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CRESCIMENTO INTRA-UTERINO RETARDADO

Artigo de Revisão

Crescimento intra-uterino retardado: aspectos atuais


S.M.A. RAGONESI, A.M. BERTINI, L. CAMANO
Disciplina de Obstetrícia do Departamento de Tocoginecologia, Universidade Federal de São Paulo — Escola Paulista de Medicina, São
Paulo, SP.

UNITERMOS: Crescimento intra-uterino retardado. Diag- Não é difícil inferir que qualquer injúria ao
nóstico. Terapia. crescimento e desenvolvimento fetais possa resul-
tar em danos irreversíveis, o que denota a impor-
KEY WORDS: Fetal growth retardation. Diagnosis. tância da patologia designada crescimento intra-
Therapy.
uterino retardado (CIUR).
Até a década de 40, consideravam-se prematu-
ros todos os recém-nascidos de baixo peso. Em
Para compreendermos os exatos mecanismos 1947, Mc Burney 1 observou que alguns deles eram
que conduzem ao crescimento intra-uterino inade- pequenos em decorrência de um crescimento in-
quado, devemos nos reportar à embriologia e de- tra-uterino inadequado e não por nascerem preco-
senvolvimento normais do concepto. Os avanços cemente.
tecnológicos adquiridos nas últimas décadas per- Cerca de quinze anos após, a Organização Mun-
mitiram a melhor compreensão do início da vida na dial de Saúde desvinculou os conceitos de baixo
espécie humana, documentando-se desde o exato peso ao nascer e prematuridade, passando a rela-
momento da rotura folicular, liberando o óvulo cioná-los à idade gestacional. Consagrou-se, en-
envolto por células protetoras e nutritivas da co- tão, a existência de uma nova entidade nosológica,
roa radiata, até sua captação pela tuba uterina e denominada CIUR.
assédio pelos espermatozóides, a caminho da ferti- Battaglia & Lubchenco 2, na Universidade de
lização. Colorado (EUA), elaboraram curva relacionando o
Unidos genomas materno e paterno, inicia-se a peso ao nascimento com a idade da gravidez. Para
formação de um novo indivíduo, com progressiva esses autores, neonatos que se encontravam abai-
divisão celular e, concomitantemente, migração xo do percentil 10 eram considerados pequenos
para a cavidade uterina, onde o ovo irá nidar e para a idade gestacional. Este constitui o clássico
desenvolver. e amplamente conhecido conceito de CIUR.
Após quatro semanas da concepção, o diminuto No entanto, com a melhor compreensão dos
embrião humano — que mede cerca de 1cm de mecanismos envolvidos no crescimento e desen-
comprimento — apresenta coração e fígado des- volvimento intra-uterinos, bem como das adapta-
proporcionalmente grandes em relação ao corpo, ções fetais diante de agravos a estes processos, há
enquanto a placenta encontra-se em processo de tendência atual em se alterar o conceito de CIUR,
formação. Com seis semanas, o embrião já apre- passando este termo a significar um processo pato-
senta o esboço humano e prossegue a instalação da lógico capaz de modificar o potencial de crescimen-
circulação materno-fetal. to do concepto, em que o desvio das medidas antro-
Aos três meses, os órgãos e sistemas do concepto pométricas constitui apenas um sintoma 3. Por ou-
começam a se interligar, constituindo período crí- tro lado, o termo pequeno para a idade gestacional
tico no desenvolvimento cerebral e dos órgãos diz respeito meramente ao feto ou neonato que se
sensoriais. O crescimento fetal prossegue até qua- encontra abaixo de uma medida de referência, pré-
renta semanas, sendo os dois últimos meses deci- definida de peso ou comprimento para determina-
sivos para seu ganho ponderal — cerca de 200g a da idade gestacional 4.
cada semana. Ao nascimento, o cérebro humano Com esta conceituação mais ampla podemos nos
comporta centenas de bilhões de células nervosas, deparar com infantes PIG absolutamente normais
acreditando-se que na vida extra-uterina não e que não sofreram retarde de crescimento (são os
ocorra mais multiplicação neuronal. pequenos constitucionais). Por outro lado, alguns
Os estudos atuais vão mais além, responsabili- conceptos classificados como adequados para a
zando os agravos ocorridos intra-útero e durante a idade gestacional podem ter tido uma desacele-
infância por doenças do adulto, em particular as ração em seu crescimento, o que configura quadro
cardiovasculares, endócrinas e pulmonares. patológico e, portanto, maior risco perinatal.

