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Saúde em rede: a gestão do cotidiano na fanpage da revista “Melhor com


saúde”

Resumo:

A pesquisa objetiva compreender como a noção de saúde é articulada no blog da revista


“Melhor com saúde”. O corpus é composto por 22 matérias. O estudo possui caráter
qualitativo e utiliza coleta de dados, pesquisa documental e a abordagem da socioantropologia
do imaginário (MAFFESOLI 2001; 2018). A saúde estaria associada ao bem-estar, ao desfrute
hedonista da vida e à gestão dos riscos. Trata-se de um ethos estético, circunstancial, afeito
às sensações e erigido através da comunicação em rede.

Introdução

O ciberespaço se tornou o grande catalizador do imaginário contemporâneo sobre


saúde, estimulando crenças, valores, mitos, rituais e desejos. O dispositivo midiático
promove o acesso facilitado e abundante às informações e intervém nas práticas cotidianas.
A fanpage da revista “Melhor com saúde” é sintoma do interesse que o assunto desperta; a
página possui mais de 8,5 milhões de seguidores no Facebook, constituindo-se na maior
comunidade brasileira sobre o tema. As postagens remetem principalmente ao blog da
revista homônima.
O ambiente pós-moderno, constituído pela sinergia entre o arcaico e a tecnologia de
ponta (MAFFESOLI, 2014), reconfigura a noção de saúde que se torna, cada vez mais,
simbólica, instável, atrelada aos humores do mercado, reapropriada e compartilhada
continuamente pelos atores sociais. Ser ou sentir-se saudável ultrapassa a esfera individual e
se refere ao coletivo, é parte de uma atmosfera de partilha. Para Davis (2015), o ciberespaço
amplia a dimensão simbólica porque expande a nossa potencialidade mental e nos coloca
em contato com o outro.
Dada a relevância do tema, é importante investigar o modelo sociocultural que
acentua determinados comportamentos e interações que envolvam a saúde. O assunto,
tradicionalmente restrito ao domínio científico, à relação médico-paciente ou ao âmbito
familiar, reconfigura-se com a ação dos meios de comunicação digitais. Os seguidores da
fanpage recebem e compartilham informações, além de comentar e reagir ao conteúdo,
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estabelecendo laços que transformam os modos de ser/estar no mundo e,


consequentemente, criam uma atmosfera em torno da noção de saúde.
Como metodologia utilizamos a netnografia (KOZINETZ, 2014) por meio da
observação participante da fanpage Melhor com Saúde. Utilizamos ainda a ferramenta
Netvizz, desenvolvida para coletar dados do Facebook, extraindo informações sobre as
postagens dos meses de janeiro e fevereiro de 2018, bem como os comentários.
Selecionamos os dez posts com maior número de comentários para compreender como a
noção de saúde é articulada na página, mobilizando milhões de usuários. Para a discussão
teórica, adotamos a perspectiva da socioantropologia do imaginário (Maffesoli, 2014, 2016).

Os sentidos da saúde

O conceito de saúde se modifica de acordo com o contexto sociocultural vigente em


determinada época e depende das ideias científicas que norteiam a compreensão dos
fenômenos. Se a concepção mágico-religiosa atribuía a causa das doenças a fatores
transcendentes ao indivíduo e a cura estava ligada a procedimentos ritualísticos, coube ao
médico grego Hipócrates romper com a tradição e explicar as doenças de modo racional,
relacionando-as a causas naturais. O filósofo nos legou abordagem racional e empírica sobre
a saúde, vista como o equilíbrio entre quatro fluídos principais do corpo.
A Idade Média representa um retrocesso à medicina hipocrática e considera as
doenças resultado do castigo divino. As práticas terapêuticas se tornam tarefa dos religiosos
e não mais dos médicos. A modernidade representa a ascensão do modelo biomédico.
Descartes rompe com a tradição renascentista de que tudo era animado por espírito e
conectado entre si, dando lugar ao modelo mecanicista e matemático, que compreende o
mundo, inclusive o corpo, como máquina. A saúde, portanto, seria o perfeito funcionamento
das partes corporais.
A partir de meados do século XX, emerge uma nova sensibilidade que expressa a
saturação dos valores modernos. Podemos considerar que o conceito de saúde, elaborado
pela Organização Mundial de Saúde (OMS), opera uma reviravolta na abordagem do tema.
Pela primeira vez, um consenso entre vários países buscou definir o que é ser/sentir-se
saudável. Até então, as preocupações recaíam sobre as doenças, procurando a cura ou alívio
do mal-estar. A carta de princípios da OMS define a saúde como “[...] um estado de
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completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e


