a pessoa que olha para mim (ou que
mento essencial, “imóvel” e fora do tempo; é o
me fotografa), ao preparar a minha postura, dou-
equilíbrio ou o aplomb de um gesto eterno, tal
me para ser visto como quero ser visto; dou a
como a norma ética ou social que incorpora: os
imagem de mim próprio que quero dar e, muito
simplesmente, dou a minha imagem. Em suma,
19 Não é raro para um filho mais novo que casa com uma
18 A fotografia é a situação na qual a consciência do pró- filha mais velha e vai viver com os pais dela, perder o seu
apelido, e, desse modo, ser designado apenas pelo nome da
prio corpo perante os outros atinge a máxima acuidade.
sua nova casa. [Nota de Loïc Wacquant e Richard Nice: as
Cada um sente-se sob o olhar e sob um olhar que fixa e
relações de parentesco e a reprodução da hierarquia de li-
imobiliza as aparências. [Nota de Loïc Wacquant e Richard
nhagem no Béarn são debatidas em profundidade em
Nice: sobre os fundamentos sociais das dificuldades de
BOURDIEU, 1990, p. 147-161].
relação com o corpo entre os camponeses e suas respecti-
vas consequências estruturais, cf. BOURDIEU, 1962 e, 20 HAUSENSTEIN (1913, p. 759-760) elucida as liga-
neste número da] Revista de Sociologia e Política, o artigo ções entre a visão frontal e a estrutura social de “socieda-
O camponês e seu corpo. des feudais e hieráticas”.
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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 26: 31-39 JUN. 2006
esposos com os braços à volta um do outro ex- gens instaladas, imóveis, na imutabilidade do pla-
primem, em outra postura, o mesmo significado no, perde o seu poder de corrosão21. Desse modo,
que as mãos dadas dos bustos de Catão e Pórcia, ao adotarem espontaneamente a organização e as
no Vaticano. posturas das figuras dos mosaicos de Bizâncio,
os camponeses do Béarn que posam para uma
A fotografia popular elimina o acidental ou o
fotografia de casamento parecem querer escapar
aspecto que, como imagem efêmera, dissolve o
ao poder que a fotografia tem para des-realizar o
real temporalizando-o. O “instantâneo”, a fotogra-
mundo temporalizando-o.
fia “tirada ao vivo” – que é uma expressão de uma
visão do mundo nascido no Quattrocento, com a
perspectiva – opera um corte instantâneo no mundo
visível e, ao petrificar o gesto humano, imobiliza
21 Mais uma vez, abre-se uma exceção para as crianças,
um estado único da relação recíproca entre as
talvez porque mudar está na sua própria natureza: onde o
coisas, e prende o olhar num momento impercep- objetivo é captar o efêmero e o acidental, a fotografia é
tível de uma trajetória nunca completa. Já a foto- apropriada, já que não pode captar o aspecto fugaz ao
grafia em pose, que apenas agarra e fixa persona- desaparecimento irreversível, sem o constituir como tal.
Pierre Bourdieu ocupou a cadeira de Sociologia no Collège de France, onde dirigiu também o Centro de
Sociologia Européia e editou a revista Actes de la recherche en sciences sociales até sua morte em 2002.
Ele é autor de vários livros clássicos em Sociologia e Antropologia, incluindo La Reproduction: éléments
d’une théorie du système d’enseignement (com Jean-Claude Passeron; 1970), Esquisse d’une theorie de
la pratique (1972), La Distinction: critique sociale du jugement (1979), Homo Academicus (1984) e
Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire (1992). Dentre seus estudos etnográficos
estão: Le déracinement: la crise de l’agriculture traditionnelle en Algérie (com Adbelmalek Sayad,
1964), Algérie 60: structures économiques et structures temporelles (1977), La misère du monde (1993)
e Le Bal des célibataires: crise de la societé em Béarn (2002).
Marie-Claire Bourdieu é historiadora de arte.
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