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Com relação à incidência de CIUR, é bastante hipertensão arterial persistente, independente de


variável, dependente da população avaliada, dos sua etiologia, a responsável pelo prejuízo ao cres-
critérios de definição empregados e dos métodos cimento fetal. Acrescente-se, contudo, que a etio-
propedêuticos disponíveis, girando entre 2,0% e logia da hipertensão relaciona-se com o prognósti-
10,0%. Em nosso serviço, na Escola Paulista de co perinatal. Assim, a sobreposição da moléstia
Medicina, é de 6,8% 5. hipertensiva específica da gravidez à hipertensão
Há dois tipos de CIUR: arterial de base é que origina os distúrbios mais
- Tipo I, em que o concepto apresenta CIUR graves ao crescimento fetal.
simétrico, proporcionado, cujas causas são intrín- Com relação ao estado nutricional, é bem conhe-
secas (anomalias congênitas) e extrínsecas (infec- cida sua influência sobre o peso de nascimento. O
ções pré-natais e casos de desnutrição materna concepto desnutrido é depletado tanto de nutrien-
intensa, desde o início da gestação). Constitui cerca tes essenciais, como de alguns específicos, particu-
de 20,0% dos casos de CIUR e é, sem dúvida, de pior larmente o ferro e o ácido fólico 7.
prognóstico, embora alguns mais favoráveis se re- Existem várias outras patologias maternas que
lacionem a fatores constitucionais. O tratamento podem interferir no crescimento fetal: as cardio-
intra-útero, na maioria das vezes, como se pode patias gravemente descompensadas ou cianóticas;
depreender, é praticamente inexistente. o diabetes melito com vasculopatia universal ou
Em geral, para o tipo I, simétrico, harmônico, na concomitância de malformações; as doenças
não há tratamento. Constitui, portanto, o grupo de renais crônicas, as auto-imunes (principalmente o
pior prognóstico, com mortalidade perinatal eleva- lúpus eritematoso sistêmico) e as anemias severas.
da, apresentando, em caso de sobrevida, seqüelas Também figuram como causa de CIUR as anoma-
neurológicas de maior gravidade que as dos assi- lias de placenta e anexos, além de drogas de uso
métricos. terapêutico, como os anticonvulsivantes.
- Tipo II, representado pelo concepto assimétri- Os defeitos congênitos também determinam
co, desproporcionado, cujo perímetro cefálico é crescimento intra-uterino inadequado, destacan-
normal ou pouco menor que o de infantes hígidos, do-se as cromossomopatias, os defeitos do tubo
enquanto que a medida da circunferência abdomi- neural, alguns tipos de anomalias cardíacas e
nal é nitidamente abaixo do esperado. Neste gru- várias síndromes dismórficas8.
po, o fator determinante do CIUR intervém tar- Classicamente, as infecções pré-natais são cita-
diamente e mecanismos de adaptação da circula- das como responsáveis por cerca de 10% dos casos
ção fetal são acionados no sentido de poupar ór- de CIUR, sendo as principais a toxoplasmose, a
gãos mais nobres, como o cérebro e o miocárdio, em rubéola e a citomegalia 9.
detrimento das vísceras, da musculatura esquelé- Além das causas enumeradas, é mister ressaltar
tica e do tecido celular subcutâneo. O tipo II englo- que, em 30% a 40% dos casos, a etiologia permane-
ba 80,0% dos casos de CIUR. A hipertensão arte- ce indefinida 10.
rial e a desnutrição materna, no final da gestação, Em estudo em que analisamos as principais
são causas responsáveis pelo CIUR assimétrico, causas maternas e fetais de CIUR, em 154 casos
seguidas pela gemelidade e por entidades mater- assistidos na Escola Paulista de Medicina 5, obser-
nas ocasionadoras de diminuição da oxigenção do vamos que a hipertensão arterial esteve presente
espaço interviloso, como as cardiopatias cianó- em 39,0%, seguida de tabagismo (29,2%), ganho
ticas, as colagenoses, as anemias severas, o diabe- ponderal materno insuficiente (26,2%), malfor-
tes melito grave, além das grandes altitudes. mações (7,1%) e infecções congênitas (3,2%).