enfermidades [...]” (OMS, 1946, doc. não paginado).
Embora a definição tenha recebido críticas como sendo um estado inalcançável e de
difícil objetivação, compreendemos a noção de saúde como sintoma de uma mudança de
sensibilidade que já se esboçava em meados do século XX e se acentua com o advento das
novas tecnologias de comunicação e informação nos anos 1980. A essa nova forma de estar
no mundo denominamos pós-modernidade. De acordo com Maffesoli (2014), tal atmosfera
é constituída pela sinergia entre o arcaico e a tecnologia de ponta. Trata-se da valorização
dos agrupamentos afetivos e eletivos, as chamadas “tribos” em que a pessoa se inscreve em
um todo coletivo. O corpo individual, portanto, é tributário da comunidade.
A digressão histórica procurou demarcar os imaginários ocidentais que nortearam a
concepção de saúde, acentuando suas características. Desejamos, a partir deste recuo,
evidenciar que a pós-modernidade, caracterizada pelo avanço tecnocientífico que
possibilitou o advento da internet, não constitui uma ultrapassagem dos imaginários
anteriores. De outra forma, vivenciamos a potencialização de mitos e transcendências que
remetem a outros imaginários. A saúde, portanto, é produto da atmosfera instável, efêmera,
conflituosa, paradoxal e multifacetada, configurada pelo incessante fluxo de informações
divulgadas em rede, característica da pós-modernidade.

A saúde em rede

A internet promove o acesso ilimitado e abundante a informações. Ao digitarmos a


palavra “saúde” no google, obtemos o resultado de 113 milhões de sites. A palavra “health”
revela um número de informações ainda maior; 1,25 trilhão de sites. Assuntos tão díspares
como nutrição, sintomas e tratamento de doenças, notícias, departamentos
governamentais, seguros, cosméticos, fitness, dietas, exercícios, beleza e yoga entre outros
temas, são elencados através do buscador.
A multiplicidade das questões relacionadas traduz o caráter pervasivo e ascendente
que a saúde alcança na pós-modernidade. Como aponta Le Breton (2013), o tema mobiliza a
sociedade, tornando-se a nova religião, resultante de aspirações íntimas, discursos e
investimentos coletivos. A saúde se configura um imperativo categórico, modulando nossas
práticas cotidianas nas várias esferas sociais.
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Estima-se que sejam realizadas 278 milhões de pesquisas na internet todos os dias,
sendo 12,5 milhões de pesquisas sobre saúde (XXXXX)
Os meios de comunicação digitais reconfiguram o que é ser/sentir-se saudável.
As agregações nas redes sociais digitais tenderiam a erigir a noção de saúde mais
desvinculada da doença e relacionada a uma ética estética.
a partilha de experiências que intervêm nas práticas cotidianas.