Nos casos tipo II, assimétrico, desarmônico, a A fisiopatogenia no CIUR relaciona-se com as
conduta expectante restringir-se-á às condições alterações de disponibilidade, transporte e utiliza-
materno-fetais e de maturidade. Em situações ção do substrato, podendo ocorrer três situações
maternas adversas (hipertensão não controlável, distintas: fornecimento materno-placentário di-
hemorragia grave) e fetais (anoxia), e também na minuído; potencial fetal prejudicado; ambos com-
vigência de maturidade do concepto, é impositiva prometidos.
a antecipção do parto. A intensidade e extensão do acometimento do
Quanto à etiologia, das causas conhecidas, sem neonato dependem da época de instalação do agra-
dúvida, a hipertensão arterial materna destaca-se vo e do grau de hipóxia experimentado intra-
como a principal, embora ainda existam grandes útero. No que concerne especificamente ao trans-
dificuldades em se determinar os diferentes tipos porte placentário, sabe-se que a gravidez provê
de hipertensão durante o ciclo gravídico-puerpe- mecanismos de adaptação fisiológica da circula-
ral. Neste sentido, Lin et al. 6 destacaram que é a ção, tanto em nível sistêmico (com aumento do

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débito cardíaco e vasodilatação periférica) como A ultra-sonografia é um dos exames mais impor-
útero-placentário (queda da resistência vascular, tantes no CIUR, pois, além de permitir sua identi-
funcionado como shunt materno-fetal). ficação, possibilita acompanhar a velocidade de
Na placenta humana que é do tipo hemocorial, crescimento daquele feto e avaliar a vitalidade 13.
as trocas gasosas e nutritivas ocorrem no espaço Por meio de dados de biometria, particularmen-
interviloso, e que apenas as paredes vascular e do te medidas seriadas do diâmetro biparietal, esti-
vilo corial interpõem-se entre circulações materna mativa do peso e relações entre circunferência
e do nascituro. cefálica e abdominal, comprimento do fêmur e
Durante o processo de placentação normal, no circunferência abdominal, podemos não só detec-
primeiro e início do segundo trimestres, ocorrem tar o inadequado crescimento intra-uterino como,
as duas ondas de migração trofoblástica, com o também, suspeitar do seu tipo (simétrico ou assi-
citotrofoblasto periférico invadindo e destruindo a métrico) 14 .
camada músculo-elástica, respectivamente, das Outro parâmetro de extrema importância é a
porções decidual e miometrial das artérias espira- avaliação quantitativa do líquido amniótico. Como
ladas. Estas alterações estruturais proporcionam, veremos com mais pormenores, a hipóxia determi-
destarte, um circuito de baixa resistência. na uma redistribuição do fluxo sanguíneo fetal,
Acredita-se que, na placentação anormal, a se- ocorrendo vasoconstrição na arteríola aferente
gunda onda de migração trofoblástica não ocorra, renal e conseqüente redução da filtração glomeru-
remanescendo, desta forma, a porção miometrial lar e do débito urinário, o que determina a oligoi-
das artérias espiraladas sensível a agentes vaso- dramnia. Assim, o cálculo do débito urinário,
pressores locais e sistêmicos, o que determina marcada e comprovadamente reduzido em con-
elevada resistência ao fluxo 11. Além disso, no CIUR ceptos portadores de retarde, é elemento ultra-
idiopático, existe redução do número de vilosida- sonográfico mais precoce que a redução do líquido
des terciárias formadas. amniótico, e, segundo Wladimiroff 15, possui forte
Outro mecanismo fisiopatogênico evocado é o correlação com o grau de hipóxia intra-uterina.
desequilíbrio no balanço das prostaglandinas, com Quanto à aceleração da maturidade placen-
aumento relativo do tromboxano A 2 (potente vaso- tária, seu valor é mais evidente quando há, conco-
constritor e promotor da agregabilidade plaque- mitantemente, redução do líquido amniótico. Não
tária), em detrimento das prostaciclinas, resul- obstante, o encontro de placenta grau III antes da
tando em múltiplas tromboses placentárias. 36 a semana constitui importante sinal de alerta
Estudos mais recentes vêm demonstrando a para o insuficiente crescimento fetal 16.
existência de fenômenos auto-imunes, com a pre- O advento da dopplervelocimetria tem permiti-
sença de anticorpos contra antígenos placentários, do o melhor entendimento da hemodinâmica ma-
trofoblásticos, do líquido amniótico e de linfócitos. terno-placentária e fetal, quer em situações nor-
Portanto, a má adaptação circulatória na gravi- mais ou patológicas. Constitui método não-inva-
dez, com placentação anormal e desequilíbrio no sivo, de fácil execução, inócuo e de pronta repeti-
balanço das prostaglandinas, conduz à vasocons- ção. Mediante cálculo da velocidade do fluxo san-
trição e múltiplos infartos e tromboses útero- guíneo, podemos inferir o grau de resistência exis-
placentárias, com redução do fluxo sanguíneo que tente nos diversos compartimentos — materno
determina crescimento intra-uterino retardado. (artérias ilíaca interna e uterina), placentário (ar-
O diagnóstico dessa patologia é realizado pela con- térias arqueadas) e fetal (vasos umbilicais, aorta
gregação de dados clínicos e de propedêutica subsidi- descendente, carótida interna, cerebral e renal).
ária. Dentre os primeiros, destaca-se a avaliação da No CIUR, observa-se um aumento progressivo
altura uterina em relação à idade gestacional. Uma da resistência vascular uterina e umbilical, repre-
desaceleração ou queda em seu crescimento levam à sentada, no Doppler, por queda da velocidade do
suspeita de CIUR, sendo este elemento de apareci- fluxo sanguíneo durante a diástole. É o elemento
mento tardio. Outro dado clínico é o ganho ponderal diagnóstico mais precoce do inadequado cresci-
da gestante, que, se prolongadamente reduzido ou mento fetal 17. Em situações extremas, pode ser
insuficiente durante o terceiro trimestre, pode condu- detectado fluxo diastólico final aproximadamente
zir à hipótese de inadequado suprimento fetal. igual a zero ou, até mesmo, fluxo reverso.
Numerosos métodos propedêuticos, como a do- Na circulação fetal, a dopplervelocimetria docu-
sagem de elementos do líquido amniótico 12 e exa- menta claramente a centralização do fluxo sanguí-
mes bioquímicos maternos, já foram propostos, neo, pela queda na resistência das artérias caró-
porém nenhum se mostrou eficiente na rotina, até tida interna e cerebral média 18 e aumento da resis-
o momento. tência vascular em nível de artéria renal.

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Outra arma propedêutica que dispomos na atu- mitantemente, aumento da concentração de eri-
alidade, porém com precisas indicações por tratar- trócitos e hemoglobina, indicando queda progres-
se de método invasivo e não completamente isento siva na eritropoiese hepática e elevação da medu-
de riscos, é a funiculocentese. Mediante a coleta de lar. Este pode representar mecanismo compensa-
amostras sanguíneas fetais, é possível a realização tório para a redução na pO 2 do sangue venoso
da cariotipagem, confirmando ou não as cromos- umbilical, ou seja, a quantidade de eritrócitos e
somopatias, quando há suspeita desta etiologia. hemoglobina aumenta e a concentração de oxigê-
Além disso, permite a análise gasimétrica19, com nio é mantida.
avaliação da oxigenação e do equilíbrio ácido-bási- Na vigência de hipóxia fetal grave, existe au-
co fetais, estudo hematimétrico, metabólico e mento na eritropoiese hepática 21, elevando-se a
sorológico, em casos de infecções congênitas. contagem eritroblástica, que, por sua vez, se rela-
O feto dispõe de sensíveis e precisos mecanis- ciona fortemente à elevação da eritropoietina. É
mos de compensação à hipóxia. A estimulação de possível que a infiltração do fígado pelo tecido
quimiorreceptores desencadeia resposta dos siste- eritropoiético seja fator etiopatogênico nas disfun-
mas simpático e parassimpático, promovendo va- ções hepáticas detectadas em fetos com CIUR,
soconstrição periférica e vasodilatação em nível determinando distúrbios no metabolismo de car-
cerebral, cardíaco e supra-renal — é o denominado boidratos, gorduras e aminoácidos.