O estudo integra a pesquisa de pós-doutorado que está em fase inicial e aborda as


reconfigurações da saúde na pós-modernidade. Escolhemos aleatoriamente o dia 23 de
janeiro de 2018, às 14 horas, para iniciar a coleta das postagens na fanpage. Verificamos o
total de 33 posts no período de 24 horas e selecionamos as matérias jornalísticas. Os 22
textos foram acessados no blog da revista (https://melhorcomsaude.com/). Este estudo
possui caráter qualitativo e utiliza coleta de dados, pesquisa documental e a abordagem da
socioantropologia do imaginário (MAFFESOLI 2001; 2018) . A investigação objetiva
compreender como a noção de saúde é articulada no blog da revista “Melhor com saúde".
A definição da revista, “blog sobre bons hábitos e cuidados para a sua saúde”, revela
o caráter pervasivo do tema. A doença não é o foco dos textos, mas assuntos que suscitam
interesse do leitor porque carregam a promessa de bem-estar, potencializam a fruição da
vida, diminuem os riscos de adoecimento e ainda oferecem dicas práticas para resolver
problemas cotidianos. O conteúdo é dividido em sete seções: “Bons hábitos”, “Remédios
naturais”, “Curiosidades”, “Beleza”, “Receitas”, “Perder peso” e “Sexo e relacionamento” e é
voltado ao público feminino.
Observamos que, entre as 22 matérias selecionadas, oito constam na editoria “Bons
hábitos”. Assuntos tão díspares como doença mental, exercício físico, cuidados com roupas
íntimas, benefícios da manga, gengibre e limonada, e o ganho em praticar o perdão,
encontram-se na mesma seção. Constatamos que três matérias estão na editoria “Remédios
naturais” e quatro em “Curiosidades”. As seções de “Beleza”, “Receitas” e “Perder peso”
têm duas matérias cada e, por fim, uma ocorrência em “Sexo e relacionamento”. Dentre
todos os assuntos, apenas três matérias abordam doenças: duas sobre transtornos mentais
e uma trata da fibromialgia. Tais temas são enfocados de maneira leve e didática nas seções
“Curiosidades” e “Bons hábitos”.
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O conteúdo veiculado parece sintoma de uma nova sensibilidade resultante da crise


dos valores modernos e potencializada com a ação da internet. A pós-modernidade
(MAFFESOLI, 2018) reconfigura a noção de saúde que se torna cada vez mais simbólica,
instável, atrelada aos humores do mercado, reapropriada e compartilhada sucessivamente
pelos atores sociais.
A saúde deixa de ser a ausência de doenças e aproxima-se da noção de “estar de bem
com a vida”, constituindo-se “em um bem intangível, simbólico, ansiado e associado às
revelações tecnocientíficas e, principalmente, midiáticas” (GOMES, 2017, p. 137-138). Ser ou
sentir-se saudável ultrapassa a esfera individual e se refere ao coletivo, é parte de uma
atmosfera de partilha; o imaginário (MAFFESOLI, 2001; 2018).
As pessoas buscam informações e aconselhamentos sobre viver com qualidade e de
forma prazerosa. A mídia digital se torna eficaz porque dissemina conteúdo de forma
continuada, insinuante e lúdica. Os indivíduos, no entanto, acabam responsabilizados pela
gestão de si, implicados para que administrem seus corpos, emoções e comportamentos. As
“técnicas do bem-estar” (LIPOVETSKY, 2015) visam proporcionar sensação de equilíbrio físico
e psíquico, modelando o cotidiano de forma sedutora e pedagógica. Diante do turbilhão de
informação disponível na rede, é necessário aproximar, orientar e estimular o leitor a
consumir informação.
O dispositivo midiático converte-se em uma espécie de dispositivo “mágico”,
enfocando revelações capazes de criar impacto no leitor, mitigar suas inquietações,
convocando-o para além do real imediato. A saúde estaria associada ao bem-estar, ao
desfrute hedonista da vida e à gestão dos riscos. Para além do racional, trata-se de um ethos
estético, circunstancial, afeito às sensações e erigido através da comunicação em rede.

Sobrevém a mística

Bibliografia:

LE BRETON, David. L’adieu au corps: antropologie e société. Paris: Editions Métailié, 2013.

LIPOVETSKY, Gilles. De lá légèreté: vers une civilisation du léger. Paris: Editions Grasset &
Fasquelle, 2015.
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MAFFESOLI, Michel. Être postmoderne. Paris: Editions du Cerf, 2018.

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