fenômeno da “centralização da circulação fetal” ou Esses fetos apresentam, também, leucopenia
“efeito protetor cerebral”, em que o sofrimento com redução da contagem de neutrófilos, linfócitos
crônico é dito “compensado”. e monócitos, além de trombocitopenia, que, por sua
Não obstante, esse mecanismo determina al- vez, se correlaciona significativamente com o grau
guns prejuízos graves ao concepto, naqueles ór- de hipoxemia, acidose e retarde de crescimento.
gãos em que há redução do fluxo sanguíneo. Assim, Quanto ao metabolismo glicídico, sabe-se que o
no fígado, ocorrem alterações globais da função transporte de glicose pela placenta é realizado por
hepatocelular, com prejuízo na produção de enzi- difusão facilitada, e que sua captação para a veia
mas e cofatores, imprescindíveis para o adequado umbilical está diretamente relacionada à concen-
metabolismo e síntese protéica. Em nível intesti- tração materna e ao gradiente transplacentário.
nal, essa isquemia pode resultar em complicação Estudos comparativos das concentrações mé-
extremamente grave, denominada enterocolite dias de glicose entre fetos normais e aqueles
necrotizante, enquanto nos rins existe decréscimo hipóxicos, portadores de CIUR, revelaram níveis
do número de néfrons formados e, dependente do inferiores no último grupo. Esse achado compro-
grau de severidade do retarde, a alteração pode ser vou que a hipoglicemia observada no período
irreversível. neonatal não é, necessariamente, de origem pós-
A análise gasimétrica, por meio da funiculocen- natal 22. Tal distúrbio metabólico pode decorrer da
tese, permitiu a construção de curvas de normali- má perfusão uteroplacentária, com redução da
dade da pressão parcial de oxigênio (pO2) nos transferência de glicose e oxigênio. Outra possibi-
diferentes compartimentos — interviloso, artéria lidade para explicar a baixa glicemia fetal seria a
e veia umbilicais. hipóxia, com a exaltação do metabolismo anaeró-
Estudo semelhante em fetos com crescimento bico para obtenção de energia.
retardado revelou que grande parte deles encon- Sabe-se que durante a gravidez ocorre diminui-
tra-se hipóxica e que o grau de hipóxia se relaciona ção exponencial na concentração plasmática de
à acidose, hipercapnia e hiperlactinemia 20. triglicerídios do concepto, refletindo sua incorpo-
Diante da redução na oferta de oxigênio, o feto ração progressiva no tecido adiposo, que, no ter-
lança mão de mecanismos metabólicos que tentam mo, representa 16,0% do peso corpóreo total.
compensar a hipóxia, como o aumento da eritro- Nos fetos hipóxicos, detecta-se hipertrigliceri-
poiese. demia 23, provavelmente resultante de dois meca-
A hemopoiese no embrião e feto pode ser dividi- nismos:
da em três fases, conforme o principal órgão pro- — o primeiro, determinado pela lipólise. Embo-
dutor: mesoblástico (saco vitelino), hepático e ra as necessidades energéticas do nascituro sejam
mielóide. Os eritroblastos são liberados na circula- supridas pela oxidação da glicose, é possível que,
ção apenas nos sítios extramedulares, com sua em vigência de hipóxia e hipoglicemia, ocorra
contagem no sangue periférico medida indireta de mobilização das gorduras para o fornecimento de
avaliação da eritropoiese extramedular. substrato energético alternativo. Os elevados ní-
Durante gravidez normal, ocorre diminuição veis de ácidos graxos não esterificados circulantes
exponencial na contagem eritroblástica e, conco- podem exercer uma ação poupadora de glicose que

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ficaria disponível para o metabolismo cerebral. por meio de cordocentese). Ressaltamos, também,
Aqueles ácidos graxos livres não empregados nes- o uso de drogas vasodilatadoras placentárias 25, o
sa oxidação seriam convertidos, em nível hepático, transplante de medula óssea, o DNA produtor do
determinando aumento da trigliceridemia; hormônio de crescimento e a placenta artificial (à
— o segundo mecanismo responsável pela hiper- semelhança de um sistema hemodialítico). Todas,
trigliceridemia é a lipogênese. Há a menor utiliza- porém, apresentaram resultados bastante contro-
ção dos triglicerídios pelo tecido adiposo devido, versos, sendo o motivo de tal insucesso relacionado
entre outros fatores, à hipoinsulinemia e redução ao fato de não se atuar no que realmente é limi-
da lipoproteína lipase, presente em conceptos com tante, ou seja, a insuficiência vascular útero-
CIUR. placentária.
À semelhança do que ocorre nas crianças com A única terapêutica que, em estudos prelimina-
sídrome de Kwashiorkor, a relação de aminoácidos res, apresentou efeitos benéficos foi a hiperoxi-
não essenciais e essenciais do feto desnutrido está genação materna. Estudos em animais e humanos
elevada 24. Tal fato foi apurado pela observação do demonstraram que essa medida, em fetos hipoxê-
aumento do quociente entre glicina e valina, alte- micos, restitui a freqüência dos movimentos respi-
ração que se relaciona fortemente com o grau de ratórios ao normal 25.
hipóxia fetal. As altas concentrações de glicina, Em casos de CIUR severo, no segundo trimes-
aminoácido não essencial, ocorrem em razão de tre, com alteração da dopplervelocimetria da cir-
sua não-utilização na gliconeogênese, oxidação ou culação fetal e hipóxia, confirmada pela gasime-
síntese de proteína, durante a hipoxemia. Por tria, a hiperoxigenação materna pode beneficiar o
outro lado, a baixa concentração de valina pode concepto, elevando a pressão parcial de O 2, previ-
decorrer do reduzido suprimento ao espaço inter- nindo o óbito intra-uterino e, desta forma, permi-
viloso ou da diminuição do transporte ativo por tindo o adiamento do parto até o feto atingir viabi-
meio da placenta, em conseqüência da hipóxia. lidade. Também ocorre redução do metabolismo
Várias outras alterações metabólicas vêm sendo anaeróbico da glicose, com reversão da acidose, do
investigadas no CIUR. Sabe-se, atualmente, que estado de hipoglicemia e das alterações lipídicas e
esses fetos apresentam osteopenia, devido à redu- dos aminoácidos, detectadas no feto hipoxêmico.
ção do transporte de cálcio, estímulo à paratiróide Outrossim, há melhora da perfusão visceral, com
fetal e aumento da reabsorção óssea. Também menor risco de lesão funcional. Nicolaides et al. 26
foram encontradas alterações hipofisárias, com orientaram a administração contínua de O 2 umidi-
baixos níveis de ACTH e maior concentração ficado, 9 litros/minuto, numa concentração de
plasmática de cortisol que a observada em con- 55,0%, através de máscara facial.
ceptos adequados para a idade gestacional; e res- Enquanto prosseguem as investigações do tra-
posta simpatoadrenal à hipóxia, com elevação dos tamento intra-uterino, podemos subdividir a con-
níveis de noradrenalina, além de alterações dos duta atual de acordo com o tipo de CIUR:
hormônios tiroidianos. — tipo I, após pesquisa imediata e exclusão de
Apesar de todo o avanço propedêutico, na prática malformações incompatíveis com a vida, naqueles
diária, observa-se que persistem os baixos per- casos em que a etiologia é definida, deve-se minis-
centuais diagnósticos de CIUR no período ante- trar o tratamento específico;
natal. Em nosso estudo5, ao analisarmos a época do — tipo II, a conduta é expectante na ausência de
diagnóstico, segundo a freqüência e o local de assis- maturidade e preservação de certa vitalidade
tência pré-natal, notamos que essa identificação foi fetal, instituindo-se a terapêutica das intercorrên-
tardia, realizada mais assiduamente no período cias maternas. Posto que o processo de crescimen-
pós-natal. Assim, em apenas 48,4% das gestantes to intra-uterino retardado é progressivo e irrever-
seguidas no pré-natal da Escola Paulista de Medi- sível, uma vez atingida a maturidade ou quando
cina, o reconhecimento do agravo fetal ocorreu houver grau mais importante de comprometimen-
antes do nascimento. Esse diagnóstico antenatal foi to do bem-estar do concepto, adota-se conduta
menos eficiente naquelas pacientes oriundas de ativa com resolução da gravidez. Elemento prope-
outros serviços (31,1%) ou nas que não realizaram dêutico que auxilia sobremaneira a condução des-
acompanhamento pré-natal (12,5%). ses casos é a amniocentese, com realização das
Já foram descritas inúmeras tentativas de tra- clássicas provas de maturidade e vitalidade do
tamento intra-uterino do crescimento fetal retar- líquido amniótico.
dado como o repouso no leito e a infusão de nutri- A via de parturição depende da intensidade de
entes por diversas vias (oral, parenteral, intra- acometimento do concepto, das condições obstétri-
amniótica, transcervical, por cateter instalado cas maternas e dos métodos propedêuticos dispo-

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níveis para a adequada monitoragem da oxige- uterino retardado. São Paulo, 1993. (Tese de Mestrado apres.
nação fetal, durante o trabalho de parto. Esses à Escola Paulista de Medicina).
6. Lin CC, Lindheimer MD, River P, Moawad AH. Fetal outcome
motivos justificam a elevada freqüência de cesá- in hypertensive disorders of pregnancy. Am J Obstet Gynecol
reas, também observada em nossa casuística5 1982; 142: 255-60.
(aproximadamente 60%). 7. Gandy G, Jacobson W. Influence of folic acid on birthweight
Quanto ao prognóstico perinatal, é bastante and growth of the erythroblastotic infant. I. Birthweight.
ominoso, associando-se à elevada freqüência de Arch Dis Child 1977; 52: 1-6.
8. Khoury MJ, Erickson D, Cordero JF et al. Congenital malfor-
prematuridade e todas as intercorrências que dela mation and intrauterine growth retardation: a population
advêm. Em nosso estudo 5, observamos 40,3% de study. Pediatrics 1988; 82: 83-90.
prematuros, com cerca da metade abaixo de 34 9. Knox JE. Influence of infection on fetal growth and develop-
semanas. ment. J Reprod Med 1978; 21: 352-8.
A morbidade também é elevada, com ocorrência 10. Lin CC, Evans MI. Intra-Uterine Growth Retardation: Patho-
physiology and Clinical Management. ed. New York, Mc
de asfixia, aspiração de mecônio, distúrbios respi- Graw, Hill Book, 1984; 10-39.
ratórios, metabólicos, hemorrágicos e infecciosos. 11. Wolf F, Brosens I, Renaer M. Fetal growth retardation and
Nos 154 casos ocorridos na Escola Paulista de the maternal arterial supply of the human placenta in the
Medicina 5, detectamos 16,0% de asfixia, 13,3% de absence of sustained hipertension. Br J Obstet Gynaecol
síndrome do desconforto respiratório (achado sur- 1980; 87: 678-85.
12. Facchinetti F, Borella P, Valentini M et al. Intra-uterine
preendente, pois contraria o clássico conceito de growth retardation is associated with increased levels of
que a hipóxia intra-uterina crônica conduz à ace- magnesium in amniotic fluid. Eur J Obstet Reprod Biol 1989;
leração da maturidade pulmonar), 42,7% de hipo- 32: 227-32.
glicemia, 17,3% de hipocalcemia, 9,3% de hemor- 13. Amin Jr J, Lima MLA, Fonseca ALA et al. Crescimento intra-
ragia intracraniana e 6,7% de septicemia. uterino retardado: diagnóstico e importância clínica. J Bras
Ginecol 1987; 97: 7-14.
Alguns grupos de pesquisa têm preconizado a 14. Campbell S, Thoms A. Ultrasound measurement of fetal head
profilaxia do CIUR com o emprego dos inibidores to abdomen circumference in the assessment of growth retar-
das protaglandinas 27, particularmente do trombo- dation. Br J Obstet Gynaecol 1977; 84: 165-9.
xano A 2, com o objetivo de melhorar a vasocons- 15. Wladimiroff J W, Campbell S. Fetal urine production rates in
trição e prevenir a ocorrência de tromboses. No normal and complicated pregnancy. Lancet 1974; 1: 151-4.
16. Montenegro CAB, Amin Jr J, Lima MLA et al. A placenta
entanto, a comprovação científica desses benefí- sonulescente (grau III): sinal de insuficiência placentária.
cios depende, ainda, de estudos multicêntricos. Relato de um caso. J Bras Ginecol 1984; 94: 341-7.
Concluindo, cabe a nós, obstetras, como mem- 17. Campbell S, Pearcee JMF, Hackett G. et al. Qualitative as-
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trar esforços para que cada vez menos entregue- for high-risk pregnancies. Obstet Gynecol 1986; 68: 649-56.
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